Solenidade de NPS Bento 11 de julho de 2015 Caríssimos Irmãos e Irmãs: Em Monte Cassino, ao tempo de São Bento, os monges estavam em pleno processo de conversão ao Deus verdadeiro, que, aliás, não se conclui nunca, enquanto peregrinamos nesta terra. Eis que, construindo o Mosteiro, encontrando a estátua de um ídolo, temeram seu poder. Tanto assim que, com a estátua em mão, arremessaram-na para longe, vindo a mesma cair na cozinha. Imediatamente, vêem o fogo imaginário se expandir nesse recinto. O Pai do Mosteiro, sentinela vigilante em seu posto, isto é, em sua cela, é atraído para o local, dada a gritaria alucinada dos irmãos. Lá chegando, o Homem de Deus percebe a situação. Então, relata São Gregório Magno: “Baixou logo a cabeça em oração” e chamou os irmãos a si admoestando-os a persignarem os olhos”.1 O mal não estava no ídolo, mas nos irmãos. Seus olhos ainda não estavam puros nem suas mentes. Se a adesão a Cristo não for exclusiva e total, pode-se ver coisas imaginárias, como reza o ditado popular: “Chifre em cabeça de cavalo”. Vêse o mal onde ele não existe. Adverte-nos Jesus: “A lâmpada do corpo é o 1
Gregório Magno, II Diálogos, cap.X
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olho. Portanto, se o teu olho estiver são, todo o seu corpo ficará iluminado; mas se teu olho estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro. Pois, se a luz que há em ti são trevas, quão grande serão as trevas!” (Mt 6, 22-23). O julgamento e as atitudes assumidas por nós dependem muito de como vemos as coisas, pessoas e situações. Questionar sempre os próprios julgamentos, impressões e atitudes faz-se necessário, pois podem provir de uma ilusão demoníaca. Essa história do incêndio na cozinha é bastante atual, pois a superstição, e, portanto, uma fé inconsistente, ainda é muito forte no mundo contemporâneo. Pérolas como estas: “cortar cabelos somente na lua crescente”, a encontramos até entre bons irmãos, lastimavelmente! Entretanto, há um fogo que o monge devia constatar em seu espaço eclesial, que não é produzido por uma fé pouco esclarecida nem por uma possível superstição, muito pelo contrário. Certa vez, um ex-noviço veio nos visitar e contou-me uma história sobre costumes de nativos de nosso país. Relato, a seguir, o que dele escutei. A mulher permanecia na tribo cuidando da terra. O homem saía para a pesca e a caça. Era atividade da mulher e das crianças manter uma fogueira no centro da aldeia. Quando este retornava de sua caça e pesca, antes de entrar em diálogo com sua companheira, parava por algum tempo diante da fogueira para se tranqüilizar, pacificar e assim poder en2
frentar aquela que o esperava com certa impaciência e ansiedade. Decepcionar sua parceira conjugal por uma má pesca ou caça era por demais indigno de sua condição de varão. Cabia à mulher, contudo, avaliar se tinha sido bom o mau o seu viril desempenho no trabalho. Ao ouvir essa história, apliquei-a a nós, mesmo celibatários, mas chamados ao diálogo com aqueles escolhidos pelo Senhor da messe para juntos vivermos a “conversatio monastica”. Comecei, então, a perguntar-me se, também, tínhamos fogueiras em nossa casa, onde pudéssemos fazer esse ritual de parar por um momento antes de entrar em contato com nossos irmãos, hóspedes e peregrinos. Descobri que temos muitas fogueiras em nosso Mosteiro. Algumas, comuns a todos. Outras, muito próprias no caminho de determinados irmãos, dispostas em relação ao lugar que ocupam na comunidade e do serviço que desempenham. A primeira fogueira comum a todos está, qual “Sarça Ardente”, em nossa Capela, chamada do Santíssimo. Ali é lugar comum de todos nós. Ali devemos estar antes de encontros importantes e decisivos em nossa vida. Onde fazemos a statio, encontra-se um belo e simples quadro de madeira, nele esculpido um adágio de S. Gregório Magno que diz: “Si cor non orat, in vanum lingua laborat .” Esse provérbio é, também, uma fogueira comum a todos nós. Antes de entrarmos para a salmodia, para escu3
tarmos o que o Senhor tem a nos dizer, paramos para calar a mente e o coração. Ao iniciarmos a Lectio Divina, já sentados em nossos banquinhos, em silêncio, invocamos o auxílio do Espírito Santo, para que Ele aqueça nossos corações e ilumine nossa inteligência. O banquinho que utilizamos é a fogueira que nos faz recordar: seremos sempre discípulos da Palavra da Vida. Terminada as Colações na Sala Capitular, nos dirigirmos para celebrar as Completas em nossa Igreja. Caminhamos em procissão e em silêncio. Quando as estrelas já brilham no firmamento, precisamos estar pacificados para um repouso sadio e tranquilo. E, como as crianças que antes de dormir pedem a benção à mãe, concluído esse Ofício, nos dirigimos em procissão à “Sarça ardente que Moisés via arder sem se consumir”, suplicando sua materna proteção, em sua bela e acolhedora capela, ao fundo da Igreja: a capela da Santa Mãe de Deus. Eis uma luminosa fogueira em nossa vida claustral. Enfim, costumeiros monásticos que mantemos não têm a finalidade de nos fazer baluartes do passado, mais ou menos, como guardiões de um museu. Não! Pelo contrário. São fogueiras que nos põe diante de nós mesmos e nos incitam à preparação para o diálogo com nossos irmãos e com o Altíssimo.
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As imagens e ícones espalhados pelo mosteiro são verdadeiras fogueiras no caminho de cada um de nós, bem como as araucárias, outras árvores e flores de nosso bosque e jardins. Entretanto, há fogueiras que são específicas. Dependem do lugar que o monge ocupa na comunidade. No caminho do abade há algumas, do celeireiro outras, dos hospedeiros outras e assim sucessivamente. Todos nós temos aquelas em comum e as particulares. Cabe a cada um de nós descobrir as suas. E isso é muito importante para termos um encontro e não desencontro, um diálogo e não um monólogo com os que cruzam nosso caminho. Antes de dar aulas para os formandos, e lamento quando não posso fazê-lo, gosto muito de parar um segundo e olhar para a imagem de Sant’Ana com Nossa Senhora que tenho na abadia. Eu me recomendo a elas. Quando passo pelo claustro, nem sempre paro, mas procuro fixar os olhos e admirar as colunas desiguais, tortas e por vezes mal talhadas. Individualizadas são dismorfes e horríveis. Juntas, formam esse conjunto esplêndido; são harmoniosas e graciosas. Uma coluna está unida à outra pelos arcos, que se adaptam à altura de cada uma delas. Para mim esse espetáculo das colunas é sempre um “incêndio”. Nossa comunidade é formada de irmãos que se parecem com as colunas do claustro. Estão unidos pela caridade, quais arcos que se estendem até alcançar o outro. 5
Quando estamos sozinhos...Mas quando juntos no coro, no recreio, no refeitório, nas colações, nas horas de alegrias e nos momentos de desafios, que maravilha! O monge que não utiliza as fogueiras como deve, as fogueiras que têm, poderá incorrer naquele susto que nossos pais experimentaram ao ouvir Deus chamá-los no paraíso após a queda: “Adão, onde estas?”. Esse susto, monge algum deve experimentar. Enxergar as fogueiras que descrevemos mais acima só é possível com o “progresso da fé e da vida monástica”, conforme o Prólogo da Santa Regra. (Prol. 49) Os ídolos que surgem diante de nossos olhos, e que podem causar outro tipo de fogueira, aquela dos nossos irmãos em Monte Cassino, quando temidos, nos levam ao medo de enfrentar os desafios da vida e àquela duvida de que poderemos ser indignos da graça de Deus. Que NPS Bento interceda por todos os seus filhos neste momento de nossa história; no qual abundam ídolos, fogueiras imaginárias que contempladas, roubam-nos o direito de constatar que Deus está presente na natureza, em nós e entre nós, nos alertando constantemente com a palavra de Jesus: “bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus”, em tudo e em todos. Assim seja!
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