1 DIÁLOGOS VISUAIS
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Nos dias de hoje, dar a si mesmo tempo para ler sobre diferentes pontos de vista é coisa rara. Realizar o gesto de poder escutar profissionais com múltiplas carreiras, com múltiplos afetos, opiniões e atuações é um privilégio que engrandece não só o nosso saber sobre o mundo, mas reflete sobre a nossa própria caminhada.
A Revista Diálogos Visuais veio dessa pergunta: no meio de tantos compromissos, a partir do olho do furacão que nossas próprias vidas nos impõem, como seria se pudéssemos ouvir e ler sobre a história de profissionais de quem sempre fomos fãs e que (por conta da ausência do tempo) nunca tivemos a oportunidade de acessar, de perguntar, de conversar? Vamos criar um projeto sobre isso?
Essa revista então, vem deste mote: do desejo do encontro, da ânsia de transversalizar universos, da possibilidade de, por meio das perguntas de uma entrevista, trazer possibilidades de mundo que estão agora, neste exato momento, em franca atuação nacional, regional e local no sistema e no mercado das Artes Visuais.
Aqui, vamos abrir onze pontos de vista diferentes, nos quais há algo em comum: o amor imensurável pelas visualidades do mundo.
Todos nós sabemos que não é fácil atuar nas Artes Visuais no Brasil. O que nós vamos descobrir, com estas onze entrevistas, é que para além da estrutura muitas vezes inviabilizada, para além das dificuldades orçamentárias, das violências que alicerçam e ainda
ecoam no fazer arte no Brasil, há profissionais cuja excelência e talento estão em plena forma e força. Profissionais cujos trabalhos certamente já chegaram ou chegarão até você. Profissionais que sabem muito bem o poder do campo das visualidades e que, por estarem atentas a esse campo (e se dedicarem a ele há muitos anos), transpiram suas histórias no vigor e no rigor dos projetos que realizam.
Esta revista não seria possível sem o apoio inconteste da Vereadora Maria Letícia, de seu Gabinete, da Câmara Municipal de Curitiba, bem como, sem o apoio da Fundação Cultural de Curitiba e Prefeitura Municipal de Curitiba, a quem agradecemos.
Acreditamos que a produção cultural é a arte de manejar encontros e que encontrar é uma das artes de manejar a vida. A Revista Diálogos Visuais é um convite à possibilidade do encontro, mesmo que de forma virtual. Escolha uma boa poltrona, ajuste seu conforto e venha conosco neste bonito mergulho que é aprender sobre quem se admira.
Giusy de Luca e Bernardo Bravo
Imagem 1: Brunno Covello
Imagem 2: Márcia Kohatsu
Hori, Daiara Tukano. Imagem: Bruno Bernardes
Realização
Bernardo Bravo Idealização
Giusy de Luca / Mucha Tinta
Observatório Criativo
Maria Letícia Fagundes
Projeto
Marcella Calado
Editoração
BA Comunicação / Bruna Alcantara
Entrevistadas
Ana Rocha
Brenda Santos
Claudia Lara
Daiara Tukano
Fernanda Pitta
Fernanda Stancik
Lina Faria
Mariana Barros
Naine Terena
Pretícia Jerônimo
Vera Nunes de Santana
Capa: Todo Mundo Quer Ser Amado, Claudia Lara.
Imagem: Ana Carolina Camargo.
Página 46: Imagem: Pretícia Jerônimo.
Ana Rocha já foi Diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MACPR) e atualmente, por meio de uma atuação múltipla, traz seu olhar sobre novas formas de se pensar/fazer exposições e construir museus.
Como o tema das Artes Visuais despertou na sua vida?
A primeira lembrança que tenho é uma visita ao museu Alfredo Andersen, em Curitiba, com a escola e durante a infância. Isso deve ter acontecido no final dos anos de 1990. Minha mãe sempre fez questão da arte ser parte da minha formação. Então, na adolescência, fiz aula de desenho e de teatro, teclado e violão. O que eu queria mesmo, nos meus 16 anos, era estudar cinema. Eu pirava com a possibilidade de trabalhar em grandes produções e mal sabia que eu iria chegar nesse lugar através das artes visuais. Eu acho que eu me dei conta do que era Artes Visuais quando eu já estava cursando a faculdade, ainda que a ideia inicial fosse trabalhar com cinema depois.
Imagem: Kraw Penas
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Foi durante o curso de Artes Visuais que eu entendi o que era o campo da arte, me apaixonei pela história da arte e que eu queria mesmo era trabalhar com artistas.
De Curitiba para uma atuação nacional: após alguns anos de atuação na área das Artes Visuais, como você pensa os seus primeiros trabalhos?
Todos eles são parte de quem eu sou hoje. Cada vez mais, eu consigo reconhecer a importância de projetos e trabalhos que fiz bem no início. Ter feito estágio nos museus, por exemplo, me ajuda a pensar na relação com o público, na dimensão pedagógica das artes e principalmente, sobre as relações de trabalho. Acho que essas experiências me colocaram mais pé no chão pra entender as diversas funções, compreendendo a dinâmica de cada etapa e respeitando cada profissional, inclusive, para trabalhar internacionalmente.
Você enxerga características de identidade nas expressões artísticas contemporâneas em Curitiba? Quais seriam?
Eu vejo que Curitiba, como outras cidades do Brasil, se debate com temas urgentes e vejo cada vez mais que as questões de racialidade e de gênero estão presentes nas pesquisas artísticas. Mas também, como uma questão institucional. Isso tem mudado toda a dinâmica da produção artística, novos corpos estão a circular neste circuito muito branco e eurocêntrico. É claro que falo isso na nossa bolha da classe artística. A cidade de Curitiba ainda tem muito a mudar e reconhecer a diversidade de identidades presentes.
Sobre o trabalho de curar: como você é ativada no processo de realizar uma curadoria? Na sua atuação, como se dá o processo interno e externo desse tipo de trabalho?
A curadoria pra mim é um trabalho de colaboração com artistas e de escuta. Quando trabalho direto com artistas, é um processo de provocar e ouvir, entender o que vem a partir da provocação e colocar tudo isso pra conversarentre artistas, entre públicos. Quando trabalhando com acervo, escuto a história daquela coleção e as especificidades me parecem tão importantes quanto o meu desejo de trazer as questões que me interessam pro jogo.
Sobre a dinâmica externa, eu tento sempre propor curadorias para editais, mas também recebo convites de artistas, de instituições e galerias. O trabalho de curadoria é um trabalho de diplomacia, negociar desejos, construir diálogos, estabelecer pontes. Muitas vezes a curadoria fica entre artistas e instituições, e isso requer uma habilidade para micro negociações diárias.
De curadora e produtora, para também diretora de museu: como foi para você atuar na direção do Museu de Arte Contemporânea do Paraná? Quais foram os desafios e os pontos positivos que você considera da sua gestão?
Minha gestão como diretora do MAC Paraná foi marcada pelo esforço em reimaginar o Museu, sua função e encarar as contradições da história de sua coleção. Estar no museu foi uma experiência muito transformadora. Primeiro, por estar dentro de um museu público, o que na minha trajetória, foi uma experiência inaugural; segundo, pela possibilidade de trazer as minhas pesquisas sobre site-specific, a relação entre exposições e público, e sobre o debate decolonial para a prática, para uma instituição. Então, foi uma experiência de muita realização pessoal.
Sobre os desafios, foram muitos (risos). A administração pública requer um aprendizado sobre a burocracia e trata-se de um lugar político. Portanto, as negociações são infinitas e necessárias. O que foi mais difícil nesse período foi administrar o museu durante a pandemia. Foram dois anos em que projetos foram adiados e desejos trans-
Imagem: Mariane Alves
formados. Muita coisa que estava planejada para 2020 foi cancelada. E nos adequarmos para o digital foi um processo muito penoso. No entanto, este momento foi quando conseguimos organizar internamente o MAC. Em 2020, começamos a desenhar um programa de gestão de acervo e programação para termos diretrizes sólidas dentro da instituição, estabelecer protocolos e organizar a documentação interna. Foi quando também pudemos levantar muitos dados sobre a coleção, pois tínhamos tempo para pesquisa. A partir desses dados, nós começamos a mapear que representatividade tem essa coleção quando pensamos nos marcadores sociais como racialidade e gênero. Isso mudou muita coisa dentro da instituição, mas foi um trabalho interno. Resumindo, a pandemia foi muito desafiadora para a gestão, mas também nos permitiu um trabalho interno muito importante. E acho esse um dos aspectos positivos da minha gestão.
Expografia expandida: a partir do seu olhar atual, como você tem compreendido a expografia, as narrativas expográficas e a entrada da tecnologia dentro desse tema?
Montar uma exposição, pra mim, é como uma dança. É necessário convocar o corpo a se movimentar, aproximar-se das obras, distanciar-se e a expografia é uma grande aliada em construir o cenário para que essa dança aconteça. Gosto sempre de trabalhar com arquitetos que ajudem a conectar a espacialidade com o conceito da exposição. O
67º Salão Paranaense foi um projeto recente em que essa parceria funcionou muito bem. As questões da curadoria como: opacidade, fazer ver as mudanças e transformação do Salão estavam muito evidentes na expografia, na escolha dos materiais, posição dos paineis e cores usadas.
Sobre a entrada da tecnologia, eu acho que funciona com um propósito pedagógico, para aproximar o público da história dos artistas e de suas obras, mas tenho sempre muito cuidado ao usar nas exposições para que não seja confundido como obra. Ainda que tenha um interesse por artistas que pensem a tecnologia e as complexidades de nossa relação com ela, penso sempre na disponibilidade de recursos para que o trabalho realmente aconteça e não seja confundido com entretenimento.
Rio de Janeiro e ações entre mundos: dentro das suas pesquisas atuais, o que tem te chamado atenção enquanto referência de exposições de artes visuais, relações obras expostas/público e escolha de atuações dos museus?
Com relação às estratégias de exposições, eu me recordo da última 15ª Documenta de Kassel (2022), quando o coletivo ruangrupa pensou uma exposição em que muitas obras aconteceram durante o período de isolamento e coletivos desenvolveram suas propostas em suas localidades e levaram pra Kassel alguns registros e ações em processos e isso foi muito impressionante como uma experiência de público pra mim, pois parecia que nós tínhamos chegado depois da
festa terminar. Uma exposição que tinha foco no processo, mais do que no objeto artístico. Tenho gostado de pesquisar artistas que repensem nossa história e projetem novos futuros.
Eu acho que cada vez mais, os museus precisam se esforçar para fazer parte da vida das pessoas, e não o contrário. O que não implica em espetacularização, mas estratégias de vínculo, afeto e aproximação real com as pessoas. Nesse sentido, acredito que o Museu Paranaense (MUPA), em Curitiba, tem feito um excelente trabalho em trazer diferentes públicos para repensar juntos as histórias locais e a história da arte.
colonialidade e suas ramificações, onde a arte desempenha uma construção de narrativas críticas.
Essa conscientização sobre o poder da colonialidade no contexto atual, tanto nas relações de poder, quanto nas estruturas culturais e econômicas, tem se tornado uma pauta central na arte, influenciando não apenas a produção artística, mas também o mercado, as instituições culturais e a recepção do público.
Nos
últimos dez anos, a produção artística brasileira tem se tornado cada vez mais entrelaçada nas questões sociais e políticas.
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Decolonialidade, novos olhares e breves futuros: como esse tema atravessa o seu pensamento para a construção de exposições?
Atravessa totalmente. Mas foi apenas em 2017-2018, que essas questões começaram a atravessar meus processos em exposições. Nos últimos dez anos, a produção artística brasileira tem se tornado cada vez mais entrelaçada nas questões sociais e políticas, especialmente no que diz respeito à
Futuro do museu: para você, quais são os nortes que devem ser elencados para gestores de museu e curadores em uma atuação contemporânea voltada ao grande público no Brasil de hoje? Para que os museus permaneçam como espaços importantes, o que você considera que deve ser atendido, discutido ou repensado?
Os museus devem estar alinhados às questões urgentes de nosso tempo, aos artistas, e devem sempre ser lembrados de sua função social. Cada vez mais, vemos museus colocando essas questões em pauta, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) discutindo a definição de museu e museus repensando a história da arte baseada na centralidade da Europa. Mas ainda há muito a ser feito, vemos diversas exposições em que artistas são tokenizados para uma compensação histórica falha. A crítica que observamos aos processos de decolonização dentro dos museus de arte é que faltam mudan ças estruturais, ainda que seja um museu mais representativo, a instituição museal ainda se coloca como dispositivo colonial de narração temporal e territorial na modernidade. O museu de arte está apenas refletindo as mudanças sociais ou as instituições de arte podem, de fato, desempenhar um papel no desafio às condições impostas pelo racismo institucional?
*Ana Rocha formou-se em Artes Visuais pela Universidade Tuiuti do Paraná (2009), especializou-se em Gestão de Projetos pela ISAE/FGV (2011) e é mestranda no programa de pós-graduação em História da Arte da UNIFESP. Atua como curadora e produtora desde 2009. Organizou e coordenou diversas exposições, contribuiu para catálogos e coordenou programas de formação e residência para artistas e curadores. Foi diretora do Museu de Arte Contemporânea do Paraná de 2019 a 2022. Entre suas curadorias destacam-se as exposições de revisão do acervo do MAC Paraná: Estamos Aqui (2019) e Enquanto Tudo Queima (2021). Coordenou três edições do Núcleo de Artes Visuais SESI Curitiba (2017-2019), além das exposições Cada Vez Mais Perto (2018) e Extensões 16xA4 (2014). Participou da Bienal de Curitiba de 2015 como curadora, ao lado de Daniel Rangel, quando recebeu o Prêmio Jovens Curadores. Tem trabalhado como gestora de projetos de arte contemporânea desde 2010. Mais recentemente, foi produtora executiva do projeto Topografia da Memória, da artista Sallisa Rosa (2023-2024), com exposições no Collins Park, em Miami, e na Pinacoteca de São Paulo. Em 2011 e 2013, coordenou a equipe de produção da Bienal de Curitiba. Entre outros projetos, foi curadora do espaço Finnacena em 2011 e 2012, onde realizou exposições, feiras de livros e exibições de videoarte. Antes disso, foi editora do #LAB - Laboratório de Crítica de Arte, ao lado da artista Lailana Krinski.
Brenda Santos tem um trabalho sedimentado no reencantamento comunitário, na ancestralidade viva e na memória como ingredientes da festa e do encontro.
Curitiba e seus enredos: o que te inspira na cidade de Curitiba? O que faz o teu olho brilhar e te atravessa positivamente na cidade? E o que tem te dado mais ranço ou qual a dificuldade mais complexa que você enxerga na realização do seu trabalho na cidade?
O que me inspira na cidade é o que me atrai nas outras: a possibilidade de descobrir o novo investigando a história da cidade, no centro histórico e para além. A cidade atrai muitas pessoas de fora, o que vejo como muito bacana. Conhecer gente de diversas partes do mundo.
O que mais tem me dado ranço é a forma como a cultura é tratada pelas instituições. Sempre foi difícil tentar enquadrar meus trabalhos nos moldes ou nomeações que a cidade está acostumada. Pensar que tudo o que fazemos é diverso e abarca inúmeras linguagens, protagonizado por pessoas negras, ainda parece complexo para a cabeça dos que mandam na caneta.
Memória e respeito aos mais velhos: como você enxerga a ancestralidade no seu trabalho? Em quais pontos ela te atravessa na sua inspiração e nas suas produções?
Não tem como falar de presente sem reverenciar o passado, os que vieram antes. Meu trabalho é muito pautado na memória, especialmente essa memória coletiva. Utilizo muitas referências de fotografias, propagandas antigas, álbuns de família para pensar a estética dos materiais gráficos e dos eventos. É comum que eu sempre tente recriar o ambiente de uma casa simples, uma festinha de garagem, ou no caso das fotos, famílias posando.
Tudo isso é legado, memória do que às vezes não vivemos e buscamos viver de alguma forma. É voltar e pegar o que ficou. Sankofa. Recriar o que foi deixado é parte dessa tecnologia ancestral que nos conecta a nós, aos que vieram antes e aos que virão.
Brenda Santos. Imagem: Flor Letícia
Quais produtoras, escritoras, artistas e pensadoras te tocam nestes tempos?
E por quê?
Admiro muito o trabalho da Stéfane Souto (Salvador), que tem pensado através da plataforma Transatlântica a cultura a partir do aquilombamento. Gestão da cultura por uma afroperspectiva. Sigo ainda fissurada nos pensamentos de bell hooks, sua forma de pensar o amor, a coletividade e as possibilidades que atravessam as experiências de pessoas negras. Das artistas, Liniker, por ter furado a bolha dos tempos acelerados com o álbum Caju.
Como você pensa a memória do povo negro de Curitiba? A partir da sua pesquisa sobre os Clubes Sociais Negros do Paraná, como ficou seu ponto de vista sobre a presença, o passado e o futuro das populações afrocentradas do estado?
É uma história que quando a gente aprende a fuçar os arquivos, onde buscar, mas principalmente como compartilhar, podemos contribuir reescrevendo o que tentaram esconder. Foi a partir do contato com a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, em 2006, e com as pesquisas de Edvan Ramos sobre Maria Bueno, que comecei uma busca pessoal sobre essas histórias. Fora dos muros da universidade, temos acesso aos bancos de dados disponíveis e gratuitos na internet, como jornais na Hemeroteca, certidões de nascimento, casamento e óbito no Family Tree, mas temos que saber o que procurar. Publicizar essas informações contribui com o sentimento de pertencimento à cidade.
Os Clubes Sociais Negros fizeram uma contribuição fundamental no processo social e de cidadania do povo paranaense. No estado, temos seis clubes: Sociedade Operária e Beneficente 13 de Maio, em Curitiba; Clube Literário Treze de Maio, em Ponto Grossa; Clube Rio
Branco, em Guarapuava; Clube Estrela da Manhã, em Tibagi; Clube Campo Gerais, em Tibagi; e AROL - Associação Operária e Recreativa de Londrina. De alguns restam somente as memórias e fotografias, outros têm paredes que ainda resistem ao tempo. São inspiração e referência, especialmente quando falamos de objetivos, educação, cultura e sociabilidade a partir de uma sociedade excludente.
Mulher, mãe, produtora: como a profissão de produtora surgiu na sua vida e como a maternidade e mulheridade te auxiliam no desenvolvimento do seu trabalho?
Comecei a criar materiais para eventos e festas já na faculdade. A produção veio do desejo de viver experiências. Comecei buscando, metendo as caras nas festas de veteranos e fui tomando gosto. Já formada, conheci a Beth Moura, grande amiga, e pedi para aprender com ela.
O gosto pela música me fez ter contato com vários DJs e nisso busquei fazer contato com eles e pensar em formas de contar histórias através das festas. Também já me meti a tocar na noite por um tempo, em festas criadas pela Ieda Godoy ou em dupla com a Mariana Sanchez.
Nunca consegui desassociar design gráfico do design de experiência. Nem tinha esse nome na época, mas criar uma experiência de começo, meio e fim para o público, comandada pela música, sempre foi divertido e continua sendo.
A produção do profano e a produção do sagrado: como você enxerga essa relação na hora de realizar suas produções?
Para quem é de axé não há muita distinção. Mesmo no profano, há contato com o invisível e é isso que precisamos entender e respeitar. Pedir licença, agradecer a oportunidade dada, os caminhos, saudar Exu, os ancestrais, está sempre nesse fazer cultural. Até nas pesquisas, tenho o hábito de agradecer a oportunidade e pedir que “eles” manifestem o desejo sobre o que gostariam de contar
pro mundo. Hoje, isso fica mais evidente para as pessoas no Samba Casa Forte, roda de samba que criei e que está na produção da equipe do Um Baile Bom.
O design gráfico é também uma área importante da sua atuação. Como geralmente é o seu processo de criação de peças gráficas para os seus trabalhos?
Gosto muito de trabalhar com recorte e sobreposição de forma digital. Quando recebo o tema para as criações, pesquiso referências, imagens e separo o que mais faz sentido. Às vezes não tem a ver com a proposta inicial, mas tem algo que chama. Tem um quê de ritual. A imagem se manifesta e pede itens a serem adicionados, mesmo que no todo não fiquem aparentes. No geral, curto o feito bem over, carregado, no qual você sempre descobre algo quando volta à imagem.
Um Baile Bom - manifesto festa: como surgiu a ideia desse projeto e como você enxerga os diferentes atravessamentos que ele proporciona?
Como toda produção, começou com o desejo de viver
uma festa de Black Music. Meu filho já estava com 5 anos e eu precisava me sentir mulher, gente de novo e não só mãe. Sempre curti sair para dançar, mas as festas começavam muito tarde. Os DJs entravam após a meia noite. Pensei numa festa que começasse cedo e acabasse cedo. Olhar o relógio e já ser 22h e ainda ter festa pra viver e voltar tranquila pra casa.
Teve pesquisa, teve muita conversa com amigas e quando foi para acontecer já tinha muita gente instigada. Faz parte da tecnologia jogar no vento e deixar ele trazer. As primeiras duas festas mostraram o potencial e aceitação do público, mas foi a terceira edição que explodiu. E logo houve a necessidade de criar meios de acesso às pessoas negras. Foi muita modelagem de formas de vender ingresso e garantir o acesso.
Para quem cresceu e envelheceu junto do Baile, com certeza viveu algo único e de muita força e isso foi extremamente ofensivo para a cidade, inclusive o meio artístico. Quando íamos pensar que pessoas felizes, dançando, fortalecendo uma comunidade seria tão agressivo?
Para nós, nunca foi objetivo ou foco provocar ou mostrar algo para pessoas brancas. Toda atenção e energia sempre foi muito bem direcionada para fortalecer o quilombo, criar novas memórias afetivas através da música e do corpo e ser um espaço de famílias negras, tudo embalado por Black Music.
A partir das suas pesquisas (“Lugares de Axé”, “Dos Traços aos Trajetos”, “Tá comigo, tá com Deus”), como você tem pensado as manifestações culturais contemporâneas do povo negro que reside no sul do Brasil? Em contraponto a outras populações negras residentes em outros pontos do país, o que te chama atenção na identidade e produções dessas comunidades que estão no Paraná?
A presença negra no Sul, ainda que em minoria comparada aos outros estados, criou, produziu e deu continuidade a manifestações negras como processo de retomada da própria identidade.
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A cultura tem esse papel de fazer com que não esqueçamos quem somos, de onde viemos e dá forças para seguir em frente.
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Os terreiros, os Clubes Sociais Negros, o samba, o samba de roda, os quilombos, os bailes negros… Tudo isso conta uma história que tentou ser apagada. Costumo dizer que são processos e histórias de EXISTÊNCIA E GINGA. Cultura trata do desejo natural de existir e a ginga para continuar existindo, seja através da memória, seja através das danças, dos cultos, dos aquilombamentos.
Não existe homogeneidade nas experiências negras porque estas vivências falam sobre como é ser quem se é naquele território. Assim, entendo que aqui no Paraná, ainda buscamos muito a reprodução do que vemos em outros estados, mas também criam-se formas de fazer do jeitinho afro-paranaense.
Breves futuros: como estão suas ideias de produções futuras? Quais caminhos têm te instigado a pesquisar e investigar para suas futuras criações?
Tenho pensado muito em como a cultura viva e dinâmica nos coloca em desafios importantes de EXISTÊNCIA. A continuidade é feita de novas fases e a aceitação do novo. O Um Baile Bom está se transformando, assim como o Samba Casa Forte. Hoje, somos Ponto de Cultura certificado pelo Ministério da Cultura. Já somos mais que uma festa e agora temos mais possibilidades e formas de compartilhar o que aprendemos em uma década.
A ideia é continuar o fluir destes projetos, desdobrando em ações mais educativas e, como sempre, continuar a valorização dos profissionais negros locais e promover o intercâmbio com agentes de outros estados.
Voltar ao passado é sempre o norte. Os segredos estão todos lá.
*Brenda Santos é produtora cultural, criativa e pesquisadora. Possui Bacharelado em Publicidade e Propaganda (PUCPR - 2003) e Especialização em Direção de Arte (UniCuritiba - 2006). É representante dos Clubes Sociais Negros do Paraná desde 2012. Tem como especialidade projetos de promoção à identidade, memória e cultura negra. É idealizadora e produtora do Um Baile Bom, território negro inspirado nos bailes blacks da década de 70, que tem por objetivo promover experiências e conexões entre a comunidade negra. O Baile também atua como um hub de negócios através da Rede Preta. Em 2020, junto das pesquisadoras Geslline Braga e Larissa Brum, publica o livro “Dos Traços aos Trajetos: a Curitiba Negra entre os séculos XIX e XX”. Foi membro do Fórum Paranaense de Religiões de Matrizes Africanas (2012-2015) e dos Conselhos Estadual de Promoção da Igualdade Racial (2015-2016); do Estado da Cultura, representando a cadeira de Manifestações Tradicionais Populares e Étnicas da Cultura (2015-2017); do Patrimônio Cultural do Município de Curitiba (2019-2021).
Claudia Lara é uma artista que traça com linhas, desenhos e instalações a honra aos ciclos, aos encontros do feminino e a silenciosa resistência da delicadeza.
No seu dia a dia, o que existe na cidade de Curitiba que te emociona e está presente nas suas obras?
Tenho uma cena na memória logo que a gente começou a sair depois da pandemia. Era inverno, dia chuvoso e fui a um encontro com amigas. Ao passar pela Praça Tiradentes, fiquei feliz de estar saindo de casa, revendo a praça e a igreja do Rosário, paisagens que vejo desde criança e percebi que a cidade faz parte da gente. O comércio, a arquitetura, as praças estão no nosso olhar, no modo de nos movimentarmos na cidade. Gosto de ver brechós e construções com ladrilho hidráulico. Esses elementos já fizeram parte de minhas pinturas. Já
curti mais os parques, agora curto os cafés. São o ambiente para as reuniões com amigos artistas e os projetos de arte.
A poética do bordado: como surgiu a sua relação com essa técnica?
Já tive loja de roupas e confeccionava roupas. Tinha a prática da máquina de costura. Em 2013, comecei a fazer desenhos com a máquina de costura em amostras de papel de parede. Daí passei para os desenhos de máquina nas amostras de tecido que já usava desde 2003 nas minhas pinturas. Mas sempre com linha preta, branca ou vermelha no bordado mecânico. Foi depois de um convite do coletivo Bordaduras, de Leila Alberti e Giovana Casagrande, que o bordado manual com suas cores e texturas de fios fizeram parte da minha obra como uma pintura híbrida. Venho do desenho e da pintura. O bordar é como desenhar e pintar com os fios. Não deixa de ser linha.
Neste ano, você apresentou a exposição
Distância Mínima, com curadoria de Alex Tso, na Diáspora Galeria. Quais foram suas inspirações para esta exposição?
Eu levei as assemblages que já tinham feito parte de duas exposições em 2022 e 2023, as séries de Sementeiras, relacionadas ao tema do jardim. Esses elementos eu já tinha trabalhado na obra Jardim Ancestral, onde fiz uma grande instalação de parede com acúmulos têxteis, flores de crochê e flores na técnica de feltragem, onde homenageei as minhas avós, tentando reproduzir as flores da memória de infância no jardim delas.
Além dessas obras, apresentei a série Rendados, com bordados de retratos das mulheres da família, homenageando além de minha mãe e minhas avós
e tias avós, também as primas, irmãs, que ainda vivem e que puderam me enviar fotos que pedi, fotos onde se sentissem felizes e bem representadas. Foi uma obra de uma reunião afetiva com essas mulheres da família.
Quais artistas também mulheres trouxeram inspiração e alegria na sua caminhada?
As tapeçarias e cores de Ida Hannemann de Campos; as reflexões, os primeiros desenhos de modelo vivo com Leila Pugnaloni; a força da obra de Louise Bourgeois e a identidade com as mulheres negras e a compreensão do problema do racismo no Brasil, na obra de Rosana Paulino. Além de Sonia Gomes, Sheila Hicks, Virginia Woolf, que me lembro nesse momento. Muitas mulheres artistas fazem parte da minha trajetória no meu círculo de amizade também.
Você faz parte da Diáspora Galeria, conhecida por ser uma galeria comprometida com a igualdade e representatividade racial. No decorrer da sua trajetória, como você enxerga a importância
da representatividade e da emancipação da arte afrocentrada no Paraná?
No contexto da Diáspora Galeria, que tem seu compromisso com a igualdade e representatividade racial, fica evidente a necessidade de ampliar esse debate em outras regiões, como o Paraná, onde muitas vezes as expressões afrocentradas ainda encontram barreiras. A arte afrocentrada, quando emancipada, serve como uma poderosa ferramenta de resistência e afirmação identitária com o potencial de ressignificar espaços culturais, promovendo a inclusão de artistas negros e trazendo suas narrativas para o centro das discussões. A presença e a atuação de galerias comprometidas com esses princípios, como a Diáspora Galeria em São Paulo, poderiam inspirar iniciativas locais, fortalecendo a visibilidade de artistas negros e ajudando a construir um cenário artístico mais inclusivo e representativo. Quando fiz parte de um coletivo de artistas negras aqui em Curitiba, o Coletivo Ero Ere, vi o quanto era importante ter essa presença e ocupar os espaços aqui em Curitiba, onde se falou Jardim Ancestral, Claudia Lara. Imagem: Eve Ramos
por muito tempo somente dos imigrantes europeus. Não se pode continuar aceitando que não nos reconheçam com o devido valor, como personagens criadores na construção do espaço em que estamos.
Como a ancestralidade e a maternidade se relacionam nas suas expressões e no seu trabalho?
A ancestralidade e a maternidade são pilares de construção de identidade e continuidade de legados. A ancestralidade, com suas histórias, sabedorias e vivências, é uma fonte inesgotável de inspiração e conexão. Ela me guia na criação de obras que honram e resgatam as tradições e a memória dos que vieram antes, principalmente as experiências afrocentradas que foram muitas vezes silenciadas. Minha bisavó e tias avós não foram alfabetizadas e minha avó era alfabetizada funcionalmente, todas do lado materno.
Mulheres negras de baixa renda que vieram de Santa Catarina para trabalhar em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Só recentemente, quando coloquei minha atenção nessas questões, refleti sobre o quanto foram fortes, o quanto lutaram e o quanto sofreram sem falar sobre o racismo, muito superficialmente conversamos sobre isso.
A ancestralidade e a maternidade são pilares de construção de identidade e continuidade de legados.
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Elas ressaltavam suas vitórias. E suas dores, talvez eu pela juventude não dei a devida atenção a essas queixas. Essa homenagem a elas é uma forma de diálogo e de cura. Esse vínculo com o passado me fortalece e me permite projetar novas narrativas de resistência e afirmação. A maternidade, por sua vez, acrescenta uma camada ainda mais íntima e poderosa. Ela reflete o ciclo de vida, de nutrição e de transmissão desses saberes ancestrais para as próximas gerações. No meu trabalho, onde transparece o fato de eu não ser mãe e ter ficado sem a presença da mãe muito jovem, a maternidade é um ato de criação em si — tanto física quanto espiritual — onde dou vida às ideias, narrativas e símbolos que preservam e transformam essas heranças culturais. Assim, a maternidade e a ancestralidade se entrelaçam, influenciando a forma como percebo e expresso a necessidade de cultivar raízes, honrar os ciclos da vida e projetar um futuro de continuidade e emancipação cultural. As mulheres ainda não têm seu valor reconhecido.
No seu trabalho, algo que também chama muita atenção é o deslocamento do tempo, seja pela lembrança afetiva que as peças nos trazem, a memória de pessoas amadas, da família e dos ciclos de ancestrais muito queridas. Como você se relaciona com o tempo?
Estava lendo sobre o Steampunk, com sua visão retrô de progresso e otimismo, que oferece uma alternativa valiosa: um refúgio estético e filosófico que valoriza a criatividade, o humanismo e uma forma de tecnologia mais orgânica. Ao contrário do caos do Cyberpunk, o Steampunk nos convida a imaginar soluções, a recriar o mundo de forma harmoniosa, conectando passado e futuro de maneira sensível. Então, o macio do tecido, a profusão de cores e texturas são uma forma de agir com esperança. Mas está difícil. É como uma frustração em viver em um tempo em que o acesso à informação é ilimitado, mas as mudanças concretas não acompanham o ritmo das discussões. Há uma sensação de paradoxo nisso: temos mais visibilidade para questões
importantes, mas a grande mentalidade coletiva ainda não parece estar mudando. A arte surge como modo de sobrevivência. É como se, ao invés de focar na brutalidade do mundo, eu criasse um espaço de resistência silenciosa, onde o cuidado, a beleza e a delicadeza possam existir, oferecendo um respiro em meio ao desespero. O próprio têxtil e a proximidade da minha obra com o artesanato são resistência. Mesmo em tempos difíceis, a arte tem essa capacidade de projetar novas realidades, ainda que as transformações no mundo pareçam lentas e incertas.
Como você tem enxergado o mercado da arte em Curitiba? Quais pontos positivos e negativos você percebe atualmente?
Um ponto positivo é o engajamento dos artistas na compreensão do funcionamento desse mercado, quais ações na apresentação de currículo, poética, portfólio e parcerias. Nesse sentido, ressalto o trabalho da plataforma ARTE C, projeto do Leo Lizardo, um suporte para novos artistas. Outro ponto positivo é a criação de cursos como mestrado e novas iniciativas que estão acontecendo a partir das universidades de arte. Outro ponto são galerias levando artistas daqui para as feiras no Rio de Janeiro, São Paulo ou fora do Brasil. São poucas as que estão conseguindo ampliar esse mercado, mas que todas possam crescer se houver um foco nesse sentido. Ainda não consigo saber como está sendo trabalhada a mentalidade para os colecionadores de arte daqui de Curitiba. Tem tantos artistas com obras incríveis e não vejo um movimento dos galeristas e colecionadores fazendo feiras ou encontros onde nossos trabalhos mostrem sua força e valor. Vejo algumas falas sobre mudanças em Curitiba, mas na prática, o ambiente ainda é hostil para nós que nos dedicamos à arte. Além disso, há a falta de financiamento. Seria necessário fazer um levantamento e iniciar uma discussão mais ampla sobre a viabilidade das leis de incentivo, de modo que fosse possível construir novas soluções para dinamizar o mercado artístico e atrair maiores investimentos.
Eu Fiz Essa Roupa, Claudia Lara. Imagem: Ana Carolina Camargo
Você poderia compartilhar com a gente algum dos seus projetos futuros?
Tenho vontade de trabalhar nossas lendas na linguagem têxtil, algo que pudesse sair do espaço expositivo e se tornar algo performático, através da arte vestível, com maior participação do público ao se encantarem, como eu me encanto, com essa linguagem, os símbolos, a relação com todo o estado e suas paisagens e personagens.
Para as artistas que estão em início de carreira aqui em Curitiba, quais sugestões e dicas você poderia compartilhar com elas?
Aproveitar a energia dos inícios para não perder tempo em fazer o melhor possível já. Não ter pressa para fazer algo a qualquer preço, mas fazer o melhor já. Se o sonho é grande, como alcançá-lo sem ansiedade, mas com o estudo focado, as parcerias certas. Ver e ser visto com autenticidade, porque se a gente força uma poética, uma postura, uma parceria, isso transparece na obra, na fala, no corpo e dá tudo errado. E para ser autêntico, a leitura não fica só na esfera da sua poética, mas em todas as artes, poesia, música, teatro, literatura, novas tecnologias, filosofia. É um eterno estudar, se mostrar e oferecer ideias ao grupos em que esteja envolvida na sua trajetória.
*Artista natural de Curitiba/PR, onde reside e trabalha. Graduada em Educação Artística pela Faculdade de Artes do Paraná e pós graduada em História da Arte Moderna e Contemporânea pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, possui no currículo várias exposições coletivas e individuais no Brasil e exterior, e teve o prazer de receber premiações em salões da Secretaria de Estado e Cultura do Paraná e salões de arte no Brasil e Paris, França. Em 2020, foi premiada no 67º Salão Paranaense, fazendo parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea do Paraná.
Artista indígena com grande circulação pelo mundo, Daiara Tukano aborda a trajetória da sua formação na academia ocidental e nas tradições do seu povo, e nos narra como isso se conjuga na realização do seu trabalho artístico.
Você se formou em Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Como foi essa caminhada de uma formação acadêmica em Artes Visuais? Como a pintura chegou na sua vida?
Eu estudei Artes Visuais na Universidade de Brasília, mas a Universidade de Brasília não foi a primeira universidade onde eu estudei Artes Visuais. Eu comecei a desenhar desde muito pequena, eu era uma criança muito desenhista . Acho que a coisa de desenhar sempre foi um elemento importante por conta dos momentos sozinha que eu ficava. Passei algum tempo longe dos meus pais (por conta dos compromissos que eles tinham), então, sempre ficava num cantinho desenhando e desenhando muito na sala de aula. Aí, quando chegou o momento de escolher constantemente, quando foi chegando perto de pensar o que estudar na universidade, acabei escolhendo Arte e Ciências da Arte na Sorbonne, em Paris. Eu tive uma oportunidade muito bacana de estudar na escola francesa e de fazer esse sistema de educação francês. A minha mãe, quando eu era criança, ainda foi bolsista na França, e fiquei nesse tipo de escola até terminar o segundo grau. Mas pra mim, foi um choque bastante grande. Uma coisa interessante que tinha, era que eu podia escolher o número de aulas e a quantidade de conteúdos que queria estudar de acordo com meus interesses. Eu fiz um segundo grau com muita literatura, muita filosofia e muitas aulas de arte. Era uma outra pegada, que abria muito o tempo para quem gostava de artes. Era integral, o dia todo. Aprendi francês, inglês, espanhol. Essa educação me deu muito espaço para viajar na produção artística, ler
muita literatura, muita poesia, ter acesso à uma educação sobre história da arte ocidental. Ao mesmo tempo que eu fui aceita pela Sorbonne em Artes, eu tinha passado também na UNB em Letras tradução francês. Mas ao chegar na Sorbonne (o prédio de artes visuais era mais distante do centro e, como todo prédio de artes visuais, tinha várias pichações e interferências visuais, era muito lindo), sofri bastante preconceito por parte de uma professora (cheguei lá com uma mala simples, não tinha portfólio com meus trabalhos anteriores, tudo havia ficado no Brasil, eu era a única aluna estrangeira. O meu contato com o curso de Artes na França, dessa graduação, foi muito violento. E isso me fez perder um pouco o afeto pelo curso naquele momento. Resolvi voltar para o Brasil e iniciar o curso de Letras em Brasília, minha mãe não gostou disso).
Iniciei o curso, me entediei, fui jogar RPG e fui viver na
universidade. Aí me entediei tanto, que prestei vestibular de novo (na época não havia política afirmativa para indígenas na UNB) e passei para Artes Visuais. Cheguei muito tímida nas disciplinas, gostei muito das disciplinas de prática de desenho, modelo vivo, anatomia humana. Conforme eu ia passando de disciplina, eu ia sendo monitora da disciplina anterior (só para ter mais tempo de prática). Na ilustração científica, por exemplo, foi o local onde eu pude expandir minha técnica em nanquim, pude estudar mais aquarela (amo a aquarela na ilustração científica, técnicas de desenho botânico).
O que eu mais aprendi nessa experiência universitária foi aprender a observar. Metade do tempo você está aprendendo a mexer com material, afinando o seu gesto, mas a outra metade, - e a mais importante para mim - é a observação: observar cor, luz, textura, reflexos, movimentos. E essas técnicas (a aquarela, o lápis, o carvão, o nanquim), elas não são consideradas propriamente pintura (por mais que nanquim e aquarela sejam tinta). A disciplina de pintura era a que menos me chamava a atenção. Eu fiz só porque era obrigatório (risos). Tanto a pintura quanto a escultura. Eu admiro muito quem faz escultura, por exemplo, mas exige um espaço, um material e um ateliê que eu não tenho até hoje. E a pintura, nas aulas de história da arte, era lindo, mas era muito chato. Os alunos de pintura, os pintores, sempre foram colocados pra mim em um lugar de “queridinhos”, de “preferidos”, de “bonitinhos”, enquanto a gente, que era do desenho, éramos considerados os nerds “basicões”.
Eu tinha um pequeno ranço de pintura, confesso. Ranço da figura da postura do pintor. No desenho, eu conseguia mergulhar na cor, antes de mexer na pintura, eu já gostava muito de cor, mas mexi até com fotografia antes. Nessa experiência, eu já estava à procura da intensi-
dade, dos brilhos, mas o meu trabalho de pintura mesmo, só comecei a fazer depois que eu já estava formada. Comecei a pintar depois que eu me formei, depois que eu já dava aula, sendo professora, mas porque teve um momento em que eu tive uma relação com a cor, com a visão das cores tão forte (por conta dos aprendizados tradicionais com o meu povo), que isso mudou a minha relação com a cor, me surgiu a necessidade de experimentar com outros materiais.
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Dessa pesquisa sobre luz, cor, forma e movimento que veio o primeiro hori.
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Aí eu me rendi e fui mexer na acrílica (e estou na acrílica por enquanto). Tem uns amigos meus que me falam que eu tenho que mexer com óleo, mas não tenho espaço em casa para isso. Aí dessa pesquisa sobre luz, cor, forma e movimento que veio o primeiro hori. E eu falo pesquisa, porque para além de ter as referências da conceituação do meu povo, do que é o hori, do que nós consideramos essa visão que é cor, luz, movimento e desenho, eu recebi essas bases da academia, por exemplo, da teoria da cor, eu adoro o livro do Israel Pedrosa “Da Cor à Cor Inexistente”, de pesquisas de ótica, de cinética, sempre me fascinou.
Horis, exposição Pamüri Pati - mundo de transformação, de Daiara Tukano. Imagem: Bruno Bernardes.
Eu fui uma criança que cresceu com caleidoscópio no olho. Tem alguns pintores que sempre me chamaram a atenção pela relação que eles tecem com as cores, como a Yayoi Kusama. Quando passou a exposição dela no CCBB em Brasília, eu entrei e me senti no meu mundo, porque tem uma coisa do espaço, do contraste, do movimento, da energia que ela apontava ali, que sugeriu uma direção para mim, como a relação de não ficar só nos pigmentos, nas cores, mas também pensar nos reflexos, nos metálicos e eu continuo nessa pesquisa.
Trabalhe as cores, mas lembre que existe um dourado, que existe um prateado, lembre que existe uma interferência de luz, uma interferência de cor, lembre que a luz do espaço define tudo daquilo que a gente vê. Assim, eu acho que eu chego nessa coisa de querer mergulhar na pintura e é um mergulho do qual eu até agora não saí. Para mim, o desenho é muito rápido, mas a pintura tem mais de mergulho, que pede um tempo, que vem do silenciamento, que vem de uma coisa do movimento do corpo.
Tenho gostado cada vez mais de pintar coisas maiores, coisa que a pintura permite de forma mais fácil. A pintura permite aumentar a escala, de sair de uma folhinha, para um prédio inteiro. No nanquim, por exemplo, eu fiquei muito feliz de poder fazer uma série em um papel Fabriano inteiro, de ficar lá de cócoras com pincelzinho na mão, em pé, em cima da folha de papel, desenhando o dia inteiro um nanquinzão, com aquele detalhes todos. Mas a pintura eu consigo fazer umas telas de treze metros, de oito metros, consigo fazer um prédio, você tem o movimento do braço, a pintura vira uma dança, tem as texturas, tem as fragrâncias
da tinta, tem essa dança de você ir e voltar e andar no meio daquelas cores, o relacionamento que a gente tem com os pincéis, o que para mim é muito especial, assim como eu tenho um relacionamento com meus lápis e meus bicos de pena, uma parte muito física de ficar subindo e descendo de um banquinho e daqui a pouco esse banquinho vira uma escada, daqui a pouco essa escada vira um andaime, daqui a pouco esse andaime vira um balancim. É uma outra relação de tempo o que a pintura oferece, e de corpo também. Então, acho que acabei me encantando pela pintura e estou achando muito bom. Acho que essa relação, diferente das relações humanas, é eterna.
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A visão do hori, quando ela acontece, ela é muito rápida e tem um movimento muito próprio.
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De acordo com a cosmovisão do seu povo (o povo Yepá Mahsã), a gente tem o conceito do hori, algo que está muito conectado com a visão, com o movimento e com a transformação. Como você, tendo essa formação acadêmica e tendo essa formação tradicional do seu povo, tem conjugado esses universos na manifestação do seu trabalho?
Como surgiu o primeiro trabalho chamado Hori e toda a sequência de trabalhos também chamados Hori?
Acho que essa coisa da formação tradicional do meu povo, ela tem algumas etapas. Eu consegui passar a pequena infância com meu pai, mas só pude voltar a conviver com ele na adolescência. Tivemos um processo de reaproximação e chegando mais adulta (naquela fase que humanizamos nossos pais), pude ter a experiência de conhecer ele melhor e tecer uma relação muito íntima com ele, onde ele sempre fez questão de trazer com muita força a nossa cultura. Eu considero um privilégio ter nascido indígena, no sentido da riqueza que nossos povos têm. É um privilégio que vem com as dores e com as mágoas da luta e da resistência. Com a maturidade, foi chegando um momento de reconhecer que aquilo estava presente o tempo inteiro e que aquilo era mais do que importante, que aquilo me dava origem.
O nome que o meu pai me deu sempre fez muita diferença, desde a pequena infância, porque meu nome é Daiara Hori. Meu pai me chamou de hori, ou seja, ao me chamar de hori, meu pai me chamou de arte, meu pai me chamou de desenho, me chamou de cor, me chamou de luz, me chamou de flor. É uma evocação, quase uma invocação de que aquilo faz parte do meu espírito desde muito antes de eu nascer. E esse nome, quando eu era aquela criança sozinha, era o que me chamava para o desenho. Conforme eu fui tendo uma compreensão mais complexa disso tudo, foi se tornando cada vez mais especial e foi aí que eu pedi que ele me ensinasse tradicionalmente, na prática, o que era isso, porque as ações da vida dele e de minha mãe não me permitiram crescer na aldeia. Mas já que a gente estava ali, vivos, juntos de novo e mais velhos, vamos fazer do jeito que a gente pode, do jeito que a gente tem, venha meu pai e me ensine. Então, ele começou a fazer cerimônia comigo. E, para o nosso povo, cerimônia é cerimônia de ayahuasca, porque a gente tem essa medicina que é fundante de toda a nossa cultura, de todo o nosso pensamento. Depois de alguns anos de diálogo, quando ele entendeu que teria mesmo que nos ensinar e que podíamos aprender sobre isso, consagrei a ayahuasca com ele. E fiz questão de que a primeira vez fosse com ele, dentro das regras do nosso povo. E essa primeira vez foi muito forte, só eu e ele. Nesse momento, pude perceber as dimensões do que é isso que nós chamamos de hori. Para além das viagens interiores, que surgem das reflexões de nossas existências e processos, me encantou a maneira como essas cores, esses movimentos e essas formas apareciam e comecei a querer tentar fazer um exercício de levar isso de alguma maneira para o papel ou para a tela e, dali, também veio a necessidade de mexer com a pintura. A visão do hori, quando ela acontece, ela é muito rápida e tem um movimento muito próprio. É muito difícil fazer o exercício da contemplação daquilo, de absorção e também
de tentar levar isso para a memória, para depois de todo o processo, tentar levar essa memória para a tela. Fiquei alguns anos me iniciando nesses ensaios e aí surgiu o primeiro hori, que foi uma tela. Criei coragem, comprei uma tela de um metro por um metro e comecei a jogar as cores e a procurar esse primeiro grafismo. Pesquisei também as fotos das gravuras existentes nas pedras, feitas pelo meu povo há muitos milênios. Prestei atenção nas cestarias e entendi que o hori não é uma coisa só, que a grande beleza dessa ideia de hori está justamente na transformação, que isso faz parte de um conceito fundamental do povo Yepá Mahsã, que é o pamuri, esse movimento incessante do universo. Então, me interessei pela percepção disso, de que cor também é movimento. É uma viagem que atravessa muitas camadas, desde a camada da compreensão das leituras dentro da cultura do povo, mas também das leituras possíveis dentro da ótica, da física, da cinética, da química, da poética, de tudo aquilo que atravessa a imagem.
* Daiara Hori Figueroa Sampaio - Duhig ô , do povo indígena Tukano – Yé’pá Mahsã, pertence ao clã Eremiri Hãusiro Parameri do Alto Rio Negro na Amazônia brasileira, nascida em São Paulo. É artista, curadora, professora e ativista. Graduada em Artes Visuais e Mestre em direitos humanos pela Universidade de Brasília; pesquisa o direito à memória e à verdade dos povos indígenas. Foi coordenadora da Rádio Yandê de 2015 a 2021. Membro fundador da Conferência Indígena de Ayahuasca. Participou da 34a Bienal de São Paulo. Ganhadora do Prêmio PIPA Online 2021. Premiada com o Prince Claus Seed Awards em 2022. Conta com obras nos acervos da Pinacoteca de São Paulo; Museu de Arte de São Paulo; Memorial dos Povos Indígenas; Museo delle Civilità, em Roma, Itália; Mauritshuis Museum, em Haia, Holanda. Curadora da exposição Nhe’ê Porã: memória e transformação, sobre línguas indígenas para o Museu da Língua Portuguesa. Membro do Conselho Nacional de Cultura CNPC/MINC mandato 2022-2025, representando os Povos Indígenas. Estuda a cultura, história e espiritualidade de seu povo junto à sua família. Reside em Brasília, DF.
Fernanda Pitta é de Curitiba. Já foi curadora sênior na Pinacoteca de São Paulo e atualmente é Professora no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Nesta entrevista, ela nos conta como sua atuação tem como foco o contorno das ausências para a transformação dos espaços institucionais que guardam memória.
Fernanda, você nasceu em Curitiba. Como foi a sua saída da cidade e como é a sua relação com Curitiba hoje?
Eu saí de Curitiba em uma situação um pouco ocasional, sem muito planejamento. Eu prestei vestibular para Arquitetura na PUC-SP (fiz dois anos de Arquitetura), mas também fiz vestibular para a Unicamp (em História), porque era um vestibular nacional na época. Me matriculei e passei dois anos trancando matrícula. Depois desses dois anos, eu tinha que desistir ou eu tinha que ir cursar (e eu já estava meio cansada da Arquitetura). Fui para Unicamp, que é um lugar onde a História da Arte se constituiu com bastante força dentro do curso de História, com professores de História da Arte, com linha de pesquisa e tudo mais.
Em Curitiba, eu tive uma infância muito urbana, aproveitei bastante essa experiência de cidade. Meu pai era ator e a gente tinha uma relação muito forte com o Teatro Guaíra, esse viver também nas coxias do teatro, de ter contato com o meio artístico. Ali, você tem o Guairinha, o Mini Guaíra e o Guairão, diferentes palcos que me trouxeram uma vivência múltipla do teatro. Na minha infância, tinha muita coisa de graça. Fiz oficina no Solar do Barão, no São Lourenço, tudo isso me liga a Curitiba. Mas, hoje, já faz 30 anos que estou em São Paulo.
Como você enxerga a função da curadoria nesses tempos de virada epistêmica? Como é que isso acontece na sua visão?
É engraçado, porque eu nunca me vi muito como cura-
dora. Eu entendo curadoria como uma atividade, não como uma profissão ou área de atividade profissional. Sempre achei um pouco tensa essa situação do curador que é dono do discurso, sabe? Do profissional que fica teorizando sobre a prática artística, sobre a produção artística e não abre essa relação de diálogo com os artistas. Para mim, essa coisa da autoridade do discurso curatorial sempre foi algo que não é a minha praia, não foi por onde eu fui.
Meu primeiro trabalho com arte foi na Casa das Rosas, como monitora, já em São Paulo e depois dessa experiência, eu fui trabalhar como pesquisadora e também comecei a en-
trar no mundo da arte por meio da crítica. Gostei de escrever sobre os trabalhos, mas nesse lugar de acompanhamento de projeto, de fazer um acompanhamento crítico, e me juntei a um grupo de jovens críticos que tinha uma revista chamada “Número”. Foi assim que eu fui me conectando com a curadoria (o que, muitas vezes, era acompanhar o trabalho que o artista estava desenvolvendo, sempre em diálogo).
Sempre me entendi como uma pesquisadora de História, alguém que pesquisa a História da Arte. Gosto de pensar a produção da arte contemporânea sempre olhando a partir de uma perspectiva histórica, de não produzir um discurso que seja só meu, mas de entrar em conversa e construir junto, através das obras. Gosto de me envolver com os projetos de artistas que têm trabalhos processuais, gosto de pensar o processo. Claro que eu amo pintura, mas gosto muito de trabalhar com artistas que não possuem um trabalho tão individual, que lidam com as relações humanas, com as relações também com outras gentes, são coisas que me interessam.
Acho que essa pergunta da virada epistêmica (que é também uma virada ontológica), esse transitar entre epistemologias e ontologias, acho que é um exercício muito legal de descentramento, de ter uma possibilidade de autorreflexão e de escuta (escuta também não é uma palavra muito boa, parece um jeito muito passivo de se colocar). Mas de entender os meus próprios privilégios e de entender com quem eu me solidarizo, com quem eu quero andar e qual o meu papel nesse caminhar junto, que é um papel de aliança, de abertura de espaço, de refletir sobre autoridade no meu discurso e do meu lugar (que obviamente tem muito conflito e é um exercício permanente). Ser antirracista é um exercício diário de entendimento dos próprios privilégios e dessas microviolências que esses privilégios trazem.
Você fez a Coordenação Curatorial da “Véxoa: nós sabemos”, a primeira exposição de arte indígena da Pinacoteca de São Paulo (com curadoria de Naine Terena). Como foi o processo de montagem e execução desse trabalho?
Foi um processo incrível de virada para mim, de muito aprendizado e de entendimento de todas essas complexidades com as quais eu lido até hoje. Foi um momento de me entender na institucionalidade, de entender o mito do homem branco salvador. O primeiro passo foi entender e se perguntar o porquê nunca havia tido uma exposição de arte indígena na Pinacoteca e o porquê do acervo da Pinacoteca só ter uma obra de um artista indígena (que nem em exposição estava). Começamos a fazer um exercício de olhar para dentro. Eu não sou especialista em arte indígena e não vou estar nesse lugar. Eu estudo como a História da Arte e os museus se relacionam com isso que chamam de arte indígena, estudo as ausências nos acervos, estudo essas presenças que invisibilizam, esse ponto de vista que é um ponto de vista de crítica institucional e de crítica da própria instituição da história da arte. Porque não se trata de falar “ah, nunca houve antes uma exposição de arte indígena, então a Pinacoteca estava lá fazendo”, não. Quem abriu esse caminho, quem buscou esse caminho foram os artistas indígenas. Eles disseram: “ó, a gente quer ocupar esse espaço e a gente vai ocupar esse espaço”.
O gesto do Denilson Baniwa, da ação do monumento das bandeiras à Bienal, trouxe uma discussão que fala dessa violência institucional. Começou pela nossa constatação primeiro da nossa incapacidade de ver, depois passou pela constatação da nossa incapacidade de fazer e, após, na constatação de que esse lugar (de curar a primeira exposição indígena da Pinacoteca) não era para ser realizada por uma pessoa não-indígena. Então, fizemos um seminário e convidamos a Naine Terena e de repente ela nos pergunta: “qual é o espaço que a instituição quer dar pra gente?”. Aí a instituição viu que tinha que fazer uma construção, construir uma outra relação. A mediação institucional da curadoria foi muito importante desde a contratação, com uma visão muito coletiva da Naine, convidando cada artista, perguntando se cada um gostaria de estar na exposição, foram questões muito fundamentais de perceber. Para mim, foi um ponto de virada mesmo, de mudança de olhar sobre o meu lugar.
A partir da sua trajetória, o que você enxerga que a professora e a historiadora têm em comum? Dentro de todos os assuntos que você pesquisou
no seu mestrado, no seu doutorado, o que você vê que está em interseção entre todos esses assuntos?
Acho que primeiro é gostar desse corpo a corpo com a arte. É gostar de arte. De olhar para arte, de pensar a partir da arte, de entender que a arte tem um pensamento, entender que as pessoas ao fazerem arte estão discutindo mundo. De que não é uma relação estanque, nem passiva, de reflexo de mundo. Desde as minhas leituras críticas da graduação, sempre gostei de perceber que a obra de arte tem um lugar de elaboração de visão de mundo, de sonho de mundo, de possibilidade de mundo. Isso é uma coisa que está sempre no meu interesse, seja nas exposições, seja nas minhas pesquisas, seja na docência.
Gosto muito de dar aula, eu acho que me identifico mais como professora que como curadora, como historiadora da arte. Porque eu acho também que o espaço da sala de aula é o espaço do diálogo, da troca de olhar, de olhar junto para as obras, de discutir junto às obras, é um espaço de criar história. Gosto desse tesão mesmo da sala de aula, que é de você ao trocar, de tentar entender junto alguma coisa, descobrir coisas. Você pensar coisas que você nunca pensou e ver também que as pessoas estão pensando coisas que elas nunca pensaram. Gosto desse contato, desse espaço vivo de criação de sentido.
No seu trabalho e nas suas pesquisas está sempre presente o estudo das ausências; sejam ausências em acervos ou ausências de presenças nas instituições. Dentre essas ausências, têm alguma que você perceba como a mais urgente de ser discutida?
Têm muitas ausências, porque têm muitas violências cotidianas para vários grupos que foram subalternizados pela sociedade, não só grupos humanos, como grupos não humanos também. O que eu me entendo como capaz de colaborar é no apontamento das ausências de pessoas indígenas no campo da arte. Eu entendo isso como uma demanda, uma luta e uma estratégia dos povos indígenas e é um campo onde eu percebi que eu posso ser uma aliada. Mas também entendendo, dentro da delicadeza do cotidiano, que as instituições de arte nem sempre fazem essa abordagem pelos mesmos motivos que os artistas indígenas fazem. E como é o meu lugar dentro disso? O meu lugar, em algum momento, precisa deixar de existir. Dentro da universidade, dentro da academia, isso fica muito explícito, porque as instituições são feitas para autorizar alguém e consequentemente desautorizar outras pessoas a exerce-
rem determinado discurso.
Como você pensa a instituição “museu”, hoje? Eu penso um pouco assim: é possível a gente ter um “pós-museu”, mas para que isso ocorra, esse museu de hoje em dia tem que acabar e eu não digo isso da boca para fora, porque precisamos entender essa estrutura como uma estrutura colonial. Se é possível a gente criar um espaço experimental dentro do museu, é para fazer isso: que este museu seja outra coisa e não se conserve como está agora e isso passa por várias desconstruções, como a desconstrução da ideia de universalidade do museu, da ideia de que o museu é o protetor e o conservador, e o que sabe “guardar as coisas”, a ideia de que o museu é o que sabe “contar a história”, é o que sabe mostrar o que as pessoas precisam ver, enfim, esse lugar de autoridade. Estamos aqui para experimentar outras formas.
Sobre a atuação de mulheres na arte: dentro da sua caminhada profissional, você encontrou dificuldades e preconceitos por ser mulher?
Cotidianamente a gente encontra. Se a gente observar as estruturas de poder dos museus no Brasil, a gente vai constatar majoritariamente mulheres na limpeza, mulheres no setor educativo, mulheres na administração, mulheres na curadoria, mas você não vê mulheres nas diretorias.
Você observou alguma mudança sobre isso no decorrer do tempo?
Acho que tivemos algumas mudanças. No campo da História da Arte, tivemos algumas mulheres que construíram um caminho muito importante dentro desse protagonismo, que se concretizou por criar uma carapaça para se proteger do machismo estrutural. Nós mulheres, nos vemos nesse lugar das diferentes relações o tempo todo, nas relações que são diferentes quando falam com mulheres e quando falam com os homens, o mansplaining é uma experiência diária. Acho que a sororidade aqui é muito importante, manter a sororidade é importante.
Você poderia trazer para gente exemplos de mulheres que na História da Arte te inspiram?
Gosto muito da Aracy Amaral. Acho também que tive muito aprendizado com a Ana Maria Belluzzo, as duas foram professoras juntas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da USP (FAU), ambas já se aposentaram. Observar uma figura como a Mari Carmen Ramírez, que é uma historiadora da arte, curadora latinoamericana que construiu toda uma valorização da arte construtiva latinoamericana no contexto dos Estados Unidos, uma pessoa que
decidiu que ia botar a arte abstrata construtiva da América
Latina no cânone da História da Arte, ela fez um caminho de construção de cânone. Foi muito legal observar isso e entender que posição eu queria estar. Eu quero de fato construir cânone? Ou será que meu negócio é pensar como os cânones se constroem e como questionar os cânones? Elas me ajudaram a entender melhor essa posição que a gente ocupa no sistema. A gente se relaciona com o mercado, a gente se relaciona com o colecionismo, a gente se relaciona com o discurso institucional e isso tudo produz valor. Tem consequências e desdobramentos.
Tem algum projeto futuro que você poderia contar para a gente?
Eu estou trabalhando agora, em um projeto de pesquisa que está associado a outros dois projetos de pesquisa dentro do campo dos estudos de patrimônio, da memória e dos acervos. Esse projeto está dedicado à pensar as relações entre museus, arte indígena e povos indígenas, em como refletir, como dialogar com as formas específicas dos povos indígenas pensarem arte, acervo e museu.
A questão teórica desse projeto é pensar como as estratégias atuais de conservação e de preservação do patrimônio são aquelas de parar o decaimento, parar com o processo da vida, para criar essa ficção do passado. Isso confluiu muito em discutir museu com os povos indígenas, porque o museu é esse lugar que congela as coisas e tira as coisas da vida e para esses processos de decaimento, ao mesmo tempo que para com esses processos de vida das coisas. O projeto tem se desenvolvido na construção do protagonismo dos pesquisadores indígenas.
Hoje, nós temos três pesquisas em andamento: uma pesquisa sobre memória na cerâmica Terena (com Irineu Terena), outra pesquisa sobre as bordunas Tupinambá (com Glicéria Tupinambá) e uma terceira pesquisa, que estamos articulando para iniciar com um grupo de pesquisadores do Rio Negro, para pensar sobre esse fato das coleções do Rio
Negro estarem quase todas fora do Brasil, especialmente na Alemanha. Também, para experimentar formas de acesso à acervos e discutir acervos que estejam para além de certas práticas que são comuns em alguns em museus, quais sejam. A ideia é convidar os povos indígenas para requalificar os acervos, discutir como mostrar as peças, fazer a exposição, gestos que encontram e provocam o limite de como os museus precisam criar mecanismos de permanência de pessoas indígenas em relações mais duradouras com a instituição. Esses gestos implicam pensar como tudo isso pode retornar para os territórios (não só resolver o problema do museu).
A pergunta que os museus têm que fazer, no meu ponto de vista, é essa: como eles vão construir, se aliar na construção com a comunidade indígena, como o impacto do acervo retornando para o território? E, no caso dos acervos alemães, por exemplo, estamos discutindo com a Francy Baniwa, a partir da desmobilização de acervos que ocorreram por causa das guerras na Europa (acervos que foram transferidos de local por conta de bombardeios). A gente tem muitos acervos de objetos do Rio Negro em território alemão que tiveram baixas, que tiveram peças sumidas, mas que ainda têm as fichas, ainda têm as informações, têm um certo lastro. O que fazer com isso? E perguntar: “vocês, pesquisadores indígenas, querem fazer alguma coisa com isso? O quê?”. A primeira coisa é ter acesso a essas informações e a essas fichas desenhadas. Depois, talvez pensar, experimentar algo em torno dessa ausência. Cabe à comunidade indígena decidir. Às vezes, é um objeto que a comunidade não faz mais e que a comunidade pode querer fazer novamente. Outras vezes, a comunidade pode repensar quais objetos eles de fato querem que sejam expostos. Tudo isso pode dar margem para uma conversa e uma presença mais efetiva das comunidades indígenas dentro dos museus.
* Fernanda Pitta é Professora Doutora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Historiadora da arte, foi curadora sênior da Pinacoteca de São Paulo entre 2014 e 2022. Realizou, entre outros projetos, a curadoria das exposições Trabalho de artista: imagem e autoimagem (1826-1929). Atuou como coordenadora curatorial de Véxoa: nós sabemos e como consultora da mostra Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil. Sua curadoria mais recente foi a mostra retrospectiva Eleonore Koch: em cena, no MAC USP. Foi bolsista da FAPESP, AAMC, The Clark Art Institute e Getty Research Institute. É coordenadora da equipe Brasil do projeto de pesquisa Decay without mourning, future thinking heritage practices (Riksbankens Jubileumsfond). É membro do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA). Pitta é autora de várias publicações no Brasil e no exterior.
Fernanda Stancik é art handler e cenotécnica. Nesta entrevista, ela nos conta mais sobre essas profissões tão importantes para o mundo das artes e sobre o desafio de ser mulher em ambientes profissionais majoritariamente masculinos.
Você trabalha como art handler e cenotecnia, áreas muito importantes da produção cultural e que não são tão conhecidas pelo grande público. O que uma art handler faz? Qual a diferença entre art handler e a cenotécnica?
Em uma tradução literal, art handler seria o “manipulador de arte”, o profissional responsável pelo manejo adequado e instalação de obras de arte em ambientes expositivos (museus e galerias, por exemplo), também chamado de montador.
Em uma exposição, o art handler encarrega-se da montagem dos objetos artísticos, enquanto um cenotécnico executa a montagem de estruturas e dispositivos cenográficos, quando presentes no projeto expográfico.
Você é formada em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Como você se especializou em art handle e em cenotecnia?
Finalizei o curso superior em Gravura em 2008. No início de 2009, fui convidada para participar de um curso de capacitação em montagem de exposições promovido pelo Museu Oscar Niemeyer, a convite de um amigo que havia participado de algumas montagens lá. Logo na primeira montagem que aconteceu após o curso, já fui chamada para um treinamento prático e desde então, faço parte da equipe de montadores do MON, esse ano completando 15 anos na função.
A parte de cenotecnia veio um pouco depois, através do Festival de Teatro de Curitiba. Fiz duas edições na função de maquinista e, a partir de 2016, assumi como cenotécnica
responsável pelas montagens de cenários das peças apresentadas no Teatro Guaíra.
Além de art handler e cenotecnia, você também faz a coordenação de equipes de cenotécnicos. Quais são os pontos positivos e negativos de liderar uma equipe?
Liderar um grupo é sempre desafiador pelo peso da responsabilidade de orientar corretamente os profissionais para que tudo funcione conforme o necessário. Este ano, no Festival de Curitiba, coordenei uma equipe de cerca de 40 técnicos, entre maquinistas e cenotécnicos, distribuídos
nos espaços onde aconteceram os espetáculos da mostra principal do Festival.
Conseguir montar o quebra-cabeça entre pessoal, montagens e desmontagens a partir do cronograma das peças é bem complexo e desgastante, foi algo que consumiu bastante energia e neurônios na pré-produção. Mas ver as coisas acontecerem no decorrer do evento, o mecanismo funcionando como o planejado, é algo bastante gratificante. É muito boa a sensação de ver que dou conta de algo tão grandioso.
Para uma jovem que tenha interesse em se tornar uma art handler e cenotecnia, há cursos/formações que você indicaria? Quais caminhos ela deve seguir?
Sei que algumas universidades oferecem cursos de extensão na área de cenografia e cenotecnia. Para art handler, desconheço, mas tenho muita vontade de promover uma oficina sobre. Além de buscar por esses cursos, eu aconse-
lharia também, procurar algum profissional da aérea, demonstrar interesse pelo assunto e pedir uma oportunidade de acompanhar algum trabalho na prática como expectador, aprendiz.
Você encontrou desafios específicos por ser mulher dentro das áreas técnicas das artes?
Ser mulher em ambientes profissionais majoritariamente masculinos é passar por validações constantes da sua capacidade, Mas, o que percebi ao longo desses anos, é que esses questionamentos vinham mais dos contratantes, tanto homens quanto mulheres, que dos próprios companheiros de trabalho.
Dentro dos diferentes trabalhos que o art handler e a cenotecnia abraçam, quais têm ganhado maior predileção por você?
Eu sou assumidamente apaixonada pelo meu trabalho de art handler. Sempre falo que se pudesse, viveria só de “pen-
durar quadrinhos” (risos). Claro que a cenotecnia me fascina também, dar forma a grandes estruturas de cenários em um palco de teatro é mágico, mas gosto muito desse contato íntimo e exclusivo que temos com as obras de arte em uma montagem, muitas vezes de artistas que admiramos e que só víamos em livros e catálogos na época da faculdade.
Você percebeu um aumento na consciência da importância e do entendimento do seu trabalho nos últimos anos? Quais desafios ainda persistem na sua profissão?
Sim, tenho notado que o mercado está entendendo a necessidade de contratação dos meus serviços de técnica dentro das especificidades que os projetos exigem. Mas a valorização, quando tratamos de remuneração, ainda é um ponto que precisa melhorar muito.
Quais profissionais técnicas das artes te inspiram? Quais você também nos indicaria a acompanhar o trabalho?
A pessoa mais importante na minha trajetória profissional, infelizmente não está mais neste plano: a Cynthia Castilho. Ela era montadora do MON na ocasião do curso de capacitação que fiz em 2009, e foi quem me abraçou e me incentivou a seguir na profissão. Logo formamos uma dupla imbatível nas montagens, que perdurou até sua partida precoce, em 2013. No momento, seguindo esse exemplo de incentivo que recebi e que foi primordial para meu desenvolvimento, posso indicar para que vocês fiquem de olho na Jenny Berté, cenotécnica e marceneira, e que tem sido minha pupila nas exposições.
Tem algum projeto futuro que você está envolvida e que possa compartilhar com a gente?
No momento, só um projeto de gente que está em desenvolvimento em meu ventre e deve vir ao mundo em abril, chamada Alice. Até agora, ela já tem 4 montagens de exposições e uma de cenografia no currículo. E assim pretendo seguir até o seu nascimento.
Técnica x arte: para você, que também fez uma formação artística, estar do lado técnico de uma produção cultural exige do técnico uma visão artística de mundo? Como você percebe essa relação dentro da sua experiência?
Percebo que minha formação artística foi o diferencial em diversos trabalhos, mas acredito que para um técnico de arte e cultura, não necessariamente uma formação acadêmica seja o mais importante, mas a sensibilidade, o entendimento e envolvimento com projeto a ser executado.
Exposição: Tupy or not TupyMuseu Oscar Niemeyer. Obra: Espantalho, Candido Portinari. Imagem: Maita Franco.
* Fernanda Stancik é graduada em Gravura pela EMBAP, e uma profissional com experiência nas áreas de técnicas voltadas às exposições, cenografia, audiovisual e teatro. Atua desde 2009 como parte da equipe de montagem do Museu Oscar Niemeyer. Com um portfólio abrangente, Fernanda participou de diversas montagens de exposições de artistas renomados e produções culturais em instituições importantes, como o Museu de Arte Contemporânea do Paraná e a Bienal Internacional de Curitiba. Ao longo de sua carreira, também atuou como produtora em filmes, séries e festivais, destacando-se na coordenação de cenotecnia para o Festival de Teatro de Curitiba e em produções audiovisuais premiadas. Seu trabalho é reconhecido pela diversidade e profundidade na criação de ambientes e narrativas visuais, recebendo, entre outros, o Prêmio Técnicos e Técnicas da Cultura pela Lei Aldir Blanc, em 2021.
Lina Faria tem o olhar acurado sobre a cidade, a surpresa da intimidade e a história da fotografia do Paraná em suas lentes.
Como você enxerga a identidade da cidade de Curitiba? Quais características e palavras te vêm à mente ao pensar Curitiba?
Gosto de Curitiba! Cidade bonita, organizada, mas contida. Uma cidade conservadora, que não arrisca. Penso que, com a atual diversidade, resultado talvez das próprias cotas raciais, ela esteja mais real. Aos poucos, vai abandonando a pecha de cidade branquinha e isso vai humanizando-a, mas temos ainda que avançar muito, pois continua sendo uma cidade extremamente conservadora.
Como foi que a fotografia chegou na sua vida?
Pois a fotografia chegou em mim pelos bastidores. A dificuldade em comprar equipamentos devido ao alto custo, a necessidade de guardar dólares para quando um amigo viajasse para fora do país e trouxesse uma lente ou outra, tudo isso me empurrou para a função de assistente de fotografia em grandes estúdios. Primeiro, em São Paulo. Depois, em Curitiba, onde só aos 22 anos comprei minha primeira câmera 35mm.
Após um certo período ficando na retaguarda da fotografia, no laboratório, carregando com películas câmeras de formato médio e grande, fui acolhida pela ZAP Fotografia, em Curitiba, onde comecei a fotografar slides para audiovisual. Na época, não havia vídeos institucionais, as empresas faziam seus perfis através de slides sincronizados ao som. Eu saía às ruas com uma câmera na mão e a cidade era o
palco. Isso me deu muita segurança na questão de desenvolver pautas tendo como referência a cidade. Na década de 80, passei a fotografar para vários veículos nacionais, como Veja, Istoé , O Globo e outros.
Como a evolução do equipamento fotográfico atravessou sua carreira? Você se manteve com os mesmos equipamentos ou outras câmeras e processos e registros também foram testados por você? Qual câmera você gosta mais de fotografar? Quando comecei a fotografar no sistema 35mm, a câmera mais popular era a Asahi Pentax, que foi minha primeira
câmera. Mas já na década de 80, a Nikon ganha mercado no Brasil. Eu trabalhei a maior parte da minha vida com o sistema Nikon, apesar de ter tido uma Leica M3 com uma lente 21mm, que me deu muito prazer. Troquei-a por uma Pentax 6x7, pela demanda de fotos em formato médio, fotos de arquitetura. A Pentax 6x7 era como se fosse uma 35mm robusta, com fotômetro que permitia mobilidade. Sempre adquiri equipamentos com muita dificuldade. Na mudança para o sistema digital então, a coisa piorou: as câmeras eram muito caras no começo e exigiam computadores mais potentes, porque fotografar no sistema RAW exige muito espaço. Confesso que o advento da foto digital foi por demais impactante na minha fotografia. Continuei fotografando com digital, mas me perdi no sistema de armazenamento e conservação de arquivos. Se fotografar com digital facilita o processo de captura da imagem, sua pós-produção exige mais infraestrutura.
Você realizou um importante trabalho chamado “Prisão Feminina - um Lar enquanto Prisão, uma Prisão enquanto Lar”. Como o seu olhar foi atravessado por esse trabalho?
Esse é um trabalho que aborda a prisão feminina dentro do patriarcado, pela máxima que ao homem coube o mundo e a mulher coube o lar. A despeito de eu ter fotografado dois
presididos, o Presídio Feminino do Ahú e o de Piraquara, não era o sistema carcerário o foco do meu trabalho, mas sim, a impregnação da mulher com os espaços a ela impostos a ocupar. A estética como estratégia de sobrevivência junto ao caos, como o caso das presidiárias que sacrificam uma coberta bonita, como tapete, para ganhar mais aconchego. Ou ainda, a senhora solitária que habita junto a uma santa de sua estatura, na mais pura essência da solidão. Pequenos detalhes que transformam uma edificação por mais inóspita que seja em um lar.
Hoje, após mais de 20 anos da realização do trabalho sobre as prisões femininas, como você tem pensado a condição da mulher contemporânea?
Pois penso que a situação a cada dia compromete mais a harmonia das rainhas do lar. Estatisticamente, as mães solo, famílias monoparentais, cada vez aumentam mais e as creches estão longe de cumprir essa demanda. Vejo mulheres muitas vezes tendo que enfrentar o mundo levando suas crias junto a si na caça à comida, tendo que transpor os limites de sua prisão. O mundo virou seu lar.
Um dos assuntos que também permeiam a sua poética é a cidade e as estruturas urbanas no cotidiano das pessoas. Como as inspirações ocorrem neste trabalho?
Em minhas andanças pela cidade, meus olhos vão ao encontro do embate do cidadão com o espaço urbano e a expressão humana em um meio cada vez mais embrutecido por transformações ditadas pelo fluxo de capitais, de automóveis e pessoas ensandecidas. A cidade está cada vez mais árida, com verdadeiros restos humanos vivendo nas calçadas. Confesso que a cada dia tenho menos inspiração, qualquer real interesse em documentar tamanha degradação.
Quais artistas mulheres foram inspiração para você?
Bem, poderia citar Dorothea Lange (1885/1965), fotógrafa estadunidense documental que retratou a grande depressão americana na década de 30. Claudia Andujar, nascida em 12 de junho 1931, suíça naturalizada brasileira, fotoativista, ela documentou durante décadas as atividades diárias dos Yanomami em Roraima. Tem ainda a Nair Benedicto, nascida em 1940, fotógrafa e ativista nas causas trabalhistas e feministas.
Há alguma foto, projeto, assunto que você ainda não realizou e que gostaria de realizar?
Às vezes, penso em voltar às minhas raízes e ir a Nova Esperança, cidade onde nasci, para documentar as tecelãs e criadoras de bicho-da-seda. Elas fazem sucesso com sua seda, Penélopes a tecer e tecer. Fotógrafa, mãe, avó: o que mudou no olhar da Lina Faria da década de 70, para a Lina Faria de agora?
Muita coisa mudou! O mundo mudou! Vejo hoje, as pessoas cada vez mais ciosas de sua intimidade. Por exemplo, o meu respeito por elas, me fez ficar tímida em adentrar os seus espaços íntimos ou mesmo na abordagem a anônimos nas ruas. Sofri um assalto há uns 5 anos e levaram meu equipamento. Foram bastante agressivos. Isso refletiu muito na minha fotografia que tenta captar o lado humanista das pessoas, pois passei a ter medo de sair com meu equipamento na rua, mesmo de dia, logo eu que não tinha medo de enfrentar a cidade mesmo a noite.
Que mensagem importante você pode passar para as fotógrafas das novas gerações?
Fiquem muito atentas ao arquivamento de sua produção e pelo lado da linguagem, sigam seu coração.
Imagem: Lina Faria
* Adelina Faria (Nova Esperança, Paraná, 1955) é fotógrafa. Em 1976, terminou o curso de Comunicação Social da Universidade do Paraná, em Curitiba. Nesse mesmo ano, transferiu-se para a capital paulista, permanecendo na cidade até 1979, onde trabalhou como assistente de fotografia nos estúdios da agência MPM e, em seguida, da Gang Publicidade. Após seu retorno a Curitiba, é fotógrafa da Zap Fotografia entre 1979 e 1980, passando a trabalhar posteriormente como fotógrafa autônoma no campo da imprensa. Nos anos de 1988 e 1989, foi editora de fotografia do jornal O Estado do Mato Grosso, em Cuiabá. Entre 1982 e 1984, trabalhou como fotógrafa para a Secretaria de Comunicação Social de Curitiba; trabalhando desde então para o Instituto de Pesquisas e Planejamento de Curitiba. Registrou os problemas ecológicos causados pelo garimpo na região do Pantanal Mato-Grossense para o Centro Nacional de Pesquisas Científicas; realizou ainda um contundente ensaio sobre a condição feminina no Brasil. Recebeu o Prêmio Marc Ferrez da Fundação Nacional de Arte, em 1996.
Mariana Barros é uma performer e artista visual que tem no riso gostoso, na permissão à disponibilidade e na autoralidade, suas marcas.
Você é uma artista da Performance: como você enxerga a Performance? Artes cênicas ou Artes Visuais?
A performance é tudo. Inter-artes. Naquilo que eu penso, na linguagem que eu cultuo. A performance sou eu em muitas esferas. A performance está, para mim, em uma disponibilidade, em você estar disponível e atento a essa permissão que a vida possa ser (e acontecer) bela em pequenas coisinhas, nesse entorno às vezes um pouco mais cômico também. E acho que isso advém muito dessa disponibilidade. Meus trabalhos são condensações dessa disponibilidade.
E o seu trabalho “O Corpo Espetacular”?
O Corpo Espetacular, eu penso ele como um corpo-objeto para a intervenção urbana, uma intervenção visual nas arquiteturas, como percorrer e se instalar (tem 20 metros aquela cauda). Francisco Gaspar (amigo engenheiro), na época, me ajudou muito a pensar na estrutura e dinâmicas da obra.
Atualmente, como está a sua relação com Curitiba? Como a performance começou contigo na cidade?
Eu posso associar em vários níveis da minha vida o que é performance (e como ela começou em mim). Minha disposição está na imagem, de ver aquilo que eu enxergo. Eu ouvi falar a primeira vez de performance na Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Sempre fui multi-linguagem, multi-interessada em várias coisas. Estudando teatro na FAP, cheguei na performance e aquilo foi poderoso, porque vi ali um lugar onde eu poderia condensar todos os meus interesses (com a música, o maracatu que eu estudava na época,
as artes visuais e etc) e que não era necessariamente um performar a Arte Cênica, era aprender a trazer dessa força (dessas outras artes), algo para a performance. O Maracatu me trouxe muita atenção e foco.
Em 2007, o que estava à nossa disposição ainda eram métodos mais tradicionais (texto, corpo, cena). Tive um pequeno trauma na relação com o teatro. E se eu errasse o texto, logo dava risada (disruptiva até o talo) e isso me levou a explorar a comicidade contemporânea. Comecei com Simony Sotelo, no Coletivo Garbanzo e, através da fotografia, desenvolvemos lambes e ações urbanas. Na sequência, também surgiu o Festival Fora da Forma (de Dika Sato e Mau Schramm).
Em Curitiba, eu desenvolvi meu trabalho a partir do próprio circuito de amigos que eu tinha. Totalmente autoral, alternativo e nada convencional, sem qualquer instituição. Como na Sociedade 13 de maio, na Casa da Baiana, Casa da Lua, entre outros convívios com essa partilha do batuque, chimarrão, cachaça. Foram espaços muito importantes na minha formação. O Psicodália também foi um festival que participei em algumas edições e foi importante na minha trajetória com a performance.
E agora você mora em Portugal há 5 anos. Por que Portugal?
Eu vim pela primeira vez para Portugal com Fernando Lobo, em 2015. Nesse período, eu já tinha agarrado a comicidade e o riso gostoso no meu trabalho. Apresentamos um trabalho nosso no Centro em Movimento de Lisboa (CEM), em uma quinta experimental. Sempre que eu e Fernando nos apresentávamos, abríamos um “buraco no teto”. A gente alcançava estados performativos muito intensos e tudo isso, pra mim, me compõem enquanto humana dentro da performance (para mim é muito difícil falar quando começa e quando termina a performance, ela é um “bolol ô ” de coisas e referências).
Lisboa é uma cidade que te envolve de um jeito muito especial e tive uma acolhida artística muito positiva no início, conectei de primeira. Depois pandemia e a história muda.
O que é esse buraco no teto?
O “buraco no teto” é um estado meio catártico de estar presente e aberto à possíveis transes de manifestações artísticas. Eu habito muito, gosto muito. Só quem já viveu, sabe o que é (risos). Eu entendi que já não terei muitos parceiros que entrarão nesse lugar comigo, mas alguns entram e é ótimo escorregar para esse buraco, para essa parceria, isso me interessa muito. “Buraqueiros” são raros, mas tenho bons amigos que escorregam comigo.
Você veio para Lisboa para realizar um trabalho no Centro em Movimento de Lisboa. Como foi essa experiência?
Eu vim para o Centro Em Movimento de Lisboa para realizar um trabalho que tinha como foco a relação com meu filho, porque eu produzia muito e eu achava que o que gente fazia era arte: as brincadeiras, principalmente danças com o corpo, que a gente chamava de “Agarraneu”. Vim para investigar isso.
Mas quando entrei em residência no CEM, comecei a queimar meus neurô nios dentro do estúdio (e eu nunca gostei da esquizofrenia de estúdio, parede branca, formas
pré-fixadas de análise artística). O teatro traz muito isso, a dança trazia muito isso, e eu, àquela altura, já estava vibrando num “estado de arte do gostoso”, em uma onda bem mais livre de qualquer formato. E eu até ia pro CEM de saia tutu (risos).
E o fluxo de performance, o que foi?
O Fluxo de Performance foi/é um laboratório/workshop/ metodologia que formatei em 2015, para práticas, teorias performativas e outras contemporaneidades. Ministrei durante uns anos em Curitiba. E futuramente retorno com ele aqui em Lisboa.
Mariano Barros. Imagem: Andre Schiavone.
O “buraco no teto” é um estado meio catártico de estar presente e aberto à possíveis transes de manifestações artísticas.
“ ‟
E a sua relação mãe-performer? Como se dá isso? O trabalho que eu quis desenvolver com meu filho no CEM em Lisboa, por exemplo, eu fui conseguir realizar de forma completamente independente em Dublin e não tem uma foto disso (mãe e performer, é claro que a câmera ia estar sem bateria). Fizemos uma performance onde ele me pintava inteira, fazíamos nossas danças e quando ele me desenhou, foi tão intenso, que chegou a sair sangue (na hora em que eu ia avisar ele de que estava muito forte, ele mesmo, muito pequeno ainda, se percebeu e disse “ih, sangrou”). Foi a coisa mais linda da minha vida. Maternar é também uma grande viagem artística que possui performance na interação. Meu filho é alguém muito disponível à felicidade, fico impressionada mesmo. Ele me tira das trevas e, por mais que ele tenha as suas trevinhas, me resgata muitas vezes.
Mariana Barros. Imagem: Nanda Godim.
* Mariana Barros (BR) tem 34 anos. Mãe. Multiartista Performer. Baseada em Lisboa, com especialização em Arte Sonora pela Belas Artes ULisboa (PT-2020) e Licenciatura em Teatro pela UNESPAR (BR-2013). Tem formações em cursos de variantes artísticas. Sua trajetória é marcada por criações e colaborações em projetos entre o teatro, dança, música, arte sonora, performance, artes visuais e arte educação. Possui mais de 100 trabalhos desenvolvidos em galerias, festivais e bienais pela América Latina e Europa. Dispõe repertório de objetos e metodologias artísticas para crianças, jovens e adultos, com maior relevância a metodologia laboratorial “Fluxo de Performance”, criada em 2015, para práticas, teorias performativas e outras contemporaneidades. Presta consultoria de expressividade para artistas e companhias. Mergulha em residências artísticas enquanto artista e curadora. Premiada melhor atriz com o Troféu Gralha Azul com o espetáculo CriÂnsia, da ProcessoMultiartes (BR-2018). Em contexto português, dedica-se a novas parcerias, ao desenvolvimento e circulação de seus trabalhos, destacam-se, “Corpo Espetacular” (PT 2020-2022), “ES| SURFACE” (BR,PT 2015-2022), “BrazilianStrip” (BR,PT 2017-2022), “Galeria” (2021), espetáculo com Bestiário na Culturgest, “FRAM” (2021) residência artística e exposição no Museu Bordalo Pinheiro. Atuou como professora-formadora de artes plásticas no Clube Unesco de Educação (2022) e assistente de produção de obras no Vhils Studio (2022-2023).
Naine Terena nos conta um pouco sobre o seu trabalho, suas pesquisas e diálogos com os diferentes campos do pensamento indígena no Brasil.
Você é comunicadora, Mestre em Artes e Doutora em Educação. Como foi o percurso do seu interesse por esses temas (na infância, adolescência) antes da entrada na academia?
Eu sempre gostei do campo das artes. Fiz muita manualidade na adolescência e teatro também. Entrar no curso de Comunicação, como costumo brincar, foi meio acaso. Na época, o vestibular era diferente, então escolhi um curso que eu sabia que conseguiria ir até o fim. Acho que foi uma boa escolha, porque depois, compreendi que eram os caminhos que eu deveria seguir.
Você escreveu o livro “Arte Indígena no Brasil - midiatização, apagamentos e ritos de passagem”, no qual aborda uma importante reflexão sobre como pensar a arte produzida pelos povos originários no Brasil. O que seria o conceito das Manifestações Estéticas Indígenas e como ele se diferencia do conceito de Arte Indígena Contemporânea?
Entendo como um lugar político, onde os diferentes povos e seus artistas podem dizer se o que fazem é arte ou não. Prefiro falar em manifestações estéticas, porque eu dialogo com muitos campos das produções indígenas. Dessa forma, me movimento melhor politicamente, defendendo as pautas, entendendo e ampliando as noções de arte.
Você foi curadora da exposição “Véxoa - Nós Sabemos”, a primeira exposição totalmente indígena da Pinacoteca de São Paulo. Após a repercussão da exposição, você percebeu algum amadurecimento no sistema da arte ao lidar com artistas indígenas? Quais desafios ainda persistem na sua visão?
Acho que muitas frentes de valorização da arte indígena foram e estão sendo criadas. É um fluxo, vejo que algumas instituições se movimentam para construir melhores diálogos, como a própria Pinacoteca. Depois de “Véxoa”, essa instituição traçou alguns objetivos que me parecem que estão sendo colocados em prática nos últimos anos.
Você é do povo Terena. Dentro da cosmovisão Terena, existe alguma palavra ou conceito que se aproxima do que o mundo ocidental chama de arte? Como se dá a relação do povo Terena com suas manifestações estéticas?
Existem já, muitos atravessamentos na atualidade. De uma maneira prática, quero dizer que os conceitos se movimentam dentro do que entendemos como cosmovisão
Terena, mas que no cotidiano, o reconhecimento de arte/ artista surge àqueles habilidosos nos campos das produções que mesclam a construção das vestimentas de dança, grafismos, das mãos das ceramistas que são extremamente habilidosas e também das tecelãs. De quem está atuando nas artes digitais e todos que entendem que fazem arte. A ideia de arte é o refinamento dos sentidos de fazer, do percurso da produção.
Na conclusão da sua pesquisa de Mestrado “Kohixoti-kipáe, a dança da ema: memória, resistência e cotidiano Terena”, você menciona que um efeito inesperado do seu trabalho, foi o interesse da comunidade em utilizar a tecnologia do vídeo em prol da preservação da própria memória. Desde o início, você também se dedicou à comunicação. Como enxerga a comunicação realizada entre os povos indígenas atualmente? Como vê a utilização de mídias sociais e tecnologias como rádio, documentários, podcasts e livros na difusão das múltiplas cosmovisões indígenas?
Minha Avó Foi Pega a Laço, Naine Terena. Imagem: Téo Miranda
Costumo lembrar que eu criança, vivi as aldeias sem energia elétrica e água encanada. A virada dessas tecnologias foi bem grande e todo mundo conseguiu, a certa medida, ter acesso. No doutorado, fizemos uma construção coletiva com fotos, vídeos, com professores indígenas das escolas da Aldeia Limão Verde, e reafirmamos uma afinidade muito natural com os aparatos de comunicação, talvez pela própria oralidade indígena, que desperta a visualidade e vice-versa. Sempre fiz o estudo e acompanhamento dessas produções e hoje, observo que temos uma construção enorme de conteúdo, tendências e estéticas. O que sempre digo é saber a medida da midiatização e os contras do acesso. Todos somos produtores de conteúdo e precisamos ter o discernimento do que estamos produzindo.
Você fez parte da Diretoria de Educação e Formação Artística do Ministério da Cultura. Quais desafios você enxergou ao estar dentro do Ministério?
Encerrei meu ciclo no Ministério da Cultura no primeiro semestre de 2024 e estou em outra empreitada, que acho que pode colaborar também em alguns cenários. Em específico, para a área da formação, o desafio é analisar, aglutinar e otimizar as muitas ações que o Ministério já tem nesse campo e as que deseja criar. Muita coisa não é vista. Um programa de formação artística e cultural foi uma demanda apontada e que começamos a estudar com as Secretarias, vinculadas do Minc para tracejar um bom programa que vire uma política satisfatória. Para não deixar de dizer, investimos em algumas linhas de ação, que neste ano, podem ser avaliadas e pensadas, como: a importância das universidades em colaboração com a sociedade e em especial com artistas educadores; fomento aos espaços não formais de formação artística, o que potencializa artistas individuais e locais formativos; presença de artistas com deficiência na cadeia produtiva, conexão, cultura e pensamento, onde a produção de pensamento crítico descentraliza conhecimento; parceria com o Ministério da Educação para a criação de um edital específico para a escola em tempo integral, entre outras; além de um estudo sobre a formação no Minc, que deve dar horizontes para a pauta.
Comunicação, artes, tecnologia: tudo desembocando na educação. A partir do seu doutorado e da
sua pesquisa com novas tecnologias, como você pensa a escola indígena na contemporaneidade? Quais formatos, experiências e resultados você observa que têm trazido mudanças positivas na educação indígena atual?
Escolas indígenas são terrenos férteis e inspiradores para as pessoas não indígenas no que diz respeito a educar os sentidos. Isso porque, a especificidade faz com que elementos muito próprios das artes e das culturas indígenas estejam no dia a dia da escola, mudando um pouco o caráter conteudista. Contratos, materiais didáticos, às vezes salas de aula que não condizem com a realidade dos povos, concurso específico, são alguns dos desafios. Experiências positivas, algo muito bonito que vi nos últimos dias é a merenda escolar ser feita com produtos da agricultura familiar indígena, do próprio território, respeitando os processos nutricionais. Acho isso um grande avanço nas burocracias e no entendimento de alimentação e educação coletiva.
Escolas indígenas são terrenos férteis e inspiradores para as pessoas não indígenas no que diz respeito a educar os sentidos.
Além de seu trabalho como pensadora, curadora, comunicadora, ativista e educadora, você também é artista. Sua primeira exposição individual foi realizada em 2024, na Galeria Carmo Johnson Projects. Como foi a experiência de ter um espaço individual para compor a narrativa do seu trabalho?
Foi um momento muito especial de atuação, porque me possibilitou ver minha produção e deixar que as outras pessoas a vissem de maneira ampla. Quando a Carmo me convidou, não hesitei em aceitar, porque era algo que talvez estivesse faltando na trajetória.
Uma das técnicas utilizadas na sua exposição,
foi a tecelagem. Como se dá o processo de tecelagem para o povo Terena? Como a ancestralidade é incorporada dentro da cosmovisão do seu povo?
A tecelagem é uma prática muito antiga, registrada inclusive por viajantes em outros séculos. Vi algumas peças também em alguns museus fora do Brasil e atualmente, tenho conhecido alguns tecelões e tecelãs. Não me parece uma prática que é muito difundida, mas vejo uma retomada. Tudo na cosmovisão Terena, no que eu aprendi e percebo, surge das conexões e ensinamentos narrados na história de criação, dos seres ancestrais. Ali, foi o momento que as nossas tecnologias sociais foram repassadas para viver na terra e por isso a ancestralidade é vida, viva, presente.
Após anos de intenso trabalho em todos esses temas, vemos novas gerações de artistas, educadores e comunicadores indígenas reivindicando espaços e criando novas relações institucionais com museus, galerias e mídias. Como foi o seu trabalho como consultora do programa de curadoria compartilhada com os bolsistas indígenas do Museu Paranaense?
Esses trabalhos são importantes para se experimentar as relações e a partir disso, desenhar como elas se desencadeiam. Podemos orientar, mostrar caminhos, intermediar os diálogos. No MUPA, foi assim. Foi um trabalho em
que o contato com os curadores indígenas em residência foi intenso em todas as áreas da instituição, o que coloca a vida real, como ela é. Isso é processo. A meu ver, o mais importante não é o produto final entregue, a exposição. Mas o aprendizado e o que ele pode delinear para o futuro.
Quais projetos futuros você pode compartilhar conosco? Teremos itinerância da sua exposição? Novas exposições? Publicação de novos livros? O que tem despertado o seu interesse criativo atualmente?
Voltei para o Mato Grosso e em setembro, me instalei como pesquisadora na Universidade Federal de Mato Grosso, com uma pesquisa que me enche os olhos. Vamos para uma pesquisa sobre a ação de um Museu de Arte, Ciência e Tecnologias e o que seria isso para a população. É um projeto de pesquisa que foi aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e a Fundação de Amparo à Ciência do Estado e que, na minha trajetória, é a marca da nossa presença na pesquisa, inclusive porque sou afetada pelo movimento de mulheres nas ciências. Em Cuiabá, também estou desenhando um desejo antigo de criar as residências artísticas e formação e, para isso, estou preparando junto com uma rede de parcerias esse momento, que espero em breve, seja mais um lugar de encontro e transformação.
* Naine Terena é Mestre em Artes, doutora em Educação, graduada em Comunicação Social (UFMT). Mulher do povo Terena, é pesquisadora, professora universitária, curadora e artista educadora. Atualmente, é pesquisadora com apoio do CNPQ/Fapemat-MT, coordenando um projeto de estudo acerca do Museu de Artes, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso. Criou em 2012, um empreendimento cultural chamado Oráculo Comunicação, Educação e Cultura que fomenta a participação ativa de agentes diversos no mercado das artes, educação, cultura e comunicação. É organizadora da coletânea de escritores indígenas ‘Tempos’ - Ed. Sustentável, 2021 e escreveu o e-book Arte indígena no Brasil - midiatização, apagamentos e ritos de passagem em 2022. Terena foi agraciada como Mestre da Cultura de Mato Grosso (Brasil - 2020/2021). Foi curadora da exposição Véxoa - Nós sabemos (Pinacoteca de SP e Universidade de Tufts), de um dos núcleos do Festival Desenho Vivo (DF), equipe Curatorial do Circuito Urbano de Arte (CURA), da Exposição Virtual Rec-Tyty, do Cine Curumin, Um século de agora (Itaú Cultural) e membro da Comissão Julgadora da 13ª Bienal Internacional de Arquitetura, entre outros trabalhos curatoriais. Foi docente da especialização em gestão cultural - ampliação de repertórios do Instituto Itaú Cultural, Instituição onde atuou como colunista e do Mestrado intercultural indígena da Universidade do Estado de Mato Grosso. Foi consultora para a construção de uma curadoria indígena no Museu Paranaense. Realizou imersões em Universidades norte-americanas no ano de 2023, onde o intuito era a realização de atividades públicas em arte e cultura. Esteve como Diretora de formação artística e cultura do Ministério da Cultura. Como artista, tem se dedicado a investigar a produção de arte e tecnologias, assim como instalações e arte têxtil. Participou das exposições Coração na aldeia e pés no Mundo (SESC Piracicaba), Histórias indígenas (MASP-SP), Exposição coletiva Bio (UFMT), Exposição virtual Cultures of Anti-racism in Latin America (Universidade de Manchester) e Hãhãw: arte indígena antirracista, entre outros.
Pretícia Jerônimo traz seu olhar decolonial sobre a fotografia, como uma ferramenta de mudança social.
Como a partir de Patrícia Jerônimo, surgiu a artista Pretícia?
Então, como artista, surgiu partindo de Patrícia Jerônimo. Eu me autointitulei Pretícia quando eu tinha mais ou menos uns 16 anos. Foi naquele momento em que todo mundo começou a criar os e-mails, lembra? A gente colocava os nomes e tal. O meu primeiro e-mail foi hiphop83@ hotmail. E aí, quando eu fui criar um apelido, eu achei que Pretícia ficava bonito. Era o momento do pertencimento da
adolescente. Criar um apelido é criar o seu mundo, é como você vai interagir com seus amigos. A partir do apelido a gente também diz como a gente se vê. Então, o Preticia é uma mistura de pretinha (que é como minha mãe me chama) e Patrícia. Eu fiz um jogo de palavras. Tinha também um apelido que as meninas me chamavam aqui, que era “Patricinha da favela”. Fiquei jogando uma sílaba para lá e para cá, sobe e desce para ver o que que dava. Na minha casa também, a minha família me chamava de “Tiça”. O “Tiça” para mim é um lugar mais íntimo mesmo, que é um diminutivo de pretinha. Então, tem esse “Tícia” aqui que é muito afetivo mesmo, só as pessoas de dentro da minha casa que me chamam assim. E tem a coisa da gente brincar que a pessoa mais escura da casa da gente é o tição, esse nome, que a gente sabe que é de um lugar tão violento na rua. Quando as pessoas chamam pessoas negras assim, é muito violento. Mas dentro de casa, quando a gente usa esses apelidos, eu acho que é uma maneira também de sub-
Pretícia Jerônimo. Imagem: Paula Rigo / Cianotipia: Pretícia Jerônimo.
versão, de trazer esse apelido que lá fora é violento, para aqui onde ele é amoroso. Então a Tiça, além de Patrícia, vem desse tição. Mas só dentro das brincadeiras amorosas de dentro de casa. Eu sou a pessoa mais escura de dentro da minha família. Tinha meu pai e minha avó, mas hoje sou eu e eu sou uma pessoa negra de pele clara. Para a gente também ir entendendo o que constitui esse lugar do racismo que uma adolescente já vai entendendo enquanto pessoa negra. Eu ouvi as pessoas dizendo “você não é tão negra assim”. Quando eu trago Pretícia, quando trago o preto para o meu apelido, ele é uma afirmação. Ele diz: “eu sou preta sim, ué? Não é você quem diz se eu sou preta ou não”. O lugar do racismo está nas pessoas acreditarem que ser preta é uma coisa ruim, que ser negra é ser uma pessoa menor do que o outro. As pessoas naturalmente me diziam “você não é tão preta”. Como se isso fosse um elogio. Diziam “você é só pretinha”. Trazer o Pretícia para dentro do meu nome e me colocar como uma pessoa negra nos anos 90, foi um gesto de afirmação para mim. Hoje, eu lembro, com 41 anos, que foi uma revolução mesmo. Fui uma menina de 16 anos que estava muito à frente do seu tempo, que conseguia se colocar a partir dos seus inc ômodos, das suas batalhas. Demorou muito tempo para eu perceber qual era o meu trabalho. Meu trabalho é com direitos humanos e isso faz o recorte com muitas outras coisas. Direitos humanos é um grande guarda-chuva e ele vem da Pretícia. Ele vem dessa menininha de 16 anos à frente do seu tempo que já queria se afirmar partindo do seu lugar racial. Hoje, eu até estou num outro movimento que é de pensar o Patrícia novamente, mas para mim é muito importante o Pretícia Jerônimo, por ter sido meu primeiro apelido.
A partir da sua atuação múltipla, como a fotografia chegou na sua vida?
A fotografia entrou na minha vida quando era muito jovem. Eu sempre soube que queria ser fotógrafa. Com 16 anos, mais ou menos, foi a primeira vez que eu fotografei. Acho que foi em julho ou agosto de 1997, logo depois da criação do grêmio estudantil da escola onde eu estudava (fui uma das fundadoras do grêmio e vice-presidente durante dois mandatos). A gente foi até a frente da Universidade Federal do Paraná, para protestar contra a privatização da
Copel, em 1997, com 16 anos já estava eu com uma câmera na mão. Eu não sei direito a história dessa câmera, de onde ela vem (acho que ela foi emprestada por uma professora de literatura que já fez a passagem, professora Silvana, ou se ela foi emprestada de algum amigo ou amiga).
Antes já, na infância, a fotografia veio primeiro nos filmes. Eu fui educada muito na Sessão da Tarde, a babá era a televisão e sempre no fim dos filmes, tinha “fotografia por alguém” e eu pensava muito nesse lugar de “quem fotografa tem que ir até o lugar”. Eu tenho um movimento de vida muito viajante dentro de mim, sempre quis viajar muito. Não tem ninguém na minha família que tenha sido artista por formação (ou que viva da arte de alguma maneira). O mais próximo que tive disso foi meu avô, que faz cestos trançados com folha de capim-limão. Essa relação com a fotografia também não era tão cotidiana, você tinha foto no aniversário, depois fotos num outro momento, mas poucos. E tinha um rolo de filme que durava meses, né? Na casa
da gente era assim. Cada vez que eu via uma foto, assistia um filme, eu pensava: “cara, essa pessoa teve que ir até lá”. E eu botei na minha cabeça: “eu quero viajar! Eu quero ter um trabalho que me possibilite viajar”. Então, eu fui cavando essa falta até chegar no contato com a primeira câmera. Aos 16 anos, eu fiz essa fotografia, depois eu comecei a fotografar umas feiras na cidade, feiras de comida. Ou seja, as minhas primeiras fotos já registravam um movimento social, já era luta social, já era a gente falando: “não vamos vender o nosso bem que é a companhia de energia elétrica”. O ano de 1997 foi o ano onde pela primeira vez a população entrou na Assembleia Legislativa do Paraná. Após esse protesto que fizemos, fomos caminhando para o prédio onde hoje é o Museu Oscar Niemeyer. Era lá que a gente ensaiava breaking, mas a gente foi para lá, porque os edifícios das repartições públicas estavam lá. Havia uma certa intimidade com aquele espaço da cidade. A história da minha primeira fotografia foi assim. Já comecei a fotografar um protesto.
Além da fotografia, você é especializada em cianotipia. Você poderia contar um pouco sobre essa técnica e como tem sido sua atuação artística a partir dela?
Cianotipia é uma técnica fotográfica que usa a luz do sol, no caso os raios UVs, para criar. Ela cria uma película azul, que pode ser impressa em cima de papel ou em cima do suporte que for, seja vidro, tecido. Uma técnica múltipla e versátil. E uma curiosidade sobre a cianotipia, é que ela foi criada por uma mulher, a Anna Atkins, em 1846. Ela foi a primeira fotógrafa do mundo. O primeiro livro de fotografia foi criado e impresso por meio dessa técnica que ela criou.
Dentro da minha atuação artística, a cianotipia me dá essa possibilidade de trabalhar com muitos recursos da natureza. Pensar em cianotipia é pensar também em sustentabilidade e ecologia (bem agora, enquanto o planeta está derretendo e sendo inundado ao mesmo tempo). Então dentro da minha perspectiva, a cianotipia é uma técnica muito linda, que também usa a água de forma inteligente. Uma das coisas que eu aprendi dentro do laboratório, é que onde há água, há cura. A cianotipia é água também, é sol. Trabalhar com isso, é lavar, expor ao sol, é uma técnica que traz tudo isso, uma técnica histórica e também de laboratório. Quando eu estou dentro do laboratório fazendo os
processos, dando o tempo do respiro, estando longe do celular, me entregando ao momento presente de criar uma obra. Acho que é assim que a cianotipia me ajuda a crescer e criar.
Como surgiu a ideia do Lab Secreto e no que ele consiste?
A ideia do Lab Secreto surgiu mais ou menos nos anos 2000, enquanto eu estava fotografando uma feira. Eu lembro muito dessa cena, tinha essa feira, acho que ela acontece até hoje na rua, ali na praça do Ouvidor Pardinho. Eu estava descendo aquela rua fotografando e eu pensei: “como que eu vou revelar esse filme?”. As primeiras fotos foram na época em que tudo era filme. Aí eu pensei que se eu tivesse um laboratório, eu ia dividir com todo mundo, porque deve ser muito chato ficar em um laboratório fechado, com a luz vermelha, sem ninguém, no silêncio. Claro que hoje, eu acho uma das coisas mais gostosas do mundo ficar sozinha no laboratório, vou ouvindo música, fazendo as minhas coisas maravilhosas. Mas naquele momento, me veio muito forte o lance de pensar que eu dividiria com todo mundo, de que eu queria poder chamar todo mundo para estar comigo em um laboratório, foi nesse momento eu acho que o Lab Secreto nasceu como uma pequena sementinha dentro de mim, como essa vontade de democratizar um espaço que é tão específico, tão complexo de montar.
Nos Estados Unidos, quando eu chamei de Secret Lab, quando morei em New York, eu senti a necessidade de começar a revelar os meus filmes novamente, de ter um laboratório para mim. Então eu fiz num banheiro. E, quando voltei para o Brasil, fiz um laboratório para mim de novo. Foi bem na época do impeachment, eu entendi que eu precisava de um espaço seguro para conseguir colocar em ordem todas as coisas da minha cabeça que tinha girado em 34 países. Senti que eu voltava para as minhas raízes em Curitiba, o Lab Secreto veio como esse espaço íntimo. Aí, estava eu no laboratório e duas amigas me pediram para eu ensiná-las a revelação de filmes. Eu comecei ali e tornou-se na verdade um “lave secreto”, porque era na lavanderia do apartamento, eu não podia contar para as pessoas que na minha lavanderia tinha um laboratório, com o medo de ser despejada pela dona do apartamento ou de alguém falar que ali não pode, que vai sujar o lençol freático.
Hoje em dia, a gente já tem os lugares específicos de reciclagem e o descarte correto desse material. Mas o Lab Secreto nasceu em 2016 e com ele, comecei a dar aula devagarinho em 2017, no Museu da Fotografia. Depois passei para aulas em projetos sociais, no Parolin também. O Lab Secreto é isso: começou com uma sementinha, com essa vontade que nasceu lá naquela feira, de dividir com todo mundo esse processo. Depois de muita gente me desencorajar, muitas pessoas me dizerem que não ia dar em nada, eu segui em frente, porque eu sou uma formiguinha.
Quais artistas afrocentrados foram cruciais para a formação do seu olhar?
Acho que um artista principal na minha obra é o Eustáquio Neves, o professor Eustáquio Neves. Para mim, ele é uma das grandes referências de laboratório, de fotografia de pessoas, de artista. É a minha maior referência. Depois tem a Rosana Paulino, o Dalton Paula. Eu acho que esses dois os principais: o Eustáquio Neves e a Rosana Paulino. A Rosana Paulino é com a obra “Parede da memória”, gosto demais. São dois que vem muito forte assim para mim, que eu não preciso nem pensar, eles já estão em mim.
Como você pensa a ancestralidade na sua atuação profissional?
A ancestralidade é uma ferramenta profissional. Eu acho que ela vem no lugar de pensar que as pessoas que me antecederam, não tiveram acesso ao que hoje eu tenho. Então é uma arma muito grande pensar a fotografia como uma ferramenta de continuidade, de criar memória daqueles que não tiveram memória com imagem. Como reconstituir a memória da minha família, dos meus ancestrais, pensando também na religião. É poder facilitar com que outras pessoas como eu, tenham suas imagens e memórias. Ou melhor ainda, é fazer com que percebam que elas também podem ser criadoras de imagem, que podem ter a direção, o olhar, e que podem dizer: “sim, eu crio imagem!”.
A fotografia vem de um histórico muito elitista, como uma ferramenta que foi utilizada como arma colonial para catalogar pessoas. Falo para as pessoas da classe trabalhadora, para as pessoas negras, para os outsiders, que todos os olhares são importantes. Nós, eu, você, todos podem fotografar e o olhar de cada um é importante, porque só você, com o seu olhar, detém essa narrativa. Ela tá na tua mão
agora, no seu celular e tira desse lugar de que tem que ter máquina super moderna, super nova. Não! Para você criar imagens, você tem que pensar a imagem e tem que acreditar que o seu olhar é digno, tem valor, é íntegro. Acredite, suas imagens são importantes no mundo. Crie imagens!
Fui uma jovem periférica, aos 16 anos já acreditava nisso e isso é muito ancestral, é muito bom, muito daquilo que me fez caminhar, que me fez chegar até a universidade (eu só entrei na universidade até hoje basicamente para dar aula de fotografia né?). Então, pensar que eu entro na universidade para dar aula de fotografia, para mim é uma coisa muito cara.
Para além da sua atuação na fotografia, você também atua como articuladora e fomentadora de ações sociais. Como você enxerga a possibilidade da diminuição da desigualdade social em Curitiba e na região metropolitana?
Muito obrigada por esses nomes todos que você traz aqui. Eu acho que eu só vou tentando agir ao meu redor e ao meu meio, compartilhando aquilo que eu aprendi e que nem sempre foi dado às pessoas de onde eu venho, da classe trabalhadora, sendo uma mulher, sendo uma pessoa negra. Eu acho que o que eu faço é um compartilhamento de saberes. Uma maneira da gente diminuir a desigualdade social é a gente compartilhando aquilo que a gente tem, seja ele conhecimento, seja recursos financeiros. Do micro para o macro, sem esquecer que também vem do macro para o micro. Cobrar das autoridades, estar sempre atento às coisas que as pessoas que nos representam estão pensando, os parlamentares e tudo mais. Eu acredito que é estar atenta ao que a gente está vivendo e compartilhando aquilo que a gente tem, acho realmente que essa é uma possibilidade de diminuir a desigualdade.
Como você enxerga a identidade de Curitiba? A partir do seu olhar, o que te emociona, te incentiva e o que te entristece na cidade?
Perceber a identidade de Curitiba, não sei se eu consigo hoje, dizer isso. Eu consigo ver uma cidade crescendo, uma cidade que ainda tem muitos costumes e maneiras de pensar. Mas é uma cidade grande. A gente tem mais de dois milhões de habitantes, uma cidade que está se transformando e que, aos poucos, vai abrindo suas porteiras. Entendendo
Pretícia Jerônimo. Imagem: Paula Rigo /
Cianotipia: Pretícia Jerônimo.
que cada cidade também é um mundo. Então, a gente tá recebendo cada vez mais pessoas de outros lugares. A gente tem convênios com países do continente africano, temos muitas pessoas da Venezuela com todo o êxodo. Curitiba está aprendendo, de uma maneira ou de outra, a compartilhar as coisas.
É claro que eu me entristece ver os casos de racismo, de preconceito e discriminação, porque ainda se pensa que tem uma muita gente da Europa que veio para cá, mas já faz tanto tempo, estamos muito misturados. Só é preciso que esse ódio colonial saia do peito dos curitibanos. O que me entristece na cidade são os casos de preconceitos, mas eu também vejo uma possibilidade de compartilhamento e de aprendizado com essas pessoas que vem de longe e que trazem cultura, que trazem outros aprendizados, que vão aprender com as coisas daqui.
Como você pensa a fotografia na atualidade?
Quais mecanismos te inspiram a trabalhar?
Eu vejo a fotografia como uma possibilidade de mudança e também de ferramenta de transformação no mundo. Por exemplo, hoje a fotografia, para mim, pode ser uma maneira de expressão de arte, de amor e de visões de mundo, de composição de história. É tão difícil dizer o que é arte assim, quando a gente coloca arte, parece tão vasto, tão aberto. Mas eu acho que a fotografia é uma maneira de compartilhar o jeito que a gente vê o mundo e juntando tanta coisa técnica, mas também dos lugares, dos objetivos, do olhar. São mecanismos de inspiração que me fazem trabalhar. Eu acho que o que me inspira a trabalhar, além desses mecanismos, são as pessoas. A fotografia é como eu me comunico com as pessoas, mas o que me faz mover esse mundo são as pessoas. A fotografia contemporânea, para mim, deve ser pensada de forma descolonizada. Ela não precisa ser elitista ou tecnicamente inacessível para ter valor. Acredito que a verdadeira potência da fotografia está em sua capacidade de contar histórias a partir de qualquer ferramenta disponível. O que me inspira é essa ideia de que cada pessoa, especialmente aquelas que são historicamente marginalizadas, podem ser criadoras de imagens. O foco não deve estar no equipamento, mas sim no olhar, na história e na narrativa que cada um traz consigo.
Para as fotógrafas das próximas gerações, que recado você daria?
Meninas, mulheres, ousem, ousem fotografar, ousem dizer o que vocês veem.
Acreditem em vocês e podem ter certeza que você está fazendo o melhor que você pode agora. Então entregue isso que você pode agora para o mundo. Não guarde, não guarde nada. Compartilhe! Um beijo.
* Pretícia Jerônimo é curitibana. Dedica-se aos estudos, desenvolvimentos e práticas de processos fotográficos-históricos. Idealizadora e realizadora do Lab Secreto, laboratório e ateliê fotográfico de uso coletivo em Curitiba, com a intenção de fomentar a fotografia lenta (slow photography). É formada em Fotografia Digital e Analógica, pelo Núcleo de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especializada em Ferrotipia e Ambrotipia pela Penumbra Foundation, em Nova Iorque. Estudou no Lab Clube no Rio de Janeiro, sob orientação do professor Alexandre Lopes, realizou residência e pesquisa nas técnicas de revelação e ampliação no Studio Fotico, em Belo Horizonte. Foi aluna de Estáquio Neves.
Vera Nunes realiza projetos especiais em prol de um corpo-território saudável na urbe.
Como a produção cultural entrou na sua trajetória, a partir da sua infância e juventude?
A minha relação com a arte é ancestral, venho de histórias de lutas constantes pela sobrevivência dos nossos e pela liberdade de escolha. Nasci em São Bernardo do Campo (SP), um território marcado pela luta dos trabalhadores e pela busca por processos sociais. Um lugar com limites muito bem demarcados sobre os descendentes italianos e onde o resto (pretos, pardos, pobres e nordestinos ) poderiam estar.
Venho de uma família de migrantes nordestinos, que apesar dos recursos financeiros escassos, sempre priorizou a educação e a cultura. Sou a caçula de seis irmãos, que sempre esteve muito atenta aos movimentos dos mais velhos. Meus irmãos estavam na ebulição dos anos de 1980, onde tinha muita arte, teatro, música e efervescência cultural. Além dos irmãos, sempre tive uma relação muito próxima com minha avó materna, que iniciou seus processos artísticos já na velhice e se tornou pintora. Ainda muito nova, iniciei no teatro e na dança e nunca tive dúvidas que minha vida profissional seria orbitada no campo artístico.
Com base na sua experiência, quais têm sido os maiores desafios para a atuação do produtor cultural na atualidade brasileira?
Temos muitos desafios, a começar pela falta da regulamentação da profissão, que embora envolva muitos recursos, - hoje, por exemplo, movimentamos um Produto Interno Bruto (PIB) - superior a siderurgia, - e não temos regras e normas aplicadas
à profissão, o que nos enfraquece enquanto setor. E isso, causa fragilidades mercadológicas, como a falta de políticas públicas específicas, que nos vulnerabiliza e ficamos todos em busca incessante por fomentos, editais e toda a sorte de ajuda, porque não temos uma base sólida que nos mantenha com a dignidade que o setor cultural merece.
Em seu trabalho, a cidade e sua arquitetura são espaços em que você atua bastante com a criação de murais em grande escala. Como o conceito/nome da sua empresa “Gentilização” se relaciona com esse aspecto?
Parto do princípio de corpo-território para explicar a relação simbiótica das pessoas com a cidade. Quando essa cidade parte de práticas crueis e
desumanas, as pessoas sentem e rebatem essa mesma dor para a cidade, que rebate aos cidadãos esse sentimento de opressão de tristeza, numa egrégora sem fim, onde todos perdem.
A ideia da Gentilização, chega como curativo para essas dores, todas causadas pelo sistema. Surgiu em 2015, quando comecei a observar as construções do centro da cidade de São Paulo, primando por um conceito americano de gentrificação, onde os espaços de moradia estavam cada vez menores e os territórios cada vez mais escassos. O direito à cidade está cada vez mais direcionado a quem tem recursos financeiros, e quem não tem, condicionado a sair e se distanciar do centro. Criei assim a ideia da “gentilização”, como um carinho social, como uma cura visual onde a maior parte da população possa se ver com mais gentileza e afeto. Por isso, também temos a escolha de uma curadoria focada em pessoas periféricas, indígenas, negras, mulheres e LGBTQIAP+.
Um fator muito presente no seu trabalho é a ancestralidade, a memória e a cultura afrocentrada e indígena. Como você enxerga a presença desses temas nas suas curadorias? Para responder essa questão, evoco Nego Bispo: “Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos”. Nego Bispo nos ensina que somos afroconfluentes, que devemos nos unir,negros, indigenas e todo o povo não branco - para fazer as comunidades se manterem apesar da sociedade. A minha curadoria tem esse tom político. Trabalho com artistas que movimentam comunidades, não trabalho com propostas individuais e que dialoguem exclusivamente com a estética. O meu foco está em confluir com a arte para curar dores profundas que a sociedade nos causou. Acredito também em um chamado ancestral, não é uma decisão apenas minha, mas de toda a linhagem que estava antes e que se diverte vendo a cidade colorida com os nossos tons de pele, com as nossas histórias encantadas. Quando uma obra é desenvolvida por um artista indígena, o povo inteiro está presente ali, também na dimensão econ ômica, porque a dinâmica indígena, mesmo numa condição urbana não aldeada, é de co-
munhão e colaboração com os seus. Quando tem uma obra de uma artista preta em plena praça da Sé, somos todas nós vibrando por essa conquista e nos vendo bonitas, grandonas na rua. Quando consigo adentrar um museu com uma artista indigena, trans, tem uma falange de vibração muito forte para além do lugar estético e da arte. Vejo que essa curadoria/ cuidadoria / curandoria não é só uma escolha, mas sim uma missão.
Relação produtor x artista: na sua experiência, como você vê essa relação e quais desafios precisam ser superados para uma melhoria eficaz no sistema da arte brasileira?
Eu acho que essa relação é confusa quando é baseada no modelo colonial. Onde existe uma ideia de superioridade que às vezes o artista tem, e às vezes os produtores/ curadores possuem. A meu ver, precisamos pensar mais como sul global: nós não somos o Ocidente, nós não estamos na
Europa, nem Estados Unidos. Estamos na América Latina, temos que criar o nosso modelo de vida e trabalho, baseado nas nossas histórias, nas nossas mazelas e nas nossas potências.
O meu processo de trabalho com os artistas é de cooperação e troca constante. Trabalho com orçamento aberto, papo reto e não sou tutora dos artistas e nem sinto que eles são o meu ganha pão. Sinto um respeito profundo por cada um dos artistas que já trabalhei e com os que estou trabalhando nesse momento, e também me sinto igualmente respeitada. Tem alguns artistas que acham super estranho o meu modo de trabalhar, mas depois acabam desabafando que se surpreenderam de como foi mais legal e leve.
Eu acho sinceramente que esse papel da produtora ficou muito matriarcal e visto de uma forma heroica. O que eu tento é humanizar a nossa relação. Eu trabalho com pessoas que contam histórias através de sua arte e eu estou ali, justamente somando para que essas histórias sejam ouvidas. Então, a gente se ajuda, se mantém e se fortalece enquanto o projeto existe. Depois, fica a amizade, o carinho e o afeto. Eu não trabalho como agente artística. Trabalho como facilitadora de processos.
Durante sua formação como produtora e curadora, quais mulheres te inspiraram e influenciaram seu trabalho?
Nossa, foram muitas!!! Se eu tiver que nomear, serei injusta, porque as minhas referências de trabalho são femininas. Vou tentar ser breve e citar algumas: quando eu comecei, queria ser como a Monique Gardenberg, a criadora Free Jazz, um dos primeiros festivais de música no Brasil. Depois, quando comecei a trabalhar com produção cultural, fiquei com um nome na cabeça: Regina Rosa. Ouvi falar dela na faculdade de eventos e que essa mulher falava baixo, tinha uma risada envolvente e era preta. Na época, isso era uma raridade. Tive a sorte de estudar na Universidade de São Paulo (USP) com Regina, que é uma grande amiga, minha comadre hoje. Foram grandes referências que tive a sorte de trabalhar junto: Maria Alice Milliet, Elaine Hazin, Danielle Almeida, Kelly Adriano, Adriana Barbosa, Priscila Gama, Bianca Santana, Patty Durães. Recentemente, desde o ano passado, venho trabalhando com a Sandra Benites e tem sido maravilhoso, assim como também a experiência de trabalhar com Thais de Menezes, Nathalia Cunha, Laura Gurgel e com as mais novas, mas que aprendo diariamente, Victoria Madero e Dara Roberto. Tanta gente incrível!
Você é curadora, empresária, produtora e mãe. Como lida com a sobrecarga que, por vezes, surge
no trabalho de produção cultural? Como o tema da saúde mental e qualidade de vida tem sido abordado por você?
Sim, essa é uma situação que venho buscando cada vez mais equilíbrio e sabedoria. Sou adepta do Candomblé, filha de Oxum e esse orixá sempre se coloca em primeiro plano. Encontrar tempo pra tudo, sem perder a qualidade de vida e sem se exigir ser super heroína é o desafio diário. Mas algumas coisas venho construindo, a primeira é não me exigir ser perfeita. Venho construindo com minha família de que sou uma mãe possível, tenho um companheiro muito presente na educação e cuidado com as filhas, minhas filhas são maravilhosas e super conscientes e companheiras e agora venho trabalhando a saúde mental para diminuir a pressão no trabalho e também me exigir menos profissionalmente. Não é fácil, mas a terapia é inegociável, um sambinha é fundamental, sair com as amigas na semana é sempre bom, viajar é preciso, estudar é primordial, descansar é estratégico!
Bell Hooks nos ensina sobre o amor. Se a gente não se amar, não tem como amar mais nada!
Após a realização de projetos tão especiais, há algum que você ainda gostaria de fazer, mas que não foi possível até agora?
Ah!!! Tenho um caderninho de projetos a serem realizados! Segura que em breve vai chegar!
Para o próximo ano, estou organizando uma exposição importante que é resultado de longos anos de pesquisa, mas ainda é segredo. Também quero desenvolver um projeto grande de pintura e sustentabilidade no Espírito Santo. Outro sonho importante é iniciar a minha internacionalização e tenho trabalhado pra isso. E também, gostaria muito de pintar um mural em Manaus, outro em Curitiba, outro em Floripa, outro no Rio Grande do Sul, outro em Pernambuco, mais um em Belém. Plano aqui é o que não falta!
Como você vê a educação e o treinamento de novos produtores culturais? Qual seria o formato ideal para uma boa formação na área?
Eu sou uma produtora cultural formada em produção cultural no primeiro curso superior desta área em São Paulo. Sou militante da educação e acho que o que falta para o setor é justamente metodologia, conhecimento teórico e prático, que apesar de virmos da “sevirologia” e nosso setor ser marcado por pessoas que na falta de outras oportunidades, acabam “virando” produtores, precisamos profissionalizar de fato nossa categoria.
Temos exemplos suficientes de eventos mal sucedidos,
desde problemas graves com segurança do público, a má gestão de recursos e dinheiro público por pura falta de conhecimento. Então, eu acredito que devemos sim formalizar a profissão de produtor cultural, ter mais universidades dedicadas a esse curso e os profissionais terem melhores remunerações para exercer com dignidade esse ofício tão importante.
Você já teve experiência na esfera pública. Quais são os diferentes desafios entre atuar em um órgão público e na iniciativa privada?
Na minha experiência na área cultural, tenho histórias importantes em museus privados e instituições do setor público na esfera municipal e estadual, como Theatro Municipal de São Paulo, que foi uma experiência muito importante para a minha vida, a Estação Pinacoteca também, e na esfera privada, o Instituto Tomie Ohtake, que foi a última instituição onde trabalhei antes de assumir a Gentilização como principal atividade profissional. Todas as experiências são válidas, problemas e soluções existem em todos os lugares e o que eu, cada dia mais acredito, é que esses espaços são feitos por pessoas e apesar de tudo, tem muita gente boa tentando tirar leite de pedra, fazendo muito mais do que é pago para fazer. E, também tem gente que não tem comprometimento com nada. Então no fim do dia, novamente é tudo sobre pessoas.
Respirar, de Gugie Cavalcanti. Imagem: Gugie Cavalcante.
* Vera Nunes é uma especialista em gestão de projetos para comunicação e cultura formada pela USP, com especialização em ESG é uma destacada pesquisadora na área de gênero, raça e interseccionalidades. Com uma trajetória profissional de 20 anos dedicada à cultura, ela se destaca como uma das principais mulheres na liderança de projetos artísticos de grande escala, incluindo muralismo e arte pública na América Latina. Vera é CEO da Gentilização e diretora na Daterra Produções Culturais, onde demonstra sua paixão e compromisso com a promoção da diversidade e inclusão nas artes. Além disso, ela tem uma vasta experiência como curadora, tendo atuado como curadora do Festar, festival de realidade aumentada, foi diretora do Obra o primeiro festival internacional de arte em grande escala, está na co-curadoria da exposição “Nhe ē Sé” ao lado de Sandra Benites. Curadora da na Expo Diversos em cartaz em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e São José dos Campos. Também é curadora da exposição Sesá Ixé primeira individual da artista Auá Mendes em cartaz na Ação educativa. Em seu currículo de trabalho em grandes proporções vera já aponta mais de 160 murais e empenas pelo Brasil e prepara para 2025 uma grande exposição sobre arte insurgente.