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COMO A BIOÉTICA GANHOU SEU NOME POR WARREN T. REICH(WARREN REICH participou na origem do Instituto Kennedy de ética

nos anos 70)

O nome deste campo nasceu em dois lugares. Madison, Wiaconsin e em Washigton, D.C.. Foi Van Rensselaer Potter, na niversidade de Wisconsin, quem primeiro cunhou o termo bioethics (bioética), e Andre Hellergers na Universidade de Georgetown quem primeiro usou-o num contexto institucional para designar a área de pesquisa ou campo de aprendizagem que hoje celebramos ( N.T.O autor refere-se a conferência comemorativa dos 30 anos de bioética entitulada “The Birth of bioethics”, que aconteceu na Universidade de Washigton, em Seatle, USA, de 23 a 24 de setembro de 1992). Van Rensselaer Potter, pesquisador na área de oncologia, em Wisconsin, usou a palavra num sentido evolutivo muito distante do significado que ela tem hoje, com o resultado que o uso do termo foi marginalizado. Potter, demostrou interesse nos conflitos entre, ordem e desordem no mundo afetado pelas ciências biológicas: “O objetivo desta disciplina, como eu vejo, seria de ajudar a humanidade em direção a uma participação racional, mas cautelosa no processo da evolução biológica e cultural. ... escolho “bio” para representar o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas vigentes, e “ética” para representar o conhecimento dos sistemas de valores humanos”. Andre Hellegers, um obstetra holandês, fisiologista fetal e demógrafo que fundou o Insittuto Kennedy na Universidade de Georgetown, foi quem usou o termo para aplicá-lo à ética da medicina e ciências biológicas, de tal forma que o nome acabou se consagrando nos círculos acadêmicos e na mente do público. A palavra “bioethics” apareceu no nome original d Instituto Kennedy no ano de sua fundação, 1971: The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics. Foi André Hekkegers quem divulgou a palavra bioethics e direcionou o projeto do Isntituto Kennedy em direção à bioética e tornou-se um renomado conferencista internacional na área. Recentemente, Dan Callahan me revelou que nunca gostou de usar a palavra bioethics. Ele reconhece que é o nome do campo, mas que praticamente não usa com muita freqüência o termo em seus artigos. Isto, muito embora seu artigo “bioética como uma disciplina”, que foi publicado no primeiro volume do Hastings Center Studies é citado no cartão de identificação para assuntos chaves criados pela livraria do Congresso em 1974. Para concluir, penso que o campo da bioética começou com a palavra bioética porque o termo é muito sugestivo e poderoso. Sugere novo enfoque, ou seja, de colocar juntas as disciplinas de uma maneira nova, como novo fórum que procura neutralizar a inclinação ideológica das pessoas associadas com a palavra ethics ( ética). O FIM DO INAMPS E OS PARADIGMAS DA ATENÇÃO À SAÚDE. EUGÊNIO VILAÇA MENDES Os modelos sanitários em curso numa sociedade, num momento dado, repousam numa concepção do que é o processo saúde/enfermidade, especialmente aquela que vige na representação das gentes como forma de um sistema dominante de crenças. No passado, o desenvolvimento da microbiologia fundamentou uma concepção monocausal, apoiando na teoria dos gens, segundo a qual os problemas de saúde explicamse por uma relação agente/hospedeiro. O paradigma sanitário que derivou dessa concepção foi o sanitarismo que pretende resolver os problemas de saúde através da interposição de barreiras que impeçam esta relação de causa e efeito.


Mais tarde, incorpora-se, na concepção ecológica, a multicausalidade, onde agente e fatores determinantes de caráter individual – idade, raça, sexo, renda, etc – estão em relação com os hospedeiros, num determinado ambiente. O enfrentamento dos problemas obedece à mesma lógica do anterior, explicitando-se num corte entre causas e efeitos, de forte conotaçào médica, seja preventiva, seja curativa-reabilitadora. Esta teoria determinou o predomínio do pensamento clínico sobre o processo saúdeenfermidade, o que leva a modelos explicativos restritivos que concentram sua atenção no estudo das relações entre uma ou várias causas e entre um ou vários efeitos, reforçando respostas unilaterais, marcadas por uma visão clínica e que se localizam no espaço da atenção às pessoas. A saúde é entendida ou representada como ausência de doença e a organização dos serviços é medicamente definida e tem como objetivo colocar à disposição da população serviços preventivos e curativos reabilitadores acessíveis, de conformidade com os elementos ideológicos do paradigma flexneriano. No Brasil, a concepção ecológica está na base do modelo médico-assistencial privatista e, também, do modelo neo-liberal da saúde. “Os países sub-desenvolvidos não tiveram tempo, como os ricos, para uma gradativa transição, nem demográfica, nem epidemiológica” A conseqüência desta concepção de processo saúde/enfermidade e de seu paradigma assistencial flexneriano é que e mais serviços médicos vão sendo demandados e ofertados, a custos crescentes e com baixo impacto nos níveis de saúde. Demais, as limitações dessas concepções, seja na sua capacidade explicativa seja na sua utilidade prática no desenvolvimento de ações integrais de saúde, vão evidenciando-se na media em que as doenças transmissíveis perdem importância relativas, a expectativa de vida aumenta e que as doenças crônicas e as causas externas vão ganhando força. Nos países do primeiro mundo os sistemas de saúde começam, na metade dos anos 70, a serem fortemente questionados, tendo como pano de fundo novas concepço1es de processos saúde/enfermidade (modelos de Blum, de Dever e de Lalonde) que procuram articular quatro dimensões explicativas: biologia humana, estilos de vida, meio ambiente e serviços de saúde. Surgem, então, novas concepções de processos saúde/enfermidade, mais globalizantes que articulam saúde com condições de vida. Descobertas recentes nos domínios de genética, da imunologia e da neurofisiologia permitem uma reatualização da concepção de Herzlich para quem a saúde constitui um modo de relação de tipo equilíbrio do homem com seu meio, onde intervêm fatores humanos, condições ecológicas e estruturas sociais. A partir daí, desaparecem as razões para a artificial separação entre ações curativas e preventivas porque o ambiente social pode ter um papel curativo importante, assim como a existência de serviços confiáveis de saúde pode exercer uma função preventiva pelo sentimento de confiança que cria na população. Durante a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no Canadá, em 1986, surge um dos mais importantes documentos da saúde pública moderna, a Carta de Ottawa, subscrita por 38 países, onde se diz que a paz, a educação, a habilitação, a alimentação, a renda, um ecossistema estável, a conservação dos recursos, a justiça social e eqüidade são requisitos fundamentais para a saúde. Por outro lado, a epidemiologia social latino-americana, a partir da categoria reprodução social, enfatiza a importância de um marco explicativo do processo


saúde/enfermidade que vincule saúde e condições da vida, através da interrelação entre as dimensões biológicas, ecológicas, consciência e conduta e processos econômicos. Tal concepção ampliada de processo de saúde/enfermidade foi incorporada no relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde e no texto da Constituição Federal de 1988, onde o Artigo 196 estabelece-se. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos... É em função desse mandamento constitucional que se deve procurar construir o Sistema Único de Saúde, o que implicará um novo paradigma assistencial que se denomina de promoção da saúde, o que não deve ser confundido com a idéia restrita desta expressão colocada como etapa da história natural das doenças. A questão do paradigma de atenção à saúde está na base da crise dos sistemas de saúde. Assim, ao organizá-los ou reformá-los uma sociedade deve optar por que paradigma vai referenciá-los. Essa crise é universal e manifesta-se, com muita força, na impossibilidade de conciliar as forças expansivas dos sistemas de saúde (ampliação das exigências éticas da sociedade, medicalização da sociedade, desenvolvimento das tecnologias de atenção, especialmente medicamentos e equipamentos médicos, transição demográfica com envelhecimento da população, transição epidemiológica com domínio relativo de doenças crônicas e o incremento desordenado da força de trabalho em saúde) com os mecanismo de controle (racionamento de recursos humanos e físicos, controle de financiamento e ética profissional). Essas crises têm sua face visível na crise de financiamento, vez que os países vêm incrementando seus gastos sem um correspondente impacto nos padrões de sua populações. Estudos recentemente feitos em países desenvolvidos selecionados, demonstram que os gastos per capita em saúde, no período de 1960-1986. Em média, mais que duplicaram. Enquanto isso, a esperança de vida ao nascer, no mesmo período, não cresce proporcionalmente ao incremento dos gastos. Da mesma forma, dados do Banco Mundial, mostram que não há correlação entre os gastos per capita em saúde e as taxas de mortalidade infantil. Pesquisa de opinião, realizada, em 1990, em dez países do primeiro mundo, mostram, primeiro, que não há correlação entre a satisfação dos usuários com os gastos per capita em saúde e, segundo que, em todos os países, à exceção do Canadá, os níveis de satisfação situam-se muito abaixo dos 50%. Tal crise, referida aos países desenvolvidos, manifesta-se, com maior força, nos países pobres. Os países sub-desenvolvidos não tiveram tempo, como os ricos, para uma gradativa transição, nem demográfica, nem epidemiológica. Como conseqüência, expressam, concomitantemente, um quadro epidemiológico que superpõe às doenças típicas da pobreza – as doenças infecciosas e carenciais – aquelas outras características de sociedade afluentes, as doenças crônicas e aquelas ligadas a condições desfavoráveis do meio ambiente. Desa forma, os países pobres, com profundas necessidades sociais e sem recursos significativos, têm que enfrentar, ao mesmo tempo, problemas tão diversos quanto doenças diarréias e cólera, desnutrição, infecções, AIDS, câncer, doenças cardiovasculares, violência urbana, etc.


“a não extinção do INAMPS inviabiliza as possibilidades da superação da crise do sistema de saúde” Cresce a consciência e que a crise de financiamento, apontada pelos novos sacerdotes, os economistas, nada mais é que expressão fenomênica de uma cauda mais profunda que tem suas raízes no modelo médico derivados de um determinado paradigma de atenção à saúde. É, nesse sentido, que os reformistas ingleses falam de uma revolução silenciosa no sistema de saúde que derive as preocupações para os resultados medidos na melhoria da qualidade de vida da população. Saír da crise implica, pois, necessariamente, transitar de um modelo de atenção médica, fruto do paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à saúde, expressão do paradigma de promoção da saúde. O INAMPS ao constituir-se, historicamente, como território institucional da atenção médica, é manifestação acabada de estrutura e métodos coerentes com o paradigma flexneriano. Essa instituição criou, ao longo do tempo, uma cultura própria, de difícil superação, e veiculou, embutida em seus métodos, a ideologia da atenção médica. A manifestação do INAMPS significa, portanto, um compromisso com permanência de uma lógica de estruturação do sistema de saúde, centrada na separação de atenção médica e saúde pública, com nítida prevalência das ações curativo-reabilitadoras e invalidando a construção social do paradigma da promoção da saúde. Assim, a não extinção do INAMPS inviabiliza as possibilidades de uma superação da crise do sistema de saúde, atuando sobre sua determinação última, vez que contrapõe-se à institucionalização do paradigma da promoção da saúde. Eis, mais uma fortíssima razão para o fim do INAMPS. Extraída de: Saúde em debate, junho/93, artigo de “Cinco Razões para o fim fo INAMPS”, p. 26-34. A PARÁBOLA DA SOLIDARIEDADE LÉO PESSINI Fala-se muito em solidariedade neste momento, despertados que fomos por Herbert de Souza, o Betinho, na sua cruzada nacional contra a miséria, a fome e pela cidadania. Tivemos boas notícias de muitos exemplos heróicos de solidariedade. Brasileiros de todos os quadrantes, não importando cor, raça, religião ou classe social mostraram-se sensibilizados pela causa. O problema não está resolvido evidentemente. É apenas um sinal, um ponto de arrancada. É preciso uma ação solidária frente aos 32 milhões de brasileiros que vivem na miséria e passam fome. Isto tem muito a ver com saúde e dignidade de vida. Nesta perspectiva, buscamos algumas pistas de ação na chamada parábola da solidariedade. A leitura da Parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-36), é fonte de inspiração numa pedagogia para a solidariedade. Não é nosso objetivo neste momento fazer uma análise exegética do texto, que é pressuposta. Queremos tão somente tirar algumas pistas pastorais na nossa missão como agentes de saúde, de promover e defender a vida mais frágil, abandonada e desprotegida. É duro constatar que a indiferença frente ao sofrimento humanos leva não poucos à morte, antes do tempo. Entre nós, morrem pessoas esperado nas filas por uma consulta ou tratamento que nunca chega, morrem crianças de fome ou porque não foram vacinadas outras causas, morrem pessoas que sofrem acidentes e não sào socorridas a tempo...


A parábola de Jesus põe no chão concreto da vida, uma pergunta ( “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?”) que, em outro contexto , facilmente teria ficado numa discussão acadêmica, puramente intelectual, abstrata e consequentemente estéril. “Faça o mesmo e viverás” (10,37), é a ordem. A questão não é tanto “saber” o que está escrito, aliás a resposta de Jesus é uma outra interrogação ao inquieto legista, de saber o que diz a lei e este responde impecavelmente. De teoria o legista ganha nota dez, de práxis nota zero. Jesus vai além da simples teoria e pela parábola mostra que a lei, a doutrina não podem se absolutizadas em si mesmas (letra que mata), mas existem e têm razão de ser em função da vida. É no viver conflitivo do dia a dia (no estranho e estrangeiro, o próximo), que se decide a Vida Eterna, objetivo da inquietação primeira do astuto homem da lei. Vejamos alguns aspectos desta pedagogia para a solidariedade: a partir da ação samaritana, bem distinta dos outros (sacerdotes e levita) que simplesmente “vêem e passam adiante”. O não fazer nada (a omissão) é que os condenará. O samaritano: a) aproxima-se e vê. O exemplo de Jesus supera os estereótipos de raça e religião. Acontece isso com o samaritano (um estrangeiro). Simplesmente vai pelo caminho e, ao se aproximar, vê. Vendo a mesma realidade que os outros, o ver do Samaritano é distinto. Somente vendo o reconhecendo que quem caiu em poder dos maus e foi espancado é meu irmão, a quem sou chamado a amar como a mim mesmo, então é que os sentimentos de compaixão e de misericórdia serão verdadeiros. Torno minha a sua situação. No ver samaritano existe uma escuta empática. Para além das idéias religiosas, políticas, de matiz cultural ou social, de sexo ou de cor, à minha frente está uma pessoa, que é meu irmão(ã). b)sentiu compaixão. Em grego, splanchizomai. É uma atitude divina, lembra o Deus do êxodo que desce para fazer justiça e libertar seu povo. Suas entranhas se movem, se comovem ente o quadro trágico do irmão espancado, esvaindo-se em sangue. Ele é um ser humano, uma pessoa. Essa verdade é anterior à religião, às idéias, ao sexo, à cor e à idade. Ele sente na profundidade do ser que a solidariedade urge. Seus projetos e coisas ficam em segundo plano, rente a essa vida ferida, em perigo, que o interpela. c)Aproxima-se e cuida de suas chagas... Derrama óleo e vinho. O óleo suaviza a dor dos ferimentos e o vinho, pela sua acidez, tem efeito antiséptico. Eram os medicamentos existentes na época. Hoje dispomos de antibióticos. Não é mero sentimentalismo. Põe suas mãos e sua atenção no que faz. É preciso deter o sangue, a dor deve ser minorida, pois a vida ainda pulsa num coração frágil! Não poupa nem tempo nem recursos. Nesse momento o que ele tem é do outro. Sente que a vida preciosa e se empenha em defendê-la com “unhas e dentes”. No entanto, existe uma outra reação possível diante do sangue e da dor (infelizmente muito comum entre nós): com estômago embrulhado... virar o rosto, não querendo ver e comentar “não fui eu”; não é culpa minha”... ou então, “se eu ajudar, depois vou ter complicação com a polícia”... d) Coloca-o no seu próprio animal. Desce de sua montaria, pelo menos seu transporte é também do outro. O que é seu passa a pertencer ao ferido. Os seus recursos, neste caso o meio de transporte, não é um privilégio que o afasta do necessitado, mas uma chance de servi-lo, enfim de ser solidário. O que ai confortavelmente montando, o dono do cavalo, agora vai a pé. O meio de transporte, a montaria, pertence a quem mais dela necessita. Que paradoxo! e) leva-o a uma hospedaria. Trata-se de um local, de um albergue para se recuperar. Estará elo menos acolhido e protegido. Terá uma cama, comida, calor humano e cuidados de saúde. Ele mesmo realiza a ação, mudou seu projeto, dá novo sentido aos seus passos e caminho. A vida do samaritano pode continuar depois, agora urge socorrer. F) cuidou dele. O tempo pertence a quem necessita de mim. O cuidado não


exige somente investimento de tempo, por mais precioso que seja, mas também evolve a pessoa toda. Já sentiu compaixão, está totalmente voltado para as necessidades do outro, e a dor do ferido é sua sorte e dor. Ao ser solidário com ele, é solidário consigo mesmo. Pode até parecer esdrúxulo apontar, mas quem vive só para si, dificilmente deixa de ser opressor e, ao dominar, conquista, rouba e mata. G) tira dois denários. Pagamentos duplo. São preciosos dois dias para que um trabalhador ganhe o que ele deixou estalajadeiro. Parte de seu orçamento ele dedica à saúde do ferido. Preocupa-se para que o espancado tenha bons cuidados e está disposto a pagar mais, se for necessário. Toda a sua pessoas, os projetos, os pertences e seu dinheiro são colocados em vista do sofredor que grita à margem do caminho. Ser samaritano “Faça o mesmo e viverás”. É a exortação de Jesus ao escriba. 0 próximo é seu irmão ferido. Aquele que você encontra pelo caminho da vida e precisa de sua amizade, sua compaixão, seus curativos seu óleo e vinho, seu meio de transporte e seus cuidados. Em suma, de sua solidariedade, nenhuma aço e/ou omissão que multiplica ou perpetua a dor e o sofrimento humano é evangélica. O Papa João Paulo II, na Carta apostólica sobre O sentido cristão do sofrimento humano (11.2.1984), ao comentar a parábola da solidariedade define o Bom Samaritano como sendo “todo aquele que presta ajuda no sofrimento, seja qual for sua espécie, uma ajuda, quanto possível eficaz. Nela pões todo o seu coração, sem poupar nada, nem sequer os meios materiais”... Muitos poderão até não fazer nada, com a justificativa discursiva de não mancharem sua “pureza ideológica”, pois vêem nisso cheiro de esmola e assistencialismo que nada muda, somente alivia. Ah, se pelo menos aliviassem algo, sem impor maiores sofrimentos aos outros. É oportuno lembrar o que diz Betinho, “Nunca ouvi um faminto dizer que matar a forma é paternalismo”. É óbvio que precisamos ir além do nível assistencial. É urgente unir cuidado, compromisso com a vida enfraquecida, com visão de transformação de realidade negadora de vida. A parábola da solidariedade serve como um paradigma a todos que honram e cultuam a lei da vida que é suscitada pelo Espírito. Consequentemente fazem a experiência desafiante e inédita de entender que o Tempo ao qual se deve servir, não é o templo de pedra onde a vida é sufocada por prescrições legais, ritualistas e jurídicas. E finalmente nasce assim o compromisso como templo vivo do corpo humano sofrido, doente, espancado e marginalizado, mas que é “templo do Espírito Santo”, diz Jesus. É necessário colocar todo o nosso ser na promoção e defesa da vida. É preciso agir! Pe. Léo Pessini, MI camiliano, capelão do Hospital das Clínicas da FMUSP O NASCIMENTO DA BIOÉTICA ALBERT R. JONSEN De 23-24 de setembro de 1992, na Universidade de Washigton, , Seattle, aconteceu uma conferência sobre “o nascimento da bioética”, ocasião em que se reuniram muitos dos “pioneiros” da nova ética da medicina para rever sua história e projetar o futuro, foi definido como sendo pioneiro, um daqueles, cujo nome apareceu na primeira edição da Biografia de bioética (1975) e que continuou a trabalhar na área. Isto equivaleria em torno de 60 pessoas, das quais 42 estiveram em Seattle. O motivo desta conferência foi o trigésimo aniversário da publicação de um artigo na revista Lie entitulado: Eles decidem quem vive e quem morre (9 de novembro de


1962). Este artigo reporta a história de um comitê em Seattle cujo objetivo era selecionar pacientes para o programa de hemodiálise crônica, recentemente aberto na cidade. A diálise crônica apenas tinha se tornado possível pela invenção do Dr. Belding Scribner em 1961. Tornou-se evidente que muito mais pacientes necessitavam de diálise do que a capacidade oferecida. A solução foi perguntar a um pequeno grupo, composto na sua maioria do profissionais não-médicos, para rever todos os dossiês dos candidatos indicados medicamente para hemodiálise e escolher aqueles que receberiam a tecnologia salvadora da vida. Desta forma, o comitê se defrontou com uma tarefa inviável, determinar critérios a partir de questões mão –médicas., Deveria ser a personalidade? Finanças? Aceitação social? Contribuição passada ou futura? Dependentes familiares e apoio? Embora o comitê fosse anônimo, a notícia de sua existência surgiu no New York Times. A correspondente da revista Lie Shana Alexandre foi a Seattle cobrir o que ela descreveu na conferência sobre “o nascimento da bioética” como “ a mais fascinante história de sua carreira”. Como professor de ética na faculdade de Medicina na Universidade de Washington, pensei que o trigésimo aniversário do surgimento daquele artigo fosse de grande valor comemorativo. Minha Universidade reivindicaria o direito de nascimento e mais seriamente, os que trabalharam por vários anos em bioética poderiam refletir sobre as origens e evoluções de nosso trabalho. Um tanto orgulhosamente, entitulei o evento “The Birth of Bioethcs” ( O Nascimento da Bioética), embora, como qualquer historiador decente sabe , e muito dos participantes na conferência declararam, datar o tempo e lugar quando qualquer movimento social começa é perigoso, é uma tarefa quase impossível. Não obstante isso, os acontecimentos interessantes em Seattle valiam apenas ser lembrados, bem como os protagonista daqueles eventos que auguraram o crescimento do movimento de bioética, valiam a pena ser destacados. Não importa se os eventos de Seattle marcam o nascimento, uma concepção ou meramente um vislumbre da bioética. Pensei que seria uma boa oportunidade para os primeiros estudiosos no campo se encontrarem, lembrar e talvez, começar a fazer história. A bioética amadurece como uma forma de filosofia moral praticada na medicina. Hoje, surgem artigos sérios sobre uma grande variedade de questões éticas nas maiores revistas médicas. Em quase toda escola americana de medicina, os estudantes estudam, de uma forma ou outras, a nova ética médica. Doze mil pessoas assinam o Hastings Center Report. Dez “funcionários especiais do governo” da comissão de Saúde de Hillary Rodham Clinton eram bioeticistas. Os efeitos destes desenvolvimentos na medicina e na área da saúde foram grandes. O primeiro historiador do movimento da bioética, Professor David Rothman da Universidade de Columbia, escreve no seu livro Strangers at the Bedside: “O registro da influência da bioética... é um caso convincente para uma transformação fundamental na substância bem como no estilo do processo de decisão médica”. De onde esta nova ética da medicina, ou bioética, surgiu? Que eventos ocasionaram sua origem? Que forma tomou? Quem elaborou? Quem presta atenção para isso? Qual é seu significado para a medicina moderna, saúde e legislação na área da saúde? Os que trabalham neste campo somente agora começam a refletir sobre essas questões. A história de Rothman é a primeira contribuição. O meu livro, The New Medicine and the Old Ethics, também procura algumas respostas. Rothman descreve a bioética como um movimento. Um movimento surge com freqüência, quando um novo impulso dá vida a um corpo inerte. A questão em debate sobre o comitê de Seattle foi um eco contemporâneo de uma antiga frase hipocrática: “em qualquer casa que eu entrar”. O neurologista moderno, armado com novas e caras


máquinas de diálise, não podia entrar em toda casa em que a ajuda era necessária. Que parâmetros deveriam determinar a escolha das casas? O critério que freqüentemente serviu no passado, especificamente, a qualidade do próximo e a riqueza de seus habitantes, não são mais apropriadas. A América doa anos 60 tornou-se muito perspicaz e consciente da discriminação como um problema social. Por que um novo avanço médico deveria criar uma nova discriminação médica? Quem deveria estabelecer os critérios? As autoridades do passado, especificamente os médicos, pareciam não ser os profissionais ideais. A justiça em selecionar candidatos para tratamento médico, não é em si, uma especialidade médica. Pensou-se, que uma pessoa leiga, faria tão bem ou tão mal, mas talvez melhor que os médicos, visto que ele estariam livres de preconceitos em favor de seus próprios pacientes. Portanto, começando no início dos anos 60, um problema radicalmente novo surgiu. Estimulou um interesse público sem precedentes, engajando a atenção de pessoas alheias das discussões médicas, que começaram a criar uma literatura sobre o problema. Finalmente, conduziu para uma solução radicalmente nova: os médicos delegam para pessoas leigas o poder de decidir a respeito de admissão num determinado tratamento médico. Rothman escreve, “um grupo de médicos, sem precedentes, entrega a um comitê leigo decisões prospectivas de vida ou morte e na base de caso-por-caso. Uma prerrogativa que até então tinha sido exclusivamente reservada ao médico, foi delegada para representantes da comunidade’ (pp. 150-151). Os acontecimentos em torno da diálise no início dos anos 60 foram um primeiro ímpeto que provocou um realinhamento de valores no mundo da medicina. Um segundo ímpeto surge vários anos mais tarde. Henry Beecherm professor de Anestesia na Escola Medica de Harvard, publicou um artigo no New England Journal o Medicine entitulado “ética e pesquisa clínica”. Neste artigo, ele denuncia procedimentos anti-éticos e além disso, dirigiu estudo de 22 pesquisas biomédicas que foram publicadas em revistas de renome. Devemos notar que acontecimentos anteriores influenciaram. O julgamento de Nuremberg e, 1945 revelou abusos terríveis, chamados experimentação médica, praticada por médicos nazistas em campos de concentração de prisioneiros. Contudo, por mais horrível que fosse, o problema levantado pela pesquisa médica, era mais profundo. Não se tratava de maldade e insensibilidade dos cientistas mas foi a própria natureza da ciência biomédica moderna que criou o problema. A ciência biomédica moderna é por natureza inovativa. Move-se da observação e descoberta para observações novas e descobertas adicionais através de métodos estatísticos que exigem a manipulação de dados. Acrescente-se a isso, que ela trabalha no interior de um meio social que exige dos cientistas produtividade constante e originalidade consistente. As experimentaçòes de Buchenwald e Dachau aconteceram, em parte, porque o selo científico dos perpetradores, agravados pela sua arrogância racista, encontraram “material humano” disponível para manipular. A pesquisa científica em seu curso ordinário não é nem mal ou racista, mas ela pode encontrar “material humano” disponível na vulnerabilidade do doente. Lentamente, os pesquisadores começaram as perceber e o público começou a exigir que os estudos fossem conduzidos de tal forma, que não levem em conta somente o avanço científico mas também protejam os direitos e o bem estar das pessoas. Apenas 4 anos após a publicação do artigo de Beecherm os experimentos em sífilis realizados durante várias décadas pelo serviço de saúde pública americano em Tuskegee, bem como vários outros projetos de pesquisa, tornaram isto claro. O Congresso criou um Comissão Nacional para a proteção de questões humanas de pesquisa biomédica e comportamental para recomendar regras que guiariam os pesquisadores em estabelecer uma


pesquisa que honra-se os valores éticos. Tal comissão, que atuou de 1974 a 1978, buscou ajuda de muitos especialistas de várias disciplinas e consultou a opinião pública em muitas questões. Talvez mais que qualquer outro ímpeto, seu trabalho transformou-se na disciplina de bioética, com uma literatura repleta de conceitos tais como autonomia do paciente, standards para consentimento informado bem como o equilíbrio entre riscos e benefícios. Um terceiro ímpeto surgiu da resposta pública para outro dramático avanço médico. Em 1967, Christian Barnard transplantou um coração humano de uma pessoa morta (ou moribundo) num paciente com doença terminal de coração. O mundo ficou at6Onito, mas muitos se perguntaram à respeito da origem do órgão. O doador do órgão estava na verdade morto? O coração foi tirado sem respeitar os desejos da pessoa estando esta ainda viva? Um editor médico muito influente questionou como deveríamos pensa sobre “o uso de órgãos emprestados”. Mesmo com a realidade de transplantes de rim já há 15 anos, foram os transplantes de coração que pressionaram essas questões mais urgentemente. A fundação CIBA na Inglaterra patrocinou uma conferência histórica sobre “ética em progresso médico com referência especial aos transplantes’. Quase todos os participantes eram médicos e cientistas. Dentro de poucos anos, um encontro como esse seria impensável sem filósofos e teólogos. Enfim esses especialistas puderam dizer, que suas disciplinas meditaram sobre vida e morte muito antes que a ciência moderna fosse concebida. Em 1968 um comitê da escola Médica de Harvard, dirigido por Beecher, propôs uma definição de “morte cerebral” para fechar uma questão que o Papa Pio XII propôs em 1958. Um teólogo participou no comitê de Beecher. Eu mesmo, um professor universitário de filosofia , entrei no mundo médico quando convidado para fazer parte de um comitê similar sobre “morte cerebral” na faculdade de medicina da Universidade de Califórnia, São Francisco. Muitos teólogos proeminentes não ficaram alheios a esses desenvolvimentos da ciência médica e na área da saúde. Uma figura proeminente, o teólogo Episcopal Joseph Fletcher, escreveu um livro em 1954, entitulado Morals and Medicine, diferente de qualquer livro anterior sobre o assunto. Enquanto os teólogos católicos já discutiam longamente tais questões como eutanásia e aborto. Fletcher partiu de uma análise teológica que enfatiza sobretudo a liberdade e autoridade do paciente. Este ponto de vista o levou a defender uma posição marcadamente liberal sobre eutanásia, dizer a verdade e os direitos do paciente. Em 1970 outro teólogo metodista, Paul Ramsey, interessado nas mudanças que ocorrem na medicina, passou um ano nas clínicas e enfermarias do Hospital da Universidade de Georgetown. Seu livro, The Patient as Person (O paciente como pessoa) torna-se uma análise original da forma como a nova medicina estava modificando as dimensões morais do relacionamento médico-paciente. Se pensarmos na bioética como uma disciplina acad6emica e não como um movimento popular, deveríamos escolher um trabalho científico como sua origem. Tal trabalho certamente seria o livro de Ramsey. “Continua no próximo número”. (Texto traduzido do Hastings Center Report, vol. 23, nº6, Novembro-dezembro 1993, Suplemento especial, S1-S4). DOENÇA, APRENDIZAGEM DA DOCILIDADE HUBERT LEPARGNEUR A permissividade da cultura atual testemunha o alto preço que atribuímos à libertação individual como poder de seguir desejos e caprichos. Neste caminho, com a falta


de dinheiro, a doença constitui um dos maiores empecilhos. Sem dúvida, a doença não ataca apenas o corpo; ela se prende também à liberdade de pessoa no seu conjunto. Sem pretender explicar o incompreensível, o mal, o papel da provação, valorizado na espiritualidade católica pela mística da Cruz, ainda realçada no novo Catecismo, pode ser interpretado como pedagogia da docilidade, além de unir misticamente o crente a seu redentor. Em que medida a doença, quebrando a autonomia de que o sujeito julgava-se dono, chega a encaminhá-lo na via do aperfeiçoamento moral, espiritual e religioso, é bastante desconhecido. Mas a partir dos dados disponíveis em nossa religião, um certo esquema se delinea claramente. Durante alguns séculos, a transmissão da moral católica organizou-se praticamente em redor da obediência como capacidade de renunciara à vontade própria. Neste sentido o culto da obediência vai de encontro à permissividade vigente. Essa renúncia deita raízes incontestáveis nos convites evangélicos que combate, o império do eu. O voto religioso de obedi6encia consagra a importância deste caminho num estado orientado para a perfeição. Em tal contexto, mas para qualquer pessoa, a doença tece uma ocorrência, imposta ao sujeito, que oferece uma oportunidade de adesão à semelhante trajetória de renúncia. Uma oportunidade pode ou não ser aceita e aproveitada. Entre as Ordens e Congregações que sempre deram destaque à obediência que quebra as vontades rebeldes e amansa as outras, a Companhia de Jesus é famosa. O “perinde ac cadaver” está nas Constituições do próprio Inácio. As interpretações, como se pode imaginar, foram diversas, segundo temperamento, época, modas. Como obedecer como um cadáver se o defunto não pode mais obedecer? Para muitos, trata-se então de manifestar ao superior ou ao mestre espiritual uma docilidade comparável ao corpo que não oferece mais resistência da mente, “como o cadáver entre as mão do limpador fúnebre” lêse. Atribui-se geralmente a expressão a Sto. Inácio de Loyola (sec. 16), mas parecida expressão já se encontra com S. Francisco de Assis (séc.13) e mesmo fora do Cristianismo. Na área mulcúmana, em El Ghazali (séc.11) e, antes dele, em Quchayi (séc.11), ele mesmo citado Sahl Tustari (séc. 9). Não se pode deixar de reparar essas correspondências, apesar da diversidade dos contextos humanos e religiosos. Desconhecemos sistematização duma espiritualidade teológica da doença fora do cristianismo, com exceção das doutrinas reencarnacionistas que aceitam a provação como pagamento de culpas cometidas em vidas anteriores, penitência que prepara um futuro melhor. Já que bordamos o islamismo, todavia, é no sufismo que devemos buscar uma espiritualidade mais próxima da nossa. Eminente representante de um sufismo alheio aos ectremismos. Ibn Khaldoun (magrebiano do séc. 14) teve que responder à pergunta clássica do Islamismo norte-africano e espanhol da época: precisamos como guia de um mestre espiritual com o qual possamos conversar? A resposta nos interessa na medida em que o místico muçulmano respondeu distinguindo três níveis de vida espiritual, que talvez sejam instrutivos para uma tipologia dos cristãos doentes. 1) No nível da simples “piedade”, para Ibl Khaldoun, situam-se as pessoas cuja devoção, pouco ordenada, visa apenas a salvação; 2) no nível da “retidão”, o crente pretende aos mais elevados graus do Paraíso e aceita a acese implicada nisso; 3) no estágio da ‘retirada do véu”, o santo pretende contemplar Deus nesta terra e no além, Um mestre não seria necessário no primeiro grau, é muito útil e desejável no segundo, é indispensável no terceiro, segundo o místico sufista. Qualquer transposição nos quadros cristãos é evidentemente problemática. Se a intuição que guiou Ibn Khaldoun é exata e universalizável, existe uma massa de batizados


em princípio bem dispostos, apegados e suas devoções particulares e com vago desejo de salvação, sem mais; outro grupo já aceitou exigência éticas mais consistentes na programação de sua vida porque levam a religião e a vida do além mais a sério; seres excepcionais têm realmente mística. A questão agora é saber se e como os agentes da Pastoral da saúde t6em de diferenciar sua conduta para cada categoria. Mas não perdemos a idéia central desta página; ela diz respeito à doença como mestre de docilidade. A doença é dessas provações capazes de preparar o sujeito a acolher e a se beneficiar dos aportes que lhe são oferecidos de fora. Não se poderia discernir três graus de aproveitamento, da resignação à entrega a Deus, não digamos à doença, passando pela melhor conscientização intermediária de nossa condição de cristão? Mas o mestre espiritual do batizado é sempre, principalmente o Espírito Santo.


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