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Estas palavras de Jesus são duras: cortar a mão, cortar os pés, vazar os olhos e, podemos acrescentar, arrancar a língua, (pessoalmente, você pode acrescentar mais algum membro incômodo): cortemos todos, se por acaso esses membros nos impedirem de entrar no reino. Mas, então, Deus é um torturador? E no seu reino vigora uma lei assim tão desapiedada e sanguinolenta? E para ser admitido a este reino o homem deverá mutilar-se até a este ponto? Uma leitura deste tipo aplicada a esta passagem que acabamos de ouvir é certamente insuficiente, ainda que pareça ser a mais óbvia e, em certos aspectos também a mais cômoda. Se esta fosse a interpretação justa, pelo menos saberíamos com certeza o que devíamos fazer para sermos dignos do reino, de modo que se não conseguíssemos entrar nele, a culpa seria nossa, por causa da nossa vileza e pela nossa falta de coragem em retalhar-nos. Mas uma outra leitura não fundamentalista desta passagem do evangelho está ao nosso alcance. Que bom! Afinal, depois de tanto, porque teremos necessidade mutilarnos, de ferir-nos? Já não somos por constituição seres feridos desde o nosso nascimento e não propagamos por toda a nossa vida os traços das feridas herdadas, dos nossos limites inexoráveis, da nossa vertiginosa debilidade. Por acaso já não basta suportarmos as conseqüências, tanto na carne como no espírito, de uma primeira revolta do homem contra Deus? A fratura está sempre presente: a ferida permaneceu aberta e sem cuidados até à vinda de Jesus e ao momento de sua morte sobre a cruz: “Por suas feridas nos fomos curados” (Is 53, 5-6; 1 Pedro 2,25). Curados na raiz do nosso ser, pelo menos depois do nosso batismo, mediante o qual fomos imersos nesta morte de Cristo. Mas restaram-nos cicatrizes, sempre prontas a re-
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abrir-se e a supurar de novo; continua a existir em nós a vertiginosa fratura, no mais profundo do nosso coração, que ameaça sempre levar-nos lá onde não queremos mais ir. E ser-nos-á necessária toda uma vida de provações, será até mesmo necessária a nossa morte na morte de Jesus, antes de ser completamente e para sempre curados desta ferida das origens, para comparecer-nos de novo sãos e íntegros diante de Deus. Mas até que chegue este momento, todos nós não seremos outro que pobres deficientes do reino. No tocante ao reino de Jesus nós somos já aleijados, coxos e cegos. Não é necessário nem aconselhável acrescentar outras mutilações à nossa situação. O único risco ao qual estamos expostos e que para nós será letal, será o de não confessar nossas deficiências, mas escondê-las, fazer de conta que não existem, como se transbordássemos de saúde espiritual, de modo que nos acharíamos tão irrepreensíveis, sãos de corpo e de coração, que o reino de Jesus é nos devido, um direito adquirido que Deus não poderia recusar, em consideração a tudo aquilo que cremos haver feito a Ele. Esta tentação estará sempre presente, por mais sutil que seja, e nos acompanhará até à nossa última hora. Claro, é infinitamente mais reconfortante achar que se está explodindo de saúde do que admitir que se está prostrado, humilhado por alguma deficiência espiritual, aparentemente crônica, quem sabe evolutiva. Ao contrário, deveríamos sim era aprender a administrar esta deficiência para estarmos de pé, sustentados pela graça das feridas e da morte de Jesus. Então, cortar uma mão ou um pé ou furar um olho significa simplesmente aceitar com humildade as nossas deficiências, mesmo as espirituais, dar graças por elas e apresentá-las diariamente à gloriosa paixão de Jesus para que
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ele nos conceda uma colheita de frutos, para depois transformá-los de cicatrizes do pecado em fonte borbulhante de glória. É sempre um verdadeiro milagre, no qual ninguém jamais acreditaria, se não tivesse recebido a possibilidade de vivê-lo. Quando isto ocorrer, nós ficaremos surpresos, mas Deus não estará surpreso. De fato, em uma parábola se diz que um dia um homem ficou tão desiludido com aqueles que ele havia convidado para as núpcias do seu filho que ordenou convidar, para substituí-los, “pobres, coxos, cegos e estropiados”. Então se alegrou muito porque pelo menos estes últimos não tinham com que retribuí-lo. AMÉM.