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ESPIRITUALIDADE NOVA FRONTEIRA PARA A REABILITAÇÃO Marcelo Saad A literatura médica tem várias definições para espiritualidade. Uma delas é: Espiritualidade é o conjunto de atitudes, crenças e práticas que animam as vidas das pessoas e a ajuda a alcançar realidades supra-sensíveis”. Este conceito não assume necessariamente seres não-materiais como deuses ou espíritos. Já a religião é uma expressão específica da espiritualidade, que envolve elementos como doutrina (estrutura de crença formal), mito (narrativa sacra), ética (regra de vida), ritual (prática organizada), experiência (compromisso pessoal), instituição social (igreja, sinagoga, etc..). Assim a espiritualidade é uma propriedade intrínseca da pessoa, enquanto que a religião é uma instituição social. Embora estes termos estejam associados, não são interdependentes. Pode-se ter uma espiritualidade bem desenvolvida sem se estar engajado a uma religião, e vice-versa. As doenças que cursam com deficiência talvez sejam as que cursem com a maior carga de desgosto e inconformidade, porque além das limitações inerentes a qualquer doença, são alvo de preconceito e ignorância por parte dos outros. Além disto, a pergunta “por que isto está acontecendo comigo?” assume uma conotação de castigo, já que a deficiência figura nas religiões (salvo pouquíssimas exceções) como infortúnios enviados por divindades, destino, ou carma, freqüentemente associados com pecados pessoais ou familiares. Algumas citações bíblicas poderiam confundir ainda mais este quadro, como estas: “O Senhor falou a Moisés [...] que nenhum de teus descendentes que for defeituoso se aproxime para apresentar o alimento de seu Deus: todo aquele que tiver um defeito não deve aproximar-se”(Levítico, 21; 16-18). “E quando apresentais para o sacrifício um animal cego, [...] coxo e doente, não é isto um mal?” (Malaquias, 1;8). Soma-se a este quadro as barreiras arquitetônicas encontradas quase como regra na maioria dos templos, para complicar a busca de uma vivência de respostas a questionamentos espiritualistas por patê do portador de deficiência. Apesar disto, espiritualidade e religiosidade podem ser grandes aliados para a qualidade de vida nestes pacientes. O materialismo e o ateísmo trazem uma sensação de vazio e desamparo, e a espiritualidade tem potencial para auxiliar a compreender de forma mais completa o ciclos da natureza. Sabe-se que a comunidade Maori de Nova Zelândia tem uma construção mais positiva da deficiência, havendo mais aceitação desta. Num argumento budista, “qualidade de vida”, diferentemente do conceito ocidental, poderia estar relacionada a preencher o dharma (ter conduta correta, mentalidade correta, ser a pessoa que se deve ser, viver a vida que se deve viver). As ciências da reabilitação devem evoluir para incluir uma abordagem espiritualista. É fato que a crença é mais importante do que a comprovação com certeza da existência de uma vida feliz e eterna após a morte. A crença pode mobilizar energias e iniciativas positivas, com potencial para melhorar a qualidade de vida, o que tem repercussões


significativas sobre o processo reabilitacional. As emoções, crenças e ações associadas com a espiritualidade tem uma influência positiva sobre a saúde física e o bem-estar psicológico. Os profissionais da área da Reabilitação devem estar preparados, já que a espiritualidade não é abordada nas universidades (ao contrário de inúmeras faculdades de medicina em países desenvolvidos, que estão incluindo em seus currículos disciplinas que abordam o assunto diretamente). O paciente, involuntariamente, pode acabar transferindo para o profissional da saúde seus sentimentos espiritualistas negativos e o profissional deve fazer uma auto-exame de suas próprias crenças. Muitas das angústias que o profissional enfrenta em seu trabalho são decorrentes da falta de uma base espiritualista sólida, que o fragiliza o torna vulnerável ao desequilíbrio. O profissional deve refletir muito sobre os limites de seu poder de atuação, estando consciente de que fez tudo o que estava a seu alcance. Uma boa estratégia é colocar de lado o orgulho e o egoísmo. Deve-se trabalhar desapegado não só dos fracassos como também de sucessos, cumprindo o dever como uma oferenda a Deus. O processo é mais complicado do que aplicar com os pacientes um falso otimismo, do tipo: “olhe apenas para o lado positivo das coisas”. No verdadeiro otimismo, busca-se os caminhos para se transpor os obstáculos, sem negar sua existência. A verdadeira coragem não é a ausência do medo, mas a capacidade de seguir em frente apesar do medo. É necessária uma ampla e corajosa discussão sobre o sofrimento caudado pela deficiência (não só em seus aspectos psicológicos e sócio-culturais, como também espirituais). A interface entre espiritualidade e deficiência é uma área de pesquisa relativamente nova, porém em crescimento. Tem sido feitos diversos seminários pelo mundo sobre o assunto. A Conferência “Disability, Religion and Health – Exploring the Spiritual Dimensions of Disability”, na Austrália, em outubro de 1996 gerou uma edição especial da revista Disability and Rehabilitation (volume 19, fascículo 10,1997) contendo os textos explorados neste evento. Finalmente, o último tabu está sendo quebrado, após debates em assuntos como sexualidade e abuso de substâncias entre portadores de deficiência. Pessoas com uma deficiência são indivíduos integrais que tem o direto de explorar e expressar a espiritualidade ao potencial humano mais pleno. Marcelo Saad, é médico Fisiatra, Mestre em Reabilitação pela UNIFESP-EPM, Médico Assistente da Divisão de Medicina de Reabilitação do HC – FMUSP e da Diciplina de Fisiatria do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina, Centro de Reabilitação Lar Escola São Francisco. E-mail: msaad@uol.com.br. Procura-se Tinha chegado a hora de Jesus partir, devia sofrer ao máximo: “Começou ser tomado de medo e angustia... Sinto em mim uma tristeza de morte.... Jesus se adiantou um pouco e caiu com o rosto por terá, suplicando ao Pai que se fosse possível aquela hora fosse afastada dele: Aba! Pai! Tudo te é possível para ti! Afasta de mim este cálice! Contudo não seja o que eu quero e sim o que tu queres”(cf. Mac 14,33-36)... Jesus afastou-se de novo e rezou: Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo não se faça a minha vontade mais a tua” (Lc 22,41-42). “Então veio um anjo do céu para o confortar” (Lc 22,43) que missão maravilhosa a deste anjo! Nem sempre Deus tira a dor, porém sempre envia seus anjos.


À certa altura do Calvário, Jesus não tinha mais condições de continuar sua caminhada; dava dó ver o Cristo caindo a toda hora, levantar-se para cair de novo logo adiante; era melhor ficar por aí mesmo e morrer na entrada como um animal atropelado. Neste momento o Pai envia Nossa Senhora. Ao ver a mãe, Jesus toma ânimo levanta-se tem que chegar a montanha da Caveira; seu destino é morrer na cruz e não ali na rua. Sob os olhares da Mãe, o coração se anima, o pouco de sangue que ainda sobra, corre mais veloz pelas veias e artérias; é preciso cumprir o projeto do Pai. Nesta hora chega da roça um outro anjo, Simão de Sirene, ele toma a cruz de Jesus e a carrega par ao lugar marcado. Que missão bonita a destes três anjos! Pobre do homem assaltado pelo caminho de Jericó! Cheio de feridas, perdendo sangue, corpo moído de pancadas. Passam ao seu lado pessoas importantes, na fizeram nada por ele. Não eram anjos. Por sorte chega um viajante samaritano; salta do cavalo, corre para junto do ferido, toma-o nos braços, presta0lhe os primeiros socorros, acomoda-o com muito cuidado em sua cavalgadura e o conduz para um lugar em que possa ser melhor atendido. Passa a noite toda ao seu lado como se fosse um filho, umedece lhes os lábios secos pela perda de sangue, sacia-lhe a sede intensa, a todo o instante coloca a mão na fronte para verificar se está com febre, preocupa-se para que o leito seja confortável, não dorme, sempre atento ao menor movimento ou gemido. Com alegria nota que seu paciente se recupera rapidamente. Chama o dono da pensão explica-lhe que tem que continuar a viagem, dá-lhe um bom dinheiro para pagar os gastos e recomenda-lhe que não deixe faltar nada que ao voltar pagaria tudo. Que anjo encontrou este pobre homem num dia tão difícil de sua vida! Não fora ele, talvez tivesse morrido esvaído em sangue, cheio de dores longe de casa. Certamente, Nossa Senhora, o Cirineu, o bondoso samaritano, aprenderam de Jesus para agir assim. Sempre seguido por multidões, como sempre acontece nos santuários, muitíssimos o procuram para que os livre de seus infortúnios. Jesus sempre procurava, com seu olhar de bondade os mais necessitados. Era muito fácil notar no rosto de Jesus a bondade infinita de Deus “Tenho dó deste povo” (Mt 9,36) Que pena que estas pessoas maravilhosas morreram: Uma pena, porque a humanidade mais do que nunca, continua precisando delas. “Pobres sempre tereis convosco” (Mt 26, 44) – Tomem a cruz e me sigam convida Jesus (Lc 9,23). Quem não sofre ou espera dias difíceis? “Temos que sofrer muito para entrar no céu” (At 14,21) Diz a bíblia que o Pai nos ama com o mesmo amor com que ama Jesus, sua bondade não tem limites. Por este motivo faz surgir entre seu povo anjos da caridade. “Cuida de baratos passarinhos, flores do mato quanto mais dos filhos”. O Espírito Santo, alma da Igreja distribui seus dons hoje e sempre. Quem recebeu de uma forma marcante estes dons foram São Camilo. Ele não era só anjo dos pobres e enfermos, mas queria formar uma grande força no mundo todo, para trata-los como uma mãe trata seu único filho doente; que demonstrassem o imenso amor do Pai misericordioso, tivessem aquele olhar de Maria para com Jesus na cruz; pois “Os enfermos são a pupila dos olhos de Deus”. Anjos, não com asas, mas pés ágeis para correr para junto do sofredor e cruz vermelha no jeito para mostrar que Jesus morreu por nós e nós fazemos o mesmo. Começaram aparecer obstáculos a este seu ideal tão nobre, nada dava certo.


Passando pelo corredor do hospital, triste, desorientado, mal humorado, fugindo da situação, como fizeram os apóstolos quando viram Jesus preso e amarrado. Aí o crucifico desprende os braços da cruz, abraça com infinita bondade S.Camilo animando-o a continuar. Cristo conhecia muito bem a diferença entre sofrer abandonado e ao lado de um anjo. Nesta hora nasce a Família Camiliana. Sacerdotes, Irmãos, leigos, não importa, o que importa é ter um coração grande, cheio de misericórdia. Palavra linda que vem do latim: miseri – cord= receber o miserável no coração. O que importa e fazer o papel do anjo no Horto das Oliveiras, saltar do cavalo e correr para junto dos feridos. Sair pelos campos a procura da ovelha, presa entre os espinhos, que não pode voltar para junto da segurança dos 99. É sair com a lâmpada acesa pela escuridão da noite, buscando feridos, como fizeram Ana Nery e Florens Nightigale. É servir ao doente de joelhos, como muitas vezes o fazia S.Camilo. Não descurar o Cristo que continua chamando: “Tudo o que fazeis a estes meus pequeninos é a mim que o fazeis. Estava enfermo e foram visitar-me”(Mt 25,36) Quem serve aos enfermos, diz Pio XII, deve usar roupas brancas, para que aos olhos enfermiços dos doentes, pareçam anjos que vem do céu, que chega, para servir seus irmãos na terra”. Quando Jesus recebeu a cruz, ela tinha a cor comum da madeira; depois de sua morte se tornara vermelha, tingida pelo sangue sagrado; máximo sinal do amor. “Ninguém dá maior prova de amor do que aquele que dá sua vida pelo próximo”. E continua o evangelista S.João: E nós também devemos dar a vida pelo irmão”. Todos os crucifixos da terra ensinam isto. Parem a cruz dos camilianos deve ser vermelha, aquela que a mãe de Camilo vira em sonho, no jeito do filho, prestes a nascer, juntamente com uma infinidade de coirmãos com o mesmo carisma. Em todas as instituições importantes há o pessoal de elite, de ponta, cheios de dons especiais, vindos do crucifixo, do coração de Deus, com o olhar de Cristo no rosto, especialista em descobrir a dor e correr para ela. Tanto que Jesus insistiu que nos amássemos como ele amou! Não amar ao próximo e pecar contra o grande mandamento, e deixar de ser cristão, porém não amar os que sofrem, além de pecado é uma grande covardia. A voz de Jesus ainda não se apagou “Ide ao mundo todo, preguem minha doutrina e se preocupem com os enfermos” (Lc 10,9). Este corre para junto dos que tratam com bondade e se afasta dos ambientes de frieza e descaso, não se sente bem ali. É muito triste e o ambiente sem Deus. Se o anjo que foi consolar a Jesus agonizante tivesse sido bruto, insensível, teria ajudado muito pouco. Para lidar com minerais e plantas, basta usar técnica, com animais e preciso ser mais perfeito, eles são mais completos são sensíveis; para lidar com pessoas é preciso ver pela frente a figura de Cristo. Usar técnica, carinho e amor”.O que fazeis a um destes meus pequeninos a mim o fazeis”. Foi comprovado que animais mal tratados, perdem peso, dão prejuízo; as vacas rendem menos leite, na avestruz provoca desenteria, falta de apetite. Pessoas sem amor, não servem mais nem para trabalhar em granja, muito menos para estar ao lado de pessoas sofridas. Gostaria de ter visto o que se passava no coração de Maria, junto a Jesus crucificado, aliás todos nós teríamos feito de tudo para ajudar sair desta situação. E não é ao


Cristo o que fazemos aos irmãos? Temos que esquecer o que se passou e viver o agora, agora o crucificado é o doente. O sangue que sai da ponta do bisturi do cirurgião é tão valioso como o que escorrem pela cruz de Cristo. As feridas que tratamos, são as mesmas que Nossa Senhora viu no corpo sagrado de Jesus ao ser despregado e entregue a sua Mãe. O sangue de Cristo escorria em filetes pelo madeiro; para que? “Para o perdão dos pecados” Seria então completo o serviço prestado à pessoa enferma se o hospital fosse limpinho, os pacientes bem alceados e o espírito continuasse cheio de coisas erradas e angustiantes? Não é suficiente tratar uma pessoa como se fosse um mineral, árvore ou animal. Ver pessoas sofrendo abandonadas é uma vergonha para o cristianismo. E não há pessoas assim aonde você vive? Não está na hora de você começar usar a cruz vermelha de S.Camilo, formar a grande família da caridade? Feliz quem tiver o espírito do santo da cruz vermelho que servia os enfermos de joelhos. Feliz o que sai correndo para atender os machucados como o bom samaritano. “Vá e faze tu o mesmo”. Procura-se pessoas assim. Pe. Luiz Gemelli

OS SONHOS De tudo o que existe, o sonho ‘’e talvez a coisa mais misteriosa, porque não existe fora, mas dentro de nos. Mas onde? Estamos imóveis, dormindo, “apagados” depois de todas as tarefas nem sempre fáceis e agradáveis do dia... e então, no escuro da noite, começa um desfile de imagens, sons, paisagens e locais, as vezes muito diferentes daqueles a que estamos acostumados. Por vezes lá estamos nos, participando ativamente de uma historia curta e nem sempre compreensível. Outras vezes nosso eu se desdobre, ao mesmo tempo como espectador e como nosso próprio eu em ação. Contudo, onde se passa tudo isso? Dentro de nos, como se fossem meras recordações? No entanto, nossos olhos se mexem por baixo das pálpebras, como se acompanhassem o desenrolar de algo muito real, que estivessem vendo. Sim, o sonho e uma realidade real, embora uma realidade de nível diverso da realidade concreta, física, externa; trata-se de uma realidade interna do sonhador, muitas vezes decisiva para a sua realidade externa. Acontece que a nossa realidade mais pessoal não se reduz ao nosso simples eu consciente, aquele que faz e acontece o dia inteiro, quando estamos acordados. Esse eu e apenas o centro de nossa parte consciente, ou seja, apenas 5% a 10% da totalidade do nosso ser. Dizem que os grandes gênios chegam a ser 15% a 20% conscientes. E o resto? O que são os 95% ou 90% de nos, ou, no caso do gênio, 85% a 80%? Os estudiosos o chamam de inconsciente, palavra cientifica e aceitável para dizer simplesmente “o que não conhecemos”. Mas ele existe, e como. Tem at’’e uma organização, o Si-mesmo, que ‘’e o centro e ao mesmo tempo a totalidade do nosso ser, incluindo sua parte consciente. Assim, os grandes místicos, principalmente os orientais, chamam o centro de nossa parte consciente de pequeno eu, e o centro da totalidade de nosso ser de Si-mesmo ou Grande Eu.


E o sonho, o que tem a ver com tudo isso? Simples: os sonhos são os recados que vem do nosso inconsciente, as mensagens do nosso Grande Eu para o nosso pequeno eu, este pequeno eu que s’’o se cala e se entrega para ouvir quando “se apaga” no domo ou, dizendo mais poeticamente, quando morre depois de toda as peripécias diárias. Isso já nos aponta para a importância do sonho. Ele manifesta o ponto de vista do Grande Eu sobre tudo o que o nosso pequeno eu pensa, diz e faz durante o dia ou, o que e bem mais serio, o que estamos vivendo numa determinada situação, período de vida ou ate em nossa vida inteira. E o Grande Eu age de tal forma no momento certo e com mensagens tão oportunas que acabamos concluindo que ele e um grande Sábio, que entende não só da nossa vida, mas também da vida de toda a humanidade. Por isso os antigos diziam que os sonhos trazem mensagens de Deus. Hoje, seguindo a instituição bíblica, dizemos que eles provem do Si-mesmo ou Grande Eu, isto ‘’e, o nosso ser tal qual foi projetado desde o inicio, “a imagem e semelhança” do próprio Deus (Gênesis I, 26-27). Assim, a cada sonho que temos recebemos uma mensagem de fora, mas de dentro de nos mesmos, do centro divino que habita no mais fundo do nosso ser. Todavia, se preferirmos números, o sonho representa a mensagem que 90% a 95% do nosso ser manda para os minguados 5% a 10%. O que, para quem entende de contas, não e de desprezar. Sensatos são aqueles que dão atenção aos seus próprios sonhos. O sonho, portanto, exprime a relação que existe entre o nosso Grande Eu e o nosso pequeno eu. Devido a desproporção que há entre eles, o sonho sempre terá uma função compensatória, como naquela experiência dos vasos comunicantes: o que esta mais cheio flui para o mais vazio, procurando produzir o equilíbrio. Em outras palavras, o sonho revela o processo compensatório que existe entre o consciente e o inconsciente. E necessária tal compensação? E, porque, com o nascimento da consciência, houve uma ruptura do nosso ser, ficando uma parte consciente, centrada no pequeno eu (5% a 10%), e a outra parte inconsciente, centrada no Grande Eu (95 a 90%). Para sanar a ruptura e nos tornarmos inteiros, e preciso que haja uma ponte que religue as duas partes. Essa ponte e formada pelas grandes religiões, as quais os sonhos são tão importantes, e pela nossa atitude religiosa, ou seja, de abertura do nosso pequeno eu em busca do Centro ou Si-mesmo, que nos responde por lampejos de intuição ou por meio dos nossos sonhos. As religiões, portanto, podem se vistas como grandes processos terapêuticos, como maiôs de curar a ruptura e restabelecer a ligação entre nosso pequeno eu e nosso Grande Eu, que elas chamam de Mistério, de Deus ou de “Deus em nos”. Na religião judaico-crista ele e a própria “imagem e semelhança de Deus” no âmago do nosso ser (Gênesis 1, 26-27). Resta, porem, uma dificuldade: como entender as mensagens que vem a nos pelos sonhos? Estamos acostumados com palavras, mas a linguagem do inconsciente faz uso das imagens e os sonhos se apresentam como imagens, a semelhança das escritas antigas, pictóricas ou ideográficas. E preciso que voltemos a contemplar e a cultivar as imagens, deixando que elas penetrem em nos ate se transformarem em significados que possamos conceituar em palavras e ação. Daí que os sonhos nos deixam tarefas. A primeira e estarmos abertos, dispostos a recebe-los. A segunda e tornarmo-nos amigos deles, contemplando suas imagens ou revivendo e continuando a historia sonhada, aquilo que fazemos quando vemos uma pintura, ao procurar compreender o que o pintor queria dizer, o que aquele quadro diz para a nossa vida. Seguindo um processo compensatório, portanto, o sonho se reveste de muitas funções. Ele pode ser redutor, para reduzir as pretensões descabidas do nosso pequeno eu. Pode ser ampliador, quando estamos vivendo muito aquém das nossas reais possibilidades.


Pode ser corretor, quando temos opiniões unilaterais ou erradas a respeito de determinadas pessoas, de nós mesmos ou de situações que estamos vivendo. Pode ser auxiliador, mostrando-nos aspectos que deixamos de considerar em nossos julgamentos e opiniões. Às vezes atua como profeta, espelhando as conseqüências futuras daquilo que estamos vivendo agora. Outras vezes transforma-se em revisor, levando-nos a determinados momentos ou situações de nossa vida passada, como a dizer: “Agora é importante que você compreenda isto!”. Pode se tornar presente como conselheiro, fazendo-nos ver o verdadeiro porte de um projeto que estamos iniciando, ou até mostrar um projeto mais frutífero para a nossa realização. E outras funções mais. Há os pesadelos, dos quais acordamos suados, arfando, o coração batendo. Por quê? Porque o sonho é muito importante e por isso nos dá um “puxão de orelhas”, chamando a atenção: “Preste bem atenção nisto!”. Às vezes temos sonhos que sempre se repetem, isso porque são importantes e ainda não atinamos com o seu verdadeiro significado. É como se tivéssemos de reler muitas vezes a mesma página de um livro, até compreendermos o seu significado e tomarmos, conseqüentemente, uma atitude adequada, de acordo com a indicação ou orientação do sonho. O Grande Eu não suporta a leviandade ou a superficialidade do pequeno eu, e tem seus meios de chamar a atenção, dando-nos um tapa (pesadelo) ou “pondo minhocas” que nos perturbam até que compreendamos e façamos alguma coisa. Há, porém, o caso de um tipo especialíssimo de sonho. Ele provém de camadas mais profundas do inconsciente, daquela camada que C.G. Jung chamou de inconsciente coletivo, formada pelos arquétipos, que são predisposições inatas na humanidade de produzir imagens que representam os fundamentos ou as raízes do ser, no caso, o ser humano. Esses sonhos costumam ocorrer quando há uma compensação profunda a ser feita,quando o indivíduo está vivendo uma vida unilateral demais. É como se o sonho dissesse: “Olhe bem estas imagens a fim de reorganizar por completo toda a vida que você está levando!”. Como são sonhos fundamentais, eles podem estar apontando não só para a vida pessoal do sonhador, mas também pra a vida do grupo humano ao qual ele pertence. É característica nesses sonhos a presença de imagens que vamos encontrar nas culturas, mitologias e religiões de povos muito antigos, às vezes dos quais nem ouvimos falar. Para serem corretamente interpretados, exigem muito conhecimento de história, etnologia, antropologia, mitologia e religião comparada. Às vezes uma nova cultura ou religião nasce graças a um desses sonhos. Certas tribos indígenas os chamam de “grandes sonhos”, e quem tem um “grande sonho” é convocado para uma reunião de toda a tribo, a fim de que todos ouçam o sonho e, juntos, o interpretem – pois eles sabem que o sonho é coletivo, isto é, traz orientações fundamentais para toda a tribo. Tudo isso nos faz pensar que cada indivíduo e toda a humanidade têm, no mais fundo de si mesmos, um mecanismo regulador que entra em ação toda vez que um determinado povo ou grupo humano está se tornando unilateral demais e perigosamente se afastando das raízes do humano. Embora hoje em dia tais sonhos não dêem origem a novas religiões, estas, porém, graças a eles, podem se renovar e se readaptar aos desafios de novos tempos, oferecendo caminhos para que a humanidade não perca de vista o horizonte da realização de si mesma. É como se a matriz original do humano neles se manifestasse, a fim de reavivar e reorientar a longa marcha da humanidade na consecução do seu próprio destino. Quando tudo parece estar perdido e o pequeno eu nada mais consegue fazer, surge um “grande sonho” que mostra o caminho para reorganizar o caos e criar vida nova, tanto para o indivíduo como para o grupo ao qual ele pertence. Não é isso o que as religiões chamam de “providência divina”? Quando tudo


vai bem, Deus nunca se intromete sem ser invocado; contudo, quando é necessitado, sempre se manifesta, mesmo que não tenha sido chamado. Todavia, não podemos ficar na literalidade ao considerar um sonho. Se sonhamos que estamos morrendo, isso é um modo figurado de aludir a uma morte do pequeno eu: uma forma antiga morre para ressuscitar de forma nova, transformando o modo de viver do pequeno eu. Esse tipo de sonho indica transformação,portanto. Por outro lado, se o sonho nos mostra matando alguém, ele não quer dizer que devamos mata-lo fisicamente, mas figuradamente matar (ou neutralizar) a influência desse alguém sobre nós. Precaução, portanto, pois passar diretamente da imagem à ação nem sempre dá certo. Primeiro é preciso compreender o que a imagem está querendo transmitir. E tudo, no sonho, retrata aspectos subjetivos de nós próprios: mesmo as pessoas conhecidas que neles aparecem são figuras simbólicas de aspectos nosso. Os sonhos objetivos, que se referem ao mundo exterior, também existem, mas são tão raros que se apresentam como exceção, às vezes muito difícil de verificar. Portanto,usar os próprios sonhos para “dar avisos” ao outros no mais das vezes só nos afasta do verdadeiro significado que eles têm para nós. Em geral “a pílula amarga” é par anos mesmos... e não devemos fugir da crítica que o Grande Eu está fazendo a respeito de nossa vida. Melhor do que falar do sonho, porém, é sonhar. Sonhar, por exemplo, que amanhã o dia será melhor porque o sonho desta noite nos tornará melhores para viver o amanhã, sempre confiando que novos sonhos nos ensinarão a dar novos e mais acertados passos no caminho de nos tornarmos, afinal, quem nós somos. E o que somos nós? Talvez ainda descubramos que toda a nossa vida é a realização desperta e consciente do sonho que o Grande Eu tem sobre cada um de nós: ele nos sonha e nós procuramos realizar concretamente o seu sonho. Quem sabe seria essa, afinal, a nossa vida humana mais genuína. Pode ser esse o destino de toda a criação. Não diz a primeira página da Bíblia que Deus criou tudo e depois “descansou”? (Gênesis 2,2-3). Ocorre-me, então, um pensamento atrevido: quem sabe Deus tenha adormecido e esteja sonhando, e a tarefa de toda a criação e a da humanidade, principalmente, seja a de viver realizando o sonho dele. Seu sonho se reflete pouco a pouco em nossos próprios sonhos, levando-nos a descobrir a suprema maravilha que é Deus se manifestando em nós e através de nós, até se tomar, finalmente, “tudo em todos” (I Coríntios 15,28). Ivo Storniolo é biblista formado no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, editor, autor e tradutor de várias publicações, além de estudiosos de textos e de psicologia junguiana.


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