icaps-318

Page 1

SÃO CAMILO PASTORAL DA SAÚDE INFORMATIVO DO INSTITUTO CAMILIANO DE PASTORAL DA SAÚDE ANO XXIX N.318 MAIO 2013

A SAÚDE DA SAÚDE Mauro Odoríssio

As Escrituras não são livro de curas, de receitas de bem-estar, como tantos que exploram esse filão e que atraem número não pequeno de pessoas pouco conscientes. Não estão para resolver problemas cuja solução está sob as responsabilidades humanas. Seu objetivo é mais específico. Elas afirmam que Deus, ao criar o mundo o fez bom e harmonioso (Gn 1, 1ss). Nele foi colocado o ser humano para que dele o usufruísse, que o governasse e o adaptasse segundo as suas necessidades (Gn 1, 15-16), conforme os critérios divinos (Gn 1, 26-30). Para tanto, a criatura racional foi dotada de inúmeras prerrogativas, sobremaneira de inteligência que o levaria a descobrir as leis da natureza para adaptá-las em benefício de todos. Portanto, ela foi criada responsável e autônoma. Entre tantos problemas a serem arrostados e encarados por ela, está o da doença. Vencê-la, dominá-la, cuidar da saúde e do bem-estar humanos lhe é uma atribuição inerente. Recursos racionais, materiais e religiosos não lhes faltam. Urge agir responsável e coerentemente. Antes de adentrarmo-nos no tema de nossa reflexão, questionemo-nos: sabemos quanto a humanidade gasta em prol da saúde e quanto para a indústria da morte, da guerra e do mal? Estreitando o cerco: quem é mais apreciado, os “idosos” criados pela mídia ou os abnegados cientistas que se trancam em laboratórios para descobrir remédios a combater mazelas que nos afetam e a fortalecer a nossa saúde? Quem é mais bem remunerado, quem é mais evidenciado, quem é mais considerado, paparicado: aqueles ou estes? Por quê? Como explicar que remédios idênticos tenham preços tão discrepantes entre si ou de uma região para outra? Ao lado dos laboratórios “santuários da saúde”, existiriam outros com objetivos escusos? O alto custo dos medicamentos é apenas para ressarcir os grandes gastos com aparelhos sofisticados, com pesquisas caras e para manter o processo? Ou entra, também, a ganância? Estariam tudo e todos envolvidos na “saúde da saúde” ou existe, também, os que se servem da doença e dos doentes para um lucro fácil e sem medidas? Que dizer de misteriosas doenças propaladas como frutos de laboratórios com fins escusos? Acompanhamos essas interrogações? Mais alguns questionamentos: interessamo-nos em saber se o poder estatal se faz prioritariamente presente nas pesquisas científicas a serviço da vida, da saú-

de, no acolhimento aos enfermos, sobremaneira aos mais necessitados? Como são assistidos os que, de uma maneira ou de outra, se dedicam conscientemente à saúde, aos doentes? São devidamente valorizados? Mais interrogações: qual é o nosso interesse em saber quanto os governos federal, estadual e municipal, destinam em favor dos doentes e da saúde pública? Quanto dessa verba chega, realmente, ao seu destino? Como é aplicada? Há desvios pelos meandros, pelos descaminhos da politicagem, da desonestidade, da demagogia, da corrupção? Nossas comunidades têm Pastoral da Saúde? Como acolhemos os nossos enfermos, familiares ou não? Com os olhos iluminados pela fé, descobrimos, verdadeiramente, Cristo presente em nossos doentes (Mt 25, 31-46)? Se não estamos interessados com essa problemática e, ainda mais, se não procuramos ser alguma resposta a tanto questionamento, é sinal de que estamos, moralmente, muito doentes! Mas, se estamos lendo estas linhas, é sinal de que existe ao menos um mínimo de boa vontade em nossos corações. Então, prossigamos em nossas reflexões. Reconsideremos o que foi dito: Deus criou o mundo organizado e bom (Gn 1, 1-25). Nele, como num jardim, colocou o ser humano para que dele se servisse, mas que também o cultivasse e o adaptasse conforme suas necessidades (GN 2, 15-17). Ao dizer que dominasse sobre as aves do céu, sobre os peixes dos mares e sobre os animais da terra (Gn 1, 26-30), a Bíblia afirmava que o mundo estava sendo colocado nas mãos humanas. Imaginava-se que o universo era constituído por três elementos “ar”, “água” e “terra”. Para tanto, a criatura racional foi dotada de inteligência, de vontade e foi criada senhora de tudo. Mais: ela foi dotada de uma potencialidade ilimitada para amar. Isso a levaria a um relacionamento amoroso com o Criador, com o mundo, consigo mesma e com o próximo. Seria imagem semelhante a Deus neste mundo (Gn 1, 26). Conclui-se, então, que nossos problemas de saúde não podem, pura e simplesmente, ser jogados nas costas de Deus. É responsabilidade fundamentalmente nossa. Povo que investe com amor na ciência, na técnica, na educação e, logicamente, na saúde, é um povo mais saudável. Vive uma vida religiosa engajada quem acata o projeto do Criador. Pe. Mauro Odoríssio trabalha na cidade de São Carlos (SP).

Padres e Irmãos Camilianos a Serviço da Vida JUNTE-SE A NÓS, SEJA UM CAMILIANO TAMBÉM! “Estive enfermo e me visitastes” (Mt 25,36)

Serviço de Animação Vocacional Rua Antônio Marcondes, 427 - Ipiranga - São Paulo - SP - CEP: 04267-020 Fone: (11) 3872-7063 vocacional@camilianos.org.br / www.camilianos.org.br


SÃO CAMILO PASTORAL DA SAÚDE

Página 2

SOFRIMENTO, PRESENTE OU CASTIGO DE DEUS? Patrício Sciadini

A pessoa humana foi criada para a felicidade. Ninguém gosta de tristeza, de sofrimento e de dor. Mas, serve muito pensar sobre nossa atitude diante do sofrimento e da dor, tomar consciência de que o sofrimento está presente no mundo em múltiplas formas e manifestações, e que não podemos fugir dele de forma alguma. Restam-nos três caminhos: a revolta, a indiferença ou a aceitação. A revolta leva a pessoa ao desespero; a indiferença nos torna estáticos, deterministas, a aceitação comunica-nos a paz e alegria profundas, e nos faz cristãos: seguidores e imitadores de Jesus Cristo. O Sofrimento na Bíblia O homem bíblico, desde o Gênesis ao Apocalipse, pergunta-se por que o sofrimento e como libertar-se dele. Antes da vinda de Jesus o sofrimento aparece como uma estrada sem saída, fruto do pecado e como castigo de Deus pelo bem não realizado. O grito que perpassa toda a Sagrada Escritura é o pedido a Deus que nos liberte da dor e que nos dê a força necessária para suportá-la. Os salmos formam o livro do homem sofredor que, na sua breve existência, depara-se com todo tipo de dor: física, moral, espiritual, a solidão, o abandono dos amigos, a lepra que devasta, a perseguição dos inimigos...O livro de Jó, que podemos considerar como o grande tratado antropológico da dor, faz-nos ainda mais críticos diante do sofrimento. O sentido de impotência que nos advém quando nos deparamos com a dor deixa-nos ainda mais angustiados. O que fazer diante das pessoas que sofrem, e como reagir diante do nosso próprio sofrimento? Se Deus-amor não quer que o homem sofra, por que permite o sofrimento? São perguntas que, provavelmente, nunca terão uma resposta que nos deixe totalmente satisfeitos. A repugnância à dor está inscrita no nosso coração e todos somos chamados a lutar contra ela. Superar a dor é caminho promissor para se chegar à felicidade plena. Jesus e o sofrimento O encontro com Jesus de Nazaré, o amor que tenho para com Ele, a leitura do Evangelho e o desejo de imitar sua vida têmme feito compreender melhor o caminho da dor. A grandeza de Jesus é que Ele, encarnando-se, assumiu a nossa natureza humana plena, total, com todas as limitações, menos o pecado. De fato, o pecado não faz parte da natureza humana, ele entrou no mundo pela desobediência. Alguém como Jesus, que nunca desobedeceu ao projeto do Pai, não poderia ter o pecado na sua humanidade. Ele “se fez pecado” por nós e nos redimiu de todos os nossos pecados. O projeto trazido por Jesus é libertar o homem do pecado, e para que isso possa acontecer Ele iniciou a sua história entre

nós através do caminho da cruz e do sofrimento. O nascimento, a fuga ao Egito, o trabalho em Nazaré, as incompreensões por parte do povo, dos seus seguidores e do poder constituído em Israel, formam a história de dor de Jesus, que tem o cume na morte de cruz. O caminho apresentado por Jesus aos seus seguidores é: renúncia de si mesmo, carregar a cruz e segui-lo no seu nomadismo, onde não tem nem uma pedra para reclinar a cabeça... O amor à paixão de Jesus não é opcional na vida cristã, mas necessário para poder compreender o sentido da vida de Jesus. Através da leitura do Evangelho, compreendemos que Jesus não queria sofrer e que em momento algum provocou o sofrimento, seu ou dos outros, e que fez o possível para aliviar a dor dos outros. Ele mesmo “gemeu e suplicou” ao Pai que o libertasse da cruz, do beber o cálice e da morte. Mas, consciente que era possível salvar a humanidade por este caminho, Ele assume a dor com a alegria interior de quem realiza na fidelidade a vontade do Pai. Tenho encontrado muitas pessoas esmagadas pela dor e interiormente felizes. Mas, o amor me leva a dar toda a vida pelo outro. É o amor do Pai que envia seu Filho Jesus. É o amor do Espírito Santo que consagra Jesus na sua missão e o amor de Jesus que dá toda a sua vida para nossa libertação e salvação. A força do amor é sempre maior do que qualquer sofrimento e, no amor, o sofrimento se faz alegria e vida. À luz de Jesus se entende a dor como fruto de amor e presente de Deus. Todos os santos, os grandes místicos nascidos do encontro com Jesus, pedem a dor como participação do sofrimento. Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno se vinculam com aquele desequilíbrio mais fundamental radicado no coração do homem. Nunca saberemos sofrer com a dignidade necessária. Haverá sempre momentos difíceis em que sentiremos o grito da nossa humanidade que se rebela. É nesses momentos que o nosso olhar deve fixar-se em Jesus, modelo e mestre do sofrimento libertador. Os santos, de uma forma ou outra, beberam do cálice do sofrimento e nele encontraram a coragem para não desanimar na vida. O sofrimento, quando é único caminho de fidelidade ao nosso Deus, torna-se amor e martírio, e devemos olhá-la nos olhos, sem medo, porque ela, assumida e amada, é caminho para se entrar no mistério da ressurreição. Não há páscoa sem se passar através da encarnação-paixão-morte. E é só depois da morte que podemos gozar a plenitude do reino, onde o sofrimento, dor, morte, lágrimas, não têm mais cidadania. Patrício Sciadini é frei da Ordem dos Carmelitas descalços.

Especialização em Bioética e Pastoral da Saúde.

ATEN Ç

Curso de Pós Graduação em Bioética e Pastoral da Saúde. O curso é dividido em três módulos de 128 horas aulas cada módulo. As aulas acontecem sempre durante os meses de janeiro e julho em período integral. Ou seja, de segunda a sábado, manhã e tarde.

ÃO!

Público alvo: Padres, pastores, religiosos (as) e leigos e profissionais da saúde. Exigências: Ter certificado de conclusão de curso superior Local: Centro Universitário São Camilo de São Paulo Custo do curso: Possibilidade bolsa parcial. Contato: 3862-7286 ou padreanisio@yahoo.com.br O boletim “São Camilo Pastoral da Saúde” é uma públicação do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde - Província Camiliana Brasileira. Presidente: Pe. Leocir Pessini / Conselheiros: Ariseu Ferreira de Medeiros, Antonio Mendes Freitas, Olacir Geraldo Agnolin e Arlindo Toneta / Diretor Responsável: Anísio Baldessin /Secretária: Fernanda Moro / Projeto Gráfico e Diagramação: Fernanda Moro / Revisão: José Lourenço / Redação: Av Pompéia, 888 Cep: 05022-000 São Paulo-SP - Tel. (11) 3862-7286 / E-mail: icaps@camilianos.org.br / Site: www.icaps.org.br / Periodicidade: Mensal / Tiragem: 2.000 exemplares / Assinatura: O valor de R$15,00 garante o recebimento, pelo correio, de 11 edições. O pagamento deve ser feito mediante depósito bancário em nome de Província Camiliana Brasileira, no Banco Bradesco, Agencia 0422-7, Conta Corrente: 89407-9.


SÃO CAMILO

PASTORAL DA SAÚDE

Página 3

NÃO TENTE CONTER UMA LÁGRIMA, ENXUGUE-A Anísio Baldessin

Ao entrar num quarto para visitar uma paciente internada no Instituto do Câncer defrontei com o seguinte cenário: na cama, ao lado da porta, encontrava-se uma paciente quase inconsciente e sua acompanhante. Do outro lado da cortina que separa os dois leitos havia uma senhora com idade bastante avançada que pelo semblante parecia sonolenta. Ao lado da cama, a filha e duas pessoas que eram muito próximas da paciente. Entre elas estava o médico que tinha vindo passar algumas informações. Quando cheguei fiquei um pouco à distância escutando a conversa do médico com a filha. Logo percebi que ele era dos um dos componentes da equipe que tinha vindo comunicar à família que, devido à gravidade e o avanço da doença eles não fariam nenhum procedimento extraordinário, pois a doença já estava espalhada pelo corpo inteiro. Iriam acompanhar a paciente ministrando apenas cuidados paliativos uma vez que os últimos resultados dos exames detectaram que o câncer tinha atingido também os rins. Portanto, a proposta da equipe era mandá-la para uma clínica de cuidados paliativos ou então para casa com algum suporte terapêutico que proporcionaria conforto para a paciente. Quando a filha da paciente ouviu isso ficou indignada com o médico. “O que doutor, o senhor está querendo dizer que é para nós “jogarmos a toalha”? Se o câncer está no rim faz-se uma cirurgia. Se for preciso fazemos um transplante! Nós somos pobres, mas temos condições de pagar o custo de uma cirurgia de transplante! O senhor está achando que nós iremos “jogar a toalha” assim, sem mais nem menos!!!” O médico que apenas tinha começado a falar silenciou. Ouviu atentamente o desabafo da filha enquanto permanecia imóvel ao lado do leito. Quando ela, aparentemente se acalmou ele teve uma atitude muito prudente. Sem dizer uma única palavra e muito menos contradizê-la contornou o leito em que jazia a paciente, foi até o toalheiro de papel,

pegou duas ou três folhas e as entregou à filha. Essa atitude a desarmou completamente. Segurou os papéis e enquanto enxugava as lágrimas começou a se desculpar com o médico. “Sabe doutor, nessas horas a gente perde a paciência e fala coisas que não deve. Desculpe-me pela forma que eu me dirigi ao senhor”. “Não se preocupe senhora. Talvez eu não tenha me expressado direito. O que eu quis dizer para a senhora é que nós não vamos deixar sua mãe sem tratamento e sim mudar a forma de tratamento. Nosso objetivo não é mais eliminar a doença uma vez que essa já está espalhada pelo corpo inteiro e sim proporcionar um conforto maior para ela. Por isso, ao invés de deixá-la internada num hospital longe dos familiares a gente pensa em colocá-la num lugar que seja mais adequado para ela e também onde vocês possam ficar mais próximos”. Depois dessas explicações do médico eu continuei conversando com ela. Nessa conversa ela me disse que a mãe sempre falava que gostaria de morrer na casa dela. Nesse momento eu aproveitei e disse: “então você já tem a resposta da pergunta que o médico lhe fez. Ou seja, levá-la para casa”. Essa experiência tem muito a ensinar aos profissionais da saúde, assistentes espirituais (agentes de pastoral da saúde) e até mesmo para todos que em determinados momentos da vida são chamados a ajudar pessoas que vivenciam situações difíceis. Ou seja, o que fazer diante das reações intempestivas das pessoas e das lágrimas. A resposta eu obtive observando a atitude do médico naquele dia. Mais do que qualquer palavra ou ato heroico devemos, não nos esforçarmos para conter uma lágrima ou as lágrimas e sim ajudar a enxugá-las. Anísio Baldessin é padre camiliano e trabalha como capelão no Hospital das Clínicas da FMUSP.

Materiais de São Camilo! No dia 14 de julho comemoramos dia de São Camilo. Aproveitamos para informá-los que temos farto material de devoção. Veja abaixo a relação e faça seu pedido na secretaria (11) 3862-7286 com Fernanda.

MEDALHAS E BROCHES

LIVROS, CDS E DVDS

TERÇOS CONHEÇA TODOS OS NOSSOS MATERIAIS RELIGIOSOS E PUBLICAÇÕES EM

WWW.ICAPS.ORG.BR


SÃO CAMILO PASTORAL DA SAÚDE

Página 4

PROBLEMAS DE VISÃO João Pereira Coutinho

Tiger Woods, considerado o melhor jogador de golfe de todos os tempos, tinha problemas de visão. Em 1999, incapaz de ler as letras maiores no ABC do oftalmologista, submeteu-se a cirurgia a laser. Recuperou a visão plena e tornou-se o fenômeno conhecido. Mas o que diríamos nós de Tiger Woods se a intervenção médica tivesse transformado uma visão “normal” numa super visão, muito acima da média? Uma visão capaz de detectar buracos do campo a quilômetros de distância? Sentiríamos ainda o mesmo respeito pelas proezas do golfista? Boa pergunta. E boa resposta, avançada pelo filósofo Michael Sandel em ensaio brilhante sobre a era da engenharia genética. Intitula-se “The Case Against Perfection” (o caso contra a perfeição), da Harvard University Press (162 págs.). A resposta de Sandel, como o título sugere, é negativa. Corrigir uma visão deficiente faz parte da missão da medicina. “Curar” é o verbo. Mas “alterar” ou “manipular” a natureza humana, proporcionando ao sujeito uma super visão, uma super força, uma super velocidade, é mais do que curar. É entender que um ser humano pode ser objeto de ambições prometeicas. A admiração que sentimos pelo talento natural e pelo esforço individual de um atleta desvanece-se perante a manipulação artificial. E se assim é no esporte, assim é na vida: cresce o número de pais que, pelo menos nos Estados Unidos, gostariam de manipular geneticamente a descendência em gestação. Para que os filhos tivessem a combinação perfeita de beleza física e agilidade mental, cruzamentos apurados de Brad Pitt com Albert Einstein. A medicina tem recusado essas ambições. Mas até quando? Sandel não sabe. Mas, adivinhando a emergência desse tempo, avisa: quando esse dia chegar, estaremos a alterar profundamente, não apenas o que somos mas, mais importante ainda, a forma como nos relacionamos uns com os outros em sociedade. O interesse do ensaio de Sandel, talvez o melhor que li sobre o assunto, não está na inteligência com que repele o conhecido mantra “liberal” de que a manipulação genéti-

ca é um atentado contra a autonomia do sujeito. História conhecida: quando determinadas as feições, características ou comportamentos dos filhos, interferimos de forma abusiva numa vida que não nos pertence. Exercemos, no fundo, uma forma de “tirania paternal”, ou de “eugenia privada” sobre eles. Sandel contrapõe, e contrapõe bem, que esse não é o problema central da engenharia genética. Desde logo porque os seres humanos não são radicalmente autônomos nas suas existências: a natureza, o acaso ou, para os que acreditam, a existência de um Deus criador também determinam parte do que somos e nem por isso somos menos livres para perseguir vidas responsáveis. As verdadeiras implicações de uma aceitação plena da engenharia genética “à la carte” estariam no tipo de sociedades que acabariam por emergir: sociedades onde a humildade e a solidariedade deixariam de pautar as nossas condutas. Hoje, os filhos são considerados “dádivas”. O termo não remete necessariamente para uma dimensão metafísica, ou religiosa; apenas sublinha a forma como os recebemos e amamos: incondicionalmente. Sem que o “resultado final” desfigure a relação entre pais e filhos. É compreensível que desejemos o melhor possível para os nossos. Mas também somos capazes de aceitar o inesperado porque nem tudo é moldável aos nossos desejos. O inesperado é a base dessa aceitação e dessa humildade. A possibilidade de escolher o “resultado final” geraria uma sociedade de insatisfação permanente, incapaz de lidar com as contingências que fazem parte da vida humana. Mas geraria também uma sociedade incapaz de lidar com os inesperados. Com os menos afortunados da loteria genética, os doentes, os fracos, até os feios e que seriam rapidamente convertidos em erros humanos. Ou, pior ainda, em erros da negligência humana. Precisaremos mesmo desse acréscimo de culpa e infelicidade? A engenharia genética pode ter as suas vantagens, ao prevenir e curar a doença. E, nesse sentido, Sandel não recusa a polêmica pesquisa com células-tronco. Mas a imperfeição humana não é uma doença. Doentes são os que acreditam no contrário.

SÃO CAMILO PASTORAL DA SAÚDE ICAPS - Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde Tel: (11) 3862-7286 Site: www.icaps.org.br E-mail: icaps@camilianos.org.br Avenida Pompéia, 888 Cep: 05022-000 São Paulo - SP

IMPRESSO


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.