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A MISSÃO DA IGREJA EM RELAÇÃO AOS DOENTES BERNARD REY Para examinar como missão do Cristo salvador e curador continuou na Igreja veremos agora a prática da Igreja primitiva, tal como o Novo Testamento pode nos informar. Depois, nos interrogaremos sobre o que a Igreja pode levar para os doentes no contexto atual da medicina e da saúde. Examinaremos, enfim, a questão especifica dos carismas de cura. A primeira pratica crista Quando lemos o Novo Testamento, ficando atentos à cronologia dos textos, uma surpresa nos espera. As cartas de Paulo não contem nenhum relato de milagres. Ora, elas datam dos anos 50-60, enquanto os primeiros escritos evangélicos vem à luz a partir de 75, a obra de Lucas, Evangelho de Atos, é situada geralmente nos anos 80-90. A descrição dos Apóstolos Se esta pratica dos milagres fosse difundida na Igreja, teríamos disso algum eco nos primeiros escritos. Certamente, quando Paulo evoca os dons do Espírito Santo, ou carismas, que beneficiam as comunidades, menciona em quarto lugar os dons de cura e, depois destes, o de operar milagres (1Cor 12,9-10), mas não dispomos de nenhuma informação sobre como os carismas eram exercidos, o que é um sinal de certa discrição. Estes não eram certamente o centro das preocupações de Paulo, nem dos autores das epístolas de Pedro e de João. Entretanto, a epístola de Tiago faz um apelo à oração pelos doentes com a menção de um rito. Alguém de vocês esta doente? Mande chamar os presbíteros da Igreja para que rezem por ele, ungido-o com óleo em nome do senhor. A oração feita com fé salva o doente: o Senhor o levantará, e se tiver pecado será perdoado. Confessem mutuamente os próprios pecados e rezem uns pelos outros para serem curados ( Tg 5, 14-16). Este texto é importante por tratar-se, na Igreja, da principal refêrencia para justificar a sacramentalidade da Unção dos Enfermos. Não estamos diante de um relato de milagre, mas na presença de uma prescrição litúrgica que precisa o limite e as modalidades de uma prática ritual, a de uma unção com óleo, considerada remédio de vida, e além disso com referência ao Cristo ressuscitado. É “em nome do Senhor” que a Igreja age. O vocabulário é precioso. Não se diz que o doente é curado, mas ele é salvo em toda sua pessoa; ele é recuperado e incluído em sua relação com Deus, donde a menção ao perdão dos pecados. A palavra recuperar não diz respeito somente ao retorno da saúde física, mas evoca o acesso à vida da graça em Cristo que é “levantado dentre os mortos”. A insistência dos evangelistas A grande discrição dos escritos apostólicos sobre os milagres nas primeiras comunidades contrasta com a incidência dos evangelhos nos milagres de Jesus, sem esquecer aqueles dos discípulos que ele envia em missão (Mc 6, 13e16-18), insistência que encontramos nos Atos dos Apóstolos. Isto se explica pelo contexto


da segunda geração Cristã. As comunidades se tornaram mais numerosas e se desenvolveram no mundo helenista, onde se pratica numerosos cultos não desprovidos de ação miraculosa. Para estabelecer a autoridade de Jesus diante dos deuses pagãos, é capital confessá-lo claramente como Senhor e Salvador, e conceber um largo espaço a seus milagres. Isso não questiona a existência de milagres em Jesus, mas explica o lugar importante que eles ocupam nos Evangelhos. A história das tradições mostra, por outro lado, que os relatores tendem cada vez mais a evidenciar a origem divina do poder de Jesus. Os Atos dos Apóstolos procedem do mesmo modo, dando das origens do cristianismo uma visão suave e apresentando o apostolado conquistador dos apóstolos como uma seqüência da missão de Jesus, daí a presença de milagres na descrição do apostolado de Pedro e de Paulo. Os historiadores estão de acordo em afirmar que há uma distância entre a apresentação de Lucas nos Atos e o que as epístolas de Paulo nos dizem da realidade das comunidades mas, sobretudo, não incomodemos Lucas. Ainda frágeis em um mundo que as ameaçava, as comunidades encontravam grande esperança nesses relatos; o Apocalipse de João será redigido com motivações análogas: proclamar a indiscutível vitória de Cristo ressuscitado no seio da comunidade que enfrenta a perseguição. Seria um erro de método apelar aos Atos dos Apóstolos para justificar uma prática de cura na Igreja. Elas existiam, mas de maneira modestamente, como narram as epístolas. E não eram o mais importante: é no serviço aos irmãos, aos pobres e pela caridade que se possui a missão de Cristo. Para assegurar-nos disso é suficiente constatar que o hino da caridade (1 Cor 13) é colocado no meio de um desenvolvimento sobre a vida e a organização das comunidades ( 1 cor 12e14). O significado dos milagres para a Igreja A Igreja sempre aceitou que o exercício da caridade é o melhor testemunho da compaixão do Cristo pelos pequenos, por aqueles cuja vida se perde e entre os quais os doentes ocupam um lugar escolhido. Não é estranho que nos primeiros séculos que se seguiram aos tempos apostólicos não se fale do carisma de cura, como se ele fosse reservado ao período inicial. A compaixão do Cristo e da Igreja É verdade que os relatos de cura, notadamente atribuídos aos santos, percorrem a historia das religiões e também a da Igreja. Nem é menos certo que, na sua relação com os doentes, a Igreja se mostrou sempre fiel ao Cristo que os cura. Cristo veio buscar e salvar o que estava perdido, diz o evangelho, e a missão da Igreja é tornar atual esta vontade através da sua prática. Daí seu cuidado com pobres e doentes, sendo estes últimos, de alguma maneira, a figura paradigmática do pobre. Durante os séculos passados, quando a doença era, muitas vezes anunciadora de morte, os doentes em quem se exprimia a fraqueza da humanidade chamada à morte; com isso atraiam a atenção e a compaixão da Igreja. Deste ponto de vista, antes mesmo de falar da Igreja, podemos dizer que todo homem que se inclina sobre um doente faz um sinal do reino de Deus que


vem, como foi o caso do bom Samaritano da parábola, que Jesus apresenta como aquele que cumpriu o grande mandamento do amor ao próximo. Uma importância análoga deve ser dada aos esforços empregados para afastar a doença, sobretudo quando se busca atingir os mais desprovidos, como é o caso das ações humanitárias. A Igreja evidentemente sentiu-se enviada aos doentes para ser, junto deles, testemunha da compaixão de cristo e sabe-se que ela está na origem de numerosas instituições, inclusive hospitalares, inteiramente consagradas ao alívio e ao cuidado dos doentes. Visitar, cuidar, devotar-se à cabeceira dos doentes é, ainda hoje, fazer memória de Jesus que vem salvar a humanidade, é reencontrálo: “Eu estiva enfermo e me visitaste”, declara o filho do homem no Evangelho de Mateus ( 25,36). O desenvolvimento atual da Pastoral da Saúde quem tem viva consciência das ligações que podem existir entre saúde e salvação, testemunhada da missão recebida de Cristo que se encarrega não somente das doenças, mas dos doentes em todas as suas dimensões. Bernard Rey é teólogo

ÁGUA: REALIDADE DE VIDA E MORTE JOÃO BATISTA LIBÂNIO A Campanha da Fraternidade de 2004 toca tema extremamente abrangente e carregado de problemas. Estamos longe da concepção de São Francisco da irmã água “útil e humilde, preciosa e casta”. Hoje ela se transformou em fonte de luta, de batalhas comerciais, de interesses, alguns verdadeiros, outros espúrios e político-econômicos gigantescos. De muitos e diversos lugares brota um grito de S.ºS. em defesa da água. O movimento ecológico explora a evidência de que qualquer proteção e salvaguarda do meio ambiente passa pelo tratamento da questão da água. Não há nenhum tipo de vida vegetativa, animal ou humana para a qual a água salubre não seja absolutamente indispensável. A morte da água é a morte da vida. E o fim dos ecossistemas. É um ponto fundamental na luta ecológica. As Igrejas, com sentido social e evangélico, pensam pastorais em torno da água. Daí a escolha desse tema para a atual CF. O sonho da Igreja imagina uma ação conjunta necessária e inadiável de corpos sociais nacionais e internacionais, de estados e nações, para salvar o planeta terra e tornar o acesso à água saudável direito de todos os seres vivos. A realidade da água é paradoxal. Ela é abundante e escassa, realidade e mito, vida e morte. Abundante no nosso corpo com 70% de água, em igual proporção na superfície da terra em fontes, rios, mares e oceanos, nas profundezas do solo, nas alturas das nuvens. Escassa em alguns países e regiões, nos desertos, para as camadas pobres que não a possuem em qualidade e quantidade necessárias, 1,2 bilhão de pessoas não têm água potável; 2,4 bilhões não dispõem de serviços sanitários; 70% dos rios do Brasil estão contaminados, o rio São Francisco morre lentamente, os lençóis freáticos se contaminam rapidamente, a chuva não é aproveitada. A água é realidade. Está aí sob nossos olhos a explodir em cascatas. É mito disputado por interesses gigantescos.


A água veste-se de muito simbolismo religioso. Nas páginas da Escritura, aparece a água na dupla valência de morte e vida. No dilúvio, a água significa a morte e limpeza de toda maldade. Mas dessa destruição surge o ramo verde de vida que a pomba traz no seu bico. Deus estabelece a aliança noática, prometendo que nunca mais destruirá a humanidade. A epopéia da libertação da escravidão do Egito e a condução do povo através do deserto está entremeada pela presença da água. O mar se abre e Israel se salva. O mar se fecha e os egípicios, símbolo dos adversários, perecem. A sede pune o povo. A água do rochedo salva-o. Cria-se o mito da pedra, do poço que acompanha o povo de Israel para que nuca lhe falte água. Os profetas em suas visões descrevem abundantes águas brotando do templo. Mas o mais importante para nós, cristãos, é a água do batismo. João batiza na água o próprio Jesus. Os discípulos assumem o rito do batismo na água e no Espírito como expressa ordem de Jesus. Do lado aberto de Jesus, fluem água e sangue. A água na liturgia do batismo simboliza a dupla realidade fundamental desse sacramento: purificação e vida nova. Numa palavra, a CF 2004 abre enorme espaço para pensar a água na sua realidade paradoxal de vida e morte. Morte quando contaminada e quando expressão dos poderes do mal. Vida física, quando preservada, cuidada e bem administrada. Vida espiritual na simbologia sacramental. “Se alguém tem sede, venha a mim e beba, aquele que crê em mim”. Conforme disse a Escritura: “... do seu seio correrão rios de água viva” (Jo 7,37). João Batista Libânio – professor do CES da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, e autor de vários livros. (artigo extraído do Jornal de Opinião Fev/2004)

A MAIZENA, A COCA-COLA, A ARISCO E O AGENTE DE PASTORAL SAÚDE ANÍSIO BALDESSIN Que coisa mais estranha! Alguns já devem ter pensado: o que isso tem a ver com pastoral da saúde? Será que esse “camarada” está ganhando alguma coisa para fazer propaganda desses produtos. É, ele está no mínimo desatualizado. Pois, parece que a marca Arisco nem existe mais! Foi substituída pela ASSOLAM. Não importa. O que importa é que são produtos conhecidos por uma grande parte das pessoas, principalmente as mais idosas. Sempre que ouvimos falar da maizena, coca-cola e do arisco lembramos alguma coisa. Por exemplo, o que você lembra quando ouve falar de maisena? Certamente, mingau, pudim, bolo, enfim, uma série de receitas que nossas mães faziam quando éramos crianças. Além disso, temos em nossa mente a caixa amarela. Nunca a embalagem teve outra cor e sempre foi escrita com Z e não com S como deve ser o português correto. Mas, sobretudo, maizena lembra tradição. Sempre foi assim. Não podemos mudar. Imaginem que vamos quebrar a tradição. Tradição. Aqui está a primeira semelhança com a pastoral da saúde. Na pastoral da saúde temos muitos agentes “maizena”. Ou seja, que não admitem


mudanças. Sempre foi assim. Na Igreja e mais especificamente na nossa comunidade, sempre fizemos deste jeito e deu certo. Mudar pra que? Temos que manter a tradição, caso contrário correremos o risco de escandalizar as pessoas. A COCA-COLA. É sem dúvida um dos nomes mais conhecidos no planeta terra. Alguns afirmam que o nome Coca-cola é mais conhecido do Jesus Cristo. Quando ouvimos falar de coca-cola também lembramos de algumas coisas. Sede, pessoas bonitas, jovens em alto astral e principalmente, alegria. Coca-cola lembra alegria. Eu pelo menos, nunca assisti a uma propaganda de coca-cola sendo feita dentro de uma Igreja e muito menos num velório. Sempre em ambiente repleto de muita alegria. Alegria. Hoje, nos hospitais, existem os famosos “doutores da alegria”. Personagens inspirados no Path Adams do filme: O amor é contagioso. Na pastoral da saúde também temos os “agentes coca-cola”. Ou seja, para ele, tudo é alegria. Pensa que os problemas do sofrimento podem e devem, sempre, ser resolvidos através da alegria. Leva até o próprio doente, familiares ou profissionais a pensarem: está rindo do que? Confunde o doar-se e o servir com alegria, não sabendo que mesmo servindo com alegria o momento é de tristeza. ARISCO. Arisco é um outro produto famoso que atualmente, se não me falha memória está, como disse acima, está sendo substituído pela ASSOLAM. Quando ouvimos falar em arisco logo lembramos a marca que faz um pouco tudo. Tempero, extrato de tomate, palha de aço, doce. etc., O agente de pastoral “arisco”, o famoso faz de tudo um pouco, não é difícil de ser encontrado. Ele assume atividades em todas as pastorais existentes nas paróquias. Cada dia ou cada final de semana está num lugar. Imagina que sabe fazer de tudo um pouco. Por isso, deve desenvolver atividades pastorais em tudo quanto é lugar. Precisamos de todos Os três produtos, acima citados, bem como outros fazem parte do nosso dia-a-dia. O mesmo acontece com as pessoas. O cantor e compositor Beto Guedes na música “O sal da terra” diz: “vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão, para construir a vida nova vamos precisar de muito amor. Um mais um é sempre mais que dois. Pra melhor juntar as nossas forças é só repartir melhor o pão”. Tudo isso, poderíamos muito bem aplicar no trabalho pastoral. Pois, mais do que nunca, nesta pastoral, sempre vamos precisar de todo mundo. “Um mais um é sempre mais que dois”. Portanto, precisamos da tradição (maisena)? É claro que sim. Sem ela (tradição) muitos projetos começaram e ficaram no meio do caminho. Senão vejamos, quantas congregações religiosas, Igrejas, empresas, até as de grande porte, grupos voluntários, sociedades começaram e por não dar muita atenção à tradição acabaram sucumbindo. A lição é que não devemos ignorar a tradição. Logo, precisamos do “agente maizena”. Precisamos de alegria. Uma das características das pessoas que se dispõe a servir deve ser a alegria. Imaginemos alguém que se propõe visitar os doentes e o faz sempre com a cara amarrada e triste. Pois, quem é bom sorri. Mas quem faz com amor, faz o outro sorrir. Portanto, é importante que tenhamos o agente coca-


cola que mesmo atuando num ambiente marcado por tristeza é capaz de ver e promover momentos de alegria. Por fim, precisamos também do "arisco". Ou, seja, o faz de tudo um pouco. É importante para o grupo contar com alguém que tenha esse perfil. Pois, em muitos momentos, surgem dificuldades inesperadas que necessitam de soluções rápidas e pessoas disponíveis. Assim sendo, o “agente arisco” também é muito bem vindo ao grupo. Na pastoral da saúde mais do que "bons ingredientes" temos pessoas com algumas qualidades. Dentre elas podemos destacar a disponibilidade, boa vontade, dedicação, espírito de solidariedade. No entanto, sabemos que essas qualidades necessitam de algo muito importante que é a competência. Portanto, se conseguirmos aliar as qualidades com a aptidão para aprender, certamente, formaremos um bom grupo de agentes de pastoral da saúde. Anísio Baldessin, padre camiliano, capelão do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. DECTAR E TRATA PESSOAS COM RISCO DE SUICÍDIO ALEXANDRINA MARIA AUGUSTO DA SILVA MEDEIRO O provérbio popular “prevenir é melhor quer remediar” deve sempre ser lembrado, principalmente frente a indicativos de que aproximadamente um milhão e meio de pessoas cometem suicídio a cada ano, em todo mundo, e que cerca de dez a vinte vezes mais pessoas tentam praticá-lo. Estes são dados da Organização Mundial de Saúde – OMS –, que tem reconhecido o grande impacto do problema no âmbito da saúde pública. O isolamento social, a história previa de tentativa de suicídio e a desesperança tem sido os mais freqüentes fatores preditivos de risco naqueles que o cometeram. Desse modo, deve ser feito um grande esforço para identificar e tratar os transtornos mentais na população; afinal, apenas um terço dos casos são diagnosticados, e destes, menos de 25% recebem um tratamento adequad o. Com base nestes dados, conclui-se que há uma legião de pacientes que não estão sendo tratados corretamente. Dentro das estatísticas, é particularmente preocupante o aumento da faixa de suicídio entre adolescentes e adultos jovens. Este crescimento é atribuído a fatores como o divórcio dos pais, falecimento de um dos pais antes dos 13 anos, uso crescente de drogas e maior disponibilidade de arma de fogo, além dos chamados “Suicídio por imitação ou contagio”. Em razão de reconhecimento por parte dos médicos, governo e sociedade dos números crescentes de abuso de substancias psicoativas e de suicídios entre os jovens, tem-se buscado desestimular coberturas sensacionalistas sobre suicídio na mídia, promover abstinência do uso de psicotropicos e incentivar a busca de trabalho para abuso destas substâncias e para depressão. Frente a tudo isso, surgem diversas dúvidas: como avaliar o potencial do suicida? Como reconhecer antecipadamente os indivíduos suscetíveis? Quando liberar o paciente após tentativa? Infelizmente, não há testes ou critérios absolutos que respondam a estas perguntas ou que estabeleçam quem irá ou não cometer suicídio.


Há uma complexidade de fatores que concorre para seu desfecho, e a chance de suicídio aumenta quanto mais fatores de risco estiverem presentes: sexo, idade, psicopatologia, fatores genéticos e neurobiológicos, eventos traumáticos no início da vida, interações familiares, estresse social, doenças física ou mental, questões culturais, entre outros. Além disso, abordagens inadequadas podem aumentar potencialmente o risco de comportamento suicida em indivíduos vulneráveis, particularmente em jovens. Com o objetivo de melhorar a capacidade de detectar e lidar com pessoas com grupo de interconsultas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo realizara, em março de 2004, o primeiro simpósio internacional sobre o tema, pretendendo reunir médicos de diversas especialidades e outros profissionais da saúde, promovendo também uma palestra aberta ao público leigo. Alexandria Maria Augusto da Silva Medeiro é Prof. Dra e Membro do grupo de interconsultas do instituto de psiquiatria HC-FMUSP

AS IGREJAS, A AIDS E A ESTIGMATIZAÇÃO SEGUNDO O DOCUMENTO DE WINDHOEK LEONARD M. MARTINS O senhor acaba de participar do Encontro de Windhoek, na Namíbia. O que foi o encontro de Windhoek? Quem participou? Este encontro se realizou entre os dias 06 e 11 de Dezembro de 2003 num clima fraterno que favoreceu estudo, oração, debate e planejamento de ação futura. O local escolhido era Windhoek, Namíbia. Esta escolha visava chamar atenção para o fato da epidemia da AIDS prevalecer mais na parte sul do Continente africano e favorecer uma boa participação africana nas discussões. A UNAIDS, consciente da contribuição enorme das Igrejas à batalha contra AIDS e da sua grande influência na África e na América Latina especialmente, teve a iniciativa de juntar trinta e sete teólogos e líderes religiosos de cinco continentes e de diversas tradições eclesiais para um encontro informal na busca de parâmetros para discutir o problema de estigma e discriminação contra pessoas afetadas com HIV e AIDS. O que mais se discutiu? O assunto principal abordado foi a estigmatização e a discriminação e seu impacto sobre a vida e sobre a morte das pessoas afetadas pelo HIV e por AIDS. Paradoxalmente, a mesma fé, que motiva as pessoas para se engajarem eficazmente na luta contra a AIDS e contra a morte social em vida que a estigmatização provoca, é capaz de ser deturpada e transformada em justificativa para atitudes e comportamentos estigmatizantes e discriminadores. O Documento de Windhoek é uma tentativa de enfrentar este problema não somente a nível do que se faz no dia-a-dia da prática dos membros das igrejas, mas, também, a nível da teologia cristã: a teologia que se ensina nos seminários, o discurso dos teólogos acadêmicos, o que eles escrevem e pensam, aquilo que os fiéis acreditam e fazem e os valores que moldam a formação pastoral do clero e dos leigos.


O estigma não é o único problema levantado pela AIDS, mas é uma área onde a comunidade eclesial pode contribuir de uma maneira especial. É urgente identificar aqueles aspectos da teologia cristã que parecem endossar e fomentar atitudes e comportamentos estigmatizantes em relação a pessoas convivendo com AIDS e às pessoas que estão ao seu redor, repudiar a distorção da verdadeira tradição que isso representa e sugerir recursos existentes dentro da teologia cristã que possam potencializar nas igrejas o desenvolvimento de atitudes mais positivas, acolhedoras e amorosas. Na busca das ambigüidades que favorecem estigmatização e de recursos para corrigir esta distorção os seguintes temas-chave foram identificados como especialmente frutíferos: Deus e a Criação; a interpretação da Bíblia; pecado; sofrimento e lamentação; a justiça da aliança; a verdade e contando a verdade; a Igreja como comunidade que cura, que é inclusiva e que acompanha.

Quais os resultados? O segundo grande resultado é o que podemos chamar de “Documento de Windhoek”. Este documento procurou elaborar parâmetros para discutir a questão de estigma e discriminação relacionada com HIV e AIDS, sublinhando ambigüidades no discurso cristão em relação a certos conceitos chave que, interpretados de uma maneira inadequada, possam levar a uma prática inadequada que é a estigmatização. Em termos gerais, quando alguém está em apuros, dizemos que ele está ferrado. Sem dúvida, quem é portador do HIV ou vítima da AIDS é ferrado neste sentido. Mas num outro sentido também está ferrado como se fosse marcado com um sinal por um ferro quente visivelmente separando-o dos outros membros da sociedade, marcando-o para tratamento especial que exclui e que discrimina. É ferrado no sentido de ser estigmatizado, injustamente excluído e discriminado. Parte da tragédia é que o instrumento freqüentemente usado para ferrar as pessoas neste sentido é precisamente a fé cristã que existe para libertar e acolher. À luz desta constatação, há uma urgente necessidade de rever nossos conceitos e confrontá-los com as exigências evangélicas do evento crístico. Quais os conceitos que precisam ser repensados? Os primeiros conceitos examinados no Documento de Windhoek são Deus e Criação. Nota-se que alguns cristãos apresentam um modelo de um Deus vingativo que inflige o HIV e a AIDS como castigo por causa do pecado humano. Esta visão de Deus, que deve mais a uma leitura seletiva de textos do Antigo Testamento que à imagem de Deus apresentada por Jesus Cristo no Novo Testamento, precisa ser questionada pela convicção que nosso Deus é um Deus de compaixão que, como o pai do filho pródigo, vem correndo para abraçar e perdoar. A infecção com HIV, em determinadas circunstâncias, pode ser resultado de pecado – do pecado de infidelidade, por exemplo – mas as vítimas não são necessariamente os responsáveis pelo pecado: a mulher fiel ao seu marido, o filho infectado no momento do parto. HIV é um vírus, igual a qualquer outro que


ameaça a vida humana e não ajuda caracterizá-lo como castigo de Deus para punir o pecado. O Deus que abraça e perdoa é o mesmo Deus que toma prazer em contemplar sua criação que ele fez boa. O pessimismo de certos cristãos, que preferem focalizar a condição humana necessitando de salvação em lugar de se alegrar com a redenção já realizada no Cristo ressuscitado, às vezes tira a esperança dos fracos em lugar de oferecer-lhes razões pela esperança que temos. A alegria e a esperança dos que acreditam que são salvos pelo sangue do Cordeiro, permitem-nos perceber como a criação toda é marcada pela variedade e a exuberância das diferenças, de modo especial, entre os seres humanos que, entres as criaturas, são os mimados de um Deus que nos amou primeiro, antes de qualquer tentativa humana de amar e balbuciar os louvores divinos. Deus criador toma prazer em contemplar a diversidade da sua criação e nos convida a fazer a mesma coisa. A riqueza de diversidade se encontra de maneira especial no ser humano, criado como ser sexual, com todas as diferenças criativas que representa a realidade ser homem, ser mulher. Esta riqueza e diversidade sexual Deus criou para serem celebradas, desfrutadas e tratadas com responsabilidade. É um dom de Deus a capacidade de nos apreciar mutuamente com seres sexuais – somos nós, como o filho pródigo, que desperdiçamos este dom precioso. Há outros conceitos que precisam ser repensados? A interpretação da Bíblia é, certamente, um conceito que precisa ser repensado. O documento de Windhoek nos lembra que precisamos aprender com a maneira em que o próprio Jesus se relacionou com os estigmatizados dos seu tempo: os leprosos, os Samaritanos, a mulher com fluxo de sangue, os coxos, os cegos, os perturbados (considerados endemoniados). Jesus entrou em contato com eles, convidando-os a integrar seu grupo. Não teve medo de tocá-los nem de ser tocado. Não se pode esquecer que o próprio Jesus se submeteu à última indignação, a estigmatização de ser crucificado, publicamente fora dos muros da cidade. O próprio conceito de pecado é rico em história. No contexto da epidemia de AIDS, precisamos lembrar que, se somos portadores do vírus HIV ou não, somos todos pecadores e, seja como indivíduos, seja como comunidades, somos longe de ter alcançados ainda a glória de Deus. Estigmatizando o outro, negamos esta verdade. Precisamos ainda lembrar que o ato de estigmatizar – ferrar injustamente uma pessoa – é, em si, um pecado contra o Deus criador em cuja imagem fomos todos criados. Estigmatizar o indivíduo é rejeitar a imagem de Deus no outro, é negar-lhe a vida em plenitude. Isto não é apenas um pecado contra o próximo, é, também, um pecado contra Deus. O tema do sofrimento e da lamentação é outro que a AIDS nos leva a repensar. Os teólogos reunidos em Windhoek convocaram as Igrejas a redescobrirem a rica tradição bíblica de lamentação. O lamento, como forma de oração e de poesia, nos oferece uma linguagem que nomeia o sofrimento, questiona estruturas de poder, reivindica a justiça e, narrando os fatos a Deus, reclama que a situação humana deve ser outra. O lamento não é apenas choradeira, também exprime esperança e confiança na compaixão de Deus e na


sua vontade de nos livrar de sofrimento. É, ao mesmo tempo, uma atividade individual e comunitária. É uma articulação dos gritos de sofrimento, uma forma boa dos estigmatizados encontrarem sua voz diante de Deus e dos que os desprezam. Um tema delicado e que exige bastante reflexão é a verdade e contar a verdade. De um lado, a verdade é colocada como um grande valor. Do outro lado, contar a verdade pode levar a sanções, ostracismo e estigmatização em todas as suas formas. Jesus nos ensinou que a verdade nos liberta e nos deu o mandato de ensinar a verdade. Freqüentemente, as Igrejas tem dificuldade em fazer isso porque a verdade, às vezes, expõe a distância entre o que as lideranças eclesiais pregam e de fato fazem na prática. Portadores do vírus HIV na Igreja têm medo de publicar a realidade da sua condição, temendo ser punidos e discriminados. Isso cria um problema enorme para indivíduos para quem a revelação de determinada informação num ambiente estigmatizante e pouco simpático pode ser um empreendimento medonho e arriscado. O Documento de Windhoek deixa claro que há uma necessidade urgente de construir comunidades que são acolhedoras, que apoiam e que são capazes de quebrar o silêncio de HIV e AIDS. Muitas Igrejas são comprometidas, em princípio, a fazer isso. É difícil ver, porém, como este compromisso vai render resultados sem um exame de consciência dolorosa a nível das instituições, de suas hierarquias, do seu clero, do seu povo. Para as Igrejas, contar a verdade pode requerer reconhecer que, como instituições, têm uma parcela de responsabilidade pela estigmatização promovendo “teologia de má qualidade” ou deixando de questioná-la, sendo conivente com o clima de silêncio e negação a nível institucional, distorcendo fatos de verdade em programas educacionais, falhando em não oferecer liderança forte e profética, sem falar nos lapsos morais de leigos e lideres nas Igrejas que oferecem mal exemplo e afetam credibilidade. Incomoda recordar que Jesus não poupou críticas à hipocrisia de pessoas religiosas. O último conceito trabalhado pelo Documento de Windhoek foi o da Igreja como comunidade que cura, que é inclusiva e que acompanha. No desafio que representa enfrentar estigma, o recurso mais precioso das Igrejas são precisamente as pessoas convivendo com HIV e AIDS. Sua inclusão em todos os aspectos da vida da Igreja é a melhor estratégia possível para mudar atitudes e remover medo. A experiência de viver com HIV e AIDS levanta questões profundas sobre o sentido do sofrimento e a natureza de Deus. Partilhando esta experiência e a sabedoria que é seu fruto, as vítimas da estigmatização, encontrando acolhimento, podem enriquecer a espiritualidade da comunidade de oração inteira. Leonard M. Martin é professor Titular de Ética da Universidade Estadual do Ceará.


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