MENSAGEM DO DIA DO ENFERMO 2004 A Jornada Mundial do Enfermo, celebração que anualmente acontece em um continente diferente, assume nesta ocasião um significado singular. Será celebrada em Lourdes, França, localidade na qual a Virgem apareceu em 11 de fevereiro de 1858, e que desde então se converteu em meta de muitas peregrinações. A Virgem quis manifestar naquela região montanhosa seu amor maternal especialmente aos que sofrem e aos enfermos. Desde então continua fazendo-se presente com constante esmero. Escolhe-se esse Santuário porque no ano de 2004 se celebram os 150 anos de proclamação do dogma da Imaculada Conceição. Era 8 de dezembro de 1854 quando meu predecessor de feliz memória, o Beato Pio IX, com a bula dogmática "inefabillis Deus", afirmou ser "relevada" por Deus a doutrina que afirma que a beatíssima Virgem Maria foi preservada, por particular graça é privilégio de Deus onipotente, em previsão dos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano, de toda mancha de pecado original desde o primeiro instante de sua concepção" (DS2803). Em Lourdes, Maria falando no dialeto do lugar disse: "Sou a Imaculada Conceição". Com essas palavras, não queria expressar talvez a Virgem esse laço que une com a saúde e a vida? Se pela culpa original entrou no mundo a morte, pelos méritos de Jesus Cristo, Deus preservou Maria de toda mancha de pecado, e nos deu a salvação e a vida (Cf. Romanos 5,12-21). O dogma da Imaculada Conceição nos introduz no coração do mistério da Criação e da Redenção (Cf. Efésios 1,4-12;3,9-11). Deus quis entregar à criatura humana a vida em abundância (Cf. João 10,10), condicionado, contudo, esta iniciativa sua a uma resposta livre e de amor. Ao rejeitar este dom com a descendência que levou ao pecado, o homem interrompeu tragicamente o diálogo vital com o Criador. Ao "sim" de Deus, fonte da plenitude da vida, se opôs o "não" do homem, motivado pela orgulhosa autosuficiência, precursora de morte (Cf. Romanos 5, 10). Toda humanidade ficou seriamente envolvida por este fechamento a Deus. Somente Maria de Nazaré, em previsão dos méritos de Cristo, foi concebida sem culpa original e aberta totalmente ao desígnio divino. Deste modo, o Pai celeste pôde realizar nela o projeto que tinha para os homens. A Imaculada Conceição precede o intercâmbio harmonioso entre o "sim", de Deus e o "sim" que Maria pronuncia com abandono total, quando o anjo lhe leva o anúncio celeste (Cf Lucas 1,38). Seu "sim", em nome da humanidade, volta a abrir ao mundo as portas do Paraíso, graças à encarnação do Verbo de Deus em seu seio, por obra do Espírito Santo (Cf. Lucas 1,35). O projeto originário da criação é restaurado deste modo e potencializado em Cristo, e nesse projeto encontra seu lugar também ela, a Virgem mãe. Aqui está a separação das águas da história: com a Imaculada Conceição de Maria começou a grande obra da Redenção, que aconteceu com o sangue precioso de Cristo. Nele toda pessoa é chamada a realizar-se em plenitude até a perfeição da santidade (Cf. Colossenses 1,28). A Imaculada Conceição é, portanto, a aurora prometedora do dia radiante de Cristo, que com sua morte e ressurreição, restabelecerá a plena harmonia entre Deus e a humanidade. Se Jesus é o manancial da vida que vence a morte, Maria é a mãe carinhosa que sai ao encontro das expectativas de seus filhos, obtendo para eles a saúde da alma e do corpo. Esta é a
mensagem que o Santuário de Lourdes apresenta constantemente a devotos e peregrinos. Este é também o significado das curas corporais e espirituais que se registram na gruta de Messabielle. Desde o dia da aparição a Bernadette Sopubirous, Maria "curou" nesse lugar dores e enfermidades, restituindo também a muitos filhos seus a saúde do corpo. Contudo, realizou prodígios muito mais surpreendentes no espírito dos fiéis, abrindo-lhes ao encontro com seu filho, Jesus, reposta autêntica às expectativas mais profundas do coração humano. O Espírito Santo, que a cobriu com sua sombra no momento da Encarnação do Verbo, transforma o espírito de inumeráveis enfermos que recorrem a Ela. Inclusive quando não alcançavam o dom da saúde corporal, podem receber sempre outro bem muito mais importante: a conversão do coração, fonte de paz e de alegria interior. Este dom transforma sua existência e lhes faz apóstolos da cruz de Cristo, estandarte de esperança, apesar das provas mais duras e difíceis. Na carta apostólica "Salvifie doloris" observava que o sofrimento pertence à fragilidade histórica do homem, que tem que aprender a aceitá-lo para superá-lo (Cf. n. 2: AAS 576 (1984), 202). Mas, como pode consegui-lo se não é graças à Cruz de Cristo? Na morte e ressurreição do Redentor, o sofrimento humano encontra seu significado mais profundo e seu valor salvífico. Todo peso de atribulações e dores da humanidade está condensado no mistério de um Deus que, assumindo nossa natureza humana, se aniquilou até fazer-se " pecado por nós" (2Cor 5,21). No Gólgota, carregou as culpas de toda criatura humana e, na solidão do abandono, gritou ao Pai: "Por que me abandonaste?" (Mateus 27,46). Do paradoxo da Cruz surge a reposta para nossas interrogações mais inquietantes. Cristo sofre por nós: carrega sobre si o sofrimento de todos e nos redime. Cristo sofre conosco, dando-nos a possibilidade de partilhar com Ele nossos sofrimentos. Unido ao de Cristo, o sofrimento humano se converte em meio de salvação. Por este motivo o crente pode dizer como São Paulo: "me alegro pelos sofrimentos que suporto por vós, e completo em minha carne o que falta às tribulações de Cristo, em favor de Seu Corpo, que é a Igreja" (Col 1,24). A dor, acolhida com fé, se converte na porta para entrar no mistério do sofrimento redentor do Senhor. Um sofrimento que já não tira a paz e a felicidade, pois está iluminado pelo fulgor da ressurreição. Aos pés da Cruz, sofre em silêncio Maria, participando de maneira especial dos sofrimentos do Filho, e se constitui um mãe da humanidade, disposta a interceder para que toda pessoa possa obter a salvação (Cf. João Paulo II, carta apostólica "Salvifici doloris" (11de fevereiro de 1984), 25: AAS 76 (1984), 235-238). Em Lourdes não é difícil compreender esta participação singular da Virgem no papel salvífico de Cristo. O prodígio da Imaculada Conceição recorda aos crentes uma verdade fundamental: somente é possível alcançar a salvação participando docilmente do projeto do Pai, que quis redimir o mundo através da morte e da ressurreição de seu Filho Unigênito. Com o batismo, o crente é integrado neste desígnio de salvação e é liberado da culpa original. A enfermidade e a morte, se seguem presentes na existência humana, perdem contudo seu sentido negativo. À luz de fé, a morte do corpo, vencida pela de Cristo (Cf. Romanos 6,4). converte-se em transição obrigatória para a plenitude da vida imortal.
Nossa época deu grandes pessoas no conhecimentos científico da vida, dom fundamental de Deus do qual somos seus administradores. A vida deve ser acolhida, respeitada e defendida desde seu início até seu acaso natural. Junto a ela, deve ser tutelada a família, meio de toda vida que nasce. Fala-se já comumente de "engenharia genética" para aludir às extraordinárias possibilidades que a ciência oferece hoje para intervir sobre as fontes mesmas da vida. Todo o progresso autêntico nesse campo não pode deixar de ser alentado, na condição de que respeite sempre os direitos e a dignidade de pessoa desde sua concepção. Ninguém, de fato, pode designarse a faculdade de destruir ou de manipular de maneira indiscriminada a vida do ser humano. Os agentes no campo da Pastoral da Saúde têm a tarefa específica de sensibilizar a todos que trabalham neste delicado setor para que se sintam comprometidos a colocar-se sempre a serviço da vida. Por ocasião da Jornada Mundial do Enfermo desejo agradecer todos os agentes da pastoral da saúde, em particular os bispos que nas diferentes conferências episcopais atendem a este setor, os capelães, os párocos e os demais sacerdotes comprometidos neste âmbito, as ordens e congregações religiosas, os voluntários e todos que não se cansam de oferecer seu testemunho coerente da morte e ressurreição do Senhor ante os sofrimentos, a dor e a morte. Quisera estender meu reconhecimento aos agentes sanitários, ao pessoal médico e paramédico, aos pesquisadores, em especial aos que se dedicam à descoberta de novos medicamentos, e àqueles que produzem medicamentos acessíveis aos que têm menos possibilidades. Confio-lhes à Virgem Santíssima, venerada no Santuário de Lourdes sua imaculada Conceição. Que ela ajude todo o cristão a testemunhar que a única resposta autêntica à dor, ao sofrimento e à morte é Cristo, nosso Senhor, morto e ressuscitado por nós. Com estes desejos, envio-lhe, venerado irmão, e todos os que participam da celebração da Jornada do Enfermo, uma especial bênção apostólica. Joannes Paulus II
PLANEJANDO 2004 É pessoal! Acabaram as festas. Agora, é curtir o restante das férias e retomar as atividades. Por isso, enquanto desfrutamos desse tempo gostoso, vamos programando o futuro. O ano de 2003 foi um ano bastante corrido o ICAPS realizou congressos, cursos palestras e dias de formação. Atendeu vários pedidos de hospitais paróquias e dioceses. Contamos com a participação dos padres, religiosos e seminaristas camilianos, padres diocesanos e principalmente com a colaboração dos leigos que, direta ou indiretamente colaboraram para que a maioria desses eventos fossem realizados. Agradecemos a Província Camiliana Brasileira, a Sociedade Beneficente São Camilo e a União Social Camiliana pelos recursos humanos, e, principalmente financeiros que contribuíram, decisivamente, para a realização de muitas atividades pastorais.
Em 2004, o ICAPS, em conjunto com Coordenação Nacional da Pastoral da Saúde da CNBB, continuará atendendo os diversos pedidos das dioceses, paróquias e hospitais para realização de congressos, cursos, dia de formação e palestras sobre pastoral da saúde. Lembramos que muitos já marcaram as datas dos cursos e congressos. E por falar em congresso, o XXIV Congresso Brasileiro de Humanização e Pastoral da Saúde deverá acontecer, em São Paulo, nos dias 11 e 12 de setembro.
DIGNIDADE HUMANA: META ÚLTIMA DE UM CAPELÃO AUGUSTO VILA CHÃ (texto escrito por um Português) A pedido do Diretor desta excelente revista de espiritualidade inaciana, avanço com uma partilha da experiência de 24 anos, feita enquanto Capelão do hospital de São Marcos, Braga. A esse saber podem juntar-se mais onze anos (antecedentes) de visitas a enfermarias. Tenho uma certa dificuldade em fazer esta partilha convosco, mas vou fazê-la, com simplicidade evangélica. Para trabalhar, com espírito apostólico, no mundo da saúde é preciso ter vocação. Apesar de 35 anos de doação neste mister, com os doentes, familiares e profissionais, ainda continuo a pensar que é difícil e se, em algumas situações, terei agido de modo conveniente. É que o trabalho num hospital é bem diferente daquele que é efectuado numa outra paróquia, devido às características específicas que assume uma paróquia itinerante. Numa paróquia normal, sabemos que os que passam por ali são sempre os mesmos e que possuem a fé, pelos menos sociológica. Por um hospital, passa todo o gênero de gente, quer a nível de educação, de cultura cívica e religiosa, mesmo num ambiente impessoal. Trata-se dum lugar teológico onde temos a oportunidade de ajudar as pessoas a encontrar o sentido para a vida. Para isso, exige-se uma preparação adequada no referente a certas ciências humanas. Na aquisição de conhecimentos, o caminho faz-se andando e nunca finda. A frequência do Instituto Internacional de Teologia de Pastoral da Saúde, Camillianum, Roma e a participação em Cursos de Pastoral da Saúde, em Otawa, Canadá, e em Madrid, permitiram-me consolidar conhecimentos anteriormente adquiridos, com o necessário aprofundamento da temática. Presença do Capelão junto do doente Revela-se sempre imprevisível, a abordagem do outro, a relação em diálogo entre eu e tu, face a face, sem que o «tu» se torne objecto e passe a «isso». No primeiro encontro com o outro, devemos ter muito cuidado, por se tratar dum ser desconhecido, mostrar abertura simpática, a fim de esta provocar empatia com o que vamos falar e como vamos agir. Neste caso, a vontade de fazer muitas perguntas e de dar certo tipo de respostas pode cortar o diálogo e, consequentemente, não haver simpatia. Para que um diálogo seja de ajuda, é preciso que antes de tudo transmita compreensão. Ou seja, mais que explicações teóricas, o Capelão deve
comunicar ao doente, à sua família, que está disposto a compreender o seu mundo interior. Compreender o outro não apenas racionalmente, mas com o coração. A ideia mestra da vida é a dignidade da pessoa humana, simbolizada no rosto de cada um e na liberdade criadora. A acção deve pautar-se por «andar» pelo interior do outro com a sensação de que estamos dentro do nosso próprio eu. A dificuldade que o Capelão tem, ao abordar os utentes que dão entrada no hospital, em situações críticas, causada pela sua história pessoal ou familiar, é evidente no seu apostolado. A preocupação exagerada em falar de religião pode, até, bloquear o diálogo. Principalmente, se nos colocarmos como donos da verdade e da salvação. Se não formos capazes de sentir, ouvir e de acreditar que o outro também tem algo a ensinar-nos, dificilmente conseguiremos estabelecer uma relação empática. E nos momentos difíceis precisam muito mais da nossa empatia do que da nossa teologia. Neste sentido, tenho uma devoção singular ao «Sacramento da Presença», sem deixar de ter em conta as outras dimensões sacramentais. Por isso, defendo que devemos ter uma pastoral de presença, de disponibilidade constante. Nos Estados Unidos, cada Capelão tem 100 camas. No Canadá tem 120. Na Espanha tem 150. No caso do hospital de Braga, dois Capelães têm cerca de 600 camas sob a sua alçada, isto é, 300 cada um, o que dificulta um bom atendimento. Não nos consideramos omnipotentes e omnipresentes para poder atender os pedidos que constantemente nos reclamam familiares e até alguns amigos. Por vezes, há exigências que são incompatíveis com a nossa presença libertadora. Não ceder ao sacramentalismo Em algumas pessoas impera, ainda e fortemente, um tipo de sacramentalismo que nos é exigido apenas à ultima hora. Mas os sacramentos têm de ser celebrados com o mínimo de dignidade e em clima de festa. Devese evitar o rito litúrgico que não exprima um acto de Fé pessoal. Mais importante ainda: na celebração dos Sacramentos (Penitência, Comunhão, Unção dos doentes ) deve-se evitar toda a aparência de magia e de superstição. Por princípio, procuro passar todos os dias junto dos doentes, fazendo uma espécie de sondagem àqueles que, na primeira abordagem, deram mostras de quererem algo mais. Depois, volto pela segunda vez, sem pressas e com pausa, para poder dialogar com certas pessoas que têm necessidade de falar com mais profundidade, ouvindo-as com atenção e respeito. A Pastoral adoptada neste Hospital situa-se na linha de uma Medicina Preventiva Espiritual e não de um «pronto-socorro» espiritual. A dimensão espiritual ajuda muito a recuperar plenamente o doente. O cansaço, ao final do dia, é compreensível em toda a gente que trabalha num hospital, devido à sobrecarga anímica a que estão constantemente sujeitos. Por experiência, tenho consciência da necessidade dum suplemento de forças que procuro adquirir através do contacto simples, pueril, junto do Sacrário.
Durante estes 24 anos no hospital, sinto-me em família com todas as pessoas que ali trabalham. Todos têm sido acolhedores para comigo, independentemente da crença. Por vezes, as complicações surgem das famílias dos doentes, porque têm enraizada a ideia de que o Capelão deve aparecer apenas nos momentos finais da vida, e a sua presença é, muitas vezes, vista como uma fatal profecia. É, certamente, desejável estarmos presentes nesse momento. Por isso, procura-se adoptar uma medicina preventiva e não curativa, logo que o doente entra no hospital. Da nossa parte, é necessário muita delicadeza, quando nos aproximamos dos doentes e seus familiares que se encontram em situações frágeis. Há que ter em conta também as «passividade» do agente da pastoral, como nos diz o Padre Teilhard de Chardin. Formação para a Pastoral da Saúde Entre as acções que têm sido desenvolvidas, no sentido de melhor esclarecer o papel do Capelão e da Pastoral da Saúde, destaca-se o Boletim Carta do Amigo, editado há 27 anos e que ajuda muito a evangelizar os doentes, os profissionais de saúde e familiares. Foram também organizadas vinte e três Jornadas diocesanas da Pastoral da Saúde, dois Congressos Internacionais (com a duração de oito dias cada) e um Seminário sobre o Sofrimento do doente. São promovidas leituras multidisciplinares, Exercícios Espirituais na vida corrente para doentes crónicos, Retiros para doentes em Soutelo, efectuados ao longo de muitos anos. Foi, ainda, editado o livro com o título «O Mundo da Saúde: Um Apaixonante Desafio», compêndio que tem revelado uma grande utilidade na formação das pessoas que trabalham neste sector, sob o ponto de vista evangélico. A nossa presença na Comissão de Ética e na Comissão de Humanização do Hospital de São Marcos é de suma importância. Considero, também, muito interessante o trabalho no Serviço de Psiquiatria, em Gualtar (junto da Universidade do Minho), extensão do Hospital de São Marcos. Aspecto não despiciendo e digno de destaque é o trabalho que, ao longo de todos estes anos, tem sido desenvolvido por um Voluntariado adequado ao Serviço Religioso, constituído por leigos vocacionados para este sector hospitalar. Mas a lição que se deve retirar é a de que o sacerdote não impõe nada a ninguém. Propõe a salvação em Jesus Cristo, obedecendo ao seu preceito: «Ide, anunciai a Boa Nova a todas gentes». Se um doente não é católico, existe o dever de chamar o ministro da sua religião, se o doente o pede. Se o doente se confessa ateu, é dever dos crentes que lidam com ele mostrar, com o próprio exemplo de bondade, que a religião não é uma coisa alienante, mas algo de muito concreto com implicações muito sérias na vida. Acresce que a própria situação de doente facilita o pensamento na brevidade da vida e na fragilidade de tudo quanto nos conduz ao Absoluto: DEUS. Augusto Vila-Chã, é capelão e trabalha em Lisboa - Portugal.
CERCANDO A DOR JÚLIO MUNARO A constitui-se companheira inseparável do ser humano ao longo de toda sua tragetória terrestre. A criança nasce chorando e o ancião morre lacremejando. As exceções à dor não constituem vantagem. Antes, são um perigo. A dor, sempre indesejada, é, ao mesmo tempo, um bem e um mal. Um bem enquanto denuncia que algo não funciona bem no organismo. Quando o mecanismo da dor silencia, como no caso de pressão arterial alta, a pessoa não adverte a ameaça de derrame ou de enfarte, obrigando-a a tomar medidas para suprir o papel da dor. Isso também acontece com certos tipos de câncer ou de outras moléstias. Instalam-se e progridem sem dor e quando se descobre sua presença pode ser tarde para controla-las. São as chamadas doenças silenciosas. A ausência de dor tornou-se inimiga da vida. Faz-se necessário supri-la através de exames preventivos. Pouquíssimas pessoas nascem desprovidas de sensibilidade à dor. Trata-se de deficiência, não de vantagem. Essa falta de sensibilidade à dor leva o nome de analgesia. É doença incurável, causadora de graves problemas. A criança pode morder a língua ou machucar-se, ter câncer e tudo passa despercebido. Os posicionamentos religiosos, filosóficos e científicos diante da dor variaram muito ao longo da história. Neste ponto, a civilização ocidental foi influenciada por duas correntes de pensamentos: a corrente filosófica e científica da Grécia e de Roma; e a corrente religiosa judaico-cristã. Para os gregos e romanos a dor é um fenômeno natural, quase uma fatalidade, impossível de ser eliminada. Ao ser humano não resta mais que submeter-se a ela. Aceitá-la sem revolta para não agravar suas conseqüências. O máximo que pode fazer é contorná-la com os meios que a própria natureza oferece. Hipócrates, o pai da medicina científica, considerava o alívio da dor a missão mais sublime da medicina. Judeus e cristãos interpretaram a dor não como parte da natureza, mas como fruto do pecado. Eliminando o pecado, seria eliminada também a dor. Mas isso acontecerá no fim dos tempos, não antes. Com esta conotação religiosa, a dor assume um papel purificador. Não deve ser eliminada, mas assumida com fé. Tem valor transcendente. O mundo moderno, com seus conhecimentos científicos e técnicos, desvinculou a natureza de concepções filosóficas e religiosas e passou a encarar a dor como um fenômeno estritamente natural. A partir dessa visão, cabe à ciência compreender a dor e descobrir meios para controlá-la em sua parte negativa, sem impedir que desempenhe seu papel positivo. O passo mais significativo contra a dor foi a descoberta da anestesia, por volta de 1840. A primeira cirurgia realizada com sua ajuda só aconteceu em 1846. Antes disso, a dor impossibilitava qualquer cirurgia interna, mesmo as que hoje consideramos muito simples, como a cirurgia para extrair o apêndice inflamado. Imaginemos um transplante de coração sem anestesia! Graças ao
controle da dor, a cirurgia progrediu de forma extraordinária, salvou e continua salvando vidas sem conta. A anestesia se restringe a situações bem determinadas de controle da dor. Mas a ciência e a técnica não se detiveram na anestesia. Cercaram a dor de todos os lados através de produtos químicos que se tornaram de uso qu ase natural. Mulheres e homens carregam consigo comprimidos de aspirina ou outros contra a dor. Estão à venda em qualquer farmácia do mundo. Poucos sabem, porém, que a descoberta da aspirina, o primeiro analgésico eficaz contra a dor, só aconteceu em 1897. Antes da anestesia, da aspirina e do que veio depois, a dor corria solta. A indústria farmacêutica movimenta, anualmente, dezenas e mais de dezenas de bilhões de dólares na produção e venda de drogas contra a dor. Por outro lado, estima-se que a queda de produção e as ausências de trabalho por causa da dor provoquem, todos os anos, perdas de mais de 100 bilhões de dólares só nos USA. E no Brasil? Mas recentemente, o combate à dor tornou-se especialidade médica, com clínicas e profissionais altamente qualificados. No mundo desenvolvido, esses centros são milhares e também no Brasil proliferam. Hoje, o combate à dor prescinde de considerações filosóficas e religiosas. Júlio Munaro, padre camiliano, Coordenador da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de São Paulo. REMÉDIOS SÃO BONS? Foi uma tentação. Cansada de sofrer com a artrite, inflamação das articulares, a dona de casa paulista Otíli Antunes Lima, 75 anos, se rendeu às maravilhas ditas na TV sobre a cartilhagem de tubarão e decidiu comprar. Foram 176 reais por 200 cápsulas da marca Nutrisharl. Mas quando o produto chegou, pelo correio, a filha de dona Otília, Adair, já tinha lido denúncias de que o precioso remédio era pura farinha de trigo. E resolveu reclamar o dinheiro de volta na Procuradoria de Defesa do Consumidor (Procon). Como dona Otília, gente do país inteiro é iludida, todos os dias, por anúncios de remédios, chás e cosméticos que prometem o impossível, embora poucos sejam ressarcidos do prejuízo, como ela foi. Para atingir seus objetivos vender seus produtos os comerciais ainda usam o nome da ciência. Pesquisas interpretadas de maneiras estapafúrdias, estudos superados e investigações ainda em andamento servem de esteio para mentiras homéricas. O caso da cartilagem é exemplar. Ela ganhou fama a partir de 1976, quando pesquisadores americanos isolaram duas de suas proteínas e observaram que elas tinham a capacidade de reduzir o câncer em ratos. A boa notícia acabou se tornando um perigo dandao. Transformada em panacéia, a cartilagem hoje é indicada para tudo em anúncios na televisão: artrite, osteoporose, câncer, diabetes, reumatismo e doenças do coração. O que a propaganda não diz é que a substância ainda está em estudos. E só no que diz respeito ao câncer. Sem contar que não há resultados sobre a suas atuação em humanos. Todo resto é pura invenção Veneno também pode ser 100% De tanto ver mulheres com osteoporose trocando convencionais pela cartilagem de tubarão, o médico Nelson Menda, da Sociedade Brasileira de
Ortopedia, do Rio de Janeiro, resolveu encomendar análises de duas marcas (Cartilife e Nutrishark). Entregou a tarefa ao renomado Instituto Nacional de Tecnologia, do Ministério da Ciência e Tecnologia, e descobriu o que já desconfiava: a quantidade de cálcio (fundamental no tratamento da doença) era muito inferior à prometida. "Para suprir a necessidade diária do organismo com esses produtos, seria necessário tomar de sessenta a noventa cápsulas por dia". Mesmo que não houvesse fraude, a propaganda mentirosa já seria suficiente para levar a consequências sérias. "Tive pacientes diabéticos que pioraram porque pararam a reposição de insulina para tomar cartilagem", afirma o endocrinologista Fadlo Fraige Filho, presidente da Associação Nacional de Assistência ao Diabético, em São Paulo. Vítimas de doenças crônicas são alvo fácil para os vendedores de ilusões. "É que eles prometem fazer milagres com produtos 100% naturais que, teoricamente, não fazem mal", alerta Fraige Filho. Muitos não fazem o mesmo. Nem mal, nem bem. Outros possuem, sim, efeito colateral", diz o farmacologista Paulo Chanel da Universidade de São Paulo. Veja o caso do confrei. Largamente propagandeado para tratar úlcera, artrite, infecções e problemas de fígado, descobriu-se depois que a ingestão do chá ou da falha por períodos prolongados, em torno de dez anos, provocava o aparecimento de câncer. E no fígado. Para uso externo, como cicatrizante, a planta não tem efeitos colaterais. Antecedentes do gênero preocupam os médicos. Recentemente, uma planta européia conhecida como erva-de-são-joão passou a ser vendida para o tratamento da depressão. De fato, há estudos que comprovam sua eficácia em casos leves e moderados. Coisas como uma tristeza persistente. Ocorre que só um médico pode fazer essa avaliação. "Meu receio é que pacientes graves abandonem os medicamentos convencionais", diz o psiquiatra Wagner Gattaz, da Universidade de São Paulo. Outro complicador é que a planta pode intensificar o efeito de outras drogas antidepressivas, levando a crises de hipertensão. Se a prescrição é do médico, tudo bem, ele conhece o perigo. O problema é tomar o remédio por indicação da TV, pois o alerta que acompanha o produto é bem mais difícil de entender. Artigo extraído da revista Superinteressante de outubro de 1998