CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO JÚLIA SOLÉR MARCONI
EMBARAÇO A COLETIVIDADE FEMININA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS
TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO APRESENTADO AO CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2020
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JÚLIA SOLÉR MARCONI
EMBARAÇO A COLETIVIDADE FEMININA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS
Trabalho Final de Graduação em Arquitetura
e
Urbanismo
apresentado ao Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Orientador: Prof. Marcos Virgílio da Silva São Paulo, 19 de junho de 2020.
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BANCA EXAMINADORA
________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Virgílio da Silva Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (FEBASP)
________________________________________________ Prof. Debora Sanches Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (FEBASP)
________________________________________________ Prof. Dra. Luciana Fukimoto Itikawa Universidade de São Paulo (USP)
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Dedico este trabalho a todas as mulheres que permanecem sem pestanejar no fronte da luta diĂĄria pelo direito de ser.
AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente às mulheres organizadores do coletivo FemiSistahs – Bianca, Gabis, Isabella Rocha, Mari Mata e Thaís Pantaleão. Pela disposição de passar uma tarde inteira conversando comigo e expondo suas vivências de forma íntima e verdadeira. Essa colaboração foi essencial e sem elas eu não teria uma visão tão completa para desenvolver o trabalho. Agradeço a meus pais por tudo que fizeram por mim ao longo da vida e, neste caso em especial, por terem apoiado minha jornada acadêmica com tanto apreço. Agradeço também a minha irmã Camila, que me acolheu durante minhas ansiedades e preocupações durante todo o processo. Agradeço a Isabella Matulevicius Villanova, que me acompanhou durante minha graduação como parceira de trabalhos, de crises existenciais, de conversas longas em cafés e bares. Ao seu lado eu aprendi a batalhar diariamente pelas nossas conquistas feministas do cotidiano e do meio profissional, o que me fez enxergar a motivação para um trabalho como esse. Obrigada por enfrentar o mundo ao meu lado e pela nossa amizade.
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Agradeço ao meu professor orientador, Marcos Virgílio da Silva, pelos incentivos, conversas e atendimentos; pela compreensão do tema e por sua abertura e sinceridade em todos os momentos. Agradeço também ao Centro Universitário Belas Artes pelos ensinamentos e inspirações profissionais. Agradeço às mulheres da minha vida por serem verdadeiras inspirações de luta feminista, em especial Bárbara Werlang, Daniela Navarro, Giovanna Gobbetti, Julia Lacerda, Nicole Vigil e Viviane Kiyohara. Agradeço, por fim, a todas as mulheres que batalham diariamente por melhorias em suas vidas e nas vidas de suas companheiras; que não medem esforços de doar seu tempo individual a uma conquista coletiva; que conhecem e enfrentam dores de todas as esferas e permanecem monumentais, auxiliando umas às outras. Vocês não estão sozinhas. Seguimos juntas.
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em·ba·ra·ço 1 aquilo que atravanca o caminho ou impede o andamento; situação que
causa dificuldade; estorvo, obstáculo, torniquete, tortura, torva. 2 embaraçamento. 3 [pouco usado] gravidez. 4 [coloquial] período menstrual.
RESUMO A pesquisa busca relacionar o espaço público urbano com a atuação de movimentos feministas periféricos da zona leste de São Paulo, distantes das infraestruturas e, consequentemente, do direito à cidade. No prelúdio, são teoricamente analisadas as questões históricas, sociais, culturais e urbanas em que estão imersas essas mulheres. Em seguida, por meio de ferramentas como a fenomenologia, a memória social e a cartografia, mediante a visão identitária de um dos coletivos e a percepção empática, pretende-se compreender como o espaço público reflete a falta de qualidade de vida urbana das mulheres que residem na periferia. Por fim, ponderar soluções sociais e espaciais na esfera da arquitetura e do urbanismo. Palavras-chave: Gênero, Coletividade, Cartografia afetiva.
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ABSTRACT The research seeks to relate urban public space with the actions of peripheral feminist movements in the eastern part of SĂŁo Paulo, far from infrastructure and, consequently, the right to the city. In the prelude, the historical, social, cultural and urban issues in which these women are immersed are theoretically analyzed. Then, through tools such as phenomenology, social memory and cartography, through the identity vision of one of the collectives and empathic perception, it is intended to understand how the public space reflects the lack of quality of urban life of women living in the periphery. Finally, to consider social and spatial solutions in the sphere of architecture and urbanism. Keywords: Gender, Collectivity, Cartography.
Lista de Imagens Figura 1. Apresentação no Fecha com as Sistahs na Casa de cultura Vila Guilherme ................................................................................................................................................ 26 Figura 2. Manifestação de sufragistas .................................................................................... 31 Figura 3. Manifestação de Las Madres de la Plaza de Mayo. ..................................... 37 Figura 4. Cartaz do Movimento Feminino pela Anistia no Brasil, de 1975 ............ 41 Figura 5. Primeira Marcha das Margaridas, Brasília, 2000 ........................................... 44 Figura 6. Cena da peça “Essa Gente que Menstrua”, na Okupação Cultural Coragem .................................................................................................................................................. 51 Figura 7. Manifestantes em ato contra o “Vagão Rosa”, na capital paulista ..... 58 Figura 8. Sarau Pretas Peri ............................................................................................................ 63 Figura 9. Grafite “quem pariu a cidade?” ................................................................................. 73 Figura 10. Parada LGBT em São Paulo ................................................................................... 83 Figura 11. Oficinas territoriais para definição do Plano Diretor de Recife ............ 95 Figura 12. “Uma laje na favela, uma mulher negra” ......................................................... 105 Figura 13. Manifestação de mulheres .................................................................................. 112 Figura 14. Evento de Hip Hop no Buraco Quente, na Vila Formosa ......................... 125 Figura 15. Troca de olhar afetivo ................................................................................................140 Figura 16. Atividade de bateria durante um sarau ...........................................................143 15
Figura 17. Sarau Fecha com as Sistahs na Casa de Cultura Raul Seixas ........... 146 Figura 18. Evento de grafite organizado ................................................................................149 Figura 19. Biblioteca Cora Coralina em Guaianazes ...................................................... 154 Figura 20. Fecha com as Sistahs na Okupação Cultural Coragem ....................... 162 Figura 21. Fecha com as Sistahs na Casa de Cultura Raul Seixas .......................... 172 Figura 22. Casa de Cultura Raul Seixas ..................................................................................178 Figura 23. Rua João Batista Conti, ênfase para os comércios concebidos nas garagens ................................................................................................................................................182 Figura 24. Planta do Parque Raul Seixas .............................................................................. 184 Figura 25. Entrada do Parque Raul Seixas pela rua Sábbado D’Angelo ..............185
Lista de Quadros Quadro 1. Vertentes feministas, seus objetivos e pautas principais ........................115 Quadro 2. Coletivos feministas atuantes na zona leste de SĂŁo Paulo ....................136
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Lista de Mapas Mapa 1. Atuação dos coletivos feministas da zona leste de São Paulo (por apropriação física/sede) ................................................................................................................137 Mapa 2. Transporte público na cidade de São Paulo: Metrô e CPTM ......................165 Mapa 3. Equipamentos culturais na cidade de São Paulo ...........................................168 Mapa 4. Caminhos percorridos para o Parque Raul Seixas .........................................180
Lista de Abreviaturas e Siglas CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria CNDM – Conselho Nacional de Direitos da Mulher CNV – Comunicação Não Violenta COHAB – Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo CONPRESP - Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo CPSC – Coordenação do Programa de Soluções para Cidades CRM – Centro de Referência da mulher CVV – Centro de Valorização da Vida DEAM – Delegacias especializadas de atendimento à mulher NACTO – National Association of City Transportation Officials SEADE – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados SEPM – Secretaria Especial de Políticas para Mulheres SPM – Secretaria de Políticas para Mulheres
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SUMÁRIO 1. Introdução .......................................................................................................................................... 01 2. Objetivos e metodologia .............................................................................................................. 06 2.1 Da pesquisa teórica .................................................................................................... 08 2.2 Do recorte temporal e territorial ............................................................................ 10 2.3 Da cartografia e lugares .......................................................................................... 14 3. Ao passo delas ................................................................................................................................. 20 3.1 Uma história de luta .................................................................................................... 27 3.2 Corpo privado no espaço público ........................................................................ 50 3.3 Políticas públicas .......................................................................................................... 76 3.4 O desenrolar da reintegração feminista ........................................................... 88 4. Coletividade .................................................................................................................................... 106 4.1 Feminismo e suas vertentes ................................................................................. 108 4.2 À margem ...................................................................................................................... 121 4.3 Abordagem coletivista ............................................................................................ 132 5. Cartografia – mulher, protagonista .................................................................................... 156 5.1 Vivência das FemiSistahs ..................................................................................... 160 5.2 Cartografia afetiva .................................................................................................... 175 6. Considerações finais .................................................................................................................. 192 7. Bibliografia e referências ......................................................................................................... 198
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1. Introdução O prelúdio da pesquisa caracteriza-se pelo estudo de momentos históricos, evidenciando, em um longo período, a relação da mulher com o espaço público – especialmente o lugar que ocupa a mulher negra e periférica. Percebe-se, historicamente, como é presente a questão do público e privado e como são bem caracterizados. O público, representado pelo papel masculino, carrega em si uma entidade política, a lógica, a racionalidade, a ciência, a autoridade, a liberdade capitalista e a presença no espaço público. Enquanto o privado, representado por sua vez pelo papel feminino, define-se pela entidade familiar, o emocional, a irracionalidade, a natureza, a subordinação e é ausente no espaço público. Embasadas na lógica do patriarcado, as imposições de poder que preservam esses padrões são legitimadas pela Família, Estado, Escola e Igreja. Imposta, portanto, social e institucionalmente, essa lógica é traduzida para o desenho urbano de forma a reforçar as mulheres como produtoras passivas e vulneráveis do espaço urbano. Contra tal tendência se posicionam os movimentos feministas. O ato de se opor aos princípios de manter a vida feminina limitada ao conceito privado 2
ressalta a resistência das mulheres em ocupar o espaço público (ARAUJO, 2019) – ato carregado de simbolismo revolucionário. Articuladas em demandas em torno de pontos relevantes da gestão pública (HARKOT, 2015) e a favor de seu direito à cidade, as mulheres adotam estratégias de enfrentamento para que possam ocupar a cidade e a vivenciar em sua totalidade. A pesquisa segue então explorando a luta do movimento feminista contra tais desigualdades, além de refletir em como os coletivos ocupam o espaço público, ressignificando o meio urbano em que coexistem. Por serem enfrentadas questões sociais, culturais e urbanas similares nas periferias, os grupos passam a abordar suas ações de forma mais coletivista e inclusiva. Percebeu-se também, no momento de definição do recorte, que os movimentos feministas estão bastante presentes nas margens do território urbano – distante das infraestruturas e, consequentemente, do direito à cidade (ITIKAWA, 2016), o que por si só já é uma resposta pública a essa carência, na medida em que os coletivos
buscam
governamental.
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se
manter
independentemente
de
uma
relação
Vale ressaltar que este trabalho é experimental e busca compreender como o espaço público é percebido a partir de uma visão identitária de uma população já existente. Assim, a partir desse entendimento, visa trabalhar com ferramentas como a fenomenologia, a memória social e a cartografia para compreender como o espaço público reflete a falta de qualidade de vida urbana das mulheres que residem na periferia e, finalmente, ponderar soluções sociais e espaciais na esfera da arquitetura e do urbanismo. O período de finalização deste trabalho coincidiu com a pandemia global de COVID-19. Por consequência, foram revistas algumas abordagens que inicialmente seriam propostas, como as visitas a campo e acompanhar pessoalmente um evento do coletivo entrevistado. Apesar disso, entre tantas leituras, registros em rede social e, o mais importante, a colaboração das mulheres entrevistadas, foi possível lidar com este impedimento de forma bastante satisfatória, buscando somar tanto com a pesquisa acadêmica quanto a valorizar a atuação dos coletivos feministas.
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2. Objetivos e metodologia 2.1 Da pesquisa teórica A realização deste trabalho embasa-se principalmente no método qualitativo de pesquisa. Como recurso analítico, serão estudados os marcos legais, institucionais, sociais e culturais das mulheres no meio urbano. Cabe ressaltar que dados de pesquisas nacionais e locais/regionais foram adotados como informações complementares. Busca-se, a partir daí, ponderar sobre os rumos e conhecimentos do grupo em estudo (aprofundado no item 2.2 Do
recorte temporal e territorial desta pesquisa), uma vez que refletem em seu ativismo e vivência urbana, interligadas com sua identidade. Partindo de uma compreensão teórica da posição social, política e cultural da mulher residente à margem da cidade, distantes das infraestruturas urbanas e, consequentemente, do direito à cidade. Assim, ao estudar a identidade feminina periférica, reflete-se acima de seu ativismo e a prática e como se mantém tão presentes no meio urbano, apesar de todos os obstáculos socioculturais e urbanos enfrentados.
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Embasado no doutorado de Medeiros (2017) em que são categorizados o Feminismo Popular e o Feminismo Periférico presentes no movimento feminista na zona leste de São Paulo, serão analisadas as principais reivindicações e contestações destas organizações. Ainda, baseia-se nos livros O Progresso das
Mulheres no Brasil (2006) e O Progresso das Mulheres no Brasil 2003-2010 (2011), em que são reunidos diversos artigos a respeito da situação das mulheres no Brasil, redigidos por pesquisadoras mulheres. Em suma, fundamentada na metodologia de grupos focais – técnica que envolve a observação participante e entrevistas, utilizada como recurso para compreender o processo de construção das percepções, atitudes e representações sociais de grupos humanos – será produzida pela autora uma entrevista com as integrantes e participantes do coletivo FemiSistahs, de Itaquera. Em sua maioria mães, as organizadoras dos eventos realizados pelo coletivo buscam gerar um sentimento de pertencimento e integração em seu entorno. As respostas obtidas pela atividade realizada com as integrantes do coletivo serão avaliadas de acordo com teorias de Tuan (2013), em que o conceito depende da experiência; Silva, Nór e Santos (2019) em que considera9
se a corpografia e, por fim, Silveira, Freitas e Mattos (2019), em que é discutida a fenomenologia e o psicológico humano imersos no espaço urbano para a produção da cartografia afetiva.
2.2 Do recorte temporal e territorial Como recorte temporal, o enfoque será o tempo presente. Porém, a fim de compreender o contexto do desenvolvimento da posição social feminina foi analisado um período histórico em relação a origem da luta a favor da emancipação social – desde o século XVI, em que a Ciência buscou estruturar sistemas sociais baseados em ideais “universais”, os quais ressaltaram a exclusão feminina e minorias étnicas/raciais, até o momento presente. Esta pesquisa tem como recorte territorial o município de São Paulo, especificamente a zona leste da cidade. Relacionada com a rápida urbanização e explosão demográfica ocorrida na cidade na segunda metade do século XX, a capital
paulista
é
uma
das
mais
populosas
do
hemisfério
sul.
Consequentemente, a formação de seu território destaca as pobrezas, desigualdades e problemas sociais (SUMI, 2018). 10
A partir dessa análise e da compreensão de como o espaço urbano foi palco e fator estruturante desses movimentos, o recorte espacial da pesquisa foi definido na Zona Leste de São Paulo, onde se concentra o maior número de residentes na cidade de São Paulo e grande população à margem da sociedade. Segundo a pesquisa realizada pela SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados), em janeiro de 2020, a população da zona leste é de 4,2 milhões; sendo mais presente jovens e crianças. Ainda segundo esta pesquisa, a leste também possui menores níveis de escolarização básica e maior proporção de pessoas com fundamental incompleto. Nota-se então como estar na periferia, onde mais se concentram estas adversidades, significa estar espacialmente distante não apenas das infraestruturas, mas também do direito à cidade, como afirma Pitanguy, Barsted e Miranda (2006). No conjunto dessas dificuldades, destacam-se as desigualdades de gênero no campo dos direitos civis e políticos; da sexualidade e da reprodução; da redução da pobreza e do acesso ao trabalho e aos direitos previdenciários; da segurança das mulheres ameaçadas pela violência de gênero, entre outras questões, agravadas quando se introduz a dimensão étnica/racial (PITANGUY; BARSTED; MIRANDA, 2006, p.11).
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Nestas zonas periféricas se encontram barreiras de vivência urbana consideravelmente acentuadas – aonde está localizado o maior número de coletivos e organizações a favor do movimento feminista e de suas causas. Protagonizado em sua maioria por mulheres negras em situação social vulnerável, o movimento feminista periférico se orienta também para a luta pelos direitos sociais de um modo amplo, incluindo moradia, creche, postos de saúde e outras melhorias urbanas, sem necessariamente desenvolver uma ação específica pelos direitos das mulheres. Isto posto, a pesquisa voltou-se para coletivos e grupos cuja área de atuação fosse majoritariamente envolvida com o campo dos direitos das mulheres. São eles descritos por Pitanguy (2011): As mulheres têm advogado por seus direitos no âmbito do trabalho, da família, da garantia de seus direitos sociais, pela titularidade da terra, participação política, educação não sexista. A agenda feminista, transversalizada por raça e etnia, é complexa e os objetivos de sua ação política encontram graus variados de dificuldade para tecer alianças estratégicas com outros setores e mesmo no interior do movimento de mulheres. (...) Desse conjunto de ações, duas agendas se distinguem na trajetória da luta pelos direitos humanos das mulheres: a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, e o enfrentamento da violência. Essas agendas são constitutivas da própria identidade feminista no sentido de afirmação de princípios e de criação de solidariedade política. (...) O campo dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos sempre foi, e continua sendo, uma arena
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controversa, onde protagonistas poderosos se opõem ao avanço e consolidação destes direitos. A questão do aborto constitui um ponto, ainda hoje, nevrálgico dessa agenda, enfrentando dificuldades, mesmo dentro do próprio feminismo, para o estabelecimento de consensos para ações de advocacy, que reforcem mutuamente, as estratégias de incidência e negociação dos movimentos de mulheres. A questão da violência contra a mulher, e sobretudo da violência doméstica não constitui um campo minado como o dos direitos sexuais e reprodutivos. A legitimidade social da luta contra a violência contra a mulher enfrenta menos obstáculos ao reconhecimento de sua legitimidade e, portanto, à ampliação do campo de aliados, permitindo o estabelecimento de um leque mais amplo de parcerias (PITANGUY, 2011, p.39).
Para a listagem de coletivos e mapeamento, foram utilizadas ferramentas de busca na internet e levantamento bibliográfico de pesquisas já realizadas, mais especificamente pelo autor Medeiros (2017) em sua tese de doutorado
Movimentos de Mulheres Periféricas na Zona Leste de São Paulo: ciclos políticos, redes discursivas e contrapúblicos.
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2.3 Da cartografia e lugares A cartografia é definida pela Associação Cartográfica Internacional como um conjunto de estudos e operações científicas, artísticas e técnicas baseado nos resultados de observações diretas ou de análise de documentação, com vistas à elaboração e preparação de cartas, planos e outras formas de expressão. Segundo Tuan (2013), através dos desenhos de mapas se conceituam relações humanas e espaciais. A habilidade espacial se transforma em conhecimento espacial quando podem ser intuídos os movimentos e as mudanças de localização. Andar é uma habilidade, mas, se eu puder me “ver” andando e se eu puder conservar essa imagem em minha mente que me permita analisar como me movo e que caminho estou seguindo, então eu também tenho conhecimento. Esse conhecimento pode ser transferido para outra pessoa mediante uma instrução explícita em palavras, em diagramas e, em geral, mostrando como o movimento complexo consiste em partes que podem ser analisadas ou imitadas (TUAN, 2013, p.89-90).
Ainda, de acordo com Tuan (2013), a habilidade espacial é o que podemos realizar com nosso corpo. Diferentes culturas refletem maneiras de interpretar o espaço, atribuindo valores às partes e variando em técnica de avaliação de tamanho e distância. Porém, existem certas semelhanças culturais comuns. A 14
principal está no fato de que o homem é a medida de todas as coisas. Partindo deste ideal, Tuan discorre: (...) os princípios fundamentais da organização espacial encontram-se em dois tipos de fato: a postura e a estrutura do corpo humano e as relações (quer próximas ou distantes) entre as pessoas. O homem, como resultado de sua experiência íntima com seu corpo e com outras pessoas, organiza o espaço a fins de conformá-lo a suas necessidades biológicas e relações sociais (TUAN, 2013, p.49).
As experiências íntimas, por sua vez, são difíceis de serem expressadas por conta de sua sensação e significância únicos para o indivíduo que as experimenta, mas é possível reconhecer símbolos culturais de intimidade amplamente reconhecidos pelas pessoas, os quais são diversamente abordados pela arte, poesia e prosa (TUAN, 2013). Já Silveira, Freitas e Mattos (2019) explicam o lugar como uma entidade de facilidade identitária, apoiando-se no sentimento de pertencimento encontrado pelo indivíduo. Dessa forma, o lugar é composto pelos limites físicos e geográficos juntamente com o psicológico humano.
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(...) o lugar diz muito sobre essência e os elementos que a compõem, como cores, texturas e formas que tem extrema importância na formação do lugar para o indivíduo. Os elementos físicos que impactam na percepção humana acabam por se comunicar de maneira afetiva e qualitativa com o indivíduo e o lugar (SILVEIRA; FREITAS; MATTOS, 2019, p.2).
O conceito que busca desvendar os fenômenos do ponto de vista da primeira pessoa, ou seja, daquilo que pode ser percebido, denomina-se fenomenologia. Através de estudos sistemáticos de figuras fenomenais, é pretendido compreender as estruturas da experiência e da intencionalidade humana (SILVEIRA; FREITAS; MATTOS, 2019). A cartografia trabalhada em uma base fenomenológica garante um olhar mais sensível do processo, buscando entender traços subjetivos e simbólicos do meio urbano. (...) tem-se como cartografia afetiva a reunião de entrevistas, depoimentos, desenhos e informações cedidas por pessoas inseridas no recorte estudado, em busca de informações que podem estar inseridas profundamente no ser e que só vem à tona a partir de um contato pessoal (SILVEIRA; FREITAS; MATTOS, 2019, p.5).
Cabe ao cartógrafo buscar pontes e ligações entre linguagens e expressões das contribuições, sejam elas por meio oral, escrita, informal ou formal. Os registros das pessoas englobadas no projeto cartográfico são investigados a partir das observações, interações e experiências do indivíduo, 16
sendo “usual propor aos moradores que desenhem trajetos cotidianos, representando suas principais características, edifícios, vegetação, baseandose em memórias existentes no seu consciente” (SILVEIRA; FREITAS; MATTOS, 2019, p.6), posto que o objetivo é compreender a interpretação individual do espaço. A partir destes registros, são interpretados signos, significados, percepções e construções socioculturais, daí é possível desvendar os traços de afetividade que somam à manutenção e preservação da memória social de uma comunidade. A memória social é um conceito de muita subjetividade que, de acordo com Silveira, Freitas e Mattos (2019), busca investigar aspectos filosóficos e as cargas emocionais relacionadas com a questão espacial, contribuindo para o entendimento de espaço vivido. Concluindo, o embasamento cartográfico desta pesquisa envolve o imaginário urbano analisado a partir das vertentes de fenomenologia e memória social. A cartografia inicia-se já na compreensão histórica do posicionamento sociocultural feminino e a relação das mulheres com o espaço urbano; seguida pelo estudo dos movimentos feministas, aborda-se a visão da mulher que se encontra na periferia e quais são suas vertentes de luta social. Busca-se
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construir, dessa maneira, uma percepção empática – a partir do momento que se compreende a história e o momento atual enfrentado pelo grupo em estudo. Por fim, é explorada essa visão identitária partindo da entrevista realizada com a coletiva FemiSistahs, embasada no método de grupo focal, que reúne um grupo de discussão informal e reduzido com o propósito de obter informações de caráter qualitativo em profundidade. O principal objetivo é revelar as percepções dos participantes sobre os tópicos em discussão, nesse caso, a experiência das organizadoras da coletiva (conferir Anexo A).
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3. Ao passo delas A mulher é cidadã plena do ponto de vista legal e formal, porém, sob a perspectiva da sua condição social, é vítima de muita opressão. A cidade traduz o discurso do sujeito dominante – o patriarcado, por meio da criação de dicotomias entre espaço público e privado, trabalho e casa, centro e periferia, definindo lógicas de divisões e limites antagônicos para cada cidadão e cidadã, impondo um papel social pré-definido (MELO, 2017). Esses imperativos são legitimados por diversos agentes como a Família, o Estado, a Escola e a Igreja, enraizando e naturalizando por meio de violências simbólicas indiretas e diretas a dominação masculina e a consequente subordinação feminina. O desenho urbano, assim, traduz essa lógica das relações sociais, aprisionando as mulheres ao separar os setores comerciais, industriais e residenciais, reforçando a divisão do trabalho entre os sexos (FERREIRA; SILVA, 2017). O modernismo racionaliza o espaço baseado no homem modelo, não apenas no sentido sociológico, “produzindo” cidades que reforçam o poder do patriarcado. O estudo científico do corpo tem como modelo o homem desde Da Vinci, mas é no momento do urbanismo moderno que o Modulor, de Le Corbusier, dita as escalas humanas de projeto. A afirmação da mulher como o outro e a instituição do homem como o
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padrão, até mesmo para o projeto de mobiliário, cria cidadãos invisíveis, sem representatividade nos espaços construídos (MELO, 2017, p. 25-26).
Percebe-se, portanto, como “a invisibilidade das mulheres nas cidades produziu bairros, ruas, transportes e serviços inadequados para suas necessidades” (VILLAGRÁN, 2014, p. 204). Não suficiente, o imaginário da urbe modernista consolidou-se no controle e na vigilância, intensificando a linguagem do medo, da negação da vida pública. Nas cidades do medo, segundo Bauman (2009), o espaço público não se caracteriza por criar pontes, convivências agradáveis, locais de encontro, facilitar as comunicações e reunir os habitantes; na verdade, divide, segrega e exclui. Onde o espaço público é evitado, vigiado e depreciado, circular pelo meio urbano se torna sinônimo de insegurança e, para as mulheres, essa questão é ressaltada por conta de sua posição social vulnerável: (...) é bastante significativa a violência que as mulheres sofrem no espaço público. Ruas e praças mal iluminadas, lotes vazios murados ou não, grandes vias para passagem de carros, que constituem um verdadeiro deserto no entorno são espaços de muita insegurança para as mulheres e onde ocorrem casos de violência (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 12).
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Não obstante, a mulher é a maior transeunte da cidade e, simultaneamente, a cidadã mais vulnerável no espaço construído (Companhia do Metropolitano de São Paulo, 2016). As mulheres mais se deslocam de transporte público e a pé pela cidade, enfrentando dificuldades geradas pela concepção modernista de cidade, em maiores distâncias ao realizar tarefas produtivas e reprodutivas que são atribuídas a elas. Para a mulher residente da periferia, segundo Itikawa (2016), essa distância é ainda maior pois, para além da questão espacial, estão relacionadas a exclusão, a precariedade e a dependência de acessos. Ainda assim, essas mulheres estão conscientes da sua luta: A falta de um “lugar” na cidade legal e no emprego formal, no entanto, não faz das mulheres produtoras passivas do espaço urbano. (...) é central a consciência das trabalhadoras informais na luta por territórios bem localizados, com infraestrutura que lhes dê autonomia, e não dependência, isolamento ou subordinação ao trabalho produtivo e reprodutivo. Estar na periferia, portanto, não significa apenas
estar
espacialmente
distante
das
infraestruturas
e,
consequentemente, do direito à cidade (ITIKAWA, 2016, n.p).
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Torna-se, portanto, de extrema relevância compreender a origem e a falta de qualidade de vida urbana feminina, visando soluções sociais e espaciais. Segundo a Companhia do Metropolitano de São Paulo, o modo como essas mulheres se deslocam pela cidade faz com que sejam atores centrais no planejamento urbano, uma vez que, por usarem mais transporte coletivo e se deslocarem mais a pé, vivenciam de maneira mais próxima e orgânica essa dimensão do espaço público e seus equipamentos. Atualmente, grupos de mulheres articulam suas demandas em torno de pontos relevantes da gestão pública, além da forte articulação contra o assédio de rua e no transporte público, segundo Harkot (2015). Situações de assédio como essas não apenas intimidam e invadem as mulheres como também as fazem repensar seus trajetos para desviar de caminhos, visto que muitos dos roteiros aparentemente naturais escolhidos pelas mulheres são na verdade “estratégias de enfrentamento” que elas adotam para se manter seguras, impedindo-as de circular livremente pela cidade e a ocupar e a vivenciar em sua totalidade.
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Figura 1. Apresentação no Fecha com as Sistahs na Casa de cultura Vila Guilherme 26 Fonte: Michele Cavalieri, FemiSistahs, 2020, via Facebook.
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3.1 Uma história de luta Para explorar a questão da hierarquia de produção e reprodução no espaço, é relevante comentar sobre os papéis sociais de gênero e seus estereótipos ideais. Após a ascensão da burguesia, uma nova ordem moral e social é instalada, em que as esferas públicas e privadas são mais definidas. A família é valorizada e os papéis sexuais são impostos (PERROT, 1991) – à mulher foi designado o papel de cuidadora da moral e dos bons costumes, tornando-se representação do privado, causando rejeição da participação pública feminina no imaginário dominante. Com o advento da urbanização e industrialização, a vida feminina ganha novas dimensões. A sua exploração é composta pela divisão sexual do trabalho (operário) e ao trabalho doméstico não remunerado. “O poder relacionado ao capital passa a ser domínio exclusivo do homem, gerando a dependência financeira das mulheres” (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.130) e a violência doméstica é naturalizada, justificada pela falta de poder aquisitivo e de sustento dos filhos. Por meio de um discurso naturalista, em que o homem representa a razão, encarregado da tomada de decisões, e as mulheres a sensibilidade,
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a lógica de divisão sexual vai se acentuando cada vez mais, na medida em que cada sexo tem sua função (PERROT, 1988). O século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação sexual dos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou definir estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a Maternidade e a Casa cercam-na por inteiro. A participação feminina no trabalho assalariado é temporária, cadenciada pelas necessidades da família, a qual comanda, remunerada com um salário de trocados, confinada às tarefas ditas não-qualificadas, subordinadas e tecnologicamente específicas (PERROT, 1988, p.186).
Para as mulheres de baixa classe social e, em sua maioria, negras, essa realidade não significa nenhuma novidade. A busca por trabalho e habitação entre elas é traço recorrente na história da urbanização em que, desde o século XIX, já exerciam funções como lavadeiras, costureiras, doceiras e empregadas domésticas, segundo Pelegrino (2006). “O trabalho é fonte de renda e, necessariamente, determina as possibilidades de acesso a bens materiais, dentre as dimensões culturais, simbólicas e sociais” (PELEGRINO, 2006, p.181). Dessa maneira, formas de exclusão social no meio urbano são exploradas, visto que personagens como as mulheres negras e indígenas se tornam pouco presentes na cena política.
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Apesar do esforço de manter sob controle ou excluída, a natureza feminina está em correspondência em seu lugar real na cidade: onde está o povo, está a mulher. Na cidade, nos bairros, elas estão extraordinariamente presentes, segundo Perrot (1988), desempenhando suas diversas tarefas – posto que o trabalho doméstico não envolve apenas fica em ambiente doméstico, mas cozinhar, cuidar das crianças e das roupas, e assim se desenrola uma rotina fracionada e variada. “Depois que os homens vão para os canteiros de obras, para as oficinas, a rua pertence a elas. Ela ressoa com seus passos e vozes” (PERROT, 1988, p.200). Conhecendo todos os cantos das cidades, buscando recursos complementares para o orçamento familiar, as mulheres se ativam em todos os sentidos. Em tempos de crise ou de guerra, essa ajuda se torna essencial. Os motins por alimentos, grande forma de motim popular ainda no século XIX, são quase sempre desencadeados e animados pelas mulheres. A insuficiência dos meios de comunicação (...) cria nós de estrangulamento, pontos de rigidez geradores de altas de preço. (...) Então, as mulheres intervêm. Sua vigilância se exerce nos mercados, grande local das mulheres. Aí fiscalizam permanentemente as qualidades e quantidades, a regularidade dos abastecimentos e o nível dos preços. Basta que se pronuncie uma falta – mercadorias que saem rápido demais, primeiros
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sinais de filas –, ei-las em alerta. Esboça-se uma alta, elas murmuram. O rumor aumenta nas ruas, nos pátios, nos bairros, entre as vizinhanças. (...) Nesses motins, as mulheres intervêm coletivamente. Nunca armadas, é com o corpo que elas lutam, rosto descoberto, mãos à frente (...) mais interessadas em ridicularizar do que ferir. Mas usam principalmente a voz (PERROT, 1988, p.193-194).
As mulheres passaram a disputar um lugar no espaço público, em que as desigualdades de gênero, etnia e classe colidem (SUMI, 2018). Dessas percepções insurgiu a chamada primeira onda do feminismo, que teria ocorrido em fins do século XIX e início do século XX. O movimento, a partir daí, passa a representar-se como político coletivo, centralizando a luta por direitos iguais entre homens e mulheres e assegurando-se em vertentes liberais, o que, segundo Silva, Faria e Pimenta (2017), caracterizou as sufraggetes – primeiro nos Estados Unidos e Inglaterra, depois se espalhando por outros países. Apesar da participação de muitas operárias na luta, que somavam denúncias sobre as condições de exploração do trabalho e do assédio sexual no interior das fábricas nas reivindicações, o movimento tinha como principais lideranças mulheres acadêmicas, das classes médias e médias altas urbanas (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 4).
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Figura 2. Manifestação de sufragistas. 31 Fonte: Revista Movimento, 2018.
As mulheres negras participaram ativamente da luta pelo sufrágio nos Estados Unidos e por algum tempo as sufraggetes também defenderam a causa abolicionista, relacionando as semelhanças da escravidão com o status das mulheres na sociedade. A concessão do direito ao voto para os homens negros após a Guerra Civil, entretanto, revelou posicionamentos racistas de líderes do sufrágio (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017). Por fim, mulheres socialistas e comunistas abraçavam a causa da igualdade de direito, porém rejeitando a intitulação “feminista”, por se tratar de uma vertente burguesa do movimento. Nesse momento, é importante ressaltar que a condição das mulheres negras permanece muito divergente das mulheres brancas. As estruturas de poder posicionam o corpo negro como mão-de-obra e mercadoria e as mulheres negras, além de reduzidas à condição de não humanas, têm sido representadas por imagens carregadas de exotismo e estereótipos determinantes e determinados por olhares reducionistas a seu corpo a sua sexualidade (ROCHA; PIPPI, 2019). No cenário brasileiro, mesmo após a Abolição, a conjuntura social da mulher negra é penosa:
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(...) a condição das mulheres negras era de liberdade formal, confirmada com o advento da Abolição; dessa forma, diante de uma sociedade patriarcal e racista, muitas permaneceram nas casas dos senhorios e outras em atividades ligadas à prostituição como sobrevivência. Contudo o ex-escravo seria então considerado cidadão brasileiro, e tanto as mulheres brancas como negras estavam ainda à margem dos processos de participação política, daí o hiato que a Abolição representou: uma emancipação precária para a mulher negra e, para a mulher branca, uma descensão em relação ao homem negro (SUMI, 2018, p. 30).
A primeira onda feminista liberal, no Brasil, ocorre na década de 1910 a 1920, manifestada pela fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em que suas representantes lutaram até a aprovação do voto feminino, conquistado apenas em 1932. “As mulheres operárias anarquistas tiveram um papel de destaque nesse processo, pautando as péssimas condições de trabalho e constituindo organizações de luta como a ‘União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas’” (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 4). Assim, a vertente liberal teria dado conteúdo e forma aos primeiros movimentos feministas: A sua característica central teria sido endereçar críticas à ausência de oportunidades iguais para as mulheres na vida pública, o que era contraditório com os princípios de liberdade e igualdade caros ao liberalismo político. Considerando o sexo como “uma característica
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não
essencial da natureza humana”,
aquelas
que ficaram
consagradas como feministas de primeira onda reivindicavam a equiparação das condições de cidadania das mulheres com os homens. (BODELÓN, 1998 apud. SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 4-5).
A segunda onda do feminismo é apontada como tendo ocorrido no final da década de 1960 e início dos anos 70, período em que houve uma alta produção teórica e de novas práticas políticas no feminismo em muitos países. Ao propor o conceito de patriarcado1 e postular a impossibilidade da igualdade, tendo a consciência do regime masculino opressivo, o movimento assume uma postura radical, visto que “a luta das sufragistas tinha pautas liberais, suas reivindicações de mais direitos não embarcavam o fim do sistema” (MELO, 2017, p. 32). Partindo da ideia de que o pessoal é político, as feministas explicitaram a divisão moderna entre esfera pública e privada, a qual visa naturalizar características e diferenças socialmente construídas entre os sexos e esconder o trabalho doméstico e a opressão das mulheres que acontece sob o privado,
1
Define-se por um regime de dominação-exploração em que se autentica uma estrutura de poder, favorecendo o sexo masculino, baseada tanto na ideologia quanto na violência, são criadas imposições de poder a fim de preservar os padrões de autoridade e subordinação.
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que invisibiliza o trabalho doméstico e a violência machista nas relações pessoais (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017). As reivindicações e demandas feministas propunham outras lógicas e propostas políticas, segundo Curiel (2009), incluindo as afrodescendentes, as lésbicas, as pós-colonialistas, as multiculturalistas, entre outras, o que englobou diversas perspectivas em relação à subordinação das mulheres. (...) se entendemos o feminismo como toda luta de mulheres que se opõem ao patriarcado, teríamos que construir sua genealogia considerando a história de muitas mulheres em muitos lugares-tempo. Este é para mim um dos principais gestos éticos e políticos de descolonização do feminismo: retomar distintas histórias, pouco ou quase nunca contadas (CURIEL, 2009, p. 1, tradução livre).
Grande parte da América Latina, nesse período, esteve mergulhada em ditaduras militares. Os movimentos sociais e partidos políticos de esquerda e progressistas foram obrigados a ir para clandestinidade e vários realizaram luta armada contra as autoridades. “As mulheres militantes das organizações políticas se engajaram nesse processo sendo um grande contingente das mortas e desaparecidas dos regimes” (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 6).
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Entre
os representantes latinos de
grandes movimentos com
participações essenciais femininas estão Las Madres de Plaza de Mayo, em 1977, na Argentina. Essas mães, que se reuniram em prol de receber alguma resposta do governo ditatorial sobre o desaparecimento de seus filhos e filhas, iniciaram uma manifestação de luta e resistência. Desacatando as ordens proibitivas de reunião de três ou mais pessoas em público, juntaram-se em duplas e, de braços dados, circulavam pelo monumento da Plaza de Mayo, com um lenço branco em suas cabeças, feito com tecido de fraldas de bebês. (...) no dia 30 de abril de 1977, quatorze mulheres caminharam para a
Plaza de Mayo, uma praça pública no centro da capital da Argentina diante do palácio presidencial, e conduziram uma manifestação política de denúncia contra o governo da época, sem imaginar que se tornariam um movimento reconhecido mundialmente. (...) essas mulheres, mães de filhos e filhas desaparecidos no referido período, criaram estratégias para continuar denunciando as violações cometidas pelo governo (...) arriscando suas vidas e de suas famílias em busca de descobrir o que havia acontecido com seus filhos desaparecidos. (...) as mães de maio, nome que reconhece o sentido político de suas lutas, diziam que a praça as fazia mais fortes, e que se tornou um lugar onde elas conseguiam se sentir mais próximas de seus filhos. (...) essas mulheres que protagonizaram um movimento político muito importante de denúncias contra a Ditadura (ARAUJO, 2019, p.100).
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37 Figura 3. Manifestação de Las Madres de Plaza de Mayo. Fonte: Notiamerica, 2014.
Já a luta feminista brasileira origina-se na constituição da mulher como sujeito de direitos, questão estreitamente vinculada ao direito à terra e à moradia – daí parte a luta contra o despejo de favelas, o alto custo de vida, defesa da infância, demandas por infraestrutura básica e creches, demonstrando a materialidade da desigualdade de gênero e sua intrínseca relação com a cidade. Essa crítica repreende a especulação do capital sob a terra urbana e questiona a segregação, se aproximando da bandeira da reforma urbana. Nesse momento, consolidada na crítica da desigualdade social, os movimentos sociais se articulam e unificam. Com a união das diferentes entidades e pós 1964, o movimento ganhou
maior
força
e
articulou
uma
participação
popular
heterogênea, que nitidamente questionava o caráter excludente das cidades brasileiras, vendo a casa como constituinte do corpo da cidade. É nesse cenário que ocorrem as lutas políticas pelo direito à cidade (SUMI, 2018, p.75).
De acordo com Heringer (2006), as desigualdades regionais, raciais e de gênero posicionam em especial as mulheres negras em uma grande precariedade social e econômica. A atuação da segunda onda feminista brasileira, caracterizada pela abordagem da estrutura social, foi forte entre as mães da periferia. A criação do Movimento de Luta por Creches transformou os 38
bairros periféricos. A creche passou a ser o primeiro equipamento implantado, assim, a população pode exigir outros aparatos básicos e melhoria dos bairros (SUMI, 2018). Os movimentos sociais estavam impulsionando mudanças no âmbito governamental, porém o ativismo foi interrompido pela conjuntura política do país. Após o golpe militar, as associações e comitês de mulheres dissiparam-se. As mulheres foram incorporadas às organizações de esquerda durante a ditadura militar, contudo essas organizações absorveram a mulher militante sob a lógica do sexismo e da divisão sexual das funções sociais. Assim, ao participar da luta armada, as mulheres puderam sentir as discriminações, efetivadas tanto por meio da superproteção, quanto pela subestimação de sua capacidade física e intelectual (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.77).
A consolidação de um movimento feminista brasileiro com caráter questionador à subordinação social perante o homem, com o objetivo de exigir a autonomia individual e direitos iguais em diversos âmbitos, esboçou-se a partir dos anos 1970 “quando grupos de mulheres e movimentos pró-equidade de gênero começaram a tomar cada vez mais espaço na luta contra a opressão feminina” (PACHECO, 2019, p.52). Os militares e as famílias tradicionais da época condenavam essa coletividade, que agregava cada vez maior participação
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popular, por representarem uma ameaça às tradições e conservadorismo tão enraizados, ainda segundo Pacheco (2019). A divulgação dos crimes de tortura da ditadura somado ao fim do “milagre econômico” causou grande rejeição ao regime. A luta pela democracia brasileira foi fortalecida na medida em que o pioneirismo e protagonismo das mulheres da periferia organizaram um movimento que incorporou milhares de pessoas. Esse movimento originou sindicatos e outras instituições, concedendo, porém, a direção a homens, o que silenciou mais uma vez as fortes vozes femininas e suas consequentes reivindicações tais como creches, educação e saúde básica. Assim, segundo Monteiro e Medeiros (2019), apesar da importante organização política das mulheres, sua atuação persistiu invisibilizada. “Apesar das conquistas, vivemos ainda um processo inacabado, no qual os padrões de desigualdade e dominação de gênero foram remodelados a partir da conquista parcial das mulheres do direito de participar dos espaços públicos” (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.78).
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41 Fonte: Memรณrias da Ditadura - Mulheres.
Figura 4. Cartaz do Movimento Feminino pela Anistia no Brasil, de 1975.
As greves de 1978 e os movimentos estudantis geraram essencial mobilização popular, a qual foi fundamental para a redemocratização do país, resultando na emenda das eleições diretas, no final dos anos 1980. É nesse período também que o feminismo negro começa a ganhar força, e em território nacional consolidam-se os primeiros Coletivos de Mulheres Negras. Após a queda da ditadura militar, os governos civis tiveram de lidar com extrema desigualdade social, endividamento nacional e inflação, marcando a nova fase política brasileira com inúmeras tentativas de ajustes e pela inserção do país na lógica da globalização e do neoliberalismo. Em âmbito de direitos civis e políticos, os brasileiros passam a viver sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988 e, pela primeira vez na história constitucional brasileira, é consagrada a igualdade entre homens e mulheres como um direito fundamental. (...) a Constituição Federal de 1988, que ampliou os direitos individuais e sociais e consolidou a cidadania das mulheres no espaço público e na vida familiar, assegurou os direitos das mulheres nos campos: da saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva; da segurança; da titularidade da terra e do acesso à moradia; do trabalho, renda e da Previdência Social; do acesso aos direitos civis e políticos. Além disso, reconheceu as questões relativas à discriminação racial no Brasil (PINTAGUY; BARSTED; MIRANDA, 2006, p.12).
42
A década de 90 introduziu importantes convenções a favor dos direitos das mulheres além da formação de ONGs, redes nacionais, articulações de mulheres,
trabalhadoras
rurais,
soropositivas,
dos
movimentos
pelo
reconhecimento dos direitos sexuais das lésbicas e de outras formas de organização da sociedade civil (PINTAGUY; BARSTED; MIRANDA, 2006). Nesse mesmo período: (...) várias leis complementares à CLT contribuíram para ampliar os direitos das trabalhadoras. Estendeu-se o direito à licençamaternidade, sem prejuízo do emprego e do salário, para mães adotantes, regulamentaram-se o emprego doméstico e as horas extras para as mulheres, proibiu-se qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso ou manutenção de emprego, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade. Porém, se de um lado tais leis contribuem para o empoderamento das trabalhadoras e as colocam em igualdade de direitos, de outro, muitos obstáculos permanecem, alguns deles na legislação e outros de difícil identificação. Assim, a legislação brasileira ainda não estendeu às trabalhadoras domésticas todos os direitos trabalhistas declarados na Constituição Federal, dentre os quais o direito à jornada de trabalho de quarenta horas (PINTAGUY; BARSTED; MIRANDA, 2006, p.25).
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Figura 5. Primeira Marcha das Margaridas, BrasĂlia, 2000. Fonte: Brasil de Fato, 2020.
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Na reflexão sobre a posição social feminina, nas últimas décadas do século XX, as mulheres passaram a somar nas atividades remuneradas, porém não foram repensadas as dinâmicas das tarefas domésticas e cuidados com os filhos – “o que representa uma sobrecarga para as que também realizam atividades econômicas” (BRUSCHINI; LOMBARDI; UNBEHAUM, 2006, p.65). Assim, com a consolidação do capitalismo neoliberal no meio público, foram agravadas diversas situações severas em que a mulher passa a exercer uma dupla ou tripla jornada de trabalho, estando presente tanto no mercado de trabalho como no meio doméstico, dificultando sua vivência – em especial, das mulheres negras e periféricas. Segundo Melo (2017), a mulher negra, pobre e periférica é sinônimo de resistência perante o machismo estrutural, visto que é a primeira a sentir o impacto econômico e social em tempos de crise. No meio urbano, a mulher pobre traça sua vivência como passagem entre casa e fábrica ou pior, a prostituição, repleta de inseguranças e precariedades. Retomar o caráter coletivo do movimento feminista não implica em uma homogeneização da experiência das mulheres ou a ideia de que há um sofrimento comum entre todas as mulheres e que a opressão de mulheres pobres e ricas, negras e brancas não pode ser medido nem comparado. (...) é preciso ter parâmetros históricos que sirvam de referência para avaliar as situações sob pena de cair em um enorme
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relativismo. Nesse sentido a imbricação de sistemas de opressão de gênero, raça e classe deve ser considerada nessa análise. A luta feminista é uma luta por justiça social. Desta forma, a justiça urbana deve incorporar também as reflexões feministas (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 11).
Alguns fenômenos sociais têm evidenciado a relação entre gênero, pobreza e desigualdade sócio espacial no Brasil. O número de lares chefiados por mulheres e sua relação com a pobreza tem aumentado nos últimos anos, evidenciando a necessidade de uma reflexão sobre a reprodução ampliada da pobreza no espaço urbano. Morar precariamente, de aluguel ou de favor e em distantes periferias, restringe as condições de acesso ao emprego e aos serviços públicos básicos, tais como creches, escolas e postos de saúde. Portanto, não é sem razão que as mulheres estão em grande número em ocupações, construindo comunidades e resistindo às ofensivas do mercado imobiliário associado ao Estado. A partir da compreensão de que a situação das mulheres negras, pobres e periféricas é extremamente vulnerável e de que o racismo é uma ideologia que se realiza nas relações entre pessoas e grupos, no desenho e desenvolvimento das políticas públicas, nas estruturas de governo e nas formas de organização dos Estados, sendo assim, de intensa participação na cultura, política e ética 46
(WERNECK, 2013), caracteriza-se o termo “racismo institucional” – um dos modos de operacionalização do racismo patriarcal heteronormativo 2 , o qual restringe de forma ativa as opções e oportunidades das mulheres negras no exercício de seus direitos. Tal postura do Estado, que através do planejamento urbano constrói argumentos e mecanismos de segregação e exclusão, devemos nomear de forma adequada: trata-se de racismo institucional consubstanciado ao patriarcado que torna cada vez mais insuportável a vida das mulheres negras, pobres e periféricas. Nesse sentido é preciso compreender que a experiência das mulheres das ocupações e das mulheres periféricas de uma forma geral é atravessada pelas categorias gênero, classe e raça, fazendo com que vários sistemas de opressão se cruzem afetando diretamente as suas vidas (CURIEL, 2011 apud. SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 14).
As desigualdades e iniquidades assumirão uma gama variada de expressões, tendo a raça como determinante das posições de gênero vividas
2 Por heteronormatividade, entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filho(a)(s)). Na esteira das implicações da aludida palavra, tem-se o heterossexismo compulsório, sendo que, por esse último termo, entende-se o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais.
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sob regime heteronormativo, marcas estas fortalecidas ou desqualificadas por outras condições individuais e coletivas. A teoria da justiça de Nancy Fraser (2002) elabora critérios de justiça baseado
em
três
pilares:
redistribuição,
reconhecimento
e
representação/participação. A redistribuição implica em influir na esfera econômica, se contrapondo a acumulação capitalista a partir da exploração do trabalho e da espoliação dos recursos, não perdendo de vista a questão de classe. O reconhecimento vai ter como foco as lutas das identidades políticas e suas reivindicações. Não se limitando à classe, a justiça precisa contemplar uma gama mais complexa da experiência dos sujeitos como gênero, relações étnicoraciais, religiosidade e nacionalidade, em que atuam sistemas de opressão. A paridade de participação é entendida como a criação de condições para que todos os sujeitos possam participar das decisões políticas com independência de voz, dentre elas a própria distribuição econômica; além da não hierarquização das diferenças culturais e respeito às diferenças (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p. 11).
Percebe-se a ausência de parâmetros para repensar a justiça urbana, segundo Silva, Faria e Pimenta (2017), ao passo de reconhecer de que a sociedade representa sujeitos diversos e perpassados por desigualdades de raça, classe e gênero e por diferentes necessidades, demandas e desejos que correspondem a determinadas conformações do espaço urbano; uma proposta de redistribuição econômica e de possibilidades que dizem respeito não apenas 48
a esfera do trabalho produtivo, como também a divisão do trabalho reprodutivo e a organização da vida no espaço; e a representação, ou seja, a capacidade das demandas das mulheres serem representadas por elas mesmas em decisões políticas que impactam o espaço urbano. A dominação masculina encontra, assim, reunidas todas as condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se firma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos esquemas imanentes a todos
os
habitus:
moldados
por
tais
condições,
portanto,
objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade,
como
universalmente
transcendentais
partilhados,
históricos
impõem-se
a
que, cada
sendo agente
transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica (BOURDIEU, 2002, p.45).
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Portanto, apesar de o direito à reunião e à manifestação ser garantido na Constituição Brasileira, as mulheres se encontram imersas no contexto de uma sociedade classista, racista e patriarcal. Consequentemente, os acessos aos locais de fala não são igualitários sob a perspectiva de gênero, dificultando os avanços coletivos e a busca de ideais identitários.
3.2 Corpo privado no espaço público Ao contrário das classes econômicas, as classes sexuais originam-se diretamente de uma realidade biológica em que as mulheres e os homens são criados de formas essencialmente distintas. Assim, através da história as mulheres são posicionadas em função de sua constituição biológica, em que seu meio social reforça uma visão de vulnerabilidade em função dessa condição – período menstrual, menopausa, partos e amamentação – e cria uma relação de dependência para com os homens, quer seja irmão, pai, marido, amante ou governo (MELO, 2017).
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51
Figura 6. Cena da peça “Essa Gente que Menstrua”, na Okupação Cultural Coragem. Fonte: FemiSistahs, 2020, via Facebook.
A luta, portanto, é labor, atividade relacionada “ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida”. A primeira condição do feminismo é a do labor, que é a própria vida, que é o cotidiano. A construção, portanto, é permanente e ecoa das mulheres que vieram antes de nós (ARENDT, 2007, p.16 apud. MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.78-79).
Segundo Monteiro e Medeiros (2019), as mulheres são então consideradas pela Ciência como essencialmente emocionais e irracionais, e assim jamais estariam aptas a agir conforme a lógica. Tal distinção justifica a consolidação de um novo sistema político e econômico de racionalização dos conhecimentos, identificando a partir destas definições quais corpos fazem parte do espectro científico e quais não fazem (PECCINI, 2019). Dessa maneira, as características deslegitimadas pela Ciência são associadas aos grupos não dominantes socialmente. Visto que esses grupos são associados pela sua parcialidade, marcados por afetos ou, ainda, inferiores intelectualmente – segundo Peccini (2019), não apenas mulheres, mas são incluídos também pessoas não brancas e trabalhadores. Do mesmo modo, Rocha e Pippi (2019) comentam sobre essa construção social:
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Ao tratarmos da coletividade, existe uma construção social não realista da busca pela universalidade, sendo que essa universalidade na verdade é uma padronização limitada que possibilita a circulação, a manifestação e fala dos homens brancos. “O que chamo de homem branco é apenas uma metáfora do poder, do sujeito do privilégio, da figura alicerçada no acobertamento das relações que envolvem os aspectos gênero e raça, sexo e classe, idade e corporeidade” (TIBURI, 2018, p.41 apud ROCHA; PIPPI, 2019, p.110).
Embasadas na lógica do patriarcado, são criadas imposições de poder a fim de preservar os padrões de autoridade e subordinação. Esses imperativos de gênero e suas manifestações seriam então legitimados e enraizados pela Família, Estado, Escola e Igreja. Essa autoridade passa a ser imposta social e institucionalmente, permeando toda a sociedade – da produção ao consumo, política, legislação e cultura. O trabalho doméstico, ao mesmo passo, é caracterizado por ser invisível e não remunerado. Destinado às mulheres, confere aos homens uma posição de dominação conferida no poder financeiro que possuem (PACHECO, 2019), justificado pelo contexto capitalista. As tais imposições passam a ser de difícil desconstrução
por
serem
fortemente
reproduzidas
inconscientemente naturalizada (ANKLAN; PEREIRA, 2019).
53
de
maneira
Enquanto os homens adquiriam a liberdade financeira com o capitalismo, as mulheres tornaram-se a principal exploração sexual e de trabalho e as mesmas ainda, no meio urbano, eram as principais vítimas das consequências dessas explorações que subordinavam as mulheres socialmente, ou seja, seu corpo se tornava público nas ruas, ocorrendo a violência de gênero nos centros urbanos e rurais (PACHECO, 2019, p.49-50).
A diferença sexual, dessa maneira, fortalece o capitalismo pela sustentação de relações sociais desiguais entre homens e mulheres, o que resulta na excessiva exploração da mulher, somada ao fato de serem “produtoras e reprodutoras da mercadoria capitalista que é sua fertilidade” (PACHECO, 2019, p.49). Fundamentado por essa visão, é criado um padrão de objetificação
dos
corpos
femininos,
causando
a
normatização
da
superproteção até a perseguição das mulheres, condutas as quais inclusive justificam a ausência feminina nos espaços públicos. Esse tipo de estrutura social, segundo Pacheco (2019), gera culpabilização das mulheres sobre a individualidade e o desejo sobre o próprio corpo, de forma a se distanciar e a desconhecer sua própria biologia e sexualidade. As mulheres são consequentemente educadas a saberem seus devidos lugares, tendo seu desejo de caminhar sozinha aniquilado pelo medo –
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representando como caminhar no meio urbano é tão distinto para homens e mulheres. “A perspectiva de gênero aplicada ao urbanismo se estende à experiência e, portanto, a escala próxima” (SILVA; NÓR; SANTOS, 2019, p. 175). (...) a cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos passar a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta. O corpo que experimenta efetivamente a cidade pode ser visto enquanto uma forma de resistência à espetacularização urbana, uma vez que as corpografias urbanas (ou seja, estas cartografias da vida urbana inscritas no corpo do habitante ou do errante) revelam ou denunciam o que o projeto urbano exclui. Ou seja, mostram tudo o que escapa ao projeto tradicional explicitando as micro práticas cotidianas do espaço vivido, as apropriações diversas do espaço urbano que não são percebidas pelas disciplinas urbanísticas hegemônicas (SILVA; NÓR; SANTOS, 2019, p. 175-176).
Censurar o corpo é limitar uma existência, de acordo com Silva, Nór e Santos (2019). “A relação descensurada da mulher com sua sexualidade, com seu ser feminino, dando-lhe acesso à sua força nativa; ela lhe devolve seus bens, seus prazeres, seus órgãos, seus imensos territórios corporais que foram mantidos sob selo” (CIXOUS, 1976 apud SILVA; NÓR; SANTOS, 2019, p.178).
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Peccini (2019) defende que a cidade é produto histórico, político e social da vida coletiva e, consequentemente, reflete espacialmente as relações entre as pessoas. Pensada por aqueles que dominam socialmente, a construção e vivência da cidade é regida visando seus beneficiários diretos – o patriarcado e o capital. É plausível então afirmar que a produção da cidade e do espaço, por sua vez, ocorre de forma parcial, justificando a censura do corpo feminino no meio público. É imprescindível reconhecer que a maneira como se constroem cidades não é neutra. (...) O universalismo é uma forma de mascarar que o sujeito dos direitos de cidadania é masculino e, portanto, o direito à cidade e as prioridades na definição desta tem sido construído tomando como referência o mundo público, a participação no mercado e os espaços destinados aos homens. O espaço domésticofeminino não está incluído na categoria de cidadania (SILVA; NÓR; SANTOS, 2019, p.175).
A cidade e o espaço público preservam o conceito patriarcal de contradição entre a esfera pública e privada, essencialmente por ser um espaço do mercado; na atualidade, o cenário urbano atua conectado à ideologia do capitalismo de livre mercado, movimento denominado urbanismo neoliberal. Esperar que o mercado seja o principal agente transformador do espaço
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corrobora, portanto, “a lógica empresarial de solução da cidade sobre os interesses sociais de uso do solo” (PECCINI, 2019, p.66). Ainda segundo Peccini (2019), são intensificadas as desigualdades frutos desses sistemas. Há de se esperar que a sociedade seja também pautada por sistemas fincados nas desigualdades de gênero, raça, classe e sexualidade, caracterizando tudo que essa sociedade produz por elementos de manutenção desse contexto. Ademais, são completamente perceptíveis no meio urbano as grandes cicatrizes de diferenças sociais, de acordo com Araujo (2019), deslocam o sentido de igualdade e de direito entre mulheres e homens na política urbana e na experiência cotidiana na cidade. Uma vez que o desenho urbano reflete toda influência do meio sociocultural, consequentemente é favorecida a reprodução da cultura sexista que reduz direitos e a própria existência. Logo, ao circular pelo espaço público a mulher encontra obstáculos que silenciam suas demandas e impossibilitam sua plena vivência, especialmente a mulher negra e periférica. “Trata-se de uma construção social perversa, que pressiona as mulheres a permanecer à margem
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Figura 7. Manifestantes em ato contra o “VagĂŁo Rosaâ€?, na capital paulista. 58 Fonte: Marlene Bergamo/Folhapress, 2014.
dos processos de participação política, de forma constrangida e segregada, pelo simples fato de serem apenas mulheres” (ARAUJO, 2019, p.99). Por serem os espaços públicos, segundo Pacheco (2019), representações das relações sociais refletidas nas desigualdades socioespaciais emergentes do capitalismo, a opressão e a hierarquização entre homens e mulheres são cicatrizes sociais profundas e impactam a gestão e produção urbana até a atualidade. Neste contexto, diversos autores – como Anklan e Pereira (2019), Araujo (2019), Monteiro e Medeiros (2019) Pacheco (2019) e Peccini (2019), comparam como a distinção da esfera privada e pública correspondem a família e política como entidades separadas. O espaço privado relaciona-se com a privação, a invisibilidade, até a negação da vida pública – o contexto social vivenciado pelas mulheres, enquanto o espaço público corresponde à ação masculina, definido pela ordem do poder e da violência. Esse mesmo conceito é exposto por Silva, Nór e Santos (2019): Viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituída de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privada da realidade que advém do fato de ser vista e ouvida por outros, privada de uma relação “objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privada da possiblidade de realizar algo mais permanente que a
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própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes a mulher privada não se dá a conhecer e, portanto, é como se não existisse. O que quer que ela faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ela é desprovido de interesse para os outros (Hannah Arendt, 2008, p.68
apud. SILVA; NÓR; SANTOS, 2019, p. 179).
Dessa forma, ao pensar o espaço é possível identificar dualidades que determinam suas funções e ocupações, de acordo com Peccini (2019), abraçando dicotomias como público e privado; campo e cidade; casa e trabalho; riqueza e pobreza; homem e mulher. Seguindo esta lógica, ao serem analisadas as interseccionalidades, percebe-se sua complexidade pois o espaço privado não é destinado, afinal, a qualquer mulher. “Mulheres negras sempre estiveram trabalhando no espaço público, mas não seriam dignas da família do espaço privado burguês” (PECCINI, 2019, p.66). (...) a construção social e cultural do que é feminino e masculino nos é imposta como um padrão natural. Esses padrões são construídos, reforçados ou desconstruídos pela forma como se organizam as sociedades ao longo da história e estabelecidos desde o nascimento de meninas e meninos. (...) Se, além de patriarcal a sociedade é também racista, haverá uma construção de papel social que se difere entre mulheres brancas e negras, mas que estão ainda sendo pautadas por um comportamento ideal (PECCINI, 2019, p.63).
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Em diferentes momentos históricos ocorreu a implicância direta do mercado sobre a vida da população pobre, especialmente na vida das mulheres deste contexto social. E, como o processo se repete ao longo dos anos, se repete também a resistência destas mulheres, se opondo ao seu lugar e papel designados. Das mulheres das classes sociais mais altas, emaranhadas nas diversas camadas de tecido que compunham suas vestimentas, temos a imagem mental do garboso cavaleiro que retira sua jaqueta para permitir sua passagem nas ruas enlameadas. Das mulheres trabalhadoras não há uma imagem mental tão clara, mas certamente sempre arrastaram suas saias na lama e na fuligem. E embora certamente tenham vivenciado a intensificação dos estímulos nervosos diante do vigoroso ritmo da metrópole em transformação, é pouco provável que tenham conseguido assumir uma atitude blasé em seus trajetos (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.83).
A dinâmica espacial do capitalismo periférico está atrelada ao corpo da mulher na medida em que o regime capitalista em sua etapa extensiva abriu fronteiras no território, deixando o legado de uma mancha urbana horizontal espalhada com regime fundiário excludente. Essa segregação urbana abriu novas fronteiras internas, que resultaram em processos de gentrificação. Assim, a não universalização dos direitos sociais fez do acesso uma terra formal e das infraestruturas urbanas, artefato seletivo (ITIKAWA, 2019). 61
Nesse sentido, a divisão entre áreas residenciais e o centro, que normalmente concentra os serviços e atividades produtivas, marca das cidades modernistas, onera o cotidiano das mulheres. A expansão desordenada gera segregação socioespacial e impulsiona a gentrificação, de certas áreas da cidade, ao mesmo tempo que o desenvolvimento urbano é estagnado em certas regiões. Nas áreas periféricas, por sua vez, gera-se desorganização espacial e humana, já que nessas ocorre ocupação majoritariamente irregular por parte da população de baixa renda, pelo seu distanciamento com o ponto central urbano. As mulheres, nada obstantes, mesmo sofrendo uma variedade de preconceitos permanecem a agir na cidade, criando um longo inventário de intervenções formais ou informais. “O que importa reencontrar são as mulheres em ação, inovando em suas práticas, mulheres dotadas de vida, e não absolutamente como autômatas, mas criando elas mesmas o movimento da história” (PERROT, 1988, p.187).
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Figura 8. Sarau Pretas Peri Fonte: GENNARI; MOYSÉS, 2016.
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As mulheres desdobram uma extrema engenhosidade para encontrar nos múltiplos comércios das cidades, onde conhecem todos os cantos, recursos complementares que empregam para complementar o orçamento da família ou lhe proporcionar alguns pequenos prazeres, ou que economizam para os dias difíceis que vem periodicamente com os meses parados. Em tempos de crise ou de guerra, essa contribuição marginal se torna essencial. As mulheres então se ativam em todos os sentidos. Nunca trabalham tanto como quando o homem está desempregado. Há uma vivência das crises e das guerras diferente para cada um dos sexos (PERROT, 1988, p.190).
De acordo com Perrot (1988), a participação efetiva da mulher está no povo. Elas se encontram extraordinariamente presentes na cidade, nos bairros, enfrentando então todos os “elementos que não lhe são familiares: a produção, o salário, a fábrica” (PERROT, 1988, p.199-200). Enquanto a burguesia da época excluía econômica e socialmente os operários e as mulheres, os operários, por sua vez, quando reivindicam o acesso à esfera política, reproduzem o modelo burguês – excluindo dessa vez as mulheres. Dessa forma, segundo Perrot (1988), a distinção entre público e privado implica na segregação social crescente do espaço. O público, palco dos assuntos políticos, estruturou-se em um caráter masculino. Os resquícios desses processos permanecem visíveis, apesar de crescimento no protagonismo e empoderamento feminino. Fatores
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culturais contribuem para a manutenção desse sistema de opressão, que coloca em primeiro plano o legado histórico de dominação masculina e perpetua a supressão de ideias confrontantes com o sistema vigente (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.130).
Revela-se, portanto, uma forma de preservação da dominação masculina manter uma esfera pública apoiada majoritariamente na presença de homens que detém o poder, como exposto anteriormente. A esfera privada é essencialmente feminina enquanto a ação política acontece apenas na esfera pública e masculina. Entretanto, como espaço concretizado das relações sociais e do conflito, o espaço público também é o lugar de contestação. O modelo de cidade imposto a partir de um processo definido pela falta de transparência, práticas coercitivas e justificativas questionáveis, legitimadas a partir de discurso técnico que dissimula as razões políticas, econômicas e ideológicas das ações do poder público, constitui um campo de conflitos sociais urbanos que compreende tanto a disputa simbólica do ideal de cidade, quanto a disputa pelo território e o direito à moradia (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.85).
“A vida urbana é permeada por encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos dos modos de viver e dos padrões, que coexistem na cidade” (ARAUJO, 2019, p.99). E mesmo assim, no sentido de relação de poder, são invalidadas a legitimidade da ação política das mulheres e todas as minorias sociais, resultando em um padrão de cidade nas 65
mãos do Estado e de grupos dominantes, posicionando o urbanismo como instrumento político controlável. Já que o mercado assume formas políticas, organizacionais e espaciais, coordenando a vida coletiva através dessa mesma ótica, este incita as demarcações de segregação racial, de classe, de gênero, entre tantas outras, além da desigualdade na vivência da cidade. De acordo com Pacheco (2019), essa conduta está pautada no modelo de reproduzir equipamentos públicos, áreas de lazer, saneamento básico, manutenção e serviços pensados e distribuídos de formas diferentes para cada parte da cidade, valorizando ou desvalorizando a área – sobretudo as áreas de exclusão urbanística, à margem da cidade, onde se tornam invisibilizadas. (...) a cidade está à venda e é marcada pela segregação, que acontece fisicamente por muros, grades, pontes, placas; de forma abstrata, pela divisão de territórios diferentes por classes sociais, cor, gênero, idade; e também por funções, espaço do trabalho, da moradia, do lazer (PACHECO, 2019, p.47).
Segundo Araujo (2019), conduzidas à margem e silenciadas por toda a história, as mulheres sempre foram insurgentes e estiveram presentes clamando diversas pautas de luta política. Consequentemente, ocupar o espaço
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público se torna um ato político contra essa imposição, pois assim ocorre a contestação da distinção do público e privado “que não reconhece o cotidiano das mulheres como ações políticas e dotadas de potencialidade de luta e resistência” (ARAUJO, 2019, p.102). A ruptura com a ideologia da domesticidade, portanto, permitiu a participação pública e ativa das mulheres nas esferas de poder. O movimento
feminista
tem
buscado
sistematicamente,
tanto
desconstruir na prática e na teoria as codificações do feminino associadas à natureza, emotividade e irracionalidade, quanto realizar a crítica às formas masculinas de organização social e de codificação da experiência, evidenciando a dimensão sexista e misógina das oposições binárias construídas pelas categorias masculinas do pensamento. Ao mesmo tempo, as mulheres têm renovado profundamente os espaços públicos de participação e os movimentos sociais, a partir de uma atuação política que se destaca em relação aos homens (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.76-77).
Deste modo, o ato de se opor aos princípios de manter a vida feminina prioritariamente dedicada à vida doméstica e aos familiares (ARAUJO, 2019) ressalta a resistência das mulheres na participação da esfera pública. Ocupar o espaço público representa um ato carregado de simbolismos revolucionários que abrem caminho para diversas outras conquistas. Até recentemente, de modo geral, as mulheres não tinham direito à vida pública, o que significava não apenas a impossibilidade de acesso
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aos cargos políticos e de direção, mas também à cultura e à educação nas mesmas condições que os homens. A grande conquista das mulheres no século XX, foi, portanto, simplesmente o direito à existência (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.76-77).
Porém, mesmo que a mulher seja considerada independente, não alcança uma situação moral, social e psicológica idêntica à do homem, visto que a perspectiva masculina é tão enraizada pelo patriarcado que os corpos femininos estão implicados por um processo social de controle e objetificação (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019). Na metrópole contemporânea, a mulher passa a acumular funções de forma a ocupar de forma plural os espaços públicos. Segundo Peccini (2019), a mulher é trabalhadora e simultaneamente responsável pelo lar e pela reprodução da vida, estabelecendo, portanto, duplas ou triplas3 jornadas de trabalho. Com a dupla jornada, a mulher passa a ter dois espaços de trabalho: dentro e fora de casa. A dinâmica de seu dia a dia passa por ir e voltar do local de seu trabalho produtivo, mas também por realizar as compras de alimentos e produtos necessários para a casa, levar filhos
3 Os três âmbitos em desigualdades de gênero se manifestam: na esfera profissional, as mulheres ainda não alcançaram o mesmo patamar de remuneração nem de cargos que os homens; no aspecto social, elas ainda estão sujeitas aos papéis de esposas e mães, que as colocam em situação de dependência; no âmbito familiar, sofrem as desigualdades da divisão sexual do trabalho doméstico.
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na escola, acompanhar pessoas mais idosas e crianças da família à médicos, entre outras tarefas, o que faz com que seu percurso na cidade seja distinto do homem que, normalmente, vai de casa para o trabalho e do trabalho para casa, ou tem paradas para o lazer após o expediente (PECCINI, 2019, p.64).
Refletidas nas desigualdades socioespaciais emergentes do capitalismo contemporâneo, pode-se afirmar então que a opressão e a hierarquização causam grandes impactos na produção do espaço público. Por ser nele também que ocorrem as trocas, convivências e experimentações sociais, para a mulher muitas vezes o espaço público representa o espaço do medo, passível de invasão da sua intimidade (PACHECO, 2019) – visto que a violência contra a mulher extrapola os limites da casa. Contudo, “o mundo dos afetos é também aquele em que muitos abusos puderam ser perpetuados em nome da privacidade e da autonomia da entidade familiar em relação às normas aplicáveis ao espaço público” (BIROLI, 2014, p.34 apud ARAUJO, 2019, p.102). Segundo Aklan e Pereira (2019), citando Hooks (2013), por mais que as estatísticas de violência doméstica e abuso a mulheres e crianças indiquem que a família patriarcal idealizada não se caracteriza como um espaço seguro, mantém-se perpetuando o mito conservador do contrário. Entretanto, são locais onde as vítimas de violência têm maior probabilidade de serem atacadas, 69
especialmente por seus semelhantes. Por essa análise, fica claro que a cultura de dominação promove os vícios da mentira e negação. (...) a casa (o lar!) é o lugar feminino por excelência – reino da domesticidade, espaço conhecido e confinado –, enquanto a rua – espaço público do inesperado, fortuito e desconhecido – é o lugar da masculinidade. Mulheres podem ultrapassar essas fronteiras desde que estejam acompanhadas por homens – seus namorados, companheiros, maridos, irmãos ou parentes. Mulheres sozinhas circulando nas ruas, em determinados horários e locais, estão “fora de lugar”. As mulheres vão poder usufruir livremente a cidade não quando puderem contar com machos para protegê-las, mas quando se sentirem plenamente livres e seguras – seja em casa, no trabalho, nos espaços públicos ou nos meios de transporte. Em lugar nenhum do mundo pode existir direito à cidade enquanto as mulheres não puderem andar sozinhas nas ruas, a qualquer hora, sem medo (ROLNIK, 2016).
A violência contra a mulher é manifestada nas famílias, no trabalho e no espaço público. O meio urbano reverbera as gerações de dominação masculina sobre o corpo feminino, tipificado por agressores e vítimas de um sistema consolidado na história da sociedade (ANKLAN; PEREIRA, 2019). A vulnerabilidade e o medo são vividos por esse corpo, o corpo feminino, que por estes sentimentos que o bloqueiam socialmente, é impossibilitado de percorrer ou estar onde se deseja ou precisa. 70
Logo, é perceptível como o comportamento no meio urbano e os caminhares femininos, assim como as experiências e memórias, são extremamente divergentes dos masculinos. “As diferenças dessas vivências não são somente materiais, são fruto da forma como a mulher é vista e construída pela sociedade, o lugar designado a ela e sua sensação de pertencimento ou não ao espaço” (PECCINI, 2019, p.69). As mulheres apresentam como referências urbanas os espaços públicos, ruas e praças, além das referências históricas, enquanto os homens fazem uso de marcos da paisagem, edificações, lojas e camelódromos, segundo Siqueira (2015). Ou seja, o homem possui o privilégio de caminhar na cidade de forma mais imediata, sendo seu destino pontual, majoritariamente realizando um percurso de casa-trabalho e vice-e-versa, enquanto as mulheres, responsáveis pelas atividades reprodutivas, são propensas à viagem em cadeia, o que significa que elas tendem a ter vários propósitos e vários destinos dentro de uma viagem (SIQUEIRA, 2015).
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A circulação feminina não é mais restrita aos pequenos trajetos em função das tarefas que lhes são historicamente atribuídas – casa, mercado, feira, comércio local, escola. O binômio casa-trabalho e as dinâmicas em torno dele, fruto do planejamento urbano centrado na vivência masculina, não levam em consideração, por exemplo, as múltiplas pequenas viagens que as mulheres fazem dentro de um único deslocamento (entre sair de casa e chegar ao trabalho) ou mesmo o fato de as taxas relacionadas ao uso, por mulheres, da bicicleta como meio de transporte ou de modos motorizados individuais serem muito inferiores às dos homens – no primeiro caso, elas não se sentem seguras o suficiente para pedalar na cidade, no outro, é o homem quem geralmente monopoliza o uso do carro da família. Assim, os movimentos feministas passaram a dialogar sobre o espaço construído e a maneira como são planejadas as cidades nas quais estamos vivendo (HARKOT, 2015, n.p).
As mulheres refletem em seu caminhar diário uma preocupação com questões espaciais e sociais, ruas sem iluminação e da quantidade de pessoas circulando nela, atuando como vigilantes naturais. A associação entre estas observações reforça a importância da iluminação, pois traz o conforto para as pessoas que andam nas ruas. A busca por andar em ruas mais movimentadas, no entanto, leva as mulheres a expressar um comportamento mais defensivo, como andar com a bolsa junto ao corpo, não expor objetos de valor e andar depressa (SIQUEIRA, 2015).
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Figura 9. Grafite “quem pariu a cidade?” Fonte: Carolina Teixeira (Itzá), 2017.
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O medo da mulher no espaço público é mais uma expressão do patriarcado. Seja através do androcentrismo nos estudos e no planejamento urbano, seja pela sensação de vulnerabilidade diante da figura masculina, experiências vividas ou informações secundárias, o medo da mulher no espaço público é produto da relação de dominação dos homens sobre as mulheres ainda hoje existentes em várias sociedades (SIQUEIRA, 2015, p. 110).
Percebe-se ainda a intimidação e invasão do corpo das mulheres ao ponto de ser necessário repensar seu trajeto a fim de desviar de certos caminhos, buscando evitar situações arriscadas, o que as impede de circular livremente, negando então o direito de ocupar e vivenciar a cidade (HARKOT, 2015). Segundo Peccini (2019), a insegurança, a impossibilidade de percorrer onde quer que seja e o medo são causados pelo imaginário social, no sentido de que o mal que tememos é causado por outra pessoa, sendo reforçado pelo espaço urbano e seus elementos. Logo, a mulher busca analisar o espaço em busca de um lugar seguro, de forma quase que instintiva, considerando “reconhecer facilmente o entorno; ver e ser vista; ouvir e ser ouvida; ter sempre visível uma saída ou lugar para pedir ajuda; limpeza e cuidado do entorno; atuação coletiva no espaço público; iluminação eficiente” (PECCINI, 2019, p.69). De acordo com Siqueira (2015), percursos seguros para as mulheres são aqueles
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formados por ruas com diversidade de usos, onde exista a presença de pessoas circulando, com iluminação à noite, manutenção adequada. O direito à cidade e os direitos sociais não alcançam certos setores mais vulneráveis da cidade, em especial as mulheres, indígenas, negras e periféricas. “No caso de São Paulo, os incômodos e descasos ficam nas bordas, nas periferias”
(ITO,
2017,
n.p),
representando
obstáculos
de
vivências
principalmente nos meios de transporte público, vias públicas e espaços públicos – essenciais acessos urbanos. Dessa forma, a lógica do planejamento urbano, somada às opressões de gênero, raça e classe social dificultam a mobilidade das mulheres. (...) o que as mulheres, em especial as mulheres pobres, encontram é um desenho urbano que favorece a reprodução da cultura sexista, que reduz direitos e sua própria existência. Ao circularem pela cidade encontram limites e imposições, que silenciam suas demandas e invisibilizam narrativas (ARAUJO, 2019, p.99).
“A cidade, assim como a arquitetura, conforma ambientes que perpassam várias gerações de dominação masculina sobre o corpo feminino, vivenciados por agressores e vítimas de um sistema que está incrustado na história das sociedades ocidentais” (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.129). A violência
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contra a mulher é manifestada nas famílias, no trabalho e, como a cidade é reflexo da cultura de seus habitantes, evidenciada no assédio moral e sexual, até a inviabilidade das mulheres de acessar o espaço público da mesma forma que os homens. De acordo com Rocha e Pippi (2019), essa diferença de liberdade de acesso, incluindo à rua, demonstra o quanto as estruturas sociais são necessárias para desenvolver os direitos sociais.
3.3 Políticas públicas A luta das mulheres para conceber pautas políticas e ocupar espaços decisórios persiste, o que resultou em um processo de formação política concretizado pelo Fórum Internacional da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nairóbi, Quênia, em julho de 1985. Foi celebrado “o auge de dez anos de intenso ativismo internacional pelo direito das mulheres, contestando a milenar opressão patriarcal no mundo” (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.80). A reunião marcou o movimento feminista em viés político e histórico, pois evidenciou sua maturidade a alcançar uma posição pública mundial e, finalmente, legitimou a voz das mulheres.
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Nesse sentido, as mulheres, moldadas e socializadas no mundo forjado pelos homens, estão cotidianamente construindo sua própria linguagem e sua própria imagem, como exercício de liberdade, seguem
re-existindo
a
partir
de
autonarrativas
resistentes,
confrontando as categorias e interpretações masculinas embebidas de misoginia. E embora, parte das mulheres não se identifique claramente com o feminismo, isso não significa que em suas práticas e reflexões, não sejam feministas. O feminismo, nesse sentido, extrapola a questão da identidade, individual ou grupal, e mesmo da ideologia, se apresentando como uma prática política cotidiana permeada de inovações éticas e criações em relação à vida, à subjetividade e à produção da sociabilidade (MONTEIRO; MEDEIROS, 2019, p.80).
No contexto nacional, as mulheres brasileiras adentraram o século XXI associadas à vida doméstica como parte da esfera patrimonial e patriarcal. De acordo com Itikawa et al (2019), o trabalho reprodutivo tornou-se ocupação compulsória às mulheres, ao passo de que a força de trabalho doméstico não contabilizada nem remunerada naturalizou a tomada do corpo da mulher, questão reforçada pelo capitalismo periférico ao causar escassez de equipamentos públicos essenciais, como creche e hospital. Não à toa, as três principais leis que tratam da violência contra a mulher enfrentam flagelos que ameaçam a integridade, a liberdade e os afetos e respectivas escolhas sobre seu corpo, sua relação com a moradia e seu comportamento na cidade. 77
A agenda neoliberal, como um rolo compressor sobre os direitos dos trabalhadores, aprofundou e agregou outra camada de precarização sobre as mulheres. (...). Até hoje, apesar de ainda acumularem trabalho produtivo e reprodutivo, elas se descolaram da simbiose casa-famíliacorpo. Uma moradia no Brasil é para a Constituição Federal um direito social, mas prevalece a leitura do senso comum que é apenas um patrimônio. Por sua vez, desde a colonização, o corpo da mulher é visto em extensão ao patrimônio do homem, ou à disponibilidade de outrem. Ironicamente, isso permaneceu incólume no século XX e, para perplexidade nossa, no XXI. Nesse sentido, a agenda moral combinada à neoliberal verificada entre as décadas de 1950 a 1980 não é nova. O que parece novo hoje é ver uma retomada da agenda moral com discursos anacrônicos requentados contra a voz feminina que se recusa a calar e está agora cada vez mais potente. (...) Apesar de termos avançado no reconhecimento em lei das demais violências contra a mulher além da física (psicológica, sexual, patrimonial e moral), no julgamento e no encarceramento, ainda permanecem insuficientes
algumas
ações
previstas
nas
leis.
Educação,
conscientização ampla da sociedade e ênfase na proteção e assistência à mulher vítima da violência parecem determinantes para enfrentar as complexidades desse fenômeno que a judicialização isoladamente não dá conta. Sem essas ações, conviveremos com a ambiguidade de ser a 3ª legislação mais progressista, segundo a promotora de São Paulo Valéria Scarance, versus o 5º pior índice de violência contra a mulher no mundo. Nesse sentido, o risco da judicialização ser a prioridade da política pública é dar livre acesso ao avanço da agenda moral conjugada às agendas racista e neoliberal. A interceptação da violência, isoladamente, não extinguiria as motivações da mesma. Por essa razão, uma política pública que
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enfrente a violência contra a mulher deve priorizar os Centros de Referência, considerar a interseccionalidade gênero, raça, classe e orientação sexual, bem como adotar critérios espaciais para implantação dos
diferentes equipamentos (saúde, educação,
assistência, proteção, segurança) que comporiam um Sistema Integrado de Prevenção à Violência contra a Mulher (ITIKAWA et al, 2019, n.p).
A inclusão da questão de gênero na agenda governamental ocorre juntamente ao processo da democratização, ao incluir novos atores no cenário político e, consequentemente, novos temas na agenda políticas. As mulheres eram
fundamentais
na
participação
dos
movimentos
sociais
pela
redemocratização, o que constitui a mulher como sujeito coletivo. Em formato legislativo, aprovado no Congresso Nacional em 29 de agosto de 1985 através da Lei nº 7.353, é criado o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM). Com uma composição de tendências de partidos e de movimentos de mulheres, o Conselho é criado com autonomia administrativa e financeira, vinculado ao Ministério da Justiça (PONTES; DAMASCENO, 2017). O CNDM atua por meio das diretrizes e políticas de administração pública a favor das causas das mulheres; prestando assessoria ao Poder Executivo, de forma a acompanhar as questões que atingem a mulher, suas necessidades e direitos; 79
estimulam, apoiam e desenvolvem o estudo e o debate da condição da mulher brasileira; sugerem ao poder legislativo leis que visem assegurar os direitos da mulher; fiscalizam e exigem o cumprimento de tal legislação; recebem e examinam denúncias relativas à discriminação da mulher realizando o intermédio com órgãos competentes; manter canais de relação com o movimento de mulheres, apoiando-os institucionalmente; desenvolvendo programas e projetos em diferentes áreas de atuação a fim de incentivar a participação social e política da mulher (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1985). Em 2003, foi criada a Secretaria de Políticas para Mulheres, cuja missão é de promover a igualdade entre homens e mulheres, combatendo todas as formas de preconceito e discriminação herdadas de uma sociedade patriarcal e excludente, de acordo com o CFEMEA. Fundada com o objetivo de erradicar formas de desigualdade, de acordo com Pontes e Damasceno (2017), a competência desta secretaria foi definida somente em 2010, por meio da Lei nº 12.314, art.22, que altera a lei anterior transformando a SPM em ministério. Em 2004, transformado em Ano da Mulher, o Governo Federal, sob a coordenação da SPM e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), convoca a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, precedida de conferências estaduais e municipais. Esta
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convocação vem mobilizando mulheres e governos em todo o país para a discussão de políticas públicas para as mulheres e de diretrizes que culminou no primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, revisado através das conferências seguintes, nos anos de 2007 e 2013 (PONTES; DAMASCENO, 2017, p.5).
Em 2006, a Lei 11.340/2006 foi sancionada – mais conhecida como Lei Maria da Penha, que estabelece “formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral, entre outras” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2006). Segundo Anklam e Pereira (2019), a Lei Maria da Penha caracteriza-se por ser o principal instrumento legal de proteção às vítimas de violência no Brasil. Seus pilares estruturantes envolvem punir, proteger e prevenir, em que a punição dos agressores e a proteção das vítimas se concretizam por meio de programas arquitetônicos dispersos pelo país, funcionando com auxílio estatal. Posteriormente, em 2010, foi criada a ONU Mulheres, uma entidade em defesa dos direitos humanos das mulheres, especialmente ativa no movimento feminista, abraçando as causas das mulheres negras, indígenas, jovens, trabalhadoras domésticas e rurais. Sua atuação envolve parcerias com a sociedade civil, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, universidades, empresas e o sistema das Nações Unidas. Segundo o website oficial da ONU 81
Mulheres, posicionam-se em seis áreas prioritárias de atuação: liderança e participação política das mulheres; empoderamento econômico; fim da violência contra mulheres e meninas; paz e segurança e emergências humanitárias; governança e planejamento; normas globais e regionais. A institucionalização desse amparo através de legislações é fundamental para a diminuição dos índices de violência contra a mulher, assim como da desigualdade de gênero como um todo. Contudo, essas medidas não têm se mostrado suficientes no combate aos diversos tipos de ataque que as mulheres sofrem (ROCHA; PIPPI, 2019, p.107).
A criação da Coordenação Geral da Diversidade, em 2012, foi mais um marco político para as mulheres pois reafirma o compromisso de políticas públicas destinadas às mulheres negras, indígenas, lésbicas, jovens, idosas e com deficiência, de forma a garantir que as especificidades e diferenças femininas sejam contempladas no combate à discriminação e preconceitos (PONTES; DAMASCENO, 2017).
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Figura 10. Parada LGBT em São Paulo. Fonte: Huffpost Brasil, 2017.
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Entretanto, de acordo com dados levantados pela ONU Mulheres em 2016, o Brasil é o 5º país mais violento para as mulheres, o que enfatiza a consequência de uma cultura patriarcal que naturaliza “o comportamento masculino como opressor e dominador, enquanto o corpo feminino é visto como passível de ser violado e dominado” (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.129). Percebese, então, que apesar de serem criados diversos mecanismos institucionais de proteção à mulher, os fatores culturais ainda contribuem para a manutenção de um sistema opressor, em que se sobressai o legado histórico de dominação masculina. No Brasil, existem algumas políticas públicas direcionadas ao enfrentamento da violência contra às mulheres que, mesmo de forma insuficiente perante a demanda, cumprem com um importante papel de atendimento e amparo de vítimas em situações de urgência e/ou de trauma. São elas: • Delegacias especializada de atendimento à mulher (DEAM’s) – atendimento policial voltado para amparar as mulheres nos casos de violência psicológica, física, sexual, patrimonial e moral; • Central de Atendimento à Mulher (disque 180) - canal de denúncias e de informações para mulheres em situação de violência. Responsável por ser o primeiro contato com outras políticas públicas. • Centros de referência da mulher (CRM’s) – Centros de atendimento psicológico e jurídico para mulheres vítimas de violência;
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• Casas de acolhimento: casas de abrigo para mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. (...) mesmo dentro dessas estruturas destinadas à proteção de mulheres a cultura machista e racista é presente. A descrença nas denúncias, a impunidade dos agressores e o medo da exposição de denunciar para não sofrer novas agressões são alguns dos fatores que dificultam a proteção das vítimas, fragilizadas pelas violências sofridas (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.132-133).
Uma vez que a violência contra a mulher é proveniente da divisão social imposta histórica e culturalmente, especialmente na sociedade capitalista, em que a responsabilidade doméstica e familiar foi destinada à mulher, independente da sua idade, condição de ocupação e nível de renda, as mulheres entram em desvantagem em relação aos homens na atuação econômica e social (SOUSA; GUEDES, 2016). Com as transformações socioeconômicas e a busca de independência feminina, as funções atribuídas aos sexos reforçam as desvantagens vividas pelas mulheres pois elas compartilham com os homens a provisão financeira da família e simultaneamente a responsabilidade da esfera reprodutiva. Segundo Sousa e Guedes (2016), conquistas cada vez mais visíveis no âmbito público representam uma revolução incompleta ao passo que permanece sendo assumidas as
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atividades do espaço privado apenas para as mulheres, o que perpetua uma desigual e desfavorável divisão sexual do trabalho. Hoje, as mulheres constituem 45,5% da População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil, havendo um crescimento gradativo desse dado nas últimas décadas. (...) A cultura da responsabilidade doméstica designada para a mulher faz com que 86% dos trabalhadores domésticos sejam mulheres. Além disso, 60% dos lares com empregadas domésticas são chefiados por homens. As funções de doméstica e cuidadora empregam 20% das mulheres ocupadas no país. Ainda de acordo com a PNAD 2014, mulheres receberam em média 74,5% do rendimento de trabalho dos homens em 2014. Em 2013, essa proporção era de 73,5%. Analisar o emprego feminino levou a perceber a divisão sexual do trabalho como estruturante de uma nova divisão internacional do trabalho (PECCINI, 2019, p.63).
Com mais de 80% da população brasileira vivendo em cidades, Harkot (2015) discorre, por conseguinte, como o espaço construído exerce uma influência na manutenção ou superação da assimetria social entre homens e mulheres. “Como falar em combate à violência doméstica ou às desigualdades salariais entre homens e mulheres sem levar em conta que o meio urbano é cenário desses conflitos?” (HARKOT, 2015, n.p). Na medida em que, nas cidades, a população vem se apropriando e organizando de formas inovadoras, demonstrando o quão necessário é a abertura e a inclusão política e urbana, 86
muito pode se abordar nessa visão a partir da perspectiva do planejamento e desenho urbano. Nessa mesma perspectiva, segundo Harkot (2015), os movimentos feministas passaram a dialogar sobre o espaço construído e a maneira como são planejadas no meio urbano consolidado. Graças à potencialização do discurso nos meios de acesso à informação e redes sociais, a criação de órgãos transversais como a Secretaria de Políticas para Mulheres gera “o olhar atento sobre a formulação e execução de todas as políticas públicas, a fim de que a promoção da igualdade entre os gêneros esteja sempre em pauta” (HARKOT, 2015, n.p). Ademais, as mulheres articulam suas demandas em torno de pontos relevantes da gestão pública: iluminação, segurança pública, transporte, acesso à comércio e serviços, pautas educativas, entre outras. Sob o viés do acesso ao espaço público, é importante ressaltar alguns dados: uma pesquisa realizada com 7.762 mulheres pelo coletivo Think Olga (2013) revelou que 99,6% das entrevistadas já havia sofrido assédio, tendo 98% acontecido nas ruas. Além disso, 81% das mulheres responderam que sim à pergunta “Você já deixou de fazer alguma coisa (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra, sair a pé) com medo do assédio?”, salientando a importância de se tratar o assédio como elemento inviabilizador do acesso democrático ao espaço público (ROCHA; PIPPI, 2019, p.111).
87
Visto que parte da população ainda reproduz um discurso que questiona o direito da mulher de ir e vir, aliado à construção de um contexto psicológico de culpa feminina frente às suas violências, os movimentos feministas batalham para que as mulheres tenham completo acesso à cidade. Para esse objetivo ser alcançado, “é essencial que as mulheres sejam ouvidas e participem ativamente no desenho e construção das políticas urbanas – além de refletir sobre os papéis que cada gênero desempenha, buscando também desconstrui-los” (HARKOT, 2015, n.p).
3.4 O desenrolar da reintegração feminista Os espaços públicos, na medida em que possibilitam o engajamento político através de sua ocupação e do reconhecimento das mulheres como agentes de transformação da cidade, cumprem sua função social de contribuinte aos objetivos da sustentabilidade social e de uma sociedade democrática aberta – “como infraestrutura de encontro, como espaço de criação de iniciativas, fomentando a produção de ambientes de educação e cultura para as mulheres, manifestando os conflitos e as contradições sociais” (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.134). 88
A qualidade de vida de uma cidade é, e sempre será, medida pela dimensão da vida coletiva que é expressa nos seus espaços públicos dispostos democraticamente pela cidade, seja no parque, na praça, na praia ou mesmo na rua. O espaço público de uma cidade é o lugar do lazer, do descanso, da conversa corriqueira, da livre circulação, da troca e, sobretudo, da possibilidade do encontro com o outro (CPSC, 2013, p. 8).
Aí se encaixa o papel da arquitetura como agente de transformação da cidade, em que seja apta a ressignificar a construção das cidades a partir da experiência que os homens e as mulheres têm do espaço, posto que se um espaço público contribui para a segurança e qualidade de vida da minoria social, atenderá, portanto, qualquer tipo de público. “O ideal de segurança não é universal: homens, mulheres e pessoas não binárias experienciam segurança de formas diferentes; o mesmo vale para brancos e negros; pessoas que performam gênero conforme sexo biológico ou não; entre outros” (ROCHA; PIPPI, 2019, p.111). Se ao planejarmos os espaços levarmos em consideração as sobreposições de opressões, entenderemos que se um espaço é convidativo aos grupos mais fragilizados socialmente, ele é acessível a todos: um espaço que permite a mobilidade de pessoas com dificuldades motoras não é inacessível a alguém sem essas limitações, da mesma forma que um espaço que inclui mulheres, sobretudo
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negras, não cessa direitos dos homens brancos (ROCHA; PIPPI, 2019, p.110).
As cidades, em época de crescente desigualdade, devem garantir ao seu cidadão um uso seguro e igualitário, independentemente de habilidade, idade ou renda, de acordo com a associação NACTO (2016). Dessa maneira, os usuários mais vulneráveis serão capacitados ao passo em que opções de mobilidade seguras e confiáveis são exploradas. Jacobs (2011) defende que o principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos. Na mesma linha, Tuan (2013) comenta sobre como a arquitetura influencia diretamente neste sentimento. O espaço arquitetônico continua a articular a ordem social, embora talvez menos estardalhaço e rigidez do que no passado. O ambiente moderno construído ainda mantém uma função educativa: seus sinais e cartazes informam e dissuadem. A arquitetura continua a exercer um impacto direto sobre os sentidos e os sentimentos. O corpo responde, como sempre tem feito, aos aspectos básicos do plano como interior e exterior,
verticalidade
e
horizontalidade,
massa,
volume,
espaciosidade interior e luz. Os arquitetos, com auxílio da tecnologia, têm aumentado a gama da consciência espacial humana, criando novas formas ou refazendo as velhas em uma escala até agora não experimentada (TUAN, 2013, p.144).
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Entretanto, pesam também as questões políticas e econômicas que conduzem a divisão social desses espaços, influenciando simultaneamente quem os ocupa. Assim, Rocha e Pippi (2019) discorrem da importância da participação diversa nessa gestão – série de agentes sociais e institucionais diversos, pois englobaria todos os tipos de visão e vivência, podendo então coordenar o espaço de maneira mais inclusiva. Criando diálogos reais entre sujeitos e cidade, “a existência de locais físicos de desenvolvimento de trabalhos populares, democráticos e contínuos poderiam ser catalisadores para o rompimento da naturalização de violências” (ANKLAN; PEREIRA, 2019, p.133). Uma vez posta a importância da inclusão e da diversidade e a dificuldade de sua aplicação na sociedade, deve-se ponderar também ferramentas que possuem como objetivo ultrapassar as barreiras sociais e repensar os antigos padrões estabelecidos. Diante disso, segundo Anklam e Pereira (2019), a comunicação com o público diverso considerando o contexto social facilitaria o entrave de diálogos pertinentes. Aliada à questão da educação como liberdade social de diálogo, está o conceito da CNV (Comunicação Não Violenta 4), a qual
4
O psicólogo Marshall Rosenberg desenvolveu o conceito de Comunicação NãoViolenta (CNV), que seria capaz de estimular a compaixão e a empatia. A CNV começa por
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facilita a ligação entre indivíduos de forma compassiva, considerando o próprio sentimento e o alheio. Ao reformular a maneira de expressão, escutando os outros e observando-os, considerando também o que é sentido e necessitado, ocorre uma comunicação mais respeitosa e empática. Afinal, “garantir o acesso democrático aos espaços de poder (...) é dar essas pessoas o direito de fala, salientando que ‘o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir’” (RIBEIRO, 2017, p. 66 apud TIBURI, 2018, p. 105). Nessa mesma linha, Sumi (2018) aborda a questão da linguagem e comunicação no âmbito dos processos participativos: Outro aspecto diz respeito à linguagem e comunicação que podem alienar, confundir ou calar as mulheres, dada as evidências de desigualdade de comunicação em processos participativos no planejamento urbano. Estariam vinculados também ao estilo argumentativo e fala de certas áreas profissionais que, segundo as autoras, embora os profissionais da área do planejamento tendem a serem mais “multilingual”, a teoria deve endereçar esta necessidade para estilos apropriados da comunicação, fato não comum nos processos participativos de planejamento (SUMI, 2018, p.55).
assumir que somos todos compassivos por natureza e que estratégias violentas – se verbais ou físicas – são aprendidas, ensinadas e apoiadas pela cultura dominante (Centro de Valorização da Vida, 2016).
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Como exemplar de processo participativo de planejamento está o Plano Diretor de Recife. Com 54% da população feminina, o plano abraça a questão de gênero e trabalha no sentido da inclusão. Define-se, segundo a plataforma online oficial, como “o olhar da mulher sobre a cidade, as soluções que ela enxerga para usufruir do espaço público com mais conforto e segurança”. O processo de criação do plano envolveu escutas em todas as regiões políticoadministrativas do município, com o apoio da Secretaria da Mulher. Com mais de 30 eventos realizados e diversas iniciativas de escuta da população, pessoal e virtualmente, foram expostas, por fim, as principais propostas das mulheres. São elas: – Mapear áreas subutilizadas para ocupar com equipamentos como praças, postos de saúde e creches, por exemplo. A justificativa é que os terrenos baldios aumentam a probabilidade de uma mulher ser vítima de violência física ou sexual. – Melhorar a iluminação pública. Muitas mulheres desviam o trajeto por conta do risco que ruas escuras representam para elas. – Revitalizar praças para garantir que possam ser utilizadas com segurança por meninas e mulheres. Muitos desses espaços estão ocupados indevidamente (comércio informal, jogos…). – Considerar as peculiaridades de cada comunidade antes de decidir o que empreender ali.
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– Investir na mobilidade, melhorando a infraestrutura viária e de transporte público (paradas de ônibus mais iluminadas e seguras, mais ônibus e metrô para reduzir a superlotação e, por consequência, o assédio). – Construir mais ciclovias nas comunidades, pois as mulheres costumam usar muito a bicicleta como meio de transporte. – Sinalizar as vias públicas para prevenir atropelamentos. – Priorizar a titularidade da habitação em nome das mulheres, assegurando infraestrutura urbana e equipamentos necessários à moradia digna. – Elaborar política de inclusão e valorização das catadoras de materiais recicláveis, que prestam importante serviço à comunidade. – Garantir a participação da mulher no planejamento urbano do Recife para que reflita os anseios e necessidades da população feminina. – Ampliar oferta de creches e escolas em áreas indicadas pela população feminina. (RECIFE, 2018, n.p).
Percebe-se, pelas propostas procedentes das cidadãs de Recife, o quanto a agenda política feminina envolve uma percepção social ampla. Pelegrino (2011) defende que a situação das mulheres que vivem em meios urbanos está inscrita na totalidade das condições de vida da cidade.
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Figura 11. Oficinas territoriais para definição do Plano Diretor de Recife.95 Fonte: Prefeitura de Recife, 2019.
Dessa maneira, justificam-se os eixos de reivindicações serem abrangentes à questão de moradia, violência urbana e demanda de serviços públicos.
Para
complementar,
Sumi
(2018)
ressalta
a
participação
majoritariamente ativa das mulheres nessas lutas – elas são maioria nos movimentos feministas, nos movimentos populares de luta por melhores condições de vida e trabalho e nas redes e fóruns transversais que ultrapassam as fronteiras nacionais. Isto porque a mulher sofre uma influência da vida doméstica que se traduz muito fortemente na vida pública e, para que possam trabalhar e participar, querem uma resolução através de serviços públicos ou relações
de
comunidade
(SANTORO,
2007
apud
SUMI,
2018).
Consequentemente, se manifestam diversas questões políticas que envolvem a implementação de direitos. (...) independentemente de outros aspectos, investir e demandar equidade na presença de homens e mulheres é questão necessária de reparação e de justiça. Se compreendermos política como parte constitutiva da organização da vida social, a ausência de poder e as restrições na participação política têm profundas implicações para a justiça de gênero. O Político é “o lugar onde se entrelaçam os múltiplos fios da vida dos homens e mulheres; aquilo que confere um quadro geral a seus discursos e ações...e remete à existência de uma sociedade”. Ou seja, tudo o que envolve viver em sociedade, de nossas necessidades cotidianas às demandas mais distantes que se
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formalizam e podem se tornar normas constitui política. A participação política é, assim, a forma como essas práticas, discursos e ações se materializam, se organizam e se manifestam (ROSANVALLON, 2010 p.72, apud ARAUJO, 2011, p. 93).
A ideia de liberdade do cidadão envolve a participação do indivíduo na esfera política e, segundo Pitanguy (2011), a participação ativa feminina demarca um caminho de superação social. “As mulheres têm advogado por seus direitos no âmbito do trabalho, da família, da garantia de seus direitos sociais, pela titularidade da terra, participação política, educação não sexista” (PITANGUY, 2011, p.39). Outra questão relevante abordada pela autora envolve a recente eleição de uma mulher para a Presidência da República e a ampliação do número de mulheres em cargos ministrais, visto que tem um efeito pedagógico fundamental na transformação do imaginário social. A presença de duas mulheres concorrendo em 2010 à presidência, e a eleição de Dilma Rousseff como primeira mulher a ocupar o mais alto cargo do país, provocam repercussões importantes para o debate sobre mulher e política no Brasil. O apoio a candidaturas femininas representa um passo adiante em direção a uma sociedade com representação política mais igualitária (PITANGUY, 2011, p.29).
A relação entre política e representação é uma das mais importantes no que diz respeito à garantia de direitos para as mulheres. Na perspectiva da 97
contemporaneidade e da popularização da internet, “as mídias sociais passaram a oferecer a qualquer pessoa a oportunidade de falar e de ouvir a partir de uma posição única e intransferível de autoridade” (CARVALHO, 2014, p.59). O que oportuna à era digital uma nova forma de fazer política, baseada na disseminação de ideias e ideologias. O espaço virtual assume, cada vez mais, a função de espaço político, na medida em que alarga possibilidades de discussão e de exercício de cidadania. A Internet abriu espaço para a manifestação de movimentos coletivos direcionados para a transformação dos valores e das instituições sociais (CARVALHO, 2014, p.67).
As novas tecnologias adquirem então um papel mais estratégico na atuação pública, em que as informações conseguem alcançar o público de forma potencializada. Abrindo espaços para debates políticos, despertando questionamentos, criando conexões e representando uma nova forma de comunicação em um sistema cultural e espaço de conflito, que está além do controle social. “Ao mesmo tempo em que a emergência das mídias digitais provocou danos imensos à mídia tradicional e a alguns pressupostos culturais, ela despertou possibilidades inéditas de se pensar a cultura e o acesso global aos bens culturais” (CARVALHO, 2014, p.58). Da esfera virtual se formam diálogos reais, que demonstram a capacidade de organização humana. 98
Na esfera dessa comunicação interativa e multidirecional, os sujeitos se desviam da condição de espectadores passivos e assumem uma postura participativa e colaborativa de fato. O dinamismo e a autoorganização são as marcas dessa nova forma de mobilização social (CARVALHO, 2014, p.68)
Do mesmo modo, Martinez (2019) discorre sobre a validação do feminismo e outros movimentos sociais no espaço virtual, utilizando plataformas de comunicação digital como blogs, redes sociais e vídeos, promovendo suas pautas e reivindicações. Segundo a autora, um dos grandes resultados da coletividade virtual é a capacidade de organização sensível e empática das mulheres, em que, pelo cuidado, são consolidadas estratégias de resistência e de combate aos avanços das tentativas de retirada de direitos. A cultura digital possibilita uma renovação do debate feminista, na medida que reúne interesses teóricos e análises sobre o papel da mulher na contemporaneidade, assim, utilizando as redes sociais de forma estratégica. A constituição de espaços de atuação às margens das formas institucionais reconhecidas indica certa recusa às formas de organização política (...), somam-se outras, também de caráter geracional: a incorporação teórica, conceitual e epistemológica de concepções consideradas “ultrapassadas” ou mesmo a prática política, que não deita raízes em um movimento considerado monolítico, embrutecido e burocratizado. E assim (...) o feminismo se
99
capilariza
em
diversos
formatos
e
tendências,
ampliando
consideravelmente a participação de mulheres em todos os seus recortes e interseções possíveis. Por esses motivos as novas plataformas de comunicação são tão atraentes aos olhos desta nova geração militante (MARTINEZ, 2019, p.10).
Apesar disso, Pelegrino (2011) atenta-se a analisar o cenário de forma crítica. Segundo a autora, em uma realidade brasileira composta por diversas desigualdades
sociais,
a
modernização
transposta
de
sociedades
desenvolvidas gera uma exclusão digital, que atinge os mais vulneráveis: “as mulheres de baixa renda, com pouca ou nenhuma qualificação e, sobretudo, as mulheres negras e pardas”. (...) em países dependentes com carências tão largas e profundas, como habitação, transporte, trabalho, saúde, lazer, acrescentar-se-ia a carência informacional ou, mais diretamente, a falta de um microcomputador conectado à Internet. Isso porque políticas públicas que
não
conseguem
prover
as
necessidades
básicas
de
sobrevivência, certamente não proverão equipamentos tecnológicos tão sofisticados. Por outro lado, considera-se indispensável refletir que mesmo imersos numa profunda crise de valores, os indivíduos ainda precisam comer, morar e “comunicar-se” com os outros (PELEGRINO, 2011, p.254-255).
No debate sobre o desenvolvimento urbano em um cenário neocapitalista, é inquestionável o impacto do consumo e sua reflexão social e 100
pouco democrática. O acesso a eletrodomésticos, tecnologia e comunicação e informatização também são indicadores de qualidade de vida. No Brasil, Pelegrino (2006) constatou que entre as mulheres brancas, as condições de infraestrutura urbana são melhores do que aquelas experimentadas por negras e pardas; ainda, em uma análise da urbanização brasileira, que o espaço reservado à mulher permanece sendo doméstico. Reconhecendo, assim, as marcas de uma sociedade fraturada social e espacialmente. A complementar essa reflexão: Muitas mulheres se sentem modernas por possuir um smartphone com um aplicativo que avisa quando virá a menstruação, ou uma geladeira de inox com dispositivo de gelo externo, e forno que desliga sozinho. Isso tudo sem se dar conta de que ainda são as responsáveis por fazer as compras, limpar a geladeira e cozinhar, por mais moderno que o eletrodoméstico seja. Há aqui a confusão de atrelar valores democráticos a valores capitalistas. De confundir emancipação e ascensão econômica. Ela trabalha fora, mas quando chega em casa ainda é responsável por cuidar dos filhos e pelos afazeres domésticos. A mentalidade de fato não mudou — os mecanismos de opressão somente se atualizaram. O mais prejudicial é que se cria a ideia de que ser bem-sucedida é possuir os mesmos direitos que o homem branco, e não romper com as lógicas da opressão. É fazer parte do sistema sem transformá-lo de fato.
As
mulheres
que
perseguem
esse
ideal
não
estão
necessariamente preocupadas com as negras e pobres que
101
trabalham em suas casas ou em discutir as várias possibilidades de ser mulher e enxergar seus privilégios. (...) Não é emancipação se iludir com novas tecnologias, enquanto persiste a divisão sexual do trabalho, enquanto o eterno feminino se impõe. Muito menos seguir numa lógica de exclusão com outros grupos. Nesse sentido, é preciso cuidar para que os conceitos e as ferramentas políticas pensadas por feministas diversas não sejam esvaziados de sentido (RIBEIRO, 2018, p.85).
Ribeiro (2018) atenta-se a essa questão pontuando o conceito de interseccionalidade5, em que se considera a raça, classe e gênero pensadas de modo indissociável. Segundo a autora, “a combinação de opressões coloca a mulher negra num lugar no qual somente a interseccionalidade permite uma verdadeira prática que não negue identidades em detrimentos de outras” (RIBEIRO, 2018, p.82). Em sua maioria originadas de classes populares, baixa escolaridade e residentes em espaços urbanos periféricos ou municípios de baixo desenvolvimento socioeconômico, meninas negras estão muito mais vulneráveis ao machismo e racismo. Apesar de o Brasil ser um país miscigenado,
5 A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. CRENSHAW, Kimberlé Williams. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao Gênero, Revista Estudos Feministas 10 (2002).
102
estereótipos racistas contribuem para uma cultura de violência contra essas mulheres. Seus corpos ao longo da história vêm sendo desumanizados e sexualizados. “Mulheres negras vêm historicamente pensando a categoria “mulher” de forma não universal e crítica, apontando sempre para a necessidade de se perceber outras possibilidades de ser mulher” (RIBEIRO, 2018, p.82). Reconhecer o status de mulheres brancas e homens negros como oscilante nos possibilita enxergar as especificidades e romper com a invisibilidade da realidade das mulheres negras. Para Kilomba, ser essa antítese de branquitude e masculinidade impossibilita que a mulher negra seja vista como sujeito. Nos termos de Beauvoir, seria a mulher negra, então, o outro absoluto. Tanto o olhar de homens brancos quanto de negros e de mulheres brancas confinaria a mulher negra a um local de subalternidade muito mais difícil de ser ultrapassado. Numa sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista, cada vez mais se torna necessário o aporte teórico e prático que o feminismo negro traz para pensarmos um novo marco civilizatório (RIBEIRO, 2018, p.84).
Essa consciência ultrapassa a iniciativa individual, implicando assim em uma ação coletiva. O conceito de empoderamento aplica-se nesta situação ao passo em que possui um significado coletivo e “diz respeito a mudanças sociais numa perspectiva antirracista, antielitista e antissexista, por meio das 103
mudanças das instituições sociais e das consciências individuais” (RIBEIRO, 2018, p.90). Trata-se de empoderar a si e aos outros como sujeitos ativos da mudança. Sob essa perspectiva, significa o comprometimento pela igualdade a fim de alcançar um fortalecimento social e uma sociedade mais justa para as mulheres e que essas conquistas, mesmo que individuais, são relacionadas a questões políticas e produz resultados democráticos e coletivos.
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Figura 12. “Uma laje na favela, uma mulher negra�. Fonte: @tatudobemcaio, 2019, via Twitter. 105
106
107
4. Coletividade Há uma via dupla dentro desse movimento que tangencia a questão do gênero: de um lado, o movimento feminista está envolvido nos debates políticos em relação ao papel da mulher na sociedade e sua atuação direta, que ganhou voz; do outro, com mais participantes, engloba demandas sociais que não atingem somente as mulheres e, em decorrência disso, reside até uma certa invisibilidade em relação ao direito delas. São reivindicações por mais vagas ou melhorias nas escolas, postos de saúde, nos transportes coletivos e nas questões habitacionais. Atualmente, a respeito da relação das questões urbanas brasileiras com a luta ativista de mulheres: (...) estão relacionados com os movimentos sociais pela questão da moradia, os movimentos contra a violência urbana e os movimentos sociais em relação a serviços públicos. As mulheres estão presentes nesses espaços, em redes associativas, nas organizações não governamentais, nas associações de bairro e nas associações comunitárias, em entidades assistenciais, em organizações populares, nos movimentos sociais, entre outros diversos setores sociais (GOHN, 2007, apud SUMI, 2018, p.77).
Isto ocorre, pois, a mulher sofre uma influência da vida doméstica que se traduz muito fortemente na vida pública – e essa tradução se dá também
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através da reivindicação de equipamentos e serviços em termos quantitativos e qualitativos. Para que possam trabalhar, participar, querem ter sua vida doméstica resolvida, através de serviços públicos ou através das relações de comunidade. No entanto, o discurso das mulheres frente ao desenvolvimento territorial nos últimos anos tem mudado significativamente para um forte discurso pela implementação de direitos (SANTORO, 2007 apud SUMI, 2018). As últimas três décadas foram marcantes para a história das mulheres brasileiras. Diversos progressos que transformaram seu cotidiano – tanto na esfera pública quanto privada – foram resultados de demandas feministas originários da ação intensa e ininterrupta dos movimentos de mulheres, segundo Pitanguy e Barsted (2011). Os direitos humanos e a própria humanidade foram conceitos revistos a fim de incluir a diversidade, uma das principais consequências das lutas dos movimentos sociais nacionais e internacionais. Novas identidades coletivas foram então reconhecidas enquanto sujeitos de direitos frente a violações e discriminações específicas, sendo elas de características envolvendo gênero, raça, etnia, faixa etária e orientação sexual (PITANGUY, 2011).
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Porque as mulheres têm sido privadas, ao longo dos séculos, do exercício pleno de direitos humanos e submetidas a abusos e violências, tanto em situações de guerra como no espaço da vida familiar e doméstica, seu papel tem sido de grande relevância na ampliação do alcance dos direitos humanos. Questões que sempre fizeram parte da sua agenda, como a violência doméstica, os direitos sexuais e reprodutivos, direitos sociais específicos da mulher, como o de herdar e ser proprietária, muito restringido em países islâmicos, a violação de sua integridade física, entre outros, vêm sendo colocadas por estes movimentos nas pautas de discussões das Nações Unidas (PITANGUY, 2011, p.31).
Essas conquistas, entretanto, “não se deram de forma homogênea e democrática, considerando as diferenças existentes entre as mulheres, sobretudo em função de raça/etnia e classe social” (PITANGUY; BARSTED, 2011, p.15). De fato, conceitos de violência coexistem em sociedade, lutando para se impor constantemente. Traduzidos então em formato de leis e legitimados em comportamentos, o reconhecimento social da cidadania em função de classe social, raça e etnia, sexo e sexualidade, entre outros critérios, permite o reconhecimento histórico violento brasileiro. “A violência contra a mulher tem heranças socioculturais, atuando na banalização dessa violência e na impunidade” (PITANGUY, 2011, p.50). Analisar a questão da exclusão e fragmentação dos direitos de cidadania esbarra, consequentemente, na 110
herança de impunidade do grupo social dominante, responsável por originar os conceitos de patriarcado e (falsa) universalidade. As críticas de algumas dessas feministas vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente, porque as mulheres são oprimidas de modos diferentes, tornando necessário discutir gênero com recorte de classe e raça, levando em conta as especificidades de cada uma. A universalização da categoria “mulheres” tendo em vista a representação política foi feita tendo como base a mulher branca de classe média — trabalhar fora sem a autorização do marido, por exemplo, jamais foi uma reivindicação das mulheres negras ou pobres. Além disso, essa onda propõe a desconstrução das teorias feministas e das representações que pensam a categoria de gênero de modo binário, ou seja, masculino/feminino (RIBEIRO, 2018, p.29).
Desta forma, apesar do mesmo gênero e algumas pautas similares, “não existe apenas um enfoque feminista: há diversidade quanto às posições ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas, assim como há grupos diversos, com posturas e ações diferentes” (RIBEIRO, 2018, p.30). A autora ainda defende a necessidade de não se calar diante de opressões, sejam elas relacionadas às pautas feministas, da população negra ou do movimento LGBT, pois responder contra o preconceito implica em ter consciência dos problemas que nos afligem enquanto sociedade e criar mecanismos para combatê-los.
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Figura 13. Manifestação de mulheres. Fonte: Blog da Raquel Rolnik, 2017.
112
4.1 Feminismo e suas vertentes Segundo o levantamento de Martinez (2019) em que grupos de discussão de Facebook foram levantados “buscando descrever, compreender e analisar as categorias que integram o imaginário e o conhecimento feminista contemporâneo”, a vertente do feminismo interseccional é a mais volumosa em membros; simultaneamente, é a que menos possui grupos de discussão em relação aos demais. Ainda, de acordo com a autora, a centralidade das categorias segue a ordem: Feminismo Liberal, Feminismo Radical, Feminismo Negro, Feminismo Interseccional, Feminismo no eixo LGBT/Queer/Trans e o Feminismo Marxista/Socialista. O Facebook é o espaço público contemporâneo, por excelência, arena de encontros e atualizações. Nele, é possível ao usuário informar como se sente, através da atualização de seu status, encontrar velhos amigos ou fazer novos amigos, mergulhar em discussões filosóficas ou superficiais, acessar uma série de links postados por seus contatos etc. (...) Os aspectos mais importantes das relações online são os laços humanos, cada vez mais cultivados em interações livres de fronteiras geográficas ou etárias. O reino digital se expande, acima de tudo, graças às experiências e aos valores humanos que circulam por ele. As redes sociais firmam, sobretudo, um caminho em direção aos outros e a novas formas de conexão (CARVALHO, 2014, p.62).
113
Assim, com o objetivo de compreender e refletir sobre os rumos e conhecimentos dos movimentos, segue uma breve caracterização das vertentes mais estudadas e aderidas pelas feministas, que irão refletir nas ações dos coletivos por meio de objetivos teóricos diferentes.
Vertente Liberal
Objetivo/pautas Reformas legais por equidade de gênero; liberdade sexual e reprodutiva; igualdade no mercado de trabalho e sexismo. Conhecimento, valorização e libertação do corpo feminino; luta
Radical
contra o patriarcado e o Estado; buscam redefinir o espaço social para tornarem-se agentes da construção de conceitos e instituições; fundaram centros para atender e defender mulheres; produziram reflexões e produções teóricas; construção de conceitos e instituições sociais (SILVA, 2008). Recuperar e reconstruir a identidade das mulheres negras; ideias produzidas por mulheres negras para mulheres negras,
Negro
defendendo seu ponto de vista e perspectiva; considerar a variedade de classe, região, idade e orientação sexual, resultando em diferentes, porém válidas expressões (MEDEIROS, 2017). Luta contra as diversas possibilidades de intersecção de fatores
Interseccional
que podem conformar sistemas de desigualdades – opressões de grupo, resultantes de sistemas de dominação e posicionamento
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social, como raça, gênero, classe, sexualidade e política (WERNECK, 2013).
LGBT/Queer/Trans
Visibilidade política dos movimentos sociais de gênero e sexualidade; preservação da identidade e respeito à sexualidade. Contra a subordinação da mulher iniciada com a propriedade privada, em que juntamente às crianças são consideradas
Marxista/socialista
escravas do homem. Propõe um método de conhecimento da realidade de forma a desvelá-la em todas as suas determinações: sociais, econômicas, políticas e culturais (CISNE, 2018). Discute o apagamento social e cultural que a colonização provocou, perpetuando desigualdades raciais e de gênero. As mulheres resistentes, subalternizadas, faveladas, negras,
Decolonial
nordestinas e etc. ao assumirem a centralidade da luta na cidade, redimensionam em forma de questionamento a construção social do gênero, e consequentemente viabilizam o exercício da resistência a colonialidade (ARAUJO, 2019). Quadro 1: Vertentes feminista, seus objetivos e pautas principais.
Como já explorado no capítulo 3.1 Uma história de luta da pesquisa, as reivindicações feministas, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, estavam estruturadas nos direitos políticos às mulheres, pauta fortemente ressaltada pelo Movimento Sufragista, o acesso à educação pública, a preocupação com questões domésticas (na esfera familiar e doméstica) e, por 115
fim, o direito das mulheres trabalhadoras (SILVA, 2008, p.2) – todas caracterizadas como Feminismo Liberal. A teoria de forte caráter reformista defende a mulher como um ser capaz de expressar suas escolhas e capacidades, devendo buscar a equidade com o gênero masculino através de suas próprias ações. Ainda, reconhece importância nas reformas legais e políticas sempre que houver disparidade de tratamento jurídico ou social entre homens e mulheres que coloque estas em posição de desvantagem. A ruptura com a corrente liberal agitou feministas para uma nova organização das lutas, que se caracterizou como Feminismo Radical. As lutas feministas radicais se fortalecem nas décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos, somadas com reflexões e investigações acadêmicas sobre a origem das desigualdades sexuais situadas em um sistema patriarcal. A ênfase das análises era a família, a sexualidade, a violência sexual e os direitos sobre o corpo. O Feminismo Radical é uma corrente feminista que se assenta sobre a afirmação de que a raiz da desigualdade social em todas as sociedades até agora existentes tem sido o patriarcado, a dominação do homem sobre a mulher. A Teoria do Patriarcado considera que os homens são os primeiros responsáveis pela opressão feminina e que o patriarcado necessita da
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diferenciação sexual para se manter como um sistema de poder, fundamentado pela explicação de que homens e mulheres seriam em essência diferentes (SILVA, 2008, p.4).
Apoiado no conceito de que “a raiz da dominação masculina estaria no patriarcado, nos papéis sociais intrínsecos ao sistema de gênero” (MARTINEZ, 2018, p.24), o movimento contribuiu para uma maior autoconsciência e práticas alternativas, visto que considerava apenas homens sendo beneficiados econômica, sexual e psicologicamente pelo sistema patriarcal, o que acentua a dimensão psicológica da opressão. De acordo com Martinez (2018), o movimento recorre a posições construcionistas e essencialistas, atribuindo um caráter estrutural à socialização de gênero. Segundo Silva (2008), o espaço social patriarcal e suas decorrentes violências físicas e morais contra a mulher são apoiados pela cultura masculina, pelo Estado e suas respectivas instituições, o que fortalece a rejeição pelas feministas radicais. Embasadas em uma política de conhecimento, valorização e libertação do corpo feminino, foram pensados e redefinidos espaços sociais para que as mulheres tenham a oportunidade de se tornar agentes da construção de conceitos e instituições sociais, de forma incentivar a conscientização feminina sobre o caráter coletivo de suas opressões. 117
Também fundaram centros para atender e defender mulheres maltratadas pelo companheiro. O movimento é a expressão concreta das reflexões e produções teóricas das feministas sobre as relações pessoais como relações de poder, também questionando a separação entre o público e o privado, identificada pela expressão “o pessoal é político” (SILVA, 2008, p.5).
Simultaneamente, as militantes negras denunciavam a invisibilidade das mulheres negras dentro das pautas de reinvindicação do movimento. No Brasil, o feminismo negro passou a ganhar força no fim da mesma década e no começo da seguinte. Ribeiro (2018) argumenta como é protagonizar a luta feminista negra, explicando que as meninas negras estão mais vulneráveis ao abuso, por serem socialmente excluídas. Por meio de entrevistas com diversos coletivos feministas da zona leste, Medeiros constata: Além deste sentimento de que determinadas vertentes feministas não representam as mulheres negras, também há críticas mais fortes ao “feminismo branco” (e “burguês”), com relação às suas práticas e concepções, que estariam afastadas das mulheres que vivem nas periferias (MEDEIROS, 2017, p. 184).
Ribeiro reforça essa crítica com estatísticas: “nos últimos 10 anos tenha diminuído o assassinato de mulheres brancas em quase 10% e aumentado em quase 55% o de mulheres negras, segundo o Mapa da Violência de 2015” (RIBEIRO, 2016, p.102). E a partir de sua própria vivência: 118
O racismo nos coloca fora da condição humana, e isso é muito violento. Muitas vezes achamos que o alcance dessa humanidade se dá através da idealização. Se o racismo diz que eu não sei, vou dizer que sei ainda mais. E para mim é muito importante desmistificar isso. Quero ser eu, não quero ser idealizada nem inferiorizada. E, assim como todas as pessoas, quero dizer que há dias em que sei e dias em que não sei. Às vezes choro e às vezes rio, às vezes quero e às vezes não quero. Quero ter essa liberdade humana de ser eu (RIBEIRO, 2018, p.74).
Percebe-se o quanto as fraturas sociais afetam agudamente as mulheres pobres e negras. Visto que a situação das mulheres depende das condições urbanas de vida, nas periferias os problemas urbanos são intensificados, onde estão os maiores obstáculos de vivências urbanas “como favelização, infraestrutura de saneamento e água potável, precarização dos transportes, dentre outros – expressão das incompletas e insuficientes políticas urbanas” (PELEGRINO, 2011, p.240). Desprovidas de políticas públicas efetivamente includentes, as mulheres pobres e negras buscam alcançar pela luta coletiva organizada o direito à cidade e o acesso democrático a bens e serviços. (...) o conjunto de “problemas” que dizem respeito à questão urbana não se restringe à habitação, mas também envolve os meios de transporte, a infraestrutura de saneamento (água, esgoto e coleta regular de lixo), a energia, a pavimentação, as políticas de preservação ambiental e de segurança, além da garantia de acesso a áreas de lazer. (...) Lamentavelmente, a urbanização acelerada, bem como a
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ineficiência ou mesmo a ausência de uma política urbana que estruture habitação, serviços públicos essenciais e uma gestão consequente das cidades, tem contribuído para agravar a chamada exclusão territorial. Nesse sentido, as mulheres, sobretudo as de baixa renda, são as mais penalizadas. É fato que a precariedade das ações públicas de saúde, educação, transporte e lazer acarreta dificuldades para o conjunto dos trabalhadores brasileiros. No entanto, a falta de políticas urbanas, principalmente nas metrópoles, contribui para dificultar ainda mais o cotidiano das trabalhadoras de baixa renda. Ou seja: as desigualdades de gênero, já cristalizadas no tecido social do país, são intensificadas num contexto de falta de uma política urbana eficaz (PELEGRINO, 2006, p.177).
Imersas neste cenário, a permanência das mulheres em situações desfavoráveis apenas intensifica a vulnerabilidade em relação às adversidades urbanas. Encabeçados por mulheres, grupos organizados na periferia batalham contra essa tendência, a fim de transformar a realidade de desigualdades e exclusão social. Fundamental, a ação dessas organizações influenciou políticas públicas e contribuiu para que a perspectiva feminista e antirracista fosse incorporada por diferentes setores e espaços institucionais brasileiros, de acordo com Heringer (2006).
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4.2 À Margem As mulheres de baixa renda moradoras das periferias, por sentirem intensamente a exclusão socioespacial, exigem então demandas mais abrangentes, envolvendo pautas educacionais, de saúde, de transporte e habitação. “A mulher sofre uma influência da vida doméstica que se traduz fortemente na vida pública. Essa tradução se dá também através da reivindicação de equipamentos e serviços em termos quantitativos e qualitativos” (SANTORO, 2007, p.8 apud SUMI, 2018, p.78). As desigualdades de gênero, novamente, esbarram na questão do desenho das cidades, que evidencia privilégios. A cidade tem se constituído ao longo do tempo em espaço profícuo para a explicitação das diferenças. As diferenças decorrem, primeiramente, da sua localização no urbano. Ou seja, aqueles que estão e agem no palco e, aqueles que porque excluídos, agem nos bastidores. Esta localização é determinada pela possibilidade de acesso aos bens e serviços produzidos na cidade. Sendo invariavelmente associada à formação histórica de pobres e ricos, é fácil constatar a trajetória sistemática de negação da cidade às classes populares (PELEGRINO, 2011, p.240).
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Em sua tese de doutorado, Medeiros (2017) estuda sobre os movimentos periféricos da zona leste de São Paulo. O autor percebe dois movimentos distintos: o primeiro, derivado dos movimentos sociais populares urbanos das décadas de 1970-80, é denominado de Feminismo Popular que “se desenvolveu no interior das redes associativas de movimentos populares como os de moradia, saúde e luta por creche, ele também se apropriou e adaptou do enquadramento ‘povo’/’popular’” (MEDEIROS, 2017, p.50) criando então uma relação mais íntima com questões institucionais. Por fruto de iniciativas da sociedade civil, na década de 80 são fundadas instituições por grupos de mulheres integrantes de movimentos sociais populares urbanos, atreladas também com o ciclo de contestação da redemocratização (MEDEIROS, 2017). Emergiram entidades autônomas com recursos e agendas próprios ou conveniadas com o poder público. Organizadas e mobilizadas por mais direitos em seus próprios bairros, essas mulheres foram as grandes responsáveis pela criação dos primeiros equipamentos públicos nos bairros periféricos de SP, onde a omissão do Estado sempre soou mais alto.
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Amzol e Lilith foram as primeiras organizações surgidas na Zona Leste que atenderam mulheres em situação de violência. Entre o final da década de 1980 e o início da de 90, surgem outras iniciativas da sociedade civil que se ocuparam da temática dos direitos das mulheres na Zona Leste: - em 26 de setembro de 1988 é fundado no centro da cidade o Bloco Afro Oriashé, o qual 15 anos depois criaria um espaço de acolhimento e formação de mulheres no extremo leste de São Paulo; - em 1989 é realizado o primeiro 8 de março do Coletivo de Mulheres de
São Mateus; - o Grupo Cultural Dandara realiza sua primeira apresentação de dança afro em agosto de 1990; - e, por fim, em 1993, nasce o Movimento de Mulheres de São Miguel, enquanto uma comissão temática de saúde da mulher no interior do Movimento de Saúde da Zona Leste (MSZL) (MEDEIROS, 2017, p.51-52).
Em um segundo momento, derivado das atividades culturais periféricas das décadas de 1990 e 2000, se forma o que o autor batiza de Feminismo Periférico. Relacionado ao ciclo da década de 2010, cujo ápice ocorreu em junho de 2013, em que “se desenvolveu a partir das redes associativas do movimento Hip Hop e dos saraus periféricos e também adaptou e interpretou criativamente o enquadramento ‘periferia’/’periférico’” (MEDEIROS, 2017, p.50).
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Aqui o conceito de sociabilidade é de muita importância, pois é uma das motivações principais dos encontros. Torna-se mais significativo quando encontram espaços de diálogos e relacionam suas necessidades – seja de comunicação, de solidariedade, de democracia, de autonomia, de trocas afetivas e principalmente de identidade. (...) a juventude é muitas vezes vista como um “momento de crise”; mas o que lhe interessa é não apenas a “crise da família como instituição socializadora”, como também a perda do papel central que antes a escola e o (mercado de) trabalho possuíam em termos de orientação de valores. Em um contexto em que a juventude é vivida “como um momento de distanciamento da família”, o “jovem passa a valorizar o grupo de pares como um espaço privilegiado de sociabilidade, de busca de novas atitudes e experimentação de novos espaços sociais, fazendo do grupo uma referência tipicamente juvenil” (DAYRELL, 2001, p.15-16, apud MEDEIROS, 2017, p. 112).
Os coletivos das jovens mulheres periféricas impulsionam seu associativismo, majoritariamente, por questionar valores impostos que lhe são experimentados na esfera pessoal. A partir de um apoio mútuo, originado de laços de parentesco – como irmãs, mães, tias e avós, enfrentam situações que
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Figura 14. Evento de Hip Hop no Buraco Quente, na Vila Formosa. Fonte: Frequência Caiçara,/ Ailton Marins, 2016.
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permeiam desde o machismo que livra os homens de assumir cuidados domésticos até situações de violência contra a mulher. “Contudo, nem sempre a instituição familiar cumpre um papel de potencializar o associativismo, podendo servir como um bloqueio aos direitos das mulheres, o que as impulsiona a buscar outras redes de sociabilidade” (MEDEIROS, 2017, p. 114). Buscam-se também auxílio e apoio fora da família, seja nas amizades, parcerias ou religiosidade, de forma a reforçar a identidade coletiva e política destas mulheres. Segundo Medeiros (2017), a educação formal também é relevante para o surgimento desses coletivos. O processo de democratização do ensino superior, na última década, permitiu a entrada de mulheres negras periféricas em um espaço privilegiado, como o ensino superior, o que permite uma interrelação entre mulheres advindas de periferias diferentes, mas que enfrentam desafios similares. O ambiente universitário é apenas mais uma experiência socializadora possível, e não imprescindível, para a formação do Feminismo Periférico, porque se torna uma matriz discursiva para ação coletiva.
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O novo ciclo político do associativismo de mulheres para mulheres na Zona Leste de São Paulo implica uma mudança na cultura política, orientada para a cultura periférica, definida por Érica Peçanha do Nascimento: Esta noção de cultura da periferia englobaria tanto à ideia de um conjunto simbólico próprio dos membros das camadas populares que habitam em bairros da periferia urbana quanto a alguns produtos e movimentos artístico-culturais por eles protagonizados. A cultura da periferia seria, então, a junção do modo de vida, comportamentos coletivos, valores, práticas, linguajares e vestimentas dos membros das classes populares situados nos bairros tidos como periféricos. E dela ainda fazem parte manifestações artísticas específicas, como as expressões do hip hop (break, rap e grafite) e a literatura marginalperiférica, que reproduziriam tal cultura no plano artístico não apenas por retratarem suas singularidades, mas por serem resultados da manipulação dos códigos culturais periféricos (como a linguagem com regras próprias de concordância verbal e uso do plural, as gírias específicas, os neologismos, etc.). Sob um viés antropológico, essa noção de cultura da periferia pode ser vista como um conjunto de produções simbólicas e materiais que é produzido e reproduzido constantemente, por meio do qual se organizam formas de sociabilidade, modos de sentir e pensar o mundo, valores, identidades, práticas sociais, comportamentos coletivos, etc.; e que caracteriza o estilo de vida dos membros das classes populares que habitam em bairros periféricos (NASCIMENTO, 2010, p. 118-119 apud MEDEIROS, 2017, p. 118).
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Essa política cultural gera um foco de interlocução com o poder público, em que são ocupados “equipamentos públicos estatais (biblioteca, centro cultural e centro educacional) e não-estatais (biblioteca comunitária, ponto de cultura) como também de espaços públicos (como praças)” (MEDEIROS, 2017, p. 118). Os espaços aqui são vistos como redes de sociabilidade, em que há uma forte participação feminina e atribuem-se identidades às diferentes quebradas nas periferias. Essa presença nos movimentos culturais periféricos permite uma solidariedade que fortalece a ocupação feminina de mais espaços, com coletivos consolidados abrindo caminhos para os novos coletivos, apoiando-se organizacional e emocionalmente ou inspirando umas às outras. As mulheres periféricas, dessa maneira, avançam na ocupação de esferas públicas já existentes, tanto físicas quanto virtuais – e na criação de sua própria. Os
movimentos
culturais
periféricos
certamente
são
tanto
contrapúblicos subalternos em geral quanto uma das matrizes discursivas do “Feminismo Periférico” em específico, considerando seus discos, produtoras, gravadoras, livros, editoras independentes e alternativas, zines, eventos, saraus, festas, pontos de encontro, sites, blogs, páginas de Facebook, etc. Existe uma quantidade crescente de livros da literatura periférica/marginal e CDs de rap produzidos por mulheres e cada vez mais as autoras, compositoras, leitoras e ouvintes
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compartilham espaços sociais e referências artísticas, culturais e discursivas, formando um verdadeiro público: um solo a partir do qual emergem os coletivos feministas periféricos (MEDEIROS, 2017, p. 129).
Neste cenário, a internet desempenha um papel crucial para democratizar o acesso direto e imediato à produção, circulação e recepção de debates e textos feministas (MEDEIROS, 2017). Os grupos de discussão da rede social Facebook definem os espaços mais frequentados pelas feministas, onde são compartilhados notícias, artigos, pedidos de ajuda ou simplesmente pelo aprendizado. Consolida-se, assim, como um “espaço facilitador de trocas, onde as mulheres identificam, compartilham e nomeiam experiências comuns” (MARTINEZ, 2019, p. 11). Na mesma linha, Pitanguy (2011) defende: São inúmeros os instrumentos utilizados pelos movimentos, redes, ONGs e articulações de mulheres em ações de advocacy nacionais e internacionais. Desde cartas e manifestos, debates, passeatas, encontros, petições, campanhas, artigos na mídia, marchas, dramatizações, discursos, divulgação de resultados de pesquisas e estudos, lobby no legislativo, diálogo com a mídia. Quanto maior e mais representativa for a coligação que defende a mesma agenda, maior será sua capacidade de impacto, capilaridade e sustentabilidade. Dentre os veículos de mobilização e difusão, as novas tecnologias de informação como Twitter, Facebook, listas eletrônicas, SMS, dentre outros, adquirem papel cada vez mais estratégico nessa última década, por seu baixo custo, longo alcance e introdução do tempo
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virtual na ação política. Marcam também um corte geracional na atuação pública. Utilizados sobretudo pela juventude, funcionam como poderoso mecanismo de aglutinação em torno de causas comuns. (...) Entretanto, não se pode perder de vista a relevância do contexto político no qual se desenvolve, e que demarca limites e possibilidades de definição de agendas e estratégias (PITANGUY, 2011, p.35).
Reflete-se, então, no caráter ambíguo das mídias sociais, visto que podem tanto
potencializar
novas
ações
coletivas
feministas
como
reforçar
desigualdades e violências de gênero – pois é como configuram-se processos de identificação e até mesmo motivação (MEDEIROS, 2017). Ainda segundo o autor, a recepção e a apropriação das teorias feministas passaram a ser realizadas de forma autônoma pelas militantes e ativistas periféricas, de modo individuado e bastante fragmentado. Ao considerar relatos individualizados, cria-se uma preocupação em como relacionar “um assunto de preocupação comum e, assim, um tópico legítimo do discurso público” (FRASER, 1992, p. 129 apud MEDEIROS, 2017, p. 165), questão que perdura historicamente com o gênero. “A concepção de privacidade doméstica delimita o espectro de temas que podem ser debatidos
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na esfera pública e dificulta as mulheres a, por exemplo, contestar discursiva e publicamente a violência doméstica” (MEDEIROS, 2017, p. 166). Fraser dá o exemplo da temática da violência doméstica contra as mulheres: até muito recentemente, a maioria das pessoas consideravam-na
um
assunto
privado
entre
casais
e
a
problematização feminista estava restrita a uma minoria. Foi por meio da formação de um contrapúblico subalterno (e o que Fraser chamou de
“contestação
discursiva
contínua”)
que
as
feministas
transformaram este tema como de preocupação comum da sociedade. (...) A autora aponta para uma retórica da privacidade – a qual a identifica como “pertencendo à vida íntima e doméstica ou pessoal, incluindo a vida sexual” – que é “utilizada historicamente para restringir o universo da contestação pública legítima” (FRASER, 1992,
apud MEDEIROS, 2017, p. 165).
Limitar esse discurso pelo delimitar do espectro público e privado retoma uma discussão levantada nesta pesquisa no capítulo 3.2 Corpo privado no
espaço público. Nesta linha tênue de definições e vivências, trabalham os coletivos periféricos feministas a favor da qualidade de vida feminina.
131
4.3 Abordagem coletivista Diversas associações periféricas autodenominadas Associações de
Mulheres têm suas atividades voltadas para os direitos da criança e do adolescente ou os direitos dos idosos. Ainda, há situações em que a ação de movimentos autointitulados de Movimento de Mulheres se orienta para a luta dos direitos sociais de um modo amplo, incluindo luta por moradia, creche, postos de saúde e outras melhorias urbanas, se relacionando mais profundamente com movimentos populares urbanos – os quais são, em sua maioria, compostos por mulheres (MEDEIROS, 2017), sem desenvolver uma luta específica pelo direito das mulheres. Para a análise e o mapeamento deste trabalho, foram considerados os coletivos feministas compostos por mulheres cujas ações sejam voltadas diretamente para mulheres e que necessariamente se relacionassem com ocupação de espaços públicos ou equipamentos culturais estritamente no recorte de estudo. Isto posto, foi realizado o levantamento de acordo com:
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– A causa principal: consideraram-se três causas principais, sendo elas: apoio a mulheres vítimas de violência (ícone amarelo); arte, cultura, música e educação (ícone rosa); e luta a opressão racial da mulher negra (ícone roxo); – Apropriação física ou sedes: para fins de mapeamento, os locais em que são realizados os eventos organizados pelos coletivos e a ocupação de espaços públicos ou equipamentos culturais estritamente no recorte de estudo; incluindo também as sedes dos coletivos, se houver, o que ocorre em sua maioria com coletivos que passaram por processo de institucionalização; – A atuação: considerando seu objetivo e o público principal; – Página em rede social: fortemente presente entre coletivos criados entre 2008 ao momento presente, em que a rede social é utilizada como ferramenta de aproximação e comunicação com o público. Ressalta-se que os coletivos cuja configuração está em negrito, sendo eles: AMZOL, Casa Cidinha, Casa da Mulher Lilith, Coletivo de Oyá, Pretas Bas e Pretas Peri são aqueles passaram por um processo de institucionalização. Enquanto o coletivo em itálico, o Feministas da Leste, não possui registro de atividades há dois anos, porém considerou-se sua atuação relevante. 133
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Quadro 2. Coletivos feministas atuantes na zona leste de São Paulo. Fonte: autora.
Verificou-se durante o levantamento de dados que as principais causas de atuação desses coletivos são intrinsecamente relacionadas à vivência dessas mulheres. A motivação de sua luta está em gerar uma melhor qualidade de vida para si e suas mães, filhas, netas, amigas e companheiras. O ponto de partida e a matéria-prima da ação coletiva são as suas próprias condições de existência e a sua vida cotidiana. Compreender a especificidade da situação social das mulheres negras é um primeiro passo para buscar superar o racismo, o machismo e a exploração de classe que elas sofrem (MEDEIROS, 2017, p. 168).
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O coletivo Pretas Peri aborda e vivencia o tema com ferramentas culturais – poesias, danças, encenações que mostram a diversidade da cultura afrobrasileira. As mulheres protagonistas do coletivo sofrem nas esferas do machismo, do racismo e do classismo, muito mais vulneráveis ao abuso e à violência. “A ocorrência cotidiana desses atos tem o poder de ofuscar a visibilidade do problema e de descriminalizá-lo no imaginário social e até mesmo no imaginário das mulheres” (BARSTED, 2006, p. 253), por isso é essencial a ação coletiva contra esse mecanismo de manter o poder, a dominação e o privilégio na sociedade em detrimento das mulheres. A representação visual que afirma sua negritude é um ato de resistência do coletivo, segundo Gennari e Moysés (2016). Em busca da aceitação na cor da pele, no cabelo e no corpo, as atividades enlaçam um espaço de troca através da arte, convidando coletivos e a comunidade para protagonizar os saraus. “Toda identidade é construída a partir da interação entre o contexto histórico e cultural do sujeito com o meio em que está inserido” (GENNARI; MOYSÉS, 2016, n.p.), o que enfatiza o reconhecimento e fortalecimento dessa identidade e de seu consequente empoderamento.
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Há uma valorização antirracista da identidade das mulheres negras – tornar a sua estética e a sua beleza um valor – tanto nas práticas dos coletivos voltados para mulheres sem contato prévio com estas temáticas quanto na própria vivência compartilhada entre as militantes no interior do coletivo e pessoas muito próximas delas (MEDEIROS, 2017, p.178).
Segundo Ribeiro (2017), o empoderamento no feminismo negro significa empoderar a si e aos outros e colocar as mulheres como sujeitos ativos da mudança. O conceito diz respeito a mudanças sociais “numa perspectiva antirracista, antielitista e antissexista, por meio das mudanças das instituições sociais e das consciências individuais” (RIBEIRO, 2018, p.90). Empoderamento implica uma ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação da realidade na qual se encontra. É uma nova concepção de poder que produz resultados democráticos e coletivos. É promover uma mudança numa sociedade dominada pelos homens e fornecer outras possibilidades
de
existência
e
comunidade.
É
enfrentar
a
naturalização das relações de poder desiguais entre gêneros e lutar por um olhar que vise a igualdade e o confronto com os privilégios que essas relações destinam aos homens. É a busca pelo direito à autonomia por suas escolhas, por seu corpo, por sua sexualidade (RIBEIRO, 2018, p.90-91).
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Figura 15. Troca de olhar afetiva. Fonte: Facebook Sarau Pretas Peri, 2017.
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As atividades culturais propostas pelo Pretas Peri em forma de sarau 6 ocorreram na Ocupação Cultural Casarão. O prédio abandonado abrigava antes um antigo telecentro, na rua São Gonçalo do Rio das Pedras. Devido a sua localização estratégica – próximo à estação Vila Mara/Jardim Helena da CPTM, artistas e coletivos culturais reuniram-se para o revitalizar e ocupar, batizando-o então de Ocupação Cultural Casarão (SOARES, 2016). Antes dessa ocupação, o distrito do Jardim Helena não possuía nenhum centro cultural, casa de cultura ou espaço público dedicado a cultura, segundo os dados do observatório da Rede Nossa São Paulo. O espaço é gerido de maneira autônoma pelos ocupantes, que, de acordo com Soares (2016), ressaltam que gostariam de manter uma gestão compartilhada com o poder público para que as ações tenham apoio público e ajuda na manutenção do espaço para serem realizadas as atividades propostas. Outra ocupação cultural bastante ativa na zona leste
O sarau é uma reunião de pessoas que tem algum vínculo com a arte e a cultura, expressando ali suas obras, ideias, pensamentos, dentre outras coisas. De forma geral, o sarau é uma criação social, um lugar onde pessoas, ainda que não tenham renome no mundo elitizado da arte, podem expressar aquilo que elas produzem. O sarau também é um local onde se transmite conhecimento, ainda que de maneira informal, podendo, assim, participar no processo de construção do pensamento do indivíduo em vários aspectos, não se restringindo apenas a um tema. SILVA, et. al. Saraus contemporâneos: a importância dos saraus como espaço político de socialização. Cadernos CESPUC, n. 29. Belo Horizonte, 2016. 6
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de São Paulo é a Ocupação Cultural Mateus Santos, em Ermelino Matarazzo. O edifício, antiga sede da subprefeitura, estava desativado há décadas. Agentes e coletivos culturais da região se reuniram para manter o local e as atividades, desenvolvidas de forma autônoma e independente. Originada, portanto, no ato de ocupar espaços ociosos ou espaços públicos subutilizados, sugere-se a criação de “uma esfera pública alternativa, que possibilitasse o uso ‘da identidade racial como um princípio para organizar a ação coletiva’” (HANCHARD, 1994, p.182 apud MEDEIROS, 2017, p. 182). Nesse contexto, Medeiros (2017) caracteriza as escolas de samba, blocos afro e saraus periféricos como esferas públicas negras, “uma vez que mobilizam uma identidade negra, tematizam a discriminação racial e podem fomentar ações coletivas antirracistas”. (...) diferentes linguagens artísticas – como a poesia e a literatura periféricas, a música (essencialmente o rap, eventualmente o funk, mas também uma vertente da cultura popular como é o samba de coco), o grafite como arte visual urbana e mesmo a expressão da identidade negra por meio da valorização do cabelo, da beleza e da estética das “mulheres pretas” – estão estruturando este novo associativismo de jovens periféricas (MEDEIROS, 2017, p. 209).
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Figura 16. Atividade de bateria durante um sarau. Fonte: Facebook Sarau Pretas Peri, 2018.
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Os equipamentos culturais são escassos na zona leste de São Paulo (vide
Mapa 03. Equipamentos Culturais na cidade de São Paulo). É comum, assim, os saraus e eventos culturais organizados pelos coletivos serem realizados em ocupações culturais independentes, espaços abertos ou cedidos – como bares e restaurantes, praças, parques e até mesmo escolas. As FemiSistahs, por entrevista, comentaram da sua experiência acolhedora com as ocupações da região. Pelo fato de dividirem as mesmas preocupações locais e familiaridade com os ocupantes, é natural a ajuda mútua ao realizar algum evento. Entretanto, as ocupações não possuem infraestrutura adequada. Segundo Gabriela Maurelli, organizadora da coletiva, elas passaram por um processo de descoberta em cada evento ao experimentar usar o corpo físico dos lugares de forma diferente, mas ressalta que “a Casa de Cultura [Raul Seixas] é a nossa casa, tem os nossos, onde a peça nasceu, onde o FemiSistahs tem um elo muito forte. É muito legal a relação que temos com o espaço no sentido coletivo e no sentido físico”. Mariana Mata, idealizadora, reforça: Aqui na nossa quebrada, o lugar que melhor nos acolhe é a Casa Raul Seixas. É o único parque que a gente tem aqui no nosso bairro e [a única] casa de cultura que em quilômetros. Itaquera já é grande, daí você tem uma casa de cultura no meio da COHAB, então ela não
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comporta tudo que deveria, mas é a casa que melhor nos acolhe no sentido que já tem uma estrutura física. A gente tem uma estrutura de relacionamento social com as pessoas que trabalham lá também, porque as ocupações não tem a mesma infraestrutura que a casa de cultura (MATA, FemiSistahs, entrevista, 07 de mai. 2020).
Uma das únicas casas de cultura da região, a Casa de Cultura Raul Seixas está implantada no Parque Raul Seixas, em Itaquera. É um dos últimos casarões remanescentes, em processo de tombamento pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura. A Resolução nº 33 do CONPRESP (2015) considera “a relevância ambiental desta área, o interesse arquitetônico-histórico-cultural de salvaguardar estas obras para transmiti-las como herança às sociedades futuras, que abriga o Parque e a Casa de Cultura Raul Seixas”. Atua como ponto de encontro e lazer local, abrindo seu espaço para ensaios e apresentações de grupos e coletivos, ponto de doação e circulação de livros, grupos de estudo, palestras, debates, seminários e conta com um espaço compartilhado para as secretarias de Saúde e Verde e Meio Ambiente. O sarau organizado pela coletiva denominado “Fecha com as Sistahs” já ocorreu no espaço da Casa de Cultura, onde contava com troca de experiências femininas
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Figura 17. Sarau Fecha com as Sistahs na Casa de Cultura Raul Seixas. Fonte: FemiSistahs, 2018, via Facebook.
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em questão de vivência da mulher periférica e mães, tanto que no evento contam com uma pessoa para ficar com as crianças para facilitar a participação das mães. Gabriela Maurelli comenta do resultado desses encontros: Esse processo também foi um processo de cura. Hoje nos vemos muito mais fortalecidas dessas feridas, conscientes desses processos, do que eles são e que somos muito mais fortes do que imaginamos. Olha como somos capazes de produzir um trabalho fodástico só da nossa lamúria, só da nossa dor. É uma fala ancestral, porque estamos falando de lamentações que vem das mulheres do nosso elo genético (MAURELLI, FemiSistahs, entrevista, 07 de mai. 2020).
Os saraus representam um espaço de sociabilidade crucial para estas jovens se encontrarem, se descobrirem e se articularem, de acordo com Medeiros (2017). E, não obstante, as mulheres encaram muita misoginia simplesmente por ocupar esses espaços, até mesmo nos movimentos culturais periféricos. Há relatos de preconceito, discriminação e machismo, “desvelando as relações de poder nas quais os homens ocupam posição privilegiada e opressora” (MEDEIROS, 2017, p.125). No meio da cultura Hip Hop e do grafite, bastante presente nos saraus periféricos, acontece uma certa “monopolização” por grupos masculinos. Coletivos de grafiteiras buscam instaurar uma receptividade à voz feminina 147
periférica, para que esta também seja representada nos muros das periferias e da cidade. A Cultura Hip Hop é vista como machista, tanto o rap – “extremamente dominado por homens”, como disse uma das integrantes do Mulheriu Clã – quanto o grafite – militantes do M.A.N.A. Crew relataram já terem sofrido discriminação, tendo seu trabalho desvalorizado e movido para um muro de menor destaque ou mesmo terem sofrido “olhares abusivos” por parte dos homens, uma situação descrita como desconfortável, incômoda e, no limite, perturbadora. Mesmo quando homens dos movimentos culturais acreditam estarem sendo solícitos, ao carregarem equipamentos ou se disporem a manejar alguma tecnologia, estas atitudes são vistas como paternalistas e invasivas, ameaçando a autonomia e independência das mulheres. Em última instância, sofrer situações de violência machista, mesmo que psicológica, culminam em decisões de mulheres de saírem de coletivos mistos e
buscarem auto-organizações apenas
de
mulheres
(MEDEIROS, 2017, p.125).
Apesar de a maioria dos saraus permitirem a participação de todos, independentes de gênero, o machismo enfrentado nesses ambientes resultou na formação de muitos coletivos compostos apenas por mulheres – o que, por sua vez, contribuiu para o protagonismo feminino. Destes movimentos, se desenvolve uma estreita rede de relações, a qual se atribuem as identidades feministas.
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Figura 18. Evento de grafite organizado. Fonte: Mulheres de Artitude, 2019, via Facebook.
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A década de 2010 vê uma alteração quantitativa significativa no tocante à divisão de autores por gênero: segundo levantamento realizado por Balbino (2016, p. 109-110), a participação de escritoras alcançou 45,7% (em 2012) e 47,0% (2013) e, pela primeira vez na história da literatura marginal/periférica ultrapassou o número de homens em 2014 (56,7%) e 2015 (52,5%), último ano em que a pesquisadora contabilizou a distribuição de autores e autoras. Além do surgimento de coletivos e coletâneas 100% compostos por mulheres, contribuiu para este protagonismo feminino, segundo a investigadora, a publicação de livros frutos de oficinas de movimentos culturais em escolas públicas; nestes casos, as estudantes sempre foram maioria com relação aos meninos (MEDEIROS, 2017, p. 124).
O coletivo Mulheres de Artitude realizaram ainda uma parceria com duas escolas estaduais para encontros e atividades com os alunos. É essencial pontuar como as gerações mais recentes de mulheres têm se interessado e participado ativamente destas pautas. Um exemplo disso é o Feministas da Leste, coletivo inaugurado por estudantes e professoras da Escola Estadual João Sarmento Pimentel, em São Mateus. As alunas e professoras defendiam a conscientização do machismo diário sofrido tanto na escola quanto em ambiente familiar. O grupo começou quando uma das meninas do colégio teve fotos íntimas vazadas, um cenário recorrente na vida das adolescentes. Insatisfeitas, as meninas conversaram 150
com a professora de História e decidiriam criar um coletivo e toda semana se reuniam para roda de conversa (GENNARI; MOYSÉS, 2016). A realidade é que esse machismo é reverberado até em ambiente acadêmico, em que as mulheres tem de lidar com seu caminho profissional obstruído desde muito jovens e muitas vezes nem o percebem, por estarem imersas em uma cultura patriarcal. Não poder fazer algo simplesmente pelo fato de ser mulher é uma violência muitas vezes silenciosa. Meninas crescem com a sensação de que são incapazes de realizar atividades nas quais os meninos são incentivados a serem destaques. Um estudo feito pelo Programa Internacional de Avaliação de Desempenho Escolar (Pisa), para a Organização Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mediu o desempenho de adolescentes de 15 anos em leitura, matemática e ciências, e mostrou que o Brasil é um dos países com maiores disparidades de gênero nos estudos. Seguindo ainda essa lógica, a OCDE evidenciou que, em todos os países verificados, somente 14% das mulheres escolheram carreiras em campos ligados à ciência, como engenharia e indústria (GENNARI; MOYSÉS, 2016, n.p.).
Combatendo esse cenário, fruto de uma parceria entre as secretarias municipais da Cultura e de Políticas paras as Mulheres, em 2015 foi inaugurada a primeira sala temática feminista de São Paulo na biblioteca Cora Coralina, também apelidada de “biblioteca feminista”. Por reconhecer que a zona leste
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possui um forte movimento de mulheres, optou-se por localizar o equipamento em Guaianazes. Concebida a partir da vocação natural do espaço da biblioteca, que já recebe o nome de uma marcante escritora brasileira, o local se propõe a valorizar a luta e as ações do movimento em defesa dos direitos das mulheres. Sob a curadoria da artista Biba Rigo, uma das salas desta biblioteca recebeu ambientação com a temática feminista, contando com a participação das mulheres que, a partir de suas próprias histórias, olhares e experiências, participaram de oficinas de artes visuais e garantiram ao local um visual com destaque para o empoderamento das mulheres na apropriação de seu espaço (SÃO PAULO, n.p.).
Dessa maneira, explora-se a descentralização ao acesso de um espaço público de cultura e lazer. Por disponibilizar um acervo para consultas, pesquisas e estudos e disponibilizar também um lugar de encontro, debate, construção e articulação, a biblioteca é considerada um “equipamento híbrido” (ANJOS, 2015). O objetivo da sala temática é apoiar e motivar a produção e expressão das mulheres, oferecendo tanto material de estudo quanto um espaço aberto para uso. A biblioteca Cora Coralina é um exemplo positivo da criação de um
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equipamento institucional resultante do diálogo desses movimentos com o governo, visto que suas frequentadoras são assíduas nos saraus culturais: (...) quem frequentava o Sarau Feminista “Junte-se na Luta” realizados na Biblioteca Cora Coralina durante o ano de 2014 eram principalmente mulheres jovens universitárias de fora do distrito de Guaianases. Mesmo que fossem mulheres de outras periferias, elas já eram frequentadoras dos “movimentos de literatura”, como ela se referiu aos saraus (MEDEIROS, 2017, p. 205).
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Figura 19. Biblioteca Cora Coralina em Guaianazes. Fonte: Revista Fรณrum, 2015.
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5. CARTOGRAFIA – MULHER, PROTAGONISTA Pesquisar as cidades nas perspectivas psicossocial e sociocultural faz com que sejam discutidas novas formas de organização do território, visando superar obstáculos, segundo Bomfim (2008). Nessa linha, a afetividade como expressão do simbolismo do espaço reflete a síntese do encontro do indivíduo com a cidade. Investigar sentimentos e emoções do habitante da cidade é um processo difícil de ser operacionalizado, porque emoções e sentimentos não são, normalmente, identificados e nomeados com facilidade. Poderíamos dizer que as sensações, emoções e sentimentos, como parte de uma linguagem interior, podem ser, muitas vezes, intangíveis como expressão exterior. O caminho que vai da sensação à enunciação é um processo complexo e, por isso, encontrar meios que acessem os afetos, refletidos na realidade da vida cotidiana, criados e recriados a cada dia pelos habitantes da cidade, acarreta um certo grau de intangibilidade. Chegar a estas sensações, aos sentimentos, sem correr o risco de acessar somente processos racionais, é um grande desafio metodológico (BOMFIM, 2008, p.255).
A metodologia de apreensão dos afetos, em que se busca uma compreensão na relação entre subjetividade e o espaço construído, enfatiza o afeto como grande agregador da percepção e do conhecimento sobre a cidade, 158
de acordo com Bomfim (2008). O receptor dos signos e símbolos espaciais é o corpo – imerso no espaço, possui recursos do inconsciente que são mantidos escondidos na rotina contemporânea vivida pela maioria das pessoas. Em nossa condição de viventes somos constituídos pelos efeitos das forças do fluxo vital e suas relações diversas imutáveis que agitam as formas de um mundo. Tais forças atingem singularmente todos os corpos que o compõem —humanos e não humanos—, fazendo deles um só corpo, em variação contínua, quer se tenha ou não consciência disto. Podemos designar esses efeitos por afetos. Trata-se de uma experiência extrapessoal (pois aqui não há contorno pessoal, já que somos os efeitos cambiantes das forças da biosfera—, os quais compõem e recompõem nossos corpos), extrassensorial (pois se dá via afeto, distinto da percepção, própria do sensível) e extrassentimental (pois se dá via emoção-vital, distinta da emoção psicológica que chamamos de sentimentos (ROLNIK, 2018, p.111).
Estes conceitos demandam um contato em primeira pessoa para que seja entendido o contexto e toda vivência e atuação com o espaço urbano. Assim, foi contatado um dos coletivos mapeados. As FemiSistahs foram selecionadas devido o prévio contato com uma expositora de um dos saraus denominados Fecha com as Sistahs. Elas responderam de prontidão e se demonstraram genuinamente dispostas a participar e ajudar na pesquisa.
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Assim, partindo da entrevista realizada com as integrantes (Anexo A), será compreendido o contexto em que elas vivenciam o espaço urbano, de uma maneira mais intimista, a fim de ser realizada uma leitura cartográfica afetiva, considerando estas percepções. O coletivo promove eventos e debates sobre o feminismo e a mulher na sociedade, buscando unir, empoderar e libertar as mulheres de rótulos sociais que as acompanham. As organizadoras acreditam que o feminismo experimentado por elas representa sua vivência e, ao promover esses eventos, conseguem levar a informação e conceitos para quem não tem acesso. O registro e a contribuição aqui levantados buscam significar uma
ampliação das vozes que elas já têm, traduzidas para o meio acadêmico, especialmente da arquitetura e urbanismo.
5.1 Vivências das FemiSistahs Residentes em Itaquera, a região trouxe grande influência na atuação das mulheres integrantes da FemiSistahs. Bianca Tocaccelli menciona o imaginário da sua Itaquera a partir de seu contexto familiar: “eu acho que minha família foi assistindo Itaquera crescendo. Só na minha rua, meu pai lembra de viver numa
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mata atlântica, não foi minha Itaquera”. Conta de quando era criança, em que sua rua era ponto de encontro para jovens: Aqui se reuniam crias pra jogar vôlei, pra empinar pipa. Galera pula na estação Dom Bosco para empinar. A arte do pipa é estudar política assistindo os caras empinando. Tem toda uma questão política, às vezes simbólica, às vezes financeira – pra quem você vai dar o pipa que caiu na sua casa. Ai depois eu vi minha rua se tornar apenas de carro, fiquei pensando no meu pai pensando na mata atlântica e eu chateada porque as cria não tá aqui na rua. Percebo o processo de urbanização e uma inteligência para além do bairro, eu acho que as nossas relações são muitas com a estrutura [urbana] (TOCACCELLI, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
A atriz discorre também que cresceu afastada de espaços públicos, pois seus pais tinham medo. Depois da faculdade, por inquietações simbólicas, políticas e discursivas de existir no espaço, buscou um grupo feminista. Entrou pelo teatro na coletiva7 e isso, para ela, eliminou “catracas invisíveis” e permitiu conhecer o espaço urbano em que ela vive e levar esse direito a outras mulheres. “Tenho vizinhas que morrem de medo de andar uma rua aqui, de poder falar
7 Durante a entrevista, as organizadoras se referiam à organização apenas no feminino. Nesta seção da pesquisa, a respeito a elas e seu movimento, ao ser referido o termo coletivo será escrito no feminino, como é pronunciado pelas organizadoras.
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Figura 20. Fecha com as Sistahs na Okupação Cultural Coragem. 162 Fonte: FemiSistahs, 2020, via Facebook.
assim vamos juntas, vamos lá ver uma poesia, alguém cantar. É uma forma da gente começar a olhar coletivamente pro espaço”. Buscando descontruir o medo que foi criado dentro de si, reflete: Depois de velha aprendi o termo de “política do medo”, que é estruturada pelos jornais, pelas falas, pelos contos que são contados pra gente e isso vai criando um tipo físico de relação com o espaço coletivo, né? Que é a rua e enfim, locais de encontro. Fiquei pensando nisso sendo mulher, né. Porque eu até tentei levar isso pra um processo criativo, que fala da lenda do abusador, desse homem que vai te pegar. Fiquei pensando nesses imaginários que criam dentro da gente e que são reais (TOCACCELLI, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Gabriela Maurelli relata que “a dor em comum é o que une a coletiva. É reconfortante estar com mulheres que te entendem, aceitam, que se apoiem, criando uma referência e força”. A residente da COHAB II relata também que na periferia se mobilizam diversas ocupações culturais. Vale pontuar aqui sobre os conjuntos habitacionais chamados de COHABs. Os subúrbios da zona leste de São Paulo são ocupados com os maiores conjuntos habitacionais do país em número de unidades (IWAKAMI; SANCHES; ROCHA, 2013), decorrentes da promoção da expansão periférica dos bairros dormitórios. O conjunto José Bonifácio, inaugurado em 1980, foi entregue aos moradores sem que as áreas públicas sequer tivessem sido concluídas e as condições de acesso se 163
mantiveram precárias. Neste contexto, Gabriela defende que a insuficiência de equipamentos provocou a coletividade e a luta dos moradores. A gente tem essa referência na COHAB [José Bonifácio] dessas ocupações, por conta dessas necessidades. Se a gente não tem um número de posto de saúde, creche insuficiente que dirá pontos de cultura pro tanto de gente que tem nesse perímetro. Com tantas caixas de fósforos de prédios. Aqui sempre teve muita essa movimentação, mas só fui ter uma referência consciente na adolescência, dos coletivos e da ação cultural da quebrada. Nasci em São Miguel, mas tá
num lugar muito individual, enquanto na COHAB parece que é mais uma visão coletiva, para que todos tenham acesso. A gente começou nesse movimento junto com a galera do Reggae na Rua, Coletivo Alma. O primeiro sarau que fui foi em 2008, do Coletivo Alma. Era a força de querer, de todo mundo (MAURELLI, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Os moradores das periferias têm de se deslocar para poder acessar esses equipamentos, além da rotina diária para o trabalho, “de ônibus ou a pé para chegar às estações ou até as grandes avenidas que se direcionam para as áreas centrais”, de acordo com Iwakami, Sanches e Rocha (2013, p. 5). Isto porque os empregos estão localizados majoritariamente nas áreas centrais, o que intensifica o movimento pendular diário dessa população.
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“Na simples observação do quadro urbano do município, verifica-se a polarização linear dos trajetos, paralelos entre si, todos direcionados para o centro: o trem, o metrô e a Radial Leste” (IWAKAMI; SANCHES; ROCHA, 2013, p. 5). Além do deslocamento diário, Mari Mata levanta que, simultaneamente, tem de lidar com a violação do seu direito de usufruir a cidade por conta do seu gênero: Eu trabalho no centro então ando de condução, na minha rotina, pego aquele trem infernal de manhã, pra acabar com o humor de qualquer pessoa. Você fica ali, sujeita a todo tipo de assédio. É algo que me pega demais, de pensar o quanto a cidade não é nossa, você não tem o direito de ir e vir por causa do assédio. É um abuso muito grande, sabe? (MATA, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Juntamente a essas questões, Isabella Rocha adiciona sua perspectiva. Com 16 anos, a DJ já trabalhava em Pinheiros e viajava diariamente. Relata das muitas vezes que teve de optar entre pagar seus estudos, o transporte ou a alimentação. As integrantes da coletiva explicam, ainda, como o transporte público para ir ao centro é muito mais facilitado do que uma locomoção da periferia para ela mesma. Bianca Tocaccelli complementa: “Ir para a [estação] Luz e ir para a casa da Gabis, de ônibus, demora muito tempo. Transporte
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público na quebrada é uma viagem. Tem muito a ver com a relação de transição e acesso”. Sempre me fez pensar em o que é o centro, será que é onde as pessoas estão? Porque se for isso, o centro deveria ser o bairro e não a cidade. As pessoas saem dos bairros para trabalhar lá, entende? Por que eu tenho que sair daqui para ir pra lá? (PANTALEÃO, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Todas elas carregam duplas ou triplas jornadas de trabalho. Mariana Mata, idealizadora da coletiva, defende a administração em forma do trabalho em rede para evitar sobrecarregar as integrantes e, ainda, alcançar mais mulheres. Sobre esse assunto, Medeiros (2017) discorreu sobre a “quarta jornada”, mencionando o esforço de manter a militância e os coletivos ativos: (...) a situação social das mulheres periféricas implica que a sua militância é, em geral, uma “quarta jornada de trabalho”: para além da ocupação profissional, dos serviços domésticos (ainda determinados pela divisão sexual do trabalho, intensificado por algumas militantes serem mães solteiras) e, por último, da frequência, muitas vezes comum mas nem sempre determinante, em um curso de graduação no Ensino Superior (e, mais raramente, na Pós-Graduação) (MEDEIROS, 2017, p. 62).
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Além dos trabalhos e estudos, é constatado também sobre os equipamentos culturais estarem majoritariamente no centro. Thaís Pantaleão, uma das organizadoras da coletiva, contou sobre sua antiga relação de dependência do centro para vivenciar a cidade: Da minha locomoção, a uns tempos atrás, a maioria das coisas que eu fazia era no centro. É a nossa realidade, por mais que a gente more aqui em regiões de bairro, ainda assim a gente faz muita coisa lá. Eu queria assistir uma peça de teatro, tomar uma cerveja com alguém. Eu comecei a repensar esse comportamento, porque aqui também é produzido muita coisa. A galera prefere ir pra lá ainda assim. Comecei a me desprender do centro e enxergar esses espaços que em sua maioria eu não conhecia. Como a princípio eu sempre tava indo pro centro, sempre foi uma questão pra eu me locomover porque a gente depende de transporte público e tem que contar com todos os imprevistos que podem acontecer. Mas, hoje, que eu procuro fazer aqui, é difícil nesse sentido porque o transporte público não contempla – preço abusivo da passagem, caminhos longos, lugares que não são atendidos. Eu me sinto mais confortável aqui em Itaquera, na COHAB. Hoje eu tenho medo do centro, talvez por essa condição de ser mulher, é que o centro é muito perigoso (PANTALEÃO, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Bianca também divide sua experiência com o centro. Para a atriz, o centro esbanja a correria paulistana a falsa universalização do espaço urbano. Brincou sobre o dia que uma das mulheres do coletivo comentaram sobre ela reproduzir 169
uma “atitude burguesa” e como o centro possui essa característica de “lugar elitizado do ato, do gesto, da forma de falar – e como eu fui domesticada para estar lá”. Eu tava numa instituição até dezembro, meu corpo tava lá todo dia. Eu não tinha nem mais consciência espacial de locomoção; eu moro do lado da estação, minha casa treme por causa do trem da estação Dom Bosco. Teve uma forma poética de entender o que é essa locomoção pra mim. Lembro que chegou num momento de entender que eu era o trem, assim. Acho que foi nos reflexos do trem que eu comecei a ver o meu (TOCACCELLI, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Gabriela complementa que nunca se sentiu pertencente ao centro por sempre lhe parecer um ambiente muito elitista. “Ainda, pra mim, é uma ideia inconsciente de que o centro está numa classe além, quando eu estivesse num momento mais acessível que eu poderia dar um rolê no centro”. Sua relação profissional, diferente das outras organizadoras da coletiva, está na periferia, onde ela leciona em três lugares diferentes. Por possuir carro para se locomover entre os trabalhos e cuidar das tarefas domésticas e dos filhos, também ajuda no transporte de equipamentos e carona para o pessoal da coletiva.
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Em relação à questão de transporte, me sinto privilegiada por ter um carro e é nele que fazemos a maior parte das ações da coletiva. É aquela política da comunidade, da quebrada, cabe 5 pessoas no carro e os equipamentos e a porra toda. Hoje eu trabalho aqui e no extremo da Norte, trampo com a coletiva, as cria e a casa. É muito doido lidar com isso tudo. Tô sempre louca, descabelada, atrasada, mas acho que a gente tá vivendo um momento agora de transformação, o centro é outro rolê, estamos preocupados com o nosso (MAURELLI, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Mari Mata adiciona que, quando as FemiSistahs foram contempladas pelo Programa VAI, ousaram realizar eventos em outras regiões de São Paulo até mesmo pela questão do transporte, pois o carro facilitava a locomoção da coletiva. “Não deu muito certo, por questões burocráticas e de articulação, até mesmo porque não é nosso território. Aqui a gente se conhece, faz coisa junto. E nas outras regiões tinha essa dificuldade”. O programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), foi criado em 2003 para apoiar financeiramente coletivos culturais da cidade de São Paulo, principalmente de regiões com precariedade de recursos e equipamentos culturais.
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Figura 21. Fecha com as Sistahs na Casa de Cultura Raul Seixas. Fonte: FemiSistahs, 2018, via Facebook.
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Por conta da conexão com os movimentos culturais, os coletivos feministas periféricos têm como principal foco de interlocução com o poder público não a área de assistência social (ou outras políticas públicas por meio das quais se possam efetivar os direitos das mulheres) mas, principalmente, a política cultural. O financiamento de suas atividades (quando existem: muitas das atividades são auto financiadas ou baseadas em trabalho não-remunerado) provém quase que exclusivamente, até o momento, do edital do Programa VAI, da Secretaria Municipal da Cultura (MEDEIROS, 2017, p.119)
Para elas, o VAI foi uma conquista por possibilitar um incentivo à cultura periférica. O programa criado pela Lei Municipal nº 13.540/2003 e, em 2014, ganhou uma segunda modalidade por meio da Lei Municipal 15.897/2013, auxilia nos gastos dos eventos, como água, luz, equipamentos e infraestrutura. Antes, para levantar capital, recorriam a coletas financeiras entre os grupos para cobrir as despesas, criando estratégias para sobreviver e manter a coletiva viva, de forma independente. Quando a gente começou a fazer toda essa caminhada cultural e independente, não havia ainda um acesso da forma como a gente tem hoje aos fomentos públicos, aqui da periferia. Era inacessível. Aí o VAI foi uma conquista que possibilitou um olhar a cultura da periferia. A verba que é destinada a cultura vai para grandes centros culturais e outros equipamentos da cultura que já são acessíveis – no centro, na zona sul, nos melhores bairros da zona norte e sul. Aqui na periferia não, com muita luta foi feita uma casa de cultura que a princípio foi gerida por movimentos independentes, mas com o passar do tempo
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foi gerida por gente que não tinha interesses no território, na cultura periférica, por causa das gestões que foram acontecendo. Com a proposta do VAI, houve uma oportunidade de a cultura periférica acontecer (MATA, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Entretanto, por mais que o VAI seja um incentivo e represente um investimento público, apresenta muitos impedimentos burocráticos e oferece um valor baixo por um curto período – de 6 a 8 meses. Similarmente há o Programa de Fomento à Cultura da Periferia, criado pela Lei Municipal 16.469/16, que financia projetos de coletivos artísticos culturais atuantes das periferias da cidade de São Paulo. O edital permite um valor máximo maior e um cronograma de até 24 meses. Mari Mata comenta sobre o apoio mútuo dos coletivos periféricos, buscando fortalecer o movimento e manter suas atividades. Já tiveram coletivos aqui na quebrada que foram contemplados por esses editais e conseguiram abrir portas e a gente vai comentando pra abrir as portas para outros. Primeiro, pelo acesso à informação e fomentar as atividades dessa rede. Aqui quando alguém ganha o fomento, vai distribuindo para outros coletivos para fortalecer todos. Apesar de o VAI ser um valor bem baixo, sem ele era um valor nenhum. Os coletivos que recebem o fomento público já estão envolvidos com a cultura, com os movimentos, já estão articulados com os ativistas daquela quebrada e por isso está desenvolvendo um projeto com o VAI, por exemplo. A gente vem sofrendo um desmoronar das políticas
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públicas e hoje o VAI contempla um número muito menor de coletivos e tem questões burocráticas que criam muito obstáculos (MATA, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
A respeito do apoio mútuo entre os coletivos, Medeiros (2017) explica que a solidariedade fortalece e retroalimenta a ocupação feminina de cada vez mais espaços. Seja indicando caminhos de financiamento de projetos culturais via editais, apoiando organizacional e emocionalmente as que chegam na cena cultural mais tardiamente ou seja inspirando a adoção de repertórios, “as mulheres periféricas avançam na ocupação de esferas públicas já existentes – tanto as físicas, como os saraus, quanto as virtuais, como o Facebook – e também na criação de sua própria esfera pública” (MEDEIROS, 2017, p. 126).
5.2 Cartografia afetiva Tuan (2013) fortalece o conceito de que a intimidade entre as pessoas é construída no momento de consciência e troca, tão propostas nos citados saraus. Cada troca íntima acontece em um local, que por sua vez, soma na qualidade do encontro. Esses locais “podem ficar gravados no mais profundo da memória e, cada vez que são lembrados, produzem intensa satisfação” (TUAN, 2013, p. 172). Para Silveira, Freitas e Mattos (2019), o lugar é a expressão da 175
experiência e identidade humana, fundamentada no sentimento de pertencimento. Pode-se concluir que o lugar abriga os elementos físicos que impactam na percepção humana e que podem facilitar a comunicação afetiva e qualitativa entre indivíduos. As emoções começam a dar cor ao bairro inteiro – recorrendo e extrapolando a experiencia direta de cada uma de suas partes (...). Assim, o sentimento afetuoso que se tem por uma esquina expandese para incluir a área maior. Embora um acontecimento externo, como a reurbanização, permita às pessoas enxergar a unidade maior, essa percepção se torna bem real se a unidade, de fato, tem um forte sabor local, caráter visual e limites definidos (TUAN, 2013, p.209).
Verificou-se durante a conversa com as FemiSistahs o quanto o bairro faz parte dessa identidade e compõe a própria organização. Os coletivos e ocupações dialogam entre si com facilidade, pois vivenciam as mesmas dificuldades sociais e estão buscando um objetivo em comum. Na ação desses grupos, os espaços públicos urbanos da zona leste se tornam suporte para a evolução das ações artísticas. “A arte, nessas circunstancias, atua como agente facilitador que cria condições para o diálogo entre pessoas, desenvolvendo a conscientização, ou seja, o saber sobre si mesmo e sobre a coletividade” (SILVEIRA; FREITAS; MATTOS, 2019, p. 7).
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Durante a entrevista, foi pedido a elas que elegessem um evento ao qual teriam mais afeto ao espaço. A coletiva pontuou a Casa Cultural Raul Seixas pois, apesar de terem atuação assídua nas ocupações, a casa as acolhe no sentido de possuir uma maior infraestrutura – foi, inclusive, onde elas criaram a peça, o que favoreceu a questão lúdica da criação, segundo Gabriela. Foram relatadas as idas e vindas dos ensaios realizados pelas integrantes para a peça “Essa Gente que Menstrua”. Por conta de suas jornadas de trabalho, as oficinas eram realizadas no período noturno, em que a casa cultural realizou uma concessão por não funcionar fora do horário comercial. Contudo, esse período é o que as mulheres mais expressam medo, segundo Siqueira: A questão da temporalidade também parece influenciar no uso do espaço público pela mulher. À noite, como constatou Valentine em sua pesquisa, as mulheres expressam ter medo de todos os lugares enquanto que no período diurno, elas identificam lugares isolados específicos como assustadores. Isto não ocorre apenas pela possibilidade da redução da visibilidade, mas devido à natureza das mudanças do espaço público, que na noite muitas vezes passa a ser dominado pelos homens. E essa dominação não se dá apenas pela apropriação numérica do espaço, mas através de um comportamento agressivo que intimida as mulheres. Como por exemplo, o assédio verbal ou físico (SIQUEIRA, 2015, p. 45).
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Figura 22. Casa de Cultura Raul Seixas. Fonte: Archdaily, 2020.
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Para a investigação, foram descritos dois caminhos distintos, colocados no mapa como “Caminho percorrido A”, cujo ponto de partida é a COHAB II José Bonifácio, e “Caminho percorrido B”, iniciado na estação Dom Bosco, ambos como destino final a Casa de Cultura Raul Seixas. No caminho percorrido A, Mari Mata explica que poderia realizá-lo a pé, mas se sente menos segura então opta por ir de carro. Reclama da falta de iluminação e dos espaços subutilizados sem movimentação, que geram abordagens invasivas e perigosas. Na rua [que dá acesso à COHAB] tem um campão grande, é um lugar escuro de pouca iluminação, tem histórico de assalto. A iluminação pública aqui não é eficiente e gera mais vulnerabilidade. A noite se torna um lugar não seguro. Quando a gente desenvolveu a oficina, as aulas aconteciam quando o parque já estava fechado, porque durante o horário comercial da Casa [de Cultura Raul Seixas] não nos atendia por conta das nossas triplas jornadas então conseguimos essa concessão. Sempre fiquei preocupada com as meninas pra voltarem pra casa, por mais que esse lugar seja próximo da minha casa é um lugar seguro em determinados horários (MATA, FemiSistahs, entrevista, 07 mai. 2020).
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Ao passar pela rua que dá acesso à COHAB e desembocar na Avenida João Batista Conti, relata que fica mais tranquila por conta da configuração comercial que gera movimentação, logo, mais sensação de segurança. A idealizadora narra um pouco da história desses comércios: Esses espaços de cultura que a gente tem hoje, a maioria deles foi projeto pra atender a comunidade da COHAB para serem comércios para atender aquelas comunidades. Com os hipermercados vindo pra nossa região, os pequenos comércios foram quebrando, então foram abrindo comércios informais em suas garagens – isso quebrou os lugares que acabaram ficando abandonados. A rua tem dezenas de lojinhas uma do lado da outra, quando eu chego nessa avenida já é mais tranquilo o segundo quarteirão por causa da movimentação (MATA, FemiSistahs, entrevista, 07 mai. 2020).
Juntamente com Mari Mata, Gabriela explica que costumava ir de carro aos ensaios por precisar “passar ali e em mais dez lugares”. Descreve como se sente mais segura de carro, até porque, como motorista, deve estar atenta ao entorno durante o trajeto completo. O momento que ela se sente mais fragilizada e vulnerável é quando para em um semáforo ou avista um carro de polícia: “eu tenho medo disso tudo, mas eu sou muito na agressiva. Eu era pichadora então eu vivia com uma galera que tava na rua quando não tinha ninguém. Isso traz pra mim uma posição de não ficar tão intimidada”. 181
Figura 23. Rua João Batista Conti, ênfase aos comércios concebidos nas garagens. Fonte: Google Maps.
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Bianca e Thaís faziam o percurso da estação Dom Bosco até a Casa de Cultura Raul Seixas juntas, pela Rua Sábbado D’Angelo. Thaís conta que, nos primeiros encontros, o portão da Casa de Cultura às vezes estava fechado e as preocupava por já ter passado das 19h e ter menos pessoas circulando, causando muita inquietação. Bianca relata os obstáculos do trajeto: Nele tem um lugar que é um lava-rápido, ficam uns homens sentados tomando uma cerveja. Daí tem um grande terreno que é só uma parede, um muro. Ali é amedrontador, é o lugar de mais tensão, porque ainda indo os comércios ainda estão abertos, tem mais circulação, mas na volta não. Quando chega na casa de cultura, temos que dar uma volta pra chegar naquele portão e nas primeiras vezes eu morria de medo, até achar o portão (TOCACCELLI, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Os pontos de segurança dos trechos variam entre as integrantes. Bianca narrou sobre o vínculo que criou com os meninos que pulavam o muro do parque para jogar bola à noite: “eu me sentia segura para gritar se alguma coisa acontecesse porque sabia que os moleques iam jogar bola hoje”. Thaís comentou sobre o caminho de volta, mais especificamente do momento que ela avistava a estação Dom Bosco.
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Acesso pela Rua Sábbado D’Angelo
Acesso pela Avenida Professor Batista Conti
Casa de Cultura Raul Seixas
Figura 24. Planta do Parque Raul Seixas. Fonte: Archdaily, 2020.
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Figura 25. Entrada 185do Parque Raul Seixas pela rua Sábbado D’Angelo. Fonte: Google Maps.
É sempre bem tenso porque ali passam muitos carros então a gente escuta muitos comentários, os caras enchendo o saco, é sempre desagradável por causa disso. Um ponto que me sinto mais segura, na volta, é a estação. A rua é uma reta, eu só sigo a rua. Apesar de muita gente estar circulando naquela rua, eu me sinto mais protegida quando eu chego na estação. Todo o percurso da volta pra mim era super tenso. Eu moro em frente a um terreno baldio e eu sempre acho que tem alguém se escondendo ou me observando ali (PANTALEÃO, FemiSistahs, entrevista 07 mai. 2020).
Em conclusão, para a cartografia, foi ponderada tanto a vivência dessas mulheres quanto seus relatos do trecho em investigação afetiva. Vale ressaltar que experiências íntimas são difíceis de serem expressadas, mas partindo do conceito colocado por Tuan (2013, p. 204), a arte e a arquitetura “são tentativas de dar forma sensível aos estados de espírito, sentimentos e ritmos da vida diária”. Defende-se aqui o estudo da experiência da vida cotidiana como forma de obter uma igualdade entre gêneros na cidade. O conceito de corpografia é bem colocado neste contexto pois aborda o corpo como uma forma de estar imerso no todo e se fazer perceber como o mundo se inscreve em si.
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Para Rolnik (2018) o corpo, enquanto corpo-vivo, que está conectado com este saber-do-corpo através da experiência subjetiva fora-dosujeito, é o território onde os afetos atuam, fecundam e geram embriões de novos mundos (micropolítica) e não apenas a manutenção do status quo (macropolítica) (...) se ao insurgir contra as desigualdades de relações de gênero as mulheres não incorporarem a esfera micropolítica ao combate, este tende a ficar prisioneiro de uma lógica de oposição ao homem (SILVA; NÓR; SANTOS, 2019, p. 176-177).
Buscando expor a vivência feminina, especialmente a relatada aqui para esta pesquisa, recorreu-se ao conceito de mapa classificado como abstrato, em que se relacionam sinais emotivos ou expressivos, com o intuito de analisar emoções e sentimentos, a afetividade na relação com o espaço. Os mapas afetivos são definidos por Bomfim (2008) como: Imagens ou representações assentadas em sinais emotivos ou expressivos, elaborados a partir de recursos imagéticos (desenhos, fotos, objetos de arte). Afirmamos que eles são reveladores da implicação do indivíduo a um determinado ambiente: casa, bairro, comunidade, cidade. Podem ser gerados a partir de mapas cognitivos, porém seu maior objetivo não é a orientação espacial ou a localização geográfica. Eles são orientadores das estratégias de ação e avaliação dos níveis de apropriação (pertencer ou não pertencer a um lugar), apego (vinculação incondicional a um lugar) e de identidade social urbana (conjunto de valores, representações, atitudes que tomam parte da identidade do indivíduo no lugar). Como sínteses dos afetos,
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eles também apontam o nível de implicação do indivíduo no lugar. Dado seu caráter representacional e criativo, são recursos de acesso à dialética subjetividade/objetividade na cidade (BONFIM, 2003, apud BONFIM, 2008).
Partindo destas premissas, explorou-se os relatos das integrantes para realizar uma leitura corpográfica do meio urbano por elas experimentado, a partir da sua própria visão. Ressalta-se aqui que a cartografia corresponde ao que foi relatado durante a entrevista e, neste capítulo, exposto e interpretado pela autora desta pesquisa. Os elementos utilizados para a composição são de ambas as naturezas. Abstrata, como a sensação de ter seu corpo observado de maneira julgadora e predatória, do caminhar na rua sozinha e enfrentar a sensação avassaladora provocado pelo medo e do deslocamento diário e seu reflexo, a partir da janela do trem; e material – a paisagem da cidade, equipamentos de iluminação urbana, muros altos e becos escuros e os meninos jogando bola. Convida-se a livre interpretação, em o leitor deposita também sua própria vivência da urbanidade. A ferramenta cartográfica permite um resultado de vertente artística e experimental, visto que não há uma correta e exclusiva análise, e sim uma exploração dos signos e símbolos, sentimentos e sentidos. 188
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS As intervenções urbanas tem potência para gerar questionamentos e visibilizar temas emergentes na nossa sociedade, o que abre caminho para novos ensaios, questionamentos e conseguir levar essas reflexões à população fora do ambiente acadêmico. Nessa pesquisa, buscou-se compreender a partir da história e da própria vivência das mulheres periféricas da zona leste de São Paulo como são lidos e sentidos seu contexto na urbanidade, a fim de levantar reflexões em como podemos construir cidades mais igualitárias e ouvir estas vozes que existem e que não são consideradas na esfera pública. Medeiros (2017, p. 213) defende que “são os movimentos culturais periféricos os maiores responsáveis por ampliar a sociabilidade destas mulheres para além do seu núcleo familiar e a partir dos quais emergem seus coletivos”. A hegemonia da forma-coletivo se orienta de forma independente e é bastante inspirado pela autorrepresentação e pela cultura, potencializada pelas redes sociais digitais. Essa militância emancipa as mulheres como agentes da esfera pública. (...) a emancipação das mulheres, relacionada com o domínio público (...) traz três componentes para o planejamento: primeiro, a
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reivindicação das mulheres como atrizes do meio público tanto para trabalhar como para participar plenamente na vida das cidades; segundo, a criação e proteção do espaço público para as mulheres; e terceiro componente seria a luta pela ressignificação da natureza e extensão do domínio público. Além disso, temas entendidos, por muito tempo, como questões da vida privada, por exemplo, o aborto, a sexualidade, a violência doméstica, entre outros, devem ser considerados como questões do domínio público, para construção de políticas públicas (SUMI, 2018, p.57).
Assim, o direito à cidade passa a ter um sentido multidimensional na medida em que relaciona-se com diversos agentes e narrativas “eclodidas em virtude de manifestações urbanas, demandas sociais, segregações espaciais, entre outros, não expressam, necessariamente, o direito enquanto um âmbito legal, mas em uma percepção sociopolítica” (SUMI, 2018, p. 86). O medo da mulher no espaço público, é produto da expressão do patriarcado na construção social, como foi visto no capítulo 3. Ao Passo Delas. “Seja através do androcentrismo nos estudos e no planejamento urbano, seja pela sensação de vulnerabilidade diante da figura masculina, experiências vividas ou informações secundárias” (SIQUEIRA, 2015, p.110), esse medo é refletido na forma de uso e acesso à cidade e restringe o uso do espaço público pela mulher. E, para as mulheres negras residentes nas periferias, esse 195
sentimento é sistematicamente ressaltado. As militantes, ao criar uma oposição a esse cenário através do ativismo, promovem uma visão de base, participativa, prática e de reestruturação urbana. Além da tendência para expor conflitos locais e possuírem potencial para evoluir de forma fluída em relação às mudanças nas condições político-econômicas. O feminismo vivenciado por estas mulheres é visto como prática política, que fortalece o enfrentamento das opressões produzidas no espaço urbano. A intenção da pesquisa, assim, foi de refletir sobre os efeitos das ações desses coletivos e enfatizar como o espaço público pode ser ressignificado graças a sua atuação. Ainda, expor a vivência das protagonistas desses movimentos a partir da percepção do espaço urbano e sensibilizar quanto a realidade feminina – qual é a forma de enfrentar os obstáculos do cotidiano e desenvolver mecanismos para sobreviver na cidade, um espaço que foi planejado sem sua vivência ser ponderada.
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Adotar uma perspectiva de gênero no planejamento urbano é bem diferente do que naturalizar papéis que são socialmente construídos. Afirmar a necessidade de um planejamento que leve em conta os múltiplos deslocamentos que uma mulher faz na cidade para executar uma dupla ou tripla jornada de trabalho não significa normatizar a divisão sexual do trabalho. Significa sim pensar que as tarefas produtivas e reprodutivas não deveriam estar fragmentadas no espaço urbano, assim como não deveriam estar segregados os sujeitos (SILVA; FARIA; PIMENTA, 2017, p.15).
Por fim, buscou-se aqui oferecer um meio de propagar essas vivências e esses ativismos. A experimentação convida à reflexão para o meio da Arquitetura e Urbanismo e até fora dele, a fim de esboçar caminhos para pensar a cidade a partir da perspectiva da mulher e fortalecer a contribuição para a emancipação das mulheres.
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ANEXO A Integrantes da FemiSistahs entrevistadas 1.1 Mariana Mata: idealizadora da coletiva FemiSistahs. Mãe e moradora da COHAB II José Bonifácio. 1.2 Bianca Tocaccelli: residente de Itaquera, participou de ONGs e oficinas culturais por toda a cidade. Graduada em teatro, é atriz na peça “Gente que Menstrua”. 1.3 Gabriela Maurelli [Gabis]: Mãe e moradora da COHAB II José Bonifácio. Aborda a questão da violência doméstica, empoderamento feminina, saúde mental da mulher e a questão artística – teatro, cultura, artesanato e possibilidades. 1.4 Thaís Pantaleão: residente de Itaquera, faz parte de grupos e coletivos principalmente de teatro, onde se sente pertencente. 1.5 Isabella Rocha: graduada em eventos e com cursos de produção cultural e técnicos, passou a tocar nos eventos e faz a sonoplastia da peça da coletiva.
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