Natal do Senhor de 2014. Missa do Dia Caríssimos Irmãos e Irmãs: A festa da Encarnação do Senhor, o Natal de Jesus Cristo, parece não exigir comentário algum. Porém, é preciso fazê-lo, pois há muitos deles, inspirados na mentalidade secular hodierna da cultura do papai Noel ou mesmo de inúmeras seitas, que nada têm a ver com esse inefável mistério que a Igreja celebra: Deus se fez homem para participarmos de sua divindade. Em Cristo, Deus assumiu nossa carne para podermos recuperar sua semelhança, pois fomos plasmados para o mandamento novo: o amor. Essa semelhança, cuja perda foi consequência do pecado original, recuperá-la é projeto do Evangelho: ser como Deus, isto é, ser caridade vivificante e vivificadora. 1
Temos, após a queda de nossos primeiros pais, apenas o desejo de amar, contudo, não nos é inato tal capacidade, ou seja, amar como Deus ama, como nos amou em Cristo e como nos ama pelo seu Espírito Santo, presente e operante na Igreja. Com o Filho do Altíssimo, nascido na plenitude dos tempos, a humanidade pôde, porque Ele nos concede a graça santificante através dos sacramentos de sua Esposa, ritmar firme e resolutamente os passos rumo à Jerusalém do Alto, nossa verdadeira pátria comum; cidade eterna dos novos Adãos e Evas, resplandecentes da Luz do Cordeiro. Pelo Filho de Maria – verdadeiro Deus e verdadeiro homem – a quem adoramos e por quem temos a filiação divina, recebemos o privilégio de chamar a Deus de Pai e entre nós de irmãos. Chamando sincera, devota e honestamente nosso Deus de Pai e nossos semelhantes de ir2
mãos, já iniciamos a vivência do amor divino em nós, nossa vocação humana primordial. O Verbo se fez carne para permitir alcançá-lo. Eis o comentário da Epístola aos Hebreus que escutamos. “Muitas
vezes e de muito modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas...” 1. Hoje, pela liturgia, que atualiza o momento salvífico, Deus nos fala e assim o alcançamos. Fala-nos o Verbo Encarnado pelo silêncio de um recém-nascido deitado pobremente numa manjedoura. O que nos fala o Rei dos reis? Fala-nos de como nos tange sua salvação.
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Hb 1,1-2
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A salvação que nos concede passa pelo ordinário da vida, com seu nascimento igual a todas as crianças vindas à luz; na pobreza de meios para se apresentar ao mundo, estando numa pobre estalagem, deitado numa manjedoura; numa instituição denominada família, célula e base de toda a sociedade; no aconchego afetivo de seus pais que o acolhem, realidade fundamental para o desabrochar de uma vida humana; no relacionamento humano, necessário para se viver sadia e dignamente, ao ser visitado pelos pastores; numa inclusão com a natureza, sendo contemplado pelas estrelas; as mesmas que Abraão, nosso pai na fé, havia, há tantos séculos, contemplado. A promessa de Deus a Abraão, hoje se cumpre, pois Isaac, seu filho, era apenas figura dessa realidade: Jesus Cristo filho de Deus e da Virgem Maria, da descendência de Abraão. 4
Pela fé, caros irmãos, hoje “contemplamos a glória,
glória que Lhe vem do Pai, como Filho unigênito, cheio de graça e de verdade”.2 Deus, em Cristo, se abaixa até nós, para permitir chegar até Ele. E, somente pela fé, nós podemos alcançar e escutá-lo. Quando sincera, damos necessariamente um passo à frente: em humildade nos aproximamos desse mistério que “é escândalo para os judeus e loucura para
os gentios” 3. Só o humilde contempla o mistério e dele se ilumina; o orgulhoso, porém, o disseca como um cientista a um cadáver. Uma vez analisado, tira suas conclusões, sempre em hipóteses, e o descarta. Nosso mundo urge de contemplativos. O homem da técnica, dos instrumentos a “laser”, das leituras magnéticas, 2 3
Jo 1,14 1Cor 1,23
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incansavelmente,
disseca
seres
humanos
e
máquinas,
mesmo sendo atividades necessárias ao chamado progresso da humanidade, acreditando que domina a vida e seus mistérios. Leda ilusão! Há mistérios no ser humano e em suas vidas – mesmo na dor – que só um contemplativo tem alcance. Convém lembrar, queridos irmãos, que ser contemplativo é vocação de todo batizado e não exclusividade de religiosos. Hoje, somos chamados a contemplar o mistério da Encarnação do Verbo, não cedendo à tentação de dissecálo como se faz a um cadáver ou a um motor. O mistério, nós não dominamos; antes, por ele somos dominados. Eis um grande segredo da vida cristã. Que nada absolutamente se anteponha à nossa vocação de mensageiros da paz, arautos do mistério do Natal de nosso Redentor, que maravilhados contemplamos. 6
Nossos ágeis passos sejam, por todos os tipos de montes e colinas de nossa sociedade secularizada e pela força da graça do mistério que celebramos, proporcionais à alegria que experimentamos; alegria esta, própria de quem, dominado pelo mistério do Natal do Salvador, já antecipa no tempo o festim da eternidade, que nossa Eucaristia realiza.
Assim seja!
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