O PAPEL DA RELIGIÃO NA RECUPERAÇÃO DA SAÚDE Publicações internacionais de grande circulação e credibilidade científica, começam a dedicar especial atenção à relação entre religião e saúde, na busca de provas científicas de que a religião, a fé e espiritualidade, fazem bem e geram bem estar. Comentamos a seguir material especial da Revista Newsweek, de 17 de novembro de 2003, autoria de Claudia Kalb, que traz como matéria de capa o título: “Deus e saúde. A religião seria um bom remédio? Por quê a ciência começa a crer? Pergunta-se, qual é a relação entre a fé e a cura? O debate cresce, envolve cientistas, crentes e não-crentes, nos EUA inúmeras faculdades de medicina alteram o currículo de formação de seus futuros profissionais para estudar a questão e ensinar os estudantes em como lidar com os pacientes em relação à esta questão, (doença/saúde/fé/cura). Além disso, aumentou muito o número de pacientes que solicitam orações a seus médicos. Segundo pesquisa feita pela revista Newsweek, 72% dos Norte americanos são favoráveis a dialogar com seus médicos sobre fé e o mesmo número dizem crer que rezando a Deus, pode-se curar alguém, mesmo quando a ciência afirma que determinada pessoa não tem a mínima chance de cura.
A "volta" de Deus Deus que havia sido banido da prática clínica já há algum tempo, passa a ser valorizado. Isto em grande parte acontece devido ao aumento da crença dos médicos, de que o que ocorre na mente da pessoa pode ser tão importante para a saúde, como o que ocorre no nível celular. Fazem-se investimentos científicos para “descobrir a natureza de Deus” e a importância da espiritualidade. Cientistas sérios, buscam caminhos éticos e meios efetivos de como combinar as crenças espirituais de seus pacientes e as próprias, com tratamentos de alta tecnologia. Como exemplo disso, temos o milionário Sir John Templeton que investe 30 milhões de dólares anuais em projetos científicos para “explorar a natureza de Deus”. Livros nesta área acabam sendo best sellers (livros mais lidos), como por exemplo “A Anatomia da esperança, de autoria do médico Jerome Groopman, que é uma meditação sobre os efeitos do otimismo e fé sobre a saúde.
Livros famosos Um dos atuais best sellers na França é o livro “Guérir” (em francês) ou The Instinct to Heal (em inglês), de autoria do médico francês radicado nos EUA, Dr. David ServanSchreiber, professor de psiquiatria no Centro Médico da Universidade de Pittsburgh. A obra é um estudo de tratamento de doenças crônicas, incluindo depressão, explorando a conexão mente e corpo. Ao ser perguntado porque escreveu o livro ele diz que “descobriu que a maioria dos seus pacientes com problemas médicos apresentava também problemas psiquiátricos. Isto aprofundou minha consciência da conexão mente-corpo. Estudos mostram que em torno de 50 a 70% de problemas de cuidados primários em saúde tem o estresse como o maior fator desencadeador. Medicação para pressão sanguínea e antiinflamatórios, bem como anti-depressivos, são simplesmente paliativos para problemas interiores, lembra o Dr. Servan-Schreiber. Continua dizendo que “Não é novidade o fato de que o amor é importante para a saúde. Mas não sabíamos até muito recentemente, que a harmonia e conexões emocionais são necessidades biológicas, que se situam praticamente no mesmo nível da alimentação, ar e controle de temperatura”.
O papel da espiritualidade Ao ser perguntado sobre o papel da espiritualidade e oração em relação à saúde responde: “A espiritualidade tem um papel essencial. Mas existe espiritualidade saudável e não saudável. Se a oração produz um estado de calma, amor e senso de pertença, isso tem uma correlação física positiva em relação à saúde. Mas se a espiritualidade é moralista, não é necessariamente saudável. Existem técnicas que foram desenvolvidas que são positivas. Por exemplo, Inácio de Loyola fala de concentrar-se em gratidão na oração. Expressar gratidão pelo mundo como ele é, produz um estado físico e mental positivo. Não precisa necessariamente ser religioso, pode ser secular. No livro de Victor Frankl “Man´s Search for Meaning” (O Homem em busca de sentido) Frankl fala de uma mulher que está morrendo num campo de concentração. Ela pode ver folhas numa árvore através da pequena janela do seu quarto. Vendo vida, não necessariamente Deus, mas natureza, lhe traz conforto. Em entrevista concedida à revista Newsweek ao ser perguntado, o que dizer das pessoas que atribuem sua melhora no estado de saúde, porque outros rezaram por elas, o Dr. Servan-Schreiber diz que “não sei o que dizer, pois não posso explicar a partir de nossos sistema convencional de crenças”. Este médico pergunta como rotina de atendimento aos seus pacientes se a vida espiritual deles é um aspecto importante de sua saúde. De um período de fechamento e até hostilidade da medicina científica em relação a temática, fé/espiritualidade e cura, presenciamos hoje uma grande abertura, profunda inquietação e espírito de busca. Claro que a medicina moderna exige provas científicas. Na última década pesquisadores realizaram muitos estudos tentando mensurar cientificamente os efeitos da fé e espiritualidade sobre a saúde humana. Perguntas cruciais são feitas e procura-se respostas nada fáceis: A religião pode ajudar na regressão de um câncer? Diminuir a depressão? Ajudar na recuperação de uma cirurgia mais rapidamente? A fé em Deus, pode afastar a morte que se avizinha? Até o momento, os resultados não são tão claros, pois os estudos inevitavelmente vão de encontro à dificuldade de usar métodos científicos para responder a questões de ordem fundamentalmente existenciais.
Como medir o poder da oração? Periódicos científicos de indisputável credibilidade científica, como a britânica Lancet e a Norte americana, New England Journal of Medicine, entraram na discussão. Percebe-se dois lados opostos, os que negam tudo radicalmente e os que valorizam tudo em termos de fé. Alguns cientistas, como Prof. Richard Sloan, da Universidade de Columbia, num artigo para a revista Lancet ataca os estudos sobre a fé e cura, acusando-os de metodologia fraca e pensamento soft. Ele não acredita que a religião tenha um lugar na medicina e que incentivar os pacientes para práticas espirituais pode mais causar danos que bem. No entanto, de forma respeitosa o Prof. Sloan diz que os médicos devem se sentir livres para encaminhar os pacientes para os capelães hospitalares, na perspectiva de que a conversação religiosa precisa continuar. Ninguém duvida que em tempos de dificuldade, a religião traz conforto para um número grande de pessoas, diz Sloan. “A questão é se a medicina pode acrescentar algo a isso, minha resposta é não”, diz ele. Outros como o Dr. Harold Koening, pioneiro na pesquisa sobre fé e medicina, da Universidade de Duke, acredita que existe uma crescente evidência que aponta para os efeitos positivos da religião sobre a saúde e que afastar a espiritualidade da clínica é uma irresponsabilidade.
Num esforço para compreender as diferenças em saúde entre crentes e não crentes, cientistas começam a estudar os componentes individuais da experiência religiosa. Escaneando o cérebro eles descobriram que a meditação pode mudar a atividade cerebral e fortalecer a resposta imunológica. Outros estudos mostraram que a meditação pode diminuir as batidas cardíacas e a pressão sanguínea, reduzindo conseqüentemente o estresse corporal.. De forma geral, os estudos sobre a oração não mostram resultados claros, e até mesmo pesquisadores que valorizam o componente religioso na vida das pessoas, duvidam que se passa testar a oração, provando resultados. Os estudos levantam questões que ninguém pode responder: Uma oração extra pode significar uma diferença entre vida e morte? A oração pode ser dosada como se dosa os remédios? Rezar mais e fervorosamente significa um melhor tratamento por parte de Deus? Certamente na mente de muitos, estas questões cheiram quase sacrilégio. Patrick Theillier, Chefe da clínica médica em Lourdes na França, encarregado de documentar relatos de peregrinos que dizem ter sido curados no santuário, diz: “Como médico, não posso dizer que esta cura é milagrosa. Mas como católico praticante, posso reconhecer que ela é milagrosa”. Kenneth Pargament, um professor de psicologia na Bowling Green State University de Ohio, estudou os métodos religiosos de lidar de quase 600 pacientes com doenças que iam desde uma gastroenterite até câncer. Aqueles que pensavam que Deus os estava punindo ou abandonando-os eram em torno de 30% mais suscetíveis de morrer nos próximos dois anos. “Lutas espirituais são sinais vermelhos e precisam ser encaradas seriamente, diz Pargament. “Não queremos transformar a profissão médica em clero e capelães, mas tratar estas lutas isoladamente dos problemas médicos dos pacientes é miopia”. O Dr. Koening, diretor do Centro para o Estudo da Religião e Espiritualidade e saúde, da Universidade de Duke, lidera o movimento para uma melhor compreensão da religião do paciente e crenças espirituais no âmbito da prática médica. Ele defende que os médicos deve, valorizar as histórias espirituais de qualquer paciente com o qual irão estabelecer uma relação, perguntando: “A religião é fonte de conforte ou estresse? Você tem alguma crença religiosa que influencia no processo de decisão relacionado com sua vida?
Respeitar a crença do paciente Não perguntar a respeito da religião do paciente pode trazer conseqüências sérias, diz Dr. Susan Stangle, da Universidade da Califórnia, CLA, ao lembrar de um paciente muçulmano que necessitava de medicação, mas estava observando o Ramadan e não podia beber ou comer durante o dia. Após ouvir a história dos valores espirituais do paciente, a médica escolheu medicar uma vez ao dia após o por do sol. “Se nós não tivéssemos conversado sobre isto, eu teria prescrito a ele medicação 4 vezes ao dia e ele simplesmente não teria tomado”, ela diz. Enfim, a discussão sobre a relação entre fé/espiritualidade/doença/cura/saúde não vai cessar tão cedo, acreditamos que apenas esteja se iniciando. A busca de entendimento científico prossegue, desde os laboratórios digitais sofisticados da neurobiologia que buscam “explorar Deus”, até o leito de muitos doentes crônicos que clamam por saúde e cura, invocando Deus sem exigir provas. Temos muitas perguntas, dúvidas e os resultados encontrados por este caminho são até certo ponto decepcionantes. Pergunta-se se este é o caminho correto de se encontrar respostas à questão fundamental de Deus e sua intervenção
no mundo da vida humana. É uma discussão que envolve cientistas, pessoas que se definem como pesquisadores céticos, agnósticos, ateus e crentes piedosos. Lembramos Santo Agostinho que dizia: “se compreendes, não é Deus”. Claro que não podemos abdicar da compreensão racional da realidade que nos cerca, valorizando o conhecimento científico e muito menos devemos renunciar de “dar razões à nossa esperança”. Na perspectiva da fé cristã temos a certeza de que Deus é amor, e onde existe amor aí está Deus, a vida se afirma e a saúde é uma realidade palpável. Mesmo na morte, existe vida! O investimento tem que ser feito no amor, desde o âmbito individual até o sóciopolítico, que adquire nome de justiça, equidade e solidariedade no âmbito dos povos. O amor é importante para a saúde humana. A descoberta de Deus se faz nesta direção e não existe evidência maior de Deus do que o amor. Artigo foi extraído da revista Newsweek e traduzido pelo Pe. Léo Pessini.
QUANDO UM TRATAMENTO TORNA-SE FÚTIL? JOAQUIM ANTÔNIO MOTA O que é futilidade? Os dicionários a definem como uma sem utilidade, frívola. Etimologicamente, vem da palavra latina futile, denominação de um vaso cujo fuso, por ser estreito, não permite manter-se em pé, portanto deixando escapar o que contém, daí passando a significar qualquer coisa inútil, que não presta, que não dá resultados. Portanto, um ato fútil é um ato em vão. E em medicina, o que é um tratamento fútil? Uma definição pode ser aquela ação médica cujos potenciais benefícios para o paciente são nulos ou tão pequenos ou improváveis que não superam os seus potenciais malefícios. Como a certeza absoluta é algo absolutamente impossível, essa definição caracteriza-se, entre outras coisas, pela falta de certeza. Ao definir um tratamento como útil ou fútil sempre fica uma ponta de dúvida, que tinge os limites entre eles: no caso em questão o improvável ocorrerá? Como estabelecer os limites? Dois sentimentos, o do medo e a frustração, tornam mais difícil estabelecer esses limites. O sentimento de frustração leva ao abandono do paciente; o medo de aparentar fraqueza leva a medidas agressivas que tornam mais cruel a agonia. Culturalmente, os profissionais de saúde, principalmente os médicos, são impelidos a transpor essa linha ao considerar a morte como algo estranho à vida e que deve ser evitada a todo custo, cuja ocorrência sempre significa um fracasso médico. As ligações afetivas que são estabelecidas entre esses profissionais, os pacientes e suas famílias também favorecem a não-aceitação desses limites. Além disso, alguns médicos não estão preparados para reconhecer quando um procedimento é fútil, consequência da visão que tem do paciente, considerado mais como uma oportunidade terapêutica ou um desafio clínico e menos como uma pessoa plena de direitos, o que revela a fraqueza do conceito de futilidade em evitar a ocorrência de excesso de tratamento do paciente criticamente doente. Por fim, a tendência atual de considerar que o dinheiro resolve tudo, que não há limites para o desejo, bastando ter para acontecer, estimula todos a não parar. Nessa perspectivas, torna-se muito mais difícil justificar o não fazer, a omissão, do que o fazer, a ação, pois o treinamento dos profissionais de saúde sempre privilegiou o operar. É bem mais confortável colocar um paciente terminal com insuficiência respiratória
em ventilação mecânica que assisti-lo durante seu processo de morte, sem antepor entre esses profissionais e o paciente e seus familiares toda a tecnologia disponível, quer seja benéfica ou não. Na primeira opção, pode-se sempre dizer que, pelo menos, tentou-se fazer algo; se não deu certo ou se o procedimento serviu apenas para prolongar a agonia e o sofrimento do paciente, o que conta é o objetivo de fazer o bem. Mas não fazer alguma tentativa para mudar o curso do processo, além de ir contra o que foi aprendido nos bancos escolares, é assumir o fracasso. Esse é outro estímulo para a ultrapassagem da linda entre o útil e o fútil. É difícil definir o que é um tratamento fútil. Vejamos algumas interrogações: - Seria aquele que não consegue prolongar a vida? Nessa definição, manter uma pessoa em vida vegetativa utilizando nutrição parenteral não seria fútil; - Seria não atender a um desejo do paciente? Se uma mãe deseja manter seu filho recém-nascido anencéfalo em ventilação artificial, a despeito de seu estado vegetativo irreversível, isto então não seria futilidade. - Seria falência de alcançar um efeito fisiológico no corpo humano? Então, enquanto pudermos manter o fluxo de ar ou de sangue no corpo, as manobras de ressuscitação cardiorespiratórias não são fúteis; - Ou seria a impossibilidade de causar em benefício terapêutico para o paciente/ - Se o tratamento meramente preserva uma vida vegetativa ou que não pode ser independente de cuidados intensivos, esse deve ser considerado fútil? - Seria, então, fútil tratar de pessoas com poucas chances de ter uma vida de boa qualidade? Frente a uma situação clínica que requer procedimentos médicos agressivos, os profissionais de saúde, muitas vezes, têm a sensação de ultrapassar o ponto em que essas medidas ainda são benéficas para o paciente. A necessidade de tomar decisões rápidas, a gravidade e a singularidade que caracterizam cada situação clínica, os conflitos de valores e interesses que envolvem a relação entre os profissionais de saúde, o paciente, a família, a sociedade e o Estado favorecem esse sentimento. Esses fatores, aliados ao fato dos atos médicos gerarem conseqüências que só parcialmente podem ser previstas, tornam difícil demarcar, com nitidez, durante o tratamento, a linha entre o útil e o fútil. Essa indefinição de limites leva a que, freqüentemente, pacientes criticamente enfermos sejam submetidos a tratamentos que, apesar de motivados pelo desejo de fazer o bem, apenas acrescentam sofrimentos a esses doentes. Além disso, esses tratamentos fúteis causam outras conseqüências: elevam os custos do tratamento e agravam os sofrimentos físicos e emocionais dos envolvidos nesse drama. Aspectos envolvidos na definição de futilidade Objetivo da medicina não alcançar um simples efeito fisiológico, mas curar o paciente. Ela tem grandes poderes, mas não poderes ilimitados, e grandes obrigações ilimitadas. Por outro lado, não podemos esquecer que a medicina é impregnada de valores, portanto todos os atos médicos, e não apenas a decisão de considerar uma ação fútil, envolvem julgamentos de valor, que requerem escolha de metas e ações. Os pacientes e seus familiares muitas vezes demandam tratamentos fúteis devido à mensagem simbólica dos mesmos: só se consideram verdadeiramente tratados quando as tecnologias modernas mais invasivas são utilizadas. Os valores dos profissionais de saúde também influenciam na definição de um procedimento como fútil ou não. Geralmente, as suas decisões são mais influenciadas pelo diagnóstico que pelo prognóstico do paciente. Além disso, os seus
comumente classificados como passíveis de não serem tratados que os brancos. Outros estudos, também nos Estados Unidos, revelam que pacientes não segurados recebem menor atenção médica que aqueles que têm algum tipo de plano de saúde. Esse fato cria dois grupos de pacientes, separado por um fosso socioeconômico: aqueles economicamente rentáveis, que correm o risco de sofrer excesso de tratamentos fúteis, e os não rentáveis, que correm um risco oposto, o de sofrer restrição de tratamentos úteis. Futilidade como um fato da medicina não é algo novo. No passado, entretanto, ligava-se à carência de recursos da própria ciência e sua impotência em afetar o curso da doença. Hoje, seu significado e aplicabilidade têm tomado uma importância cada vez maior, por causa da incorporação crescente de tecnologia na área de saúde, nem sempre significando sucesso terapêutico. Um marco na discussão sobre futilidade foi o caso “Baby Doe” e a regulamentação que, a partir daí, surgiu nos EUA – que impôs aos médicos o dever legal de prover tratamentos salva-vidas a todas as crianças, exceto quando meramente prolongarem a morte, não contribuindo para melhorar ou corrigir as condições da criança. Atualmente, esse debate, que surgiu das preocupações dos profissionais de saúde quanto ao bem-estar dos seus pacientes, é também motivado, pelas questões de custos e racionalização dos serviços de saúde, servindo muitas vezes para amenizar os conflitos resultantes da não-utilização de intervenções dispendiosas em pacientes com poucas perspectivas de recuperação, principalmente aqueles que não possuem recursos financeiros para arcar com tais despesas. Até recentemente, nos anos 70, quando a tecnologia médica era mais limitada e seus impactos menores, essa questão apresentava-se menos evidente. Esgotados os recursos terapêuticos, o processo vital seguia seu curso natural. A idéia de que os médicos são obrigados a prolongar a vida biológica até quando for possível, custe o que custar, é recente e sem precedentes na história da medicina. Um dos mais conhecidos aforismos hipocráticos prescreve que a obrigação do médico é tratar quando for possível e curar, isso é, cuidar, sempre. A atual disseminação irreversível da tecnologia médica, com a sofisticação da atenção médica, a criação de centros de tratamentos intensivos e o uso cada vez maior de tecnologias de ponta, muitas vezes situadas na fronteira entre o tratamento experimental e o já consolidado, gerou duas conseqüências. A medicina passou a ser cada vez menos serviço a ser prestado e mais negócio a ser feito, com o conseqüente deslocamento de uma ação mais filantrópica e pública para uma ação mais comercial e privada. A atenção à saúde utilizando alta tecnologia deslocou-se progressivamente dos hospitais filantrópicos e públicos (praticamente os únicos centros de excelência até os anos 70) para as empresas de saúde da área privada. Esse deslocamento trouxe, em si, uma mudança ideológica. Se há trinta anos não se discutia a relação custos versus benefícios nas ações médicas, hoje isso é corriqueiro. Muitas vezes sem atentar para os valores que essas palavras carregam, pois os custos de uma ação médica não são só financeiros, mas também emocionais, sociais e éticos. O mesmo vale para os benefícios. Ao analisá-los, cabe a pergunta: quais seriam os beneficiários da ação, o paciente, a família, a empresa de saúde ou a sociedade? Reacende-se, também, uma discussão, que sempre existiu, sobre qualidade versus sacralidade da vida. Sempre houve sempre interrogações sobre se toda vida vale a pena ser vivida. Praticamente todos os filósofos que propuseram algum tipo de utopia, de Platão a Thomas Mores, colocaram essa questão, considerando que algumas pessoas não teriam direito à vida. Por outro lado, principalmente baseados em valores religiosos e morais, sempre houve os que defenderam que toda vida humana (ou por ser dom divino e/ou por fazer jus à dignidade da espécie humana) mereceria ser vivida.
Essa tecnologia, que mudou radicalmente o curso da vida humana, trouxe a discussão teórica desse tema para a prática médica do dia a dia. Porém, não trouxe consigo aqueles que de longa data já discutiam o assunto, os filósofos e os teólogos. E, também não inseriu nessa discussão todos os autores desse drama: o paciente, seus familiares e a sociedade. Pois, se as conseqüências imediatas da ação médica recaem sobre o paciente e sua família, as mediatas e tardias estendem-se além desse âmbito, tanto na questão dos valores quanto na dos custos. Considerações finais A ação médica sempre produz um efeito no paciente, a questão é se benéfico ou maléfico. Essa ponderação deve preceder toda ação na área da saúde. Cabe aos profissionais de saúde cuidar para que a balança dessa expansão tecnológica oscile para os benefícios quando comparada com os malefícios por ela gerados. Para tal, não é admissível sua absorção sem críticas que, ao invés de gerar uma medicina saudável, harmoniosa, causam uma “obesidade tecnológica” pelo seu uso mal digerido. Porém, seria antiético que o medo de ultrapassar esses limites imobilizasse qualquer ação. Se antes de cada ato tentássemos prever todas as suas conseqüências e isso impedisse nossa atuação, essa omissão também seria prejudicial aos interesses dos nossos pacientes. Quem trabalha com pacientes criticamente enfermos necessita ter um treinamento intensivo e extensivo de técnicas preservação e/ou restauração das funções vitais dos mesmos (sem o qual não estará preparado para atender aos seus melhores interesses). Além disso, tem que estar preparado para fazer essas reflexões, só possíveis através do diálogo com todos os envolvidos no processo. Diálogo que, obrigatoriamente, tem como interlocutores o paciente, seus familiares, os outros profissionais envolvidos na atenção ao paciente e a sociedade. E também lembrar que quem propõe-se ao diálogo deve saber que nele há sempre opiniões diversas, nem sempre sendo possível obter-se o consenso. Freqüentemente, há necessidade de fazer-se concessões. E que esse diálogo deve ter como meta o melhor interesse para o paciente, sem a qual perde qualquer sentido. Esse diálogo dever assumir como pressuposto que, se a ciência não pode dar uma resposta às questões éticas, é impossível haver um debate ético que não se baseie em resultados científicos, sob pena de não se levar em conta as conseqüências efetivas das escolhas feitas. É a ciência que permite analisar melhor os efeitos e a coerência de uma determinada abordagem. Entretanto, o que a ciência não pode fornecer jamais é a resposta à questão ética: queremos assumir tal decisão? Sempre é necessário escolher um critério e essa escolha não é determinada por uma análise científica, mas fruto de uma decisão ética. E é esse o desafio ético colocado na abordagem de uma paciente enfermo. Quando e quanto agir, fazendo o melhor possível para atender aos seus interesses, sem transpor a linha da futilidade. Tarefa difícil, bem mais que apenas dominar o uso da tecnologia a nosso dispor, mas tão importante quanto aquela para cumprir adequadamente o papel social delegado a nós, profissionais de saúde. Joaquim Antônio César Mota é professor adjunto do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte.