Fruto proibido
Indígenas migram para a colheita da maçã e sofrem com discriminação e precarização no trabalho Revista do Ministério Público do Trabalho • ano III • nº7 • 2016 ISSN 2317-2401
Desastre em Mariana: uma catástrofe trabalhista
Milhares de empregados diretos e terceirizados da Samarco têm suas vidas destruídas com o rompimento da barragem do Fundão
Na vida e na morte
Profissionais da saúde e servidores do IML enfrentam risco de contaminação e adoecimento no dia a dia ocupacional LABOR
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Por trás das medalhas 8
Um passo para a regularização salarial 14
O peso das pedras 20
Vítimas da quarteirização 28
Esperança e desamparo no Suriname 34
À beira da morte 40
Em decomposição 46
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Rotina mortal 56
Emprego mascarado de estágio 64
Um desastre em curso 70
Trabalhadores à deriva 98
Casa de ferreiro 102
Fruto da exploração 108
A professora de Geografia 116
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Labor Revista do Ministério Público do Trabalho ISSN 2317-2401 Ministério Público do Trabalho Procurador-Geral do Trabalho Ronaldo Curado Fleury Vice-Procuradora-Geral do Trabalho Cristina Aparecida Ribeiro Brasiliano Chefe de Gabinete do Procurador-Geral do Trabalho Sebastião Vieira Caixeta Diretor-Geral Leomar Daroncho Labor foi produzida pela Assessoria de Comunicação Social do Ministério Público do Trabalho Jornalista responsável Layrce Lima (MTb 2457) Edição Marcela Rossetto Redação Ana Carolina Spinelli, Fabíula Sousa, Fátima Reis, Flávia Lopes, Guilherme Almeida, Juliana Castanha, Keyla Tormena, Liege Nogueira Labuto, Lília Gomes, Mariana Banja, Mariana Braga, Rafael Almeida, Rafael Maia e Tamiles Costa Revisão Marcela Rossetto Estagiários de Jornalismo Aline Larissa de Oliveira, Fernanda Palheta, Gabrielle Macedo, Guilherme Pereira, Jamile Carvalho, Julio Joly, Kamilla Kogge e Palloma Spala Rosa Fotografia CPIFCT/MS, Fernanda Palheta, Flávia Lopes, Google Maps, José Carlos Pacheco, Juliana Castanha, Julio Joly, Liege Nogueira Labuto, Lília Gomes, Manoel M. Pereira, Mariana Banja, Mariana Braga, Rafael Maia e Wendell Luís Táboas Capa Foto de Liege Nogueira Labuto Ilustrações Cyrano Vital Infográfico Guilherme Monteiro Diagramação Guilherme Monteiro e Sâmela Lemos Circulação Ana Paula Fayão e Paula Velo Administração Kelma Barreto Impressão Gráfica Movimento Tiragem 9 mil exemplares Brasília, inverno de 2016 Redação SAUN Quadra 5, Lote C, Torre A CEP 70040-250 – Brasília, DF – (61) 3314-8233 layrce.lima@mpt.mp.br/marcela.rossetto@mpt.mp.br
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Olhares atentos Defender os direitos garantidos ao trabalhador brasileiro pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e pela Constituição Federal é uma missão diária que membros e servidores do Ministério Público do Trabalho cumprem com zelo e orgulho. O sustento, a saúde, a educação, o lazer, a felicidade e a prosperidade das famílias estão embutidos no conceito de trabalho digno. Essa premissa nos sustenta na superação de obstáculos orçamentários, operacionais e de qualquer outra espécie que se interponham no caminho. Como os tiros disparados contra o Grupo Especial de Fiscalização que se dirigia a propriedades onde havia suspeita de submissão de trabalhadores ao regime de escravidão na região da Terra do Meio (PA) no dia 18 de maio. Situação muito semelhante à tocaia sofrida por fiscais do trabalho em Unaí (MG) há 12 anos. Estaríamos vivendo em 2016 um retrocesso no campo dos direitos sociais? A desconfiança cresce quando se nota a rapidez com que volta a tramitar no Poder Legislativo as propostas de alteração dos artigos 611 e 618 da CLT, que já haviam sido abandonadas na década passada por pressão social. Se aprovadas, tais mudanças autorizariam a prevalência de condições estabelecidas em normas coletivas, em detrimento dos direitos mínimos contidos na legislação protetiva. Uma tentativa clara de anular direitos consolidados. Infelizmente, não se nota a mesma agilidade no que diz respeito à reparação devida aos trabalhadores e moradores da região de Mariana (MG), afetados pelo deslizamento de milhões de metros cúbicos de detritos de uma das barragens da mineradora Samarco em novembro de 2015. Tema da matéria de capa desta edição da revista Labor, a ocorrência em Mariana ultrapassa os limites de uma tragédia, pois é o resultado do descaso e da despreocupação com o meio ambiente, com a saúde e a segurança dos trabalhadores e dos moradores de diversas cidades. Vítimas e familiares que, até o fechamento desta edição, em maio de 2016, aguardavam reparação de danos e indenizações. A Labor ainda trata nesta edição das condições de trabalho de mergulhadores; dos riscos a que estão expostos os prestadores de serviço em instituições hospitalares; da discriminação sofrida por indígenas que trabalham no cultivo de maçã no sul do país; do desvirtuamento do estágio profissionalizante; da precária situação de trabalhadores vítimas da quarteirização; e de outros temas igualmente relevantes quanto aos direitos sociais. Esta Labor número 7 é, portanto, o resumo mais recente de nosso olhar atento ao mundo do trabalho e mais uma prova de que nosso compromisso é diário. Boa leitura! Ronaldo Fleury Procurador-geral do Trabalho LABOR
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ENTREVISTA
Por trás das medalhas Engenheiro do comitê de planejamento e obras do parque olímpico de Londres explica como é possível atingir índice zero de acidentes fatais
Por Rafael Almeida
José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira e José Antônio da Silva Nascimento. Quatro filhos, pais e maridos com uma fatídica coisa em comum: todos pereceram no ambiente de trabalho durante a construção dos estádios para a Copa do Mundo de 2014. Os operários foram vítimas da pressa, da falta de organização,
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da ausência de comunicação e até de treinamento. Todos caíram perante a cultura vigente do nãoplanejamento, perderam o “jogo” imposto pela indústria construtora. Outros também foram mortos em canteiros de obra em Pequim, Atenas e em outras cidades que sediaram grandes eventos esportivos ao longo dos anos. Mas não em Londres.
Fotos: Julio Joly
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Alistair Gibb, engenheiro e uma das principais cabeças por trás do comitê interinstitucional que contribuiu para o planejamento e execução das obras do Parque Olímpico na Inglaterra, viaja o mundo contando as experiências bem-sucedidas de sua equipe, em cujo currículo consta o orgulhoso número zero no campo “acidentes fatais”. Professor titular de engenharia na Universidade de Loughborough e diretor do European Construction Institute, criado para fomentar políticas públicas para a construção civil, Gibb atribui os problemas existentes no segmento à má gestão de projetos, dando importância ímpar para a comunicação no ambiente laboral. Durante palestra na cidade de Campinas, interior de São Paulo, ele expôs a uma plateia técnica a opção da equipe de planejadores por um teto de aço mais caro para o Estádio Olímpico, que possibilitou a instalação de uma rede de cabos de segurança, e falou sobre a presença de executivos sêniores nos canteiros de obra, o que contribuiu para a manutenção de um meio ambiente de trabalho seguro. Após a sua exposição, em entrevista exclusiva à Labor, o engenheiro aprofundou-se na sua experiência em Londres 2012, discorreu sobre os problemas da terceirização, dos entraves para a comunicação nos canteiros de obra e, finalmente, opinou sobre as obras do Parque Olímpico brasileiro.
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Nas obras de construção do Estádio Olímpico de Londres, os arquitetos optaram por mudar o desenho do telhado para garantir um meio ambiente de trabalho seguro, de forma que os trabalhadores pudessem contar com uma rede de cabos de segurança, e a solução foi mais dispendiosa. É comum esse tipo de medida no Reino Unido? Sim, a lei britânica exige que os arquitetos pensem em alternativas que garantam a saúde e a segurança dos trabalhadores, além da beleza, funcionalidade e custo do projeto. Portanto, essas revisões são normais, incluindo um olhar sobre o ambiente laboral. Para garantir que a legislação seja atendida no quesito segurança e saúde do trabalho, os designers precisam entender bastante de construção civil, evitando que sejam concebidos projetos inviáveis na prática. No caso do Estádio Olímpico, é difícil afirmar se o meio ambiente do trabalho foi o único fator que levou os gestores a optarem por uma mudança tão drástica no projeto, uma vez que muitas variáveis foram discutidas, mas definitivamente a garantia de saúde e segurança aos trabalhadores foi um fator decisivo para a alteração.
É possível que se tome uma decisão pela solução mais cara para garantir a proteção dos empregados e, dessa forma, prevenir acidentes? Se for para salvar vidas, a resposta é sim. Mas a lei não exige que arquitetos e engenheiros ignorem os custos da obra, então nem sempre há uma posição que defenda a saúde e segurança acima de tudo. Mas consideremos hipoteticamente que um juiz observa que a solução que era 5% mais cara era aquela capaz de evitar a ocorrência de um acidente. Ele provavelmente dirá que a empresa deveria ter investido 5% mais na segurança. Por esse motivo, a solução mais cara deve ser sempre considerada, quando possível, mas muitas vezes não o é.
O senhor citou que nas obras do Parque Olímpico de Londres havia a presença de diretores das construtoras e do comitê gestor no canteiro de obras, e que isso era benéfico para uma tomada de decisões mais rápida. Isso é uma coisa que faz parte da cultura europeia, mesmo em empreendimentos menores? Acho que em 2012 havia uma coisa especial. O principal diretor de um dos fornecedores era um indivíduo muito respeitado. Ele dizia aos demais gestores: “se você quer trabalhar aqui, então quero sua presença em todas as reuniões. Não quero um representante seu, eu quero que você esteja aqui.” E ele sempre deu prioridade a saúde e segurança dos funcionários, conseguiu passar isso aos demais. Mas também acontece dessa forma em outros projetos, como na construção do Crossrail (projeto para construir ligações ferroviárias em Londres) e também em empreendimentos menores, em que há uma abordagem similar com a presença de executivos nos canteiros de obra. A impressão que tenho é que, no Reino Unido, não há um gerenciamento hierárquico para esse tipo de coisa. Em muitas das maiores empresas, os executivos de maior escalão têm acesso aos relatórios de acidente de uma forma muito mais direta. Isso mudou muito ao longo dos anos, de modo que é uma coisa positiva. Nem sempre tão elegante e sofisticado como aconteceu em Londres no ano de 2012, mas o princípio é o mesmo.
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Na sua opinião, qual é a importância da comunicação no canteiro de obras para evitar os acidentes, seja entre setores, entre os trabalhadores ou entre contratados e subcontratados? Eu acho que a comunicação é essencial, porque, claramente, se o trabalhador não entende quais são os requisitos para o seu trabalho, então você não pode esperar que ele siga as exigências. Eu acho que é ainda mais importante no contexto que vivemos no Reino Unido, semelhante ao do Brasil por razões diferentes, mas experimentamos a barreira do idioma, uma vez que há muitos imigrantes trabalhando na construção civil. Estamos administrando um grande projeto em Londres (por meio do European Construction Institute) junto aos trabalhadores, supervisores, gerentes e as pessoas dos escritórios, de modo que todo mundo entenda a importância da comunicação. Estamos tentando ajudar os supervisores a aprender linguagens corporais para que se façam entender pelos operários. Em muitas culturas, o empregado concorda com tudo o que o chefe diz, mesmo que ele não entenda. Estamos tentando aprender mais sobre isso e encontrar formas de comunicação em que haja compreensão mútua sem qualquer tipo de pressão. É preciso motivar a equipe que trabalha com construção civil. Em Londres 2012 fizemos algo singelo, porém eficaz: uma parede com os rostos de todos os trabalhadores que fizeram aquilo acontecer. Alguns quesitos básicos também devem ser seguidos, como respeito, justiça, consistência e, acima de tudo, oferecer desafios. Falando em desafios, um dos mais importantes está nas questões envolvendo as empresas subcontratadas, quando você tem diferentes “ouvidos” dentro do canteiro de obras.
O senhor se refere à comunicação entre tomadora e subcontratada? Veja, um operário deve cumprir as ordens determinadas pelo seu supervisor direto, que geralmente é empregado pela subcontratada. Mas o chefe deste supervisor no canteiro de obras é um funcionário da tomadora de serviços. O supervisor é um elo entre as duas e,
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por isso, tem um papel muito importante. Já vi casos em que um supervisor da prestadora de serviços disse ao trabalhador: “o trabalho deve ser entregue até hoje à noite”, mas quando perguntado ao representante da tomadora se a ordem foi efetivamente passada, ele diz: “eu nunca disse isso!” Mas o supervisor entende que o progresso da obra é importante acima de tudo. Toda a nossa cultura foi construída em cima do resultado. Então não é apenas o que você fala que vale, mas também a cultura vigente e a interpretação dada a ela na comunicação aos trabalhadores, assim como a forma como eles são engajados e se eles acreditam genuinamente no que é dito. Muitos operários não se importam com saúde e segurança do trabalho, mas apenas com quanto dinheiro vão ganhar. Então, se a percepção deles é equivocada, o que podemos fazer a respeito? Podemos capacitar as pessoas para pararem o trabalho em caso de falta de segurança? E se o fizerem, elas terão problemas? É um desafio.
O senhor disse que os imigrantes estão chegando em grande quantidade no Reino Unido e em toda a Europa. No Brasil, estamos recebendo imigrantes do Haiti, do Paraguai, da Bolívia e de outros países. Parte dessa mão de obra está sendo alocada na construção civil. Como a experiência da Inglaterra pode ser adaptada no Brasil? Há muitos imigrantes chegando ao Reino Unido e muito se deve à atual situação da Europa (nota: segundo o entrevistado, a maioria é originária de países europeus com situação econômica desfavorável, tais como Grécia, Polônia, Bulgária etc.). Historicamente, a construção civil emprega pessoas de outros países. Há um influxo, especialmente nos últimos dez anos, a partir do leste europeu, no antigo bloco soviético. Eu acho que temos que aceitar o fato de que eles estão aqui e, em consequência, temos a responsabilidade de mantê-los em segurança. Do ponto de vista moral, não deve haver nenhuma diferença, não importa de onde eles vêm. Sendo assim, criamos meios para que eles atinjam um nível mínimo de competência em que, mesmo no seu idioma
ou por meio do uso de imagens e sinais, eles entendam quais são as situações perigosas e de risco à sua integridade física. As empresas estão tentando diferentes maneiras de atingir um bom nível de comunicação com os trabalhadores, seja por meio de livros ilustrados, aplicativos de computador e outros, mas o importante é mantê-los cientes dos termos mais utilizados na construção civil e falar sempre bem devagar. Como eu disse anteriormente, a comunicação é essencial em todas as fases da obra para evitar acidentes, especialmente se as pessoas envolvidas no trabalho não conhecem o idioma local. Isso melhora o trabalho e chega a um consenso sobre como inserir o trabalhador em uma cultura que privilegia a saúde e a segurança do trabalho.
Em caso de acidentes, há um conceito claro da responsabilidade das empresas tomadoras de serviços no Reino Unido e no restante da Europa? Não é claro em um primeiro momento. No Reino Unido, de certa forma, há um entendimento cultural de que não há a necessidade de responder questionamentos, a não ser que haja suspeitas reais sobre você. Por exemplo, se estou andando sozinho na rua e um policial pergunta meu nome, eu não preciso responder, ele tem que me explicar por que quer essa informação. Mas existe uma diferença no mundo das empresas, especialmente porque há uma lei local que rege essa relação (Act Work 74). Se existe uma tomadora de serviços que é uma rota de trabalho, uma grande empregadora, ela deve responder junto com a empresa subcontratada. Em caso de acidentes, até o arquiteto pode ser questionado pelas autoridades, porque pela lei britânica ele deve ser incluído na investigação, mesmo que não tenha qualquer responsabilidade. Não posso dizer que os problemas decorrentes da terceirização não acontecem em meu país. Eventualmente alguma empresa é processada por responsabilidade em algum acidente. Mas temos que ter claro que a legislação inglesa tem o entendimento de que a tomadora é responsável.
Em Pequim, houve 5 mortes de trabalhadores
na construção do Parque Olímpico, na Copa do Mundo no Brasil houve 9 mortes na construção de estádios. Qual é a diferença desses dois eventos em relação a Londres 2012, cujo processo de construção do Parque Olímpico não registrou acidentes fatais? Não sei o que aconteceu em nenhum dos casos. É mais fácil opinar sobre Atenas, porque sei que, na Grécia, muitas dessas mortes ocorreram na reta final das obras e eles estavam atrasados no cronograma. Eu, pessoalmente, acredito que há uma forte ligação entre estar com as obras em atraso e os acidentes, o que claramente aconteceu na Copa do Mundo e nas Olimpíadas. Adicione isso ao hábito da indústria da construção civil de dizer que está com o cronograma “um pouco atrasado”, quando na verdade mal começou as obras. Isso se dá pela má gestão dos projetos. Há um arranjo contratual entre clientes e construtoras, mas todos estão jogando um jogo. O problema é que, nesse jogo, não há como postergar a data final da entrega. No fim, você está seis meses atrasado e não há outra coisa a fazer. Acho que precisamos de uma abordagem diferente em relação à gestão de projetos e à medição do progresso da obra, de forma mais nítida e muito mais profissional.
O que o governo brasileiro pode fazer para evitar acidentes de trabalho na construção do Parque Olímpico do Rio de Janeiro? Infelizmente, essas decisões deveriam ter sido tomadas quatro, cinco anos atrás. As soluções adotadas em Londres em 2012 não foram implementadas nos últimos seis meses, mas três anos antes. Mas já que não há possibilidade de voltar no tempo, meu conselho é ser realista, administrar as expectativas e, se eles estão atrás no cronograma e puderem cortar algumas coisas, então que o façam. Pode haver algum descontentamento, alguma queixa, mas eu acho que é muito melhor do que matar pessoas. X
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PROFISSIONAIS DA BELEZA
Um passo para a regularização salarial Acordo firmado no Rio de Janeiro pode servir de base para o país e garantir o direito da categoria prejudicada pela informalidade
Por Mariana Braga, Gabrielle Macedo* e Guilherme Pereira*
Há 14 anos trabalhando em salões de beleza, a manicure e podóloga Liete Sampaio, de 33 anos, aguarda ansiosa pelo dia em que poderá tirar um mês de férias, sem ver cair seu rendimento, como previsto na legislação trabalhista. “Eu nunca consegui fazer isso, tiro no máximo 10 ou 15 dias, por
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conta do salário que irei receber. Tenho que continuar trabalhando para conseguir pagar as contas no próximo mês”, conta. Isso porque Liete, assim como grande parte dos cerca de 35 mil profissionais do setor de beleza no Rio de Janeiro, sofre com as consequências da informalidade que domina o ramo.
Cyrano Vital
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Fotos: Mariana Braga
Hoje, parte dos cabeleireiros, manicures, podólogos, esteticistas, maquiladores e outros profissionais da área, mesmo tendo relação de subordinação com os donos de salões, atua sem registro, como profissional autônomo ou microempreendedor individual – o chamado MEI –, o que é ilegal, pois contraria as regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Além disso, mesmo quando registrados, recebem, de forma generalizada, a maior parte do salário em
comissões pagas por fora, ou seja, sem registro em folha. Com isso, um profissional que recebe na prática R$ 3 mil no mês, por exemplo, tem registrado em carteira menos de R$ 1.000 – piso da categoria em convenção coletiva –, o que faz com que todos os benefícios trabalhistas sejam calculados sobre o valor menor. Isso faz com que muitos, como Liete, deixem de usufruir as garantias da legislação brasileira,
como as férias de 30 dias, já que podem ver o ganho mensal no período cair para um terço ou um quarto do que receberiam em comissões não registradas, caso estivessem trabalhando. “O Brasil inteiro tem esse problema, embora no Rio de Janeiro a situação seja mais crônica. Os estabelecimentos pagam cerca de 40% a 70% de comissão por fora e não sabíamos como regularizar isso”, afirma o presidente da Associação Brasileira dos Salões de Beleza (ABSB), José Augusto Ribeiro do Nascimento Santos. Na tentativa de mudar esse quadro, o Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT) e o Ministério do Trabalho (MTb), após oito meses de negociação com sindicatos dos trabalhadores e proprietários de salão do Estado, elaboraram uma proposta que pode ser o primeiro passo para regularizar o setor em todo o Brasil. Os salões que aderirem ao Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC) terão dois anos para regularizar a situação dos profissionais que atuam nos seus estabelecimentos. Quem não aderiu será alvo de multa e ação na Justiça. “A legislação, que prevê o registro do pagamento de comissões em folha, já deveria estar sendo cumprida há muito tempo pelos salões. Com o termo, estamos dando um prazo para que a situação seja regularizada. Aqueles que não aderirem serão objeto de inquérito e poderão responder a ação civil pública”, explica o procurador do trabalho João Carlos Teixeira, responsável pelo caso. Ao detectar a irregularidade, nesse caso, o MPT encaminhou, em novembro de 2014, notificação recomendatória a cerca de 100 estabelecimentos com mais de 30 empregados no Rio de Janeiro alertando sobre a necessidade de regularização. A medida levou os sindicatos a iniciarem a negociação com os órgãos, de forma a buscar uma solução para adequar todo o setor e evitar a fuga de profissionais. Os proprietários que firmarem o TAC terão que apresentar um cronograma para, no prazo máximo de dois anos, registrarem todos os seus empregados, anotando na carteira de trabalho o valor real da remuneração recebida, incluindo as comissões – que hoje variam de 35% a 60% da produtividade no Rio de Janeiro. Pelo termo, o valor líquido anual recebido pelo empregado deverá ser mantido.
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Benefícios para o trabalhador A mudança poderá acarretar uma pequena redução no percentual da comissão recebida e no rendimento mensal dos trabalhadores. No entanto, a medida garantirá benefícios a médio e longo prazos. O contracheque maior possibilitará o pagamento de férias e 13º salário no seu real valor e facilitará a obtenção de empréstimos. “Também aumenta o valor depositado como Fundo de Garantia, possibilitando que se dê entrada na casa própria, por exemplo. Além disso, aumentará o valor da aposentadoria e de outros benefícios previdenciários como auxílio-doença e seguro-desemprego”, pontua João Carlos Teixeira. Com isso, a manicure e podóloga Liete poderá tirar, pela primeira vez após 14 anos de serviço, as férias de 30 dias sem ter que se preocupar em trabalhar extra para garantir o sustento no período em que não estará produzindo. O cabeleireiro Hugo Leonardo Cardoso Oliveira, de 32 anos, calcula que a mudança
pode gerar uma redução de aproximadamente 10% no seu rendimento líquido mensal. No entanto, trará benefícios que podem lhe garantir um futuro melhor. “Teremos férias, um auxílio-desemprego decente e um contracheque de acordo com a nossa remuneração de fato, para que a gente possa ter condições de obter financiamento”, comemora. O profissional – que fatura cerca de R$ 4 mil por mês com sua produção no salão, mas tem registrado em carteira o piso da categoria, que não chega a R$ 1 mil – conta que conseguiu financiamento para comprar a casa própria, mas não pôde apresentar o contracheque como garantia. “Sempre temos problema quando tentamos financiar seja uma casa, um automóvel, móveis ou qualquer outra coisa”, reclama. O jovem, que é terapeuta capilar e está cursando faculdade de estética, afirma que, com a mudança, pretende investir na compra de outro imóvel ou de um carro.
“Quero poder apresentar um contracheque em que conste realmente o que eu recebo e me aposentar com uma fonte de renda justa”, afirma. Além de garantir o rendimento anual dos funcionários, os estabelecimentos, pelo TAC, também terão que pagar aos profissionais uma indenização para compensar os gastos com aquisição de produtos, como esmaltes ou cremes, ou com manutenção de equipamentos de trabalho. Hugo conta que costuma gastar cerca de R$ 600 por mês com os produtos para cabelo, enquanto Liete desembolsa cerca de R$ 300 com o material usado no atendimento aos clientes. “Durante décadas os trabalhadores tiveram seus direitos usurpados. Alguns acham que ganhar por fora é benefício, pois não estão pagando imposto, mas na verdade o prejuízo é enorme”, afirma o vice-presidente do Sindicato dos Empregados em Institutos de Beleza e Cabeleireiros de Senhoras do Município do Rio de Janeiro (Sempribel/RJ), Flávio de Castro.
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Impactos para os salões Para o presidente da ABSB, a proposta lançada no Rio de Janeiro vai refletir em todo o Brasil. “Trouxe à luz o problema de informalidade do setor que ninguém tinha coragem de mexer”, afirma Santos. De acordo com dados do Portal do Empreendedor, do Governo Federal, hoje há cerca de 540 mil profissionais de beleza no país cadastrados como Microempreendedores Individuais (MEIs), o que corresponde a cerca de 10% de todos os MEIs do Brasil. Muitos deles estão em situação irregular, visto que, na verdade, atuam como empregados com relação de subordinação aos donos de salão, devendo, portanto, ter carteira assinada com o registro das comissões recebidas. Além disso, segundo a ABSB, há 52 mil salões de beleza registrados no país de pequeno, médio e grande portes. “Acreditamos que haja pelo menos quatro vezes mais salões e três vezes mais profissionais, incluindo os que não têm nenhum tipo de registro”, estima o presidente da associação. Para os empresários, embora gere aumento na folha de pagamento, a regularização garantirá maior segurança jurídica, evitando o pagamento de somas vultosas demandadas por trabalhadores na Justiça e atraindo
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mais investimentos. De acordo com o chefe da seção de fiscalização do MTb no Rio de Janeiro, o auditor fiscal Augusto José Lemos de Lima, hoje alguns profissionais de beleza chegam a demandar na Justiça de R$ 50 mil a R$ 70 mil em verbas trabalhistas pelo período trabalhado nos estabelecimentos sem registro regular. “O trabalhador tem o direito de reclamar essas verbas referentes aos últimos cinco anos de trabalho e valores como esse podem levar o negócio à falência, caso sejam declarados procedentes na Justiça”, alerta o auditor fiscal. A situação irregular atual também deixa os proprietários vulneráveis a responder ações penais na Justiça por crime de falsidade ideológica (pelo não registro do empregado) e sonegação de contribuição previdenciária (pelo pagamento “por fora”). Segundo o cabeleireiro Derotino de Araújo Pinho, que há seis anos é dono de um salão com 27 funcionários no bairro da Tijuca, no Rio, embora apenas 15% dos trabalhadores de salões ingressem na Justiça buscando o pagamento das diferenças salariais, os valores demandados podem inviabilizar o negócio, no caso de o salão perder a ação. “Há profissionais com contracheque
de pouco mais de R$ 900 que, na Justiça, vão cobrar R$ 35 mil”, exemplifica. Ele explica que tanto os empresários como os funcionários vão ter uma perda imediata, mas que será convertida em benefícios futuros para o trabalhador e também para o negócio que terá maior segurança jurídica. “A medida traz um norte para que todo o segmento caminhe dentro da legalidade. Nada adianta ter uma empresa que vale muita coisa, mas sem segurança jurídica, sobretudo trabalhista”, conclui o diretorsecretário do Sindicato dos Institutos de Beleza e Cabeleireiros de Senhoras do município do Rio de Janeiro (Sinbel/RJ), Luiz Felipe Rosa. Para os empresários, evitar a fuga de profissionais para outros salões que persistirem em descumprir a legislação será outro desafio. “A fiscalização é fundamental para não gerar desequilíbrio, de forma que uns salões paguem por dentro e outros não, para que os profissionais não migrem”, afirma José Augusto Santos, da ABSB. De acordo com os proprietários, explicar aos trabalhadores como será feita a mudança e os benefícios de cumprir a lei tem sido outro desafio, pois muitos pensam apenas no rendimento imediato e têm a falsa impressão de que ganham mais na informalidade.
Percentual em debate Com o avanço nas negociações, a ideia é que o termo de cooperação firmado com os sindicatos sirva de base para a definição da próxima convenção coletiva da categoria. Atualmente, a convenção estipula o repasse de pelo menos 20% da produtividade ao profissional. Por gerar aumentos com a folha de pessoal para proprietários, a definição de um novo percentual ainda é motivo de debate entre empregados e donos de salões de beleza. Enquanto o sindicato dos trabalhadores, Sempribel/RJ, calcula ser possível estipular um repasse de 30% para a categoria, representantes dos estabelecimentos acreditam que o percentual pode variar de 13% a 28% para garantir a viabilidade do negócio, dependendo do porte, localização do salão, número de funcionários e volume de despesa. Em audiência pública realizada pelo MPT para debater a proposta, que reuniu mais de 400 pessoas no Rio de Janeiro, o procurador João Carlos Teixeira apresentou um exemplo do impacto da mudança para trabalhadores e empresários, utilizando como parâmetro os valores apresentados pelos próprios sindicatos. No exemplo, um cabeleireiro que hoje ganha 35% de comissão não registrada tem rendimento médio de R$ 2,5 mil líquidos por mês, embora em folha apareça um salário de menos de R$ 1 mil. Esse trabalhador, que recebe uma renda anual líquida de cerca de R$ 30 mil, acaba prejudicado, pois tem os benefícios trabalhistas calculados sobre o piso registrado. Para que a regularização seja viável para o empregador, com o exemplo
apresentado pelo MPT, o percentual da comissão mensal paga a esse trabalhador hipotético sofreria uma redução de 35% para 32%, acarretando uma pequena queda no valor recebido no mês pelo profissional. No entanto, o aumento de mais de 100% do salário em folha gera incremento automático nas férias e no 13º salário pago ao trabalhador, mantendo ou até aumentando o seu rendimento líquido anual (que hoje é de R$ 30 mil). A mudança do valor registrado em contracheque gera outros benefícios diretos: faz dobrar o valor depositado pelo empregador no FGTS e o cálculo de outros benefícios. Para os patrões, a medida acarretaria, no caso hipotético apresentado, um aumento de 12% na folha de pagamento do estabelecimento, o que, segundo o procurador, é mínimo diante da segurança jurídica que a regularização representa para a solidez do negócio. “Não existe uma fórmula mágica ou receita de bolo para chegar a uma solução. Mas a ideia é que os empresários sigam esse raciocínio para garantir o pagamento de comissões, ainda que mais reduzidas, com registro em contracheque, sem prejudicar o trabalhador ou inviabilizar o negócio”, explica Teixeira. A proposta prevê ainda que o trabalhador que tiver perda no rendimento líquido anual seja indenizado. “Acreditamos que, com as mudanças, até 2018, tenhamos 80% do setor regularizado”, comemora o presidente do Sempribel/RJ. X
*Estagiários de Jornalismo no MPT-RJ LABOR
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LASCAS DE GENTE
O peso das pedras Trabalho degradante em pedreiras clandestinas são realidade no interior da Paraíba Por Flávia Lopes
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Fotos: Flávia Lopes
No meio do caminho de Antônio* havia várias pedras. Um milheiro de granito, mais especificamente. Um por um quebrado por ele. O trabalho árduo lhe rende apenas R$ 200,00 por semana, dinheiro usado para sustentar uma esposa acamada e três filhos. A verba que consegue é proporcional à produção, e as pedras que quebra por dia ainda são consideradas poucas. “É pouquinho demais, eu já estou ficando meio
velho, aí não aguento mais bater tanto”, lamenta ele. Quebrar pedra, no entanto, é o menor dos obstáculos para trabalhadores das pedreiras da região do Vale de Mamanguape, como Antônio. Na Pedreira de Curralinho, interior da Paraíba, a situação piora quando o trabalho é realizado em condições degradantes, sem equipamento de proteção e nenhuma outra garantia de segurança ou direitos trabalhistas. LABOR
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Já é costume para quem trabalha na atividade lidar com acidentes. “Aqui todo dia tem o sangue da gente derramado”, diz Pereira*, que também trabalha na pedreira de Curralinho e mostra a cicatriz na perna, herança de uma perfuração que teve com a ferramenta que quebra o granito. O Antônio revela as mãos desgastadas, com um corte recente. “Eu tenho os dedos todos roídos”, reclama. Há também relatos de trabalhador que perdeu a visão, outros que ficaram aleijados e ainda histórias de morte. As atividades são desenvolvidas na informalidade. Em inspeção realizada em julho de 2015, o Ministério Público do Trabalho na Paraíba (MPT-PB), junto com o Ministério do Trabalho, constatou que os trabalhadores não possuem qualquer vínculo empregatício, o que ocasiona uma situação de instabilidade em relação à saúde e à segurança, principalmente considerando que a atividade realizada nas pedreiras é de alto risco. A atividade das pedreiras da região resume-se no desmonte da rocha com uso de explosivos artesanais (mistura de carvão, enxofre e salitre) e corte manual, formando ‘pedras paralelepípedos’ utilizadas no pavimento de ruas, por exemplo. Segundo levantamento da Superintendência da Paraíba do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), existem na região do Vale de Mamanguape 3.017 atividades do setor de mineração cadastradas, das mais variadas substâncias (de minério de ferro a água mineral). O que não constam nessa lista, no entanto, são as atividades clandestinas, dificultando a fiscalização. “A irregularidade mais grave trata-se, justamente, da lavra sem autorização pelo DNPM”, afirma o superintendente, Guilherme Henrique Silveira. Nas pedreiras de Curralinho, os trabalhadores do local estão expostos à insalubridade constante, vento, sol, chuva. A única “proteção” é uma tenda de lona que pouco faz sombra. Os trabalhadores laboram sem uso de equipamentos de proteção individual, sem calçado, sem chapéu, sem protetor solar e com ferramentas artesanais, apenas com a roupa do corpo: bermuda ou calça e, às vezes, camisa. Também não há apoio adequado para descanso ou para guardar alimentos. O local destinado para as necessidades mais básicas, como se alimentar, beber água e guardar os pertences, não oferece nenhuma estrutura segura e higiênica, já que o lugar que serve de instalações para os trabalhadores é de pau a pique (casa de amolamento). Não há banheiro.
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Exploração de mão de obra Além das condições degradantes que os trabalhadores das pedreiras do Vale de Mamanguape enfrentam, há um agravante: a exploração da mão de obra. Na região inspecionada, os trabalhadores ‘recortam’ as rochas para um determinado atravessador (toqueiro) que as revendem a um preço superior. Segundo Reginaldo Euclides da Silva, que já trabalhou na pedreira de Curralinho e hoje está lutando para conseguir regularizar a situação dos mineradores do setor com a implantação de uma cooperativa, o trabalho que se faz por lá é desvalorizado e quem quebra as pedras
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mal sabe quanto vale o produto. “Ninguém sabe por quanto os atravessadores vendem o material, é um segredo.” Parte dos trabalhadores se divide entre as pedreiras e as usinas de álcool e açúcar no período da safra de cana-de-açúcar. Nas usinas eles são registrados, tem carteira de trabalho e previdência social (CTPS); nas pedreiras, não. Por conta dessa sazonalidade, os atravessadores estocam pedras para vender por maior valor nos períodos em que o “corte de pedra” fica comprometido pela migração de trabalhadores para a cana.
Projeto Trabalho de Todos abre portas para denúncias A invisibilidade é outro problema da região. Poucas pessoas notam a situação degradante dos quase cem trabalhadores na pedreira de Curralinho e de tantas outras da região do Vale do Mamanguape, que também estão funcionando de maneira irregular. As pedreiras do Sítio Palmeira e Sítio Engenho Novo, localizadas nas proximidades do município de Mamanguape, são alguns exemplos. A situação foi denunciada também em audiência coletiva com sindicatos rurais, em julho de 2015, na etapa de Mamanguape do projeto Trabalho de Todos, do Ministério Público do Trabalho na Paraíba (MPT-PB), um projeto itinerante que visitou 15 municípios com objetivo de realizar um diagnóstico da situação trabalhista no estado. Para tratar questões relacionadas aos trabalhadores rurais, em cada etapa do projeto, o MPT-PB realizou uma audiência com os presidentes dos sindicatos rurais da cidade e dos municípios da região. Em Mamanguape, o tema mais pautado foi o trabalho degradante nas pedreiras. O MPT-PB investiga as irregularidades das atividades nos minérios e tem um inquérito civil relativo a essa atividade da região, coordenado
pelo procurador do Trabalho Cláudio Gadelha. O procurador, também coordenador do projeto Trabalho de Todos, afirma que em muitos casos há denúncias comprovadas de trabalho degradante, em péssimas condições, sem CTPS anotada, sem o respeito mínimo aos direitos trabalhistas, mas não há denúncia por parte dos trabalhadores devido às ameaças de mortes que os obreiros sofrem. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mamanguape, José João da Silva, esteve presente na audiência e foi um dos que falaram em nome dos trabalhadores das pedreiras. “Desde o dia em que os sindicatos se reuniram aqui, mudou a história”, conta José João, que ressaltou a importância de o Ministério Público do Trabalho visitar os municípios e conhecer os problemas de cada região. “Em alguns momentos, quando a decisão é tomada sem conhecimento, isso acaba entrando em conflito com a realidade”, pondera.
Grupo vai atuar na mineração Após dados das etapas do Projeto Trabalho de Todos que levantou diversas situações de
trabalho degradante no setor de mineração do estado, o MPT-PB decidiu criar um Grupo de Trabalho para atuar de forma estratégica nas atividades que envolvam a mineração. De acordo com o procurador Cláudio Gadelha, o grupo terá a participação de, pelo menos, um representante das unidades do MPT de João Pessoa, Campina Grande e Patos. “Esse grupo vai buscar certamente a parceria com outras instituições para a fiscalização, como o Ministério Público Federal, Ministério do Trabalho, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal”, explicou Gadelha. O procurador revelou também que o maior índice de trabalho degradante foi identificado em atividades de mineração nas regiões do Cariri, Seridó, Brejo e Vale do Mamanguape. Ele citou o trabalho nas pedreiras, de mineração de pedras ornamentais e preciosas e em lajedos como as atividades que apresentaram os maiores problemas. A decisão de criar o grupo foi anunciada durante a audiência pública da etapa de João Pessoa, do projeto Trabalho de Todos, que aconteceu no fim de setembro de 2015.
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Diagnóstico trabalhista O trabalho degradante no setor de mineração não foi o único problema encontrado pelo MPT-PB. De acordo com o procurador Cláudio Gadelha, o trabalho infantil nas feiras livres foi detectado em todos os municípios em que houve operações. Além disso, crianças e adolescentes também estavam trabalhando em bares e restaurantes. Outra irregularidade detectada ao longo das 15 etapas do projeto Trabalho de Todos foi a informalidade na construção civil. “Devido à seca e à baixa empregabilidade há uma migração de trabalhadores do campo para a construção civil”, conta Gadelha, lembrando o risco que esses obreiros correm por não usar equipamentos de segurança. Durante as audiências públicas realizadas em cada etapa houve ainda diversas denúncias contra a administração pública de municípios envolvendo riscos à saúde e à segurança de catadores de resíduos sólidos.
Cidadania itinerante Além de realizar um diagnóstico da situação trabalhista da Paraíba, o Projeto Trabalho de Todos levou diversos serviços para os locais que visitou por meio da atuação dos parceiros. Na praça de serviços instalada em cada etapa, o projeto disponibilizou emissão de documentos, guia de seguro-desemprego, recebimento de denúncia trabalhista, orientação previdenciária, orientação para o microempreendedor, cadastramento para vaga de emprego, conciliações jurídicas e serviços bancários. Alguns parceiros disponibilizaram cursos profissionalizantes, oficinas e palestras, tudo gratuito. O Projeto Trabalho de Todos passou por 15 cidades, envolvendo todas as mesorregiões da Paraíba, onde foram ouvidos trabalhadores de vários segmentos, bem como empresários. O primeiro município visitado foi Sousa, localizado no sertão paraibano, em abril de 2014. Já a última cidade em que ocorreu o projeto foi a capital paraibana, João Pessoa, no fim de setembro de 2015. X
*Os trabalhadores tiveram os nomes parcialmente omitidos para evitar riscos de perseguição pelos ‘toqueiros’ nas pedreiras.
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FRAUDE
Vítimas da quarteirização Empresa frauda terceirização para explorar petróleo e gás em Alagoas e mantém trabalhadores de Brasil e Argentina em condições precárias Por Rafael Maia
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Um cidadão desempregado recebe uma proposta de trabalho, deixa para trás a família e parte para um lugar distante em busca de salário, oportunidade e sustento. Muitos leitores podem associar esta história a um roteiro daqueles filmes que terminam com final feliz, se incluirmos fases de muito sofrimento. O rumo desta história real, porém, envolveu terceirização ilegal e desrespeito a 340 trabalhadores, contratados de diversas regiões do Brasil – e até da Argentina – para trabalhar em Alagoas na exploração de blocos de petróleo e gás.
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A fraude da quarteirização – quando uma empresa, já terceirizada, contrata outra empresa para a prestação do serviço – foi descoberta após denúncia feita pelo Sindicato dos Petroleiros de Alagoas e Sergipe (Sindipetro AL/SE).
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Uma fiscalização realizada em abril de 2015 pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) – em conjunto com o Ministério do Trabalho, Polícia Rodoviária Federal e Exército Brasileiro – constatou que a empresa G3 Óleo e Gás quarteirizou à empresa argentina ANDL Serviços Geofísicos as atividades de exploração de gás e petróleo no município alagoano de Passo do Camaragibe. Ao todo, 11 campos de petróleo e gás natural recebidos em concessão da Agência Nacional de Petróleo (ANP) foram repassados por quarteirização pela G3. Os contratos de prestação de serviços firmados pela G3 Óleo e Gás “não passam de simulacro para tentar mascarar a intermediação ilícita de mão de obra necessária à consecução do objetivo social da empresa”, afirma o auditor fiscal do Trabalho Leandro Carvalho, em relatório.
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Degradação do trabalhador Durante a fiscalização, trabalhadores alagoanos, de Mato Grosso, Maranhão, Bahia e Rio Grande do Norte relataram que foram a Passo do Camaragibe com a promessa de trabalho digno e salários em dia. Porém encontraram uma realidade bem diferente: os salários atrasaram, o décimo terceiro salário não foi pago. Muitos deles ainda relataram que passaram até 90 dias sem direito à folga. O trabalhador Gilmar dos Santos, natural de Penedo, sul de Alagoas, atuou como supervisor de campo da ANDL em Mato Grosso e, mesmo com salários atrasados, voltou ao Nordeste, acreditando que seria pago. À época da fiscalização, Gilmar relatou as dificuldades. “Recebi apenas três meses de salário, mas a empresa não paga e não me demite porque não quer pagar multa. ‘Eles’ fizeram um acordo de pagamento com cálculos abaixo do valor que é registrado na carteira, e mesmo assim não recebi. A minha situação é pior que a de um desempregado, já que não tenho dinheiro e não posso ter outra atividade”, disse. Os trabalhadores da ANDL foram encontrados em alojamentos sem a higienização necessária, não possuíam armários individualizados e descansavam em cômodos apertados, sem distinção entre homens e mulheres – em apenas uma das casas de dois quartos verificadas, dormiam 19 trabalhadores. Os empregados estavam em perigo, já que explosivos utilizados para detonar áreas de exploração estavam armazenados em veículos, quando deveriam estar isolados. Segundo denúncia recebida pelo MPT, os explosivos instalados nos campos passavam vários dias sem detonação e sem vigilância. Em um dos termos de declaração expedidos pelo auditor Leandro Carvalho, um dos trabalhadores, natural do Maranhão, relatou que o FGTS dele e de outros colegas não estava sendo depositado e que a empresa que fornecia alimentação iria suspender o almoço por falta de repasse pela ANDL. Após a fiscalização realizada em Passo do Camaragibe, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho também encontraram – a partir de denúncia anônima – 13 trabalhadores argentinos “jogados” em uma casa na parte baixa de Maceió. O contrato dos empregados com a ANDL havia sido rescindido, mas os estrangeiros também não haviam recebido as rescisões e, sem dinheiro, não tinham como voltar para seu país. Enquanto aguardavam dias melhores, a ANDL repassava apenas pouco mais de R$ 100 por dia para suprir as necessidades dos empregados.
Exploração desenfreada A comparação da quantidade de trabalhadores terceirizados pela G3 e o número de vínculos diretos de trabalho firmados com a empresa mostra a dimensão de uma exploração sem limites para terceirizar toda a atividade-fim da exploração de petróleo e gás. Dados do Cadastro de Empregados e Desempregados (Caged), do Portal do Trabalho e Emprego, mostram que a G3 possui sete filiais e apenas 12 trabalhadores contratados de forma direta.
O comparativo traz um resultado: 2.930% do corpo de mão de obra da G3 é terceirizado, enquanto a empresa possui um capital social de R$ 4 milhões, de acordo com dados apurados no relatório do MTb. “A G3 atua, em verdade, como uma empresa fantasma que atinge os seus fins sem empregar qualquer trabalhador. É mais barato para o ora autuado contratar por pessoa interposta do que diretamente. Essa redução de custos é explicada, principalmente, pela precarização da relação de trabalho”, explicou Leandro Carvalho.
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Fechando o cerco
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Depois de negociações no Ministério Público do Trabalho em Alagoas, sob acompanhamento do Sindipetro e da procuradora do Trabalho Virgínia Ferreira, a G3 Petróleo e Gás pagou diretamente as verbas rescisórias dos empregados da ANDL e garantiu o retorno dos trabalhadores às suas origens. A procuradora Virgínia Ferreira
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entrou com ação civil pública para pedir à Justiça do Trabalho a condenação da G3 pelo dano causado aos trabalhadores, decorrente da quarteirização ilegal praticada. O objetivo da ação, segundo Virgínia, também é buscar uma reparação indenizatória para ser revertida aos trabalhadores prejudicados. X
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ALÉM DA FRONTEIRA
Esperança e desamparo no Suriname MPT atua excepcionalmente em caso individual de trabalhador levado para o país vizinho e ‘abandonado’ pela empresa após adoecimento Por Tamiles Costa
“Tem vários brasileiros sendo humilhados lá”, denuncia o mergulhador Manoel Martins Pereira ao contar sua história de esperança e desilusão no Suriname, onde trabalhou por quase 6 anos no lago da Usina Hidrelétrica de Brokopondo. Saiu de lá sem levar nada, a não ser a dor do corpo e a revolta do engano. Atualmente, o homem de 51 anos mora em
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Tucuruí, no sudeste do Pará, e vive do benefício de um salário mínimo que começou a receber em junho de 2015, dinheiro que tem que dividir entre os custos do aluguel, alimentação e o deslocamento à capital, pelo menos uma vez por mês, para os tratamentos de rádio e quimioterapia realizados no Hospital Ophir Loyola, em Belém.
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No final do 1º semestre de 2015, uma decisão histórica foi dada pela Vara do Trabalho de Tucuruí, em reclamação trabalhista do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Marabá. Além do ineditismo na utilização das mídias sociais como instrumento de notificação das partes, a decisão reconheceu o MPT como legítimo na atuação de uma causa individual em razão da singularidade do caso.
Fotos: Arquivo Manoel M. Pereira
A história começou em 2006. Manoel Martins Pereira, 51 anos, mergulhador, de Tucuruí, sudeste do Pará, foi recrutado no município, em outubro daquele ano, para trabalhar na extração de madeira submersa no lago formado a partir da construção da hidrelétrica de Brokopondo, na República do Suriname. Com larga experiência na atividade, adquirida durante os 13 anos em que trabalhou no lago formado na construção
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da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, Manoel foi um entre outros trabalhadores recrutados para trabalhar no Suriname. Ao chegar ao distrito surinamês de Paramaribo, Manoel teve o passaporte retido pela contratante, a Brokopondo Watra Wood International (BWWI), responsável pela retirada e pelo beneficiamento da madeira extraída. Trabalhando de segunda a domingo, numa jornada que iniciava às 8h e encerrava às 17h, com um intervalo de uma hora entre os turnos matutino e vespertino, o mergulhador realizava o corte da madeira submersa com motosserra, atividade de alto risco, sem contar com equipamento de proteção individual (EPI). Integrante de uma das quatro equipes de exploração, responsáveis por retirar do fundo do lago, em média, 300 m³ de madeira
inundada por dia, o mergulhador habitava uma das cabanas flutuantes construídas pelos próprios empregados da BWWI com material fornecido pela empresa. Em julho de 2012, o contrato de Manoel com a Brokopondo foi encerrado e ele voltou ao Brasil. “Eles usam a pessoa e depois descartam”, diz o trabalhador em relação à empresa onde trabalhou por mais de cinco anos como mergulhador. À época, ele foi avisado de que viria ao Brasil de férias, então contou ao gerente brasileiro que sentia muitas dores. Após a confissão, foi informado de que não voltaria ao Suriname, demitido sem nunca ter tido a carteira de trabalho e previdência social (CTPS) assinada, tampouco recebido os direitos trabalhistas formais, como gozo de férias, pagamento de 13º salário, aviso
prévio ou qualquer outro tipo de verba rescisória. “Aqui você não tem direito, não”, ouviu ele. Manoel retornou ao país, procurou um médico e foi diagnosticado com tumor na bexiga e na região pélvica, condição clínica relacionada às condições de trabalho às quais estava submetido no Suriname. “A água do local onde trabalhávamos era contaminada por mercúrio, mas só soube quando voltei. Em nenhum momento nos disseram isso”, relata. Sem dinheiro e com sérios problemas de saúde, o mergulhador enfrentou, ainda, vários empecilhos para ter acesso à Justiça, como a ausência de Defensoria Pública da União em Tucuruí e a extinção da demanda judicial pela ausência de tradutor juramentado apto a traduzir documentos e petição para o idioma do país-sede da empresa.
O MPT em Marabá ajuizou, então, reclamação individual em face da BWWI e do agenciador dos trabalhadores em Tucuruí, Jessé Oliveira Ferreira, responsável por recrutá-los para a extração de madeira submersa no Suriname. O Ministério Público do Trabalho argumentou na ação sua legitimidade para atuar no caso em virtude da ausência de Defensoria Pública no município e pediu o pagamento de todas as verbas rescisórias devidas ao trabalhador pela empresa, considerando que tem prevalecido nas decisões do Tribunal Superior do Trabalho a legislação brasileira sobre a do local da prestação de serviços no estrangeiro. Além da quitação das verbas trabalhistas o MPT requereu também o pagamento a Manoel de indenização de R$ 50 mil por danos morais.
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Legitimidade e WhatsApp Na sentença, a Vara do Trabalho de Tucuruí reconheceu a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para atuar na causa individual em questão e decidiu pela existência de vínculo de emprego entre Manoel Martins Pereira e a Brokopondo Watra Wood International, na função de mergulhadorserrador; pela condenação dos reclamados a pagar solidariamente ao trabalhador aviso prévio, férias mais 1/3, gratificações natalinas, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) mais 40%, multa do artigo 467 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), indenização pelo não fornecimento de guias do segurodesemprego e repouso semanal remunerado, além de indenização no valor de R$ 50 mil por danos morais. Quanto à intimação dos reclamados por uma rede social, o juiz do processo entendeu que “as circunstâncias do caso impõem o uso excepcional de tal recurso tecnológico”, deferindo a intimação via aplicativo WhatsApp de ambos os reclamados, sendo o celular de origem da mensagem de propriedade de um dos oficiais de Justiça da Vara do Trabalho. O MPT, durante os trâmites do processo, arcou com todos os custos de tradução juramentada dos documentos necessários à citação dos réus e prosseguimento da execução trabalhista.
Tráfico de pessoas Durante a audiência na qual foi reconhecido pela Justiça o vínculo de Manoel Pereira com a Brokopondo, outras testemunhas foram ouvidas. Nos depoimentos tomados, foi noticiada a existência de mais trabalhadores brasileiros no Suriname, oriundos de Tucuruí, na mesma situação em que Manoel se encontrava, inclusive com passaportes retidos. Além do cerceamento do direito de ir e vir, os empregados também permaneciam sem água potável e sem as mínimas condições de saúde, segurança e higiene. A Procuradoria de Trabalho no Município de Marabá abriu, então, novo procedimento para investigar as denúncias. O inquérito civil instaurado aponta como prioridade o retorno dos brasileiros ao país e a responsabilização da empresa pelos ilícitos causados. O Ministério Público do Trabalho entrou em contato com a Embaixada do Brasil no Suriname e obteve como resposta a informação de que já se encontra sob análise do Ministério da Justiça surinamês carta rogatória relativa aos réus Jessé Oliveira Ferreira e Brokopondo Watra Wood International. Em mensagem eletrônica, o embaixador também garantiu assistência aos trabalhadores brasileiros no que for necessário. Além da reclamação trabalhista individual e do inquérito civil instaurado em face da BWWI, o MPT apresentou representação criminal contra a Brokopondo ao Ministério Público Federal para a investigação de crime de tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho. X
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RISCO IMINENTE
À beira da morte O estado precário em que se encontram as unidades do Instituto Médico Legal de Pernambuco refletem o descaso do Governo com os funcionários do órgão
Por Kamilla Kogge*
Além do desafio inerente da profissão, quem trabalha nos Institutos de Medicina Legal (IMLs) tem o cotidiano marcado por graves riscos às próprias vidas, por atuarem em um local insalubre. As irregularidades existentes no meio ambiente de trabalho
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nas três unidades do órgão em Pernambuco – nas cidades do Recife, Caruaru e Petrolina – são objeto de ações civis públicas (ACP) movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) contra o Governo do Estado, responsável pelo funcionamento da entidade.
Fotos: Mariana Banja
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Falta de ventilação, lâmpadas queimadas que geram iluminação inadequada e ausência de materiais para realização do trabalho técnico são só alguns dos graves riscos existentes nos IMLs. A falta ou o fornecimento insuficiente de equipamentos de proteção individual (EPIs) e de proteção coletiva (EPCs), que ocasiona o contato dos trabalhadores com agentes de contaminação biológicos como sangue, secreções e dejetos dos cadáveres, é outra das infrações às normas que versam sobre a saúde do trabalhador. Em fevereiro de 2015, a unidade do MPT em Caruaru instaurou procedimento a partir de denúncia de não pagamento do adicional de insalubridade aos assistentes em gestão pública, que realizam rotinas administrativas. Os assistentes relataram que os funcionários do Serviço de Verificação de Óbito (SVO), ligado à Secretaria de Saúde de Pernambuco, trabalhavam no mesmo local que eles, exercendo a mesma função, e recebiam o adicional. Os denunciantes também informaram que o ambiente de trabalho deles e dos funcionários do SVO é contaminado, por lidarem cotidianamente com atividades que envolvem agentes biológicos, radiações ionizantes e, de forma geral, com agentes nocivos. Uma das servidoras, que pediu sigilo da identidade, relata os riscos a que estão expostos os assistentes no dia a dia. “Uma das nossas atividades é receber as planilhas necropapiloscópicas, com as digitais dos cadáveres recolhidas pelos papiloscopistas e auxiliares, que vêm da sala de necropsia. Lá eles utilizam luvas por causa do contato com os corpos, mas os documentos frequentemente vêm até nós com resquícios de sangue, e não recebemos luvas para o manuseio”, explica. No processo investigativo, o procurador do Trabalho José Adilson Pereira da Costa constatou que os assistentes não tinham acesso a EPIs, além de realizarem a digitação de documentos no setor tanatoscópico, próximo à sala de necropsia. “Os assistentes confirmaram que é comum o manuseio de laudos médicos e outros materiais sujos de sangue e secreções. O que é retirado da sala de necropsia, sejam projéteis, cordas, laudos, tudo passa pelos servidores da área administrativa. Apesar dos materiais virem embalados, os sacos estão contaminados, pois são manipulados pelos auxiliares dos papiloscopistas, em contato com os cadáveres”, diz. Outra funcionária expõe que é comum ocorrerem acidentes na manipulação dos materiais saídos da sala de necropsia. “Já
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aconteceu de o saco rasgar, a bala cair e sujar a mesa de sangue. Também me furei com um projétil, desses mais pontiagudos, e higienizei com álcool, porque não sabia o que fazer. A gente manuseia os projéteis, as facas, tudo isso que estava em contato com os corpos e que pode nos contaminar, apenas com o saco que embala o material, nenhuma outra proteção”, relata. Os riscos à saúde do trabalhador encontrados pelo MPT na parte administrativa do IML
de Caruaru vão além da possibilidade de contaminação. Ventilação inadequada, riscos ergonômicos causados por cadeiras e mesas em péssimas condições, sobrecarga de trabalho – a unidade de Caruaru atende 110 municípios de Pernambuco – são alguns dos outros problemas existentes no local. Tampouco as ameaças à saúde se limitam à área administrativa. No que diz respeito à atividade-fim, foram constatadas a ausência de material de limpeza para todo o espaço
do IML; infraestrutura inadequada da sala de necropsia, que possui exaustores com problemas de manutenção, esgotos que entopem constantemente, mesas e macas quebradas, lâmpadas queimadas; equipamentos de ar-condicionado com vazamento e carentes de higiene dos filtros, o que tem causado problemas respiratórios nos funcionários. O material utilizado para a realização de necropsia é irregular. De acordo com o
procurador José Adilson da Costa, “serras de gesso ou serras específicas para canos de PVC são usadas pelos funcionários para efetuar a craniotomia, ao invés das serras elétricas indicadas para a ação. Facas peixeiras são empregadas no lugar das facas de necropsia, sendo compradas pelos próprios trabalhadores, bem como os óculos utilizados na sala de tanatoscopia. A sutura dos corpos é comumente feita com o uso de hastes de guarda-chuva em vez das agulhas específicas para o ato”, explica.
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Problema antigo A primeira investigação que resultou em uma ação civil pública contra o IML teve início em 2009, em Petrolina, cidade localizada a 722 quilômetros do Recife. O inquérito que averiguou o desrespeito às regras que garantem um meio ambiente de trabalho digno foi iniciado após o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) encaminhar ao Ministério Público de Pernambuco (MP-PE) relatório de vistoria realizada nas dependências do instituto. O Cremepe apontou a inexistência de condições de higiene na cozinha da unidade e a falta de iluminação e aeração adequadas ao espaço. O refeitório utilizado pelos trabalhadores encontrava-se no fluxo do
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banheiro e do quarto de repouso noturno, ambos próximos à sala de necropsia. Os funcionários também não possuíam lavanderia e não contavam com condições técnicas para realizar seu trabalho, pois não havia macas para fazer exames clínicos. Além disso, a sala de necropsia não tinha exaustores e possuía arejamento inadequado, deixando o local repleto de moscas. Após o recebimento do relatório, o procurador do Trabalho Ulisses Dias de Carvalho, responsável pelo inquérito, requisitou à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) inspeção no espaço. Assim como a entidade médica, o órgão informou que não eram fornecidos
aos trabalhadores do necrotério aventais descartáveis. O IML ofertava batas de pano para uso que, mesmo usadas uma única vez, podem absorver respingos de sangue e secreções dos cadáveres, permitindo o contato do material orgânico com a pele de quem as usa. Os profissionais também recebiam máscaras simples descartáveis, insuficientes para evitar a inalação de micro-organismos e de produtos químicos. Eles ainda não contavam com Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PRPA) e não realizavam exames de saúde ocupacional periódicos.
Situação se repete em Recife Assim como em Petrolina e Caruaru, a unidade de medicina legal da capital pernambucana possui transtornos no meio ambiente de trabalho. O setor de Toxologia do Instituto de Criminalística Professor Armando Samico, que funciona no IML recifense, é um recinto insalubre, com uma extensa lista de agravantes: mofo, poeira, fortes odores, goteiras, fios desprotegidos e inexistência de proteções acústicas para os setores de balística. Os empregados também não contam com EPIs e, para resolver o transtorno da aeração insuficiente, muitos deles trazem ventiladores de casa, porque os aparelhos de ar-condicionado não funcionam. Existem vários relatos de adoecimento por tuberculose, fungo no pulmão e alergias. O MPT, desta vez por meio da procuradora Débora Tito Farias, instaurou inquérito
civil a partir de denúncia feita em junho de 2015 pela Associação da Polícia Científica de Pernambuco (APOC-PE). Em fiscalização realizada em agosto do mesmo ano, foi constatada a veracidade da queixa, a partir da averiguação das condições das instalações do Instituto de Criminalística e do Setor de Toxologia, localizado no IML. O relatório da inspeção informa que tanto os trabalhadores quanto o público que acessa a acomodação examinada estão expostos aos graves riscos existentes no ambiente. “A situação das instalações é a pior possível. Poucas vezes vi, durante os mais de dez anos de carreira como procuradora do Trabalho, um prédio público tão insalubre. Saúde, segurança e higiene deixam enormemente a desejar, colocando em constantes e graves riscos todos os que ali circulam”, relatou a procuradora.
Medidas inevitáveis O pouco-caso do Estado, que tem tomado medidas insuficientes para adequar o meio ambiente de trabalho dos Institutos de Medicina Legal de Pernambuco às normas, motivou o ajuizamento das ações civis públicas contra o Governo. Em linhas gerais, as ACPs requerem que a gestão do IML adeque urgentemente as unidades às regras de segurança e medicina do trabalho, que preveem aos trabalhadores o fornecimento de EPIs e EPCs e o acesso a materiais apropriados para a atividade técnica. O órgão deve ainda elaborar e implementar os Programas de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e de Controle de Medicina e Saúde Ocupacional (PCMSO); constituir Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa); e tomar outras medidas previstas em lei que possibilitam que os trabalhadores tenham acesso a um ambiente seguro de trabalho.
O ajuizamento da ação busca certificar que o Estado se comprometa a sanar o cenário encontrado na instituição e prevenir que as medidas continuem vigorando. “Como forma de evitar que os riscos à saúde dos trabalhadores lotados no IML/Petrolina se concretizem por falta de condições de trabalho adequadas, não resta alternativa senão o ajuizamento imediato da ação”, explica o procurador Ulisses Dias de Carvalho. No Recife e em Caruaru, as ações ainda não foram julgadas. Em Petrolina, o Judiciário condenou o Governo do Estado em primeira instância, devendo as providências de regularização serem tomadas imediatamente pelo poder executivo pernambucano. X
*Estagiária de jornalismo do MPT em Pernambuco
Com a palavra, o outro lado Chamada pelo MPT para prestar esclarecimentos sobre a situação de Petrolina, a gestão do IML informou que estava adotando medidas para melhoria do ambiente de trabalho. Informou ter aberto processo licitatório para compra de EPIs, estudo para elaboração do PCMSO e realização de reforma no estabelecimento. No entanto, o Sindicato dos Servidores Públicos Civis do Estado de Pernambuco (Sindserpe) visitou o espaço, em março de 2012, e informou que as medidas tomadas pelo IML não tinham sido suficientes. O MPT, então, expediu novas recomendações ao instituto e solicitou que o Cremepe realizasse nova vistoria, assim como o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Petrolina. Ambos relataram, em março e abril de 2014, que as condições insalubres continuavam. Foi proposta pelo MPT ao Governo a assinatura de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) mas o representante da Secretaria de Defesa Social informou, em maio de 2015, que Estado de Pernambuco dificilmente liberaria verba para reforma e readequação do IML da região, “em função do contexto atual de contenção de gastos”.
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Em decomposição Por Mariana Banja
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Fotos: Mariana Banja
Na mescla formada pela inabalável certeza da realidade iminente da morte para todos os seres e do enigma que acompanha a humanidade por milhares de anos, há aqueles que, em busca de quebrar o mistério – ou não – convivem com ela invariavelmente no dia a dia por causa do trabalho. Se por um lado isso poderia garantir algum status de destaque ou merecimento especial, afinal a morte é a morte, não é isso que acontece. Ao menos, não foi o que se pôde ver nas dependências do Instituto de Medicina Legal (IML) de Caruaru, em Pernambuco. Quem trabalha com esse evento da vida parece não existir na narrativa do mistério. Na melhor das hipóteses é coadjuvante. Esses trabalhadores são pouco falados, raramente vistos e nada lembrados. Sem a pretensão de descontruir o segredo do óbito, mas apenas parte do silêncio em torno dele, o ensaio que segue traz o meio ambiente de trabalho desses profissionais, trazendo-os nas imagens como o não-dito. Eles então revelam parte do mistério que circunda a morte, do pedaço do mito que já não precisa estar no campo do indecifrável.
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Ilustrações: Cyrano Vital
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Rotina mortal Negligência mata e incapacita profissionais do mergulho comercial, uma das profissões mais perigosas do mundo
Por Ana Carolina Spinelli e Aline Larissa de Oliveira*
Carlos Augusto Jaime mergulhou pela última vez na manhã de 17 de novembro de 1998, nas águas escuras da barragem de Santa Branca (Jacareí/SP) para fazer serviços
de reparo. Ele estava sem cilindro de ar para emergências e sem o capacete específico para a atividade, que deveria ter fones de comunicação – todos itens vitais. LABOR
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Reclamando de dores no ouvido, desceu mesmo assim e logo perdeu-se da equipe em meio à baixa visibilidade na água escura da usina. Dez minutos depois, foi encontrado desacordado pelos outros mergulhadores. Um inquérito da Marinha constatou que, naquele momento, Carlos estava com a válvula de respiração fora da boca e o “umbilical” (o conjunto de linha de vida, mangueira de suprimento respiratório e outros componentes necessários para um mergulho seguro), enrolado na testa. E foi assim, desprovido de quase tudo, que ele morreu por asfixia em seu primeiro dia de trabalho como mergulhador comercial, a 44 metros de profundidade. Carlos, que trabalhava sem registro para a empresa Marsub Comércio e Serviços Técnicos Submarinos (Santos/SP), contratada pela Light Serviços de Eletricidade S.A. para prestar o serviço, não havia sido submetido ao exame médico hiperbárico obrigatório à atividade. Além disso, o inquérito da Marinha foi claro ao apontar que diversos procedimentos básicos de segurança descritos nas duas normas regulamentadoras da atividade, a Normam 15 (Normas para Atividades Subaquáticas da Marinha) e a NR-15 (do Ministério do Trabalho
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– MTb), haviam sido desobedecidas. Em fiscalização no dia seguinte ao acidente, o MTb lavrou nada menos que 18 autos de infração contra a Marsub. Valci Casusa de Almeida não teve destino melhor. Em 22 de julho de 2004, ele mergulhou na Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso III, na Bahia (da Companhia Hidrelétrica do São Francisco - Chesf), contratado pela prestadora Marno Serviços Técnicos e Submarinos, para trabalhar em uma comporta. Nas hidrelétricas, as comportas são fechadas para controlar ou interromper o fluxo de água de milhões de toneladas nos vários degraus de represamento, mas pedaços de madeira ou detritos podem impedir esse fechamento, deixando frestas. Por essas frestas, a água continua passando a uma pressão descomunal, e tenta-se selar o vão com sacos de serragem ou de areia. E é comum contratarem mergulhadores, como Valci, para verificar se a passagem foi selada completamente ou mesmo para retirar os detritos que impedem o fechamento da comporta. Quando Valci desceu para realizar tarefa, o umbilical foi sugado por uma dessas frestas. O mergulhador conseguiu comunicar a
emergência à equipe na superfície, mas, provavelmente, em desespero, resolveu cortar o umbilical e soltar a própria máscara para tentar subir. Dez minutos depois, já era tarde. O corpo só pôde ser resgatado após o esvaziamento do lago, tal era a força de sucção da água. “Você nunca vai mandar um ser humano lá, certo? Errado. Tem gente que paga para mergulhadores irem”, afirma Renato Rocha-Jorge, especialista em mergulho profissional e autor do livro-referência Manual de Mergulho (Ed. Interciência), além de professor na Diver’s University em Santos (SP). No caso de Valci, tanto a Chesf, contratante, quanto a Marno, prestadora, alegaram que a culpa pela morte de Valci era exclusivamente dele, pois, ao cortar o umbilical e retirar a máscara para tentar emergir, ficou sem oxigênio e afogou-se. Mas para o Tribunal do Trabalho na 5ª Região (BA) não foi bem assim. Com base em um relatório da Capitania dos Portos, o tribunal entendeu que as condições de trabalho não foram avaliadas criteriosamente pelas empresas e condenou ambas ao pagamento de R$ 500 mil em danos morais à viúva do mergulhador. Em outras palavras, Valci foi colocado em uma situação
tão perigosa que dificilmente escaparia vivo se algo desse errado.
Acidentes Segundo a Diretoria de Portos e Costas (DPC) da Marinha, responsável por registrar escolas de mergulho e fiscalizar serviços de mergulho comercial, de 2012 a 2015, 18 mergulhadores comerciais foram vítimas de acidentes de trabalho, seis deles fatais. Ou seja: mais de 30% dos mergulhadores cadastrados que sofreram acidente de trabalho nesse período morreram em decorrência do ocorrido, o que é um índice bastante alto se comparado a outras profissões. O universo de trabalhadores é pequeno: são hoje 2.954 mergulhadores cadastrados (dados da DPC), e talvez por isso os acidentes não chamem tanta atenção quanto deveriam. “A atividade de mergulho é sempre de risco, independentemente da profundidade”, afirma Augusto Grieco Meirinho, coordenador nacional de Trabalho Portuário e Aquaviário do Ministério Público do Trabalho (Conatpa–MPT), que vem mapeando os tipos de mergulho comercial
que apresentam mais problemas aos trabalhadores. Para o órgão, a obediência a normas de segurança tem papel fundamental para reduzir ocorrências. No Porto de Santos, por exemplo, vários itens da Normam e da NR-15 vinham sendo negligenciados pelo consórcio Andrade Gutierrez/OAS/ Brasfond/Novatecna, responsável pelas obras, o que tornava o mergulho raso desnecessariamente arriscado. Durante uma diligência feita no local em agosto de 2015, procuradores do MPT e auditores do MTb constataram a falta de treinamento dos mergulhadores, a ausência de equipamentos de resgate nas frentes de trabalho, bem como a falta de cadastro na Marinha do Brasil das empresas terceirizadas que realizavam o trabalho. O porto foi interditado e o Consórcio foi obrigado a pagar R$ 150 mil em danos morais coletivos e a contratar somente empresas de mergulho com autorização da Marinha para trabalho em condições perigosas, entre outros itens. As irregularidades constatadas foram corrigidas para atender ao TAC e evitar multas adicionais.
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“Falta ar” No Porto de Santos, em meio às obras de recuperação, há um pequeno contêiner com painel de controle e compressor de ar, ao lado de uma tenda repleta de mangueiras umbilicais, tanques de oxigênio individuais, capacetes profissionais. Ali, Eduardo da Silva Pinto divide o espaço com mais cinco pessoas, entre mergulhadores, técnicos e supervisores. O clima não é dos melhores: uma “chuva” de cascas de soja processada para importação cai a todo momento, atrapalhando a vista e empesteando o ar com cheiro enjoativo. É ali que Eduardo e os outros mergulhadores entram na água por um pequeno buraco de pouco mais de 2 metros quadrados no cais do porto. Eles trabalham 10 a 20 metros abaixo da estrutura do cais, tendo somente aquele acesso semelhante a um poço para sair da água. “Nós consideramos esse um espaço confinado, pois se o mergulhador tiver algum problema ele não tem como subir sem se deslocar até um desses acessos. É bastante arriscado”, alerta procurador Meirinho. A água tem um aspecto escuro, insalubre e cheiro forte bem característico de área de portos. Apesar do cenário desagradável, Eduardo revela que já passou por lugares piores e
situações que quase lhe custaram a vida trabalhando em outros portos. Ele conta que, certa vez, estava a uma profundidade de oito metros com equipamento incompleto e sem pessoal suficiente na superfície. Num certo momento, a mangueira entre o compressor que puxa o ar e o reservatório que envia o ar ao mergulhador se rompeu. Por estar sem um aferidor de pressão (chamado de DCS) ele demorou a perceber que o reservatório estava esvaziando. Teve que se movimentar às pressas por debaixo do cais e ir até o buraco por onde havia descido. Por sorte, conseguiu subir a tempo. Outra causa de sufocamento pode ser a dobra do umbilical dentro do mar. “Quando você está debaixo d’água não tem nenhuma visibilidade, então você vai para um lado e para outro e a mangueira acaba dobrando, ela dá um ‘croque’. Dobra e te falta ar. Como se fosse dar um nó”, conta o mergulhador. Ele diz que problemas desse tipo são comuns no mundo dos mergulhadores comerciais. Mas ressalta que as empresas atualmente já usam uma fita envolta nas mangueiras umbilicais para evitar que se dobrem. “Mas não são todas as empresas que fazem isso”, ressalta.
Desregulamentação e negligência Os mergulhadores comerciais são considerados aquaviários, e sua profissão não é regulamentada no Brasil, embora exista um projeto de lei (6.133/2013) tramitando no Congresso Nacional. Uma das consequências da desregulamentação é que o perigo da atividade não se reflete nos salários da maioria dos mergulhadores: cerca de R$ 1,3 mil reais por mês para mergulhadores rasos e R$ 1,9 mil para mergulhadores profundos, com base em convenção coletiva para 2013/2014 entre os principais sindicatos da categoria (os valores não consideram os adicionais de periculosidade e confinamento e indenizações por “desgaste orgânico funcional” previstos na convenção). Essa desvalorização é mais perversa porque puxa as qualificações para baixo, resultando em equipes mais propensas a negligências e práticas que contrariam todo o bom senso. Que o diga Maurício Pessanha, que em dezembro de 2007 mergulhou na Bacia de Campos para fazer a manutenção da caixa de mar, a 22 metros de profundidade, em uma plataforma da Petrobras. “A caixa de mar tem uma tampa basculante. Desparafusei e enfiei a cabeça no buraco da caixa para começar a trabalhar”, conta Maurício. Minutos depois o operador de lastro na superfície, que segundo o mergulhador não tinha qualificação para a função, acionou acidentalmente as válvulas da caixa, que deveria estar desligada para impedir o acionamento. “O supervisor mandou a equipe descer mesmo com a caixa ligada”, conta Maurício. Imediatamente ele foi atingido por um jato com pressão de 8 toneladas de água ao longo de 30 segundos – os mais assustadores de sua vida. O erro foi percebido rapidamente pelo operador, que fechou a
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válvula e interrompeu o fluxo, mas por pouco o mergulhador não foi esmagado pela pressão. Maurício ainda comenta que não recebeu assistência médica imediata após o ocorrido, e a empresa deixou de emitir o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), que é obrigatório por lei. Hoje, ele enfrenta problemas de saúde que podem ser consequência de danos internos causados pelo episódio de 2007, mas tem dificuldade de provar na Justiça e obter seus direitos. Segundo ele, as empresas ainda agem de forma amadora quando se trata de atenção a procedimentos. “Conheço um mergulhador que foi ‘liberado’ para trabalhar mesmo com seis pinos na coluna”, conta, lembrando também que é comum o excesso de jornada na categoria (embora a Organização Internacional do Trabalho preconize um máximo de 4 horas por dia de atividade). Que existe uma necessidade de maior qualificação e treinamento das equipes, além de fiscalização das empresas, é inegável. “É preciso que os órgãos ou instrumentos de fiscalização mantenham o mercado em nível médio a alto”, afirma o especialista em mergulho profissional Renato Rocha-Jorge. Ele acredita que, além da fiscalização nas empresas, deveriam ser aplicadas provas periódicas para os profissionais, inclusive nos níveis de liderança, pois os mais bem preparados podem, com o tempo, acabar adotando as práticas temerárias realizadas no mercado. No fim, resta a pergunta: mergulhadores mais qualificados e treinados demandarão salários maiores (com razão) e práticas cada vez mais seguras por parte das empresas. “Será que o mercado quer isso?”, questiona. X *Estagiária de jornalismo do MPT em São Paulo
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DE FACHADA
Emprego mascarado de estágio Empresas exploram estagiários como mão de obra barata
Por Jamile Carvalho e Palloma Spala Rosa*
Estágio não é emprego. Caracterizado por ser uma atividade complementar ao ensino superior ou médio, o estágio visa à preparação para o exercício profissional de estudantes que estejam
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frequentando o ensino regular. O aluno deve ser acompanhado e avaliado periodicamente por um supervisor habilitado (Lei nº 11.788/08, a Lei do Estágio, § 1º do art. 3º). No entanto, nem sempre a regra é respeitada.
Ilustrações: Cyrano Vital
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No Banestes (Banco do Estado do Espírito Santo) uma fiscalização do Ministério do Trabalho encontrou indícios preliminares de que 246 estagiários atuam no autoatendimento das agências como substitutos de mão de obra regularmente empregada. Os estagiários do autoatendimento realizam o serviço denominado “fale comigo” – atualmente com o nome de “posso ajudar” – e operam diretamente no atendimento aos clientes. Realizam contato direto com as pessoas e não auxiliam qualquer bancário. Além disso, não contam sequer com a segurança dos vigilantes, localizados após a porta giratória, no interior da agência. O serviço de bancários, portanto, costuma ser desempenhado por estudantes de nível médio e universitários de administração de empresas. Outros 131 educandos no call center da Gerência de Canais Eletrônicos da Diretoria de Tecnologia do Banestes encontram-se em situação irregular. Segundo o auditor fiscal responsável por esses autos de infração, Leonardo José Decuzzi, o estágio não tem complementação de aprendizado teórico recebido no ambiente acadêmico. Decuzzi destaca que os educandos não costumam pleitear seus direitos. “Os jovens trabalhadores estudantes são dóceis, reivindicam pouco. Mesmo com a noção de que o seu estágio não está complementando a sua aprendizagem, muitos, ainda assim, submetemse a essa situação porque a bolsa por eles recebida é, por vezes, superior ao salário mínimo e ao piso salarial de várias categorias.” De acordo com os autos de infração emitidos pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Espírito Santo, a operação do call center do Banestes conta com aproximadamente 152 pessoas. Desses, em todas as estações, atuam 131 estagiários. Portanto, apenas 10% da força de trabalho é de empregados. O Ministério Público do Trabalho (MPT) está investigando o caso.
Pressão, humilhação e desvirtuamento Pressionada e humilhada. Era assim que a estudante de jornalismo Juliana Moraes** se sentia no estágio realizado em uma empresa de TV do Espírito Santo. Desde as sete da manhã, a rotina exaustiva de Juliana ao chegar no estágio era desdobrar-se em várias para conseguir fazer tudo que mandavam. “Diziam até para eu valorizar mais o estágio do que a faculdade porque era ali que eu ia aprender.” A citação, surpreendente, é bastante comum. Em semana de provas, Juliana costumava pedir para sair uma hora mais cedo, gerando reclamações dos colegas. A Lei do Estágio autoriza a redução pela metade da jornada nos dias de prova (§ 2º do art. 10). O medo tomou conta da estudante, que não denunciou por receio de ‘sujar’ o nome. “As pessoas eram influentes e poderiam evitar futuras contratações”, comentou Juliana. Era frequente chorar ao final do expediente pelas
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constantes humilhações, além de sentir dores de cabeça todos os dias. Esses foram alguns dos motivos que impulsionaram a saída de Juliana antes da conclusão do contrato. Estágio previsto de seis horas, mas com muito mais tempo cumprido diariamente, com o registro do ponto, no entanto, feito no horário previsto no contrato. Essa era uma das irregularidades a que Débora Santos** foi submetida durante estágio em um jornal online do Espírito Santo. Além de ser obrigada a permanecer no jornal além do horário legal para publicar conteúdos enviados com atraso por outros profissionais, Débora acabou sobrecarregada com a rescisão em massa dos contratos de estagiários do jornal online. Ela acreditava, porém, que denunciar seria inútil, pois outros estagiários aceitariam essas condições e poderia haver represálias em outras empresas a que Débora se candidatasse.
Vínculo Segundo o artigo 15 da Lei do Estágio, a manutenção de estagiários em desconformidade com a legislação caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio. Além disso, o estabelecimento que reincidir na irregularidade não poderá contratar estagiários por dois anos contados da data da decisão definitiva do processo administrativo correspondente. É importante destacar que pode ser aplicada à empresa ou à instituição uma multa, cujo valor será multiplicado pelo número de trabalhadores encontrados na situação irregular.
Atuação contra os pseudoestágios O desvirtuamento de estágio é comum entre as denúncias feitas ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo a procuradora do Trabalho Daniele Corrêa Santa Catarina, as consequências podem ser graves. “No momento em que os estagiários têm resguardado o tempo para estudar, eles precisam ter uma qualificação adequada para no futuro poder concorrer ao mercado de trabalho. Com esse desvirtuamento, eles acabam recebendo menos, tendo menos benefícios. O prejuízo é enorme, tanto financeiro quanto intelectual”, detalhou. O MPT recebe denúncias pela internet e por telefone, investiga as fraudes nos contratos de estágio e busca regularizar essas situações. Entre as ações realizadas pelo MPT estão propostas para as empresas regularizarem a situação dos estagiários, objetivando o cumprimento de todas as regras, além do ajuizamento de ações civis públicas, visando a garantir o direito desses estudantes.
** Débora Santos e Juliana Moraes são nomes fictícios utilizados em razão do receio das estudantes de sofrer represálias na tentativa de obtenção de novos estágios.
Empresas de integração No processo de contratação de estagiários, peças-chave são as empresas de integração, cuja responsabilidade é atuar diretamente na inserção de estudantes no mercado de trabalho. Entre elas está o Centro de Integração Empresa Escola do Espírito Santo (Ciee-ES). A organização cria um convênio com organizações públicas e privadas, administrando todas as fases do processo de pré-seleção, encaminhamento, legalização e acompanhamento dos estagiários. De acordo com o superintendente do CieeES, Jossyl Cesar Nader, a organização fiscaliza as empresas para verificar o cumprimento da Lei do Estágio. “O CIEE acompanha o programa de estágio por meio da análise dos relatórios de atividades de estágio entregues semestralmente pelo estudante, com assinatura do supervisor e professor orientador da instituição de ensino.” Caso perceba alguma irregularidade, o Centro de Integração Empresa Escola orienta as empresas parceiras no cumprimento da lei. Havendo reincidência, solicita o encerramento do estágio. Outra entidade social que atua no mesmo segmento é o Centro de Orientação e Encaminhamento Profissional (Coep), encarregado de gerir Programas de Estágio e Aprendizagem. Para a assistente de diretoria do Coep, Érika de Faria Gusmão, a fiscalização é fundamental. “Além do relatório de acompanhamento de estágio, realizamos outras atividades. O Coep busca sempre visitar, conversar com a empresa e com os estudantes para saber como está o desenvolvimento do estágio”, afirmou.
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Estagiário, aprendiz e trainee: diferenças além da nomenclatura Além do estágio, existem duas modalidades oferecidas para jovens que pretendem adquirir experiência e entrar no mercado de trabalho: trainee e aprendiz. Apesar de todos serem tipos
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de aprendizado, são completamente diferentes, voltados para públicos distintos. E isso ainda gera bastante confusão na sociedade. Entenda e tire essa dúvida na tabela a seguir:
Trainee
Aprendiz
Tem o objetivo de desenvolver na prática o que aprende na universidade.
Nem sempre desenvolve o que aprendeu na universidade.
Tem como objetivo a preparação e inserção de adolescentes, preferencialmente de baixa renda, no mercado de trabalho.
Está limitado a atuar somente na área de formação.
Durante as atividades, o trabalhador pode passar por diversos setores diferentes dentro de uma empresa, processo conhecido também como job rotation.
Recebe uma capacitação técnico-profissional voltada para a área de atuação.
Não necessita ser contratado ao fim do programa.
É contratado sob o regime da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
Não é necessariamente contratado ao final do programa.
Possuir 16 anos completos.
É necessário que tenha 18 anos ou mais.
Necessita ter entre 14 anos e 24 anos incompletos.
É exigido estar matriculado no ensino médio, técnico ou superior.
Precisa ser aluno do último ano ou recém-formado no ensino superior.
É obrigatório estar matriculado e frequentando o ensino regular.
É necessário ter CPF e carteira de identidade.
É preciso ter CPF, carteira de identidade e carteira de trabalho.
É necessário ter CPF, carteira de identidade e carteira de trabalho.
Duração de até dois anos.
Duração de até um ano.
Duração de até dois anos.
Possui jornada de até 6 horas diárias.
Possui jornada de até 8 horas diárias.
Precisa ter sua jornada reduzida à metade em semanas de provas.
Não tem direito à redução de jornada.
A jornada de trabalho não deve ser superior a 6 horas diárias, admitindo-se a de 8 horas para os aprendizes que já tiverem completado o ensino médio. Não possui sua jornada reduzida em semana de provas.
* Estagiárias no MPT no Espírito Santo
MPT Prática Jurídica Para que os estudantes aprendam mais sobre os seus direitos como estagiários e se aproximem do órgão, o Ministério Público do Trabalho no Espírito Santo (MPT-ES) criou o MPT Prática Jurídica. O programa dá oportunidade para o estudante comparecer às audiências e aos eventos na instituição. “Muitas vezes os alunos precisam ir às audiências, às varas do Trabalho, à Justiça Federal e à Justiça Estadual para fazer um relatório com tudo o que aprendeu”, conta a procuradora do Trabalho Daniele Corrêa Santa Catarina. No programa, os estudantes de instituições de ensino conveniadas podem acessar o site do MPT-ES (www.prt17.mpt.mp.br), visualizar a agenda dos procuradores com as audiências e os eventos e posteriormente realizar um cadastro. Se houver cancelamento de algum compromisso ou alteração de data, o usuário será notificado por e-mail. X
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CAPA
Um desastre em curso
O rompimento da barragem em Mariana deu início a um desastre que não tem data para acabar Por Lília Gomes
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Fotos: LÃlia Gomes
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Morte ao homem, morte ao rio, morte à história. Na tarde do dia 5 de novembro de 2015, uma onda mortal de lama rasga o pequeno subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km da histórica cidade mineira de Mariana, invade os cursos dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce e segue até o Espírito Santo, deixando seu rastro de destruição, que inclui mortes, desalojamento de populações, danos irreparáveis às bacias hidrográficas, mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre.
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Nos 663,2 quilômetros que a lama da rompida barragem de Fundão percorre, todo sopro de vida na água é apagado. A escalada de morte tem sua dimensão mais dramática no pequeno subdistrito de Bento Rodrigues, onde enterra 300 anos de história e transforma, em menos de 10 minutos, mais de 800 habitantes em: sem cidade, sem casa, sem história, sem identidade. Sobreviventes da sorte e da solidariedade de vizinhos, moradores denunciam que sequer receberam alerta da empresa para que evacuassem a área.
O desastre proporcionado pela Samarco Mineradora, uma sociedade da Vale e da BHP Billinton, tem dimensões múltiplas e consequências imensuráveis, que surpreendem todas as esferas do poder público. “Ninguém está preparado para lidar com um desastre dessa magnitude. Não sabemos ainda a dimensão das consequências para a natureza, a comunidade, o trabalhador”, lamenta Marta Freitas, diretora de Saúde do Trabalhador da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais.
Recomeçar do zero: esse é o desafio desesperador que a Samarco impôs a milhares de cidadãos e trabalhadores arrebatados pela lama de Fundão. Apagado do mapa, o subdistrito de Bento Rodrigues deixa órfãos lesados em seus direitos fundamentais e dispersos enquanto comunidade, por conseguinte mais frágeis e hipossuficientes para se organizarem em busca de seus direitos. Colonizada pela mineração, a região praticamente não tem outras atividades que
movimentem a economia. Os moradores convivem com a dor e a revolta pelas consequências da tragédia e a dependência econômica da empresa Samarco. Para especialistas em Direito do Trabalho, uma coisa é certa e não tem sido lembrada: trata-se de um acidente de trabalho, que teve sérias repercussões ambientais. Esse é ponto central de partida para entender as causas do ocorrido.
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Marcas do que se foi Em Mariana, no dia 22 de dezembro, o clima era de vidas suspensas. O ir e vir de pessoas circulando pelo Centro de Convenções em busca de roupas, calçados e alimentos; a fragilidade de outras tantas, estáticas na entrada do prédio, remoendo a tragédia ou tentando buscar uma saída para problemas dela decorrentes, instigava interrogações: Afinal, qual seria o preço de ter a vida suspensa, a história apagada? Qual seria o preço de consumir dias e dias de uma vida, perambulando para buscar donativos ou descobrir como pagar as contas do que virou lama? Qual seria o preço de perceber-se sem a certeza de um amanhã, quando boa parte da vida já se foi e não há mais saúde nem forças para reconstruir? A resposta muitos vão preferir não buscar, mas cada desabrigado de Bento Rodrigues sabe exatamente qual é a dor de ter que administrar o vazio e de sentir-se desamparado: “O que eu sinto é saudade e revolta”, conta, inconformado, Antonio Quintão, enquanto buscava, nervoso, uma resposta efetiva sobre como pagar as contas. “Indiferença”, classifica uma voluntária. Esses desastres apenas jogam luz sobre uma parcela da população que é vítima da indiferença do poder público. “Não ter uma cartilha de como agir, não ter procedimento de segurança, colocar uma gestão tão complexa exclusivamente nas mãos da prefeitura de uma cidade tão pequena. Tudo isso sinaliza indiferença.” Quem sentiu a morte de perto conhece o sabor amargo. “O Bento acabou e morreu todo mundo”, foi assim que Wesley Patrick de Oliveira Barros (23) recebeu a notícia da tragédia, quando voltava do trabalho. “Corri para o distrito, a lama tinha levado minha casa, minha esposa, meu filho. Fiquei desesperado, sem ação.” Um pouco mais tarde, o filho e a esposa de Wesley, Priscila Monteiro Izabel Barros (28), foram retirados da lama. “Era o dia do meu aniversário, fui surpreendida pela lama na porta da casa.” Grávida de quatro meses e com o filho Kaique (2) nos braços, Priscila conta que não teve pernas para subir o morro e buscou abrigo em uma casa, junto com o irmão e os dois filhos dele: Emanuelle e Nikolas. Priscila emociona-se ao lembrar que o aconchego do sofá, onde se agruparam, durou poucos minutos. “Eu apertava o Kaique
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e abraçava a Emanuelle até que o muro do vizinho invadiu a casa, trazido pela onda de lama. Flutuamos um pouco sobre a lama ainda no sofá, mas rapidamente fomos separados por uma segunda onda. Em menos de 10 minutos, acho que percorri três ou quatro quilômetros, me agarrei a um tronco de bananeira, depois a outros troncos e, muito adiante, fui retirada da lama pelo Arnaldo Arcanjo (31).” “Ajudei a resgatar duas pessoas, inclusive um menino todo quebrado, mas a imagem que não me sai da cabeça é a de uma mulher que gritava por socorro sobre o teto de uma Kombi bem no meio do rio de lama. Ninguém pôde fazer nada por ela. De repente foi levada por uma onda e sumiu da nossa vista. Isso vai ficar para sempre na memória. Não acaba nunca”, lamenta um empregado de terceirizada da Samarco, que preferiu não se identificar. “Fiquei duas semanas com aquele barulho da lama descendo na cabeça”, lembra Paula Alves. Ela conta que circulou de moto pelo distrito ouvindo aquele barulho assustador e gritando que a barragem havia se rompido. “Quando cheguei no alto do morro, assisti à lama matando o Bento em poucos minutos”, lembra Paula. Já Antônio Quintão conta que, quando pulou em sua camionete, o barro já estava na casa da vizinha. “Fui correndo e recolhendo cerca de 15 pessoas pelo caminho.” Depois ele também ajudou a socorrer Priscila e outras cinco vítimas. “O trauma de ver cinco pessoas sendo tiradas da lama não se apaga”, diz Antônio. No desespero diante da tragédia, foram o impulso e a generosidade de pessoas sem treinamento, como Arnaldo Arcanjo, que evitaram um número maior de mortes e possibilitaram o resgate de vítimas como Priscila, Nikolas, Maria e outros. A solidariedade humana foi a única surpresa agradável que tivemos, enfatizaram muitos moradores de Mariana e de Bento Rodrigues. O rompimento da barragem de Fundão é classificado pelo Glossário da Defesa Civil Nacional como desastre: “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema, causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais”. Para quem vive nas cidades atingidas ou acompanha as repercussões do caso, prolongase dramaticamente a certeza de que o desastre está em pleno curso e não tem data para cessar.
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Mais de 40 dias após o acidente, desabrigados ainda dependiam de doações de alimentos e roupas. No dia 22 de dezembro já haviam sido doados mais de 118.295 litros de água; 4.655 kits higiene pessoal; 4.087 cestas básicas; 3.265 quilos de arroz; 2.664 quilos de açúcar; 1.076 kits de limpeza; 296 colchões.
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Mineirando há séculos Há mais de 300 anos, o solo mineiro exporta riquezas para o mundo. Mariana foi uma das primeiras cidades a entrar para o ciclo do ouro e praticamente não diversificou sua economia. Hoje, 80% da arrecadação do município vem da mineração. Em Minas, 72 empresas possuem concessão de lavra de minério de ferro. Todas operam com barragens de resíduos alteadas no modelo a montante, o mais obsoleto e menos seguro, na opinião de especialistas, devido ao alto consumo de água e alta incidência de problemas de drenagem que podem levar ao rompimento. Além do setor de mineração, outras indústrias, como de celulose, adotam barragens para
seus processos produtivos. Segundo dados da FEAM, das 735 barragens em funcionamento no estado de Minas Gerais, 29 não tiveram estabilidade garantida por auditores. As estruturas de fiscalização são precárias e os critérios de licenciamentos preocupam estudiosos do assunto. Em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, em 17 de janeiro, o promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais Carlos Eduardo Ferreira Pinto classificou o rompimento como uma tragédia anunciada e declarou que o licenciamento obtido em tempo “inacreditavelmente rápido” foi decisivo para
sua ocorrência: “O licenciamento todo é uma colcha de retalhos, cheio de inconsistências, omissões e graves equívocos que revelam uma ausência de política pública voltada à proteção da sociedade. A pergunta que fica é: Quantos empreendimentos como esse ainda temos no Estado de Minas Gerais e no Brasil?”, enfatizou o promotor. Muito acima da média mundial, que é de um acidente por ano para um conjunto de 10 mil barragens, nos últimos 15 anos, Minas Gerais vem colecionando estatísticas desastrosas na gestão de barragens de rejeitos. Foram cinco rompimentos entre 2001 e 2015.
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Para o médico do Trabalho e coordenador da Comissão Permanente Nacional do Setor Mineral, Mario Parreiras de Faria, o país não tem tirado lições desses desastres. “Acompanhei todos estes casos de rompimento de barragens. Não há aprendizado organizacional ou mesmo institucional. Não existem equipes interinstitucionais e multidisciplinares legitimadas pelo poder público para acompanhar de perto, mapear as consequências de cada acidente e produzir conhecimento que possa ser usado na prevenção. Os mesmos erros são cometidos, os mesmos itens da legislação negligenciados, agravados pela baixa capacidade dos órgãos de Estado em acompanhar e fiscalizar as atividades de mineração.” “Subproduto da mineração, as barragens não recebem atenção e investimento necessários por parte das mineradoras. Projetos de construção, manutenção e ampliação são sempre conduzidos por empresas terceirizadas. A alta rotatividade desses contratos também é um fator que compromete a gestão do risco”, avalia Parreiras. Segundo dados do Ministério do Trabalho, a Samarco operava antes do acidente com diversas empresas terceirizadas. Esse é um dos temas que estão sendo analisados pelos auditores fiscais do Trabalho. “Precisamos conhecer a exata extensão desse modelo de terceirização e verificar a legalidade caso a caso”, explica Parreiras.
Guilherme Monteiro
A gestão do risco em mineração tem sido comprometida também pela contratação de empresas de setores sem afinidade com a construção de barragens, argumenta o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Pesada de Minas Gerais (Siticop), José Antônio da Cruz. “Ultimamente, empresas de outros ramos executavam obras nas barragens da Samarco em Mariana. É o caso da Vix Logística S/A que sequer possui Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), no Conselho Regional de Engenharia (CREA) e executava obra de alteamento da barragem de Fundão.”
Uma história de tragédias 78 LABOR
Mineração Rio Verde. Nova Lima, MG. Cinco mortes, danos a fauna, flora e unidade de conservação, danos a adutoras de abastecimento de água, assoreamento de rios.
Rio Pomba Mineração Cataguases. Miraí, MG. Danos ambientais, prejuízos materiais e suspensão de abastecimento de água em cidades de MG e RJ.
2001
2006
2002
Indústria Cataguases de Papel. Cataguases, MG. Contaminação do Rio Pomba e interrupção no fornecimento de água.
Mineração Herculano. Itabirito, MG. Três trabalhadores mortos. Danos ambientais.
2007
Rio Pomba Mineração Cataguases. Miraí, MG. Danos ambientais, prejuízos materiais, suspensão do abastecimento de água; mais de 500 pessoas desalojadas.
2014
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Samarco, Mariana. Dezenove mortes confirmadas. Prejuízo ambiental incalculável.
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Contaminação além-fronteira Rio de rejeitos atinge noroeste do Espírito Santo, destrói vidas e economia nas cidades e tinge o mar de lama Por Liege Nogueira Labuto
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Fotos: Liege Nogueira Labuto e Wendell Luís Táboas
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Na madrugada de 10 de novembro, a lama do rio Doce ultrapassou os limites de Minas Gerais e chegou ao Espírito Santo, no município de Baixo Guandu. Por causa da contaminação da água com rejeitos de minério de ferro, imediatamente o abastecimento das cidades do noroeste do estado foi cortado. Com o transcurso do desastre no Espírito Santo, Colatina foi a cidade mais prejudicada, em razão da
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dependência exclusiva da captação da água do rio Doce. Para garantir o abastecimento em Baixo Guandu e Linhares, passaram a ser utilizados pontos alternativos de captação no rio Guandu e em rio Pequeno, respectivamente. Os prejuízos são tantos que ainda não é possível mensurar os efeitos para a população. Os moradores ribeirinhos são obrigados a conviver
com a incerteza quanto à qualidade da água para beber, tomar banho, cozinhar e utilizar na agricultura e na pecuária. Há indícios da presença de elementos químicos em excesso como o arsênio, o ferro, o mercúrio, o zinco, o cádmio e o chumbo no rio Doce, e os laudos sobre qualidade da água do rio têm resultados divergentes. Para resguardar a população ribeirinha, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado entre
o Ministério Público e a Samarco previu, além de outras exigências, o fornecimento diário de dois litros de água potável por habitante, distribuídos em alguns pontos dos municípios de Baixo Guandu, Colatina, Marilândia e Linhares. Atrelada a essa determinação e ao cumprimento de outras medidas, foi formada uma comissão constituída por integrantes do MP e representantes de outros órgãos públicos para acompanhar o caso (leia texto na página 96).
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COLATINA
Atividade pesqueira não sobrevive Os pescadores já conviviam com a degradação do rio Doce, mas com a chegada da lama, a situação ficou insustentável. Houve a contaminação das águas, além do assoreamento pelos dejetos de lama e resíduos liberados, que impedem completamente o exercício da atividade profissional. Waldomiro Jesus da Rocha, pescador profissional há 40 anos e vice-presidente da Associação de Pescadores de Colatina, esteve à frente das negociações, para denunciar a situação aos órgãos públicos e
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exigir providências. Ele foi um dos primeiros contemplados a receber o cartão da Samarco Mineradora na entrega simbólica, realizada em 10 de dezembro. No entanto, como representante dos 270 pescadores afiliados do município, ele se disse inquieto com a situação dos que dependem dessa atividade para sustentar a família. “Não sabemos se esse rio vai sobreviver”, lamentou. O pescador Carlos Magno Ragassi, que exercia a atividade há 25 anos, decidiu se mudar temporariamente com os familiares para o
município de Pancas, no noroeste do estado. “Tenho que cuidar da minha mulher, dos meus dois filhos de 8 e 9 anos e de um senhor de 50 anos”, comentou. Indignado, ele acrescentou que costumava pescar uma quantidade enorme de dourados, robalos e curimbas. “Hoje eu acredito que o rio não vai voltar ao normal. Se voltar, eu já estarei morto. Não tenho palavras! Acabou, né?”, contou o pescador com lágrimas nos olhos. Marcos Aurélio Rossmann Pinto está enfrentando momentos desagradáveis junto
de sua família, após a chegada da lama ao redor da ilha, no distrito de Itapina. Ele mora há 14 anos no local e tem 20 anos de carteira de pesca. “Você mora numa ilha e pensa que o último lugar que vai secar é o rio Doce. Aí acontece um ‘trem’ desse! É a mesma coisa
que estar seco, porque não pode usar para nada, nem para beber, nem tomar banho. Em outra época essa ilha valeria um dinheirão. Agora não vale nada! Quem vai querer comprar uma ilha que não pode pescar, nem plantar?”
Segundo a promotora de Justiça, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Meio Ambiente do MPES e atuante no caso, Isabela de Deus Cordeiro, existem muitas dúvidas e incertezas acerca da qualidade da água captada e tratada a partir do Rio Doce. O fato é que a simples condição de existência de zona de incerteza em relação ao risco exige a adoção de posturas ativas que eliminem a probabilidade do dano.”
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BAIXO GUANDU Rastro de prejuízo e destruição A situação de 28 famílias da Associação dos Velhos Carroceiros Extratores de Areia de Baixo Guandu é desesperadora. Eles costumavam retirar areia do rio Doce há meio século, entretanto, com chegada da lama de rejeitos da barragem da Samarco ao município, isso acabou.
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Maria Aparecida Luiz Mota lamenta. Três dos quatro membros família viviam da extração de areia do rio. “A lama nos prejudicou de todos os jeitos. Eu pegava areia, plantava verdura para vender, lavava roupa para os outros, mas agora a água está muito suja e a areia não tem jeito de mexer.”
Mas a família não pretende sair da região. “A gente não tem por que sair daqui, é a casa da gente. É difícil vender a casa do jeito que ficou o local. E, se vender, vai ter que vender barato uma coisa que a gente suou para ter aqui. O plano da gente é ficar quieto e esperar”, disse o carroceiro Djalma Mota.
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A onda de rejeitos destruiu vidas por onde passou. O carroceiro Sebastião Demócrito da Silva, além de ficar sem trabalhar, perdeu seus animais. “Morreram 16 cabritos na minha propriedade. Eu tirava leite, mas agora não posso tirar mais. No dia que chegou a água com a lama, eles beberam a água e morreram na hora”, disse. Angustiado, Sebastião diz que não sabe outra profissão e se apega à fé para superar a tragédia. “Fui criado na beirada de rio.
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Vim para cá com quatro anos de idade. Desde menino eu mexo com carroça, deve ter uns 30 anos. Isso é uma coisa terrível, essa água aí suja. A areia ficou vermelha, não temos mais de onde tirar areia. O negócio da areia agora não dá. Não sei nada, sou analfabeto. Meu filho que estudou um pouco. Para mim, misericórdia! Só Deus!” A família Neves, que vive do rio há 10 anos, também está preocupada. “Está tudo parado
depois que a lama da Samarco invadiu o rio. Temos medo de entrar no rio e nos contaminar, pois trabalhamos descalço, sem luva, sem proteção nenhuma”, relatou o carroceiro José Galdino Neves. O agricultor Roberto dos Santos Machado Neto viu sua plantação de tomate destruída por falta de água. O prejuízo foi de 60% da produção. Cerca de quatro mil caixas
de tomates e 22 mil pés foram perdidos com a falta de irrigação, pois o plantio depende exclusivamente da água do rio. Ele criticou a falta de ajuda da Samarco e de alguns órgãos públicos aos donos de propriedades rurais próximas ao rio Doce. “É tudo desencontrado.” De acordo com ele, foi solicitado um laudo ao Incaper para receber uma indenização pelos prejuízos, mas o órgão não forneceu o documento.
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REGENCIA Rio e mar comprometidos A Vila de Regência, no distrito de Linhares, é conhecida pelas praias preservadas, tartarugas marinhas e ondas ideais para a prática de surfe. A pesca e o turismo são as principais fontes de renda da comunidade formada por aproximadamente dois mil habitantes, desde descendentes de índios, caboclos e pescadores a apaixonados pela natureza. No dia 21 de novembro, o enlameado rio Doce desembocou na praia de Regência. A vila, conhecida pela sua beleza
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exuberante, rodeada por águas cristalinas e azuis, transformou-se em um mar de lama. A vista era assustadora. A areia da praia se confundiu com a água do mar. A praia de Regência ficou imprópria para banho. As pousadas foram fechadas. O comércio ficou vazio. A vila, no entanto, estava movimentada, com pesquisadores, políticos, empregados e terceirizados da Samarco, imprensa e curiosos.
Turismo abalado
Contratações
‘O mar está flat’
O empresário e vice-presidente da Associação de Moradores da Vila, Fábio Gama Gomes, praticamente fechou a agência de turismo em 5 de dezembro. A Regência Ecotur costumava realizar caminhadas ecológicas, alugar pranchas e bicicletas e oferecer passeios de caiaque, barco e jet-ski. As atividades eram voltadas para o desenvolvimento sustentável, ao promover turismo ecológico, cultura, esporte e lazer.
Uma empresa terceirizada da Samarco contratou mais de 40 pescadores da vila para trabalhar no monitoramento, na coleta de sedimentos e na instalação de boias e barreiras de contenção, com o objetivo de reduzir o acúmulo da lama na foz do rio Doce e evitar o avanço dos prejuízos. Foi acordado que os profissionais devem receber R$ 150 por dia trabalhado e R$ 300 pelo aluguel do barco. Todavia, houve atraso no pagamento, e os pescadores paralisaram as atividades no dia 5 de janeiro para protestar.
Cansado da poluição da cidade grande, há 12 anos, o agora presidente da Associação do Surfe de Regência, Robson Barros da Rocha, optou por um estilo de vida diferente, com hábitos mais saudáveis e de cuidado com a mente e o corpo. O surfista está preocupado com as contas a pagar, pois o camping da família teve as reservas todas canceladas.
“A nossa renda mensal girava de R$ 5 mil a R$ 8 mil, dependendo da época. Nós estávamos até abrindo uma loja de confecção de camisetas, mas paramos tudo. Tínhamos expectativa grande no verão. Porque, com o dólar alto, o turista ia gastar dinheiro aqui no Brasil, então a gente investiu muito no marketing, site, vendemos pacotes para o Brasil inteiro e todos foram cancelados no final do ano e no verão. Um prejuízo de R$ 25 a 30 mil”, comentou Fábio Gomes.
O presidente da Associação dos Pescadores de Regência, Leônidas Carlos, pescador há 62 anos, lamenta. “Nunca vi uma coisa assim. Isso foi a maior tristeza do mundo. É muito difícil para mim, como pescador, ver a situação do rio Doce. É uma tristeza ser criado dentro do rio e hoje não poder entrar nem para tomar um banho.”
Não só a renda dos surfistas está comprometida. As crianças da comunidade ficaram sem opções de lazer e entretenimento no período de férias escolares. “As crianças estão sem expectativas. Elas esperavam o verão para aproveitar! Não tem área coletiva para essa faixa etária. O que tinha era o rio e o mar. Aí a gente vê a ausência do Estado neste momento porque não existem espaços coletivos adequados. E agora não dá para fazer nada de emergência”, comentou Robson Barros.
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COMBOIOS Lama alcança reserva indígena Os índios de Comboios estão angustiados com a chegada da lama ao município de Aracruz. São 160 famílias que vivem ao longo do rio Comboios, em um pequeno aldeamento no centro, próximo à reserva biológica e à praia. A comunidade vive quase que exclusivamente das fontes tradicionais: pesca e caça. A fonte de subsistência deles é obtida na pesca no rio Comboios e no mar. De acordo com o cacique Antônio Carlos, 41 anos, após o desastre, a única opção é a caça, que ficou escassa. “Nunca vi o mar ficar daquela cor. Se você pesquisar aqui entre os mais velhos da aldeia, eles também vão falar que nunca viram uma coisa dessas”, comentou Antonio Carlos.
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Vila sofre com boataria A lama tóxica também contaminou a praia de Povoação, no município de Linhares. A comunidade, que vive da pesca, do comércio, do serviço público ou da pecuária, ficou desassistida. Somente 42 dos cem pescadores estavam filiados à associação de pescadores antes da tragédia. Alguns foram impedidos de receber o auxílio-subsistência em decorrência da dificuldade de comprovar o exercício da atividade pesqueira ou simplesmente pelo fato de não aceitarem fazer o cadastro da empresa contratada pela Samarco. No entanto, a solidariedade tem contribuído para que o cenário na vila não fique ainda mais complicado. Segundo o presidente da associação de pescadores, Simeão Barbosa dos Santos, no mês de dezembro, o distrito foi contemplado com doações de água e cestas básicas, fornecidas por empresários anônimos de São Paulo. Ainda assim, ele
afirmou que as cestas foram enviadas para amparar pescadores. Porém, surgiu um boato na região, de que os mantimentos eram para toda a comunidade. “Nós temos uma população aqui de 1.500 pessoas. Como eu poderia distribuir 118 cestas para 1.500 moradores?”, explicou. Simeão mencionou, inclusive, que houve um alerta do presidente da colônia Z-6 para nenhum pescador assinar qualquer acordo, pois o assunto iria render e a empresa teria de pagar cinco milhões de reais para cada um. “O pessoal ficou na expectativa. Quando eu mandei pegar o nome das pessoas para entregar para a empresa contratada pela mineradora avisei que não era compensação, nem indenização, nem nada, era só um subsídio de imediato para socorrer quem está precisando, coisa de momento. Isso deu uma confusão!”
Impactos Os prejuízos são sociais, econômicos e culturais, segundo Michel Gomes Pedro, presidente da Associação de Moradores e Amigos de Povoação. “Nossas crianças vivem dentro do rio, tomando banho de rio e comendo de frente para o mar. Mesmo com tudo que aconteceu, não teve nenhuma placa indicando que eles não podem utilizar o mar. Apesar de os pais avisarem, de falar na escola, elas continuam tomando banho de rio porque é um costume delas.” Walkimar Bispo Rodrigues resolveu investir no próprio negócio, mas está preocupado com o futuro. “Eu e meu irmão montamos uma microempresa de pesca, compramos nossos materiais. Abastecíamos locais, como Vila Cananéia, Centro de Linhares, Aviso, Interlagos e Regência. Nossa média por mês era de R$ 5 a 6 mil para cada um. Não sei o que iremos fazer”, contou.
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ANCHIETA Relação de dependência A dependência da Bacia do Rio Doce em relação à Samarco é tão grande que a empresa é vista ao mesmo tempo como vilã e mocinha. De um lado, provocou um acidente de proporções inimagináveis que comprometeu a vida e a subsistência de comunidades em dois estados por anos e talvez décadas. Por outro, a presença da mineradora é essencial para o desenvolvimento de alguns municípios a ponto de sua presença na região continuar a ser defendida, mesmo após todo o caos. Exemplo é o município de Anchieta, onde a tragédia de Mariana provocou a paralisação das atividades das quatro usinas responsáveis pela transformação do minério de ferro em
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pelotas. Após esse processo, toda a produção da Samarco é escoada por meio de um terminal marítimo próprio, situado em Ubu. Aproximadamente 2.500 funcionários, sendo 1.300 diretos da Samarco e 1.200 terceirizados, tiveram seus trabalhos ameaçados. A suspensão das operações na unidade de Ubu atingiu tanto os trabalhadores como os habitantes da própria cidade. Com as crises política, econômica e financeira no Brasil atreladas à queda dos preços do minério de ferro e do petróleo no mercado internacional, o município já se deparava num momento de contenção de gastos desde 2013. A economia de Anchieta está baseada no minério e no petróleo. A dependência chega a 70%.
Para o prefeito de Anchieta, Marcus Vinicius Doelinger Assad, os períodos de outubro a dezembro foram críticos. “A crise causada pelo rompimento da barragem da Samarco vai diminuir a receita de R$ 1,6 milhão a R$ 2 milhões por mês. Com isso, tivemos que tomar medidas drásticas: dar prioridade às obras essenciais, reduzir o horário da prefeitura (2 horas), cortar horas extras, diminuir em média 50% do combustível, também reduzir o quadro de contratados temporariamente. Estamos trabalhando agora para diminuir em 10% os salários de secretários, prefeitos, vice-prefeitos e gerentes”, salientou. Marcus Assad acredita que a tragédia no rio Doce abriu os olhos dos governantes, tendo
em vista que a lama de mineração somente acelerou o processo de degradação do já poluído rio Doce. “A única chance de salvá-lo agora é com a intervenção da Samarco”, declarou, demonstrando a relação de dependência com a mineradora, ao mesmo tempo em que admitiu a necessidade de diminuí-la. A relação de dependência com a Samarco não para na atividade econômica. A empresa investia em cultura, educação e lazer na região. Por tudo isso, para o prefeito, é fundamental que a empresa volte a funcionar, desde que com sustentabilidade e responsabilidade.
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Força-tarefa do MPT atua na proteção dos trabalhadores Uma força-tarefa composta por sete membros que atuam no Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais e no Espírito Santo está conduzindo as investigações sobre o caso Samarco. A equipe é formada por seis procuradores do Trabalho do Espírito Santo e de Minas Gerais: Bruno Fonseca, Carolina Buarque, Geraldo Emediato de Souza e Aurélio Vieito. “O objetivo é que todos os avanços sejam negociados de modo isonômico para trabalhadores de ambos os estados”, explica o procurador do Trabalho Geraldo Emediato de Souza. Segundo o procurador do Trabalho responsável pelo caso no MPT-ES, Bruno Gomes Borges da Fonseca, a atuação coletiva dos ramos do MP contribuiu para uma atuação mais efetiva e inteligente. “Atuamos com uma equipe composta de procuradores do trabalho, procuradores da república e promotores de justiça. Os integrantes possuem diversas formações acadêmicas e conhecimento em áreas do Direito também diferentes. Essa junção de olhares e de saberes possibilitou uma atuação integrada, crítica e mais efetiva do Ministério Público. Houve também divisão dos trabalhos e, dessa forma, pudemos produzir mais”, explicou. Em audiência no dia 4 de dezembro foi assinado o primeiro Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para assegurar proteção preliminar a empregados e terceirizados da Samarco. O acordo tem abrangência em Minas
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Gerais e no Espírito Santo e contemplou 2.686 empregados diretos da empresa e 2,4 mil terceirizados nos dois estados. Na mesma data, a mineradora também assinou um aditivo em que se comprometia a pagar mensalmente um salário mínimo a cada trabalhador ribeirinho ou da zona costeira, com acréscimo de 20% por dependente, mais o valor correspondente a uma cesta básica do Dieese. A estimativa inicial de ribeirinhos contemplados foi de 11 mil pessoas. O TAC previa a proteção aos trabalhadores até 1º de março, mas foi aditado até 25 de junho. Em audiência realizada em abril no Espírito Santo entre o MPT e a Samarco, representantes da empresa afirmaram, no entanto, que os pagamentos permanecerão até o momento em que as condições ambientais do Rio Doce forem restabelecidas, independentemente de prazos fixados em TACs. Ficou acertado que demissões posteriores ao prazo de duração do TAC deverão ser negociadas com sindicatos. “A partir deste momento será revelado, com maior intensidade, o papel protagonista dos sindicatos profissionais na condução das negociações de eventuais dispensas que houver. Caso haja necessidade, deverão ser identificados e avaliados, sob acompanhamento e concordância dos sindicatos, os meios alternativos para manutenção dos contratos de emprego de modo a evitar ou mitigar a ocorrência de fato
social tão danoso quanto a dispensa em massa dos trabalhadores da Samarco”, explicou a procuradora do Trabalho Carolina de Prá Camporez Buarque. Para o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Espírito Santo, Roberto Pereira de Souza, o acordo foi positivo. “Se não tivesse a intervenção do MPT dificilmente chegaríamos a esse acordo. “Precisamos da força do MPT ao nosso lado para continuarmos avançando na reparação e na proteção dos trabalhadores, enfatizou o presidente do Sindicato Metabase Mariana, Roger Moraes. No final de abril, o MPT em Belo Horizonte recebeu o relatório de fiscalização produzido pelo Ministério do Trabalho. O relatório aponta um conjunto de variáveis que, juntas, teriam dado causa ao acidente. As sete causas mais graves foram detalhadas na peça. Dentre elas estão a ausência, supressão ou inexistência de dispositivos de monitoramento, o não cumprimento de programa de manutenção, a ausência de projeto e a falta de critérios para correção de inconformidades. O MPT aguarda o retorno da empresa às atividades para propor medidas de adequação do meio ambiente de trabalho, seja por meio de termo de ajustamento de conduta ou ação civil pública, se necessário for. (LG e LM)
Gestão ampliada do risco Acidente de trabalho, seguido de desastre ambiental de grande proporção. Essa é a classificação que o grupo de sete auditores do Ministério do Trabalho dão ao caso Samarco. Desde o dia do acidente, eles estão reunindo elementos que possam elucidar as causas do rompimento da barragem de Fundão. Um segundo grupo, de quatro auditores, investiga questões trabalhistas, inclusive a terceirização na empresa. De acordo com o art. 19 da Lei nº 8.213/1991, “acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”. No caso da Samarco, as consequências são visíveis e assustadoras, já as causas são complexas e de difícil apuração.
compatibilidade do modelo de barragem com o terreno, o índice de sismicidade da região, a qualidade do projeto e da execução, vibrações decorrentes de detonações, a escolha do método de alteamento, a qualificação técnica dos responsáveis por alteamentos, a composição de material usado no alteamento e nas drenagens. No caso de Mariana alguns aspectos merecem atenção, por exemplo, a sismicidade. A região tem frequentes abalos sísmicos, sendo contraindicada por estudiosos para abrigar barragem por alteamento a montante. As vibrações decorrentes de detonação também são recorrentes no local, já que a barragem é vizinha da Mina de Alegria, de propriedade da Vale do Rio Doce, onde ocorrem detonações diárias e regulares.
O acidente decorre de um processo cumulativo, explica Mário Parreiras. “Houve mudança no projeto no decorrer da história, com alteração no eixo da barragem, problemas de drenagem e de manutenção. O acúmulo destes problemas ao longo da história da barragem pode explicar a insuficiência das correções que foram realizadas e, consequentemente, o rompimento. Um desastre desse tem uma história. Nossa ideia é restaurar essa história e apresentar uma explicação clara para a sociedade, para os trabalhadores e ver o que pode ser feito daqui para frente para que esses erros não se repitam.”
Para o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Pesada de Minas Gerais (Siticop) também trata-se de acidente de trabalho. O sindicato entende que há um espaço a ser ocupado pelas entidades sindicais na questão da segurança trabalho. Uma deficiência que decorre da falta de acesso ao ambiente de trabalho. “A Samarco não permite que sindicalistas tenham acesso a áreas da empresa. Houve um tempo que uma normativa do Ministério do Trabalho nos assegurava esse direito, mediante comunicação prévia. Seria ótimo se voltasse a vigorar”, enfatiza o presidente do Siticop, José Antônio da Cruz.
Diversos fatores interferem na segurança de uma barragem, dentre eles estão a
Outros estudiosos também recomendam a gestão ampliada do risco nestes casos. Em
nota, pesquisadores da Fundação Jorge Duprat Figueiredo em Minas Gerais (Fundacentro) defendem que é preciso aumentar o controle sobre tecnologias de risco: “sistemas autoritários de gestão são incapazes de manter sob controle a integridade de sistemas sociotécnicos complexos.” Para os especialistas, a análise de acidente deve ser compartilhada com instituições capazes de ampliar a compreensão dos diversos determinantes de vulnerabilidade. “É fundamental elaborarmos um protocolo de ação para acidentes ampliados, para que cada órgão saiba exatamente como agir diante de desastres de grande magnitude como este”, avalia Marta Freitas. Ela está coordenando um grupo interinstitucional de enfrentamento de acidentes ampliados em Belo Horizonte para estudar os impactos na população atingida a médio e longo prazos. “Sabemos que desastres dessa natureza podem influenciar no quadro de adoecimento da população. Essas pessoas precisam ser acompanhadas por um tempo, para mapearmos as consequências do acidente tanto na vida da população quanto do trabalhador”, explica Marta Freitas. O grupo deverá contar com a participação de representantes das secretarias Estadual e Municipal de Saúde, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Ouro Preto, Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Conselho Federal de Psicologia e outros interessados. (LG) X
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Ilustrações: Cyrano Vital
Trabalhadores à deriva A extenuante jornada dos tripulantes brasileiros em cruzeiros Por Guilherme Almeida
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Era a primeira vez que Márcio Freitas de Castelo Branco fazia uma viagem para o exterior. Após juntar economias, pagar cursos caros do próprio bolso e ser submetido a um concorrido processo seletivo, o jovem de 27 anos foi escolhido para integrar a tripulação do MSC Musica. Um cruzeiro que partiria no segundo semestre de 2009 de Veneza, na Itália, passando pela costa brasileira no ano seguinte para enfim terminar a temporada no Mar Mediterrâneo em pleno verão europeu. A ideia era simples: trabalhar duro, ganhar dinheiro – os tripulantes recebem em moeda estrangeira –, praticar o Inglês, além de, claro, viver novas experiências, conhecendo outras culturas. Era também a primeira vez que Márcio teria de enfrentar, longe de Fortaleza, sua terra natal, as dificuldades de uma nova rotina, ao mar, num navio ao lado de outros cerca de mil tripulantes de todas as partes do mundo. Um dia a dia que logo nos primeiros meses revelou ser menos glamouroso do que exaustivo. “A gente achava que o correto era trabalhar 77 horas por semana. Mas na verdade, quando a gente embarcou, o que acontecia? A gente trabalhava nos feriados mais tempo do que o normal. Durante a temporada brasileira, quando os navios vinham aqui para o Brasil, em datas como Carnaval, Natal e Réveillon, a gente chegava a trabalhar 15, 16 horas por dia”, relembra. Nesse ritmo, o total de horas por semana pode ultrapassar 100 horas semanais trabalhadas. O trabalho durou pouco, seis meses. Mas as sequelas dos piores momentos de sua vida persistem na memória e no corpo. “Todo o dinheiro que eu juntei durante o meu contrato de trabalho a bordo usei para pagar meu
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tratamento para voltar a andar, com fisioterapia e medicamentos. Até hoje, acordo de madrugada com formigamento na panturrilha direita.” Márcio teve polineuropatia, uma doença que paralisou seus braços e pernas, após ser medicado na enfermaria do navio para tratar uma simples gripe. Passou sete dias em sua cabine sem poder se locomover, sendo alimentado na boca pelos colegas, até ser desembarcado no porto de Pireus, na Grécia, para se tratar. “Eles me botaram numa cadeira de rodas, chamaram um táxi e me levaram a uma clínica. Mas lá não tinha um neurologista e a recepcionista somente falava grego, e eu pedia para falar em inglês. Chamaram então uma ambulância e me levaram para um hospital público em Atenas, depois partiram. Lá, eu fiquei deitado numa maca no corredor, sem conseguir me comunicar. Eu cheguei ao hospital aproximadamente às 11h30 e fiquei deitado na maca até a noite, por volta de 23h. Eu fiquei sozinho durante todo esse período. Não havia ninguém da empresa me acompanhando. Eu estava com paralisia, deitado numa maca, com fome, com sede, sem meus pertences, sem meu passaporte, com apenas um papel na minha cabeça, dizendo os meus sintomas em inglês.” Só se recuperou no Brasil, graças à intervenção da Embaixada brasileira, que ofereceu apoio logístico e ajudou a família a localizá-lo, garantindo sua volta para casa. Hoje ele trabalha como comerciante em Fortaleza e move uma ação contra a empresa por danos morais, além de integrar a Organização de Vítimas de Cruzeiro (OVC). A instituição, sem
fins lucrativos, tenta chamar a atenção para os abusos cometidos neste setor e presta apoio a tripulantes que continuam sofrendo a bordo. A MSC nega ter havido negligência. “Durante todos os procedimentos, bem como no período de internação, um agente local da companhia acompanhou o senhor Márcio. A MSC, além de fornecer toda a medicação necessária para o tratamento, acionou também uma empresa de healthcare que, com uma equipe qualificada de enfermeiras, passou a monitorar a evolução do paciente”, afirmou em uma nota à Labor. A história de Márcio não é um caso isolado. Na OVC, ele recebe quase que diariamente denúncias de trabalhadores insatisfeitos com as condições de trabalho. Em abril de 2014, uma operação conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho, Polícia Federal e outros oito órgãos resultou no resgate de 11 tripulantes brasileiros que trabalhavam no navio MSC Magnifica, durante uma parada no porto de Salvador. Entre as queixas: jornada de 16 horas por dia, assédios moral e sexual, além de más condições de trabalho. De acordo com o procurador do Trabalho Luís Antônio Barbosa da Silva, um dos autores de uma ação civil coletiva contra o grupo MSC, o cenário é complexo. Ele explica que as empresas insistem em impor uma jornada de trabalho incompatível com a estabelecida na legislação brasileira. “Na ação, mostramos o caso de um tripulante que havia passado 200 dias sem um único dia inteiro de repouso! Essa conduta é inadmissível no cenário brasileiro”, afirmou. No texto, também assinado pela Defensoria Pública da União (DPU), o MPT pede o pagamento horas
extras, adicional noturno, aviso prévio, férias proporcionais acrescidas de 1/3, 13º salário proporcional, indenização do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) referente ao período trabalhado acrescido da multa de 40%. Os autores afirmam que, mesmo se for considerado o contrato internacional como o marco regulatório para a questão, há muitas irregularidades: “(...) verifica-se o absoluto desrespeito à limitação de jornada nele contido, posto que o limite de 11 horas de trabalho estabelecido naquele instrumento era, em regra, inobservado, sendo frequentes as jornadas em muito superiores. Não bastasse a exigência de cumprimento de jornada para além dos limites contratuais, a empregadora, imbuída da mais absoluta má-fé e com a cristalina certeza da impunidade, fraudava os controles de jornada que, fruto da desorganização imperante na embarcação, ora era feito manualmente, ora era eletrônico, mas em qualquer das modalidades, sempre fraudado visando se locupletar das horas laboradas em excesso sem remunerá-las ao empregado.” No fim do ano passado, o caso foi julgado pela juíza substituta Priscila Cunha Lima de Menezes, da 37ª Vara do Trabalho de Salvador, que, além de aceitar o pleito do MPT e da DPU, reconheceu a aplicação da legislação brasileira sobre a internacional, condenando o grupo ao pagamento de aproximadamente R$ 2,5 mil a cada tripulante, referentes ao valor cobrado para a realização de cursos e exames pré-admissionais, e à indenização por danos morais no valor de R$30 mil por cada um dos 11 trabalhadores resgatados. Da decisão cabe recurso.
Uma das razões alegadas pelas empresas para esta situação é a natureza suis generis da atividade. Para trabalhar nos navios, os tripulantes assinam um contrato de trabalho internacional, com regras diferentes da legislação nacional. Mas com dezenas de embarcações durante os seis meses de temporada na costa brasileira (de outubro a março), a fiscalização se torna difícil. Foi pensando em dar mais segurança aos trabalhadores que em 2010 foi firmado um termo de ajuste de conduta (TAC 408/2010) entre o MPT e a MSC segundo o qual a empresa se compromete a seguir a Resolução Normativa nº 71/2006 do Conselho Nacional de Imigração (CNIG), que estabelece entre outros assuntos o preenchimento com 25% de trabalhadores brasileiros em todos os níveis técnicos das embarcações. Além disso, os tripulantes recrutados em solo nacional para trabalhar na temporada brasileira passam a ser regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Acontece que mesmo os trabalhadores com contrato internacional de duração maior do que o da temporada brasileira podem ter os mesmos direitos assegurados, caso haja falta grave por parte da empresa. Foi com base nesse dispositivo que o MPT conseguiu a condenação da MSC. “A rescisão indireta dos contratos de trabalho, em razão da absurda, ilegal e desumana jornada de trabalho a que estavam submetidos os trabalhadores brasileiros resgatados, provoca a atração da legislação brasileira, por força das obrigações assumidas no TAC, e a aplicação da CLT a tais relações empregatícias, sendo esta a base legal dos cálculos das verbas rescisórias
e demais verbas trabalhistas devidas pela Empregadora e que a mesma, expressamente, se nega a pagar”, alerta o procurador. De acordo com Barbosa, o caminho para a resolução das irregularidades é uma fiscalização conjunta, entre MPT, MTb, Polícia Federal, DPU, entre outros. “O trabalhador é superexplorado. A cama é arrumada pela mesma camareira, pela manhã, à tarde e à noite. O mesmo trabalhador que serve o café da manhã, está lá trabalhando no almoço e no jantar. Por isso, temos que ter uma equipe muito especializada, como a de 2014. Os auditores fiscais do trabalho fizeram um relatório muito minucioso, que permitiu a ação e a sentença favorável aos trabalhadores.” Márcio concorda com a posição do procurador. Mas teme pela integridade e saúde dos colegas que continuam a bordo. “Enquanto não houver isso, os tripulantes vão continuar trabalhando 11, 13, 16 horas por dia. De segunda a segunda, jornadas excessivas, com adoecimentos. Porque nós somos seres humanos, não somos robôs. Se você trabalhava com uma jornada absurda, a alimentação não é adequada, não tem organismo que aguente. Você adoece! Muitos desembarcam doentes, com problemas de saúde.” Este ano, o MPT prepara uma revisão do TAC 408/2010. “Já estamos avaliando propostas para incorporar demandas do setor no novo termo. O nosso foco principal será o problema da jornada. Para que haja limitação de tempo de jornada e tempo de repouso, evitando o ciclo de adoecimentos e estresse”, informou Luís Antônio Barbosa. X
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Casa de ferreiro Profissionais de saúde sofrem com riscos de contaminação e de acidentes; categoria também enfrenta más condições de trabalho e muitas vezes se submete a fraudes na contratação
Por Fabíula Sousa
A finalidade dos hospitais é tratar da saúde. Nem sempre, porém, o cumprimento dessa missão pelos profissionais do setor consegue restringir-se aos cuidados com os pacientes. No dia a dia, a categoria sofre com os riscos de acidentes,
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de superexposição a elementos químicos e de contaminação no ambiente de trabalho. Raio-X, bisturi e caldeiras de hospitais estão entre os perigos mais comuns. Os males são crônicos e atingem vários estados brasileiros.
Ilustrações: Cyrano Vital
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Pela natureza da própria atividade, o trabalho é considerado insalubre pela Norma Regulamentadora (NR) nº 15 do Ministério do Trabalho (MTb). Os profissionais do setor estão mais suscetíveis a contrair doenças infecciosas, como a hepatite. Segundo a Previdência Social, em 2014 – último levantamento divulgado – ocorreram 44,6 mil acidentes típicos (aqueles que acontecem no exercício da atividade) nos serviços de atendimento hospitalar. No mesmo ano, houve o registro de 507 casos de doenças ocasionadas ou agravadas em decorrência da profissão. As possibilidades de contaminação na coleta do sangue de um paciente são iminentes e revelam o que os especialistas chamam de risco biológico. Existem, ainda, as chances de contato com o sangue por lesões provocadas com instrumentos pérfuro-cortantes, como agulhas, pinças e lâminas.
Legislação Para prevenir os acidentes e evitar proteger os trabalhadores do contágio, criou-se a Norma Regulamentadora n°32, também
do MTb. A legislação estabelece critério para o trabalho em hospitais e demais estabelecimentos de saúde. A NR 32 dita o fornecimento gratuito de programa de imunização ativa contra o tétano, difteria, hepatite B e outras doenças. Estabelece, ainda, medidas de proteção às gestantes e lactantes que trabalhem com radiação ionizante. A norma também diz que os profissionais precisam ser capacitados sobre procedimentos a serem adotados em casos de acidentes e em situações de emergência. Os hospitais e clínicas também precisam orientar os trabalhadores sobre os efeitos terapêuticos e adversos de produtos químicos e medicamentos, além do possível risco à saúde a curto e longo prazos. Os estabelecimentos devem fornecer equipamentos de proteção individual e coletiva e medir os índices de radiação necessários para garantir segurança ao radiologista e técnicos de radiologia. As obrigações impostas pela NR 32 não desobrigam o empregador de observar as disposições estabelecidas pelas normas específicas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Acidente com sangue contaminado O cirurgião-geral Caio Henrique Borduque, 28 anos, quatro de profissão, experimentou na pele os riscos inerentes à profissão. “Eu me furei com uma agulha durante uma cirurgia em um paciente HIV positivo. A princípio, nós não sabíamos que ele era soropositivo, mas, no meio da operação, a família nos comunicou. O hospital me deu toda assistência, esclareceu as minhas dúvidas, abriu uma ficha sobre o caso e me forneceu a medicação inicial. Depois, fui encaminhado para um posto de saúde especializado para dar a devida continuidade ao meu tratamento antirretroviral.” Caio Borduque tomou por 30 dias o medicamento zidovudina, conhecido popularmente como AZT. O remédio é um inibidor indicado para o tratamento da Aids e contágio por Pneumocystis jirovecii (é um fungo unicelular que pode causar pneumocistose, um tipo de infecção oportunista). Se o paciente não fosse soropositivo, ele teria usado o AZT durante sete dias. O cirurgião também foi medicado contra hepatite. Após seis meses, o médico teve que fazer exames para acompanhar o quadro, que estava normal. O problema é que nem todos os estabelecimentos cumprem a legislação. O
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Hospital Estadual de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena (HEETSHL), em João Pessoa (PB), é um exemplo disso. O Trauma, como o hospital é conhecido, precisou ser acionado na Justiça para oferecer o teste rápido de diagnóstico de infecção pelo vírus HIV em casos de acidente de trabalho. Em 2015, o hospital foi processado pelo Ministério Público do Trabalho após o Sindicato dos Médicos da Paraíba (Simed-PB) denunciar que o estabelecimento deixou de prestar atendimento a um médico que se cortou e foi contaminado com o sangue de um paciente. Ele precisava fazer o exame no local, porém, teve que ir ao Hospital Clementino Fraga para se submeter ao teste, realizado mais de duas horas depois do acidente. A realização do teste é um direito assegurado pela Portaria nº 151, do Ministério da Saúde, que prevê que o exame rápido seja feito nos próprios hospitais públicos ou privados onde ocorreu o acidente. Nesse sentido, o MPT entendeu que que o HEETSHL é um hospital público e de grande porte e deveria, obrigatoriamente, disponibilizar o exame para os seus empregados e para os pacientes, como medida de proteção à saúde e à segurança.
Acesso de fúria e ataque em hospital A enfermeira Vilma Lobo, 52 anos, há 34 anos na profissão, foi atacada pelo acompanhante de uma paciente no Hospital Regional de Ceilândia (HRC), no Distrito Federal. O motivo da agressão seria o atraso de cinco horas no atendimento de uma amiga. O caso aconteceu em 2010. Nervoso, o travesti Osmair Emiliano Pinto, conhecido por Maíra, pegou uma seringa na sala onde a equipe de enfermagem guardava material, retirou o próprio sangue e injetou na enfermeira, que na época chefiava a Emergência do HRC. Uma técnica que tentou ajudar foi mordida no braço. Ele era soropositivo. Vilma Lobo relembra o fato: “pelos corredores, diziam que alguém estava ameaçando atacar a primeira pessoa de branco que visse pela frente, mas não imaginava que justamente eu seria a vítima. Na hora fiquei sem chão. Não sabia exatamente o que estava acontecendo ali. Avistei uma mulher vindo em minha direção. Em seguida, ela me segurou, me deu uma picada com a seringa e depois vários golpes, injetando sangue na minha mão esquerda.”
A enfermeira chegou a falar com Osmar, que ela pensou ser uma mulher quando foi atacada. A resposta do agressor foi hostil. “Ele me confirmou a doença e disse: ‘bem-vinda ao clube das pessoas que têm Aids’. Aquela foi a pior frase que já ouvi na vida.”
Antirretrovirais Vilma Lobo ficou afastada das funções por dois meses para tratamento. Para evitar a instalação do vírus HIV, ela seguiu os protocolos do Ministério da Saúde, tomou AZT, além de medicamentos em fase experimental. Em 2010, o antirretroviral Maraviroc, ainda em teste no Brasil, foi usado pela enfermeira junto com a injeção Fuzeon, aplicada duas vezes por dia. Devido ao tratamento, ela teve diarreia, náusea, queda de cabelo e perda de peso. “Acho que fui uma das pessoas a usar a maior quantidade de drogas para não replicar o HIV. Passei 30 dias de cama devido à forte medicação. Tive abcessos, um efeito colateral dos remédios.”
Ainda hoje Vilma faz monitoramento da saúde regularmente, e seus exames continuam negativos para o vírus.
Retaliação e medo O agressor de Vilma, Osmar, foi preso em flagrante. O delegado encarregado do caso declarou à imprensa, à época, que ele responderia por tentativa de homicídio. Seis meses após o ataque, no entanto, Osmar morreu por complicações provocadas por uma pneumonia. Com isso, Vilma passou a sofrer ameaça dos amigos dele e precisou ser transferida para outro setor do hospital, para garantir a própria segurança. Ela conta que, após a agressão, trabalhou por quase dois anos deprimida e com medo. “Os amigos dele diziam que iriam ‘tirar o sorriso do meu rosto’. Diante disso, a administração do hospital decidiu me lotar na UTI. Fiquei confinada em um lugar fechado, em um ambiente que me trazia uma sensação de prisão”, afirma.
À sombra do câncer A superexposição à radiação ionizante pode causar mutações genéticas. Por esse motivo, a técnica em Raio-X Mariana Cristina de Oliveira, 30 anos, há quase cinco na profissão, suspeita da origem do seu câncer na tireoide. Sem casos de problemas semelhantes na família, ela faz relação entre o trabalho e o surgimento da doença, diagnosticada em 2013. Antes de receber o laudo médico, Mariana atuou como empregada terceirizada do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, entre novembro de 2010 e fevereiro de 2012. “A tireoide é uma glândula sensível à radiação. Como não havia uma carga horária mínima, era comum extrapolar o limite de 24 horas semanais. Então a exposição à radiação estava bem acima do permitido, não sendo raro um técnico trabalhar até três vezes mais do que permitido, sem qualquer controle”, explica a técnica. Segundo Mariana, a empresa fornecia capotes e dosímetros – equipamentos de segurança –, mas não realizava exames periódicos e nem concedia as pausas semestrais previstas em lei para quem trabalha com radiação ionizante. “A lei existe, porém falta bom senso e fiscalização para não ficarmos à mercê dessa máquina desenfreada de ganhar dinheiro que está sendo a saúde.” “Como não tinha carteira assinada ou vínculo empregatício com o hospital, tive que me afastar por conta própria. Não recebi qualquer
verba rescisória. Eu já tinha vontade de sair dessa firma, pois ela não concedia vários direitos trabalhistas, como férias, licençamaternidade e para tratamento de saúde”, explica a trabalhadora. Ela continua trabalhando com Raio-X, agora como servidora pública, mas pretende mudar de área em breve. “Quero mudar de profissão, sim. Nunca terei a certeza se o câncer que tive foi devido à radiação ionizante. Estou no terceiro semestre do curso de Direito. É uma área que sempre me atraiu pela possibilidade de fazer algo eficaz, deixar de ser apenas ruído em uma sociedade tão burocrática quanto a nossa”, enfatiza Mariana.
Radiação natural De acordo com os pesquisadores Ana Cristina Murta Dovales e Carlos Eduardo Bonacossa, do Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD), vinculado à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), todas as pessoas são expostas diariamente à radiação natural, proveniente do espaço, de elementos radioativos presentes na Terra e no próprio organismo do ser humano. Fora isso, há pequenas quantidades de radiação no ar e nos alimentos. Além das fontes comuns de radiação, as pessoas podem ser expostas à radiação
derivada de fontes artificiais, como atividades de mineração, geração de energia nuclear, pesquisa e medicina. Quando a radiação atravessa um material, ela pode causar ionização, alterando átomos e moléculas. No corpo humano, essas mudanças podem resultar em danos celulares, que podem afetar o DNA, responsável pela transmissão das características hereditárias para os descendentes. Ana Cristina Dovales explica que, quando as células não reparam as lesões no DNA ou quando os reparos são ineficazes, pode ocorrer a morte celular. Nesse caso, se o número de células mortas for pequeno e o mecanismo natural de renovação celular suficiente para repô-las, o indivíduo exposto não apresentará sintomas. Porém, se a morte celular for extensa, impedindo a função normal do órgão ou tecido afetado, surgirão reações incomuns, que serão mais frequentes e mais graves quanto maior for a dose de radiação. “Se o dano provocado pela exposição à radiação for grande e atingir um tecido vital, o indivíduo afetado pode morrer”, afirma a estudiosa. Conforme Carlos Eduardo Bonacossa, uma célula com o DNA alterado pode permanecer viva e sofrer transformação, isto é, perder os controles de proliferação, diferenciação e morte celular. “A transformação celular pode ser o evento inicial de um longo e complexo processo que levará à geração de um câncer no indivíduo exposto.” LABOR
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Más condições de trabalho e acúmulo de empregos O estresse e a falta de recursos mínimos de trabalho são fatores de risco para os trabalhadores da saúde nos hospitais. O acúmulo de empregos, a jornada extenuante, a precariedade das instalações aumenta as chances de acidentes de trabalho e a incidência de erros médicos. A situação também adoece os profissionais, que se veem desestimulados e com a autoestima prejudicada pelas inúmeras restrições nos hospitais. De acordo com o presidente da Federação dos Trabalhadores da Saúde do Estado de São Paulo, Edison Laércio de Oliveira, os hospitais carecem de materiais de limpeza, medicamento, itens de escritório e até alimentação. A falta
de higiene apropriada potencializa os riscos de contaminação dos médicos, enfermeiros e demais profissionais. As más condições de trabalho ainda atingem diretamente à sociedade, que fica sujeita a contrair infecções no ambiente hospitalar, à desnutrição e ao agravamento do quadro clínico. Segundo ele, a categoria enfrenta muita pressão psicológica. “Os pacientes não entendem o que está acontecendo e, muitas vezes, culpam os profissionais pela ineficiência do sistema. Essa desinformação afeta muito o quadro de pessoal, que já está humilhado por ser obrigado a trabalhar sem estrutura básica”, comenta Oliveira.
A exaustão ocasionada pelas longas jornadas e pelo acúmulo de empregos também compromete a atenção e, por consequência, a segurança dos médicos. Conforme o presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), Eder Gatti, alguns profissionais podem sair de um plantão direto para uma enfermaria, depois para um ambulatório e assim por diante. “A medicina é uma profissão de pleno emprego. Ainda assim, para o médico ter um bom salário, precisa acumular vários vínculos, sendo muito comum ter três, quatro ou mesmo cinco empregos em diferentes serviços e hospitais. No fim, ele acaba tendo uma jornada de trabalho extremamente desgastante,” conta Gatti.
Alto risco de suicídio A revista Superinteressante, edição nº 358, de março de 2016, tem como reportagem de capa a saúde dos médicos. Em “20 coisas que os médicos não contam para você”, a publicação trata do estudo sobre risco maior de suicídio entre os médicos – 70% maior que na população em geral. A pesquisa, conduzida pela American Foundation for Suicide Prevention, em 2008, mostra ainda que, com as médicas, o índice é 400% maior. Piora nas condições de trabalho, jornadas árduas e a responsabilidade de lidar com tragédias humanas são as possíveis causas. A situação também leva os profissionais ao alcoolismo, como uma espécie de válvula de escape para o estresse no trabalho. Em um contingente de 7 mil cirurgiões, 13,9% têm problemas com bebida. O número é o dobro da incidência na população.
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Porta de entrada para a violência A violência também invade os hospitais do Espírito Santo. Há registros de tentativa de resgate de detentos na rede pública de saúde. De acordo com o diretor de Comunicação do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde no estado (Sindsaúde-ES), Valdecir Gomes do Nascimento,
já ocorreram assassinatos dentro de hospitais, apesar da escolta policial. “Isso deixa os médicos sob forte tensão, porque os presos ficam internados em uma área comum. A administração não sabe como proteger os trabalhadores e os demais pacientes em casos de invasão e tiroteio.”
Explosão iminente O Ministério Público do Trabalho (MPT) tem atuado para combater as irregularidades trabalhistas em hospitais e clínicas de todo país. Mas a situação da saúde no Distrito Federal vem roubando a cena. O MPT já ingressou com três processos contra o governo local (GDF) por risco iminente de explosão de caldeiras. São alvos das ações o Hospital Regional de Sobradinho (HRS), o Hospital Regional de Ceilândia (HRC) e o Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). As caldeiras são equipamentos utilizados na esterilização de materiais e no asseio das roupas de cama e vestimentas fornecidas aos pacientes. A alta temperatura do vapor das caldeiras é desinfectante e reduz os custos com energia elétrica. No HRC e no Hmib foram encontradas caldeiras há 29 anos em funcionamento sem nenhuma avaliação de integridade. No hospital de Ceilândia, havia vazamentos, tubulações obstruídas e superaquecimento. Já no Hospital Regional de Sobradinho, existiam caldeiras com 25 anos de operação, também sem manutenção e fiscalização de segurança. Duas tinham sido interditadas pelo Ministério do Trabalho, mas, mesmo assim,
uma operava normalmente. A chaminé de uma das caldeiras estava no chão. “A irregularidade das caldeiras parece ser um problema corriqueiro. O MPT compreende que existe falta de orçamento, mas o governo não pode se furtar da responsabilidade de diminuir os riscos no meio ambiente de trabalho. É um direito assegurado ao trabalho no artigo 7°da Constituição Federal, que lista um rol de direitos sociais”, explica a procuradora do Trabalho Juliana Carreiro Corbal Oitaven, autora da ação ajuizada contra o HRC.
Alternativas No caso do Hospital Regional de Ceilândia, as caldeiras também ofereciam perigo por terem sido instaladas ao lado de uma subestação de energia elétrica. A administração fez adequações enquanto não providenciava a manutenção e os consertos. Uma alternativa foi fazer os serviços de lavanderias em máquinas de lavar e secar tradicionais. A medida foi um paliativo adotado até que se conseguisse dinheiro
para a realização dos ajustes devidos. No entanto, a mudança foi eficaz, porque evitou acidentes. Além da lavanderia, as caldeiras eram utilizadas na cozinha e na esterilização dos equipamentos. O HRC também teve de encontrar novas formas de atender as demandas desses setores. “A intenção do MPT não é parar as atividades dos hospitais. As caldeiras são uma fonte de energia sustentável e devem ser, sim, utilizadas, desde que sigam todas as normas de segurança”, destaca a procuradora Juliana Oitaven.
Legislação O uso adequado das caldeiras é regulamentado pela NR 13 do MTb. A norma estabelece quais são os itens obrigatórios da caldeira; classifica o equipamento por litragem e de acordo com quantidade da medida de força utilizada para o seu funcionamento (quilograma-força – Kgf); a periodicidade das inspeções a serem realizadas e quem são os profissionais habilitados (engenheiros) para a construção, acompanhamento da operação e da manutenção das caldeiras.
Sob ameaça de fraude Terceirização, pejotização e cooperativismo são sinônimo de fraude às leis trabalhistas no setor da saúde. Essas formas de organização do trabalho são, muitas vezes, um caminho para sonegar direitos trabalhistas, economizar com os custos do negócio e cometer fraudes na hora das contratações. Em fevereiro deste ano, o Ministério Público do Trabalho (MPT) conseguiu coibir a prática no hospital Santa Casa de Misericórdia de Maceió, em Alagoas. A instituição havia sido processada por utilizar cooperativa como empresa de fachada para terceirizar os serviços de fisioterapia. “No caso da contratação intermediada, constata-se que o sistema é altamente prejudicial ao trabalhador, na medida em que suprime todos os direitos e garantias fixados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sob o simulacro de trabalho
autônomo, cooperado, como prestador de serviços ou mesmo na informalidade. Infelizmente, na área de saúde, por vezes observa-se falta de convencimento dos próprios trabalhadores quanto às vantagens existentes no sistema formal, sobretudo com receio de sofrer perda remuneratória decorrentes dos encargos da folha de pagamento e mesmo da tributação sobre os rendimentos da pessoa física”, explica a procuradora do Trabalho Eme Carla Carvalho, à frente do caso. De acordo com a procuradora, os fisioterapeutas realizam função imprescindível à atividade do hospital e, como atividade-fim, a relação de trabalho deve ser realizada diretamente e exclusivamente entre instituição tomadora do serviço e empregado, conforme a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Terceirização sem limites A terceirização indiscriminada pode ser legalizada caso o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 30/2015 – antigo PL 4330/2004 – seja aprovado Senado Federal. A proposta prevê a terceirização ilimitada de serviços e ameaça causar a substituição de profissionais contratados de forma direta pelos terceirizados. O PLC ainda abre precedentes para empregados serem demitidos e, depois de 12 meses, voltarem para os hospitais e demais empresas convertidos em pessoas jurídicas, em um processo conhecido como pejotização. Atualmente, é permitida a terceirização apenas para as áreas de limpeza, segurança e manutenção patrimonial, desde que os serviços não sejam a atividade principal da empresa. X
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ROTA DA MAÇÃ
Fruto da exploração Indígenas migram de Mato Grosso do Sul para Santa Catarina e Rio Grande do Sul para colheita da fruta e sofrem com más condições de trabalho e baixos salários
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Por Fernanda Palheta*, Keyla Tormena e Fátima Reis Às 3 horas da manhã, já estava de pé e, às 4 horas, com café tomado à espera do ônibus da empresa. Do alojamento até os pés de macieira eram duas horas de trajeto. Chegando lá, começava o trabalho: catar maçã. As que estavam ao alcance das mãos, desprotegidas e desacostumadas ao frio do Sul, eram colhidas e iam para a sacola
de couro. A escada auxiliava na colheita das frutas que estavam mais no alto. Quando carregada, a sacola pesava nos ombros do trabalhador avisando a hora de esvaziá-la. As maçãs colhidas iam enchendo o bin, caixote onde as frutas são armazenadas. No fim da tarde, a dor no corpo indicava a quantidade de maçãs colhidas. LABOR
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Essa rotina foi narrada pelo trabalhador indígena da etnia Terena, Osvaldo**, de 53 anos, que trabalhou na colheita da maçã em Vacaria, no Rio Grande do Sul, entre os meses de abril e junho de 2015. Com oito filhos, buscar trabalho em outro estado foi a solução encontrada para o sustento da família que mora na aldeia Mãe Terra, em Miranda, Mato Grosso do Sul. “Agora, eu tô aqui, mexendo com a minha lavourinha, plantando mandioca, fico dependendo disso só, né. A gente tem família, tem de se virar de um jeito ou de outro, tem de comer, né?”, justifica o trabalhador, que não quis se identificar. A história retrata a realidade e a luta desse e de muitos outros trabalhadores indígenas que têm migrado para o Sul do país em busca de trabalho temporário nos períodos da safra.
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Com a segunda maior população indígena do país, as etnias que habitam Mato Grosso do Sul somam 73.296 pessoas, de acordo com Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A falta de espaços no mercado de trabalho em sua terra de origem tem feito com que indígenas das etnias Terena,
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Guarani-Kaiowá e Guarani-Nhandeva migrem para a região Sul do país. Os municípios de Lages, em Santa Catarina, e Vacaria, no Rio Grande do Sul, são os principais destinos para trabalhar na colheita da maçã e também na atividade de raleio – técnica de retirada do excesso de frutas para manter a capacidade produtiva na safra seguinte. Nos últimos anos, no período da safra, do fim de janeiro até maio, o deslocamento é solução para a falta de trabalho para os indígenas e para a falta de mão de obra para os produtores. Para o procurador do Ministério Público do Trabalho em Lages (SC), Jaime Roque Perottoni, essa migração exigiu uma ação conjunta do MPT em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e em Mato Grosso do Sul. “Estima-se que de 500 a 600 índios são contratados todos os anos pelas maiores empresas do setor de fruticultura do Sul do Brasil com sede em Santa Catarina.” Além dos indígenas de Mato Grosso do Sul, há integrantes da etnia Kaingang da reserva indígena Xapecó, localizada no município catarinense de Ipuaçu, que trabalham nessa cultura.
José Carlos Pacheco, indígena Terena e coordenador do Coletivo de Trabalhadores Indígenas de Mato Grosso do Sul, movimento social que luta pelos direitos desses trabalhadores no estado, estima que a força de trabalho indígena é de aproximadamente 10 mil trabalhadores. Destes, cerca de 5 mil migram em busca de oportunidades. “Acreditamos que saem daqui aproximadamente 5 mil trabalhadores indígenas não só para a colheita da maçã, mas também para outras frentes, como a colheita de alho, beterraba, batata e cenoura, que ainda não estão contabilizadas. Hoje, a aldeia não dá condições aos indígenas de sobreviver e, por isso, eles precisam sair para trabalhar”, explica.
Percurso da maçã Em Mato Grosso do Sul, a mão de obra indígena estava ligada às usinas de álcool e açúcar, porém, com a mecanização desse processo produtivo, os indígenas perderam espaço no mercado de trabalho.
“O fluxo migratório de trabalhadores indígenas sul-mato-grossenses para os estados do Sul do país ocorre desde 2000. Trabalham na colheita da maçã e de outros produtos como batata inglesa, cenoura e beterraba e, recentemente, na poda e raleio de frutas no período de crescimento. A necessidade de aceitarem trabalho fora do estado se dá devido à absoluta falta de espaço em Mato Grosso do Sul, em consequência do forte refluxo na utilização destes trabalhadores pelas usinas de açúcar e álcool”, explica Maucir Pauletti, coordenador da Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho em Mato Grosso do Sul (CPIFCT/MS), designada pelo governo do estado como Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-MS). Conforme esclarece o procurador Jaime Perottoni, os indígenas de Mato Grosso do Sul chegam ao mercado de trabalho no Sul qualificados porque desenvolviam atividades nas lavouras de cana-de-açúcar até serem substituídos por máquinas. “São facilmente absorvidos pelas empresas do Sul do Brasil, mas têm de ser protegidos enquanto estiverem aqui para, ao término da safra, voltarem às suas terras de origem recompensados financeiramente e com saúde, fechando-se assim um ciclo de trabalho que garante mão de obra qualificada para as indústrias, mas também a preservação dos povos, costumes e das comunidades indígenas.”
Maucir Pauletti ressalta as diferenças nas relações de trabalho para os indígenas e as necessidades imediatas destes trabalhadores. “No caso dos indígenas, são importantes e também devem ser considerados os elementos étnicos, culturais e antropológicos, pois a forma como veem o trabalho é diferente da forma como os não índios o veem. Para eles, o trabalho é uma forma primária de suprir uma necessidade, geralmente imediata”, contextualiza. Em março deste ano, indígenas Terena procuraram o Centro de Defesa da Cidadania e dos Direitos Humanos Marçal de Souza Tupã-i (CDDH) e denunciaram condições de trabalho análogo à escravidão a que estariam sendo submetidos na colheita de maçã em Vacaria (RS). A Comissão de Direitos Humanos levou a denúncia ao Ministério Público do Trabalho (MPT) em Mato Grosso do Sul. Para averiguar as denúncias, em ação conjunta, MPT, Ministério do Trabalho (MTb), Comissão Permanente e o Coletivo de Trabalhadores Indígenas visitaram em abril e maio de 2015 as duas maiores empresas produtoras de maçã, instaladas em Vacaria (RS): a Rasip Alimentos Ltda., com cerca de 3 milhões de macieiras em produção, e a Agropecuária Schio, maior produtora individual do mundo, com cerca de 10 milhões de pés de maçã. As visitas também se estenderam às produtoras Fraiburgo, Agropel, localizadas em Lages (SC).
Discriminação estampada no contracheque Dentre as reclamações apontadas pelos indígenas que migram para a colheita, a principal se refere à diferença salarial. Durante a fiscalização, em Vacaria, foi constatada a diferença entre o valor do pagamento dos índios e não índios. Segundo o auditor fiscal do MTb-RS, James Helierson Pires, o piso salarial da região é de R$ 1.006, mas os trabalhadores indígenas estavam recebendo o valor do piso antigo: R$ 884. O coordenador do Coletivo de Trabalhadores Indígenas de Mato Grosso do Sul, José Carlos Pacheco, afirma que a discriminação étnica está escancarada na folha de pagamento. Além da diferença de piso, existe diferença no pagamento pela produção, que é medida por bins, caixa de colheita com capacidade de 350 quilos (equivalente a 33 sacolas com capacidade entre 10 e 12 quilos). “Hoje o trabalhador não índio tem que colher dois bins para ganhar 200 reais enquanto o trabalhador indígena precisa colher dois bins e meio para ganhar entre 100 e 120 reais. Isso foi uma das questões que nós levantamos. Por que essa diferença sendo que somos trabalhadores iguais, com direitos iguais?” Pacheco levanta o questionamento e aponta que a discriminação está presente em várias frentes de trabalho. “Para além da questão dos trabalhadores indígenas que vão para a
colheita da maçã no Sul, as diferenças salariais afetam também as mulheres indígenas que estão inseridas no mercado como domésticas. E nós nos perguntamos porque a trabalhadora doméstica não índia ganha mais que as trabalhadoras indígenas que exercem o mesmo trabalho? ”, reforça. Outro problema enfrentado pelos trabalhadores indígenas está na forma de recebimento do salário, feita em cheque. O auditor fiscal James Helierson Pires relatou que os indígenas quando recebem seus salários vão para cidade descontar o cheque e são explorados por cambistas que cobram cerca de 5% do valor do salário para trocá-los e evitar que fiquem na fila do banco. A liberdade e direito de escolha do local onde fazer as compras com o vale está entre as reivindicações. No relatório de viagem da Comissão Permanente, realizada de 26 de abril a 1º de maio de 2015, Maucir Pauletti destaca como as compras são feitas. “Quando os índios precisam de algo do mercado, os ‘cabeçantes’ (indígenas que medeiam a contratação e se tornam responsáveis pelos trabalhadores que vão para a colheita) fazem uma lista e a entregam no RH das empresas, que faz a compra e manda para estes trabalhadores. No dia do pagamento ou do acerto, os valores são descontados dos trabalhadores.” LABOR
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Da aldeia ao pomar Além das reivindicações salariais, a forma como a contratação é feita é apontada como um grande problema. Os recrutadores das empresas vão até as aldeias por meio de um contato local, o ‘cabeçante’, apresentam as demandas e este indígena é que repassa a informação para os interessados. A contratação feita pelo intermediário não assegura os direitos dos trabalhadores indígenas, que reivindicam que a contratação seja feita exclusivamente pelo cacique. Pacheco ressalta a importância do cacique na contratação: “Dentro e fora da aldeia o cacique é o responsável. Caso aconteça alguma coisa, é o cacique que deve resolver os problemas.” O trabalhador indígena Terena Osvaldo** relatou que o valor do salário pago pela empresa não correspondeu às poucas informações que recebeu na aldeia antes de ir para o Sul. “Quando eu fui daqui eu não sabia, eu fui saber quando cheguei lá. Aqui o cacique falou, mas chega lá é outra conversa, ele falou que o salário era de mil e nós chegamos lá e era 800, ele falou que ia pagar hora extra e não sei o que mais, chegou lá e não pagou nada não, foi só o salário mesmo.” Com a mediação do ‘cabeçante’, as informações não chegam aos indígenas de forma correta, pois não são esclarecidos os valores de salário, se haverá ou não o pagamento por produção e as condições dos alojamentos. “O trabalhador indígena está sendo enganado. Nós não queremos impedir esse fluxo migratório, nós não queremos que eles deixem de ir, nós queremos melhorar a condições de trabalho desses trabalhadores. E nós não queremos impor, nós ouvimos
os trabalhadores indígenas primeiro para entender suas necessidades”, explica Pacheco. O procurador do Ministério Público do Trabalho em Dourados (MS), Jeferson Pereira, aponta as dificuldades nas contratações. A Comissão Permanente está atuando no recrutamento da mão de obra que se dá entre o empregador e alguns ‘cabeçantes’. Para o procurador, o governo precisa dar suporte, “os recrutadores estão ganhando em cima dos indígenas, favorecendo apenas ‘os amigos do rei’, e prometendo vantagens por conta própria e não a mando do real empregador, fazendo com que os indígenas ao chegarem nos locais de trabalho se surpreendam com o verdadeiro valor que lhes será pago”, ressalta. Para o procurador, o recrutamento deve ser formalizado. “O certo é que tais recrutamentos sejam feitos via CIAT (sistema público de emprego), e não da forma como está sendo conduzido”, explica. Diante disso, o MPT em Mato Grosso do Sul concentrou esforços com o objetivo de articular a correta forma de recrutamento dos indígenas. Para assegurar a esta mão de obra temporária os mesmos direitos concedidos aos trabalhadores não-indígenas, conforme determina a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o Ministério Público do Trabalho em Lages e em Dourados, em Mato Grosso do Sul, está atuando de forma integrada. Jaime Perottoni ressalta que, além da carteira assinada e um salário condizente com a atividade, a intenção é garantir saúde, segurança e dignidade aos índios, com alojamentos e refeitórios adequados e o fornecimento de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual).
Vozes dos trabalhadores indígenas
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Após as visitas às empresas que colhem maçã, a Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho em Mato Grosso do Sul e o Coletivo de Trabalhadores Indígenas de Mato Grosso do Sul foram às aldeias ouvir os trabalhadores indígenas e caciques. Uma preocupação apontada se referia à saúde dos trabalhadores indígenas.
Nas aldeias do estado, os indígenas apontaram a segurança e a saúde no ambiente de trabalho como prioridade. Conforme depoimentos, enquanto trabalhadores indígenas colhiam maçã no campo, em uma das empresas, aplicavam veneno no pomar. Alguns trabalhadores passaram mal. Caciques e indígenas reivindicam o fim dessa prática.
De acordo com o coordenador do Coletivo de Trabalhadores Indígenas, José Carlos Pacheco, sem nenhum tipo de verificação durante a contratação, os indígenas não conseguem manter o acompanhamento de tratamentos médicos realizados no período da colheita. “É preciso ainda haver um controle destes trabalhadores e de seus prontuários quando saem do MS para a manutenção de tratamentos em andamento, como o de tuberculose. Isto é benéfico tanto para o trabalhador quanto para o empregador. Não queremos que eles sejam discriminados e ou não sejam levados a trabalhar, pois essa doença não impede a atividade”, reforça Maucir Pauletti.
“Trabalhamos com nossas próprias roupas”, esta foi uma reclamação comum. Um boné e uma botina eram os únicos equipamentos fornecidos pelas empresas para a colheita de maçã. Sem luvas ou uniformes apropriados, os trabalhadores indígenas reivindicaram o fornecimento de EPIs. Com base nas informações colhidas nas aldeias, as principais reivindicações dos trabalhadores que migram para o Sul são: a solicitação de que no ato da contratação o MPT seja informado; quando não houver produção, que haja uma remuneração maior; que no ato do contrato seja explicado para os trabalhadores como será
o trabalho realizado e a remuneração; e que o trabalhador tenha o direito de escolha do local onde fazer suas compras com o vale fornecido. Valdir**, da aldeia Cachoeirinha, viajou pela primeira vez em 2015 para a colheita e achou o destino muito longe e a viagem muito cansativa. Ele trabalhava com a própria roupa, recebeu apenas a botina, e achava a alimentação boa. Disse que o alojamento é bom e é registrado. Ele foi entrevistado durante a visita nas fazendas. Sua preocupação na época era não saber quanto iria ganhar porque saiu da aldeia sem nenhuma informação. Acha a região um lugar muito frio; disse que muito dos parentes sentem dor de cabeça, que a coberta é pouca, tem chuveiro que não esquenta e tem que tomar banho de água gelada. Sua jornada no pomar era das 7h às 17h20. O desconhecimento do valor do próprio salário também foi uma reclamação de Marcos**, indígena de Miranda. “Estamos trabalhando aqui, saímos de lá da aldeia, disseram que não teria produção, estamos trabalhando e nem sei quantas sacolas de maçã eu pego por dia, pois não sabemos se vamos receber hora extra e sem produção é ruim, pois saímos daqui e voltamos pra casa com pouco dinheiro, a alimentação não é de graça, eu achei que a empresa não descontava, e quando precisamos de algo do mercado, o “cabeçante” leva até o RH, que compra pra nós o que precisa e desconta no pagamento. Tudo é caro aqui, na vinda eles pagam alimentação, mas na volta nós temos que pagar do nosso bolso.” Em sua primeira
viagem para a colheita, Marcos** avaliou o alojamento como bom e o local muito frio.
Fernanda Palheta
“O tratamento lá também não é muito bom. Banheiro, é tudo estragado, quebrado”, queixase o trabalhador Terena Osvaldo** sobre as condições do alojamento. “O atendimento é péssimo”, comentou um trabalhador sobre sua experiência na colheita de maçã. “Muitas coisas que eram para atender a gente não atendiam e o único mais ou menos, um pouquinho, era a refeição, que não era muito bom, mas era mais ou menos, tinha de comer, de se alimentar. É desse jeito lá. (...) a gente chegava lá em época de frio, quase congelava as coisas na mão da gente.” Osvaldo** já recebeu convites para voltar às macieiras, mas não sabe se volta. “Não é muito bom não, né? Sair daqui e andar mais 2 mil quilômetros por um salário de 800 reais? Tem bastante famílias, um monte também, não era só eu não, né. Já vieram me procurar pra ir pra lá. Estou pensando. A gente precisa trabalhar, né?”, disse. De acordo com o relatório de viagem do dia 26 de abril de 2015 da Comissão Permanente, os “banheiros (estavam) sem o mínimo de privacidade, bem como em quantidade insuficiente. A NR-18 [Norma Regulamentadora do Ministério do Trabalho] em seu item 4.2.4 preconiza que a instalação sanitária deve ser constituída de lavatório, vaso sanitário e mictório, na proporção de um conjunto para cada grupo de 20 trabalhadores ou fração, bem como de chuveiro, na proporção de uma unidade para cada grupo de 10 trabalhadores ou fração”.
CPIFCT/MS
Ciclo da maçã Segundo informações do Anuário Brasileiro da Maçã, de 2015, elaborado pela Editora Gazeta em parceria com a Associação Brasileira de Produtores de Maçã (ABPM), o Brasil está entre os dez maiores produtores mundiais da fruta. O plantio comercial da maçã começou em 1969, em Fraiburgo, no sul do país, pela altitude e condições climáticas favoráveis para o cultivo da fruta. A produção nacional é de 1 milhão de toneladas e gera mais 150 mil empregos direitos e indiretos, conforme o anuário. A safra 2014/2015 registrou 1,163 milhão de toneladas, 55% da variedade Gala, 40% de Fuji e 5% de outras variedades, conforme dados da ABPM. A produção se concentra no Sul: Santa Catarina, com 52,6%; Rio Grande do Sul, com 43,9%; e Paraná, com 3,5%. A colheita da fruta obedece a regras que variam de acordo as variedades da fruta a ser colhida e conforme a finalidade, mercado interno, exportação ou indústria etc. Durante o ano agrícola, a macieira tem dois ciclos, o vegetativo e o de dormência. O primeiro estende-se de outubro a maio e o segundo, de junho a setembro. Os contratos de trabalho, normalmente, são feitos por 45 dias ou no máximo 60 dias. Conforme dados da ABPM, em outubro é feito o raleio químico; em novembro ocorre a fase do raleio manual. Em dezembro, as frutas estão em pleno crescimento e os agricultores fazem trabalhos de limpeza após o raleio manual. No mês de janeiro, nas regiões de menor altitude inicia-se a colheita da maçã da variedade Gala, que vai até março. Em regiões de menor altitude, inicia-se a colheita da variedade Fuji no final de março, que prossegue até abril. Em junho, são feitas as operações de limpeza dos pomares. Em julho e agosto, são feitas as podas e em setembro são feitos os tratos culturais, visando ao novo ciclo. Nas regiões de menor altitude, ocorre o início da brotação e florada. A contratação dos indígenas para colheita vai do final de janeiro até maio, mas há produtores que contratam indígenas também na fase de poda, de plantio de novas mudas, para serviços gerais e no raleio do mês de novembro.
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Poder da informação
Em duas audiências públicas, realizadas no município gaúcho de Vacaria, no dia 15 de julho, e em Lages, na serra catarinense, no 16 de julho de 2015, o material foi entregue aos produtores de maçã. Cerca de 12 empresários receberam a cartilha, foram orientados de suas obrigações e puderam tirar dúvidas quanto à contratação da mão de obra indígena. Nessas audiências públicas, com a participação do MPT, MTb, Comissão Permanente e os produtores, foram discutidas formas de melhorar as condições
CONTRATAÇÃO DE INDÍGENAS Instruções
Trechos Selecionados Consolidação das Leis do Trabalho – CLT IN nº 76, da Secretaria de Inspeção do Trabalho Estatuto do Índio lei Nº 6.001 de 19/12/73 Norma Regulamentadora 31 Convenção 169 da OIT - Direito De Povos Indígenas
de transporte, alojamento, pagamento e alimentação dos trabalhadores indígenas de acordo com a legislação e normas vigentes. As audiências públicas contaram com a participação de representantes das empresas Agrícola Fraiburgo S.A., Frutini Fruticultura Aliprandini Ltda., Rasip Aliamentos Ltda., Agropecuária Schio e Valter Perboni, Fischer S. A. Agroindústria, Fruticultura Malke Ltda. e Renar Maçãs S.A.
Rede de proteção Além das audiências, o Ministério Público do Trabalho em Lages tem buscado averiguar a real situação destes índios. Em conjunto com as equipes de Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, o procurador Jaime Perottoni já visitou pelos menos cinco fazendas da região atendida pela PTM de Lages. Ele também tem feito contato com lideranças indígenas. A última diligência foi na Reserva Indígena Xapecó, onde ficou acertado com o cacique Osmar Barbosa que, a exemplo do que acontece com outros chefes de aldeias, ele atuará como uma espécie de “fiscal”. Esses líderes vão até os pomares acompanhar os índios que trabalham nas lavouras de maçã, fazem uma checagem dos registrados e alojados e, em caso de insatisfação, providenciam o retorno de quem, eventualmente, queira voltar para casa. “Dessa forma o índio não fica longe de sua aldeia, desempregado e vulnerável a hábitos como o da bebida”, observa o procurador.
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O cacique Osmar diz que, a partir da atuação do MPT, houve uma melhora na relação dos patrões com os empregados indígenas. “Hoje a gente vê que existe um respeito maior dos produtores com o nosso pessoal, graças à disposição dessas autoridades que deixaram os gabinetes para acompanhar de perto as nossas necessidades”, apontou. Jaime Perottoni afirma que o que se busca é uma grande rede de proteção a estes trabalhadores que chegam ao estado, principalmente nas áreas de abrangência da PTM de Lages e da PTM de Joaçaba. X
* Estagiária de jornalismo do MPT em Mato Grosso do Sul ** Os nomes dos indígenas são fictícios. A substituição se deu para preservar a identidade dos trabalhadores que fizeram as denúncias.
Reprodução
A atuação do MPT está ocorrendo como forma de prevenção para evitar a precarização da atividade destes povos no cultivo das macieiras, conforme aponta o procurador Jaime Perottoni. Para auxiliar na conscientização de empregadores e empregados, com base nos depoimentos levantados nas inspeções nas empresas e nas TELEFONES visitas às aldeias, foi elaborada cartilha IMPORTANTES sobre a contratação e os direitos dos trabalhadores indígenas. SRT/MS – CAMPO GRANDE – SRT/SC – FLORIANOPOLIS A cartilha, com 12 páginas, traz informações de forma claraSRT/RS e em– VACARIA linguagem simples MPT/24ª REGIÃOalimentação, – 067-3358-3000 alojamentos, sobre contratação, MPT/SC – dos LAGESpovos indígenas. transporte e direitos PTM/RS DO SUL Permanente – 054-3213-6000 e a A viagem da– CAXIAS Comissão – custeadas publicação daCPIFCT/COETRAE cartilha foram com recursosPRT/MS de Termo de Ajuste de - DOURADOS Conduta (TAC) firmado pelo procurador do trabalho Jeferson Pereira em Dourados (MS). Inicialmente, foram confeccionados 5 mil exemplares para distribuição aos índios nas aldeias e aos empresários dos três estados envolvidos nessa contratação.
José Carlos Pacheco
Caminhos para a garantia de direitos Com o objetivo de estudar estratégias para solucionar os problemas da intermediação e das falsas promessas na contratação da mão de obra, no dia 12 de novembro de 2015, foi realizada audiência em Campo Grande (MS) com representantes do setor produtivo da maçã nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) determina que os governos devem adotar medidas especiais para garantir aos trabalhadores pertencentes a esses povos uma proteção eficaz, evitando qualquer discriminação entre os trabalhadores indígenas e os demais. Conforme a convenção, para um patrão contratar trabalhadores indígenas, ele deve respeitar e considerar os costumes e cultura desses povos, além disso, deve reconhecer, garantir e pagar todos os mesmos direitos trabalhistas pagos ao empregado não índio. A Convenção nº 169 preconiza, ainda, a autonomia dos povos com a consulta prévia para possibilitar que os povos indígenas sejam ouvidos e decidam seus próprios caminhos como instrumento de autodeterminação. A convenção foi elaborada em 1989 e ratificada no Brasil pelo decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, o que lhe concede força de lei no país. A reunião contou com a presença da vice-governadora de Mato Grosso do Sul, Rose Modesto, e do diretor-presidente da Fundação do Trabalho, Wilton Acosta, de líderes indígenas das aldeias que mais exportam trabalhadores para o sul, além do procurador do MPT em Dourados, Jeferson Pereira, do coordenador da Comissão Permanente/MS, Maucir Pauletti, Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Coletivo de Trabalhadores Indígenas. Compareceram representantes das empresas Agrícola Fraiburgo S/A, Fischer S/A Agroindústria, Frutini Fruticultura Aliprandini Ltda. e Rasip Alimentos Ltda. Os líderes indígenas Silvio de Leão Machado (aldeia Jaguapiru), Gaudêncio Benites (aldeia Bororó), Marco de Arruda Sobrinho (aldeia Cachoeirinha), Italiano Vasque (aldeia Amambai), Daniel Benites (aldeia Jaguari) e Nelson Castelão (aldeia Limão Verde) apresentaram suas demandas às empresas e aos órgãos envolvidos.
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Fotos: Reprodução
CRÔNICA
A professora de Geografia 116 LABOR
Uruburetama/CE Vencedor do Prêmio MPT na Escola 2015*
Por Juliana Castanha Arrastei duas cadeiras para o salão vazio e pouco iluminado, no primeiro andar do prédio histórico transformado em museu,
no centro de Fortaleza. Eu, meu bloco de notas, e a professora de Geografia que perdera a infância e a liberdade aos 9 anos de idade. LABOR
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Rose esboçava um sorriso nervoso, enquanto se acomodava. Agarrava firme a bolsa, como se quisesse escapar no primeiro respiro. Se há quem goste de compartilhar desassossegos, a professora por certo não fazia o tipo. Pelo contrário. Tinha os ombros recolhidos a sustentar o peso de uma série de decisões. Escolhas não
Prata/MG 3º lugar no Prêmio MPT na Escola 2015
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suas, mas de outros. Decisões que, de forma irremediável, transformaram seu destino quando ainda usava tranças. Carregava consigo um semfim de “e se?”. Pedi que confiasse em mim. Pedi que compartilhasse sua história, para levar luz a outras
meninas órfãs de oportunidades. Rose fitou o teto na tentativa de equilibrar lágrimas. Em vão. O ar parecia lhe faltar. Entre tantas possíveis formas de iniciar a narrativa de seu drama pessoal, escolheu o perdão como prefácio. “Ainda tenho que perdoar minha mãe”, disse ela ao trazer, para o presente, um abismo de privações e solidão.
O início Nas memórias da professora de Geografia, os fragmentos de infância feliz têm endereço: município de Caravelas, extremo sul da Bahia. “Meu pai era caminhoneiro, não parava em lugar nenhum. Então, eu morava com minha avó pra ter como estudar. Era uma casa modesta, mas fui muito feliz. Lá eu fui criança”, relembra. Rose fazia a 4ª série do Ensino Fundamental quando a família decidiu tentar a vida no Ceará. Chegou a Fortaleza em 3 de novembro de 1989, dia em que completava 11 anos de idade. Para concluir o ano letivo, faltavam apenas as provas finais. Mera formalidade. A adaptação em outra escola não seria problema para a aluna que colecionava elogios. Mas a menina não frequentaria a sala de aula pelos próximos meses. Estava prometida como empregada doméstica. “Minha mãe combinou tudo e me entregou a um casal. Lembro quando entrei naquela casa enorme pela primeira vez. Tive medo. Não entendia o que estava acontecendo.” Além das tarefas domésticas, cabia a ela a responsabilidade de cuidar de três crianças: de 4, 8 e 11 anos de idade. “Era serviço pesado. O pai dos meninos tinha pena de mim, mas a esposa dele não. Perdi bem mais que a 4ª série. Minha infância acabou ali.” Entre a primeira e a segunda casa de família, Rose experimentou um intervalo de 12 meses tranquilos. Aos 13 anos, foi estudar à noite para trabalhar em outra casa. “Lá passei fome. Antes de sair para o trabalho, a dona da casa deixava um pires com quatro bolachas cream cracker e uma xícara com uma colherinha de café solúvel. Era meu café da manhã de todos os dias.” Ter o que comer foi a única exigência que a mãe de Rose fez a um terceiro casal ao oferecer a filha para os serviços domésticos. Dispensou remuneração. Além dos afazeres da casa, a menina cuidava de um bebê, então recémnascido. “Eu continuava estudando à noite, mas não tinha o direito nem de tocar nos livros. Tarefa de escola, só se fosse de madrugada. Não tinha cama e nunca me acostumei a dormir de rede. Então, eu estendia a rede no chão da sala e lá mesmo eu dormia.” Os dias de folga eram cada vez mais raros. No início, um por mês. Depois, a cada dois meses. Nos fins de semana, a menina não dormia antes das dez horas da noite. “Eu lavava rede, banheiros, lavava e passava umas 50 fraldas todo dia. Quando eu ia para a casa dos meus pais, só pensava em dormir, de tão exausta. Não acreditei quando, uma vez, minha mãe ligou para minha patroa vir me buscar, porque eu não queria ajudar na limpeza da casa.”
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A Coca-Cola As transformações no corpo, os hormônios, as angústias da adolescência, Rose viveu sozinha. Reduziu a quase nada seu repertório de felicidades. Sonhava andar de bicicleta, conversar na calçada ou simplesmente fazer nada, quando tivesse vontade. Vivia no futuro do pretérito, diante de tudo que poderia ser e não foi. Até o dia que, por ingenuidade ou descuido, deixou escapar um gesto à toa sem imaginar o desmedido de reação que poderia provocar. “Sempre fui muito acanhada. Mas depois de quatro anos de convívio, você se sente um pouco da família. Vi as crianças crescerem comigo. Alimentei, vesti, cuidei, pus para dormir. Um certo domingo, na hora do almoço, já tinham colocado minha comida no prato. Tinha uma Coca-Cola sobre a mesa e eu caí na besteira de abrir a garrafa.” (...) Rose interrompe a narrativa. Chora mais uma vez. A ponto de quase sufocar. “Nunca ouvi tanto insulto como naquele dia. A dona da casa gritava, dizendo que eu deveria saber de onde vim. Ela dizia: ‘ponha-se no seu lugar! Quem é você pra achar que tem o mesmo direito que os meus filhos? Quem você pensa que é?!’.”
Juliana Castanha
Era a empregada doméstica. De domingo a domingo. Sem remuneração. Confinada. Entregue pela mãe. E nada disso lhe dava o direito de abrir o refrigerante.
Ituverava/SP 2º lugar no Prêmio MPT na Escola 2015
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A bolsa No 3º ano do antigo Segundo Grau – hoje Ensino Médio – Rose ganhou uma bolsa de estudos para o cursinho pré-vestibular da Universidade Federal do Ceará. “Não tinha condições de estudar, porque trabalhava o dia inteiro. Então, fui conversar com a diretora. Implorei que ela desse a bolsa pra outro estudante, com a condição de garantir minha vaga no ano seguinte.” Foram semanas de insistentes apelos até o consentimento da diretora da escola da Vila Peri. A resposta positiva foi o que Rose precisava para mudar o curso da própria vida. Ao concluir o terceiro ano do Ensino Médio, teve uma conversa firme com a patroa. Deixou claro que, a partir daquele momento, não abriria mão do tempo para o estudo. “Lembro o discurso que ouvi no primeiro dia de aula, no cursinho. Tinha mais de 100 pessoas na sala e disseram que, dali, menos de 20 chegariam ao final.” (...) Rose Costa Coelho. Dezoito anos de idade. Sete como empregada doméstica. Aprovada em 4º lugar para o curso de Economia Doméstica da Universidade Federal do Ceará, em 1998. Um semestre depois, conseguiu transferência para realizar o sonho de se formar em Geografia. Prestes a se graduar, foi contratada por uma escola particular a convite de um ex-professor. Ele apostou no talento que já se destacava nos bancos da faculdade. Rose foi professora de uma das crianças que ajudou a criar, quando sonhava apenas conversar na calçada. Hoje, é coordenadora pedagógica na Escola Municipal Raquel Viana Martins, no coração do Bom Jardim, um dos bairros mais violentos de Fortaleza. É também aliada no Programa de Educação Contra a Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Peteca), do Ministério Público do Trabalho no Ceará. “Quero fazer pelos meus alunos o que ninguém fez por mim. Faço até o impossível, se for preciso para que eles tenham o direito de sonhar.” X
* O Prêmio MPT na Escola é uma iniciativa que visa conscientizar os alunos do ensino fundamental sobre o problema do trabalho infantil.
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