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A CF 2012

e sua relevância para a sociedade brasileira Pe. Alexandre Andrade Martins

Todos os anos, no período da Quaresma, a Igreja Católica convida e motiva a sociedade brasileira a refletir sobre um

tema de relevância nacional. O tema geralmente é escolhido a partir de problemáticas existentes, ligadas a questões sociais, que afetam a vida de todo o povo brasileiro. Neste ano, o tema é sobre a Saúde Pública, pois, apesar de termos um sistema público de saúde universal, modelo para todo o mundo, passamos por uma situação difícil no que tange à promoção e aos cuidados com a saúde. O Sistema Único de Saúde – SUS foi uma conquista do povo brasileiro no fim da década de 1980 e início da seguinte. Trata-se de um sistema social de saúde cujos princípios são a universalidade, a integridade e a equidade. Com recursos provenientes do dinheiro público, é gestado pelo poder executivo de forma descentralizada, tendo como base, para o seu funcionamento, o controle social exercido pela população com participação ativa e deliberativa, nos Conselhos e Conferências de Saúde. Essa conquista contou com a participação da Igreja, de forma especial a partir da CF de 1981, com o tema Saúde e Fraternidade e o lema Saúde para Todos. O SUS juntou-se aos movimentos populares e à luta pela reforma sanitária na 8ª Conferência Nacional de Saúde por um sistema de saúde universal, fornecido pelo Estado, como direito de todos. Os frutos dessa conquista foram o art. 196 da Constituição Federal, que legitima a saúde como direito de todos e dever do Estado, e as Leis Orgânicas da Saúde, responsáveis por efetivar a implementação do SUS, sua gestão e organização. A atuação popular, juntamente com a Igreja, que sempre esteve preocupada com a promoção da vida digna do ser humano, foi fundamental para chegarmos ao SUS e aos inúmeros avanços no atendimento público à saúde. Há, porém, grandes deficiências e inúmeras problemáticas que estão impedindo que o SUS continue a avançar. Infelizmente nos encontramos em uma situação de precisarmos reforçar a mobilização e a participação popular para enfrentar as deficiências do SUS e continuar a avançar na promoção e no cuidado público da saúde. Sem o povo nessa luta, nunca teremos o SUS que desejamos e sonhamos. Consciente da sua missão de promotora e defensora da vida e da atual situação do sistema público de saúde, a Igreja mais uma vez convidou todo o Povo de Deus e a sociedade em geral para refletir sobre a situação da saúde no Brasil e a se envolver de forma ativa em ações visando à ampliação e à melhoria do SUS, sobretudo por meio do controle social. “Fraternidade e Saúde Pública” foi um tema que brotou do seio do Povo de Deus, especialmente da Pastoral da Saúde, que é a pastoral social atuante no mundo da saúde. Percebendo a situação calamitosa do SUS, a Pastoral da Saúde Nacional mobilizou todos os seus agentes em prol de uma Campanha da Fraternidade sobre a Saúde Pública, porque refletir sobre essa problemática era urgente e de profunda relevância para a sociedade brasileira. Os bispos responsáveis pela CNBB não tiveram dúvida e aceitaram a sugestão, pois perceberam que é importante chamar a atenção da sociedade para a saúde pública, a fim de que o nosso sistema de saúde seja ampliado e melhorado. Refletir sobre a Saúde Pública é conhecer a realidade da saúde no Brasil e perceber que aproximadamente 75% da população depende unicamente do SUS, mas que 100% o usa. Por exemplo: mesmo quem optou por um Convênio de Saúde (o que o torna não dependente do SUS), quando precisa de atendimento médico-hospitalar, utiliza o SUS para vacinar seus filhos; quando viaja, utiliza o sistema, pois é o SUS que faz a vigilância sanitária e epidemiológica nos aeroportos; se acontece um acidente é o SAMU que socorre e, se precisar de um transplante, precisará do SUS. É indiscutível a relevância desse tema e também a sua urgência. A população brasileira precisa ser esclarecida sobre o que é o SUS e sobre toda a realidade da saúde, percebendo o que tem de bom e o que precisa ser melhorado. É preciso saber que é possível participar do controle social das políticas públicas de saúde e motivar a população a ser sujeito da história na construção e gestão do SUS. Toda essa motivação que a Igreja proporcionou durante a quaresma, chamando a atenção para a questão da saúde pública, é importante para novos passos serem dados. O SUS veio da base, do povo, e é de baixo, por meio do controle social, que ele poderá avançar e superar os desafios. Com a CF 2012, a Igreja quis contribuir nesse processo de participação da sociedade e, dessa forma, capacitar e formar técnica e eticamente a população, para exercer com competência, amor ao próximo e ética o controle social, a fim de “que a saúde se difunda sobre a terra”.

1 Religioso Camiliano, Diretor do ICAPS – Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde; Capelão do Hospital das Clínicas da FMUSP, Vice-coordenador Nacional da Pastoral da Saúde da CNBB e do grupo de trabalho do Texto-Base da CF 2012.


CF 2012 – Diocese de Caçador (SC) Caçador, 08 de fevereiro de 2012. Nós, bispos, padres, diáconos, religiosos e religiosas, e lideranças leigas, bem como profissionais e agentes da área da saúde, representantes dos 23 município da Diocese de Caçador, reunidos durante os dias 07 e 08 de fevereiro de 2012, no Centro de Formação João Paulo II, Castelhano, Caçador, refletimos sobre o tema da Campanha da Fraternidade 2012 “Fraternidade e Saúde Pública”, que tem como lema “Que a saúde se difunda sobre a terra” (Cf. Eclo 38,8). A Campanha da Fraternidade é uma atividade permanente da Igreja no Brasil desde 1964 e tem colaborado para a reflexão de temáticas importantes para a vida do povo brasileiro. Tivemos como subsídio o Texto Base da Campanha da Fraternidade 2012 e o Guia da Pastoral da Saúde (CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano), e fomos assessorados pelo Pe. Léo Pessini, religioso Camiliano, Doutor em Teologia Moral e Bioética e assessor da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Percebemos que saúde pública no Brasil, e especificamente em nossa região, possui contradições gritantes e injustiças. Por um lado, o Sistema Único de Saúde – SUS é considerado um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo, na sua concepção teórica original. Por outro lado, não atingiu ainda o que a Constituição de 1988 determinou, como a universalização e o acesso (Art. 196). Atualmente, deparamo-nos, entre outros, com estes desafios: • Melhores condições de vida para todos os cidadãos; • Um Sistema Único de Saúde que atenda as necessidades de todos; • Eficiência na gestão dos processos e recursos; • Mais investimento público; • Honestidade no gerenciamento dos recursos; • Humanização no atendimento. Nossa fé cristã nos impele ao compromisso com a defesa da vida e da saúde. Jesus se compadeceu de maneira especial com os empobrecidos e doentes. Também nós somos desafiados a cultivar uma espiritualidade e uma prática samaritana e profética, que vê, se compadece, se aproxima, cura e cuida (Cf. Lc 10, 2537). É urgente que abramos nossos olhos diante da realidade como Jesus o fez com o cego Bartimeu (Mc 10, 46-52). Diante desta realidade, a diocese de Caçador se compromete a: 1. Implantar, articular, organizar e fortalecer a pastoral da saúde em suas três dimensões (solidária, comunitária e político-institucional) com uma relação estreita com a pastoral da criança. 2. Fomentar ações que ajudem a consolidação e compreensão do SUS dentro dos preceitos constitucionais. É urgente ampliar os recursos humanos e econômicos, uma gestão mais eficaz e transparente. 3. Ampliar a participação nos conselhos municipais de saúde e promover a formação dos conselheiros. 4. Levar ao conhecimento de todos a CARTA DOS DIREITOS DOS USUÁRIOS DA SAÚDE. 5. Valorizar o dia mundial do doente (11 de fevereiro) e o dia mundial da saúde (7 de abril).


Ressurreição e Saúde Pública

Nesse mês de abril, celebramos o momento máximo do Calendário Litúrgico Católico, isto é, a celebração

da Páscoa do Senhor Jesus Cristo, o mistério da sua paixão, morte e ressurreição. Mistério celebrado na liturgia, por meio do memorial eucarístico, e vivido por todos no encontro com o Cristo que, vitorioso e vivo, dá sentido a nossa vida e envia o seu Espírito para continuarmos a sua missão na história. Páscoa, como todos sabem, é passagem para uma vida nova, ou como diz Paulo, do homem velho para o homem novo, que foi resgatado por Jesus Cristo. Na celebração do mistério pascal e no encontro com o Cristo ressuscitado, encontramos com o próprio mistério da nossa existência, na qual somos sempre convidados a conformá-la com Cristo e a viver de forma pascal, isto é, na intimidade com Deus e na esperança da ressurreição. Contudo não somos convidados a ficar parados nesse mundo, esperando pela nossa morte e ressurreição, mas sim a construir nossas vidas unidas a Cristo e conduzidas pelo Espírito Santo, o mesmo que conduziu Jesus durante a sua existência humana na história. Ser sensíveis à ação do Espírito faz com que a nossa passagem pela história seja significativa e um complemento na continuidade da ação de Jesus à construção de reino de Deus. O encontro com Cristo acontece no Espírito e, ao mesmo tempo, torna-nos sensíveis a sua ação que, por sua vez, desperta uma atenção solidária que nos faz perceber as carências do tempo histórico, sobretudo nas realidades que clamam por ações de vida e libertação, as quais continuarão a missão de Jesus na história. Essa experiência e sensibilidade fazem com que os membros da comunidade cristã ressurjam do meio de um mundo ferido, para emitir o seu grito profético por mais vida, justiça e dignidade. O tema da CF 2012 é fruto dessa experiência de encontro com Cristo, docilidade à ação do Espírito e sensibilidade aos clamores do povo brasileiro, que nesse tempo histórico requerem um sistema de saúde mais amplo, equitativo, eficiente e com mais qualidade. O CF é um exemplo concreto do Povo de Deus que continua na história a missão de Jesus Cristo. Antes da Páscoa, vivemos a quaresma, tempo propício à reflexão e ao mergulho na intimidade com Cristo, experiência que nos fortalece para sermos, sem medo e revigorados pela força do Espírito, luz no mundo. Na quaresma, vivemos de forma intensa o CF, pois é o seu tempo por excelência, um exemplo de compromisso cristão com o desenvolvimento da sociedade e a promoção da vida. Chegamos ao fim da quaresma satisfeitos com o resultado da CF 2012, que convidou todos os brasileiros a refletirem sobre a Saúde Pública e a agirem em prol do aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde, num compromisso triplo: cuidar da própria saúde, ser solidários com os enfermos e atuar na sociedade em vista da qualificação do SUS. Vimos, durante toda a quaresma, crescer o interesse pelas questões de Saúde Pública no Brasil e um grande envolvimento das pessoas, sobretudo dos agentes de pastoral e líderes comunitários, no compromisso com a promoção da saúde e do SUS, reconhecendo o que já existe de bom e apontando as deficiências de forma ousada e profética. Agora chegamos à Páscoa. Depois de contemplarmos os mistérios da paixão e morte de Jesus, contemplamos também a sua ressurreição e, com ela, ganhamos um novo alento e somos revigorados pelo Espírito enviado sobre nós. Que essa revitalização da vitória e esperança pascal possa acontecer também na atenção com o sistema público de saúde, e que nós, com o fim da quaresma, não deixemos que toda essa dinamicidade promovida pela CF 2012 seja sepultada na sexta-feira santa e não ressurja no Domingo da ressurreição. Nosso desejo é que o debate levantado pela CF 2012 continue presente em nosso meio e que dê frutos, como mais pessoas, especialmente agentes de pastoral da saúde, engajados na luta pela melhoria do SUS, especialmente no Controle Social. O Mistério Pascal precisa ser um mistério presente em nossa vida, para nos revigorar na missão que temos de continuar na história a ação de libertadora de Jesus, que defende os pequeninos e promove saúde e vida para todos os povos.


Viagem

em busca do sentido José Carlos Bermejo

Se é possível ser livre na escravidão, como me dizia um preso outro dia, se é possível aprender com a desgraça

– inclusive aprender a aprender com os outros -, como me dizia outro, é possível também alcançar cotas de saúde em meio à doença e à incapacidade. Há uma viagem livre em meio ao sofrimento, uma viagem em busca do sentido que nem sempre é realizado em paz. Às vezes é angustiante, às vezes, humanizante. Nunca é uma viagem a nenhuma parte. Sim, o mundo da saúde e da doença não só nos situa diante de pessoas que necessitam de ajuda física, social e psicológica, para “arrumar a máquina quebrada pela doença” na “fábrica da saúde”, como diria o sociólogo da saúde Achille Ardigó. Há um caminho até a saúde, semeado de perguntas, de sentido ou de busca de sentido.

Uma viagem carregada de perguntas A saúde é uma conquista, um caminho, uma viagem, mais que um ponto de chegada ou um lugar que já se possui. O caminho para a saúde é uma tarefa que nos compromete ao nível físico, mental, emocional, relacional e espiritual. Essa saúde todos a desejamos; é compatível, como experiência biográfica, também com incapacidades e doenças. Com efeito, nós, seres humanos, quando adoecemos e sofremos, fazemos um caminho regado de perguntas. Não só buscamos a eliminação da doença, como também buscamos sentido. Às vezes o buscamos secretamente, outras vezes formulando perguntas ao profissional, perguntas existenciais, que nunca encontram resposta suficiente em nível racional. Talvez atualmente a pergunta pelo sentido seja formulada menos em termos de interpelar ou apontar o mistério e, às vezes, veicula mais a expressão de raiva que experimentamos por não podermos controlá-lo inteiramente e dar uma resposta que elimine as causas do sofrimento. Seja como for, sofrer e contemplar o sofrimento, secreta ou explicitamente, em todas as idades, antes ou depois, provoca um questionamento profundo - “Por quê? Por que agora? Por que eu? Até quando? O que eu fiz para me aconteça isso?” e outras formulações diferentes -, adquire o questionamento mais fundo.

Companheira de caminho Há alguns anos, tem me parecido emblemática a experiência descrita pela mãe de uma menina psiquicamente incapaz, que a escrevia no livro “Crônica de uma infância dolorida”. Nela encontro a fiel companheira de caminho: a pergunta persistente, a que não encontra resposta: “Não cessamos de nos fazer mil perguntas e, a cada dia, encontramos outras mil que não havíamos descoberto. Com a minuciosidade de um entomólogo, esquadrinhamos as lembranças da gravidez, do parto, dos dias que se seguiram. Quando cometemos a falta? Que nos escapou que devemos conhecer e ignoramos? Que devemos fazer (ou não fazer) e descuidamos?


Quando cremos haver esgotado a lista de relações banais de causas e efeitos – sobre a qual incessantemente voltamos porque nunca se esgota totalmente -, nos remontamos mais atrás, ao antes! Quando se produziu nossa falha? Não existirá em nosso passado uma sombra, alguma indelicadeza, alguma infâmia pela qual devemos pagar? Sempre descobrimos algo, sem ficarmos nunca tranquilos. Um castigo, é isso, para nós, o filho doente, castigo de uma antiga culpa sem relação com ele e, o que é pior, castigo por uma falta impossível de encontrar, tão certa como se a ata de acusação estivesse escrita pela mão de um juiz, ainda que neste caso a tinta seja invisível, o papel transparente e o juiz está em nós mesmos, mais obstinado que num tribunal.” Com efeito, às vezes a pergunta pelo sentido é vivida como Sísifo, que pertinazmente tinha que subir a pedra ao cume da montanha, sabendo que o esperava uma nova descida e uma nova subida, sem cessar. E, neste cenário, a pergunta se vive de maneira angustiada e gera, certamente, sofrimento.

A busca do sentido Fazemo-nos perguntas pelo sentido, sim, mas... o que é o sentido? O que quer dizer exatamente que uma vida humana tem sentido? Tem sentido tomar um avião que leva à cidade que desejamos; é insensato subir em um avião que vai em direção diferente, simplesmente porque gostamos mais de seu desenho, sua velocidade ou a companhia a que pertence. A decisão careceria de sentido, seria insensata. Por isso, poderíamos dizer que a questão de sentido está em relação com o desafio de encontrar o verdadeiro ideal. O grande pedagogo alemão Joseph Kentenich afirma que “as dificuldades juvenis são superadas no essencial quando os jovens encontram seu ideal pessoal”. Mas tudo isso nos é mais escuro e difícil quando o avião que se apresenta diante de nós, no qual temos que subir sem escolha, é o avião do sofrimento cujo percurso desconhecemos e cujo destino final também. Por isso, talvez tenha razão Albert Schweitzer ao afirmar: “Um bom médico deve escutar como um sacerdote, raciocinar como um cientista, atuar como um herói e falar... como uma pessoa normal”. Eu faço extensão a todos os profissionais da saúde que queiram acompanhar na vulnerabilidade humana onde a melhor resposta às perguntas sobre o sentido talvez não sejam as racionais, mas as respostas de cuidado: a assistência, o alívio, a cura, a atenuação dos sintomas, o acompanhamento. Talvez tenha razão V. Frankl ao nos dizer: “quem tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como”. E talvez pudéssemos acrescentar: “Quem encontra um bom como, pode conviver com qualquer porquê”. Por isso creio firmemente que a paixão do cuidado apaixonado é capaz de apaixonar ao desalentado que não encontra luz e sentido. O caminho feito juntos cobra cor e sabor, talvez amargo, de pão compartilhado que se não sacia, alimenta. Mas, em todo o caso, ainda há muito clamor para levantar ao céu e dirigir a terra. A terra está inundada das lágrimas dos homens. Dostoievski, em seu romance Os Irmãos Karamazov, apresenta a possibilidade de que o sofrimento pode, inclusive, converter, por um tempo, um homem superficial em um homem sério e profundo. Entretanto a pergunta permanece além daquela de todo ser humano, a que mais interpela a responsabilidade: Por que a maior parte do mundo segue vivendo e morrendo com dor física? Em nenhuma viagem está contido o sentido no lugar da chegada. O gosto está ao percorrer o caminho. O significado vai sendo colocado pelo caminho. Não só isso, como também fica iluminado pelo modo como é recordado depois. Assim, na viagem à saúde, não é a restauração das funções e órgãos o sentido final. É o significado que vamos dando pelo caminho, ao cuidar, ao deixar-se cuidar, ao dispor-se a aprender, a conquistar parcelas de liberdade nas limitações.


Orar Com Os Doentes, Orar Pelos Doentes Pe. Gilmar Antônio Aguiar, M.I.*

Acondição

humana é permeada por valores e contravalores. Os valores mais preciosos são a vida e a saúde, os contravalores, a doença e o sofrimento. Diante dessas realidades, não há outra saída a não ser lutar para preservar e cuidar dos valores e, consequentemente, combater e evitar os contravalores que atacam e assolam a vida humana. O Papa Bento XVI, em 21 de junho de 2009, em sua visita ao hospital fundado por São Pio de Pietrelcina (1887-1968), fez considerações a respeito do enigma do sofrimento humano: “O sofrimento faz parte do próprio mistério da pessoa humana. Certamente, é preciso fazer todo o possível para diminuir o sofrimento; mas eliminá-lo totalmente do mundo não está dentro das nossas possibilidades, simplesmente porque nenhum de nós é capaz de eliminar o poder do mal, fonte contínua de sofrimento. O único que pode eliminar o mal é Deus. Precisamente pelo fato de que Jesus veio ao mundo para revelar-nos o desígnio divino da nossa salvação, a fé nos ajuda a penetrar no sentido de tudo o que é humano e, portanto, também do sofrimento”. Diante da dor e do sofrimento humanos, a atitude esperada não pode ser o desprezo, o descaso ou a indiferença, mas a compaixão, a misericórdia e o cuidado, revelados na pessoa de Jesus Cristo, o Bom Pastor e o bom samaritano (cf. Jo 10; Lc 10, 2537). De fato, é com Jesus que aprendemos a cuidar da vida por meio de atitudes de libertação, cura e salvação. Quem recolhe e permanece com o Mestre conhece o que está sob véus nos encontros e desencontros da vida (cf. Jo 1, 35-51; Lc 24, 13-35).

No vaivém de nossa existência, aprendemos muitas coisas, dentre tantas: a rezar. Rezar é uma atitude simples, forte e delicada que toca o coração de Deus, pois é feita de coração para coração, do coração humano, pequeno e contrito, para o coração de Deus-Pai, grande e cheio de misericórdia. Cabe destacar que, para muitos, rezar não é o mesmo que orar, porque rezar expressa fórmulas prontas e decoradas, e orar revela a espontaneidade e a liberdade diante de Deus. Todavia, a nosso juízo, tanto rezar como orar têm função e finalidade idênticas, a saber, a função de nos aproximar de Deus, tendo como fim o próprio Deus. Orar ou rezar expressam a necessidade humana de se aderir a uma realidade suprema e absoluta; para nós, cristãos, essa realidade é Deus-Trindade, que é o Amor (cf. 1Jo 4, 8). Movidos pelo Amor revelado em Jesus Cristo, que nos mostra o rosto humano do Pai e nos revela o rosto divino do homem, somos impulsionados a viver a solidariedade para com os pobres e doentes. Dita solidariedade pode se manifestar por meio de duas atitudes, ambas com valor ímpar, orar com os doentes ou rezar pelos doentes. Orar com os doentes é estar na presença deles com uma postura solidária e empática, buscando colocar-se naquela mesma situação, ou seja, procurar sentir o que eles sentem. No fundo, atualizar os gestos e a postura


de Jesus misericordioso diante da dor humana. Ele curava e libertava a pessoa totalmente, manifestava que Deus deseja a salvação de todos. Por isso nossos gestos devem ser de caridade, de fé e de esperança no amor de Deus pelos pobres e doentes, os prediletos de Deus. Jesus não veio para os que têm saúde, mas para os doentes (cf. Mc 2, 17; Mt 9, 12; Lc 5, 31). Orar pelos doentes é a atitude de todo o povo de Deus, expressada sob a forma de intercessão. Segundo o Catecismo, “A intercessão é uma oração de pedido que nos conforma perfeitamente com a oração de Jesus [...] O próprio Espírito Santo ‘intercede por nós [...], pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos’ (Rm 8, 26-27). Interceder, pedir em favor de um outro, desde Abraão, é próprio de um coração que está em consonância com a misericórdia de Deus [...]. A intercessão dos cristãos não conhece fronteiras” (Catecismo da Igreja Católica, 2634-36). Assim, quando rezamos na intenção de alguém doente, demonstramos nossa solidariedade e nossa fé em Deus, que faz o impossível acontecer (cf. Lc 1, 37; Fl 4, 13). Ainda, segundo o Catecismo (27), oração é um dado antropológico, “O desejo de Deus está inscrito no coração dos seres humanos”. O ser humano é vocacionado à comunhão com Deus, que estreita seu laço amoroso na experiência e no relacionamento pessoal, não com uma norma ou doutrina, mas, sobretudo, com uma pessoa, Jesus Cristo, caminho para Deus-Trindade. O relacionamento pessoal entre Deus e o ser humano tem sua plenitude no amor, revelado em Jesus Cristo, pois existe uma estreita relação entre revelação e oração. A Palavra de Deus torna-se homem e habita entre os seres humanos, assumindo a condição humana, em tudo, menos no pecado (cf. Jo 1, 14.18; Fl 2, 6-11; Gl 4, 4s). Se por meio de Moisés nos foi dada a Lei, por meio de Jesus nos veio a graça e a verdade (cf. Jo 1, 17). No entanto, para viver bem o relacionamento com Deus, é preciso lutar contra a distração, a aridez, a falta de fé e a acédia (preguiça), que dificultam a oração pessoal e comunitária. A condição primeira da pessoa que reza é reconhecer-se criatura. Isso, todavia, não desmerece a pessoa, mas, fundamentalmente, cria ocasião para a oração, pois o arquétipo da oração é o Filho de Deus, no qual e pelo qual fomos criados (cf. Cl 1, 16). Jesus aprendeu a rezar segundo a oração ensinada e aprendida na casa de Nazaré. A relação filial com Deus, necessariamente, nos move ao próximo, porque, na base do agir cristão, está a experiência do Amor. DeusTrindade é Amor, uma só Natureza em Três Pessoas, que nos amou por primeiro para que, conhecendo o amor, pudéssemos viver nossa vocação na fé, na esperança e na caridade e, desse modo, alimentar nossa relação pessoal com Deus, como fez a mulher samaritana (cf. Jo 4). Em suma, a oração com os enfermos e pelos enfermos é uma forma de oração cristã, que não é simplesmente repetir fórmulas prontas – o que, sem dúvida, é importante –, mas criar espaço para que o Espírito, dom primeiro de Deus, suscite uma oração sincera, verdadeira, livre e espontânea, como resposta e acolhimento à palavra de Deus que vem a nós, uma vez que o desafio nosso de cada dia não é falar sobre Deus, mas falar com Deus. * Animador Vocacional da Província Camiliana Brasileira

Anote aí!!! XXXII Congresso Brasileiro de Humanização e Pastoral da Saúde A PRESENÇA DA PASTORAL DA SAÚDE NA SOCIEDADE BRASILEIRA: DESDOBRAMENTOS DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2012

07 e 08 de setembro de 2012

Local: Centro Universitário São Camilo, campus Ipiranga I, São Paulo –SP

Para mais informações entre em contato com a Secretária do ICAPS: (11) 3862-7286 ou pelo e-mail: icaps@camilianos.org.br.


A Janela da vida João Paulo Olho para a janela. O sol da tarde deixa uma curiosidade sobre o que as pessoas estão fazendo do lado de fora. Os parques devem estar cheios de famílias, com seus filhos. Casais de namorados encontram lugares tranquilos, longe da movimentação.

momento possuem para mim um valor inestimável. Como dava tão pouca importância para isso e, agora, que vontade de estar em algum desses lugares, dessas situações. Vida contraditória: não apreciar o que vivia e, ao perdê-la, sentir saudades.

Devem estar aproveitando as sombras das árvores, neste calor, deitando-se à beira de alguma lagoa, observando os peixes e os gansos que deslizam livremente sobre a água tranquila, retirando algum pedaço de pão de seu próprio lanche, para alimentálos, só para ver como disputam o alimento.

Um dia depois do outro. As feridas não cicatrizam, demoram. Devo ter paciência, para manterme calmo, longe da agitação em que vivia.

Outros caminham nas ruas, indo a um Shopping Center assistir a um filme, e tomar um sorvete, comer um lanche.

Sinto-me dependente em tudo. Nada mais posso fazer por mim mesmo. Até nas pequenas coisas, como ir ao banheiro, dependo de alguém. Alimentar-me? Mas os alimentos parecem sem sabor, com pouco sal.

Ou, então, estarão em casa, com toda a família reunida para o almoço, conversando sobre os acontecimentos da semana. Permaneço longe de tudo isso. Estas situações, consideradas tão normais, para todos, neste

A enfermeira entra no quarto. Examina o soro, mede minha pressão, observa a ferida, prepara uma nova bandagem.

Um dia sairei. Serei o mesmo? Com os mesmos sonhos? Verei o mundo da mesma forma de antes, com tanta falta de consciência da importância das pequenas coisas

que desprezava? Não! Nunca mais. Um dia sairei; não me cabe dizer quando. As feridas que cicatrizem, e a fisioterapia que me recomponha. Sobre esta cama, sem nada fazer, aprendi a humildade, a paciência, a esperança. Uma mudança veio em mim, meio contra a vontade, sem desejar. Aprendi uma humanidade que estava esquecida. Vou recolocar a vida em uma nova dimensão. Esta aprendizagem foi recebida sem esforço, e obrigatoriamente, imobilizado que estou. O amanhã será diferente. Uma grande mudança ocorreu em mim. Descobri, que sem falar comigo, algo me tocou, transformando-me. Que mistério a vida! Olhava para fora pela janela, e percebo que era para dentro, e não para fora, a visão que faltava. João Paulo, Agente de Pastoral da Saúde do Hospital das Clínicas da FMUSP

ICAPS - Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde e Bioética Tel: (11) 3862-7286 E-mail: icaps@camilianos.org.br Avenida Pompeia, 888 Cep: 05022-000 São Paulo-SP

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