Março de 2010 ANO XXVII - nº 283 PROVÍNCIA CAMILIANA BRASILEIRA
COMUNICAR A MORTE: UM DESAFIO AOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE ANÍSIO BALDESSIN
N
uma tarde de sexta feira, aproveitando a aparente tranqüilidade do hospital fui fazer uma visita de rotina na UTI do Instituto da Criança. Logo na chegada percebi um clima de muita apreensão. A equipe de profissionais concentrava seus esforços à paciente que estava no leito à direita ao fundo da unidade. Vendo a realidade tentei passar discretamente. Mas, ouvi a voz de alguém dizendo: “o padre chegou na hora certa”. Para não atrapalhar, fiquei conversando com a mãe de uma outra paciente que, apreensiva, acompanhava tudo com o que acontecia ao lado. Os médicos paramédicos, numa luta incansável se revezavam na tentativa de reanimar a paciente. Porém, apesar de todo esforço técnico e humano a paciente não resistiu. Desolados, restava ainda dois desafios que deveriam ser enfrentados pela equipe. O primeiro, enfrentar a perda daquela criança, quase adolescente, que se tornara uma pessoa querida por todos e que, como num “fracasso” profissional acabara de falecer. O segundo, certamente o mais difícil, ir ao encontro da mãe e comunicar a ela uma das piores notícias que certamente ela já ouviu. Não demorou muito para que o médico assistente acompanhado de médicos residentes e outros profissionais saíssem para encontrar a mãe que, ansiosa, aguardava na salinha que fica em frente a UTI. Sala essa que costumo chamar “muro das lamentações” uma vez que é aí o lugar onde os familiares ficam esperando o momento de adentrar na unidade.
Enquanto isso cada um partilha a dor e lado trágico da vida. É um verdadeiro “vale de lágrimas”.
todo esse dinheiro. Esse dinheiro poderia servir para comprar medicamentos para um outro doente”.
Quando cheguei o médico assistente tentava “preparar” a mãe para a desagradável notícia. Por fim, com cuidado e usando a melhor maneira possível, ele comunicou o falecimento da criança.
Enquanto isso, eu permanecia em pé prestando atenção a tudo aquilo que estava acontecendo sem, no entanto emitir ou expressar uma única palavra. Tentava me comunicar apenas de forma não verbal. O assistente não satisfeito, sentindo-se impotente, desconfortável e incomodado pela situação e certamente também com a minha aparente apatia deu a última cartada. “Mãe, você conhece o padre? Ele é o nosso capelão que presta assistência religiosa aqui no hospital”. “Conheço sim”. “A senhora não gostaria dar uma palavrinha com ele que é representante de Deus”? E ela, mais uma vez respondeu: “Não adianta não doutor. Deus não ajuda e nem salva ninguém não. Tanto que eu já rezei e pedi e ele não curou minha filha. Agora não adianta mais nada”.
A mãe, como era de se esperar, ao ouvir a notícia entrou em desespero. Por um momento, sentindo-se impotentes todos fizeram silêncio para ouvir somente as palavras e os lamentos da mãe. Aliás, essa postura silenciosa talvez tenha sido a ajuda mais importante que eles deram à mãe, ou seja, estar com ela. Mas, incomodado pelo desespero da mãe, e com dificuldades de ficar em silêncio o assistente resolveu falar tecendo alguns comentários. O primeiro dele foi: “veja mãe, você foi uma guerreira, sempre lutou e o tempo todo esteve ao lado da filha. Você deve se orgulhar disso”. A mãe respondeu secamente: “pois é doutor, do que adiantou tudo isso. Se eu tivesse ficado em casa cuidando dos outros filhos talvez tivesse sido bem melhor. Eu privei os outros da minha presença e mesmo assim ela morreu. De nada adiantou eu lutar. Foi tudo em vão”. “Não foi não” responderam os componentes da equipe. E o assistente continuou: “Olha mãe, nós conseguimos uma medicação de alto custo para sua filha, investimos tudo o que foi possível tanto técnica como humanamente. Sua filha foi privilegiada”. Ao ouvir isso a mãe retrucou: “é doutor, vocês jogaram dinheiro fora. De nada adiantou gastar
a
O que dizer? Em primeiro lugar aquele que vai comunicar a morte precisa saber que nem todos os desabafos e lamentações requerem uma resposta verbal. Segundo, deve estar ciente de que não são somente as palavras que consolam. Um abraço, o estar ao lado, a compreensão dos sentimentos são muito mais importantes. Nessas circunstâncias, eu prefiro a expressão, o que não dizer. Afinal, sempre dizemos o que não deveríamos. Como capelão, ao longo dos anos já vivenciei muitas situações semelhantes. Confesso ainda que também já fiz discursos com frases feitas tentando acalmar as pessoas. Depois eu percebi e cheguei à conclusão que essas
Ano XXVII - nº 283 - Março de 2010 - BOLETIM ICAPS
2
frases serviam muito mais para meu consolo. Todavia, com o passar do tempo fui percebendo que nessas horas, há muito pouco o que fazer uma vez que a perda envolve toda pessoa: corpo, sentimentos, o espírito, o estilo de vida. Assim sendo, a melhor maneira de ajudar na hora da comunicação é compreender o que a pessoa enlutada está atravessando nos aspectos físicos, emocionais, sociais e espirituais.
ORTOTANÁSIA: UM RESPEITO À PESSOA E A UM MORRER DIGNO
Portanto, nada de usar frases feitas e “chavões” tais como: “a gente fez o máximo! Usamos a melhor tecnologia! Todos se dedicarão de corpo e alma! Não fique assim! Não chore! Descansou! Se ele continuasse vivo nessa situação iria sofre para o resto da vida. Foi melhor para ele (a)! Além disso, ninguém morre até que não chega a hora, ou ninguém morre na véspera! Com certeza ele (a) passou dessa para uma melhor! Deus precisava de pessoas boa como ele (a) também! Ou ainda, quando se sabe que existem outros filhos dizer: “agora você tem cuidar dos outros filhos e da sua casa”! Não desanime não! Tudo isso vai passar! O tempo cura tudo. Além disso, não fique fazendo perguntas não contribuirão em nada para o bem estar da pessoa enlutada.
Como se trata de um momento difícil, vejo aqui a importância dos ministros dos enfermos, das visitas aos doentes levando a eles a confiança, a esperança e a conformidade. Como nos sentimos mal diante do que fazem alguns familiares, que se atiram no desespero e se desmancham em crises histéricas, piorando ainda mais a situação já custosa. Culpam a Deus, aos médicos, à medicina. Aquilo que devia ser uma aposta pela vida, uma que a existência terrena não é definitiva, acaba em cenas de desespero absurdo.
Por fim, nessas horas, não devemos nos esquecer de que a ajuda é sempre direcionada ao outro. Assim sendo, antes de qualquer palavra, pergunta ou conselho pense: isso vai ser de ajuda para ele! Caso contrário, fique em silêncio. Afinal, “o silêncio é tão importante que nós só deveríamos falar quando as palavras forem mais importantes do que o silêncio”. a
Anísio Baldessin é capelão do Hospital das Clínicas da FMUSP.
HÉLIO LIBARD Com esse nome entendemos a realização e o respeito a dois valores éticos do morrer: respeito à vida humana e o direito de morrer dignamente. A morte é o último acontecimento importante da vida humana, não podemos privar o ser humano de assumir esse momento de uma maneira digna e respeitosa. Isso significa que devemos usar os recursos ordinários na medicina sem, contudo, nos esquecermos que é importante dar atenção aos aspectos humanos de uma assistência, criando um clima de confiança, de calor humano ao redor do doente. Ele não pode experimentar a angústia da solidão nessa hora. Faz parte dessa assistência a presença religiosa. A fé constitui uma ajuda muito grande para se poder vencer o medo da morte e as várias tensões que se criam dentro de cada um. Nenhum remédio pode tirar a possibilidade de o doente assumir a própria morte. Além disso deve-se respeitar o direito do doente de escolher se enfrenta essa hora com dor ou sem dor. Morrer é a última ação do ser humano, como é que se pode tirar dele o direito de decisão? A sociedade hoje procura esconder a morte e suas conseqüências. Tudo é feito para minimizar esse acontecimento. Nós entramos nessa onda e tentamos também disfarçar as situações críticas para que o doente não perceba. O importante é não iludir o doente, é não ser desumano dando esperança a quem já não a tem. Todos
devíamos nos preparar para ajudar a pessoa a aceitar com serenidade a morte como um passo para a vida nova com Deus. Aceitar não porque Deus quer, mas porque a natureza já dá sinais visíveis de que não consegue reter a vida.
Hoje é difícil morrer, porque tudo nos impede de chegar a uma reflexão sadia, séria e condizente com essa hora. A sociedade oculta a morte, mas ela existe ao nosso redor. Jesus se comove diante da morte e dá sua vida para que outros possam viver plenamente. Ele aceita sua morte, apesar da angústia e do medo. No alto da cruz nos dá a última lição: “Pai em vossa mãos entrego meu espírito”. Hoje pode serenamente dizer: Jesus nos ensina a viver e nos ensina a morrer. Oxalá rezássemos todos os dias: “Senhor, dai a cada um sua própria morte”. a
Hélio Libardi, padre, Missionário Redentorista que trabalha nas missões populares.
CURSO DE PASTORAL DA SAÚDE A Paróquia N. Sra. do Rosário, o ICAPS e a Coordenação da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de SP (região SÉ) em parceria com o Centro Universitário São Camilo estão organizando um curso de Pastoral da Saúde a fim de preparar as pessoas para visitas a doentes hospitalizados e nas casas, bem como capacitá-los para levar a Eucaristia. Aulas quinzenalmente aos sábados das 8:30 às 11:00 horas, no Centro Universitário São Camilo à Rua Raul Pompéia, 144, SP. Informações: (11) 3862-7286 Ramal 3, com Cláudia.
Ano XXVII - nº 283 - Março de 2010 - BOLETIM ICAPS
3
ICAPS tem novo diretor O Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde – ICAPS, a partir do inicio desse ano de 2010 tem um novo Diretor: o religioso c a m i l i a n o Alexandre Andrade Martins. O ICAPS foi criado pela Província Camiliana Brasileira em 1981, substituindo o CAPS (Cultura, Antropologia e Pastoral da Saúde), que não conseguiu emplacar seus objetivos. O ICAPS tem como principal objetivo: “desenvolver a Pastoral da Saúde em âmbito local, regional e nacional, atuando nos hospitais, dioceses, paróquias e domicílios, fornecendo apoio e subsídios pastorais, tais como: cursos, palestras, publicações de livros e artigos”. Alexandre assume esse instituto como o seu quarto diretor. Quando criado o ICAPS teve como primeiro diretor o Pe. Afonso Pastore, mas que não chegou a assumir na prática. Apenas em 1982, o ICAPS começa sua atuação de fato quando assume sua direção o Pe. Léo Pessini, ficando até 1995, quando assume o Pe. Anísio Baldessin permanecendo até final de 2009. Em 1983 cria-se o “Boletim ICAPS” uma publicação mensal que fornece textos para auxiliar no trabalho
da Pastoral da Saúde e divulga os trabalhos e eventos ligados a essa pastoral. Temas de ética e bioética também fazem parte desse boletim, pois o ICAPS, com a sua missão de promover a saúde e defender a vida digna do seres humanos nos passos do discipulado cristão, passou a ser também um instituto que reflete sobre os problemas bioéticos. Desse modo os temas que integram seu boletim são resumidos em três eixos: pastoral, humanização e bioética. O ICAPS é constituído por religiosos camilianos e trabalha em conjunto com a Coordenação Nacional da Pastoral da Saúde da CNBB; juntos atendem as solicitações de cursos e organizam atividades pastorais nas três dimensões da Pastoral da Saúde: solidária, comunitária e políticoinstitucional.
de servir os enfermos a exemplo do São Camilo; refletir, rever e atualizar as finalidades principais do ICAPS que foram estabelecidas em 1982 e ainda não revistas; e motivar, integrar e animar os religiosos camilianos na reestruturação da Equipe ICAPS. Finalizamos esse nosso texto informativo, agradecendo do fundo do coração ao Pe. Anísio pelos anos que ele dedicou ao ICAPS, anos de muito trabalho, dedicação e amor no ministério da Pastoral da Saúde, sempre a serviço dos enfermos. O Pe. Anísio agora segue por outros caminhos, mas continuará atuando na Pastoral da Saúde e colaborando com o ICAPS. Pe. Anísio, muito obrigado por tudo que o senhor fez ao ICAPS e que Deus o abençoe nessa nova missão!!!
O camiliano Alexandre, que assume o ICAPS, é mineiro de nascimento e acreano por migração, pois sua família vive no Acre há 14 anos. Ele está nos camilianos há 11 anos, nos quais sempre atuou na Pastoral da Saúde, ministério que exerce atualmente no Hospital das Clínicas de São Paulo. Sua formação é em filosofia, teologia e especialização em Bioética e Pastoral da Saúde, além de ser técnico em enfermagem. O novo diretor tem como missão dar continuidade às atividades do ICAPS, animando seu carisma e vocação
COMUNICAÇÃO E PASTORAL DA SAÚDE ALEXANDRE ANDRADE MARTINS A comunicação faz parte da constituição existencial do ser humano como ser que naturalmente se relaciona com as coisas e com o semelhante, isto é, um ser-para-o-mundo e ser-para-ooutro. Isso é uma característica tão forte, que desenvolvemos técnicas cada vez mais apuradas para nos comunicar, como o uso de sons emitidos pela boca codificados e facilmente compreendidos pelos outros que conhecem esses códigos, referimo-nos ao uso da fala e
apesar dos habitantes do mundo falarem inúmeras línguas diferentes, ela é o principal meio de comunicação humana e de nosso uso exclusivo. Porém não nos comunicamos apenas com o uso da fala, que chamamos de linguagem verbal, comunicamos muito também pela linguagem não verbal e, certamente, é esse tipo de comunicação a maior responsável por nos aproximarmos das pessoas e criar vínculos numa relação interpessoal ou de levar a um
distanciamento. O que nos uni aos outros não é primeiramente o discurso, mas aquilo transmitido de nós mesmos pela linguagem não verbal. Se estamos em relação com alguém, direta ou indiretamente, transmitimos algo, comunicamos algo de nós mesmos – muitas vezes de modo natural e até inconsciente – e/ou algo que temos como objetivo transmitir – como expressar uma idéia ou um sentimento. Diante do outro sempre estamos em
Ano XXVII - nº 283 - Março de 2010 - BOLETIM ICAPS
comunicação, querendo ou não. Sendo assim, precisamos pensar sobre a comunicação na pastoral da saúde, pois ela é fundamental para podermos proporcionar uma relação de ajuda aos enfermos que visitamos e desejamos socorrer. Quando pensamos em relação de ajuda na pastoral da saúde, precisamos pensar em como podemos proporcionar essa relação no contato com os enfermos. Mencionamos os dois tipos de linguagens, a verbal e a não verbal, mas precisamos desenvolver um pouco sobre essas linguagens, pois é basicamente por elas que um agente de pastoral da saúde pode proporcionar uma relação de ajuda. A linguagem verbal (que não vamos nos deter muito, pois já foi muito explorada em outros textos sobre a visita pastoral aos enfermos) diz respeito aos sons emitidos pela nossa boca, isto é, o que falamos. Na pastoral da saúde o cuidado com a fala é fundamental para uma boa visita aos enfermos, pois ela é como uma faca de dois cumes: pode curar e confortar, mas pode também ser maligna e ferir o outro. O agente de pastoral deve ter consciência dessa linha tênue entre o “bem” e o “mal” que suas palavras podem causar. Sendo assim, uma primeira orientação e sempre válida é que o agente deve falar o menos possível numa visita e se colocar disposto a ouvir o enfermo em tudo que ele tem a dizer. Quando o agente for dizer algo, suas palavras devem ir sempre ao encontro daquilo que o enfermo disse e da situação na qual ele está passando. O tema do diálogo pastoral deve ser conduzido pelo doente e não pelo agente, que certamente falará mais pela sua postura de escuta e atenção ao lado do quem sofre do que por palavras. Comunicamos muito pela linguagem não verbal e geralmente é por meio dessa comunicação que estabelecemos uma relação de ajuda. Por exemplo: nossa postura diante de alguém diz muito, diz, entre outras coisas, que estou ao lado do outro por amor ou por obrigação, se me preocupo com o outro ou se estou ali apenas com o
corpo porque não deseja está com tal pessoa. Visitar um enfermo e ter uma postura desatenciosa compromete a visita e pode tornar aquele momento desagradável para o doente. Sendo assim, é fundamental termos consciência do que comunicamos com nossa linguagem não verbal para evitarmos transmitir algo que fira os enfermos. Um dos caminhos para chegarmos à consciência do que transmitimos de forma não verbal é conhecer os principais meios que essa comunicação se expressa. A Comunicação não verbal pode ser dividida em seis dimensões: cinésica, proxêmica, tacêsica, paraverbal, características físicas e fatores do meio ambiente. A cinésica é linguagem do nosso corpo. Aquilo que transmitimos com gestos, sinais faciais, olhar, boca, postura corporal etc. Por exemplo: enquanto o enfermo fala, eu viro o rosto e olho para a TV, isso diz para o enfermo que sua fala não tem importância. A proxêmica é a distancia que eu me coloco do outro, que varia de acordo com a intimidade entre as pessoas e com o ambiente onde se encontram. Numa visita aos enfermos deve-se manter uma distância na qual não precisa conversar alto e, ao mesmo tempo, não invada o espaço do outro como ficar encostado no leito do paciente. A tecênica é o toque. Aqui é necessária uma atenção muito grande porque não é em todo lugar que se deve tocar uma pessoa e, às vezes, é bom nem tocar. O toque precisa respeitar os parâmetros da cultura; no nosso país tocamos as mãos para cumprimentar alguém que não temos intimidade, então na visita pastoral não devemos ultrapassar isso. A linguagem paraverbal é aquilo que reforça a linguagem verbal como os gestos, as emoções, o tom de voz. Exemplo: se falo com um tom irônico transmito essa ironia, se falo com uma voz mais suave transmito certa serenidade. As características físicas estão ligadas aos sinais que meu corpo traz consigo como: sexo, idade, origem étnica, estado de saúde e até caráter. Aqui pode ser
4
incluído o que é transmitido pela vestimenta, pode dizer a que grupo a pessoa pertence (se usa um avental branco logo assimila ser um profissional da saúde, se nesse avental tem um símbolo da pastoral da saúde, então é um agente), ao status social que deseja ter, as intenções da pessoa, se quer ocultar algo etc. O meio também diz muito na comunicação, indica se é bem-vindo ou não, se há receptividade ou não. No hospital a enfermaria e o leito é o meio do paciente, que faz dele o seu ambiente pessoal enquanto permanece nesse lugar. Percebemos isso quando o enfermo leva um foto dos familiares ou uma imagem de santo e coloca na mesinha ao lado do leito, quando coloca a sandália de tal modo, arruma seus utensílios de higiene a sua maneira etc. Tudo isso precisa ser considerado e respeitado na visita aos enfermos tanto em um hospital como a um enfermo que está na sua própria casa. Pela nossa capacidade de usar a linguagem não verbal é que podemos estabelecer a empatia numa relação interpessoal com o outro que é estranho a nós e nós ele, no caso da pastoral a relação entre agente e enfermo, conseguindo isso, deixamos o caminho aberto para a relação de ajuda acontecer. A comunicação é nossa habilidade e vontade de expressar no mundo. Se nós temos consciência do que queremos expressar/comunicar, vamos adquirindo habilidade para melhor nos expressar. Assim conhecer as maneiras que podemos nos comunicar de forma verbal e não verbal é fundamental para nos expressarmos bem e saber o que o outro nos diz. Na pastoral da saúde isso é muito importante para as duas vertentes: do que eu comunico e do que o outro comunica. Estamos conscientes e atentos das possibilidades e dimensões da comunicação torna real uma boa relação interpessoal, evita mal entendidos e permite estabelecermos uma relação de ajuda na vida pastoral aos enfermos. a
Alexandre Andrade Martins é religioso camiliano.
Ano XXVII - nº 283 - Março de 2010 - BOLETIM ICAPS
5
O radar emocional JOSÉ CARLOS BERMEJO Em um workshop realizado recentemente, utilizei um diálogo entre um profissional da saúde e um paciente. Este, um senhor de cinqüenta anos, que se encontrava no final da vida, em uma unidade de cuidados paliativos; dizia-lhe o profissional: “eu o vejo muito mal, me cheira o pior, o senhor já sabe ao que me refiro, seja o que Deus quiser; o destino brincado de uma forma mal”. Nenhum dos participantes no seminário aceitava que este homem estava falando da morte nem queria entrar diretamente no tema. a
Medo de escutar
verdade do outro, disposto a dar-lhe um espaço em si mesmo. Eu percebo muito medo da verdade. Muito medo de escutar nos ambiente de sofrimento. Talvez porque escutar exija muito comprometimento, talvez porque, como dizia Paul Tillich, escutar é o primeiro dever do amor e então falamos de coisas sérias, não de simples técnicas de comunicação. Quando implantamos essa arte no mundo do sofrimento, encontramos muita informação que incomoda. Não é cômodo encontrar-se com o medo da morte; encontrar-se com os sentimentos que produzem desprazer, dor; não ter respostas concretas nem recursos materiais para aliviar a complexidade da vida do outro. Não, não é fácil. É uma arte, uma arte precisa, valiosa e muito desejada, a qual desfrutamos quando a experienciamos, tanto de escutar como de ser escutado.
Confesso que me custa aceitar o tema da morte. Era um grupo de quinze pessoas, que já tinham cinco anos de carreira, que estavam ajudando na relação com os enfermos no final da vida e, depois de escutar o exemplo que eu O medo de escutar é o medo da apresentei, resistiam para captar essas verdade. É o medo da verdade da própria palavras por medo da morte. limitação, é o medo da vulnerabilidade. Se falar é uma necessidade que Com muita facilidade, nas relações de os seres humanos têm, escutar é uma saúde, brincamos com as mentiras. arte. Pode-se aprender, ainda que não Intencionamos e justificamos como seja fácil. Churchill dizia que para se mentiras piedosas e evitamos que levantar e falar necessita-se de valor, aconteça um encontro genuíno e também se necessita para sentar-se e autêntico entre seres humanos limitados. escutar. E creio que não falta razão. Justificamos a mentira piedosa com o Sentar-se e escutar comporta o esforço ínfimo pretexto de fazer o bem, mas na por compreender a experiência do outro, realidade nos escondemos atrás de nossa com suas categorias, com suas cognições incapacidade de olhar a face da verdade, e com suas vibrações emocionais que nos deixaria livre, humildes, concretas. Talvez fomos menos acolhedores, companheiros de caminho. educados para escutar do que para querer Isso é aparência de caridade, que se utilizar a palavra brilhantemente. esconde debaixo do hedonismo E s c u t a r é d e s á b i o s . relacional, a comodidade do Popularmente se entende que é algo c o m p r o m i s s o s u p e r f i c i a l . passivo, que se reduz ao mero exercício de ouvir e ser capaz de entender o que o Um radar muito outro disse. No entanto, a difícil arte de escutar comporta uma maturidade particular pessoal relacionada com a humildade, com o silêncio interior, com o A palavra radar é derivada de autocontrole emocional, como lidar com uma sigla inglesa (Radio Detection and o sentimento de impotência e com a Ranging) e é um sistema que detecta e liberdade de encontra-se diante da mede as distâncias por radio. Ele utiliza a
ondas eletromagnéticas para medir distâncias, altitudes, direções, velocidades de objetos etc. Quem não tem medo do radar na estrada, anda em uma velocidade superior a permitida? O radar emocional é o desdobramento do nosso sistema de detecção do mundo dos sentimentos e significados que estão atrás das palavras e da comunicação não verbal de quem se relaciona conosco. Quem ativa esse radar gasta muita energia, comprometese com a vida alheia, mas adquire muito poder sobre ela. O poder da compreensão, do alívio, da possibilidade de gerar intimidade emocional e de compreender com o coração. Quem está atento no cenário das relações de ajuda tem a grande possibilidade de aproximar do destino, do coração do ser humano e mostrar que detecta o seu palpitar íntimo, que é registrado, fotografado e devolvido com a delicadeza de quem toca em um terreno sagrado. O núcleo duro da comunicação, das relações em meio ao sofrimento, das relações que querem ser de ajuda, é o mundo das “habilidades brandas”, na qual a palma se eleva a esta arte de escutar, de entrar no mundo do outro. Escutar ou não escutar não é nada banal no exercício da medicina, da enfermagem, do trabalho social, da assistência espiritual, da psicologia... Escutar ou não escutar: essa é a questão. Radar emocional ligado ou desligado: essa é a questão. Compreender ou não compreender: essa é a questão. Entrar na verdade ou fugir dela: essa é a questão. Sim, existe alguém que, em vez de escutar o que lhe diz, está escutando o que vai dizer. Não sabe guardar silêncio interior, silenciar as vozes interiores que pedem direito de cidadania na relação. Bem sabemos que “o silêncio não pode falar não sei”. Escutar é essa fabulosa arte de acolher o que o outro diz, o que não diz, o que quer dizer no que disse e o que não quer dizer no que não disse.
Ano XXVII - nº 283 - Março de 2010 - BOLETIM ICAPS
6
Saber escutar e desejar falar aos demais corretamente é um claro sintoma de maturidade mental, intelectual e afetiva. Apenas aquele que está preparado para si mesmo, sabe aceitar os outros, incluindo seus preconceitos, exageros e outras coisas que muita gente não tolera.
cansaço da compaixão, do risco do burnout, como falamos também da resposta silenciadora de quem já não absorve mais por saturação. Por isso, ao aprender a escutar precisa aprender também a regular o grau de implicação emocional no envolvimento com o sofrimento do outro.
a
Nunca uma arte poderá reduzi-se a um conjunto de técnicas que nos faz pular a etapa antes da complexidade do encontro interpessoal. Nunca a escuta será uma mera habilidade social rotineira, como quem registra algo em uma gravadora e depois é capaz de mostrar os sonidos armazenados. Não. A arte precisa encarnar-se em cada pessoa, como se encarna o diálogo em Dom Quixote, com uma originalidade inusitada, gerando um novo modelo de conversação. A criatividade será sempre a inspiradora do qualificador “ativo” com o que nos referimos frequentemente na escuta.
Aprender a escutar A arte de escutar poder ser aprendida. Possivelmente seja até motivo de surpresa quando se fala que a escuta tem lugar hoje. Na economia das transações pessoais, a escuta é mais a valorizada e complexa de todas. Há cada vez mais iniciativas para ensinar a escutar, mas ainda são poucos os que freqüentam mestrados em couselling ou oficinas sobre escuta ativa. E, digamos também, alguns desses cursos são experiências superficiais que não apresentam o essencial como aprender a fazer silêncio interior, dispor a encontrar-se com o coração alheio, entrar no mundo da vulnerabilidade, desapegar das tendências espontâneas de anestesia ou desejo de alivio do malestar. É certo que escutar tem um preço. Não apenas coletivo, mas também um preço pessoal. Por isso, falamos do
Baltasar Gracia dizia que “não há pior surdo que o que não poder ouvir; mas há outro surdo pior, aquele que entra por uma orelha e sai pela outra”.
O Boletim ICAPS é uma publicação do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e Bioética - Província Camiliana Brasileira. Presidente: José Maria dos Santos Conselheiros: Niversindo Antônio Cherubin, Leocir Pessini, João Batista Gomes de Lima, André Luis Giombeli. Diretor-Responsável: Alexandre Martins Secretária: Cláudia Santana Revisão: Fadwa Hallage Redação: Rua Barão do Bananal, 1.125 Tel. (11) 3862-7286, ramal 3 05024-000 São Paulo SP e-mail :icaps@camilianos.org.br Periodicidade: Mensal Prod. Gráfica: IGM3 Tiragem: 2.500 exemplares A
Assinatura: O valor de R$15,00 garante o recebimento, pelo Correio, de 11 (onze) edições (janeiro a dezembro). O pagamento deve ser feito mediante depósito bancário em nome de Província Camiliana Brasileira, no Banco Bradesco, agência 0422-7, conta corrente 89407-9. A
A José Carlos Bermejo é religioso camiliano da Espanha e diretor do “Centro de
A reprodução dos artigos do Boletim ICAPS é livre, solicitando-se que seja citada a fonte. Pede-se o envio de publicações que façam transcrição.
Humanização da Saúde”.
IMPRESSO