A razão fotográfica

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Corpo

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&

Corpo

Experiência &

Experiência

Rio de Janeiro 2013


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Nesta edição: A razão fotográfica (I)

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A razão fotográfica (II): margem do tempo 27

Corpo & Experiência é uma publicação vinculada ao GPesq do CNPQ “Corpo e experiência”.

Os textos apresentados aqui têm como objetivo a divulgação de pesquisa acadêmica para as áreas de Letras, Cultura, Artes, Filosofia e Educação. Para maiores informações sobre o GPesq, consulte a página: http://gpcorpoexperiencia.blogspot.com.br/


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6 por Marcelo Santos (UCB/FCRB)

O

s mais recentes trabalhos da artista plástica Rosângela Rennó

chamam-se “Frutos estranhos” e “A última foto”. Em exposições realizadas simultaneamente (“Frutos” ficou estabelecida na Galeria Artur Fidalgo, em Copacabana, no período de 17 de outubro a 4 de novembro de 2006,

A RAZÃO FOTOGRÁFICA (I) FOTOGRAFIA E LEITURA

e “A última foto” foi exposta na Galeria Vermelho, em São Paulo, de 4 de outubro a 4 de novembro), essas du-


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as obras de Rennó travam diálogo por discutirem, cada

Com “Frutos estranhos”, Rosângela Rennó traba-

uma a seu modo, a convergência entre tempo, tecnolo-

lhou também com o limite, mas em outros termos: digi-

gia e crítica no horizonte da arte contemporânea. Des-

talizando fotografias de movimentos (aqui a situação

crevo: em “A última foto”, Rennó pôs, à disposição de

paradoxal da imagem fotográfica, cindida entre a fixa-

alguns fotógrafos, máquinas fotográficas de sua cole-

ção e a representação do movimento, tem total impor-

ção, para que eles fizessem imagens do Cristo redentor,

tância, mas a deixaremos escapar à nossa exposição), a

cartão-postal do Rio de Janeiro. Depois de feita a foto-

artista expõe, utilizando mini-DVDs, fotografias amplia-

grafia, a máquina teve como destino anunciado a des-

das pelo som e pela animação. Destinada ao espectador

truição. Portanto, esta foto era o seu último suspiro.

que se deixa ficar na observação do movimento fixo, a

Numa espécie de narrativa ou história de um ato, as

oscilação realizada nessas imagens, pela técnica do

“últimas fotos” foram exibidas na galeria e, ao lado de

looping, o surpreende e assusta em algum momento

cada uma delas, as máquinas que as haviam realizado. A

perdido da observação estática. Já vai se tornando evi-

história de uma elegia — a do desaparecimento da fo-

dente que, em tais fotografias, Rennó procura trabalhar

tografia analógica —, composta pelos 42 dípticos, era o

o limite em mais de um nível. Sim, estamos num mo-

motivo da exposição. Anunciando a morte da máquina

mento de convivência (não arriscaria um adjetivo para

diante da imagem por ela gerada, Rennó trabalhou aqui

essa convivência, se ela seria pacífica ou conflituosa)

num tipo de limite da técnica: a foto remete, numa li-

entre as “últimas fotos” e esses “frutos estranhos”, pro-

nha dupla, não somente ao que lhe é referencial e coin-

dutos híbridos que tendem a ser recobertos, quando

cidente — a imagem do ponto turístico —, ela faz com

não encobertos, de tecnologia. Sim, as imagens agora

que o espectador dirija seu olhar para o mesmo meca-

podem passar por outro tipo de ampliação que não se

nismo que uma vez anterior foi capaz de estar entre o

dá apenas como trabalho na imagem, mas trabalho de

olho e o objeto: a máquina. Reforça ainda essa última

imagem: com o som e a animação, a imagem de agora é

vez o lacre de tinta nas lentes das câmeras. Destaco, pa-

híbrida. Uma transimagem como nossos estranhos fru-

ra depois voltar a ela, a seguinte hipótese: talvez se de-

tos de hoje são transgênicos.

senhe aqui uma dupla consciência, a da presença do mecanismo e a do perecível do mecanismo.

Quando anunciei que me furtava a dar o devido adjetivo à convivência de imagens no limite (quando a técnica de produção é ultrapassada) e imagens do limi-


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te (quando as tecnologias operam na imagem que outra

mesmo tempo, na contemporaneidade absoluta. Justa-

técnica gerou), estou me afastando, ainda, de produzir

mente porque o trabalho de Rosângela Rennó vai atra-

o definitivo valor entre como se produzia e como se

vessar e vazar o próprio sentido da contemporaneida-

produz a imagem, isso porque as próprias obras de

de.

Rennó me impediriam de fazê-lo, pelos motivos que apresentei. Preciso aqui estabelecer uma diferença, eficiente para esse trabalho, mas bastante insuficiente fora dele, entre o que estou chamando de técnica e de tecnologia: no caso da primeira, estou me referindo ao mecanismo que se vincula a uma imagem, o que torna uma “última foto” matriz e que, extinto, extingue também um produto seu conseqüente que é aquele que o acompanha na exposição de Rennó: a foto. Como tecnologia, conceituo o conjunto de artifícios que não necessariamente geram uma imagem, mas que redefinem uma imagem gerada por outra técnica. Isso só vale então, deixo bem claro, para o caso de “Frutos estranhos”, pois as fotografias passaram pelo processo tecnológico que as animou, sonorizou etc. Assim, espero que tenha

Pode-se, com a ajuda das imagens de Rennó, especular sobre a frase que acabei construindo: compreendemos contemporaneidade como o conjunto de manifestações concomitantes a um tempo cujo referencial somos nós mesmos ou aquilo que nós mesmos construímos — preciso anunciar que esse “nós” é especialmente retórico, pois ele se refere a todas as pessoas dos discursos que tecem relações com as referências que lhe são contemporâneas. Se aceitarmos este sentido da contemporaneidade, ela será algo que acontece. Se uma arte pode ser eleita para representar a contemporaneidade, teríamos de eleger a performance, pois, nesta, o que deve acontecer define o que ela é. Ela não pode ser outra coisa se não o seu aqui agora.

ficado evidente que a dupla consciência que “A última

Não se poderia definir estritamente o trabalho de

foto” teria despertado é, em “Frutos estranhos”, suple-

Rosângela Rennó dentro dos padrões da performance,

mentada pela presença do objeto que não lhe é conse-

pois, em pouquíssimos momentos, o corpo da artista

qüente (a foto tirada e trabalhada), mas estranhamente

como atualidade da experiência artística é o palco de

coincidente (a foto trabalhada, mas não tirada). No pro-

sua expressão. A obra de Rennó se atualiza diante do

jeto de Rennó, essa concomitância se dá inclusive no

seu espectador pelo deslocamento nunca estanque en-

âmbito do circuito cultural: a apresentação dos dois la-

tre tempo passado e tempo da presença. O sentido do

dos dos limites da produção de imagem se realiza num

arquivo, que é a pulsão que move a diversidade da cole-


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ção de Rennó, está vinculado àquilo que (lhe) escapa.

dos objetos. Em trabalhos como Vaidade & violência,

Não ao que se recusa, mas ao que é recusado. As ima-

Abdução, In oblivionem e Hipocampo, a leitura é sem-

gens com que Rennó trabalha não são imagens guarda-

pre algo que acontece, provocada pela fuga da imagem.

das numa coleção ou biblioteca que se organizariam

Mas também a imagem é reivindicada pelo leitor assim

pelas balizas da documentalidade (arquivar para provar

que a leitura é feita, pois os textos ganham a altitude

algo) ou da emocionalidade (arquivar para representar

do objeto (no trabalho com as texturas tipográficas) e o

algo); elas são organizadas pela própria força constante

aspecto pictórico da imagem-texto. O desdobramento

na organização: a pulsão colecionadora. Se dermos o

alcançado por Bibliotheca faz com que as duas opera-

nome a isso de projeto, podemos fazê-lo na condição

ções (leitura e olhar) se encontrem num lugar em que a

de o sabermos na maior amplitude possível: ele é “o”

ambas se aproximam do manuseio dos livros e álbuns.

projeto, o único projeto. A alcunha dada ao projeto de

Se Roland Barthes pôde dizer, em seu O grau zero da

colecionar narrativas retiradas de jornais, que têm co-

escrita, que haveria a possibilidade de se fazer uma his-

mo temática geral a relação com a imagem fotográfica,

tória da escrita, vinculada ao trajeto da objetivação da

será precisamente “O arquivo universal”.

literatura, até o momento em que houvesse o escritor

Para essa breve intervenção, é indispensável que a idéia do projeto, paradoxalmente inalcançável mas levado a cabo, perpasse a obra de Rennó. Poderia exem-

sem literatura, não é tão circunspecto que Rennó, com seus objetos-limite da imagem, seja definida como uma fotógrafa sem ato fotográfico.

plificar essa confluência na série Bibliotheca que vis-

A biblioteca de Rosângela Rennó pode facilmente

lumbra, na coleção de álbuns de fotografias fora de

ser aproximada da amplitude colossal da biblioteca

uso, a possibilidade de uma bibliomania, tão cara aos

borgiana, em “A biblioteca de Babel”, conto em que,

leitores-colecionadores compulsivos. Com Bibliotheca,

ficcionalmente, todas as narrativas em livro, de acordo

Rosângela transferiu à sua coleção exposta ao público

com a combinatória, poderiam ocupar seu espaço nela.

aquilo que norteava a preocupação das exposições com

Vale repetir que, em primeiro lugar, isso é uma verdade

os trabalhos do arquivo universal. Naquelas, o especta-

ficcional, como o é a verdade do arquivo universal de

dor da obra de arte era chamado a realizar a cena de

Rennó, e, em segundo lugar, que é uma verdade do li-

leitura na observação do texto; nesta, a alternância dos

vro, já que não é nem a Literatura nem a Fotografia que

papéis de espectador e leitor acontece também no nível

se acumulam, mas os livros e os álbuns de fotografia. O


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sentido disto é a ironia dos projetos de verdade ficcio-

Mas ainda há outra origem para a planificação de

nal anunciarem que algo já escapará dessa razão econô-

“Menos-valia”: os objetos expostos foram comprados

mica, bibliográfica, fotográfica. Por isso, são também, e

pela artista no mercado de pulgas da Praça XV, no cen-

particularmente, como objetos que as duas obras vão

tro do Rio de Janeiro, onde milhares de objetos são ex-

encarar os campos que produzem a leitura e a imagem.

postos no asfalto para possíveis compradores. Ali, o lixo

Se Borges nos serviria para pensarmos a gama de com-

da indústria espera para uma nova (e talvez última)

binações que caberiam no suporte livro a ser parte inte-

chance de circulação. Na aquisição dos objetos para

grante da biblioteca, deveríamos, como foi realizada,

“Menos-valia”, à medida que Rennó os negocia, cada

fazer não somente uma história da escrita, mas uma

um deles vai sendo seccionado, inutilizado definitiva-

história do livro.

mente, rompendo-se a relação entre uso e valor.

Com Rennó, talvez essa história tenha de dar mais

Desse modo, “Menos-valia” é exemplar, mas não

um passo. O peso da contemporaneidade lança a cole-

exemplo único, do sentido da performance na obra de

ção no abismo da extemporaneidade. Ao expor no

Rosângela Rennó: há uma narrativa construída em tor-

MAM do Rio de Janeiro a obra “Menos-valia”, esse peso

no de suas obras, mas que se apresenta como fantasma-

começa a desafiar a artista colecionadora. Presente na

goria, indicando a crise entre imagem e suporte, pre-

coletiva “Jogos da memória”, realizada em 2005,

sença e ausência, que o tempo faz aparecer naquilo que

“Menos-valia” retoma os dispositivos que cercam a fo-

aconteceu. É claro que o diálogo perene com a arte da

tografia, como rolos de negativo, álbuns de família,

performance não nos afastaria da condição crítica desta

etc., apresentados num conjunto limitado pelo enorme

na história da arte. É através de seus arquivos de ima-

retângulo no chão do museu, o que parece oferecer ao

gem, fotografias e vídeos, que a performance se abriga

seu espectador as formas de um grande quadro hori-

no tempo e na história. É com essa visada crítica que

zontal, à moda das action paintings de Jackson Pollock,

Rennó pode ativar uma narrativa de artista com a ajuda

de uma abertura para onde se debruça o olhar da me-

de materiais, como o faz com as capas, os álbuns, os ro-

mória. A imagem que se vê é evocativa, pois pede à

los de filmes. A ficção alcança o seu leitor-espectador

imaginação que adivinhe as imagens que esses suportes

através da imagem de uma perda. E de imagens da per-

abrigaram um dia. Além de seus limites presentes.

da. Os objetos sem valor que Rennó convida a entrar no museu sofrem uma espécie de fetichização que entra


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em curto-circuito com a fetichização vinda tanto do

Devemos não recobrir essa perda apenas de seu

mercado quanto do afeto do antigo proprietário. Com esses arquivos pessoais tornados públicos, Rennó torna os objetos, que eram propriedade, em públicos, fazendo com que a experiência da arte, para já adiantarmos o autor que aparecerá em breve na nossa exposição, se dê num campo de fruição singular e anônimo. Quando a artista declara ter escolhido para “A última foto” o Cristo redentor, ela o faz por ele ser uma imagem pública, mas também, sobretudo, pelo questionamento dos herdeiros do escultor Paul Landowski, artista que modelou o rosto e os braços do Cristo Redentor, que têm procurado cobrar direitos autorais pela reprodução de caráter comercial da obra. Com a anulação do ato autoral do fotógrafo, Rennó tem, com a faceta da apropriação, retomado a própria questão da autoridade da imagem e sobre a imagem. Pelos meandros da

sentido melancólico, como podemos pensar num primeiro momento: o outro lado da construção de uma elegíaca última foto se abre, como vimos, à estranheza de uma nova possibilidade de imagens: os frutos estranhos. Mais do que lamentar a perda, o trabalho de Rennó parece se voltar para a demonstração daquilo que escapa: as fotografias descartadas, os álbuns inutilizados e os tempos apagados. Mas ela dá um lugar a todos eles, mostra-os, faz com que eles sejam reativados e reativem. Em Hipocampo, por exemplo, que experimenta a coincidência entre a ausência de luz e a iluminação dos tipos das notícias, a chave seletora da memória é trabalhada, permitindo que aquelas narrativas sem imagem e presas ao anonimato de um jornal perdido no tempo reacendam a região da experiência da imaginação e da memória.

construção da contemporaneidade, a reprodutibilidade

Na animação quase imperceptível das imagens de

técnica é posta no centro das discussões, pois a especia-

“frutos estranhos”, Rennó expõe movimentos que, de

lização dos mecanismos de cobrança sobre direitos de-

tão próximos à estática da fotografia, fazem o especta-

ve alcançar até as mais longínquas distâncias a que uma

dor duvidar do que se passou e se algo se passou. Ins-

reprodução possa ir. Mas a ficção que Rennó encena,

taurando a quebra do estático não pelo registro de uma

como no nosso exemplo da artista que se desloca até o

velocidade contemporânea, mas por uma velocidade

mercado de pulgas e arma a narrativa da perda de valo-

estrangeira, as imagens sem dono querem tomar o lu-

res dos objetos, é também a narrativa da ruptura da va-

gar, pelo susto, que a contemporaneidade lhes roubou.

loração mercadológica.

O que se vai apresentando é que a contemporaneidade não é tão a nossa pensada convivência de tudo, mas a


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escolha do que vai conviver, e esse “lixo” que Rosânge-

tográficas ausentes. Nesse horizonte, imagem e letra,

la Rennó devolve ao tempo da contemporaneidade, no

fotografia e álbum, papel e filme são suportes pares.

contraste com o tempo esquecido, parece dizer que essa nossa conhecida contemporaneidade, para existir, descarta, escolhe, julga, expulsa, destrói, porque ela é também uma produção. E, como afirma Zygmunt Bauman, em seu Vidas desperdiçadas, “O refugo é o segredo

sombrio

e

vergonhoso

de

toda

produ-

ção” (BAUMAN, 2005, 38). Não seria redundante lembrar o aspecto fantasmagórico desses objetos cheios de afetos que retornam ao museu pelas mãos de Rennó. É através desse incômodo entre o perfume de humanidade e a aparência de lixo que se desprendem dessas fotos sem circulação que o performativo ganha uma particularidade: a prova da existência que a foto que vale tem é trocada pela aura que essas fotos que nada valem despertam

no

seu

espectador.

Na

fotografia-

documento, oficial, valorada, o fato é absorvido pela razão que a imagem dá ao olho. O que aconteceu se apresenta. Nestas imagens refugadas, a distância de possíveis fatos impede que essa razão funcione, antes, as emanações do fato podem mais facilmente rasurar a completa coincidência entre prova e fato: nesse corte, a imaginação e a leitura estão em jogo livremente. Não deixemos longe de nossa vista que esse jogo é dado ao espectador dos trabalhos de Rennó na demanda de uma leitura imaginante dos textos que evocam imagens fo-

Quando Gilles Deleuze e Félix Guattari se propõem a compreender a característica da novela, num capítulo de Mil platôs, fazem isso ao especular a ressonância do fato acontecido na transformação do personagem (que é extensivo ao leitor). Lembremos que não é só ao gênero novela que os autores se referem, mas às significações do termo francês “nouvelle”, que se abre ao sentido, podendo ser tanto notícia quanto novidade, como nos informam os tradutores da obra para a língua portuguesa. Detendo-nos no primeiro significado, a distância entre esse estudo e o trabalho com o fato e a notícia que norteiam grande parte do Arquivo universal, de Rosângela Rennó, diminui. Não é por acaso que ela parte das notícias — aquilo que acontece por excelência — que se referem à presença da imagem nessa narrativa que o leitor construirá exatamente pela subtração da imagem. Também é através de uma subtração que a novela de Henry James é entendida por Deleuze e Guattari. Para estes, James teria encontrado não a maneira de dar ao seu leitor a descoberta de um fundamento da história, o que os autores entendem como o segredo da novela, mas a “forma do segredo”. Remetendo-nos a mais famosa da novelas de James, A fera na selva, compreenderemos que é o fato que se esfiapa na tensão entre as linhas de fuga dos personagens. Como podemos


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lembrar, os dois personagens se debatem entre as ema-

que também chamam de linha de fuga, e não é para

nações de um fato que os liga, mas que nunca ficará

nossa compreensão nem um pouco estranho que eles

claro (muito menos para o leitor), e que se imiscui na

recorram ao efeito da visão, para determinar a

vida das duas figuras até o fim. “O que aconteceu” é um

“desterritorialização absoluta”, encerra uma vertigem

fantasma plasmado nos discursos dos personagens.

da experiência, o que acontece quando a personagem

Na discussão de Deleuze e Guattari, as linhas de

de Henry James sabe que

vida estão entre as linhas da escrita. Portanto, falando destas, não se estará nunca perdendo de vista aquelas. Ao se deter sobre o fato, a primeira linha de vida ativada é a que ambos chamam de linha de segmentariedade

dura ou molar. Quando esse fato começa a deformar a distância entre fato que se passou e a experiência do presente, ali onde se dá “(...) um presente cuja própria forma é de um algo que aconteceu, já passado.” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, 68), aparece a linha

de segmentação maleável ou molecular. Ao fazer dialogar o emaranhado de tempos e linhas conceituado pelos autores de Mil platôs com a obra de Rennó, parece

Entretanto tudo mudou. Ela alcançou como que uma linha nova, uma terceira, uma espécie de linha

de fuga, igualmente real, mesmo que ela se faça no mesmo lugar: linha que não mais admite qualquer segmento, e que é, antes, como que a explosão das duas séries segmentares (DELEUZE e GUATTARI, 1996, 69).

ser compreensível que o espectador perca, diante de um fato fotográfico fora de seu eixo temporal, fora de contexto, refugado ou danificado, o campo seguro de perspectivas e que, logo em seguida, precise assumir uma plataforma segura: primeiramente, com a construção de um campo de sentidos que são mais dele do que da imagem e, depois, ao fazer com que esses sentidos sejam o pavimento da saída de seu estado de vertigem. A terceira linha que Deleuze e Guattari descrevem, a

O que mais tarde será dito pelos autores de Mil

platôs se fará no sentido de compreender que as três linhas não cessarão de se misturar (ficção e vida não são territórios tão marcadamente limítrofes agora), e que o

que acontece se torna algo cortado, fissurado, rompido. Diante disso, nós é que nos tornamos estrangeiros. Di-


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ante desses acontecidos irrecuperáveis se produzirão os

vro, girando a chave da porta que separa ficção e vida,

deslocamentos de “viagens imóveis”.

que tanto o autor e o leitor fecham e abrem a qualquer

O que tento esboçar aqui deverá me permitir pensar a literatura, que é também o foco desse estudo, a partir do que a questão da fotografia na obra de Rosângela Rennó nos coloca sobre a contemporaneidade, a razão (que a fotografia reforça inescapavelmente) e a leitura de uma ficção. Adiantei, na citação do par “singular e anônimo”, o autor que aproximei às questões de Rennó. Nesse momento, apenas indico algumas

hora. As falas em primeira pessoa que atualmente Silviano profere, cujo registro mais conhecido é o “Epílogo em 1ª. pessoa”, tendem a transformar em afirmação a pergunta, um tanto retórica, que ele se faz no citado texto: “Os relatos da (minha) experiência de vida não se dariam numa man’s land chamada literatura, onde montei e toco a fábrica de manequins?” (SANTIAGO, 2005, 246).

das formulações que desenvolverei em outra oportuni-

Iniciei dizendo como Rosângela Rennó encontrava

dade. A específica idéia da performance na obra de

o modo de construir uma obra crítica na/da contempo-

Rennó, que apresentei brevemente aqui, permite refle-

raneidade: mostrando que a contemporaneidade não

tir sobre os deslocamentos do que hoje se denomina

dá acesso a tudo que poderá conviver nesse tempo, a

autoficção que, sobretudo, visa amalgamar criticamente

tudo que quer ser contemporâneo. Sua obra é um con-

o intercâmbio nem sempre profícuo, nem sempre insti-

traponto pulsional à força que desloca para o limbo o

gante, nem sempre simples entre autor, narrador, obra

seu excedente. Silviano, por sua vez, retornou a Gracili-

e pessoa. A ordem do dia requer o autor-pessoa res-

ano, mas retornou de modo ficcional, ao inventar Graci-

pondendo sobre o seu texto, ao mesmo tempo em que

liano, para vasculhar a contemporaneidade dos discur-

quer o texto ratificando a voz do autor. A atitude de

sos à época de Em liberdade. Mas seria pouco apenas

Silviano Santiago, principalmente nas suas mais recen-

considerarmos a experiência dessa obra e esquecermos

tes falas e entrevistas, tem embaralhado cada vez mais

aquilo que gostaria de chamar de uma literatura feita

os limites entre autoria e narração, fato, versão e ficção.

de documentos empoeirados e soterrados, retratos an-

A fotografia pessoal de O falso mentiroso só nos apro-

tigos, velhas fotografias guardadas e esquecidas, de

xima ainda mais do modo como sua escrita nos deman-

narrativas como De cócoras e Uma história de família.

da uma leitura singular da produção de Silviano. É com

Ao abrir o álbum envelhecido e seccionado da memória,

a prova de si, a sua imagem de criança, que a ficcionalização das memórias pode nos fazer sair e entrar no li-


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o narrador de Uma história de família pode falar ao seu “refugado” tio Mário:

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rando deslocamentos, se autoficionalizando, para libertar a leitura de suas obras do registro da ampla e irrestrita coincidência entre o que aconteceu e suas provas. Ou talvez eles estejam sugerindo que a contemporanei-

A vergonha passa a ser lembrança, pura e incorpórea, quase inumana, pois nem um retrato de você, tio Mário, chegaram a tirar, nem um só retrato seu ficou como lembrança para que eu pudesse contemplá-lo agora en-

dade apara as arestas entre tempos plurais. Essas arestas poderiam funcionar como porosidades ativantes das diferenças. A própria possibilidade das diferenças. Lendo Rosângela Rennó e sendo o espectador de Silviano Santiago, imagino a minha ficção: Eu não sou o contem-

porâneo de ninguém. E esta é a minha relação em diferença com vocês.

quanto converso com você. O seu

A escolha pela ficção está não só no flagrante de-

corpo fica apagado, esquecido e

samparo que Rennó provoca em suas fotografias ex-

massacrado debaixo da terra pela

temporâneas, ela está também na crescente profissão

lápide de mármore e protegido

de fé do artista da ficção, que Silviano tem feito em su-

dos olhares assassinos pelos qua-

as recentes aparições, pela elaboração do imaginário

tro muros caiados de branco dia

em detrimento do realismo mais real que o real: aquele

após dia sendo coloridos hora

a que todo o tempo devemos provar com documentos.

após hora de vermelho pela poei-

Porém, a questão que também os que agora se detêm

ra soprada pelo vento da manhã

sobre os efeitos da leitura na contemporaneidade de-

(SANTIAGO, 2000, 9).

vem se fazer é: o que se pode registrar (documentar) e o que se pode ficcionalizar e imaginar? Quem pode escolher esses destinos? Qual dos destinos podemos ou

Se tanto Rosângela Rennó quanto Silviano Santi-

devemos tomar? Que posição nós, contemporâneos, te-

ago se debruçam sobre a memória, só o podem fazer

remos de tomar, se tivermos de tomar alguma posição?

pela via da crítica à verdade do real, à razão das pro-

Questão ética que talvez sempre divida a razão em dois.

vas e dos arquivos, inventando vidas esquecidas, ope-


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SANTIAGO, Silviano. De cócoras. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. ______. Epílogo em 1ª. pessoa: eu & as galinhas d’angola. Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. BARTHES, Roland. Le degré zéro de l’écriture. Paris: Éditions du Seuil, 1972. BORGES, Jorge Luís. A biblioteca de Babel. Ficções. São Paulo: Abril Cultural, 1972. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capita-

lismo e esquizofrenia. vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. GLUSBERG, J. A arte da performance. Trad. Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 1987. OLIVEROS, Ricardo. Rosângela Rennó reúne 42 fotógrafos para "última foto". Disponível em: http:// photos.uol.com.br/materia.asp?id_materia=4323. Acesso: 12/05/07. RENNÓ, Rosângela. Rosângela Rennó: o arquivo uni-

versal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ______. Uma história de família. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ______. Singular e anônimo. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1984. Redação do UOL. http://diversao.uol.com.br/arte/ ultnot/2006/10/03/ult988u750.jhtm acesso: 12/05/07.


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28 por Marcelo Santos (UCB/FCRB)

H

á algum tempo apresentei uma primeira versão deste trabalho, detendo-me na aproximação, via discussão do ficcional, entre literatura

e fotografia. No presente texto, tento avançar algumas questões impostas pelos rumos que a minha pesquisa vem tomando com relação à obra da artista plástica Rosângela Rennó, que é um dos objetos de meu estudo. De início, reproduzirei alguns passos dados até aqui, somados a alguns acréscimos, e, em seguida, tratarei dos desenvolvimentos que julgo representarem uma nova investida no assunto. Os mais recentes trabalhos de Rosângela Rennó

A RAZÃO FOTOGRÁFICA (II) MARGEM DO TEMPO

chamam-se “Frutos estranhos” e “A última foto”. Em


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exposições realizadas concomitantemente (“Frutos”

máquinas que as realizaram. Anunciando a morte da

ficou estabelecida na Galeria Artur Fidalgo, em Copa-

máquina ao lado da imagem por ela gerada, Rennó

cabana, no período de 17 de outubro a 4 de novembro

trabalhou aqui num tipo de limite da técnica: a foto

de 2006, e “A última foto” foi exposta na Galeria Ver-

remete, numa linha dupla, não somente ao que lhe é

melho, em São Paulo, de 4 de outubro a 4 de novem-

referencial e coincidente — a imagem do ponto turís-

bro; mas recentemente, no mês de setembro em 2007,

tico —, mas faz com que o espectador dirija seu olhar

ocupou uma das salas de exposição da Caixa Cultural

para o mesmo mecanismo que uma vez última foi ca-

do centro do Rio de Janeiro), essas duas obras de

paz de estar entre o olho e o objeto: a máquina. Re-

Rennó travam diálogo por discutirem, cada uma a seu

força ainda essa finitude o lacre de tinta nas lentes

modo, a convergência entre tempo, técnica e crítica no

das câmeras.

horizonte da arte contemporânea. Descrevo: em “A última foto”, Rennó pôs máquinas fotográficas de sua coleção à disposição de alguns fotógrafos (Thiago Barros, Milton Guran, Luiz Garrido entre outros) para que eles fizessem imagens do Cristo Redentor. Em recentíssima participação no seminário Brasil, Brasis, na ABL (setembro de 2007), Rosângela Rennó reforçou o caráter de homenagem que o ritual de escolher a máquina com que os fotógrafos realizariam as fotografias consagra, fazendo-o coincidente com a homenagem feita no nível da técnica: homenagem à fotografia analógica diante da disseminação do procedimento digital. Depois de produzida a fotografia, a máquina tem como destino anunciado a destruição. Portanto, esta foto é o seu último suspiro. Numa espécie de narrativa ou história de um ato definitivo, as “últimas fotos” foram exibidas na galeria e, ao lado de cada uma delas, as

Com “Frutos estranhos”, Rosângela Rennó trabalhou também com o limite, mas em outros termos: digitalizando fotografias de movimentos, a artista expõe, utilizando mini-DVDs, fotografias ampliadas pelo som e pela animação. Destinada ao espectador que se deixa ficar na observação do movimento fixo, a oscilação realizada nessas imagens, pela técnica do

looping, o surpreende e assusta em algum momento perdido da observação estática. Já vai se tornando evidente que, em tais fotografias, Rennó procura trabalhar o limite em mais de um nível. Sim, estamos num momento de convivência entre as “últimas fotos” e esses “frutos estranhos”, produtos híbridos que tendem a ser recobertos, quando não encobertos, de tecnologia. Sim, também as imagens agora podem passar por outro tipo de ampliação que não se dá apenas como trabalho na imagem, mas trabalho de


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imagem: com o som e a animação, a imagem de agora

mortas em que repousam objetos dissecados, estudos

é híbrida. Uma transimagem assim como nossos estra-

do tempo nos objetos, resgatando a antiga relação en-

nhos frutos de hoje são transgênicos. No projeto de

tre a fotografia e a pintura das naturezas-mortas, assim

Rennó, essa concomitância se dá inclusive no âmbito

como a entende Georges Didi-Huberman: “A natureza

do circuito cultural: a apresentação dos dois limites da

morta nos olha de seu silêncio de vida, de sua espécie

produção de imagem se realiza num mesmo tempo,

de sobrevivência (...) esta estranheza do tempo não se-

na contemporaneidade absoluta. Justamente, porque

ria nunca possível sem a encenação de uma estranheza

o trabalho de Rosângela Rennó vai atravessar e vazar

do lugar” (DIDI-HUBERMAN, 2001, p. 87). Para ver

o próprio sentido da contemporaneidade. O sentido

“Menos-valia”, é preciso descer a uma espécie de cova

do arquivo, que é a pulsão que move a diversidade da

ainda aberta. A imagem que se vê é evocativa, pois pe-

coleção de Rennó, está vinculado àquilo que (lhe) es-

de à imaginação que adivinhe o que esses suportes

capa. Não ao que se recusa, mas ao que é recusado. É

abrigaram um dia. Além de seus limites presentes. E

exatamente o escape que perfurará toda a noção de

mesmo numa ausência latente.

atualidade ou antigüidade do tempo.

Mas ainda há outra origem para a planificação

O problema da contemporaneidade vem mar-

de “Menos-valia”: os objetos expostos foram compra-

cando cada vez mais o trabalho de Rennó. Ao expor

dos pela artista no mercado de pulgas da Praça XV, no

no MAM do Rio de Janeiro a obra “Menos-valia”, é ele

centro do Rio de Janeiro, onde milhares de objetos são

que move a artista colecionadora. Presente na coletiva

expostos no asfalto para possíveis compradores. Ali, o

“Jogos da memória”, realizada em 2005, “Menos-

lixo da indústria espera para uma nova (e talvez última)

valia” retoma os dispositivos que cercam a fotografia,

chance de circulação. Na aquisição dos objetos para

como rolos de negativo, álbuns de família etc., apre-

“Menos-valia”, à medida que Rennó os negocia, cada

sentados num conjunto limitado (sua margem) pelo

um deles vai sendo seccionado, inutilizado definitiva-

enorme retângulo no chão do museu, o que parece

mente, rompendo-se a relação entre uso e valor.

oferecer ao seu espectador as formas de um grande quadro horizontal, à moda das action paintings de Jackson Pollock, uma abertura para onde se debruça o olhar da memória. Mas também evoca as naturezas-

Desse modo, “Menos-valia” é exemplar, mas não exemplo único, do sentido da performance na obra de Rosângela Rennó: há uma narrativa construída em tor-


33

34

no de suas obras, mas que se apresenta como fantas-

Não nos esqueçamos que a exposição “A última foto”

magoria, indicando a crise entre imagem e suporte,

é coletiva, o que significa dizer multiautoral, repre-

presença e ausência. É claro que o diálogo perene com

sentando, metonimicamente, a disseminação da au-

a arte da performance não nos afastaria da condição

toria dos turistas e visitantes que diariamente fazem

crítica desta na história da arte. É através de seus ar-

a sua imagem do Cristo. Pelos meandros da constru-

quivos de imagem, fotografias e vídeos, que a perfor-

ção da contemporaneidade, a reprodutibilidade téc-

mance se abriga no tempo e na história cultural. É

nica é posta no centro das discussões, pois a especia-

mesmo com essa visada crítica que Rennó pode ativar

lização dos mecanismos de cobrança sobre direitos

uma narrativa de artista com a ajuda de materiais, co-

deve alcançar até as mais longínquas distâncias a que

mo o faz com os álbuns, os rolos de filmes. E com ima-

uma reprodução possa ir. Mas a ficção que Rennó en-

gens da perda. Os objetos desvalorados que Rennó

cena, como no nosso exemplo da artista que se deslo-

convida a entrar no museu e nas galerias de arte so-

ca até o mercado de pulgas e arma a narrativa da per-

frem uma espécie de fetichização estética, que em ab-

da de valores dos objetos, é também a narrativa da

soluto coincide com a fetichização do objeto de arte,

ruptura da valoração mercadológica.

ao entrar em curto-circuito com a fetichização vinda tanto do mercado, mesmo o mercado de arte, quanto do afeto do antigo proprietário.

Na animação quase imperceptível das imagens de “Frutos estranhos”, Rennó expõe movimentos que, de tão próximos à estática da fotografia, fazem

Quando a artista declara ter escolhido para “A

o espectador duvidar do que se passou e se algo se

última foto” o Cristo Redentor, ela o faz por ele ser

passou. Instaurando a quebra do estático não pelo

uma imagem pública, mas também, sobretudo, pelo

registro de uma velocidade contemporânea, mas por

questionamento dos herdeiros do escultor Paul Lan-

uma velocidade estranha, as imagens sem dono que-

dowski, artista que realizou a maquete final do Cristo

rem tomar o lugar, pelo susto, que a contemporanei-

Redentor, que têm procurado cobrar direitos autorais

dade lhes roubou. O que se vai apresentando é que a

pela reprodução de caráter comercial da obra. Vislum-

contemporaneidade não é tão a nossa pensada convi-

brando a anulação do ato autoral do fotógrafo, Rennó

vência de tudo, mas a escolha do que vai conviver; e

tem, com a faceta da apropriação, retomado a própria

esse “lixo” que Rosângela Rennó devolve ao tempo

questão da autoridade da imagem e sobre a imagem.

da contemporaneidade, no contraste com o tempo


35

36

esquecido, parece dizer que essa nossa conhecida con-

2005, p. 38). Não seria redundante lembrar o aspecto

temporaneidade, para existir, descarta, escolhe, julga,

fantasmagórico desses objetos cheios de afetos que re-

expulsa, destrói, porque ela é também uma produção

tornam para o museu e galerias pelas mãos de Rennó.

em série. E, como afirma Zygmunt Bauman, “O refugo é o segredo sombrio e vergonhoso de toda produ-

A proposta de Rennó nos leva para a discussão

ção” (BAUMAN, 2005, p. 38). Não seria redundante

de Didi-Huberman em torno da admissão da imagem-

lembrar o aspecto fantasmagórico desses objetos chei-

arquivo como imagem sem imaginação. Criticando as

os de afetos que retornam para o museu e galerias pe-

formulações que estreitam o olhar sobre a imagem-

las mãos de Rennó.

arquivo – no contexto da apresentação das fotografias de um campo de concentração nazista –, as que levam

Na animação quase imperceptível das imagens

tais imagens ou à pura tautologia da presença do que

de “Frutos estranhos”, Rennó expõe movimentos que,

se vê, o que ele chama de “o nada da imagem”, ou à

de tão próximos à estática da fotografia, fazem o es-

plenitude das interpretações, “o tudo da imagem”, Didi

pectador duvidar do que se passou e se algo se passou.

-Huberman (2003) discute a tarefa de encarar a ima-

Instaurando a quebra do estático não pelo registro de

gem-arquivo como não sendo nem o nada nem o tudo.

uma velocidade contemporânea, mas por uma veloci-

Com seu auxílio, podemos pensar que justamente ela

dade estranha, as imagens sem dono querem tomar o

pode flutuar no espaço entre o limite da imagem e o

lugar, pelo susto, que a contemporaneidade lhes rou-

sem limite da imaginação, adquirindo um trânsito in-

bou. O que se vai apresentando é que a contempora-

terpretativo que dá maior amplitude à experiência visu-

neidade não é tão a nossa pensada convivência de tu-

al.

do, mas a escolha do que vai conviver; e esse “lixo” que Rosângela Rennó devolve ao tempo da contempo-

A alteração (seja ranhura, oclusão ou elipse) que

raneidade, no contraste com o tempo esquecido, pare-

Rosângela Rennó faz nesses arquivos leva-os a um mais

ce dizer que essa nossa conhecida contemporaneidade,

-além da representação, reposicionando-a não no obje-

para existir, descarta, escolhe, julga, expulsa, destrói,

to (num ponto mais exterior), mas no observador. O

porque ela é também uma produção em série. E, como

que esse deslocamento realiza deve sempre fazer con-

afirma Zygmunt Bauman, “O refugo é o segredo som-

jugar a estética e a ética, naquilo que Didi-Huberman

brio e vergonhoso de toda produção” (BAUMAN,

entende por “questão de escolha”: “É então uma ques-


37

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tão de escolha: nós temos, diante de cada imagem, de

Na ausência da satisfação, presente na obra de

escolher como queremos fazê-la participar, ou não,

Rennó (com seus espelhos cegos, seus textos referen-

dos nossos jogos de conhecimento e de ação” (DIDI-

tes a imagens ausentes, seus objetos-margens da ima-

HUBERMAN, 2003, p.223).

gem), o desejo despertado pelos objetos é sempre

Mas devemos ainda lembrar que esta escolha não deve mais se basear apenas na maneira pela qual objeto e imagem coincidem. Nos trabalhos de Rennó, haveria sempre um intervalo, uma margem que insatisfaz o motor da fetichização da imagem-objeto, se lembrarmos as formulações de Jacques Lacan sobre o tema. Segundo Lacan (1995), a busca do objeto perdido da infância faz com que o sujeito cumpra dois caminhos como busca para reencontrá-lo na dialética sujeito-objeto. Num, ele cumpre o trajeto do princípio do prazer ao buscar o “objeto alucinado”, ou seja, irrealista. Noutro, dirigido pelo princípio de realidade, o

desviado por conta da decepção sofrida por aquele que procura apenas consumir a memória-arquivo do outro em completa exterioridade. Diante dessas imagens anônimas ou contra-imagens, vê-se não o outro, não o si mesmo, mas um si como outro, uma consciência de si, da memória de si, de seus próprios arquivos sem suporte, num segundo nível de rememoração que fulmina a cronologia da história pessoal. O que aparece é a vertigem de uma memória mais-presente que nunca se julgou que pudesse ser atualizada simultaneamente nas dimensões do particular, do universal e do comum.

sujeito encontra sua imagem, um objeto diferente do

Didi-Huberman, ao comentar Lacan, para fo-

desejado, mas que faz acontecer o “estádio de espe-

mentar a idéia de que a escolha de um fotograma po-

lho”, como esclarece Lacan: “O que é o estádio do es-

de favorecer a fetichização da imagem, promovendo

pelho? É o momento em que a criança reconhece a sua

o apagamento da dimensão histórica, impele-nos a

própria imagem” (LACAN, 1995, p. 15). O crucial é que

pensar se não haveria também uma fetichização da

Lacan não faz desligar o caminho da alucinação do ca-

própria dimensão histórica. Assim, estaríamos mais

minho do reconhecimento. As duas vias se entrelaçam

perto de Walter Benjamin e de sua interpretação na

a todo momento, preparando o desvio, em qualquer

margem do marxismo, quando o filósofo se depara

instante, na busca de uma satisfação que se chamará

com a escolha objetal feita por seus arcanos Proust e

repouso (morte) ou na que responderá pelo nome de

Baudelaire, e pela vanguarda que ele considera ser o

reconhecimento (vida) nos trâmites das pulsões.


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“último instantâneo da inteligência”, o surrealismo.

Portanto, o que procuramos pensar é que a es-

Segundo Benjamin (1985), o olhar sobre os objetos an-

colha por um objeto, um objeto que se livra da circu-

tigos, sobre as fotografias em desuso, forneceu aos

lação e da utilidade imediata, de sua condição de mer-

surrealistas a virada do olhar histórico para o olhar po-

cadoria-fetiche, devemos esclarecer, pode, através do

lítico. Benjamin faz tal observação, não por acaso, num

mecanismo da fetichização estética, desfazer ou re-

momento em que a vanguarda francesa está mais pró-

configurar a dimensão histórica como um dado alie-

xima do comunismo, o final dos anos 1920. Quanto a

nante e despertar algo de desorganizador na intangi-

Proust, lembremos como o fetiche pelo objeto-livro,

bilidade que esse objeto tem agora com a contempo-

substituto completo da leitura, em algum momento,

raneidade. É a perversão (no sentido da perversio lati-

faz o narrador abolir a prisão das letras e do significa-

na, do deslocamento), pelo refuncionamento estético

do, ao imaginar e fabricar uma narrativa que o volume

do antiquado, do “em desuso”, que faz romper o

conteria, estabelecendo uma liberdade de leitura cujo

acordo tácito (e limitador) do tempo, através de um

ponto de partida é exatamente a imago do objeto-

deslocamento espacial: o livro dentro do livro

fetiche livro:

(Proust), o objeto mundano pervertido dentro do museu (Duchamp), o objeto anônimo – a fotografia – e esquecido dentro da memória presente (Rennó). Minha mãe sentou-se junto da minha cama; pegara François le

champi, cuja capa avermelhada e título incompreensível lhe davam, para mim, uma personalidade distinta e uma atração misteriosa (...) Isto já me predispunha a imaginar, em François le champi, algo de

indefinível

e

(PROUST, 1992, p. 53).

delicioso

Ao empreender a estética de toda a modernidade, Immanuel Kant começou a descarnar as noções que dividiram o homem em exterior em interior: o espaço e o tempo. Na sua estética transcendental, o filósofo investigou as formas puras de intuição sensível que deflagram essas duas noções, a fim de mapear como o homem percebia a representação de um local

a si e um tempo a si contemporâneos. Nessa abertura, Kant deu à arte moderna a chance de novamente desfazer os enganos da imagem que tornam naturalizada


41

a determinação do tempo, diríamos mesmo sua relação fetichista com o tempo. Se arriscamos essa idéia, é por entendermos que Lacan mesmo nunca esteve tão próximo de Kant quanto na sua teoria da falta do objeto e do fetichismo, ao submeter criteriosamente as

42

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 170 p.

relações com o objeto aos mecanismos da construção

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica,

de subjetividade. Foi com a abertura kantiana que Thi-

arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São

erry de Duve, em seu seminal “Kant depois de Du-

Paulo: Brasiliense, 1986. 3 v. V. 1. 253 p.

champ”, tornou Kant o mais contemporâneo, fazendoo ultrapassar o alcance de sua própria modernidade, reativando-o no centro das discussões da arte vanguardista dos anos 1960 e 1970. Com a arte mais insti-

DIDI-HUBERMAN, Georges. Génie du non-lieu: air, poussière, empreinte, hantise. Paris: Éditions de Minuit, 2001. 160 p.

gante de hoje, cujo exemplo pretendemos ver nas

______. Images malgré tout. Paris: Éditions de Minuit,

obras de Rosângela Rennó, o nosso próprio tempo é

2003. 236 p.

surpreendido como espaço em que nem tudo pode habitar, onde ninguém é livre de sua condição de contemporâneo. Com a transformação do objeto e da fotografia em arquivos universais, Rennó põe margens

DUVE, Thierry de. Kant depois de Duchamp. Revista

do Mestrado de Arte – EBA, UFRJ, Rio de Janeiro, p. 125-152, 2º. semestre de 1998.

no tempo da representação, abre as portas para seus

GARAT, Anne-Marie. Introduction. In: La nature mor-

fantasmas, transforma seus espaços em espaços de la-

te. Paris: Nathan/Her, 2000. p. 5-9.

cuna do tempo. Nesse vão, devolve a nós a escolha de nosso próprio tempo.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Tradução de Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 1987. 177 p. KANT, Immanuel. Os pensadores: Crítica da razão pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 511 p.


43

LACAN, Jacques. O seminário: a relação do objeto. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. Livro 4. 456 p. OLIVEROS, Roberto. Rosângela Rennó reúne 42 fotógrafos para "última foto". Disponível em: http:// photos.uol.com.br/materia.asp?id_materia=4323. Acesso: 12/05/07. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. 7 v. V. 1. 376 p. RENNÓ, Rosângela. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 392 p. 320 il. color. VELASCO, Suzana. Redentor analógico. In: O globo, Rio de Janeiro, 27 ago. 2007. Segundo caderno, p. 1.


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