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Ano XVIII – n.º 185 – Abril de 2001. E Se Deus Não Ouvir? Certo dia, quando visitava doentes no hospital, pediram-me para ver uma senhora que estava um tanto deprimida. Após trocar algumas palavras, e passar longo tempo em silêncio, tive a sensação de que o diálogo seria muito rápido. Engano meu! Ao me despedir, convidei-a para fazermos uma oração. Após o sinal da cruz, perguntei o que ela gostaria de pedir a Deus naquela prece. Ela respondeu: “Queria pedir tantas coisas mas, e se Deus mais uma vez não ouvir as minhas preces”? Se Deus não ouvir!? Como assim? “Isso mesmo, já estou cansada de pedir e não ser atendida”. Então perguntei: “A senhora não acredita que Deus ouve as nossas preces”? Ela respondeu: “Acreditar eu até acredito, ou melhor, acreditava, mas parece que as minhas não são ouvidas por Ele. Ao menos até agora não foram. Há mais de uma semana estou aqui para fazer uma cirurgia de troca de válvula do coração. No entanto, parece que as coisas sempre dão errado. Para você ter uma idéia, esta é a terceira vez que tenho de me submeter a uma cirurgia desse tipo. Já cansei de pedir para Deus me ajudar e...” Encarando as situações Situações como essas são muito freqüentes para quem está em contato com pessoas que passam por situações difíceis. Doentes no hospital e em domicílio, ou mesmo no diálogo com pessoas que estão necessitando de ajuda mesmo sem estar doentes fisicamente. Quantas vezes já ouvimos pessoas dizerem que não foram atendidas em suas orações? “Olha padre, estava todo mundo rezando por meu pai mas, mesmo assim, ele morreu. Deus não atende as nossas preces! Às vezes chego a duvidar de Deus”, disse a filha que acabara de ver o pai morrer. “Tenho 28 anos de idade e desde criança tenho sofrido. Será que Deus ouve as nossas preces, ou o tempo das curas acabou”? Reclamava a jovem paciente. É possível falar que Deus ouve as nossas orações, mesmo depois de ouvir desabafos como esses? Ou melhor, como falar da ajuda de Deus numa situação assim? Será que existe algum argumento convincente capaz de “conter” a raiva ou mesmo a frustração em relação a Deus, depois de um exame para o qual todos rezaram pedindo por um resultado negativo, mas que na realidade confirmou a doença? O que o povo pede a Deus? Nos momentos difíceis, por concentrarem-se mais e ficarem mais sensíveis, as pessoas mais facilmente se voltam para Deus. Nessas ocasiões os pedidos são diversos, mas mais freqüente é pela recuperação da saúde. Ao menos, é essa a resposta que a maioria dos doentes dá quando convido-os para fazer oração. Muitos, depois de colhido sangue ou outro material para exame, pedem que o resultado seja negativo. Outros, que sejam bem sucedidos na cirurgia. Alguns pedem calma para afastar o medo. Porém, a vontade de todos é de que tudo seja resolvido de maneira “milagrosa”. Certo dia, alguém, antes de adentrar a capela do hospital para fazer oração, veio até minha sala e perguntou se era ou não um ato pecaminoso pedir para ganhar o carro que estava sendo rifado em sua comunidade. Ao que respondi: “Pecado, com certeza não é, embora eu pense ser difícil Deus atender um pedido desses, pois milhares, para não dizer milhões de pessoas, estão na mesma situação.


Num concurso que dispõe de 50 vagas disputadas por mais de mil candidatos, qual o papel de Deus? Todos os candidatos, bem como seus familiares, parentes e amigos se põem em oração. No final, somente cinqüenta são beneficiados. Será que Deus atendeu a esses e esqueceu-se dos outros novecentos e cinqüenta? Não parece ser esta uma atitude seletiva de Deus? Não andamos pregando e dizendo pelos quatro cantos do mundo que Deus não faz distinção de pessoas? Que perante Deus somos todos iguais? Jesus mesmo disse: “Deus faz o sol nascer sobre bons e maus”. Apelo aos ritos No atual momento, vivenciamos o fenômeno das “curas”. Existem muitos rituais e celebrações de cura tais como: missas de curas, promessas, manifestações milagrosas, ritos de exorcismos, sal grosso, óleo, água benta, escapulários, medalhinhas, cápsula da espiritualidade, oração da prosperidade, culto de libertação, corrente da família, fogueira santa e centenas de crendices, que ouso chamar de ritos mágicos que prometem resolver todos os problemas rapidamente. Em todas as denominações religiosas, incluindo o catolicismo, existe um exagero desses tipos de crenças e promessas. Arrisco dizer que o problema não é a falta de crença ou fé, e sim crendice puramente. O povo, em geral, acredita demais, pela manhã, assiste a missa, depois vai ao culto, gosta de ler a mão, aprecia ver as cartas de tarô, em casa têm gnomos, pirâmides e anjos. À tarde freqüentam o centro espírita, e à noite, se sobrar tempo, é possível ir até um terreiro de umbanda ou candomblé. Enfim, são tantos ritos e rituais que num determinado momento as pessoas não sabem mais para que lado devem caminhar. Em tais situações, as dúvidas se estão ou não sendo ouvidos por Deus aumentam, ao invés de diminuírem. O que Deus ouve? Não consigo acreditar que só somos atendidos quando nossos objetivos são alcançados. A meu ver, não é somente quando o extraordinário (milagre) acontece que fomos atendido por Deus. Por exemplo, deitar com uma perna e amanhecer com as duas. Ou ainda, um tumor maligno, uma doença fatal desaparecerem repentinamente. O resultado de um exame que várias vezes foi positivo, sem nenhuma explicação técnico-científica, de repente, dá negativo. É difícil acreditar que Deus dê mais importância à oração de um do que a do outro. Que a prece de alguns tenha mais força do que a de outros. Acredito, sim, que existem pessoas que possuam uma fé mais profunda. Embora alguns misturem fé e oração com pensamento positivo, é importante separar. No pensamento positivo, espera-se a cura pela intervenção de uma energia mental. Enquanto na oração acredita-se na intervenção direta de Deus. Acredito que a oração que Deus ouve não é somente aquela que, depois de feita, tem efeito repentino. Senão, aquela que depois de percorrer alguns caminhos, atravessar algumas barreiras, tais como: submeter-se a muitos exames e cirurgias, tomar medicamentos, repousar, cuidar de si mesmo, contar com a participação e colaboração de profissionais etc., alcançam seu fim. Portanto, vejo os milagres acontecerem diariamente em cada vida que nasce, em cada gesto de solidariedade, de calor humano, de amor e competência profissional posta a serviço do bem comum. De pessoas que mesmo golpeadas por terríveis sofrimentos e dores suportam, ainda que desconfortavelmente, todas as adversidades com serenidade e equilíbrio.


Vejo o milagre nas pessoas que com fraturas, queimaduras ou enormes escaras suportam toda essa carga de sofrimento sem serem fatalistas, mas porque confiam numa expressão transcendental da vida; nas famílias que enfrentam perdas das mais diversas e ainda assim são capazes de se reerguer e retomar a vida porque há razões para continuar. A ação de Deus no mundo É importante lembrar que Deus poderia fazer tudo sozinho. Porém, sempre contou com a colaboração humana. “Vocês é que têm de lhes dar de comer” (Mc 7,37), disse Jesus aos seus discípulos na multiplicação dos pães. Será que muitas vezes não ficamos esperando que Deus resolva tudo por nós? Muitas vezes não entendemos porque não somos ouvidos por Deus! Disse um autor anônimo: “Às vezes, mesmo não havendo fé, o milagre acontece. É a manifestação da sua imensa graça. Outras vezes, mesmo havendo fé, Ele não cura. É uma manifestação de sua soberania. Deus tem poder para curar qualquer enfermidade e em qualquer estágio. Mas nem sempre o faz por razões que mais tarde viremos a entender e, quem sabe, a agradecer”. Ao ler este comentário veio-me à mente a lembrança de um caso que há muito tempo acompanhei no hospital. Um homem com menos de cinqüenta anos de idade teve uma parada cardíaca que o deixou com sérias seqüelas cerebrais, como: impossibilidade de pensar, falar, movimentar-se, de ter qualquer atividade de uma pessoa normal. No início, todos rezavam e pediam por sua recuperação. Hoje, depois de quase quatro meses de internação, todos pedem para que ele “descanse”. Se Deus “não tivesse atendido” o pedido da família, no momento em que o paciente teve a parada e consequentemente ele tivesse morrido, certamente, a família teria dito que Deus não atendera as suas preces. Obviamente, teriam se angustiado e até se revoltado contra Deus, por “tirar” a vida de uma pessoa ainda jovem. No entanto, hoje, a família pensa totalmente o contrário. Quantas vezes as pessoas, saindo atrasadas de casa para chegar ao aeroporto ou rodoviária, fazem orações e pedem a Deus para que o trânsito flua bem e que nada de ruim aconteça para não perderem a viagem? No entanto, mesmo com muitas orações acabam chegando atrasados. Claro, a reação é dizer: “Deus não ouviu a minha prece”! No entanto, momentos depois, ficam sabendo que houve um acidente com meio de transporte que usariam para a viagem. Nesse momento se voltam e dizem: “Realmente, Deus é bom, pois me livrou do acidente e quem sabe da morte”. Deus ouviu ou não a prece? E quando a prece “não é atendida”? A primeira observação é procurarmos discernir o que significa ser ouvido por Deus. As pessoas humanas, ao pedirem a Deus, usam a seguinte estratégia: imaginam o que seria melhor para si e pedem. Enquanto que, Jesus Cristo, pede que se cumpra realmente o plano de Deus Pai. Faz-nos refletir o pensamento do Frei Keith Macclellan: “Se as nossas orações fossem atendidas de acordo com os gostos humanos, a plenitude do reino de Deus nunca chegaria. O cuidado diminuiria, o heroísmo desapareceria, e nossos familiares e amigos queridos nunca seriam livres de nossas mãos para irem até Deus”. Mas como reagir diante dos questionamentos levantados no início do texto e que nos são feitos diariamente? Existe algum tipo de resposta para tais interrogações? Mesmo vivenciando um momento em que se fala de tantos casos de cura, em todos os ambientes e em todas as religiões e crenças, ainda não temos respostas prontas a oferecer. Em certos momentos chegamos a ter a sensação de que o milagre que era algo


extraordinário passou a ser um acontecimento muito comum. Hoje, raros são os casos onde não acontecem os milagres. Pistas de ação Para dar algumas pistas do que fazer nessas situações, volto àquela pergunta que me fez a paciente quando convidei-a para fazer oração: “Mas, e se Deus não ouvir”? Depois de interrogá-la porque Deus realmente não ouviria, respondi: “Pois hoje nós vamos pedir, e eu acredito que Deus nos ouvirá”. “Como”? exclamou. “Será que sua oração é mais poderosa do que a minha? Eu não precisarei mais fazer a cirurgia”? Não se trata de ser mais poderosa. Todos nós temos o mesmo poder diante de Deus. É que hoje vamos fazer um pedido diferente. Não vamos pedir somente para Deus livrar você da cirurgia. Mas, se for preciso fazê-la, que você tenha força e coragem. Que Deus ajude você a ficar calma e paciente. Que os médicos, que farão a cirurgia sejam competentes, humanos, sejam realmente instrumentos de Deus e, guiados por Ele, possam fazer o melhor para você e para sua saúde”. Portanto, na minha opinião, não devemos pedir somente para que Deus nos livre dos males, sofrimentos e adversidades, mas que Ele nos ajude a enfrentá-las. Façamos a nossa parte! Orações, e tudo o que está ao nosso alcance. Confiemos em Deus, em nós mesmos e nas pessoas. Essa, na minha opinião, é a oração que Deus sempre ouve. Anísio Baldesssin é padre camiliano, capelão do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Ano Internacional do Voluntário A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou 2001 o ano Internacional do Voluntário, com o apoio de 123 países, entre os quais o Brasil. O propósito deste acontecimento é aumentar o reconhecimento, intercâmbio e promoção do voluntariado em todo o mundo, e a coordenação mundial do Ano Internacional do Voluntariado está sob a responsabilidade do Programa de Voluntários das Nações Unidas. Em consonância com os objetivos da ONU, foi criado o Comitê Brasileiro do Ano Internacional do Voluntário, por iniciativa de um grupo de líderes de algumas das mais representativas organizações que atuam na área de promoção do voluntariado no país. Provenientes de diversas origens, instituições e regiões, eles interagem com amplos setores da sociedade civil, empresariado e governo. O Comitê, mais do que simplesmente organizar uma série de eventos, pretende promover o voluntariado no país, as organizações que o fomentam e dele se beneficiam e alcançando resultados que deverão transcender o ano 2001. O reconhecimento, intercâmbio e promoção da cultura do voluntariado tornando-se estratégicos para nosso país, devido aos benefícios gerados e oportunidades de ação dadas aos cidadãos. Nunca é demais ressaltar que o trabalho voluntário pode ser encarado como um exercício de cidadania e grande impulsionador de mudanças na direção de uma sociedade mais justa. Dessa forma, o voluntário transforma-se em importante agente de mudança da realidade e da mentalidade, além de um agente de mudança pessoal. Por meio de seu trabalho ele fortalece a auto-estima, desenvolve-se como indivíduo, membro de uma família, parte de uma comunidade e como cidadão. A sociedade civil, em parceria com os governos e o setor privado, tem assumido responsabilidades cada vez maiores no processo de um desenvolvimento mais justo e sustentável. Prova disso é a reconhecida importância do papel desempenhado pelos voluntários no campo do bem-estar e progresso dos países,


assim como programas das Nações Unidas referentes à ajuda humanitária, à cooperação técnica, à promoção dos direitos humanos, à democratização e à paz. As soluções para os problemas enfrentados atualmente pela humanidade não podem ser esperadas somente do governo: os indivíduos também têm a participação na solução dos mesmos. Ao reconhecer todo o potencial do trabalho voluntário, facilitar o fortalecimento de instituições, disseminar e trocar experiências para o aprimoramento de práticas de voluntariado, “estamos gerando uma terceira força que, devidamente articulada com o Estado e o mercado, pode alterar significativamente as chances de desenvolvimento equilibrado, com justiça, que deve ocorrer em qualquer sociedade que almeja ser desenvolvida”, nas palavras de um de nossos líderes, Marcos Kisil. O sucesso de uma iniciativa como o Ano Internacional do Voluntário não poderá ser medido apenas pela quantidade de eventos realizados ou pela publicidade obtida para a causa do voluntariado. Os acontecimentos que marcarão o ano de 2001 serão bemsucedidos se tiverem sido capazes de criar condições para o desenvolvimento de lideranças e estruturas capazes de atender aos interesses dos indivíduos e organizações que praticam o voluntariado e que estejam alinhados com as prioridades e necessidades reais de desenvolvimento social do país. O ano Internacional do Voluntário é entendido pelos membros do Comitê como uma oportunidade de promover a causa do voluntariado no país e de fazer de 2001 um verdadeiro “ano mágico”, desenvolvendo as instituições, capacitando indivíduos, atuando no ambiente de políticas públicas e, acima de tudo, incentivando uma mudança cultural permanente na sociedade brasileira para o estímulo ao trabalho voluntário, à solidariedade e à cidadania. Milu Vilela é presidente do comitê brasileiro para o Ano Internacional do Voluntariado e diretora do Centro de Voluntariado de São Paulo

A Fé no Hospital Maika, Juani, Pedro, Rosa etc., e quem sabe quantos estão sofrendo por causa de uma religiosidade enferma. Enferma de fé, ou de pseudofé. Sofrem, buscam e até se renegam. Pedro Paulo, Juli e tantos outros, fazem sofrer a outros por causa da fé ou da pseudofé. O que está acontecendo? Quem sabe valha a pena pensar! Com efeito, a fé e a religião necessitam, às vezes, de uma passada pelo hospital. Não é que no hospital não haja. Ao contrário, creio que haja. Que está bem viva e expressiva. Com freqüência, mais autêntica que em outros lugares. Lá, a fé se expressa às vezes em forma de grito, de dor, de pergunta por sentido, de sinais eficazes, cuidados e celebração dos mistérios da vida. Porém, não é a fé viva que encontramos no hospital (inclusive em forma de aparente blasfêmia) que atrai minha atenção. Minha preocupação é se essa pseudofé, que se reduz à religião e necessita ser curada não está enferma e por isso contagia e produz patologias. Quase todas elas têm a ver com síndromes muito conhecidas e que poderiam reduzir-se às dinâmicas do medo e do poder. Estou me encontrando com pessoas que necessitam ser ajudadas a libertar-se das enfermidades da fé e a deixar livres os que são crentes. Encontro-as na África e na América, no Vaticano e na minha própria casa. Não é que me considere um médico


especialista capaz de diagnosticar as patologias da fé. É que muitas delas se detectam com uma simples radiografia realizada pela completa tecnologia de um sentido comum. Quando a fé não liberta Não se pode fazer outra reflexão sobre Deus que não seja a da libertação, ou a que explora os dinamismos injustos dos povos e as pessoas que se põem ao lado dos mais fracos como fez Jesus. É triste constatar que pessoas e instituições às vezes têm manipulado a imagem de Deus para oprimir e destruir outros. O papa João Paulo II afirmou: “Como calar tantas formas de violência perpetradas também em nome da fé”? Sem dúvida somos ridículos quando às vezes pedimos perdão e nos contradizemos cometendo assim os mesmos erros que na história nos têm dividido por comercializar a salvação. Quando a fé não liberta, gera escravos, infantilismo, papolatria, culpabilidade neurótica, dolorismo, aversão religiosa. Em recente artigo, José Vicente Bonet desenvolveu com precisão, falando da tecnologia, essa visão e sentimento de si mesmo ante Deus como indigno e desapreciável, usando aquela bela expressão de Santo Ireneu: “A glória de Deus é o ser humano que vive em plenitude”. Quando a fé não liberta, gera sofrimento, fecha as pessoas em si mesmas, divide, reduz a vida espiritual a um mero cumprimento da prática de piedade com freqüência desencarnadas. Empobrece a experiência moral, convertendo-a em mero cumprimento de códigos morais, produz tabus, proibições sem sentido, gera aversões a prática e ritos, em suma, desumaniza. Fé e poder Porém, quando a fé não liberta, gera também um tipo de pseudoreligião que alia ao poder que perverte a dinâmica da liberdade. Não deixa de chamar a atenção as excessivas vezes que autoridades eclesiásticas fazem calar aqueles que avançam nas reflexões e põem o dedo na chaga da injustiça, da incoerência, da discriminação por razões morais. Propostas em torno do sofrimento como expiação do mal ou entendido como sacrifício ou mesmo oferecimento, precisam ser relidas à luz do evangelho libertador e da graça. Caso contrário, é permanentemente um distanciamento de Deus para conosco. Às vezes dá impressão que queremos pôr limites para Deus em seu perdão incondicional. Parece que queremos fechá-lo num sacrário para controlá-lo ou reduzi-lo a um mago que intervém na vida dos homens fazendo milagres que nós mesmos manipulamos. Outras, interpretamos experiências subjetivas como grandes aparições e mensagens acompanhadas de estratégias de controle de massas e dinheiro e mantendo segredos relevados anos depois e relacionados inclusive com admiração e desvio de trajetórias. Às vezes matamos o Espírito por medo de perder o poder e controle, encarregamos o profeta e exaltamos o “funcionário” dos ritos, duvidando de que a verdade se impõe só por força da mesma verdade. Crer com paixão Quando em nós mesmos e em nossos caminhos nos encontramos com a redução da fé, a religião e seus possíveis riscos e patologias, embora tenha de ir ao hospital e fazer “cirurgia” de libertação.


A fé sadia não pode mais que sarar, ser fonte de gozo, paz e de justiça, de paixão pela vida e amor, geradora de igualdade e humanizadora. O Concílio Vaticano II dizia que “se reconheça aos fiéis, tanto clérigos como leigos, uma justa liberdade de busca e de pensamento, o mesmo que uma justa liberdade de fazer conhecer humilde e valentemente seu modo de ver em domínio de sua competência”. Um claro canto à liberdade e ao diálogo sem medo. Não deixa de ser uma desgraça que todavia hoje haja pessoas que são mortas por expressar livremente as implicações de uma fé vivida com coerência. É triste também ver pessoas que fazem os outros calarem (outra forma de morte) porque suas palavras põem em perigo a segurança dos fracos e dos que de um modo ou de outro tiram partido da preguiça mental e do infantilismo religioso. Crer com paixão é personalizar a fé, interiorizar os valores do evangelho que só podem produzir saúde. Crer com paixão é permitir deliberar, não dogmatizar, porque a religião torna-se enferma quando os dogmatismos empurram a racionalidade da fé e se impõem pelo poder de uns poucos que teriam muito a perder. Crer com paixão compromete o discernimento por medo dos dilemas morais, porque a religião enferma não se concede um especial reconhecimento de deliberação como modalidade madura de busca do bem. Crer com compaixão implica não ter medo da liberdade, porque a religião esta enferma quando anula a liberdade da pessoa e dos povos. Então se faz irmã do medo ou do poder que oprime e domina injustamente. Erich Fromm dizia: “O homem pode ser livre sem estar só; crítico sem encher-se de dúvidas, independente, sem deixar de formar parte integrante da humanidade”. Crer com paixão implica livrar-se da religiosidade que pede sacrifícios, verdades definitivas, modos de vestir que marcam distâncias e desumanizam, obediências infantis, sofrimentos oferecidos e culpabilidade doentia. É apaixonante crer sinceramente porque gera amor e justiça, libera e enobrece a condição humana. É apaixonante crer porque é sadio deixar-se querer e envolver ternamente por Deus. O Novo Testamento não conhece outra forma de unidade que a comunhão sincera, honesta e amorosa e não imposta. As relações de ajuda hão de comprometer-se também a gerar saúde na vida espiritual e de fé, a acompanhar os que acreditam a viver sadiamente em meio ao sofrimento, a limpar os “mofos” que saem daqueles que com ares restauradores, vêem o dedo ao invés de ver aquilo que o dedo quer apontar: Jesus de Nazaré. Quem não dialoga com seu interior, dificilmente será um crente livre e dificilmente deixará a fé desenvolver-se numa dimensão humanizadora. JOSÉ CARLOS BERMEJO, Artigo extraído da revista Humanizar – nº 51 – julho/agosto 2000.

Carta da XI Conferência Nacional de Saúde Os 2500 delegados e delegadas presentes a essa Conferência, homens e mulheres de diferentes raças e etnias e de todas as regiões do país, avaliamos que passados quatorze


anos da VIII Conferência Nacional de Saúde, início do processo de construção do SUS, é possível constatar avanços. É significativa a transformação urbanística e sanitária e de criação do arcabouço jurídico institucional ocorridas. Construímos um processo de reforma setorial impulsionado por um movimento composto de vários atores e ao longo dessas três últimas décadas produzimos saberes e práticas políticas, discursivas e paradigmáticas. Com a garantia legal conquistada, o desafio passou a ser a transição do sistema desintegrado e centralizado para um outro com comando único em cada esfera de governo. Aqui não mais uma tarefa de resistência mas uma tarefa construtiva. Os Conselhos de Saúde e a necessidade de um processo político de pactuação intergestores surgido após a Lei Orgânica da Saúde, criou condições privilegiadas de negociações para viabilizar a descentralização e municipalização do SUS, conforme aprovado na IX Conferência Nacional de Saúde. No entanto, consideramos que a verdadeira municipalização ainda não é uma realidade para todo o país, embora tenha ampliado significativamente o acesso da população a serviços de saúde com maior qualidade, diferenciando o modelo de atenção e qualificando a gestão descentralizada. O processo de estruturação do SUS pode ser considerado como um movimento contra hegemônico a um modelo político econômico predominantemente excludente. A saúde do brasileiro como preceitua a Constituição Federal depende de fatores econômicos e sociais entre eles a garantia de emprego, salário, casa, comida, educação, lazer, transporte. Nesse momento o desemprego, péssima distribuição de renda (50 milhões de pessoas em estado de miséria), fome e desnutrição e outros muitos agravos interferem nas condições de vida e de saúde, ressurgem antigas e surgem novas formas de adoecer e morrer, caracterizando um quadro epidemiológico da maior perversidade, agravados pelas condições de pobreza, gênero e raça. Enquanto isto, os Governos investem em saúde, no setor público (universal, para toda população) apenas R$300,00 per capita ano. Na raiz do agravamento da falta de qualidade de vida e de saúde da população está o projeto social e econômico do Governo Fernando Henrique que privilegia a lógica do ajuste econômico em detrimento das Políticas Sociais. No ano 2000 o Brasil pagou, com juros e amortização da dívida pública, R$ 20 milhões de reais por hora, ou seja, R$ 480 milhões por dia. Nosso país está submetido a um conjunto de medidas do rigoroso programa de ajuste fiscal, dentre as quais destacamos: a) a redução e reorientação dos gastos públicos em prejuízo das demandas sociais, buscando cumprir orientações do banco Mundial; b) redução do Estado com privatização de empresas e serviços públicos; c) diminuição da proteção social através da precarização das relações de trabalho. O ajuste fiscal duplamente o setor de saúde, seja pela indisponibilidade de recursos financeiros e materiais, seja pelo aumento da demanda da população, apresentando dentre outras, as seguintes repercussões; a) intervenções de saúde de cunho campanhista, para atender supostamente, algumas demandas reprimidas; b) desarticulação dos diversos níveis do sistema de saúde, afetando sobretudo os portadores de deficiência e patologias pela sua dependência dos serviços mais especializados; c) precariedade no acesso ao SUS pela pressão da demanda, favorecendo o crescimento dos Planos e Seguros de Saúde frente a insuficiente regulação governamental, com ampliação da renúncia fiscal para esse setor.


Este quadro compromete a busca da universalidade e a eqüidade no SUS aprofundando a divisão no Sistema de Saúde brasileiro, condenando a maioria da população brasileira a um sistema de saúde ainda precário. Esse quadro fragiliza o processo de consolidação do SUS enquanto prevalecer a atual política. É importante ressaltar que apesar das restrições a luta pela implantação do SUS está crescendo e tem alcançado vitórias, graças à ação de milhões de cidadãos usuários, trabalhadores e gestores comprometidos com um projeto político popular e democrático em defesa da vida.

Agenda para a Efetivação do Sus do Controle Social Diante deste quadro nós, reunidos neste XI Conferência Nacional de Saúde, defendemos: 1. A melhoria das condições de saúde e da existência efetiva de políticas sociais intersetoriais e de um compromisso irrestrito com a vida e a dignidade humana, capaz de reverter os atuais indicadores de saúde, contribuindo assim para a melhoria da qualidade de vida da população. 2. O fortalecimento do exercício da cidadania através do Controle Social na sociedade e em especial na área de saúde através das Conferências e Conselhos de Saúde deliberativos e partidários com exigência de respeito às sua decisões. 3. A X Conferência Nacional aprovou a busca do financiamento definido, definitivo e suficiente para a área de saúde, a partir da PEC 169 conquistamos a EC 29, que precisa ser cumprida e regulamentada urgentemente, incluindo aí as transfêrencias fundo a fundo dos Estados para os Municípios, a fim de atender a demanda de recursos financeiros que viabilizem o Sistema. 4. Suspensão e proibição de quaisquer contratos e convênios substitutivos da gestão pública, a exemplo de organizações como o PAS e assemelhados atendendo a preceito constitucional explicitado pela Procuradoria Geral da República. 5.Uma política de Recursos Humanos para o SUS, com contratação através de concurso público, centrado na profissionalização, na multiprofissionalidade, no aprimoramento continuado, no compromisso humano e social e em condições digas de trabalho e salário. Nesta perspectiva é imprescindível a afetiva implantação da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos e das mesas nacional, estaduais e municipais de negociação do SUS. 6.Acesso universal à atenção integral, equânime e humanizada, garantido o financiamento de seus Planos, com aprovação dos respectivos Conselhos de Saúde. 7.Nesta lógica, a organização da porta de entrada do sistema, através de distintas iniciativas de estruturação da atenção básica tais como: Saúde da Família, Sistemas Locais de Saúde e outras estratégias, devem garantir a territorização, gestão pública, responsabilidade sanitária, equipe multiprofissional em dedicação integral a articulação e integração com os demais níveis de atenção à saúde. 8.Que a efetivação do SUS seja feita alicerçada nos princípios constitucionais e na legislação intraconstitucional para que normas e procedimentos não extrapolem os dispositivos legais e se respeitem as competências de cada uma das esferas de Governo. 9.Portanto, exigimos que todos os níveis de gestão Federal, Estadual e Municipal cumpram a legislação e apresentem para apreciação e deliberação dos Conselhos o Plano


Anual de Saúde, que deverá sempre ser discutido amplamente com a sociedade como o caminho de efetivação do SUS. Somente com a reorientação da atual política pública, social e econômica é que poderemos viabilizar com sucesso o processo de consolidação do SUS o que inclui, a exemplo de lutas de importantes segmentos da sociedade civil, a suspensão imediata do pagamento da dívida externa até o resultado de uma Auditoria desta dívida. A efetivação do SUS só é possível com o controle social!!!


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