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QUASE MEIO SÉCULO DE REVOLUÇÃO GENÉTICA Os médicos e profissionais da área da saúde habituaram-se a incorporar em seu cotidiano assuntos e questões pertinentes à genética. Embora seja uma ciências cuja origem remonta ao início dos anos 50, há ainda muito a desvendar no que se refere aos genes do corpo humano. O Projeto genoma Humano encontra-se em plena atividade e somente depois do ano 2000 é que decifrará os cerca de 50 mil a 100 mil genes existentes no código genético humano. AVANÇOS NO DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL WALTER PINTO O diagnóstico pré-natal obteve nos últimos anos um enorme avanço graças à facilidade dos métodos invasivos no ninho fetal, propiciados pelos modernos aparelhos de ultra-sonografia e aos novos métodos de diagnóstico de biologia molecular. Diagnósticos ultra-sonográfico – A ultra-sonografia por si fornece hoje uma resolução extremamente refinada para o diagnóstico de anomalias fetais. Essa resolução permite que as medidas anatômicas feitas sejam determinadas a cada semana de gestação e, consequentemente, que se estime a idade fetal e se pesquise a presença de todas as estruturas anatômicas ( Elejalde e Elejalde, 1986). Qualquer desarmonia de crescimento de órgãos, regiões fetais ou mesmo atraso no seu desenvolvimento é facilmente visualizado. As mal-formações fetais passaram a ter os seus sinais específicos e, em menos de uma década, a altra-sonografia etal ficou tào minuciosa que passou a demandar do médico que a executa uma sistemática extremamente rigorosa ( Pavani et al, 1981; Hata e Deter, 1992). Se bem feitas e rotineiramente indicada ela é capaz de detectar alterações em um de cada 20 ou 25 fetos, durante a gravidez. Do ponto de vista genético clínico, em que vários casais são encaminhados por terem um filho anterior, nativivo ou natimorto, possuidor de uma ou várias mal formações, indicadoras ou não de uma síndrome específica, o uso de minuciosos exames de ultra-sonografia pode representar o único meio para assegurar que o filho seguinte não será mal formado. Vale a pena citar o espessamento nucal, o hidrograma cístico, a artéria umbilical única, entre outros, como sinais altamente sugestivos de aberrações cromossômicas. Amniocentese precoce e punção de vilosidade coriônicas – A amniocentese, classicamente realizada a partir da décima-quinta semana de gestação e um dos métodos mais difundidos para a obtenção de material fetal com finalidade de diagnóstico pré-natal de alterações genéticas, passou a ser feita a partir da 12ª semana, também facilitada pela monitorização ultra-sonográfica. Além disso, a maior fidedignidade de seus resultados, quando comparada à análise dos resultados obtidos por punção de vilosidades coriônicas (PVC) e o baixo índice de complicações decorrentes da amniocentese fizeram com que ela se tornasse rotina na maioria dos serviços ( Pinto Jr. Et al; 1987). Isso não significa que a PVC tenha sido abandonada, mas que ela tem suas indicações específicas, principalmente nas doenças gênicas, como veremos a seguir. Cordocentese – A cordocentese foi desenvolvida por Daffos na França em 1983. Esse autor tinha como maior preocupação o diagnóstico de doenças infecto-contagiosas e,


dada a liberdade de aborto naquele país, em qualquer fase da gestão, o treinamento para obtenção de sangue de fetos comprometidos ficou bastante facilitado. A essa época , a obtenção de sangue fetal por fetoscopia e visualização direta do cordão era difícil e trazia grande risco. Com a melhoria dos aparelhos de ultra-sonografia e as facilidade terapêuticas de transfusão de fetos imunizados, nos quais era possível controlar rapidamente a colemia e o hematócrito, a cordocentese passou a ser um método invasivo de relativo baixo risco (1% em mãos experientes) e de ampla utilização. Desse modo, a cordocentese serve não apenas para as situações descritas como, também, para esclarecer os casos em que o resultado citogenético da amniocentese não foi suficiente e, ainda, para a obtençào, em 72 horas, do diagnóstico citogenético fetal dasgestações que apresentam alguma anomalia congênita detectada à ultrasonografia. Biologia molecular – a biologia molecular tem trazido enorme benefício para o aconselhamento genético, por causa da precisão diagnostica que ela propicia. Com o mapeamento do genoma humano, previsto para estar completo no final do século, será possível diagnosticar qualquer uma das cercas de 6000 doenças citadas por McKusick (1992). Por esse motivo, no momento, nenhum casal sob risco de gerar uma criança com alguma anomalia genética deverá ser aconselhado a adotar métodos anticoncepcionais irreversíveis. Naturalmente os primeiros métodos desenvolvidos para diagnóstico por biologia molecular foram aqueles aplicáveis a doenças genéticas de alta prevalência e que constituem , mesmo, problemas de saúde pública como é o caso da hemoglobinopatias, sendo já rotina em centros mais desenvolvidos do País. O mesmo é verdadeiro em relação a outras doenças em relação a outras doenças como a fibrose cística do pâncreas, as hemofilias, a distrofia muscular do tipo Duchenne, o sítio frágil do cromossomo X e inúmeras outras, todas elas com diagnóstico pré-natal já realizado no Brasil. A aplicação dos cicladores de temperatura para a multiplicação de genes com o emprego da reação em cadeia da polimerase (PCR), é capaz de multiplicar milhões de vezes no intervalo de algumas horas não apenas genes, mas suas regiões específicas. Cm esse método e com pequena quantidade de material fetal, tornou-se possível estabelecer o diagnóstico de doenças infecto-contagiosas em gestações, e diagnosticar os fetos infectados e passíveis de desenvolver teratogênese. Células fetais na circulação materna – Sabe-se que células fetais atravessam a placenta e podem ser encontradas na circulação materna (Schroder e De La Chapelle, 1972) e que tais células poderão ser concentradas ou separadas por métodos imunológicos, como uso, por exemplo de anticorpos monoclonais. Ainda com o uso do PCR é de se esperar que, em futuro bem próximo, será possível o diagnóstico bioquímico de alterações de várias doenças genéticas com o uso de células fetais obtidas por simples punção venosa da gestante. Deve-se assinalar que o PCR já foi aplicado a células de embriões em fazes bem precoces do desenvolvimento e mesmo ao segundo corpúsculo polar do ovócito, permitindo diagnosticar tanto o embrião afetado, quanto óvulo portadores do gene alterado evitando, assim, o aparecimento de crianças afetadas por doenças gênicas graves. Dosagens séricas materna – Nos últimos cinco anos desenvolveram-se métodos bastante precisos de dosagens de substâncias presentes no soro materno e que são indicadoras de que a gestante mostra risco de estar gerando uma criança com defeitos de fusão do tubo neural e (ou) cromossopatia. No primeiro caso, o simples nível aumentado da alfa-fetoproteína já é uma forte indicação de que o feto possa tem um defeito do tubo


neural ou alguma lesão aberta da pele, como onfalocele ou extofia de bexiga. No segundo caso, os valores baixos de alfafetoproteína associados a valores também baixos de estriol livre e valores altos de gonadotrofinas coriônicas são indicadores de que há maior risco de tal paciente estar gerando um feto com síndrome de down. Finalmente, deve-se assinalar que o diagnóstico pré-natal não tem apenas uma finalidade seletiva, mas também curativa, como é o caso da síndrome adreno-genital, da acidúria metil-malônica, da toxoplasmose congênita, em que a medicina fetal pode tratar ou mesmo curar, perspectivas essas que, esperamos no futuro, sejam estendidas a maior número de doenças. Prof. Titular do Departamento de Genética SCM-Unicamp. É introdutor do diagnóstico pré-natal no Brasil. TUDO POR UM BEBÊ ROGER ABDELMASSIH Nos 16 anos que separam o nascimento da menina inglesa Louise Brown de seu atual estágio tecnológico, a ciência da reprodução humana experimentou um salto gigantesco. Bebês nascidos pelas técnicas de reprodução assistida, antes rotulados genericamente como bebês de proveta, já não causam estranheza. Não provocam nenhum tipo de preconceito, salvo entre aqueles poucos que ainda não se convenceram de que tal ciência é uma poderosa aliada dos milhares de casais ( cerca de 15 da população) de todo o mundo em idade fértil que se descobrem incapazes de gerar filhos pelos métodos na naturais de concepção e, por isso, mergulham em crises que podem ser profundas e indeléveis. Ao longo desses 16 anos a ciência avançou em ritmo avassalador. Se os chamados bebês de proveta poderiam ser considerados raridades médicas nos primeiros tempos, hoje, paradoxalmente, é estatisticamente mais viável conceber uma criança em laboratório do que no organismo humano. Um casal de absoluta normalidade no aspecto reprodutivo, que pratique sexo exatamente nos dias considerados férteis, terá 15% de chances de conseguir uma gravidez. Ao final de um ano, por efeito cumulativo, a grande maioria desses casais (80% a 85%) alcançará a concepção. As atuais técnicas de reprodução assistida podem atingir uma taxa de gravidez por ciclo até três vezes superior à da própria natureza. Estas técnicas consistem em unir, de forma artificial, os gametas masculinos (espermatozóides) e femininos (óvulos). Entre estas técnicas encontra-se a fertilização in vitro, método já consagrado para o tratamento da esterilidade. Mas ainda havia a necessidade de ir adiante, pois existiam alguns casos que não podiam ser tratados nem pela fertilização in vitro. Casos em que o número de espermatozóides era tão baixo que não adiantava unir o óvulo com uns poucos espermatozóides ao seu redor. A união dos dois (fertilização) não ocorria. Novas técnicas foram surgindo. É o caso da técnica conhecida pela sigla Icsi (intracytoplasmic sperm injectin), que recentemente introduzimos no Brasil por meio da transferência de tecnologia vinda da Bélgica. Ela consiste na manipulação microscópica de dois gametas, o masculino e o feminino, de modo que o primeiro seja dedicadamente introduzido no próprio interior do óvulo, eliminando as últimas barreiras desse magnífico encontro da Criaçào. A princípio, a Icsi foi idealizada para atender casais qm que o fator masculino impedia qualquer tentativa de concepção mesmo in vitro. A prática nos tem mostrado, porém, que essa técnica pode ser empregada em casos em que nossas pacientes não


alcançam a gravidez por motivos não bem esclarecidos. Empregada nesses casais com diagnóstico de esterilidade, onde não ocorre fertilização, a técnica Icsi nos tem surpreendido com uma taxa de gravidez de nada menos que 47 por tentativa – número excepcional em todos os parâmetros. Diante de um índice de sucesso dessa magnitude, e podendo contar com outros técnicas de exceção, como a ovodoação, que permite a gravidez mesmo após a menopausa, não é imprudente nem exageradamente otimista afirmar que já existe uma solução para praticamente todos os casais inférteis. De um modo ou de outro, a infertilidade está sendo derrotada. Mas, se do ponto-de-vista técnico a ciência da reprodução humana alcançou níveis que nem vislumbrávamos quando Louise Brown veio ao mundo, também é certo que existem ainda muitas arestas a serem aparadas nas esferas da ética e da religião. Como católico praticante, entendo que praticar a religião é chegar perto de Deus. A Igreja Católica, é verdade, tomou uma posição genérica sobre a fertilização assistida – a priori não concorda com ela, por ser artificial. Mas quando particularizamos essas discodâncias com indivíduos que estudam e defendem os dogmas da Igreja, a análise não é radical como parecia. O Vaticano chega a dar espaço para que cada casal tenha oportunidade de resolver seu problemas de infertilidade. A ciência, como vimos, é essencialmente dinâmica, mas não pretende jamais representar a divindade. É um meio que o Criador nos dá para utilizarmos em nosso benefício ou malefício. Quanto usamos a alta ciência exclusivamente para o benefício do homem, temos certeza que Deus está concordante. Resolver o drama de um casal sem filhos, que se ama e quer criar descendência sangüínea é absolutamente válido sob o ponto de vista moral e religiosos. Aí é que entra a questão da ética. Em meu livro “Tudo por um bebê”( edições Siciliano), onde procuro dissecar o drama da infertilidade e as soluções hoje disponíveis, esse capítulo ocupa lugar de destaque, pois a ética é indissociável de nossa atividade. A bioética tem se esforçado para alcançar as resposta sobre o que é certo e o que é errado em relação à reprodução assistida. Tarefa esta que dificilmente será atingida, pois o certo está longe de ser definido, mais ainda quanto se refere a assuntos tão delicados. Entre tantos sub-itens de alta delicadeza, um que tem gerado muito interesse e polêmica é a clonagem de embriões. Muita se tem comentado sobre a possibilidade de se duplicar um embrião humano pela técnica da clonagem. Esse método torna possível, a partir de um embrião, obter vários pela divisão do embrião inicial. Isso ocorre naturalmente nos casos de gêmeos idênticos. Já muitos comum na veterinária, a clonagem humana tem, evidentemente, altas implicações éticas. A primeira delas: qual seria o interesse em se produzir seres humanos idênticos ? Certamente não se busca criar uma fábrica de Gêmeos ou gerar uma casta de super homens, como supõe a fértil imaginação dos ficcionistas. O objetivo médico desse procedimento – que é tecnicamente viável – seria, para nós, apenas o de aumentar as chances de um casal infértil ter filhos. Caso uma mulher tenha produzido poucos embriões, as chances de um casal serão bem melhores quando for possível pegar esses poucos embriões, um ou dois, e dividi-los por clonagem, alcançando quatro ou mais. A sociedade Brasileira de Reprodução Humana, da qual participo ativamente, está empenhada em buscar o consenso, normalizar e orientar os procedimentos de reprodução assistida. Desta forma, visa tirar as dúvidas existentes, esclarecendo e indo ao encontro dos anseios da sociedade brasileira. Com isso, poderemos evitar a ocorr6encia de erros, de problemas éticos e auxiliar mais ainda os casais na busca de seus tão desejados filhos.


Assim, estamos caminhando a passos largos para termos maiores índices de sucesso com menores chances de erros. Erros estes que não podem ocorrer numa área tão delicada quanto esta. Casos como o caso de Porto Alegre, onde houve troca de sêmen do doador, dão idéias da dimensão do problema de controle de qualidade dos bancos de sêmen. Controle este que deve ser exercido incessantemente em todo e qualquer centro que se disponha a trabalhar nesta área. Vale ressaltar que esta é a realidade da grande maioria dos centros existentes. Particularmente acredito que este controle deve ser eito diversas vezes, por diferentes pessoas, para reduzir ao mínimo as chances de que acidentes tão dramáticos como esse ocorram. Como se vê, tudo é uma questão do bom uso que se faz da técnica. É apenas um exemplo de que a ciência, a serviço de uma boa causa, é o que mais se aproxima da idéia materialista de divindade. Para nós, a presença de Deus, com seus altos desígnios, é o que permanentemente guia as mãos dos cientistas que buscam dominar o instigantes fenômeno da concepção. Roger Abdelmassih é diretor da Clínica Reprodução Humana e coordenador da Unidade de Fertilização in Vitro da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. BIOÉTICA É TÀO IMPORTANTE QUANTO APTIDÃO CIENTÍFICA ELIANE S. AZEVÊDO. Na interface com a prática médica, a bioética adverte que a medicina não pode ser reduzida aos parâmetros de uma simples ciência natural. A responsabilidade de curar e de assistir não pode ficar na dependência de resultados de exames de sangue ou de outros dados de ordem científica, por mais informativos que sejam do estado de função do organismo. Tão importante quanto o estado sangüíneo , sorológico e radiológico, para fins de diagnóstico, prognóstico e tratamento, é o estado de valores do paciente. Leucograma, hemograma e eletrocardiograma têm para o paciente importância interdependente de seu axiograma, ou seja, do conjunto de valores que aprecia e adota. Por outro lado, o estado de valores do médico é também tão importante quanto sua capacidade técnica e científica. Em qualquer situação, o estado de valores do médico é o arcabouço do seu próprio ser, em cujas entranhas processam-se pensamentos e decisões. Atualmente quando as discussões sobre Q.I. e raça voltam a invadir o cotidiano das pessoas, é oportuno que se procure trazer para a ci6encia a mesma advertência que a bioética faz para a medicina. O estado de valores ou axiograma do pesquisador é tão importante para a qualidade da ciência que produz, quanto a sua titulação, competência metodológica e capacitação técnica. A ci6encia em seus estatutos, seus métodos, sua comunidade vigilante, etc. é ineficaz na preservação de uma boa produção científica se o estado de valores do cientista tem fortes aderência ao tema em estudo. Assim, determinados tema estão intimamente ligados aos valores culturais das pessoas que exigiriam um exorcismo cultural do pesquisador para evitar que sua natureza humana não modelasse seu desempenho científico. E como a ciência não pode livrar-se do estado de valores do cientista sem livrar-se do próprio cientista, a única forma de preservação é reconhecer que temas de obcecante aderência cultural tornam-se inapropriados à investigação científica. Os exemplos existem. Até mesmo de pesquisadores que chegaram a construir reputação e respeito pela qualidade


científica do seu trabalho, ma que se atiraram à fraude científica quando passaram a pesquisar temas de forte ader6encia cultural a valores pessoais. O exemplo que cito é do cientista, psicólogo e analista estatístico Cyril Lodowic Burt. Nascido em 3 de março de 1883 e falecido em 10 de outubro de 1971, Burt oi líder em psicologia educacional na Inglaterra, principalmente na área de desenvolvimento da criança. Em 1913 tornou-se o primeiro psicólogo a ser indicado para um alto cago de educação no país. Nesse cargo, Burt adaptou o teste de Binet para uso na Inglaterra e apaixonou-se pelo estudo da inteligência. Durante duas décadas publicou resultados de pesquisa desenvolvida por ele próprio e seus colaboradores, usando como objetivo de pesquisa uma enorme série de gêmeos. Vale ressaltar que gêmeos constituem material raro e precioso para estudos de herdabilidade de caracteres, pois os monozicóticos têm a mesma constituição genética e, se criados em ambientes diferentes, oferecem ( assegurados os bons princípios de métodos e técnicas da investigação científica), oportunidade ímpar para acessar contribuições genéticas e ambientais para grande número de variáveis, inclusive Q.I., segundo opinião de muitos. Estudando a referida série de g6emeos, Burt trabalhou com análise fatorial e análise de variância, as quais conferiram mais cientificidade e credibilidade aos seus resultados. Acreditava que inteligência era uma característica essencialmente genética e teria demonstrado, com seus estudos em gêmeos, que o Q.I. era 80% herdado. Seus trabalhos tiveram forte influência, não apenas em outros pesquisadores, inclusive americanos, ma também no sistema educacional inglês. Na década de 80, um professor de Princeton, Leon Kamin, e um jornalista do Times, Oliver Gillie, foram rever os dados de pesquisa de Burton e descobriram que o grande pesquisador havia inventado os dados sobre hereditariedade da inteligência ( a série de gêmeos que ele estudara, nunca existiria, fora inventada, e inventados também foram os nomes de outros pesquisadores que citou como colaboradores). Burt chegou ao ponto de expor sua reputação de pesquisador, educador e psicólogo porque o tema em estudo atingiu o seu estado de valores de dorma mais forte que a importância de pesquisador e educador que se autoconferia. Ele permitiu-se cometer fraude científica a fim de convencer a todos que o Q.I. é 80% hereditário. Isso porque no seu mundo interior o fato da inteligência ser mais genética que ambiental era um valor fundamental. A espécie humana se autodenominou de espécie superior por conta de seu atributo inteligência. Todavia, hoje, final do século 20, a inteligência persiste sendo uma qualidade muito mais idolatrada e desejada que compreendida. Os progressos científicos da modernidade avançaram no domínio da reprodução humana e da manipulação do DNA, mas progrediram proporcionalmente, pouco noentendimento do sistema nervoso central e manos ainda no da inteligência. Não obstante a falta de conhecimento sobre o que é comumente chamado de inteligência, a humildade presenciou um acorrida em busca da medida do Q.I. .Passou-se a admitir que o que o teste de Q.I. mede é o que deve ser considerado inteligência. Reduziuse, assim, a infinita amplitude da inteligência da espécie às limitações de um teste monocultural. Prevaleceu o desejo de apropriação de uma medida da inteligência e, principalmente, o desejo de estabelecer comparações. Comparações da média de Q.I. entre grupos, povos e principalmente, raças. E aí o estado de valores dos pesquisadores transcende as conclusões teóricas e, finalmente, revelase sem disfarces nas recomendações de menores investimentos em educação para negros.


Que a fraude de Burt, pesquisa, livros ( “A Curva do Sino), artigos, etc. que tratam de Q.I. e genética e, principalmente, de Q.I. e raça, sejam lidos com a cautela e mesmo o descrédito que merecem pesquisadores, escritores e articulistas quando tratam de sua própria históricidade e consequentemente, com seus valores culturais maiores. Eliane S. Azevedo é médica, doutora em genética, pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e ex-reitora da UBA (Universidade Federal da Bahia) QUASE MEIO SÉCULO DE REVOLUÇÀO GENÉTICA Em 1993 fez 40 anos que a ciência descobriu a estrutura do material genético, a molécula de DNA (ácido desoxirribonucléico). Quase meio século de revolução genética. E faz mais de cinco anos que ciência pretende descobrir em detalhe como é todo o DNA de um ser humano – cerca de três bilhões de pares de bases químicas cuja seqüência está sendo laboriosamente perseguida. O objetivo final de tudo isso é tratar doenças através da terapia gênica de “DNA recombinante”. Foi em 1953 que a revista científica britânica “Nature” publicou um artigo mostrando a estrutura em forma de dupla hélice – semelhante a uma escada espiral, de autoria de James Watson e Francis Crick. Ambos deixavam claro a revolução que isso significaria. A forma da molécula permitia entender como era possível haver a sua duplicação, e como ela poderia servir de código para a fabricação de proteínas – resumidamente, a forma como a vida se produz. Em 1988 foi aprovada pelo governo dos EUA a adoção de um plano de pesquisa, o projeto do Genoma Humano, com valor de US$ 3 bilhões e duração de 15 anos, com o objetivo de decifrar todos os genes do corpo humano. Até recentemente, Watson dirigia o projeto, mas renunciou devido a problemas de relacionamento com a direção do NIH (National Institutes of Health). Os genes são pedaços de DNA com funções específicas, são a unidade do código hereditário ou genético. Todos os cerca de cem mil genes de um ser humano constituem o seu genoma. O congresso americano já passou a várias instituições do governo cerca de US$ 500 milhões (até 1993) para o projeto Genoma Humano. Uma dessas entidades é o National Institutes of Health, vinculado à Secretaria da Saúde, com sede em Bethesda, na região metropolitana de Washington. O NIH tem uma divisão chamada Comitê do DNA Recombinante (conhecida pela sigla RAC), que tem como função avaliar e autorizar todos os projetos de pesquisa que lidem com terapia genética e recebam qualquer verba pública. O DNA é a mesma substância, seja em ser humano seja em um micróbio. Isso permite usar bactérias como fábricas de pedaços de DNA específicos, combinados com DNA humano ou de outros animais. A técnica é chamada de engenharia genética, ou de DNA Recombinante. O RAC já aprovou mais de 40 desses projetos. Mas por enquanto só cerca de 30 receberam o aval definitivo do NIH. Eles ainda têm de passar pelo crivo do DA (Food anf Drug Administration), outra entidade da Secretaria da Saúde que dá a palavra final sobre os padrões de qualidade e de segurança de todos os produtos na área de saúde e alimentos no país. Depois de decifrada a estrutura básica a ciência foi desvendando as letras que constituem o código, ou em outro tipo de analogia, os degraus da escada espiral, cada degrau da escada é formado por um par de bases químicas, seja timina ligada a adenina, seja citosina com guanina. Essa seqüência de apenas quatro bases basta para todos os


processos biológicos – seja a fabricação de células nervosas, sangue ou osso, seja a produção de enzimas e hormônios que regulam o metabolismo de um ser vivo. O próximo passo da revolução da engenharia genética é a medicina. A geneterapia tem apenas dois anos e meio, mas será avançando com rapidez. Em dez ou quinze anos seu impacto será avassalador. Reportagem local da folha de São Paulo, Caderno “Mais!”, 28/03/1993. TERAPIA E PESQUISA GENÉTICAS SÃO TIDAS COMO LUXO NO PAÍS FERNANDO REINACH Os avanços da terapia gênica no Brasil podem ser descritos facilmente, já que nenhum desenvolvimento significativo foi feito nesta área da medicina por aqui. Compreender porque a terapia gênica não se desenvolveu no Brasil, um país que tradicionalmente é líder em muitas áreas da medicina, é um pouco mais difícil. A ciência que tornou possível a terapia gênica foi desenvolvida por biólogos moleculares, não por médicos. Nas décadas de 60 e 70, estudando organismos simples como moscas de frutas, amebas e bacteriófagos, a biologia estabeleceu as bases moleculares da genética, Nos países desenvolvidos, durante a década de 80, a biologia molecular fertilizou a medicina. Centenas de pesquisadores, filhos deste casamento, podem se encontrados nas escolas de medicina de Primeiro Mundo pesquisando os aspectos moleculares do funcionamento do vírus da AIDS e desenvolvendo a terapia gênica. Infelizmente a medicina brasileira não foi fertilizada pela biologia molecular. O motivo é simples: para todos os efeitos práticos, a biologia molecular não existe no Brasil. Ou, se preferirem, não existe uma massa crítica de biólogos moleculares suficiente para efetivamente promover esta fertilização. Aqui a ciência básica e a genética molecular sempre foram consideradas um “luxo exótico”. Praticamente por pouco mais de uma dúzia de cientistas, em laboratórios mal –equipados, sobre os quais, de tempos em tempos, os jornais noticiam que os ratos se auto devoram por falta de comida e a energia elétrica acaba com as primeiras gotas de chuva, infelizmente nossa biologia molecular não tem como ajudar a medicina. Na guerra contra a doença genética, com raras exceções, a medicina tem sofrido mais derrotas que vitórias. Entre estas doenças se encontram as doenças genéticas não hereditárias, como o câncer, e as não hereditárias como a hemofilia e as distrofias musculares. As doenças genéticas, ao contrário das doenças infecciosas, não são causadas por outros seres vivos. Elas são causadas por defeitos (mutações) nos genes do próprio paciente. Os doentes ou nascem com o defeito ou sofrem a mutação durante a vida. Na maioria dos casos os doentes morrem por causa deste defeito. Em muitas famílias, pequenas variações genéticas passam despercebidas, como a ausência do lóbulo da orelha, ou um nariz um pouco mais que a média. Entretanto, alguns destes defeitos podem ser fetais quando ocorrem em genes importantes. Em pacientes com distrofia de Duchenne, por exemplo, os músculos vão atrofiando, a criança vai para a cadeira de rodas antes dos 15 anos de idade e geralmente morre antes dos trinta. Pacientes com fibrosa cística tem dificuldade de eliminar o catarro do pulmão, o que favorece o desenvolvimento de repetidas pneumonias que, com outras complicações , levam muitas vezes à morte ainda na infância. Pacientes com câncer morrem porque mutações fazem com que células no seu próprio corpo passem a se dividir de forma incontrolada.


Enquanto que nas doenças infecciosas a tarefa da medicina é identificar o seu vivo que causa a doença e descobrir a maneira de mata o ”invasor” sem matar o paciente (o que não é de maneira alguma trivial, vide a AIDS), nas doenças genéticas a tarefa da medicina é descobrir o gene responsável pela doença e substituir o gene defeituoso por uma gene normal. Esta substituição de gene é chamada terapia gênica. Mas afinal, argumentam alguns, porque nós, brasileiros, precisamos da biologia molecular e da terapia gênica? Qualquer livro-texto mostra que a freqüência das doenças genéticas é extremamente baixa. No Brasil, o câncer, apesar de matar muitos, ainda é menos importante que a subnutrição ou que as doenças parasitárias. Por que precisamos desta medicina de Primeiro Mundo? Da mesma forma que a biologia molecular fertilizou a medicina, ela fertilizou a agricultura, a pecuária e a indústria farmacêutica. As técnicas utilizadas para substituir genes defeituosos em pessoas foram desenvolvidas em plantas e animais. Plantas resistentes a insetos foram construídas utilizando a mesma tecnologia básica que permite colocar genes em pessoa. Animais capazes de secreta hormônios no elite também foram construídos através de transferência de genes entre organismos. Insulinas e hormônio de crescimento produzidos por bactérias que receberam genes humanos já podem ser encontrados nas farmácias. Estes exemplo mostram que a terapia gênica nada mais é do que uma das muitas facetas de uma revolução biotecnológica que está em andamento. A grande maioria das revoluções tecnológicas ocorre quando conhecimentos gerados pelas ciências básicas são incorporados a novo produtos ou processos. Quando os países desenvolvidos investem em ciência básica, eles não investem em projetos cujo objetivo é produzir novas tecnologias e em novas riquezas. Este fato, relativamente simples, parece ainda não ter sido compreendiso no Brasil. Fernando Reinach é doutor pela Universidade Cornell (EUA) e professor-associado do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo. BIOÉTICA, RESPONSABILIDADE E SOLIDARIEDADE. A Segunda Grande Guerra Mundial trouxe conseqüências tão profundas, que fizeram dela provavelmente o maior divisor de águas político que a história da humanidade já experimentou com relação ao seu desenvolvimento futuro. Entre os principais fatos que contribuíram para isso, estão as hediondas pesquisas desenvolvidas pelos nazistas com relação à vida humana e o medo generalizado que se espalhou pelos cinco continentes após a utilização da energia atômica para fins bélicos. Outro aspecto que não deve deixar de ser mencionado, é o fracasso dos dois sistemas políticos que haviam se proposto a resolver as desigualdades sociais existentes entre os cidadãos que habitam o planeta. O comunismo teve que abdicar das suas utopias, carregando o peso da derrubada do muro de Berlim como símbolo materializado de seu fracasso. E o capitalismo, apesar de conseguir manter encoberta sua incapacidade às custas do controle quase absoluto dos maios internacionais de comunicação de massa, já demonstrou sua impotência (e incompetência) para melhorar as condições devida de ¾ da população do mundo que permanecem alijada dos benefícios que o “progresso” deve trazer à vida das pessoas. Felizmente, no entanto, o ser humano ainda continua sendo o único sentido e meta para o desenvolvimento. NOVOS DESAFIOS A parti deste referenciais históricos e apesar de tudo, sob o ponto-de-vista científico e tecnológico, o mundo evoluiu mais nestes últimos 50 anos do que em toda sua história


até então. Este contexto vem a propósito de que como conseqüência da velocidade das conquistas da ciência, a humanidade passou a experimentar algumas perplexidade nunca antes registradas. Descobertas como as fecundações artificiais, os transplantes de órgãos e estruturas humanas, o projeto genoma e outros fatos, passaram a gerar discussões com relação a alguns preceitos morais que estavam secularmente acomodados. Todo este conjunto de situações tem trazido à tona a necessidade de análise, revisão e/ ou adaptação de muitos dos conceitos morais que as sociedades humanas vinham praticando até agora. Como conseqüência, os códigos éticos que delineiam o comportamento dessas sociedades também passaram a requerer modificações, exigindo ainda a atualização da ordem jurídica no que diz respeito ao novo contexto. Neste sentido, é desnecessário assinalar a importância que representa para as comunidades religiosas de todo o mundo, a análise, o questionamento e as definições sobre estes delicados temas. BIOÉTICA: UM MOMENTO CULTURAL Assim, a bioética surgiu em um momento oportuno, como uma das ferramentas mais apropriadas para o aprofundamento de todas estas questões. Ela apareceu no início dos anos 70 não como mais uma disciplina estática a fazer parte dos currículos acadêmicos ou como um simples avanço da deontologia médica que estava estacionada há quase 40 anos, mas como um verdadeiro movimento cultural eu tem como amplo objetivo estudar a ética referente às novas situações relacionadas com a vida e a morte das pessoas. O extraordinário progresso alcançado pela biologia e pela medicina, nos últimos anos, ocasionou transformações no próprio modo de viver e de morrer da humanidade. O triunfalismo novas conquistas não pode desestabilizar o frágil equilíbrio de relações que a duras penas, durante séculos e séculos, homens e mulheres vêm conseguindo manter entre si e com a natureza, apesar dos flagrantes desequilíbrios e injustiças sociais. É correto uma pessoa pobre precisar vender uma parte do seu corpo para sobreviver (um rim, por exemplo)? O, é moralmente justificável uma mulher necessitada alugar seu útero para um casal estéril conseguir um bebê, em nome da sobrevivência dos demais filhos da mãe pobre? Ou, ainda, a vida humana pode ser motivo de mercantilização através da transformação ou correção genética de células ou tecidos vivos de uma pessoa e com seu posterior patenteamento e comercialização para fins terapêuticos? Respostas simples não satisfazem convenientemente estas complexas interrogações. A filosofia contemporânea, que se deu conta que pode dizer várias coisas concretas e que já entendeu a necessidade de avançar além das velhas discussões polarizadas entre o bem e o mal, movimenta-se no sentido do estudo da ética aplicada para responder que tipos e formas de vida são melhores do que outras, que coisas trazem benefícios ou danos para as pessoas. A ética da responsabilidade, assim como a ética da solidariedade – não só técnico científico como também social e moral – fazem parte deste contexto. A discussão bioética surge, então, para contribuir na procura de resposta equilibradas rente aos conflitos atuais e os do próximo milênio. BIOÉTICA E PROGRESSO CIENTÍFICO Participando no dia 30 de agosto de 94 em uma Reunião de Audiência Publica promovida sobre este tema pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, tive oportunidade de defender a idéia que este novo paradigma deve ser aproveitado nos países pobres com toda abrangência que sua definição permite. Apesar das discussões bioética nos países do Primeiro Mundo girarem em torno das situações-limite ou de fronteira decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, é indispensável que iniciemos uma discussão também sobre as situações relacionadas com a bioética


cotidiana que trazem interesse imediato para a maioria dos países do Hemisfério Sul, conforme recomenda o cientista italiano Giovanni Berlinguer. Como exemplo da bioética das situações cotidianas, podemos citar fatos chocantes relatados diariamente pela imprensa brasileira como a miséria e a fome, a prostituição infantil, a questão das drogas, o abandono de milhares de crianças e idosos que vivem pelas ruas ou sob as pontes e viadutos das grandes cidades e o descaso governamental para com a saúde pública. Todas estas situações de exclusão social dizem respeito diretamente à ética da solidariedade, que deve constituir um dos pilares da discussão da bioética cotidiana. A ciência já provou com exemplos demasiadamente dolorosos que, isoladamente, é incapaz de ser neutra. A morte de mais de 110 mil japoneses após a tragédia atômica de Hiroshima e Nagasaki em 1945, não pode ser imputada de forma biologicamente reducionista às radiações ionizantes que atuam sobre a medula óssea das pessoas que viviam na área, ocasionando uma desorganização na formação das suas células sangüíneas da linhagem branca elevando-as à morte por leucemia. A razão essencial está no uso indiscriminado e abusivo do chamado “progresso científico”. É necessária, então, não a obstrução do desenvolvimento da ciência, mas um maior controle sobre suas práticas. Como diz o teólogo alemão Hans Küng, “devemos avançar de uma ciência eticamente livre para outra eticamente responsável; de uma tecnologia que domina o homem para uma tecnologia a serviço da humanidade do próprio homem; de uma democracia jurídico-formal a uma democracia real que concilie liberdade e justiça”. Definitivamente, melhores condições de vida para as populações pobres do mundo não serão alcançadas somente com medidas técnicas isoladas, por mais avançadas que estas sejam, mas no bojo dos avanços políticos que a sociedade conquistar. Como já foi dito, a bioética abarca a ética, não se limita a ela, estende-se muito além dos limites tradicionais que tratam dos problemas deontológicos que decorrem das relações entre os médicos e seus pacientes. Está claro, também, que ela não significa apenas uma moral do bem e do mal ou um saber universitário a ser transmitido e empregado diretamente na realidade, como a medicina ou a biologia. A bioética significa a ética aplicada à vida e se apresenta como a procura de um comportamento responsável de parte daquelas pessoas que devem decidir tipo de tratamento pesquisa ou posturas com relação à humanidade. Além da honestidade, do rigor científico ou da procura da verdade – pré-requisitos de uma boa formação científica – a reflexão bioética pressupõe algumas questões humanas que não estão incluídas nos currículos universitários. Fica cada dia mais difícil a manutenção do equilíbrio entre o progresso biomédico e os direitos humanos, ao mesmo tempo em que estão à procura de uma ciência adulta, muitos médicos e pesquisadores acabam seguindo uma moral adolescente. COMISSÃO NACIONAL DE BIOÉTICA Torna-se, então, urgente a criação de uma Comissão Nacional de Bioética que, pela sua importância na atual configuração mundial, deverá relacionar-se diretamente ao governo central do País, nos moldes da maioria das nações européias. Uma comissão composta de forma socialmente pluralística e cientificamente multidisciplinar, que reflita o equilíbrio de forças constatado na nossa sociedade, estará mais capacitada a pensar e agir globalmente. Além de cientistas, médicos e advogados, deverá contar com a participação


de filósofos, economistas, teólogos, cientistas políticos e antropólogos que proporcionarão uma indispensável humanização e abrangência às decisões e recomendações. O próximo século abrirá o milênio da pluralidade e do ecumenismo, os homens e as instituições que não pensarem e/ou agirem nesta linha, estarão caminhando fora do tempo. Dento deste panorama, deveremos lutar para que os frutos do desenvolvimento científico e tecnológico passem a ser utilizados exclusivamente para fins pacíficos, além de que possam estar democraticamente à disposição de todos os cidadãos do planeta, independentemente de raça, sexo, religião ou condição social. Se bem compreendida, a bioética poderá vir a se constituir em instrumento fundamental para que se concretize o acesso de todos os cidadãos aos benefícios do progresso e para que diminuam as absurdas distâncias sociais hoje verificadas. Volvei garrafa, PhD, é professor titular da faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, presidente do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) e pós-doutorado em Bioética pela Universidade “La Sapienza” de Roma. DEMOGRAFIA E ÉTICA HUBERT LEPARGNEUR Com uns 8,5 bilhões de seres humanos vivos esperando para o ano 2025 e mais de dez bilhões para o não 2050, população de nosso planeta, apesar da diminuição global da progressão e das incertezas do futuro, dobra ainda em poucas décadas. Os demógrafos desprendidos de toda ideologia inquietam-se e esperam uma melhor tomada de consciência mundial através da Conferência do Cairo ( setembro de 1994). E a consciência do drama situa-se mais nos países desenvolvidos, presentes e futuras, do aumento populacional, situam-se nos países pobres. À nossa consciência cristã não é permitido olvidar este dado. O problema não é apenas de quantidade global de proteínas, mas sobretudo de água potável, de investimento para criar novos postos de trabalho, de conflitos gerados pelo amontoamento de seres humanos em espaços restritos etc. Surpreende ver pessoas geralmente dotadas de visão de conjunto ficar cegas diante de desafios deste tamanho, desviando a conversa ao reparar que “bastam” o desenvolvimento econômico e melhor distribuição dos mantimentos. O círculo é vicioso se precisamente a superpopulação freia consideravelmente o desenvolvimento, incrementando também a agressividade criminal e belicosa, assim como os empecilhos à solidariedade na distribuição. A superpopulação gera um medo universal, que é péssimo conselheiro. Os pobres precisam de mais do que belos discursos, promessas de solução e esperanças para longínquos futuros. A Academia Vaticana de Sábios reconheceu o problema. Afirmar que basta que a humanidade se tone virtuosa quase do dia para a noite para que seus principais problemas sejam resolvidos não é levar a sério a realidade da humanidade e o drama do sofrimento dos pobres que mais proliferam. À Igreja cabe defender seus valores éticos de condenação ao aborto evitável, de apoio à família constituída por um casal de sexos complementares, de liberdade para a escolha dos meios de paternidade responsável. O terreno da Conferência do Cairo é outro, o da tomada de consciência da acuidade de urgência do problema planetário, a fim de que cada estado- com todo respeito para as normas justificadas dos ethos regionais e das religiões – se responsabilize em vista de medidas oportunas que promovam a liberdade do casal, inclusive através do informe das alternativas e, basicamente, proporcione


especialmente à mulher um autocontrole responsável da própria fecundidade, não em relação não apenas com a satisfação do casal, mas também com o bem comum humanitário. Compreende-se que países onde vigora um forte fundamentalismo muçulmano se posicione contra a emancipação da mulher; a humanidade cristã não pode responsavelmente compactuar com tal atraso. Será ético gerar filhos sem que haja prospectiva verossímil de alimentação, de educação, de trabalho e de saúde? Não podemos ignorar as dezenas ou centenas de mulheres que morrem todo ano em decorrência de abortos mal-feitos, com o pretexto que o aborto não é moral. Acolhemos não o pecado, mas a pessoa. A moral está a serviço da humanidade real e não de uma humanidade idealizada que existe apenas na imaginação de uns poucos. Nosso culto a Deus passa pelo respeito à dignidade de todos os seres humanos. Por mais que os países católicos proliferam, dificilmente superarão os 56% da população mundial que se encontra na Ásia e na região do Pacífico, que fornecerão, nos 25 anos que vêm, mais de 2,5 bilhões de sujeitos. De uma religião doutrinal espera-se ética que valorize a intenção (é a deontologia dos moralistas), ao passo que o poder público da sociedade civil deve inclinar-se muito mais para uma ética de responsabilidade, porque ele responde de implementações efetivas e resultados. A primeira geração cristã, que não tinha ainda poder político nenhum, tinha alta consciência de ser fermento na massa. ENGENHARIA GENÉTICA – O SÉTIMO DIA DA CRIAÇÃO FÁTIMA OLIVEIRA Os primeiros cinqüenta anos do século XX oram marcados pelo desenvolvimento das ciências físicas, e a outra metade pelo aprofundamento do estudo e dos conhecimentos sobre os seres vivos, a biologia. Isso nos permite afirmar que o acontecimentos sociais e políticos do século se desenrolaram em palcos construídos também pelo acúmulo dos saberes das ciências da natureza. As descobertas e os inventos da física e da química possibilitaram uma evolução fabulosa nos meios de produção em geral. Desencadearam o surgimento da biotecnologia e da bioindústria contemporâneas. A partir de meados da década de 50, assistimos à consolidação da biologia molecular e às estripulias de seu mais importante objeto de estudo, a molécula de DNA. Os anos 90 já deixam antever que serão os “ano de outro” da molécula de DNA. As manipulações genéticas as “coisas” por elas produzidas já existem. A engenharia genética, enquanto conjunto de técnicas específicas que podem manipular o DNA e modificar o código da linguagem da vida, se impõe com poderes mágicos sedutores. Traz sonhos e pesadelos. É condenado e cultura, acrítica e apaixonadamente, por tudo o que acena de assustador de fascinante. Pode prever, prevenir e curar doenças, mas também pode gerar monstros! Graças a isso é mitificada e mistificada. A engenharia genética se estabeleceu e abre caminhos desconhecidos para a história da humanidade. Trata-se de um tema polêmico. Tudo indica que será o fio condutor da economia do século XXI. Essas constatações geram inúmeras indagações . toda e qualquer especulação a esse respeito direcionará nosso pensamento para discussões sobre conhecimento e poder, questões historicamente nas mãos das classes dominantes. Hoje preocupa-me essencialmente avaliar o grau de interferência dos saberes biológicos e avanços biotecnológicos sobre os direitos e a cidadania de mulheres e de


homens, sobre a soberania dos países dependentes, sobre o futuro das lutas libertárias, o ideários socialista e as probabilidades da construção do socialismo. Tais indagações são pertinentes, pois surgem no processo de discussão da crise do socialismo, época em que o capitalismo se desnuda e se revela um sistema cruel e excludente, incapaz de oferecer bem-estar mínimo para todas as pessoas. Há quem diga que “o socialismo morreu”. Decretaram o fim das ideologias libertadoras. Às idéias e aos sonhos de mundo justo e solidários – sem opressão de classe, de gênero e racial/ étnico – nos impõem uma nova ordem mundial única. Uma (des) ordem que, além de destruidora da natureza (e, dentro dela, dos povos oprimidos), anuncia a aurora de uma ecologia ecum6enica, ao mesmo tempo em que elabora o conceito de “populações supérfluas” e condena-se como poluentes da natureza. A humanidade se defronta, hoje, com muitos desafios e dificuldades para criar um mundo sem exploração, sem opressão, e uma sociedade superior. Mas os principais entraves não se encontram apenas no passado e nos escombros. Dizem respeito fundamentalmente ao futuro, mais precisamente a essa nova forma d dominação sutil e sofisticada que se gesta nos marcos do biopoder, do poder representado pela engenharia genética sob o comando dos países ricos. A análise crítica do que esses saberes tão inquietante encerram, de esperança e de ameaça para os povos, é uma exigência que está na ordem do dia. Trecho da Introdução do livro do mesmo nome, primeira edição, editora Moderna, Coleção Polêmica, 1995. A INTERFERÊNCIA DA CIÊNCIA NO PROCESSO DA VIDA LEOCIR PESSINI E CHRISTIAN DE PAUL DE BARCHIFONTAINE Quando entramos no debate da engenharia genética, somos fortemente influenciados pela nossa atitude fundamental em relação à ciência. Quatro atitudes básicas são geralmente operativas e deveriam ser reconhecidas e avaliadas. A CIÊNCIA TEM O DIREITO DE FAZER TUDO O QUE É POSSÍVEL? Nesta visão o único limite colocado à pesquisa científica é o limite imposto pela capacidade técnica. O conhecimento novo tem valor em si e não interessa quando de conhecimento se adquire. De fato, o direito de conhecer é uma liberdade humana básica e qualquer cerceamento é uma violação dos direitos do investigador, Adverte-se que a curiosidade intelectual e o crescimento dos conhecimentos são duas das características mais marcantes da espécie humana e que restringi-las seria negar nossa natureza. Finalmente , existe a suposição não verbalizada de que se temos a capacidade de fazer algo, assumimos que temos o direito de fazê-lo. A CIÊNCIA NÃO TEM O DIREITO DE INTERVIR NO PROCESSO DA VIDA, QUE É SAGRADO! A expressão muito ouvida e divulgada desta posição é o dizer popular: “Os cientistas não deveriam querer ser Deus”. Na sua forma mais simples parece supor que deveríamos ser passivos em face da natureza e dos processos naturais e ignorar a longa tradição aceita de intervir na natureza em benefício da humanidade. Levada para uma conclusão extrema, nos reduziria novamente ao homem da pedra lascada e talvez a morrer de fome. Esta atitude, contudo, não levanta a questão do mistério da vida para lembrar-nos da ardilosidade da natureza que confunde mesmo os experimentos mais elaborados. Somo


orçados a olhar e examinar seriamente nossas intenções e motivos antes de agir para termos um conhecimento crítico. A CIÊNCIA NÃO TEM O DIREITO DE MUDAR DAS QUALIDADE HUMANAS MAIS CARACTERÍSTICAS Esta abordagem insiste que há um limite para o que a ciência pode fazer e que este limite é a natureza da pessoa humana como ela é atualmente entendida e valorizada. Acresce que a diferença qualitativa na vida humana aconteceria se a aplicação ou pesquisa fossem para mudar a vida humana como a conhecemos. Ela também levanta questões de ordem política em que a ciência é feita. O que aconteceria se estas forças para mudar a natureza humana caíssem nas mãos dos que não partilham os valores e crenças da maioria? A CI6ENCIA TEM O DIREITO DE INCENTIVAR O CRESCIMENTO DE CARACTERÍSTICAS HUMANAS DE VALORES E ELIMINAR AQUELAS QUE SÃO PREJUDICIAIS A motivação básica aqui é atingir algum controle sobre os processos que afetam a vida humana e seu desenvolvimento. O objetivo é continuar a melhorar a qualidade de vida. Subjacente a esta posição está a convicção de que temos uma capacidade crescente de auto-determinação e, portanto , uma responsabilidade pelo que somos e pelo que seremos. Nenhuma destas 4 fases é encontrada na sua forma pura. Apesar disso, elas sugerem uma variedade de maneiras com que nos podemos relacionar com a ci6encia e capacidades científicas. Elas nos ajudam a pensar nas novas expectativas da ci6encia e avaliar seus possíveis efeitos no curso do desenvolvimento humano. Camilianos, bioeticistas e diretores das faculdades Integradas São Camilo.


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