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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL 54ª Assembleia Geral da CNBB Aparecida - SP, 06 a 15 de abril de 2016 AG DA CNBB PENSANDO O BRASIL 3 – 2016 (com características de análise de conjuntura)

CRISES E SUPERAÇÕES SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1. PERCEPÇÕES DA REALIDADE BRASILEIRA ATUAL 1.1. Crise cultural: a crise dos valores 1.2. Crise econômica: a hegemonia do mercado financeiro 1.3. Crise social: a erosão dos direitos sociais 1.4. Crise política: o enfraquecimento das instituições

2. REFLEXÕES À LUZ DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA 2.1. Sobre o âmbito cultural: paradigma do mercado 2.2. Sobre o âmbito econômico: viés ideológico da economia 2.3. Sobre o âmbito social: uma nova questão social 2.4. Sobre o âmbito político: primazia do político sobre o mundo financeiro

3. INDICAÇÕES PARA A SUPERAÇÃO DAS CRISES 3.1. No campo cultural: o imperativo ético 3.2. No campo econômico: democracia e mercado 3.3. No campo social: as políticas públicas 3.4. No campo político: o fortalecimento institucional

CONCLUSÃO

10(Sub)/54ª AG


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CRISES E SUPERAÇÕES INTRODUÇÃO 1.

Na interpelação final do segundo volume do “Pensando o Brasil: a Desigualdade Social no Brasil”, houve o apelo a evitar o risco de se acomodar com as situações de desigualdades e injustiças sociais. Tratava-se de um apelo à conversão que implica e valoriza o diálogo, seguindo recomendação do papa Francisco. “Um país cresce, quando dialogam, de modo construtivo, as suas diversas riquezas culturais (...). É impossível imaginar um futuro para a sociedade, sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que permaneça fechada na pura lógica ou no mero equilíbrio de representações de interesses constituídos”.1

2.

No processo da Constituinte, a sociedade brasileira chegou a estabelecer um diálogo institucional que desembocou na chamada “Constituição Cidadã”, na qual foram reconhecidos Direitos Sociais, mas sem superar as lógicas da classe empresarial e dos interesses particulares no campo econômico. Depois de certa euforia, as elites financeiras ligadas à classe política conseguiram impor o domínio da economia sobre a sociedade com o processo acelerado da financeirização da economia. Palavras de ordem inundaram a mídia conservadora: desregulamentação, liberação, privatização, desmonte do Estado social, Estado mínimo, redução do poder sindical, flexibilização do trabalho. Com uma conjuntura internacional favorável, o governo Lula (2003-2010) conseguiu atender às reivindicações das elites econômico-financeiras e, ao mesmo tempo, demandas sociais que haviam sido retiradas da agenda política.

3.

No ano 2015, a conjuntura volta à desigualdade estruturante da sociedade brasileira. A pauta da Câmara Federal endossou propostas de leis que enfraquecem a afirmação de princípios democráticos relativos ao que toca o aprofundamento da democracia política, dos direitos civis e dos direitos sociais. Há um vasto rol de medidas legislativas já aprovadas ou em tramitação, de caráter restritivo às franquias democráticas. Com a crise econômica, um mal-estar social com desemprego e perda de rendimento tende a instalarse. O pano de fundo é uma crise política que não diz o seu nome e que não desemboca sobre uma profunda reforma política. A classe política não parece ter ouvido os protestos populares de 2013, ficando preocupada com seus interesses particulares. Por parte de setores ultraconservadores, aparecem discursos marcados pela intolerância que estigmatizam grupos sociais historicamente discriminados: pobres, pretos, nortistas, indígenas, quilombolas... Violências e conflitos pela terra estão ficando cada vez mais agudos pelo domínio das chamadas bancadas do tríplice B (boi, bíblia e bala) no Congresso Nacional. Mais grave é a tentativa de promover retrocesso amplo e geral nos direitos sociais constitucionalizados pela implementação do ajuste fiscal, que se impõe com ajuste estrutural.

4.

Considerando essa realidade conjuntural e estrutural, o presente estudo aprofunda, na primeira parte, algumas percepções de crises que perpassam a realidade cultural, centrada na crise de valores; a realidade econômica, centrada na hegemonia do mercado financeiro; a realidade social, centrada no enfraquecimento das instituições; e a realidade

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FRANCISCO. Discurso à classe dirigente do Brasil. Rio de Janeiro, 2014, nº 3.


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política, centrada na erosão dos direitos sociais. Este estudo não contempla a complexa realidade religiosa e eclesial, porque ela é merecedora de uma análise específica, mas sempre marcada, de alguma forma, pelo contexto cultural, socioeconômico e político, no qual se situa. 5.

A segunda parte, faz uma incursão na Doutrina Social de Igreja, buscando luzes para reflexões sobre os âmbitos estudados, cada um com seu ponto específico. No âmbito cultural, o paradigma do mercado; no âmbito econômico, o viés ideológico da economia; no âmbito social, a chamada nova questão social; e no âmbito político, a primazia do político sobre o mundo financeiro.

6.

Na terceira e última parte, há indicações para superação destas crises que afetam a sociedade brasileira. Igualmente, elegemos um único ponto em cada campo, procurando manter a coerência desde a primeira parte: no campo cultural, propõe-se imprimir a ética com força imperativa; no campo econômico, deve-se estabelecer uma adequada relação entre democracia e mercado; no campo social, reafirma-se a premência de investimentos em políticas públicas; e no campo político, urge o fortalecimento institucional.

7.

O eixo transversal nas análises é a questão da democracia ameaçada pelo modelo econômico vigente, que tem como particularidade, incentivar um retrocesso nos campos dos direitos políticos, civis e sociais conquistados na Constituição Federal de 1988. Essa transversalidade está explicitada em cada parte, prenunciada na introdução e retomada na conclusão desse pronunciamento da CNBB.

1. PERCEPÇÕES DA REALIDADE BRASILEIRA ATUAL

1.1. CRISE CULTURAL: A CRISE DOS VALORES

8.

O alvorecer da década de 1960 inaugura, no Ocidente, significativas mudanças culturais, responsáveis por uma ressignificação das instituições na vida do indivíduo. O Estado, a família, a Igreja, a escola, antes capazes de regular condutas e ditar valores morais e estéticos, vão cedendo espaço e sendo paulatinamente substituídos pelas novas formas de dominação e controle representados pela mídia e, em tempos mais recentes, pela velocidade das tecnologias digitais de comunicação e informação.

9.

Graças a tal mudança, ocorrida no espaço de poucas décadas, o início do presente século convive com a emergência de novas subjetividades. São identidades paradoxais, configuradas como práticas culturais e princípios político-econômicos fluidos e mutantes. Elas aparecem descentradas e efêmeras. Ao dar seu assentimento a valores morais, estéticos, políticos e até mesmo religiosos, esse novo sujeito repete a mesma atitude que elabora nas relações de consumo. Tudo parece ser provisório e descartável: algo é aceito apenas na medida em que possa proporcionar uma satisfação momentânea e hedonística.

10.

A produção da subjetividade se tornou o principal campo de intervenção das relações econômicas. A própria formação do sujeito se dá em moldes que servem aos interesses comerciais caros ao sistema capitalista. Ao reduzir toda e qualquer relação ao mesmo


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padrão que domina o consumo de bens, o modo de produção capitalista passa a exercer um intenso controle sobre a própria percepção de mundo constituída, com pouca consciência, pelo sujeito. Vendendo a imagem de que esse é um mundo de oportunidades e possibilidades de escolhas, na verdade, o modo atual – com tantas imagens efêmeras sendo produzidas e instantaneamente veiculadas, consumidas e descartadas – aumenta, paradoxalmente, os mecanismos de controle e de dominação. Trata-se de poderes dispersos e exercidos mais ou menos à distância, mas que penetram nos interstícios de relações, com objetos e com outras pessoas, supostamente realizadas em total ausência de limites. Aquilo que é apresentado e representado como total liberdade, mal consegue esconder sua face autoritária e controladora. 11.

Esses padrões de subjetividade não foram os únicos a serem modificados substancialmente nas últimas décadas, mas também os padrões de sociabilidade. Essa experiência eminentemente urbana se concretiza em uma intensa diversidade de etnias, idades, gêneros, religiões, culturas, ideias e modos de vida. Em meio a tal pluralidade, deixam-se entrever projetos e poderes, pessoais e de grupos, que se cruzam e se antagonizam. A vida na cidade preconiza a mutação e seduz seus habitantes com a promessa de uma vida pessoal, livre e autônoma. No cotidiano, isso se realiza como um modo de vida em que a privacidade e a intimidade se confundem com isolamento.

12.

Essa atitude frente ao mundo ocorre no contexto de uma exacerbada urbanização, resultante da explosiva migração e industrialização que, desde meados do século XX, foi concentrando, nas grandes cidades, a maior parte da população. Nesse modelo as relações sociais são pautadas pelo individualismo e conduzem o sujeito a uma relação narcísica.

13.

Em tal forma de comportamento, o mundo se torna um espelho em que o sujeito reconhece aquilo que, para ele próprio, aparece como conveniente. Eventos externos são apreciados apenas na medida em que confirmem as próprias convicções que o sujeito já formou a respeito de si próprio. Quando algo contraria essas expectativas de satisfação de tal forma nutridas, esse sujeito reage abandonando o que produz semelhante frustração. Os valores que tal pessoa está disposta a aceitar se reduzem exclusivamente àqueles que não o contrariam, mas, antes, confirmam e promovem o reflexo de sua própria imagem, cultivada dessa maneira condescendente e autocomplacente.

14.

Em tal ambiente, exacerbam-se signos e estilos, com a velocidade proporcionada pelos sistemas de comunicação. Nessas condições, a informação torna-se uma prioridade dramática, mas é reduzida à agilidade e à superficialidade. Dessa forma, a complexidade inerente às relações sociais é percebida exclusivamente na medida em que atende à exigência de ser comunicada segundo tais cânones. A própria noção de compartilhamento ganha uma significação mais ligeira. Em seu novo sentido, compartilhar passa a significar o ato de repetir, sem prévia reflexão, um conteúdo que se recebeu, mas ao qual o sujeito repetidor não acrescenta nada de seu. As sucessivas cópias não requerem originalidade.

15.

Nessa cultura que, sem qualquer densidade, copia e reproduz a si mesma à exaustão, “viraliza-se” apenas aquilo que não exige reflexão, mas pode ser imediatamente absorvido, sem precedência de uma leitura difusa e sem concentração. Tal atitude se converte, na interpretação política, em compreensões imediatas, vagas e rasas – dos fatos e das relações estabelecidas. Como só se atribui valor ao que pode ser imediatamente consumido, nas análises que tal sujeito é capaz de fazer, não há


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profundidade histórica e pouco resta de pensamento sistemático.2 Vive-se na ditadura das opiniões pouco fundamentadas. Perde-se irremediavelmente qualquer ideia tão complexa que não possa ser expressa no limite dos 144 caracteres, tal como determina alguma rede social. 16.

À semelhança do que ocorre no mundo virtual, o tempo e o espaço da paisagem urbana são, concomitantemente, fragmentados e condensados. A sedução que a cidade exerce se deve a uma estética que atribui às mercadorias erotizadas uma aura de personalização, como se fossem confeccionadas exclusivamente para aquele sujeito que a consome. O mundo social se desmaterializa e se converte em signo; torna-se a promessa de um valor ou de um sentido que nunca se concretiza. Na expectativa de alcançar tal realização, as pessoas se voltam para o consumo compulsivo3 de objetos impregnados por essa estética de uma satisfação sempre adiada. A felicidade será alcançada quando o próximo produto, sempre o próximo, for adquirido. A consumo de um bem é seguido pelo desejo de consumir um outro, assumindo-se então uma interminável produção de renovados desejos.

17.

Disso se infere que o capitalismo implica a existência de um permanente estado de insatisfação que se retroalimenta: quanto mais o sujeito consome, maior a sua carência. Não se trata da falta que se sente de um bem, mas da falta em si mesma. Forma-se uma espécie de carência essencial. Essa insatisfação absoluta, nunca sanada, cobra não só a oferta dos bens, mas requer que os bens sejam dispostos em excesso.

18.

Reforçam-se, com isso, a agitação da vida urbana e a sensação de que tudo está em vertiginosa mudança. Fazem parte dessa sensação de permanente instabilidade as relações interpessoais que passam a ser mediadas pelo vídeo e pelos gravadores. O barulho, as imagens, os signos, tudo se converte em um discurso fragmentado que adquire sentidos provisórios e para rápido consumo na tela de um equipamento eletrônico. Nessa tela, o sujeito contemporâneo é, ao mesmo tempo, ator e consumidor.

19.

Em tal condição, a ação política tende a se esvaziar. Práticas que poderiam melhorar as condições de vida de segmentos populacionais empobrecidos reduzem-se a práticas assistencialistas, com pouco ou nenhuma interferência que altere as situações concretas de existência dos excluídos. Toda essa mudança atende perfeitamente à ideologia do mercado, segundo a qual a política não é necessária. A cidadania se confunde, então, com o acesso ao consumo, como se a soberania do consumidor prevalecesse e suplantasse todo o resto. Em tal perspectiva, bastaria estender ao sujeito a possibilidade de escolher e consumir bens que estariam, então, resolvidas todas e quaisquer outras necessidades.

1.2. CRISE ECONÔMICA: A HEGEMONIA DO MERCADO FINANCEIRO

20.

2 3

A economia deveria tratar do cuidado da oikos, casa. Cuidar da casa significa, em primeiro lugar, cuidar das pessoas que nela vivem. Além da nossa casa, há uma “casa comum” que deveria ser objeto do cuidado de todos: a polis, as pessoas, as instituições sociais e o poder público. Contudo, faz muito tempo, desde a segunda metade do século

Cf. PAULANI, Leda. Modernidade e discurso sistêmico. São Paulo: Boitempo, 2005. Cf. Paulani. 2005, p.73.


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XVIII, a economia do cuidado com a casa passou a ser a economia do cuidado com o capital. 21.

O movimento capitalista no Brasil e no mundo possui uma característica cíclica de expansão e retração. Esses ciclos seguem bastante próximos de políticas implementadas pelo Estado. Quer dizer que, por mais paradoxal que possa parecer, um dos motores a impulsionar o capitalismo e a economia é, justamente, a intervenção do Estado. Nesse sentido, não se pode pensar a crise econômica atual no Brasil dissociada de uma crise global do sistema capitalista.

22.

Desde o início da década de 2010, presenciamos – não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo – sinais de uma crise econômica com derivações em crises sociais e políticas que, a rigor, podem apontar algo muito mais profundo. Para alguns estudiosos, trata-se do esgotamento do modelo capitalista globalizado e neoliberal. Para outros, o ápice de rearranjos desse sistema de crises cíclicas, provocadas não pelo acaso, mas como forma de reordenamento do sistema. Como exemplo de tais reordenamentos exigidos e gerados pelo próprio sistema vem sendo frequentemente citada a crise de 1929, também chamada de “grande depressão”, que é considerada o pior e o mais longo período de recessão econômica do século XX.

23.

Na década de 1980, o sistema capitalista entra em um outro desses seus ciclos vitais com o advento do neoliberalismo. Surge a partir do chamado “Consenso de Washington” (1979) que recomendou medidas de enxugamento da máquina pública e redução da intervenção do Estado na economia para os países subdesenvolvidos. O objetivo de tais medidas foi garantir a ampliação dos lucros do capital e dos grandes grupos empresariais globais. Tratou-se do novo modo de organização do capitalismo globalizado. “O fenômeno da globalização, embora atinja todos os recantos do planeta, não se restringe ao âmbito geográfico, mas produz transformações que atingem todos os setores da vida humana. Vive-se sob o imperativo da racionalização técnico-científica, voltada para a produtividade, o consumo e o lucro, que representam, muitas vezes, hipotecas pesadas para a natureza e as futuras gerações. O que até bem pouco tempo era tido como referências seguras, orientações determinantes para viver e conviver, tornouse insuficiente para responder às novas situações com seus desafios.”4

24.

De um capitalismo produtivo, baseado na expansão industrial, geração de emprego e distribuição de renda passou-se para um capitalismo abalizado, fundamentalmente, na especulação financeira e no rentismo. É o mundo rentista que tem estruturado as grandes estratégias do capitalismo contemporâneo, com suas empresas conglomeradas, internacionalizadas e oligopolizadas, sob a égide do sistema financeiro.

25.

Porém, percebe-se claramente um esgotamento desse modelo. Constata-se o colapso do ecossistema, devido à hiper-exploração dos recursos naturais. Ocorre uma crise da política, provocada pelo aumento da pobreza e pela concentração da riqueza e da renda. Desgastam-se as instituições tradicionais que se tornam incapazes de dar respostas às demandas de sociedades cada vez mais complexas. Tais sociedades requerem a ampliação de direitos; exigem justiça e equidade, mas enfrentam reduções das políticas sociais, impostas pelo capitalismo concentrador de riqueza.

4

CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, 2015-2019 (Doc. 102), n. 20, 2015.


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26.

Uma rápida análise acerca da realidade econômica brasileira da última década aponta que o modelo de política econômica iniciado no governo Lula foi baseado no desenvolvimentismo. Trata-se de um modelo centrado no crescimento econômico, dependente da forte intervenção do Estado em favor da expansão do comércio exterior e do aprimoramento da infraestrutura, mantendo também a expansão do gasto social com finalidade distributiva. A base de tal modelo foi a exportação de commodities; o acesso facilitado ao crédito (e consequente endividamento popular em grande escala); o consumo de massa (puxado por uma descomunal e caótica expansão urbana). O relativo êxito do modelo só foi possível graças ao aumentado poder de compra da China, que alterou o capitalismo global, e pela facilidade da circulação das ações das empresas em nível mundial, a injetar dinheiro na economia transnacional.

27.

Contudo, os refluxos da economia chinesa e a deterioração de ações negociadas em bolsas de valores (muitas sem nenhum lastro na produção e na renda das empresas e famílias), provocaram recentemente perdas constantes no mundo do capital financeirizado. As consequências foram drásticas para as economias, principalmente dos países pobres e em desenvolvimento. Aqui se encontra uma das causas da forte crise econômica global a partir de 2008, a começar pelo centro do capitalismo, os Estados Unidos da América.

28.

Ao entrar em crise, o capitalismo com seu formato especulativo e rentista da atualidade, além de destruir as comunidades e as minorias étnicas e sociais, implica também a destruição do planeta, ao extrair violentamente suas riquezas naturais, transformando-as em produtos comercializáveis.

29.

A constatação dessa face ameaçadora do sistema econômico atual levou o papa Francisco a se posicionar criticamente: “digamos sem medo: queremos uma mudança real, uma mudança de estruturas. Esse sistema já não se aguenta, os camponeses, trabalhadores, as comunidades e os povos tampouco o aguentam. Tampouco o aguenta a terra, a irmã mãe terra”.5

30.

Portanto, não só no Brasil, mas mundialmente, a circulação de dinheiro, desenfreada e sem lastro, favorecendo a especulação e a concentração de riqueza e renda nas mãos de poucos; a ampliação do poder do mercado, que passa a ditar as regras da economia e da política; e o encolhimento das ações de intervenção do Estado na economia, através de políticas redistributivas, são as características fundamentais do capitalismo nas últimas décadas.

31.

Segundo um estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, a riqueza de 1% da população subiu de 44% do total de recursos mundiais em 2009 para 48% em 2014. Em 2016, esse patamar pode superar 50% se o ritmo atual de crescimento for mantido. O relatório, divulgado às vésperas da edição de 2015 do Fórum Econômico Mundial de Davos, sustenta que a “explosão da desigualdade” está dificultando a luta contra a pobreza global.6

32.

Em nosso país, a expansão do mercado de consumo, nos últimos anos, possibilitou uma mudança no perfil socioeconômico da população, com o alargamento de uma classe trabalhadora com poder de compra e consumo. Paradoxalmente, foram os ricos e mais

5

FRANCISCO. Discurso proferido no 2º Encontro Mundial de Movimentos Populares, na cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra, em 19/01/2015. 6

Site da BBC Brasil, em 19/01/2015.


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empobrecidos, guardando as devidas proporções, os grandes beneficiários das políticas econômicas nesse período. 33.

Por outro lado, os investimentos à expansão de políticas de bem-estar social foram insuficientes para atender as demandas da classe média e da nova classe trabalhadora que acessou o consumo. Parte da classe média brasileira passou a reclamar que tais políticas públicas de incremento do consumo, distribuição de renda e ações afirmativas não contemplaram suas expectativas.

34.

Como explica Piketty, o foco das tensões sociais, em vários países, está relacionado com a perda patrimonial da classe média, o que pode explicar, também, o crescimento de segmentos dos grupos e partidos mais à direita e do egoísmo social. Para este autor na década de 1970, a classe média possuía cerca de 30% do patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%. Ao mesmo tempo, observa-se um aumento na concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. A perda de posição da classe média poderia levar esse segmento para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores, imigrantes, gregos preguiçosos etc.”7

35.

Segundo o IBGE, os 10% mais ricos no Brasil concentram 42% da renda nacional.8 O mais grave nesse cenário é que a economia, em seu modelo de capitalismo rentista, tem substituído a política. Atualmente, o ministro responsável pela pasta econômica dos governos geralmente é a personalidade mais importante, mais referenciada e respeitada que o próprio governante eleito pelo povo. E ainda, nesse modelo global de uma economia que não cuida da Casa Comum, não há nenhum controle público nem na esfera nacional, nem no plano global do capital.

1.3. CRISE SOCIAL: A EROSÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

36.

Desde a redemocratização do Brasil, cujo marco foi a promulgação de uma nova Constituição, em 1988, o país passou por muitas transformações que lhe permitiram avançar, paulatinamente, rumo a um modelo de sociedade menos excludente. Frente às imensas discrepâncias que havia antes disso, os avanços ainda são poucos, mas significativos. Muitas medidas implicaram redução das formas de desigualdade. No entanto, permanecem inúmeras situações que, histórica e sistematicamente, beneficiam pequenos grupos já abastados e privilegiados e impedem a efetiva inclusão de parte da população.

37.

Nos últimos trinta anos, sucederam-se governos que trouxeram contribuições indispensáveis para o aumento das garantias sociais e do respeito aos direitos civis que protegem especialmente os menos favorecidos. No entanto, bem mais do que a um ou outro governo, as conquistas alcançadas nesse período se devem, sobretudo, à participação da sociedade organizada. Enquanto fruto dessa construção coletiva, cada mudança realizada ao longo desses anos com vistas à formação de uma sociedade mais justa é um patrimônio da população brasileira. Cada uma delas é também resultante de

“La dette publique est une blague! La vraie dette est celle du capital naturel”. Entretien avec Thomas Piketty. In: http://reporterre.net/Ladette-publique-est-une-blague-La-vraie-dette-est-celle-du-capital-naturel. Acesso em 14/03/2016. 8 IBGE, Síntese dos Indicadores Sociais. 2013. 7


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uma permanente vigília das organizações da sociedade para garantir a existência de mecanismos de controle sobre o Estado pelos cidadãos. 38.

Isso implica afirmar que nenhum partido político pode arrogar para si isoladamente a propriedade sobre políticas públicas, sociais e econômicas, que tornaram mais democrático o acesso a bens e direitos. Por outro lado, é igualmente verdadeiro que ninguém pode se julgar autorizado a desmontar os mecanismos em razão dos quais a inclusão social veio sendo ampliada e garantida. Direitos podem ser aprimorados, mas, em nenhuma condição, podem ser reduzidos.

39.

O princípio que orienta tal leitura dos fatos é a suposição de que a ação política é uma forma de fazer os poderes públicos convergirem para o interesse dos mais pobres. O bem de todos e para todos só é alcançado pelo cuidado com aqueles que mais precisam do Estado. Como já bem constatava o profeta Isaías, “a paz é fruto da justiça” (Is 32,17). Se, ao contrário dessa ideia, a política for reduzida a uma luta fratricida e à disputa em favor dos interesses egoístas de um grupo contra outros, no final, todos perdem. Os supostos vencedores não encontrarão a paz encastelando-se em privilégios dos quais está excluída grande parte da população.

40.

As muitas transformações vividas em tempos recentes causam alegria e renovam a esperança quanto à possibilidade e à viabilidade de se construir uma sociedade mais fraterna e igualitária. Trazem também muita apreensão, na medida em que se constata que a democracia não é uma instituição que se move de maneira linearmente progressiva. As sociedades podem avançar em direção a uma maior democracia, oferecendo maiores garantias de liberdade e de direitos. Todavia, podem também regredir a modelos oligárquicos e autoritários, herança de tempos ainda não totalmente superados.

41.

No atual momento vivido pelo país, encontram-se em ação projetos diversos de sociedade que pretendem reduzir o reconhecimento da diversidade e querem validar como regra um pensamento único. As sombras do autoritarismo e da violência – tão intensas na história brasileira – são uma ameaça sempre presente. É forte a tentação de se tratarem as diferenças sociais como algo natural, ao invés de percebê-las como resultado de persistentes desigualdades econômicas. A sociedade brasileira discrimina seus cidadãos, atribuindo a alguns mais direitos do que a outros. Semelhante distinção é produzida e reforçada cotidianamente por meio de práticas políticas que contribuem para a manutenção e perpetuação das condições de desigualdade.

42.

O Brasil atual parece encontrar-se em um momento crítico. Reforça-se no país a reprodução de relações sociais autoritárias. Essa estrutura perversa condena milhões a viverem excluídos e reduzidos ao cumprimento de papéis sociais de submissão e subordinação. No entanto, esse não é o único caminho possível. Como parte desse mesmo momento crítico, existe em aberto a real possibilidade de se criarem formas para fortalecer a frágil, mas vicejante democracia. Isso seria viável mediante a adoção de uma vigilante defesa do estado de direito, do respeito incondicional à Constituição, do cumprimento imparcial das leis como garantia de que os mais fracos e vulneráveis terão resguardadas a liberdade e a dignidade de cidadãos.

43.

Isso implica, no entanto, o reconhecimento e a manutenção dos avanços sociais e políticos que, como nação, fomos capazes de construir, especialmente nas três décadas mais recentes. Na mesma medida, implica a recusa aos elementos que têm levado à


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criação de uma pauta de votações no Congresso Nacional, caracterizada pela redução ou a completa eliminação de alguns direitos sociais. Assistimos à aprovação de medidas que contribuem para criminalizar ainda mais a juventude, que já é vitimada pela violência e pelas formas sistemáticas de exclusão social e econômica. Medidas como a redução da maioridade penal podem ser apresentadas como solução e, por serem simples, intuitivas, podem atrair o apoio de grande parte da população, sobretudo com o apoio sistemático da grande mídia. No entanto, seguem sendo medidas repressivas com discutível efeito sobre a violência que, supostamente, por meio dela se quer debelar. 44.

O perfil das principais vítimas da violência inclui o jovem, especialmente o negro, morador das periferias. O recorte de raça sempre está presente, seja qual for a questão social abordada. Um recente estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que até mesmo as diferenças de gênero são acentuadas pelas diferenças raciais. Segundo esse Instituto, a diferença entre a média salarial do brasileiro, homem e branco, e a média salarial da brasileira, mulher e negra, atinge 40%. Além disso, estas últimas são mais propensas à precarização e à admissão para funções com menor remuneração e menos garantias sociais.

45.

São situações que levam a pensar que medidas como aquela da redução da maioridade penal, possuem endereço certo, na medida em que – de forma intencional ou não – atingem um público que, na estrutura social brasileira, já é alvo de inúmeras discriminações. Aliada a outras alterações que tramitam no Congresso, essa medida se faz passar como uma solução fácil, mas ignora a complexidade dos problemas que afirma querer sanar.

46.

De forma semelhante, a proposta de flexibilização do Estatuto do Desarmamento, pela qual o acesso a armas de fogo viria a ser facilitado, faz a violência parecer uma questão relacionada à posse de arma ou à falta dela. Sabe-se, porém, que a violência é uma questão profundamente arraigada na desigualdade social e que sua complexidade não pode ser reduzida por meio de soluções tão fáceis. Raramente se discutem, no debate dessa questão, os ganhos que serão auferidos pelos setores que tão insistentemente defendem o porte de armas pelo cidadão. Ao contrário, numa sociedade já tão marcada pela violência e por formas explícitas de preconceito, ódio e exclusão, seria indispensável que os legisladores estivessem atentos para que a política de segurança pública fosse uma garantidora dos direitos sociais e nunca sua limitação.

47.

Outra forma de redução de direitos é representada pela proposta de emenda constitucional que pretende transferir para o Poder Legislativo a decisão sobre a demarcação de terras indígenas. Feita essa transferência, o Executivo perderia a sua atual prerrogativa de realizar essa que é, antes de mais nada, uma questão de justiça social para com os povos nativos, cujos direitos foram tão atacados ao longo dos séculos, e que ainda continuam sendo assassinados. Passando ao Legislativo, a questão estará submetida aos instáveis humores do Congresso, que – como visto frequentemente – por vezes vota contra medidas de inegável valor social, por submetê-las à contabilidade dos afetos e interesses políticos. Com isso, corre-se o risco de ver transformada uma questão de justiça social em algo opinável, como se uma maioria contrária pudesse, ao votar, eliminar aquilo que é devido aos indígenas por direito. Essa proposta mostra que as culturas deles estão sendo vistas, nessa lógica unitarista do capital, como formas de vida dispensáveis.


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48.

Esses são apenas alguns exemplos do insistente ataque que tem sido feito aos direitos consolidados na Constituição de 1988. Vê-se a sistemática corrosão dos direitos da criança e do adolescente, não só pela já discutida redução da maioridade penal, mas também pela proposta de diminuição da idade para ingresso no mercado de trabalho. O direito ao trabalho em condições dignas está sendo agredido pela proposta que pretende dar nova definição de trabalho escravo. Por fim, no bojo da Lei Antiterrorismo, as legítimas manifestações sociais e políticas tornam-se passíveis de controle e punição.

49.

A liberdade de expressão e de pensamento se encontra, atualmente, em rota de colisão com os meios de comunicação de massa. A imparcialidade e a objetividade permanecem sendo ideais nunca plenamente alcançados. A apresentação de um fato ou informação já contém uma interpretação que deles se faz. A a mídia brasileira tem se prestado ao papel de trazer ao leitor e ao espectador apenas determinada versão dos fatos, torcendo-os, julgando-os e apresentando-os como se fossem a verdade única. As instituições políticas são referidas quase sempre de forma negativa. A política é tratada como um espaço em que prevalecem as pessoas sem ética. Por reduzi-la a algo sujo, a mídia contribui para que a população se desinteresse de participar. Nesse processo, ela tem deixado de exercer o papel que poderia, caso cumprisse a efetiva tarefa de informar, favorecer o cidadão no questionamento da ação política, em particular aquela feita sem o amparo de valores éticos. Da forma como a mídia tem atuado, ela beneficia certos interesses e não contribui para o incremento da democracia.

50.

Além disso, tem havido um claro comprometimento da grande mídia com um determinado viés. Com coberturas jornalísticas parciais, assume para si a função de promotor e de juiz. Transforma acusados em réus, fazendo prejulgamentos que beneficiam projetos políticos na mesma medida em que outros são prejudicados. Como é claramente perceptível ao longo da história nacional, a grande mídia constitui uma espécie de instituição social. Como tal, exerceu em outros momentos tão críticos como o atual, papéis determinantes. Tal história não permite aos meios de comunicação serem reconhecidos por valores como a imparcialidade e neutralidade. Essa instituição há décadas, tem sido, sistematicamente, instrumento de poder.

51.

Chama a atenção, por exemplo, a cobertura midiática que tem sido feita sobre a corrupção no país. A julgar pelo discurso que tem prevalecido, pareceria que a corrupção está restrita a alguns poucos partidos ou característica de um ou outro governo. Ao contrário, a corrupção está profundamente entranhada no modo como se faz política no Brasil. Isso passa pelo financiamento de campanhas por empresas, mas vai além dele. Permeia o funcionamento do poder público e finca suas raízes também na iniciativa privada. Combater a corrupção exigiria rever o funcionamento de toda a instituição política. No entanto, exige também profunda mudança cultural.

52.

Parecem indissociáveis a corrupção existente na prática política e as inúmeras formas de flagrante falta de ética que se multiplicam cotidianamente na vida familiar, nos mundos do trabalho e até mesmo nas práticas religiosas. No dia a dia, pequenos atos – mesmo aparentemente insignificantes – corroem as relações sociais. Isso não minimiza nem relativiza a corrupção sistêmica e endêmica que afeta as instituições políticas ou o Estado, mas a coloca em perspectiva. Afinal, não é só nessas instituições que a corrupção existe.


12

53.

Ocorre que, nas práticas sociais miúdas, a corrupção vai adquirindo invisibilidade. A busca de apadrinhamento, o favorecimento de interesses particularistas tanto no campo econômico quanto no social, o flagrante desprezo pelas leis não costumam ser percebidos como corrupção. Desse modo, o mesmo cidadão que clama contra a corrupção no Estado não se sente incomodado ao sonegar impostos, ao infringir as leis de trânsito, ou ao obter para si benefícios, pequenos ou não, à margem da legalidade. Não são atos menores nem irrelevantes. Ao contrário, eles tendem a se cristalizar em atitudes que contaminam todo o sistema. Entranhados na cultura nacional, esses comportamentos são vistos como naturais. Portanto, eles estão na base da falta de isonomia, na impunidade e na privatização dos bens públicos. Permeiam a vida cotidiana e acabam por contaminar a máquina estatal.

54.

Nada disso é problematizado no discurso que tem sido feito sobre a corrupção no Brasil. Do modo como os acontecimentos estão se dando, a apuração parcial da corrupção tem trazido sérios impactos à economia nacional, ameaçado a legalidade institucional e posto em crise a própria democracia. Prisões que são espetacularizadas e transformadas em shows midiáticos servem para culpabilizar os envolvidos, mas não contribuem para mudar o sistema. Em vez de focar na crítica ao modelo vigente, a discussão é deslocada, em meio a prejulgamentos moralistas, para o debate sobre culpa ou inocência do agente, seja este um indivíduo, uma empresa, um partido.

55.

Tal como tem se dado, o combate à corrupção se converteu em instrumento da disputa pelo poder político. Tais circunstâncias levam à legítima suspeição de que quando outro grupo chegar ao poder, o funcionamento da corrupção possa vir a ser retomado. Se isso se realizar, nenhum aprendizado ético terá sido incorporado às instituições políticas do país e, cedo ou tarde, novos escândalos vão aparecer. E os meios de comunicação, em mais um momento crítico da história do País, terão abandonado sua função social de informar e esclarecer e transformado sua capacidade discursiva em um instrumento para confundir e afastar o cidadão comum da real possibilidade de discernir sobre os graves acontecimentos que se desenrolam na vida política e econômica da sociedade brasileira.

56.

Enquanto tudo isso acontece, em meio à cobertura sensacionalista da imprensa, subrepticiamente estão sendo encaminhados o rateio e a privatização do espólio da Petrobras e do Pré-sal; juros extorsivos seguem sendo cobrados pelos bancos e instituições do setor financeiro que têm alcançado níveis recordes de lucratividade, entre os mais altos do mundo; as terras de índios e quilombolas estão sendo apropriadas pela voracidade dos que submetem a terra à lógica exclusiva da especulação e da geração privatista de riquezas; os mesmos que criticam as políticas sociais para pobres e as acusam de ser mero clientelismo, defendem a apropriação do BNDES e de outros bancos públicos para grandes financiamentos que beneficiam os mais ricos. Riqueza financeira e riqueza fundiária se elevam exacerbadamente na crise, ao abrigo da política monetária para a Dívida Pública e da política agrícola para a especulação com terras subtraídas ao domínio público.

57.

Nada disso parece ser problematizado quando se aborda o tema da corrupção com o moralismo. Ao contrário, o combate à corrupção se confunde com a posição política frente a uma concepção de estado ou de governo. A guerra contra a corrupção não parece possível se o instrumento de que ela se serve é a ruptura da legalidade e a fragilização ou mesmo destruição das instituições.


13

58.

Os direitos sociais tipicamente ligados à prestação de serviços públicos básicos, a exemplo da educação, da saúde e da proteção contra riscos incapacitantes do trabalho – Previdência Social e Assistência Social – estão sendo abertamente colocados na linha da desconstitucionalização por vários setores ligados ao sistema financeiro, sob o argumento do ajuste fiscal. Tal proposta é explicitamente assumida por setores adeptos do chamado “ajuste fiscal estrutural”, que visa gerar superávit orçamentário a qualquer custo, para atender o serviço da Dívida Pública. Esta desconstitucionalização equivaleria à demolição do sistema de direitos sociais instituídos pela “Ordem Social da Constituição de 1988”, colocando todos os titulares de direitos (educação, saúde, previdência, assistência social e seguro desemprego) na completa orfandade social.9

1.3. CRISE POLÍTICA: O ENFRAQUECIMENTO DAS INSTITUIÇÕES

59.

Para compreender o processo democrático brasileiro contemporâneo, é preciso tomá-lo em termos mais amplos, sob pena de cairmos em um presentismo que nega a processualidade histórica e pode fazer retroceder importantes avanços alcançados.

60.

Numa breve periodização da experiência democrática brasileira ao longo das últimas décadas, vale lembrar que após um longo período ditatorial, os anos 1980 caracterizaram-se pela implantação da democracia e pela instituição do sistema democrático que temos hoje. Fruto das lutas populares e de um extenso processo constituinte, que contou com a participação da sociedade civil organizada e o concurso dos movimentos sociais, a Constituição de 1988 – experiência democrática das mais importantes que o país já vivenciou –, expressa não somente a retomada de direitos políticos, mas agrega forte elemento social. Contudo, esse grande avanço dá-se em meio a sérios problemas econômicos. Não obstante os esforços, a partir de então, para regulamentação e aplicação da Carta de 1988 em todas as suas dimensões, na sequência de diferentes planos econômicos malsucedidos, era seríssima a problemática econômico-financeira do país, afetando sobretudo os setores mais pobres da população.

61.

Ao vencer tal desafio, a década de 1990 notabiliza-se pelo saneamento da moeda e a estabilização financeira, com o Plano Real, o que possibilitou ao Brasil reformas estatais, no âmbito das forças produtivas e dos gastos públicos, e a afirmação do país como de desempenho desejável nas dimensões macroeconômica e das relações internacionais. Porém, isso se faz numa perspectiva neoliberal, que coopera para o achatamento de salários, o desemprego e o aplastamento da participação política. A necessária transição para políticas voltadas para os direitos sociais faz-se evidente.

62.

No enfrentamento de seu maior desafio, a superação da extrema pobreza que assola imensa parcela de sua população, a década de 2000 distingue-se pelo implemento de políticas sociais, caracterizando-se por um forte processo de inclusão social. Os avanços alcançados nos âmbitos social e político, somados à estabilidade econômica, conferem ao país a possibilidade de uma inserção política internacional soberana.

63.

Em fins da referida década, todavia, veio a crise econômica internacional, fato que não pode ser ignorado. Ainda assim, o Brasil seguiu investindo em uma política anticíclica,

9

Cf. http.//pmdb.org.br Fundação Ulysses Guimarães, PMDB. Uma Ponte para o futuro. 2015, p.9,11-12. Acesso em 02.04.2016.


14

numa proposta de aceleração do crescimento para que as políticas sociais pudessem seguir em frente, sem recuo. Porém, dentre variadas questões, sobretudo em decorrência da fortíssima queda no preço das matérias primas, o Brasil chega ao seu limite. É preciso fazer ajustes em suas contas e entrar em um novo momento que inclua a qualidade dos serviços públicos e dos direitos sociais promotores da igualdade. Ajuste fiscal, semanticamente, para significar um reequilíbrio justo das contas públicas precisa se orientar pelos princípios da justiça distributiva e da progressividade da tributação. Mas isto não está posto na agenda política presente. 64.

Se se avançou em quantidade, é preciso avançar em qualidade, sem que se percam os ganhos obtidos. O longo trabalho de construção democrática, de resolução do problema da moeda, de promoção de uma inclusão social firme, impõe que se caminhe para a frente. Porém, ao processo de mobilidade social ascendente – retratada pela ampliação dos setores médios da população, do aumento de renda e de consumo –, não corresponde um crescimento em mesmo nível no que tange a uma visão mais substanciosa da vida. É preciso crescer do ponto de vista da cidadania, da adesão à democracia. Como já dito na seção anterior, não obstante os avanços sociais, no âmbito político, o poder econômico é quem segue ditando as regras.

65.

A partir das eleições de 2014, o Brasil vivencia uma situação de grande tensão política. Com resultados de quase empate, dá-se uma polarização grave, com uma oposição que desde o primeiro momento trabalha arduamente para deposição da presidente reeleita. A isso se somam os inúmeros processos de corrupção, inflados por um arsenal jurídicomediático que focaliza e associa a corrupção a um partido, embora sejam muitos os políticos e partidos envolvidos. Com atitudes extremadas e forte colaboração das mídias, a população – sobretudo as classes médias urbanas –, adere, capturada pelas luzes que iluminam somente uma parte da cena e fazem invisíveis outras muitas.

2. REFLEXÕES À LUZ DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

2.1. NO ÂMBITO CULTURAL: PARADIGMA DO MERCADO

66.

10

O pensamento hegemônico que regulariza o sistema econômico é o paradigma do mercado capitalista. Este apresenta-se como modelo de civilização, o único que vale no plano coletivo. Supõe implicitamente que a economia forma a realidade central, invadindo as outras dimensões da existência humana: a política, as relações sociais, o esporte, a cultura, a religião. Os lemas desse paradigma ou modelo civilizacional são: consumo, liberdade, eficiência e rentabilidade, pragmatismo, desejo de parecer, individualismo. “Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede lugar à aparência”.10 Na sociedade, toda realidade tem valor comercial, pois ela é reduzida à mercadoria e obedece à lei da oferta e demanda. O papa Pio XI já assinalava na Quadragesimo anno, o alastramento do sistema capitalista nos outros setores da economia. “O regime capitalista da economia, desde a publicação da Rerum novarum, com a propagação da indústria, alastrou em todas as direções, de tal maneira que se infiltrou e invadiu

FFANCISCO. Evangelii Gaudium, nº62, 2013.


15

completamente todos os outros campos da produção”.11 Cinquenta anos mais tarde, segundo o pensamento do papa João Paulo II, os mecanismos do mercado “comportam o risco de uma ‘idolatria’ do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria”.12 67.

A ideologia do mercado13 ou cultura do capital promete riqueza e poder. Exacerba a competição entre as pessoas. Para que a riqueza possa crescer, o indivíduo tem que passar à frente dos demais, e a concorrência antecede a solidariedade. Se a ideologia do mercado não existia no tempo de Jesus, existia outra forma de globalização comercial, política e cultural, a do império romano. Na Bíblia não há condenação da riqueza em si, mas há séria denúncia da acumulação. “Quem ama o dinheiro, dele não se fartará; quem ama a riqueza, dela não tirará proveito” (Ecl 5,9). Jesus convida o homem rico a vender suas propriedades, provavelmente grandes, em favor dos pobres (Mc 10,21 e Lc 18,22). O mal é a idolatria do dinheiro (Lc 16,13). O dinheiro é um bem relativo; absolutizar o dinheiro é idolatria. É o culto do bezerro de ouro na Bíblia (Ex 32; Dt 9, 7-21). O evangelho critica a cobiça dos ricos (Lc 12,15). Ao contrário da lógica comercial do “é dando que se recebe”, Jesus privilegia a gratuidade em prol dos pobres (Lc 14, 12-14). À lógica da troca de favores, inclusive religiosos, Jesus opõe a do dom.

68.

À ganância e à competição para o poder que são, no paradigma do mercado, motores do progresso, Jesus opõe a escolha dos meios pobres, a gratuidade e o serviço aos outros. A mentalidade de Jesus não se coaduna com o lucro, a concorrência, a riqueza e a ambição. Do cristão, seguidor de Cristo, espera-se uma desconformação ao universo mental do mercado para não viverem um catolicismo de consumo individualista. Sem questionar o funcionamento e a ideologia dominante da sociedade, tomam parte dele e dela, apenas praticando gestos de caridade. O catolicismo, sob o ideário do mercado é vivido num modo individual, solitário com laços comunitários frouxos.

2.2. NO ÂMBITO ECONÔMICO: VIÉS IDEOLÓGICO DA ECONOMIA

69.

A crise econômica e financeira que o Brasil e outros países estão atravessando “interpela a todos, pessoas e povos, a um profundo discernimento dos princípios e dos valores culturais e morais que estão na base da convivência social”.14 O prefácio da Nota do Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz, invocando causas das crises pelas quais o mundo está passando, aponta a orientação de cunho liberalista que ganhou hegemonia sob forma de liberalismo econômico exacerbado. “Trata-se de uma ideologia, de uma forma de ‘apriorismo econômico’, que pretende tirar da teoria as leis de funcionamento do mercado e as chamadas leis do desenvolvimento capitalista, exasperando alguns dos seus aspectos”.15 Tal ideologia que negligencia a realidade torna-se instrumento subordinado aos interesses do mercado financeiro. “A financeirização sufoca a economia real”.16 No Brasil, pela prática de juros altíssimos, o

11

PIO XI. Quadragesimo Anno, nº 103. JOÃO PAULO II. Centesimus Annus, nº 40. 13 Cf. VERMEYLEN, Jacques. Le Marché, le Temple et l’Évangile. Paris: Les Éditions du Cerf, 2010. 12

14

Prefácio da Nota do Pontifício Conselho Justiça e Paz, 2011. Nota do Pontifício Conselho Justiça e Paz, 2011. 16 FRANCISCO. Laudato Si, nº 109, 2015. 15


16

lucro dos grandes bancos subiu 27% em 2015,17 em um ano em que a economia encolheu 3,8%, com uma queda de renda média de 7,4% e aumento do desemprego nas metrópoles de 2,3%.18 Significa um acréscimo de 562 mil desempregados nas seis regiões metropolitanas. O dado global para o Brasil em 2015, segundo o Cadastro Geral de Emprego e Desemprego do Ministério do Trabalho (CAGED), é de 1,5 milhões de desempregados. A ideologia do mercado é responsável pelas desigualdades e pelas distorções do desenvolvimento. “O mercado, por si mesmo, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social”.19 70.

Para entender a realidade brasileira com as suas crises, se faz necessário enfrentar, além da ideologia neoliberal, a crença segundo a qual os problemas são exclusivamente de ordem técnica. “O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano”.20 Minimizar ou ignorar o valor das escolhas dos atores concretos não só torna impossível encontrar soluções adequadas para os problemas, mas empobrecem as principais vítimas de empreendimentos que são as populações locais. É o caso flagrante na construção da hidroelétrica de Belo Monte e de outros casos similares, como o da transposição do rio São Francisco.

2.3. NO ÂMBITO SOCIAL: UMA NOVA QUESTÃO SOCIAL

71.

Na primeira década deste século, houve uma melhoria do bem-estar da população por uma série de medidas de políticas econômica e social, mas sem tocar as injustiças estruturais do país. Parece que foi um parênteses na história social do país. Com a crise econômica, voltaram a aumentar a desigualdade social, a pobreza, situações de desemprego e subemprego, entretanto os bancos e intermediários financeiros e outros nunca ganharam tanto dinheiro. A recessão econômica combina com maior concentração da renda e da riqueza. É um verdadeiro atentado contra o projeto de Deus e de seu Reino. “Esta economia mata”, disse o papa Francisco.21 Com a crise, o sistema econômico e financeiro produz mais iniquidade e exclusão social. “Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe”.22 Parece mero espetáculo que não incomoda! Com isso nega-se a primazia do ser humano sobre o dinheiro e a sua lógica de funcionamento.

72.

A nova questão social mencionada pela nota do Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz sob o regime do sistema capitalista não perdeu sua atualidade perene. “O trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social, se nós procurarmos vê-la verdadeiramente sob o ponto de vista do bem do homem”.23 A questão social não cessa de ser pertinente para os trabalhadores, assumindo uma

17

Consultoria Austin Asis, citado em O Globo, 26/02/2016. Pesquisa Mensal de Empregos (PME) do IBGE, citada em O Globo, 26/02/2016. 19 FRANCISCO. Laudato Si, nº 109, 2015, citando Bento XVI, Caritas in Veritate, nº 35. 20 FRANCISCO. Laudato Si, nº 109, 2015. 21 FRANCISCO. Evangelli Gaudium, nº 53, 2013. 22 FRANCISCO. Evangelii Gaudium, nº 54, 2013 23 JJOÃO PAULO II. Laborem Exercens, nº 3, 1981. 18


17

importância fundamental e decisiva. “É o princípio da prioridade do trabalho em confronto com o capital”.24 A negação da primazia do ser humano “encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”.25 Superar, de fato, a primazia do capital sobre o trabalho, “supõe a criação de uma nova mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns”.26 O direito dos povos indígenas e dos quilombolas faz recordar que “o planeta é de toda a humanidade e para toda a humanidade”.27 73.

Resolver as causas estruturais da pobreza significa denunciar e renunciar à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, sem confiar mais nas forças cegas e na mão invisível do mercado.28

2.4. NO ÂMBITO POLÍTICO: PRIMAZIA DO POLÍTICO SOBRE O FINANCEIRO

74.

O descompasso entre a chamada classe política e os cidadãos revela um divórcio grave que atinge as instituições políticas. A gestão política nos mercados (bolsa de valores) sobre as decisões políticas e econômicas, sobretudo nas crises fomentadas pelo próprio sistema, que se tornou, na linguagem do papa Francisco, autorreferencial, é surda ao apelo dos empobrecidos. Resolver as causas estruturais da pobreza passa pelo fim da autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira.29 Pio XI, na época da crise econômica dos anos trinta, criticava com veemência os efeitos negativos das finanças e da especulação sobre a economia real, qualificando a teoria da livre concorrência de mito. “A livre concorrência matou-se a si própria: à liberdade do mercado sucedeu a ditadura do mercado”,30 onde os mais poderosos dominam não somente a vida econômica, mas também a política.

75.

“É coisa manifesta, que nos nossos tempos não só se amontoam riquezas, mas se acumula um poder imenso e um verdadeiro despotismo econômico nas mãos de poucos”.31 Este despotismo é declarado intolerável. “Este mesmo acumular de poderio gera três espécies de luta pelo predomínio: primeiro luta-se por alcançar o predomínio econômico, depois combate-se renhidamente por obter o predomínio no governo da nação, a fim de poder abusar do seu nome, forças e autoridade nas lutas econômicas”.32

76.

Pio XI julga que o liberalismo radical, chamado hoje neoliberalismo, com a sua pretensão de autonomia de uma esfera economicamente autorregulada pela concorrência, não se sustenta. A intervenção na esfera econômica não pode ser encarada somente como um corretivo a excessos eventuais do jogo econômico. Uma intervenção estatal é intrinsecamente necessária ao funcionamento da economia e da concorrência. “Urge, portanto, sujeitar e subordinar de novo a economia a um princípio diretivo, que

24

JOÃO PAULO II. Laborem Exercens, nº 12, 1981. FRANCISCO. Evangelii Gaudium, nº 55, 2013. 26 FRANCISCO. Evangelii Gaudium, nº 188, 2013. 27 FRANCISCO. Evangelii Gaudium, nº 190, 2013. 28 Cf. FRANCISCO. Evangelii Gaudium, nº 204, 2013. 29 FRANCISCO. Evangelii Gaudium, nº 202, 2013. 30 PIO XI. Quadragesimo Anno, nº 109. 31 PIO XI. Quadragesimo Anno, nº 105. 32 PIO XI. Quadragesimo Anno, nº 108. 25


18

seja seguro e eficaz”.33 Trata-se, de garantir, além de um sistema de governo, “a primazia da política – responsável do bem comum – sobre a economia e sobre as finanças”.34

3. RUMOS PARA A SUPERAÇÃO DAS CRISES

3.1. NO CAMPO CULTURAL: O IMPERATIVO ÉTICO

77.

A cultura contemporânea resulta de uma concepção de homem e de sociedade profundamente entranhada nos processos subjetivos do indivíduo como no modo de se organizarem as relações políticas e econômicas. Individualismo e consumismo são características de uma época em que a ideologia de mercado conduz ao desinteresse por questões sociopolíticas. Essas só interessam quando se apresentam como soluções fáceis, importando menos sua real eficácia. Nessa mentalidade, restam a apatia frente ao social e o refúgio narcísico do cultivo estético e da fruição dos prazeres do próprio corpo.

78.

A Igreja no Brasil, nesse contexto, tem reafirmado inúmeras vezes que, enquanto sociedade, devemos praticar a ética no modo imperativo. “Faz parte da missão pastoral da Igreja anunciar e defender as exigências éticas para que elas iluminem a convivência social. Exercendo essa missão queremos, desde o início, deixar bem claro que são necessárias e indispensáveis, ao mesmo tempo, a transformação das estruturas e a conversão dos espíritos, isto é, da consciência das pessoas e de sua mentalidade.”35

79.

A falta de consciência do bem comum e a ausência de uma ética da solidariedade são responsáveis pelos mecanismos perversos de opressão e exclusão.

80.

A encíclica Laudato Si, do Papa Francisco, resgata com profundidade a ética do cuidado. Explicita a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, num mundo onde o modelo de desenvolvimento concentra renda, polui o ar e as águas, agrava o efeito estufa e reduz a qualidade de vida das atuais gerações e, principalmente, das gerações futuras. Logo, o modelo vigente castiga o planeta e agrava a exclusão. Sair do individualismo, superar o narcisismo é voltar-se à alteridade: “é preciso sentir novamente que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos”.36

81.

A Igreja ensina que é necessário unir forças na construção de uma civilização do amor, permeada pela ética do cuidado. “O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre os indivíduos, mas também ‘as macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos’.37 Por isso, a Igreja propôs ao mundo o ideal de uma ‘civilização do amor’.38 O amor social é a

33

PIO XI. Quadragesimo Anno, nº 88. Nota do Pontifício Conselho Justiça e Paz, 2011. 35 CNBB. Exigências Éticas da Ordem Democrática (Doc. 42), n. 4, 1989. 36 FRANCISCO. Laudato Si, nº 229, 2015. 37 BENTO XVI. Caritas in Veritate, nº 2. 38 PAULO VI. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1977. 34


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chave para um desenvolvimento autêntico: ‘para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social – nos planos político, econômico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do agir’.39 Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se santifica.”40 82.

Cabe ainda lembrar que faz parte da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil colaborar para que no âmbito da cultura, essa civilização do amor e do encontro deve ser pautada pela ética dos direitos humanos, sociais e políticos. “No âmbito da cultura, cabe promover uma sociedade que respeite as diferenças, combatendo o preconceito e a discriminação nas mais diversas esferas, efetivando a convivência pacífica das várias etnias, culturas e expressões religiosas, o respeito às legítimas diferenças. [...] A ética dos direitos humanos exige que se garanta a vida plena em todas as dimensões da pessoa e para todas as pessoas da sociedade.”41 3.2. NO CAMPO ECONÔMICO: DEMOCRACIA E MERCADO42

83.

Será que há uma crise da democracia? Esta parece impotente em cumprir sua função de regime de governo, pois seria superada pela hegemonia da economia de mercado. Em princípio, a democracia representa a legitimidade política. Mas é a economia de mercado que marca pontos. O desenvolvimento da mídia, a fluidez do mercado financeiro, o pensamento único do liberalismo escapam ao controle do político. Hoje, há um predomínio do econômico de tipo totalitário sobre o político, dos ricos sobre os pobres. Há uma crise de legitimidade da democracia por ser incapaz de cumprir sua tarefa de governo e desenhar um projeto de sociedade.

84.

O mercado seria incompatível com a democracia? Nas teorias dos mercados perfeitos, a intervenção do Estado só reduz a eficiência da economia. Na crise atual, há um antagonismo fundamental entre mercado e governo, que se traduz por uma recusa do político. Não é mais a política, o direito e o conflito que, nesta situação, governam a sociedade, mas o mercado. Concretamente, significa subordinar a forma de governo às exigências do mercado, garantindo o direito de propriedade e assegurando as chamadas liberdades econômicas (o direto do capital). Os programas sociais que distribuem os rendimentos dos ricos para os pobres são considerados como distorções econômicas.

85.

Em favor da democracia, há uma relação estatisticamente significativa entre a renda per capita e o nível dos direitos e das liberdades políticas. No Brasil, onde o sistema democrático e de proteção social ainda é pouco desenvolvido, qualquer recessão, como a atual, rejeita para o lado da pobreza e da má nutrição uma porção significativa da população. No fundo, duas visões confrontam-se, hoje, no debate sobre as relações entre mercado e democracia. Segundo a primeira, predominante na forma de “pensamento

39

PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 582. FRANCISCO. Laudato Si, n. 231, 2015. 41 CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019 (Doc. 102), nº 116, 2015. 42 Cf. FITOUSSI, Jean-Paul. La Democratie el le Marché. Paris: Éditions Grasset, 2004, 104 p. 40


20

único”, a extensão da esfera do mercado exigiria uma limitação do campo da democracia. Em outras palavras, segundo os arautos do mercado, democracia demais prejudica a extensão do mercado. 86.

A segunda concepção defende uma complementaridade entre economia de mercado e democracia, com uma hierarquia segundo a qual o princípio econômico seja subordinado à democracia e, portanto, uma autonomia da sociedade na escolha da organização econômica. Isso implica apreciar a pertinência de uma política ou uma reforma, relativizando os critérios de eficiência econômica e reforçando a democracia na adesão das populações ao regime político. Renunciando ao mito dos mercados perfeitos, assimetrias de poder e de informação exigem fortes intervenções permanentes do Estado e dos seus governantes. Por exemplo, o sistema de comunicação social organizado sob a forma de monopólio e oligopólio, está explicitamente em contradição ao texto da Constituição Federal Brasileira no Art.220, §5° e permanece contrária à democratização dos meios de comunicação. Não por acaso, faltam as regulações conforme o Art. 222, §3°.

87.

Superar a recessão econômica exige priorizar políticas econômicas formuladas em termos de objetivos-fins como o pleno emprego, crescimento dos níveis de vida, em vez de objetivos-intermediários como a paridade monetária, equilíbrio fiscal, privatização, flexibilidade dos mercados. As políticas de ajustes fiscais e outras políticas são muitas vezes pro-cíclicas, aumentando a instabilidade econômica e a insegurança vital das populações. O crescimento exorbitante do capital financeiro pesa demais sobre as categorias mais vulneráveis da população, inclusive parte da classe média, pela redução das despesas públicas, os chamados gastos sociais.

88.

Nada pode validar a crença segundo a qual a busca da coesão social, com decisões coletivas, proteções sociais, redistribuição da renda, serviços públicos, seria obstáculo à eficiência econômica. Trata-se de colocar em questão um discurso retórico de legitimação de um capitalismo dominador que considera a democracia e a política como obstáculos ao desenvolvimento. O problema é que essa ideologia do mercado está formando a mentalidade de muita gente. O mercado neoliberal conquista muita gente porque as pessoas se embebem de uma cultura do capital. Tirar o neoliberalismo das cabeças consiste em produzir novas representações da sociedade e de suas atividades.

3.3. NO CAMPO SOCIAL: AS POLÍTICAS PÚBLICAS

89.

Em face dos reais problemas vividos pelo país e, em especial, pelos cidadãos mais pobres, os políticos, de modo geral, mostram-se afastados dos seus eleitores. Já há tempos que a democracia representativa brasileira vem dando esses sinais de esgotamento e exigindo urgente revisão.

90.

O Brasil é um país multicultural e sua diversidade nem sempre é reconhecida nas estruturas de representação política instituídas. Em vez disso, tem sido priorizado um determinado padrão socioeconômico, apresentado como único modelo possível e referência a partir da qual as demais culturas são consideradas.

91.

Em consequência, multiplicam-se propostas de leis que restringem direitos e reduzem a participação social. Tais projetos políticos vislumbram, como solução para os impasses


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presentes, o retrocesso à concentração de poder nas mãos dos políticos eleitos, ao invés de ampliar a participação popular. Nesse contexto, o direito à resistência e à livre manifestação deve ser preservado em todas as suas formas. Manifestar-se é, antes de mais nada, um dever cívico. Contudo, tem sido comum que atos de protesto se convertam em forma de violência moral pela qual a força das massas se impõe. Interesses discricionários de grupos ou objetivos escusos acabam sendo camuflados como vontade de uma maioria, em nome da qual até mesmo direitos políticos fundamentais da democracia se veem ameaçados. Isso é o que se tem constatado na tentativa em curso de violar a periodicidade eleitoral, sem que os requisitos legais para tal exceção estejam claramente estabelecidos. 92.

Não há dúvidas de que, frente às desigualdades que imperam na realidade socioeconômica brasileira, não há espaço para retrocessos no campo da ampliação das políticas públicas voltadas para a inclusão e geradoras de igualdade e dignidade das pessoas. “As políticas públicas são mecanismos através dos quais os direitos podem ser universalizados e visam a uma reorientação do Estado para uma sociedade justa e solidária por meio de ações duradouras e capazes de reformar as instituições. A elaboração, implantação e execução das políticas públicas necessárias para superar esses desafios são de responsabilidade de Municípios, Estados e União, mas exigem o acompanhamento e o controle democrático por parte de todos os cidadãos. A democracia se exerce não apenas entregando o poder aos homens e mulheres que elegemos, mas também pela participação constante e ativa de toda a sociedade na vida política.”43

93.

Mais uma vez afirmamos: sabemos que “a transformação rumo a uma sociedade justa é um processo contínuo, que exige profundas mudanças culturais e implica a participação de todos.”44 É, na verdade, um processo de ampliação da Democracia. Poderíamos dizer que é o ato da afirmação do povo como soberano da democracia.

3.4. NO CAMPO POLÍTICO: O FORTALECIMENTO INSTITUCIONAL

94.

Sabemos que a nova ordem democrática brasileira “só se consolidará quando a nação se empenhar decididamente numa transformação profunda, que modifique as relações sociais e garanta a efetiva participação de todos os cidadãos. Formas estáveis de democracia supõem condições para os cidadãos exercerem plenamente seus direitos e responsavelmente seus deveres.”45 Como disse João Paulo II, “o sujeito da autoridade política é o povo, considerado na sua totalidade como detentor da soberania”.46

95.

A Igreja no Brasil, por várias vezes, já se manifestou acerca do valor da democracia como expressão da liberdade e da igualdade entre os cidadãos “A democracia não se realiza, de fato, quando o sistema econômico exclui parcelas da população dos meios necessários a uma vida digna [...]. A construção da democracia é a criação das condições necessárias para que os homens, como cidadãos, rompam o isolamento e sua

43

CNBB. Evangelização da Juventude (Doc. 85), nº 233. CNBB. Eleições 2002: Propostas para reflexão (Doc. 67), nº 3. 45 CNBB. Exigências Éticas da Ordem Democrática (Doc. 42), nº 1, 1989. 46 JOÃO PAULO II. Centesimus Annus, nº 46. 44


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desagregação social e ocupem o espaço público, através da discussão, da negociação, do diálogo e da decisão.”47 96.

Nesse sentido, o fortalecimento das instituições democráticas é o caminho mais seguro para a superação das crises: “não basta fazer o diagnóstico da atual crise; impõe-se também uma tomada de decisão sobre os meios mais justos e eficientes para a sua superação, e esta é uma decisão política. Desde as bases locais – comunidades e municípios – até as mais altas esferas do poder, bem como as instâncias continentais e mundiais, é necessário apoiar-se sobre instituições capazes de construir consensos políticos justos e assegurar sua implementação. É evidente que as atuais instituições não estão preparadas para essas novas funções e que profundas reformas se impõem, desde as prefeituras locais até a ONU.”48

97.

Entendemos que a democracia não se realiza sem instituições, mas há que se ter um equilíbrio entre instituições, poderes e interesses populares. O desejável seria uma sintonia dessas três dimensões. Sendo assim, a atual crise da democracia brasileira somente será superada com um amplo entendimento político – a envolver o governo, a oposição, os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo – com vistas a atender os interesses maiores e não interesses mesquinhos pautados pelo imediatismo e a insana disputa pelo poder.

98.

O sistema político e segmentos do judiciário precisam desviar seus olhares da opinião publicada, evitando o risco de confundi-la com a legítima opinião pública. Trata-se de dois modos diferentes e com intenções claramente antagônicas que se elaboram ao interpretar a realidade política e social vigente. Não se pode confundir opinião pública com a opinião publicada. Ao contrário, é indispensável que se compreenda, com urgência, que somente o diálogo e o entendimento poderão relativizar o poder das ruas. Esse poder que emana diretamente da participação popular não deve ser apropriado ou usurpado por setores da sociedade que arrogam para si o direito de falar em nome do povo. Apenas as instituições que recebem da Constituição da República o poder para representar os interesses da população brasileira têm legitimidade para interpretar e implementar a vontade do povo. Dessa forma, devolve-se a atual crise para o único locus em que, efetivamente, ela pode encontrar uma solução favorável: o interior das instituições políticas.

CONCLUSÕES

99.

Em contexto de crises, corremos o risco de imaginar que, como uma miragem, uma sociedade democrática, justa e fraterna é mero sonho e que jamais conseguiremos alcançá-la. Diante dessa tarefa por demais árdua, corremos o risco de refugiarmo-nos em um presentismo que fragmenta a vida, desconhece a história e difunde ódios e polarizações que só fazem enfraquecer a coletividade.

100. Contra isso, é preciso retomar a história, não para reconstruí-la, como se o passado estivesse de algum modo morto, mas para compreender que o passado está vivo e atua no presente e pode determinar futuros. Há história se fazendo. Há que nos perguntarmos 47 48

CNBB. Exigências Éticas da Ordem Democrática (Doc. 42), nº 69-70, 1989. CNBB. Por uma Reforma do Estado com Participação Democrática, (Doc. 91), nº 5, 2010.


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que história estamos fazendo; como chegamos até aqui e como seguiremos. Também é preciso inquirir quem somos em nosso tempo e compreender as lógicas de funcionamento que se imbricam para promover o presente. 101. Ainda assim, jamais seremos capazes de saber que acontecimentos virão. Na confluência de elementos de muitas ordens, de discursos e práticas, de materialidades e imaterialidades, a vida se faz. Mas, mesmo que não saibamos o que virá, não devemos esperar até que os acontecimentos nos surpreendam. Ter diante de nós uma utopia ativa requer que estejamos de prontidão para reconhecer o breve instante da oportunidade – Kairós – o bom momento para agir. 102. Compreender a democracia como uma instituição não implica tratá-la como algo enrijecido e imutável. Democracia é algo que se cria e se recria permanentemente, com vistas ao bem comum. O ideal da civilização do amor não pode existir fora da própria história, que se faz em meio às decisões cotidianas individuais e coletivas. No entanto, jamais se concretizará tal ideal se essas decisões deixam de ter em vista os valores éticos do altruísmo e passam a ser ditadas por interesses egoístas. A sociedade pressupõe a construção de um projeto de vida fundamentado na amizade, tal como sugere a etimologia da palavra socius. Dito de outra forma, a sociedade depende das alianças que, como amigos, fazem entre si os cidadãos. Por essa razão, não pode haver sociedade de fato, sem a existência e a defesa incondicional da fraternidade. 103. Os processos de dominação e exploração, a imposição da vontade de uns sobre outros, as estratégias midiáticas mistificadoras que disseminam a desinformação e propagam de forma arbitrária uma certa visão da história são deformações do percurso da vida social que rompem tal pacto de amizade e de fraternidade e produzem o esgarçamento do tecido social. 104. Sem fraternidade não há alegria. Apenas o respeito pelas regras do bem viver, amparado no cuidado com a Casa Comum, é capaz de alimentar, no momento atual e no futuro, a alegria de viver juntos. 105. A existência de conflitos não representa, por si só, a destruição da vida social. No entanto, a solução para os conflitos não pode ser construída quando se valorizam mais os aspectos que nos separam do que aqueles que nos unem. As pontes não podem ser queimadas, sob pena de nos encurralarmos e nos isolarmos, perdendo o sentido da profunda unidade que constitui a realidade nacional. 106. Da mesma forma, os conflitos não podem ser obliterados. Negar sua existência ou fingir que eles não existem não contribui para sua solução. Na verdade, acaba por impedi-la. Lavar as mãos e continuar com a vida como se não houvesse questões que demandam enfrentamento e solução apenas favorecem a imposição autoritária de um grupo sobre outros, aumentando as dissensões. O olhar cristão exige de todos nós que nos tornemos pacificadores (Mt 5,9). Nem exacerbar os conflitos, nem negá-los; mas, promover a paz. 107. O atual momento vivido pelo Brasil exige a coragem e a ousadia para desenvolver a comunhão, não obstante as diferenças. Ultrapassar a superfície conflitual para alcançar a unidade exige um ato de magnanimidade. Não se trata de um sincretismo que pretenda resolver as diferenças por meio da redução do outro. Ao contrário, implica projetar o contraste das polaridades sobre o plano das potencialidades que nos unem e da alegria de se viver juntos.


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108. O domínio do regime de economia capitalista que promove uma acumulação cada vez maior do rendimento do capital, conjuntamente com a mercantilização crescente do mundo, é ameaça ao regime democrático. Pois, a lógica econômica ou mercantil substitui pouco a pouco as outras lógicas e práticas sociais e culturais. A conivência entre elites econômicas e políticas, evidenciada nos escândalos financeiros atuais, constitui uma corrupção da democracia, pois permite aos interesses econômicos particulares decidir os rumos da política. O aumento das desigualdades em prol dos que vivem de rendimentos do capital (rentiers) provoca aumento da violência. Como o mercado não tem como se autorregular, o Estado tem que regular o mercado. A democracia do Estado de Direito implica um consenso sobre um projeto comum de liberdade e igualdade. A reabilitação do Estado é necessária, pois não pode ter democracia sem Estado. Como também, “para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise... urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial”.49 Para ser viável, a democracia exige uma vontade de igualização das condições econômicas dos cidadãos e das nações. Conciliar os princípios da liberdade e da igualdade dá sentido concreto às liberdades democráticas.

49

BENTO XVI, Caritas in Veritate, n° 67.


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