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SAÚDE E CIDADANIA JOÃO CARLOS PINTO DIAS Conferência de Saúde, um processo social em curso A partir da virada deste século, a questão da saúde tem assumido posição cada vez mais importante como reivindicação social e como espaço político. A Saúde se entende hoje como uma riqueza à disposição das pessoas e da sociedade a ser conquistada, produzida e preservada pelo trabalho humano, pelo desenvolvimento da ciência e por uma formatação política que seja capaz de distribuí-la entre todas as pessoas. Também se integra, nesta concepção, a idéia de que a Saúde é fruto de uma séria de ingredientes da dignidade humana como nutrição, o saneamento básico, o lazer e a educação, ultrapassando-se com isto a visão tradicional limitada à atenção médica e hospitalar. O próprio conceito se ampliou nos meados do século, ao considerar a Saúde como condição de “bem estar físico, mental e social, e não apenas como ausência de doença ou enfermidade”. Num posicionamento histórico nos anos 70, uma assembléia mundial sobre Saúde, em Alma Alta, Rússia, entendeu que a humanidade já dispunha dos elementos mínimos necessários para garantir Saúde básica de todos os povos e que isto era uma questão de vontade política. Na verdade, a questão da Saúde cresceu como prioridade nas reivindicações populares e de várias lideranças nas últimas décadas, na medida em que, de um lado, as conquistas da ciência e da tecnologia aumentavam as possibilidades da promoção do bemestar e, de outro lado, acentuavam e punham às claras as desigualdades sociais. Como desdobramento, a memorável VII Conferência Nacional de Saúde em Brasília, 1986, estabeleceu a correlação política de Saúde com Cidadania ao definir que aquela se tratava de “um direito de todos os cidadãos e de um dever do estado”. Logo a seguir, a Constituição de 88 incorporou estes pressupostos, assim se configurando em nosso país uma nova Ética Social, baseada nos princípios da eqüidade e da universalidade. A CRIAÇÃO DO SUS No Brasil e em países semelhantes, a questão da Saúde pressupõe claramente uma ação supletiva e redistribuitiva DO ESTADO. Entre nós, cerca de 40 milhões de pessoas vivendo em uma situação próxima à miséria absoluta não oferecem outra alternativa: ou são assumidas pela sociedade (Estado) ou vão acentuar a violência social e perecer. Aceitamos o desafio, em 86 e 88, mesmo estando claro que o setor e a sociedade estavam ainda pouco maduros e muito desorganizados. Mais ainda, havia poderosos interesses a contrariar, pois o provimento da Saúde evolve dinheiro e poder. Como pilares operacionais na perspectiva desta luta, o então nascente SUS (Sistema Único de Saúde) formatou-se com a descentralização das ações e a integração de todas as esferas de governo sob comando único e harmônico. Estabeleceu-se ainda o exercício de um controle social de todo o processo, através de duas instâncias fundamentais, os Conselhos de Saúde e as Conferências de Saúde, uma estratégia eminentemente democrática. Os Conselhos existem nos três níveis governamentais, constituídos por autoridades da área e representantes de usuários e prestadores de serviço. Eles têm caráter permanente, com renovação periódica de seus membros, funcionando lado a lado com o Ministério de Saúde ( Conselho Nacional de Saúde), e com as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. As Conferências também ocorrem nos


níveis municipais, estaduais e nacionais sendo convocadas periodicamente (em princípio de 7 em 7 anos). Ela já vinham sendo convocadas há mais anos, de forma aleatória e destinada a diferentes tema e situações, sendo incorporadas as nascente SUS e melhor regulamentadas em lei a partir da Constituição d e1988. X CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE De 2 a 6 de setembro d e1996 estiveram reunidos em Brasília para a X Conferência Nacional aproximadamente 1500 delegados, eleitos em todo o País a partir das eleições nas respectivas confer^6encias municipais e estaduais. Nas instâncias das preliminares os debates serviram de referência para a analise dos avanços e dificuldades de implantação do SUS, além de trabalhar com temas específicos e importantes, como a vigilância sanitária, atenção médica e social, as minorias e excluídos etc. Nas temáticas centrais sobressaíram aquelas referentes ao financiamento da Saúde, ao modelo assistencial ao controle social, às relações intersetoriais, ao gerenciamento dos recursos e à gestão dos setores públicos e privados. As expectativas para a etapa nacional são grandes, tendo havido muita disposição e trabalho nas instâncias regionais para levantar teses, aprimorar o processo como um todo e definir seus delegados, cujo número é proporcional ao tamanho da população estadual. AVANÇOS E DIFICULDADES Numa avaliação preliminar pode-se dizer que houve avanços na compreensão do processo e no nível de participação, especialmente a partir das conferências estaduais. Nos municípios cresceu bastante a questão do controle social, melhorando a formação e a participação dos Conselhos. Por outro lado, as questões básicas do SUS seguem sendo o financiamento e o gerenciamento do setor, o que foi bastante nas pré conferências. Sobre a estruturação e filosofia do SUS, aparentemente não houve maiores avanços, ficando a maioria das exposições repetitivas com relação às colocações da VII Conferência (1986). Como processo político, as conferências têm demonstrado evolução e maior organização de setores mais articulados, principalmente da área sindical. Embora compreensível, a participação de entidades privadas (ainda responsáveis por grande parte da atenção médica no País) segue sendo mínima em praticamente todos os Estados. Igualmente, é lamentável a ausência (ou mínimo presença) dos partidos políticos nestas conferências, com algumas exceções, apesar de a Saúde ser bandeira tradicional nas plataformas eleitorais. Também é discreta a presença de setores organizados da Igreja Católica, a despeito da boa participação, por exemplo, da Pastoral da Criança. A área da Saúde pública passa hoje por um processo de reflexão envolvendo alguns de seus principais agentes – com destaque para os setores organizados da sociedade – e que pode conduzi-la a um novo patamar no sentido do atendimento de carências sociais básicas em nosso País. Apesar dos tropeços e das deficiências deste processo, pensamos que o rumo geral está consolidado, seguindo inclusive o norteamento colocado a alguns anos pelo “Manifesto sobre a dominação da vida” lançado por cientistas franceses e que dizia: “Acreditamos que a clareza deve prevalecer sobre a eficiência, e a direção sobre a velocidade; que a reflexão deve preceder o projeto e não vir após a inovação; que esta reflexão tem um sentido muito mais filosófico do que técnico e que deve ser conduzida de maneira multidisciplinar a ser aberta a todos os cidadãos”.

João Carlos é professor titular da faculdade de Medicina da UFMG e coordenador da Fundação Nacional de Saúde de Minas Gerais. Jornal de Opinião – de 26 de agosto a 1 de setembro d e1996.


HANSENÍASE: UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA ROSELAINE LOPES DA PALMA REFLEXÃO HISTÓRICA Desde a antigüidade houve relatos de doenças de pele, como podemos verificar até mesmo na Bíblia, tanto no Antigo Testamento em Jó, cap. 7, v.5 como no Novo testamento em Lucas, cap.5, v.12-15 e cap.17, v. 11-19 onde são mencionadas doenças que provocaram feridas, rompimentos e supuração na pele e em algumas citações aparece o nome lepra. Naquela época não havia diferenciação entre as diversas doenças de pele, todas as alterações de pele que eram percebidas e que chamassem a atenção por ser meio, impuro, desagradável e que causasse medo, eram consideradas como lepra. Assim sendo, este foi um termo genérico para todas as alterações de pele e outras alterações no organismo que causassem repúdio às pessoas. Há relatos de pacientes, que em meados de 1930, época da internação compulsória, que além de terem sido presos pelo D.P.L. (Departamento de Polícia da Lepra), tiveram suas casas queimadas, e foram confinados num sanatório onde permaneceram por toda a vida, isolados de seus familiares e do convívio social. Várias foram as tentativas na utilização de medicamentos. Óleos eram aplicados por via intramuscular nos doentes na tentativa de cura, até que em 1941, foi obtido sucesso no tratamento como uso da sultona, droga que se mostrou eficaz no tratamento da doença. A partir daí, forma feitos vários estudos experimentais, levando a progressos científicos na área. Com isso, várias mudanças foram ocorrendo, como a eliminação da internação compulsória do paciente e com o tratamento passando a ser realizado em regime ambulatorial. Porém, os doentes que haviam passado anos fio internados, encontravam-se totalmente desvinculados da sociedade, tiveram muita dificuldade em sua re-inserção social, alguns, sem opção de escolha, acabaram permanecendo nas colônias. Nas décadas de 60 a 70, outras drogas foram associadas ao tratamento com a sulfona, melhorando sua eficácia. Apesar dos relevantes progressos citados, o preconceito permaneceu na sociedade, talvez por desconhecimento e estigma acerca do contexto histórico da doença na fase em que não havia um tratamento que levasse à cura dos doentes. Muitas lendas existem sobre a hanseníase e o fato das seqüelas deixadas nos doentes antigos mesmo após o tratamento e a cura, fizeram com que eles ficassem marcados, segredos, estigmatizados. Por conta disso, o nome lepra foi abolido e o nome hanseníase, foi instituído oficialmente no Brasil em 1975,corrigindo um erro milenar. Vários sãos os esforços para eliminar este estigma, por parte dos profissionais de saúde e de comunidades empenhadas neste trabalho, no sentido de divulgar informações corretas sobre a hanseníase, como Morhan (Movimento de Reintegração do hanseniano ), fundado em junho de 1981, entidade composta por pessoas que tiveram a doença. CONHECENDO A HANSENÍASE É uma doença de baixa transmissibilidade (cerca de 80% da população possui imunidade natural), seu agente etiológico é o bacilo de Hansen, que através das vias aéreas superiores penetra no organismo do Homem e se instala, podendo a partir daí , causar ou


não a doença. Para que um indivíduo adoeça, são necessários contatos prolongados com o doente virgem de tratamento e que seja portador da forma clínica transmissível da doença. Basicamente, podemos classificar a doença em quatro formas clínicas: Inicial ou Indeterminada, Tuberculóide, Dimorfa e Virchowiana. As formas I e T não são transmissíveis de uma pessoa para outra, a forma D geralmente é transmissível, mas em alguns casos, pode não ser e por último, a forma V que é transmissível pessoa a pessoa. Portanto, devemos ressaltar que em média nos primeiros trinta dias de tratamento o doente das formas D e V, deixam de transmitir a doença. POR QUE NÃO É NECESSÁRIO O ISOLAMENTO DO DOENTE? A doença tem período e incubação longo, em média, variando de dois a cinco anos. Se o doente já estava convivendo com seus familiares antes de descobrir doença e sem tratamento, quando é eito o diagnóstico e iniciado o tratamento, ele deixará de transmitir, portanto não é coerente isolar o doente, que já vinha convivendo normalmente com seus familiares antes de descobrir a doença. Todos os comunicantes (pessoas que moram no mesmo domicílio que o doente) passarão por um exame dermatológico na pesquisa de possíveis manchas na pele, e se houver constatação de casos secundários, imediatamente inicia-se o tratamento dos casos encontrados. AINDA EXISTEM CADOS DE HANSENÍASE? A hanseníase é endêmica em países subdesenvolvidos, onde as condições de vida são precárias, observa-se ainda que os casos concentram-se nas áreas tropicais e equatoriais: África, Ásia e América latina. Nas América não tem distribuição uniforme, o Brasil é o país que apresenta maior número de casos do continente. Os EUA e Canadá tem coeficientes insignificantes, bem como outros países desenvolvidos. Estima-se que no mundo existam cerca de 12 milhões de casos. O Brasil, no início desta década era o quarto país do mundo em número de casos, sendo que os três primeiros eram a Índia, Birmânia e Nigéria, respectivamente. Está entre os países com alta endemicidade da doença. Em 1990, tínhamos um registro ativo de 278.692 casos, sendo que 28.482 eram casos novos diagnosticados naquele ano. As estatísticas da Coordenação nacional de Dermatologia Sanitária do Ministério da Saúde mostram os quadros ao lado. O crescimento da pobreza no Mundo, associado à falência do sistema público de saúde vem contribuindo para o aumento de casos de hanseníase, bem como de outras doenças, como a tuberculose. É de extrema importância os serviços de saúde estarem preparados para o diagnóstico e tratamento dos doentes para que possamos controlar a incidência da doença em nosso meio, eliminando as fonte de infecção, diagnosticando precocemente os casos, evitando assim a propagação da doença e a incapacidade físicas. COMO É EITO O DIAGNÓSTICO DA HANSENÍASE? O diagnóstico é simples. Baseia-se nas características das manchas da pele, em alguns testes para verificar a perda de sensibilidade, os quais podem ser feitos no próprio serviço de saúde onde houver profissionais capacitado. O exame baciloscópico é realizado


fazendo-se esfregaço de linfa das lesões ou lóbulos das orelhas. Uma reação intradérmica chamada teste de mitsuda pode ser utilizada para avaliar a imunidade do paciente. É importante saber que a hanseníase se inicia com manchas na pele. As manchas são de coloração mais clara que a pele e não tem sensibilidade local. Se o tratamento for iniciado logo que as manchas aparecerem, aumentam as chances da doença regredir sem que o doente tenha incapacidade, facilitando o tratamento e a cura. E QUANTO AO TRATAMENTO DA DOENÇA? Hoje em dia há progressos no tratamento da doença. Desde 1991 foi normatizado pela portaria ministerial n.º 1401/91 o tratamento com a poliquimioterapia, uma associaçào de vários fármacos com objetivo de diminuir o tempo do tratamento e aumentar sua eficácia. O tratamento das formas paucibacilares (não transmissíveis) dura 6 meses, e no caso das formas multibacilares (transmossíveis) dura 2 anos. O doente comparece ao serviço de saúde para receber doses mensais supervisionadas, que são administradas por via oral e toma doses diárias dos medicamentos auto administradas também por via oral. Após a suspensão do tratamento medicamentoso o paciente comparece para exames clínicos anuais por dois anos no caso dos paucibacilares e por cinco anos no caso dos multibacilares. As drogas utilizadas são a rifampicina, dapsona e a clofasimina, todas são fornecidas pelos órgãos públicos de saúde e não são vendidas em farmácias. Assim, como acontece com outras doenças crônicas, o tratamento da hanseníase é longo e o abandono do tratamento antes da cura completa é freqüente, o que pode levar a resistência bacteriana à droga e dificultar muito o tratamento, além de piorar o prognóstico do paciente e o controle da doença em nosso meio. PORQUE OCORREM AS INCAPACIDADES FÍSICAS? O bacilo de hansen quando se instala no organismo, após o período de incubação da doença, vai se alojando nas terminações nervosas da pele, repensáveis pelas sensações de dor, de contatos da pele e pode destruir as ramificações de nervos periféricos, provocando lesões internas e levado a perda da sensibilidade. Assim, o doente deixa de sentir dos quando é ferido ou quando está em situações de risco, como estar com sua pele exposta ao fogo ou quando está usando um sapato apertado, machucando seus pés, ou seja, perde suas defesas contra ferimentos, podendo ter sérias conseqüências. Em caso mais graves, quando o tratamento não é iniciado precocemente, o bacilo alcança os troncos nervosos, podendo comprometer a movimentação e flexibilidade de mãos e pés. As incapacidade podem ser evitadas. A partir de um criterioso exame físico do doente, são orientados alguns cuidados, como a hidratação, lubrificação e massagens; exercícios são indicados a partir da avaliação de cada caso, os quais tem fundamental importância para o sucesso do tratamento. Nos casos onde as incapacidade já estejam instaladas, serão necessários avaliações de fisioterapeuta ou médicos fisiatras, que irão verificar as possibilidades de recuperação com tratamento clínico ou até mesmo de cirurgias corretivas. A HANSENÍASE TEM CURA? Sim, desde que o tratamento seja feito corretamente. As vezes o doente inicia o tratamento e após os primeiros meses sente melhora do quadro, suas manchas desaparecem


e nesta fase abandona o tratamento, por julgar-se curado. Neste caso, conforme citado anteriormente, a doença poderá retornar, pois os bacilos não oram totalmente eliminados, mas a regressão dos sinais e sintomas proporciona uma falsa sensação de cura aos doentes. Portanto, lembramos que o tratamento deve ser iniciado o mais precocemente possível e tão importantes quanto os remédios são as técnicas simples de prevenção de incapacidades, a quais devem ser valorizadas e praticadas pelo doentes, pois só assim evitamos as deformidades, que são conseqüências da ausência de sensibilidade em determinadas partes do corpo, como planta dos pés ou palmas das mãos. Assim, a cura é obtida sem que a doença deixe marcas definitivas para o pacientes, sem seqüelas, sem estigma. Em 1991, aconteceu a 44ª Conferência Mundial de Saúde, onde foram avaliados os resultados obtidos com a implantação da poliquimioterapia e alguns países como o Brasil, comprometeram-se a eliminara a Hanseníase como problemas de saúde pública até o na 2000. Esperamos atingir esta meta, mesmo que não seja tão breve quando a data pré estabelecida, pós sabemos que a qualidade dos serviços de saúde pública no nosso país está muito aquém do ideal, assim como a distribuição de renda. Todos nós pertencemos a esta luta para a melhoria das condições de vida, e, consequentemente de saúde e temos nossa parte a cumprir.


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