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Informativo do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e Bioética novembro de 2008 Ano XXVI – no 269 Província Camiliana Brasileira

❒ Pastoral

❒ bioética

❒ humanização

LITURGIA CATÓLICA E O MUNDO DA SAÚDE ALEXANDRE ANDRADE MARTINS

O

mundo da saúde é uma realidade complexa, muito secularizada e permeada por uma concepção mecanicista do ser humano. A liturgia cristãcatólica é uma realidade com tradição de aproximadamente 2.000 anos com um significado profundo, pois com sinais sensíveis permite a experiência de uma realidade invisível, no caso o Mistério Pascal. O que acontece quando essas duas realidade se encontram? É possível acontecer esse encontro e dele sair algo bom para o homem moderno? Essas duas realidades se encontram sim, mas isso não acontece, na maioria das vezes, de forma pacifica na qual uma completa a outra. O encontro geralmente é conflituoso quando acontece, pois em muitos lugares não ocorre (e aqui nos referimos aos hospitais). O mundo da saúde é cada vez mais secularizado e tecnológico, conseqüentemente é uma realidade na qual Deus não é necessário porque a tecnologia pode resolver quase tudo, aquilo que não pode é porque ainda não se descobriu uma técnica ou não se inventou algum instrumento para resolver, mas, na confiança dos seus profissionais, a ciência experimental irá descobrir. O mundo da saúde confia muito na suas descobertas científicas e no uso da tecnologia, tanto que está ficando quase impossível ser um profissional da saúde, especialmente médico, sem o instrumental tecnológico. O advento da modernidade fragmentou o Homem, que passou a ser visto de forma mecanicista e perdeu sua unidade. O Homem passa a ser concebido como máquina, falhou (ficou doente), conserta (cura), quando chega o momento que não funciona mais (morre), tem outras para o seu lugar (outros in-

divíduos humanos). O valor da pessoa é comprometido porque é reduzido a uma única dimensão. Isso tem muitas implicâncias éticas e bioéticas, mas não é a nossa questão aqui, pois nosso interesse é mostrar que essa concepção dificulta e chega até a impedir a entrada (ou permanência) da liturgia, parte da pastoral da saúde, no universo da saúde porque, dizendo de forma banal, “máquina (o Homem) não precisa de Deus nem tem abertura à transcendência”. A secularização em si não é algo, pelo menos à primeira vista, ruim para a religião, sobretudo à Igreja Católica. Porém sua radicalização, chamada de secularismo, pode levar ao niilismo­e, isso sim, é um problema para a (as) religião (ões), pois é um problema à existência humana. Um mundo que hiper-valorizou a técnica (o material) e se decretou totalmente independente de Deus (desejo da modernidade) não foi capaz de realizar o Homem e melhorar sua convivência social e ecológica no Planeta Gaia. Tratando-se de nosso recorte, o mundo da saúde e a liturgia, o apego demasiado à tecnologia mostrou -se capaz de curar inúmeras doenças antes fatais, aumentou a expectativa de vida, proporcionou conforto e a descoberta de novos medicamentos, todavia se tornou uma medicina caríssima, praticamente cura somente quem pode pagar, aumentou os problemas sociais separando cada vez mais ricos de pobres (nações ricas desfrutam da tecnologia da saúde e as pobres vivem na miséria com seu povo morrendo precocemente com fome) e é incapaz de dar sentido à existência humana e prepará-la à morte como fazia (e ainda faz, mas em menor escala) um mundo mais aberto à transcendência.

A modernidade tende a ver o Homem fragmentado e não como uma unidade. Ela é muito secularista e, assim, restringe o ser humano a uma única dimensão: o material, ou seja, o corpo. No entanto, nós humanos não temos somente uma dimensão, somos uma unidade integral, complexa, é claro, mas belíssima. Somos corpo (soma), mas também somos psique e nous animados pelo sopro criador, o Pneuma. Assim diz Jean-Yves Leloup na esteira dos Terapeutas do Deserto. Por essa antropologia, percebemos, sem precisar de grandes explicações, a importância do Transcendente à existência e à saúde do Homem. Sendo assim o mundo da saúde precisa estar aberto à liturgia e, tratando-se de cristãos-católicos, para uma liturgia católica. Pela liturgia é possível contemplar no enfermo a dimensão não contemplada pela tecnologia da saúde. O profissional da saúde tem a missão de cuidar de quem está doente, para isso irá utilizar todas as técnicas que aprendeu e a tecnologia necessária ao seu alcance. O profissional da saúde não fará uma liturgia religiosa, mas não pode impedi-la, então porque não permitir a visita dos agentes de pastoral da saúde e do capelão? Poderia até chamá-los quando necessário (se o paciente aceitar ou solicitar) ou sugerir. Seria um avanço não impedir o acesso ao religioso e uma grande melhora certamente aconteceria no atendimento à saúde, ao tratamento. Para isso acontecer o profissional da saúde precisa estar aberto a uma dimensão profunda da existência humana impossível de ser tratada com o uso da tecnologia. Alguns hospitais têm abertura ao atendimento espiritual e trabalham em


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conjunto com representantes religiosos. Eles permitem a liturgia católica com seus sacramentos de cura, sobretudo a Unção dos Enfermos. Esses hospitais têm capelães exclusivos para fazerem o trabalho religioso, sobretudo para realizarem o Sacramento da Unção dos Enfermos, que é um sacramento capaz de restabelecer a esperança e as forças do paciente para continuar na luta contra o mal físico. Não é um sacramento “milagreiro” (isso não existe), mas nada impede, pela graça de Deus, que um “milagre” aconteça. Hospitais religiosos, como o São Camilo e o Santa Catarina em São Paulo, oferecem esse serviço de forma organizada, mas ainda há problemas porque há muitos profissionais da saúde fechados a essa dimensão humana cuja causa é em grande parte devida à formação recebida, muito focada na técnica e permeada pelo meca-

nicismo. Há também hospitais públicos com esse serviço religioso, um deles é o Hospital das Clínicas de São Paulo que tem um serviço religioso muito organizado e ecumênico, o CARE (Comitê de Assistência Religiosa) e que chama líderes de outras religiões (como rabinos e xeiques) quando solicitado por algum paciente, mas enfrenta dificuldades com a concepção mecanicista dos profissionais da saúde. Liturgia não é teatro. Ela leva a uma experiência do invisível, do Mistério Pascal. Faz memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. O enfermo passa por sua paixão e, em casos graves e irreversíveis, caminha para a morte. Com a Unção, pela fé, é possível resgatar a esperança na ressurreição, o resultado disso acontece no tratamento com uma melhor evolução do processo terapêutico e pode ajudar na cura

ou, se ela não é mais possível, prepara para ter uma morte mais tranqüila, pois com Cristo a morte é vencida na ressurreição. Com o atendimento espiritual do agente de pastoral da saúde e/ou capelão, em especial pela liturgia na realização do Sacramento da Unção dos Enfermos, o paciente, consciente da profundidade do sacramento e seu significado, pela fé, faz junto com Cristo a sua experiência pascal. Mundo da saúde e liturgia não são duas realidades separadas nem distantes tampouco opostas. A liturgia pode complementar o trabalho terapêutico dos profissionais da saúde e todos ganham com isso, principalmente o mais interessado: o enfermo. Alexandre Andrade Martins é religioso camiliano, estudante de teologia e atua na pastoral da saúde do Hospital das Clínicas de São Paulo

ICAPS E CNBB REALIZAM CONGRESSO E LANÇAM MAIS UM LIVRO

expediente

O Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde – ICAPS - e a Coordenação Nacional da Pastoral da Saúde da CNBB realizaram em São Paulo, nos dias 06 e 07 de setembro de 2008 no Centro Universitário São Camilo o XXVIII Congresso Brasileiro de Humanização e Pastoral da Saúde que teve como tema central: hábitos saudáveis de vida: você também é responsável. Além dos palestrantes, médicos, profissionais da saúde, leigos e religiosos o congresso contou com a participação assídua de mais de 630 participantes. Na oportunidade, padre Anísio Baldessin, diretor do ICAPS e coordenador geral do congresso lançou, pelas Edições Loyola, o livro por ele organizado: Assistência religiosa aos doentes: aspectos bíblicos que poderá ser adquirido em nossa secretaria (11) 3862-7286 ramal 3 com Cláudia ou diretamente nas livrarias Loyola (11) 2914-1922 ou pedir através do nosso e-mail icaps@camilianos.org.br. Aproveitamos para agradecer a todos, palestrantes e congressistas e informamos que o próximo, ou seja, o XXIX será realizado também em São Paulo nos dias 05 e 06 de setembro de 2009.

O Boletim ICAPS é uma publicação do Instituto Camiliano de Pastoral da Saú­­de­e Bioética – Província Ca­miliana Brasileira. Presidente: José Maria dos Santos

Conselheiros: Niversindo Antônio Cherubin, Leocir Pessini, João Batista Gomes de Lima, André Luis Giombeli. Diretor-Responsável: Anísio Baldessin Secretária: Cláudia Santana

Revisão: Fadwa Hallage Redação: Rua Barão do Bananal, 1.125 Tel. (11) 3862-7286 ramal 3 05024-000 São Paulo, SP e-mail: icaps@camilianos.org.br Periodicidade: Mensal Prod. gráfica: Edições Loyola Tel. (11) 2914-1922 Tiragem: 3.500 exemplares

Assinatura: O valor de R$13,00 garante o recebimento, pelo Correio, de 11 (onze) edições (janeiro a dezembro). O pagamento deve ser feito mediante depósito bancário em nome de Província Camiliana Brasileira, no Banco Bradesco, agência 0422-7, conta corrente 89407-9. A reprodução dos artigos do Boletim ICAPS é livre, solicitando-se que seja ci­tada a fonte. Pede-se o envio de publicações que façam a transcrição.


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AS NECESSIDADES DO DOENTE E DE SUA FAMÍLIA NOS CUIDADOS PALIATIVOS A DOMCÍLIO ALBERTO REDAELLI

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o panorama da saúde de nosso tempo a progressiva redução de leitos hospitalares transferirá para as famílias o encargo da assistência aos doentes em fase terminal. Nesse contexto as equipes de cuidados paliativos deverão sempre mais identificar as necessidades do doente oncológico em fase adiantada e de seus familiares para garantir uma assistência de qualidade e apoiar o núcleo familiar. A reflexão amadurecida em nossa unidade de cuidados paliativos domiciliares ao longo deste ano tem evidenciado quatro áreas fundamentais de necessidades: a necessidade de não sofrer, de não sentir-se abandonado, a necessidade de sentir-se ouvido e a necessidade de informação e comunicação. Reconhecer estas necessidades é uma das tarefas fundamentais da equipe de cuidados paliativos a domicílio para garantir até o fim a qualidade dos cuidados. Nas fases avançadas da doença neoplásica, a queda das condições gerais, a progressiva perda de autonomia do doente e o aumento da carga assistencial geram uma série de necessidades que a equipe de cuidados deve reconhecer para produzir respostas adequadas sobre um plano humano e profissional. A assistência de um doente em fase terminal a domicílio pode ser custosa não só economicamente, mas sobretudo por custos individuais altos em termos de piora física, emocional, psicológica e espiritual. Muitos estudos sugerem planejar intervenções de apoio domiciliar, considerando entre os objetivos o suporte saudável para os familiares. Em uma investigação sobre as principais preocupações dos doentes terminais, conduzida sobre um grupo de 48 doentes submetidos à hemodiálise, 40 doentes em fase avançada de AIDS e 38 pacientes geriátricos afetados por doenças neurológicas ou respiratórias, o grupo canadense de Singer tem permitido colocar em destaque cinco pontos para concentrar atenção: a necessidade de aliviar os sofrimentos físicos; o desejo de não prolongar excessivamente a agonia; manter,

o máximo possível, lucidez e controle; não oprimir os familiares com preocupações excessivas; discutir a enfermidade com os familiares e a equipe médica. Tais reflexões são determinadas pela composição dos sujeitos em estudo, constituídos por pacientes de ambiente anglo-saxão conscientes do diagnóstico e do prognóstico da doença; mas a investigação de Singer é uma provocação para um estudo e reflexão que põe em destaque quatro necessidades do doente e de seus familiares.

A necessidade de não sofrer Durante as últimas fases da vida a presença da dor ou graves sintomas perturbadores (confusão, vômito, dificuldades em respirar) não só piora a qualidade de vida do enfermo como representam uma das principais fontes de estresse dos familiares. Particularmente o controle da dor se torna um dos objetivos mais importantes a perseguir: tal sintoma representa por si só mais de 85% das solicitações para ingressar no programa de cuidados paliativos a domicilio da fundação FECUPAL. O doente não deseja sofrer e pede um tratamento adequado para sua dor. Entretanto, ainda hoje entre 42% e 51% dos doentes neoplásicos recebe um tratamento inadequado da dor, por motivos que vão do insuficiente conhecimento dos fármacos opióides ao medo, por parte dos médicos, da tóxico-dependência. Tal situação é comum a muitas experiências: na Escandinávia 50% dos médicos e enfermeiros tem escasso conhecimento da dor e da sua evolução, enquanto que na França só 25% dos médicos de clínica geral e 45% dos especialistas recomenda o uso de opióides para a dor de câncer. Em particular, o idoso com dor neoplásica tal sintoma é subestimado e sub-tratado: só 13% dos pacientes com mais de 85 anos recebe fármacos opióides por uma dor neoplásica grave. Os familiares, frequentemente, encontram-se sós para administrar terapias com-

plexas: nestes casos a equipe deverá melhorar a assistência cotidiana e limitar o estresse e o cansaço que expõem os cuidadores a problemas de saúde e de isolamento.

A necessidade de não ser deixado só Dizia Gigi Ghirotti uns meses antes de morrer por um linfoma: “O que conta na vida frente à morte é não sentir-se abandonado e só”. Cada dia experimentamos a verdade destas palavras: o doente terminal e sua família tem sido geralmente abandonados pelas estruturas a quem faziam referência; sozinhos não estão em condições para enfrentar a complexidade dos sintomas nas últimas etapas. Uma das tarefas fundamentais das equipes de cuidados paliativos é garantir ao doente não abandoná-lo: freqüentes contatos telefônicos, visitas mais prolongadas e atentas e um serviço de apoio alegre diminuem a ansiedade e o sentido de isolamento no doente terminal e seus familiares. Mais de 25% das famílias dos doentes neoplásicos em fase avançada tem assinalado a escassa presença do médico familiar na assistência e a dificuldade na prescrição e disponibilidade dos remédios, mostrando uma necessidade de maior ajuda diária.

A necessidade de sentir-se ouvidos O tempo dedicado às questões sobre a qualidade de vida nas entrevistas com os doentes de cuidados paliativos é, como nas visitas médicas gerais ou de outras especialidades, bastante curto. Um estudo conduzido em Amsterdã, que examinou as comunicações entre 10 oncólogos e 240 pacientes em terapia paliativa, enfatizou que 64% do tempo empregado pelos médicos nas entrevistas era destinado a questões técnicas, enquanto que só 24% à qualidade de vida do paciente. Quando se apresentavam dificuldades emocionais, não enfrentavam em uma incidência de mais da metade. A necessidade do doente e de seus familiares se entrelaça, então, com a ne-


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cessidade dos médicos e dos cuidadores da saúde de uma maior formação sobre os aspectos relacionais com o doente moribundo. O médico recém formado de fato tem adquirido em seu processo de formação conhecimentos sobre os processos patogênicos das doenças, sobre seu transcurso, sobre seu tratamento e, se teve sorte, tem visitado algum doente e escutado a história de sua doença. Na melhor das hipóteses adquiriu um pouco de experiência e criou uma metodologia de trabalho, mas ninguém lhe ensinou que frequentemente os doentes morrem, e que muitos deles sofrem. O novo médico não está preparado para enfrentar uma doença incurável porque em seus anos de estudo foi arraigada a convicção de que seu objetivo principal é curar os doentes: quando isso não acontece, a incurabilidade se transforma em abandono: “Não há mais nada a fazer” são palavras que acompanham a rendição frente à evolução de muitos processos mórbidos, pronunciadas por médicos que não estão em condições de reconhecer um “algo mais” na última intervenção. Observava Feifel em 1965: “É estranho constatar que embora a cura dos moribundos seja confiada aos médicos nos hospitais, os médicos rechaçam a morte mais que as pessoas comuns”.

A necessidade de informação e comunicação Os doentes e seus familiares, em algumas ocasiões, queixam-se por receberem informações incompletas por parte

do pessoal médico e de enfermeiros: este dado é bastante surpreendente porque se refere não só aos hospitais, mas também às assistências domiciliares. A pressa, as evasivas nas respostas, e o escasso tempo dedicado à explicação das terapias podem criar incômodo e dificuldade ao doente e à sua família. A situação se agrava nos pacientes hospitalizados: Jockey relata que 27% das famílias de pacientes terminais neoplásicos hospitalizados não se lembram de ter conversado com um médico e que 19% lembram-se haver conversado apenas uma vez. Houts observa que a quarta necessidade mais freqüente sobre 11 assinaladas em fase terminal se refere à insuficiente comunicação com a equipe de saúde e que o fato se deteriora quando passa de uma fase intermediária para uma fase terminal neoplásica. Já Hinton, em 1979, observava que uma comunicação aberta entre doente-família e a equipe médica diminui a ansiedade e a depressão do doente. Mais uma vez a necessidade expressada pelo doente e por seus familiares voltam-se para uma transformação do modelo tradicional de curas, que considera o médico o centro e o paciente um dócil executor de prescrições médicas. Nos cuidados paliativos cada agente é chamado a levar a cabo um rol de conselheiro, de testemunha participante que não “cura” mas que “toma as dores”, cuida das necessidades, expressas ou não, do doente e de sua família.

Conclusão Em uma época em que se atua para um progressivo encaminhamento dos pacientes terminais a seus domicílios, dever-se-á transferir ao núcleo familiar maiores responsabilidades assistenciais. Um reconhecimento insuficiente das necessidades das famílias, e preparar para elas um apoio lento levarão a uma carga assistencial inaceitável para as famílias dos doentes. Frequentemente as motivações de uma hospitalização imprópria do paciente terminal são representadas pelas dificuldades dos familiares, independentemente do nível de controle dos sintomas ou da gravidade dos quadros patológicos. Garantir a continuidade dos cuidados, controlar os principais sintomas que molestam e sustentar a família em uma abordagem multidimensional e de equipe, representam as grandes diretrizes de resposta às necessidades do doente neoplásico. Estes elementos, próprios do modelo assistencial dos cuidados paliativos, poderão constituir assim no futuro os termos de uma “aliança de não abandono” do doente, delineando novos modelos relacionais que a trilogia clássica hipocrática (enfermo – médico – enfermidade) seja substituída pela mais atual: equipe multidisciplinar – enfermo – família.

Alberto Radaelli é padre camiliano e trabalha no Equador.

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ENVELHECER COM HIV

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e de um lado a vivência dos jovens soropositivos pautou boa parte das discussões travadas em Florianópolis, de outro a experiência de envelhecer com HIV também foi motivo para muita conversa. Além da visível presença de ativistas grisalhos participantes, não foram poucas as intervenções acerca de demandas e vulnerabilidades específicas desta população. Os números corroboram as preocupações. Dados do Programa Nacional de DST e Aids indicam um aumento significativo no número de casos notificados em homens com mais de 50 anos, entre 1996 e 2006. Entre os indivíduos com mais de 60 anos, as notificações dobraram; entre as mulheres, a situação é mais grave: o número de senhoras com mais de 50 anos infectadas pelo HIV em 2006 já era três vezes maior do que em 1996; entre as sexagenárias, o número quase quadruplicou. Não é por acaso, portanto, que o tema da campanha para o 1º de dezembro será “Aids em pessoas acima dos 50 anos”. Integrante do Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas em Porto Alegre, Beatriz Pacheco contou à Radis que já em 1998 percebeu que não era a única mulher infectada com mais de 50 anos, quando reivindicou atenção maior do Ministério da Saúde para essa faixa etária. “Disseram que eu estava puxando a brasa para a minha sardinha”, relatou. Prestes a completar 60 anos, Beatriz lembrou de um encontro de capacitação de mulheres soropositivas do qual participou em São Paulo, no início da década de 2000. Na ocasião, reunidas cerca de 120 participantes, 30 delas já eram avós, fato que confirmava sua preocupação. Segundo a ativista, há uma demora de pelo menos três anos entre o diagnóstico de um problema por quem trabalha “na ponta” e a “constatação científica” dos especialistas e das autoridades de saúde. Ela avisou: “Para nós, três anos é muito tempo”. De todo modo, o reconhecimento vem em boa hora, disse, mas espera-se que se fortaleça um trabalho mais estruturado de prevenção para o “adulto maduro”. Expectativa semelhante manifestou o arquiteto e arte-terapeuta José Hélio Costalunga de Freitas, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/

Aids (RNP+). “Está na hora de se começar a pensar em políticas públicas para a melhor idade”, observou, informando que somente em Porto Alegre já existem quase 1.000 pessoas vivendo com HIV. Por outro lado, há o ineditismo da situação – “tudo é muito novo; jamais se pensou que estivéssemos vimos hoje”. Aos 56 anos, Zehélio – como é conhecido – ponderou que são muitos elementos a serem levados em consideração quando se fala em “envelhecer com HIV”. “Ainda não estamos preparados para enfrentar a epidemia”, assinalou, lembrando que não é fácil conviver com os efeitos colaterais de medicamentos e enfrentar o estigma. “Há 25 anos que as pessoas imaginam que esta é uma doença de homossexuais, de drogados”.

Prevenção precária Também para ele é “precária” a política de prevenção: “Ninguém jamais imaginava que velho fazia sexo”, ironizou. “Existe uma fantasia de que as pessoas mais velhas não são sexuadas”, concordou Beatriz. A reclamação parece recorrente: “Os profissionais de saúde pensam que não fazemos mais sexo. Estamos ativos”, reclamou Edvaldo Fernandes Farias, vice-presidente do Fórum de ONG/Aids da Paraíba e da União Voluntária de Apoio Aos Soropositivos de João Pessoa. Beatriz contou que percebe “olhares jocosos” quando revela sua condição sorológica – “como se perguntassem: o que essa velha andou fazendo”? – e denunciou um procedimento excludente em Porto Alegre. Segundo ela, a recomendação oficial é de que sejam distribuídos preservativos nos postos de saúde apenas aos indivíduos de até 49 anos. Para os mais velhos, a orientação é de entregar somente se for solicitado. “Sua avó pediria? Para uma mulher na minha idade, é difícil”, disse ela, mãe de quatro filhos, avó de três netos. “Essa mulher foi criada para ser somente protagonista do prazer do homem, é uma mulher que não se toca, que muitas vezes nem aprendeu a ter prazer”, comentou. “Como vai se sentir confortável para solicitar um preservativo”? Para Beatriz, o ponto principal da prevenção é o direito à sexualidade. “É preciso um olhar sério para a prevenção”.

A ativista ainda recomendou que não são adequados os mesmos argumentos empregados com os mais jovens, “que não viveram tabus e dificuldades” de uma geração marcada por forte apelo religioso e preconceitos em relação à sexualidade. Edvaldo concordou. “Há muitas pessoas da nossa idade que se recusam a usar preservativo por puro conservadorismo”, constatou. “A igreja não aceita a camisinha e, no Nordeste, a religiosidade influi muito”.

Perigosa associação Zehélio lembrou de outro fator que dificulta a adesão dos mais velhos ao sexo seguro: a chegada dos medicamentos que combatem a disfunção erétil no mercado. Para se evitar a perigosa associação do remédio ao não-uso do preservativo, ele defendeu a “erotização da camisinha”, porque a maioria dos homens de sua idade acredita que o preservativo atrapalha ou diminui a sensação de prazer. Beatriz lembrou de outra especificidade: muitas mulheres se sentem mais confortáveis em relações protegidas pelo preservativo feminino, já que é comum que apresentem ressecamento vaginal. Segundo ela, o uso do gel lubrificante diminui o desconforto de uma possível “ereção não-adequada”, também comum entre os homens acima de 60 anos. Daí a necessidade de se adaptar o discurso de prevenção: “É preciso aceitar que o idoso é sexuado”. Dados do Programa Nacional de DST e Aids, divulgados na revista Resposta +, distribuída no congresso, informam que o Ministério da Saúde distribui mais preservativos masculinos do que femininos pelo alto custo (R$ 7 a unidade), já que há poucos produtores em todo o mundo. Diagnosticada HIV+ desde 1997 – “sou uma HIVéia” - Beatriz criticou as ações de prevenção, quase sempre direcionadas para a população considerada “produtiva”, em detrimento dos que já se aposentaram, e classificou como errada a visão dos que consideram as políticas de saúde para o idoso como “gasto”. Ao contrário, defendeu, investir “na felicidade dos velhos” só rende lucro, já que promove auto-estima e o não-adoecimento. Há 20 anos convivendo com o HIV – “40% da minha vida” –, Zehélio deu uma


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dica: “aceitar” a condição de soropositivo é “a melhor decisão”. Em relação aos profissionais de saúde, alertou: combater o estigma é a principal recomendação, a começar pelas salas de espera dos postos de saúde, onde “ninguém se olha, ninguém se toca, ninguém se fala”. A humanização dos espaços de saúde proporcionaria o “acolhimento” dos pacientes, disse. Ele propõe que os médicos expliquem, logo na primeira consulta, como será o processo terapêutico e indiquem uma terapia de apoio. “É uma maneira de se aproximar da pessoa sem machucá-la, de enfrentar a situação de forma sutil”. Professor e técnico em enfermagem, Edvaldo narrou sua experiência em dois livros: O amor vence a dor e faz viver, e Aids – aspirações e vivências de um portador. No segundo, levado por ele ao congresso, a defesa do poder da informação e da mobilização: “O vírus precisa de discriminação e da falta de apoio para se tornar cada vez mais agressivo”, diz o texto. É fundamental a parceria com área de saúde mental, sugeriu. “Por que a redução de danos só é usada em tratamento de drogados”? No enfrentamento da “finitude” e na aceitação da nova condição pode-se transformar a vida, observou. Edvaldo foi enfático ao alertar para a “banalização” da vivência com Aids: não é fácil monitorar o vírus no organismo ininterruptamente. “Viver a condição crônica desgasta”.

O HIV envelhece

Problema que o infectologista Gustavo Magalhães, professor da Uerj e pesquisador do Ipec/Fiocruz, confirmou: O HIV antecipa o processo de envelhecimento. De certa forma, há uma frequência mais alta de processos de demência em pacientes soropositivos e um maior prejuízo do sistema imunológico. Por conta disso, também é comum entre idosos com HIV o diagnóstico de pneumonias e herpes zoster. Entre os que se contaminaram mais cedo e fazem uso prolongado de antiretrovirais, são comuns os casos de lipodistrofia – alterações na massa corpórea, como aumento de gordura na região do abdômen, entre os ombros, em volta do pescoço ou no tórax (especialmente em mulheres) ou perda de gordura da pele, mais aparente nos braços, pernas, nádegas e rosto. A lipodistrofia causa ainda enfraquecimento da face, atrofiamento das nádegas e veias aparentes em pernas e braços. Gustavo alertou para outro perigo constante, que é a elevada prevalência de tuberculose entre as pessoas HIV+. Segundo ele, é preciso que se realizem exames freqüentes de rotina pelos profissionais que acompanham o paciente, entre os quais o teste tuberculínico, ou PPD, que deve ser feito anualmente. PPD é uma sigla que indica um derivado purificado da proteína do

bacilo da tuberculose. Quando injetado na pele, provoca reação local, um sinal de que o organismo reconhece aquele líquido injetado como se fosse o próprio bacilo agressor.

Atenção aos impactos Assessor técnico da unidade de assistência e tratamento do programa DST/Aids, o infectologista Ronaldo Hallal também orientou os que trabalham na ponta com pessoas HIV positivas mais velhas: devem estar atentos aos impactos do uso prolongado de anti-retrovirais. Em primeiro lugar, recomendou, é necessário incentivar “um estilo de vida saudável”, com dieta equilibrada e exercícios físicos como prevenção à lipodistrofia e ao risco de problemas cardiovasculares. Em segundo lugar, é “essencial falar sobre as dificuldades de adesão sem fazer juízo de valor, para detectar as fragilidades e corrigi-las precocemente”. Esta abordagem deve ocorrer logo no início do tratamento. A principal estratégia deve ser o incentivo à adesão aos medicamentos: “É o segredo do sucesso”, disse Gustavo. E explicou: “Ao aderir não é somente tomar remédios na hora certa, é realizar exames, ter boa alimentação, comparecer às consultas, conversar com a equipe multiprofissional e ter melhor qualidade de vida”. Artigo extraído da Revista Radis agosto 2008.

Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde Tel. (11) 3862-7286, ramal 3 e-mail: icaps@camilianos.org.br Rua Barão do Bananal, 1.125 05024-000 São Paulo, SP

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