Seguimos nos falando: escrever como quem se encontra - Mulheres que Escrevem

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SEGUIMOS NOS FALANDO Escrever como quem se encontra

A NTO LO G I A 20 22



ORGANIZAÇÃO Estela Rosa, Natasha Silva, Seane Melo e Taís Bravo

PROJETO GRÁFICO Tati Vidal AUTORAS Natasha Silva Ana Carolina Assis Estela Rosa Janaína Abílio Bianca Gonçalves Natasha Felix Taís Bravo Seane Melo Rio de Janeiro | 2022


apre senta ção

Criada em 2015, Mulheres que Escrevem é uma iniciativa que tem como objetivo apoiar o trabalho de escritoras, principalmente brasileiras e contemporâneas, e contribuir para a democratização do acesso à escrita e à leitura. O que nos motiva é promover encontros e conversas entre mulheres, assim, nossas principais ações são a produção, curadoria e divulgação de conteúdos literários em nossas plataformas online, como podcast, publicação no Medium e redes sociais, além da realização de oficinas, rodas de conversa e lançamentos. Atualmente, a iniciativa é conduzida por uma equipe de cinco mulheres: Estela Rosa, Natasha Silva, Seane Melo, Taís Bravo e Tati Vidal. Cada uma de nós se dedica diariamente


a esse trabalho afetivo nas brechas de outras ocupações necessárias para garantir e gerir nossas condições de sobrevivência. De modo que a Mulheres que Escrevem só é possível graças a um exercício de constante insistência e também pelo apoio que recebemos de nossa rede de colaboradoras, como as escritoras que participam dessa antologia. São as trocas que nos dão fôlego para continuar escrevendo, criando e abrindo espaços de escuta entre mulheres. Em 2022, nossa iniciativa comemora 7 anos de existência e 5 anos do MQE Podcast no ar – com mais de 60 episódios disponíveis! Infelizmente, a pandemia de Covid-19 reduziu nossas possibilidades de celebração nos últimos dois anos, mas insistimos em inventar formas de estarmos próximas, porque tempos difíceis como os nossos pedem ainda mais conexão e contato. Desde 2020, realizamos oficinas criativas online e já contamos com mais de 150 participantes de diferentes lugares do mundo. Em 2022, desejamos continuar traçando esse caminho e nos fortalecendo enquanto uma plataforma de produção e troca coletiva de conhecimento, contribuindo para a democratização do acesso à leitura e à escrita através de diferentes ações. Assim surgiu a ideia desta antologia como um espaço para puxar uma conversa entre pessoas que insistem em escrever. Esperamos que os textos reunidos aqui cheguem em cada uma/ume como um convite para um encontro com a leitura/escrita. Com muito afeto e desejo de contato, seguimos nos falando! Equipe MQE



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Natasha R. Silva EU NÃO ESCREVO HÁ SEIS MESES

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Ana Carolina Assis [ULTIMAMENTE EU]

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Estela Rosa POESIA É FACA, PÃO, MANTEIGA E DENTES

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Janaína Abílio [TEM UNS POETAS QUE SÃO GRANDES]

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Bianca Gonçalves PAPÉIS DE CARTA FEMINISTAS (OU A NOVA POÉTICA FEMININA PELO INSTAGRAM)

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Natasha Felix É SOBRE FAZER O POEMA REBOLAR

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Taís Bravo ESBOÇO DE UMA IDEIA OU DE UM DESEJO

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Seane Melo UM FUNDO APRESSADO E SUJO



Eu não escrevo há seis meses Natasha R. Silva

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Há muitos anos, lendo mais um dos muitos livros indicados pela Taís, tive um daqueles momentos dignos de filme adolescente. Veja bem, eu era adolescente, já queria ser escritora há anos e, principalmente, eu queria escutar e ser escutada.

Natasha R. Siva

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O livro era o Um livro por dia — Minha temporada parisiense na Shakespeare and Company, do Jeremy Mercer. Enquanto lia aquelas páginas e sonhava com um dia poder ter uma experiência parecida com a de Mercer, uma frase em especial me chamou a atenção, me deixando num estado de transe e reflexão desses que te obrigam a parar a leitura e concentrar na própria vida. Parei e escrevi aquela frase no caderninho da época, ocupando a página inteira para dar sentido à importância do que aquilo significava para mim. O caderno já se perdeu pelo mundo, mas a frase ficou gravada na minha cabeça e costuma surgir sempre que estou buscando a maneira certa de colocar em palavras o que quero dizer. O texto dizia (com o perdão da licença poética para algum possível erro, já se passou muito tempo): “É preciso usar as palavras como balas de canhão se você quiser atingir as pessoas” Essa frase me guiou por muito tempo. Sempre que escrevia, pensava em como queria atingir o íntimo dos outros com o que eu dizia, provocar uma identificação,


estimular uma revelação. Também queria atingir a mim mesma, alcançar um outro estado de espírito, experimentar um lado de mim que se mantém oculto na rotina e que só vem à superfície nesses momentos em que consigo escrever. Quando escrevo, sou outra pessoa, alguém mais completo — ou talvez mais consciente das suas lacunas. Acontece que eu não escrevo há seis meses. Ou talvez mais, não sei dizer. Este ano escrevi algumas notícias, outras notas e observações. Mas há uns seis meses se definiu sem eu perceber tanto a minha mudez. Sempre tive uma dificuldade, mas nessa época se tornou mais árdua essa luta para que as palavras engasgadas saiam de dentro de mim de alguma maneira. Minhas palavras não me atingiam, nenhuma palavra me atingia. Há quase seis meses meu padrinho morreu. Eu sabia que isso ia acontecer algum dia, claro. Mas foi a concretização de um medo que trouxe comigo quando saí do Rio em 2014. O terror de não voltar a ver o Dindo com vida. Eu lembro que estava no meu quarto, em casa, no Rio. O Dindo estava internado em Portugal há alguns dias. Ele tinha decidido viajar, apesar de não estar 100% bem de saúde. O telefone tocou, minha mãe atendeu e, ouvindo só um lado da conversa, eu já sabia. Minha mãe veio até o meu quarto me dar a notícia e, antes que ela dissesse qualquer coisa, eu disse. “O Dindo

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morreu”. Eu sempre detestei esse verbo. Mas naquele dia, essas palavras, junto daquela realidade irreversível, ficaram ali, congeladas no ar. Desde então, não escrevi. Também tentei não me mover muito, não fazer tanto barulho, não ir para trás nem para frente. Fiquei parada no tempo, me deixando levar. Deixei de ser um pouco. O Dindo fazia aniversário no mesmo dia que eu. 8 de março. Eu nunca gostei muito de fazer aniversário, mas eu gostava de dividir isso com ele. E há seis meses aconteceu essa quebra inexplicável do tempo em que ele foi e eu fiquei, fazendo aniversário sozinha. Natasha R. Siva

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Eu perdi um pouco o rumo a partir daí. Não sabia para onde seguir, nem o que estava acontecendo comigo. Via o tempo passar, imóvel, estupefata, sem reação diante do descontrole que é a vida — e a morte. Só sabia que, se algum momento quisesse despertar, seria para escrever sobre o Dindo, para que pudesse sentir a saudade e a dor em cada palavra que me atingisse outra vez como uma bala de canhão. Ainda me sinto sem rumo. Mas pelo menos hoje, depois de quase seis meses, consigo escrever. E, sem dúvidas, consigo sentir tudo outra vez.


[ulti ma mente eu] 13

Ana Carolina Assis


Ana Carolina Assis

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ultimamente eu só tenho me interessado por poemas que falam de um corpo eu penso não tenho cara de chegar e falar um poema que não tenha um corpo era melhor eu trocar de cara calar e ler a mulher que corta da natasha a mulher pelada da carla eu só consigo pensar seria preciso um corpo pra estar de pé olhar na sua cara entrar no metrô entrar num ônibus sair desses lugares pegar com as mãos a boca um corpo e dizer qualquer coisa que vibre em outro corpo penso na bruna a 70 km do mar na estela no alto da serra e penso não tenho corpo suficiente pra olhar na sua cara mas olha não é que eu tenha deixado de lavar as calcinhas com sabão de coco e água fria de tanque não é que meus buracos


estejam lacrados é que eu tô seca e fico repetindo essa merda cara, eu não tenho corpo pra isso pra olhar na sua cara e dizer qualquer coisa como

você está me comendo tanto pelos olhos que eu já não tenho de onde tirar força pra te alimentar é que ultimamente molho e seco calcinhas no seu tanque na sua cama e na cara de ninguém ainda que imagine morder um corpo com esse ventre sem dentes com esses dedos comidos até o sangue te vejo acender os copos com água de filtro seus dedos secos e largos craquelando longe do meu centro eu penso é coletivo isso que vibra e grita na varanda tem corpo e cara esse líquido que vem e é quente

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Poesia é faca, pão, manteiga e dentes Estela Rosa


Quando entrei na faculdade de Letras, não me passava pela cabeça nada disso do que sou hoje. Foi preciso caminhar muito para chegar exatamente ao ponto em que me encontro agora, me autorizando (timidamente) a me dizer poeta. Acordar e dormir todos os dias em uma cidade do interior é algo que altera muito nossa perspectiva. Mas escrever também alterou essa minha realidade de acordar e dormir em uma cidade do interior. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, para viver no Rio de Janeiro, para respirar o Rio de Janeiro todos os dias, ainda que eu sonhasse em voltar, precisei ajustar meus pontos de vista. As possibilidades se alargavam e eu me enchia de adjetivos para narrar aquilo que passava a viver. Construir imagens poéticas, ao que parece, sempre foi minha atividade favorita. Minha família me chama carinhosamente de pipa avoada. Eu colecionava lixinhos da rua. Ressignificando toda uma vida ao meu redor. Ir embora do meu pequeno universo e alargar a vista me trouxe uma necessidade imensa de narrar em detalhes meu novo horizonte. Foi nesse estado que encontrei um grande amigo, meu primeiro leitor de fato, com quem travei duras conversas sobre a escrita. Com quem troco muito até hoje. Acho que foi lá naquela aula de Teoria Literária, sendo eu uma das primeiras alunas dele, que o Caio Meira acabou me mostrando que era possível agarrar as palavras e fazer delas minha vida.

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Escrevi muita coisa lotada de imagem ao longo desses anos. Muita coisa cheia de adjetivo. Muita coisa para fazer os outros enxergarem o que eu via. Escrevi demais para que o mundo me entendesse. Meus textos e poemas se convertiam em lamentos incompreendidos, recheados de metáforas para, de alguma forma, fazer com que quem me lesse chegasse até mim. O que eu não percebia, de início, era o quanto isso era uma forma de egoísmo, uma vontade imensa de ser aceita e não de apenas comunicar. O Caio foi uma das primeiras pessoas a me apontar isso ao dizer que as imagens e metáforas poluíam a minha visão de mundo. “Olhem para mim, meu olhar é o mais único da cidade”. Spoiler: não, não era. Estela Rosa

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Aos poucos aprendi que todos os olhares são únicos e que isso pode nos colocar em uma espiral de desespero se lutarmos contra. Cada pessoa olha de uma maneira para a realidade e, para mim, escrever poesia se trata de entregar talheres para que alguém devore sua própria realidade e não a de quem escreveu. Hoje, quando leio poemas ou textos com descrições extensas, metáforas longas, adjetivos demais, me lembro de mim mesma desesperada por ser compreendida. Meu coração aperta. Mas em seguida me lembro de que foi só quando eu mesma aceitei compreender meu próprio olhar que a satisfação de ser lida veio. Poemas não são úteis na escala de utilidade do mundo. Eles não servem para passar manteiga no pão, eles não


servem para estacionar o carro e não servem para fazer cópias de chaves. Na escala da utilidade do poema, ele serve para mostrar de outra forma a manteiga, o pão, a faca e a mordida. O carro. A vaga. As chaves e a porta. Escrever poesia se tornou, pra mim, uma maneira de linguagem, um idioma de comunicação com o outro. O poema cabendo certinho, como uma luva, na vida de outra pessoa. Deixando de ser o meu olhar, passando a ser o olhar do outro. É preciso generosidade para escrever poesia. A imagem a gente deixa para quem lê, inclusive para nós mesmos, que escrevemos. A imagem a gente deixa para o leitor. Fabricar imagens é do campo da leitura. Entregar ferramentas é do campo da escrita. Percebi que quanto mais explicava o que sentia, o que via, o que era meu material de poesia, mais eu menosprezava quem um dia poderia me ler. Precisei passar por todo esse processo, esbarrar em alguém como o Caio, que me dissesse “ei, o que me interessa são as palavras e não suas visões” para que eu, enfim, aceitasse que minha potência era a palavra. Hoje já não espero que alguém leia meus poemas e sinta-se como eu. Isso é de uma impossibilidade sem fim. Hoje espero que alguém leia meus poemas e me mostre uma realidade que até então eu não conhecia. Espero que peguem as ferramentas que criei e distorçam a realidade de uma maneira que eu mesma não seria

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capaz de ver. Também espero ter minha realidade alterada por outros poemas, fabricar eu mesma minhas próprias imagens.

Estela Rosa

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Caio me disse que Hemingway reescrevia seus textos tirando as partes explícitas. Pensando nisso agora, chego à conclusão de que o que me interessa ao escrever é colocar quem lê em um local escuro, deixar quem lê acostumar a própria visão, se ambientar e se espantar. Criar em sua própria escuridão as imagens que lhe façam se sentir mais confortável depois do susto. O susto, o conforto, são coisas particulares. E vejo como é importante deixar espaço para isso. Enquanto leitora de poesia, percebo que os poemas que me invadem me deram voz para descobrir coisas que eu sentia e sequer sabia. Isso não significa me entregar facilmente imagens, isso significa atravessar meu modo de pensar. Deixar um caos em um lugar que não existia. A utilidade da poesia é ser copo, faca, talher e não banquete. Deixo as metáforas para explicar o que não apavora. Para todo o resto, prefiro o susto. Ninguém disse que seria fácil.


[tem uns poetas que são grandes] 21

Janaína Abílio


Janaína Abílio

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tem uns poetas que são grandes grandes poetas enormes enormíssimos, li outro dia eu quero ser pequena minúscula nanopoeta entrar e sair por todos os buracos você quer prêmio? você quer alta gramatura, resenha, textura? você quer ser a nova diva, delirante musa das letras malditas? estou farta de antideuses desejo, lasciva o silêncio


Papéis de carta feministas

(ou a nova poética feminina pelo Instagram)

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Bianca Gonçalves


Bianca Gonçalves

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Quando entrei na adolescência, herdei da minha tia uma pasta cheia de papéis de carta. Coisa estranha para minha época. Folheando a pasta, com o plástico amarelado pelos anos, soprando um leve cheiro de mofo a cada página virada, notava ali alguns motivos recorrentes: bichinhos fofos em posições e comportamentos humanos, singelos cachorrinhos (ou ursinhos, elefantinhos, gatinhos) andando de mãos dadas, trocando carinhos, quase sempre acompanhados pelo pôr-do-sol ou pela luz do luar. Alguns deles estampavam frases de tom aconselhador, principalmente sobre questões amorosas. Não me recordo com todas as palavras os dizeres ornados na coleção da minha tia, mas o conteúdo hesitava entre o encorajamento aos dilemas inespecíficos da vida e a entrega dedicada e delicada à paixão (de um homem, claro). Minha tia, inclusive, mantinha o hábito de reescrever tais frases nas contracapas de seus livros e cadernos. Como também fui herdeira de parte de sua biblioteca, lembrome vagamente de alguns versinhos copiados. Um deles, inclusive, me surpreendeu: uma estrofe de um famoso poema de Cecília Meireles que eu, por extensão, – e fazendo jus ao papel de herdeira, – acabei também copiando, não em livros, mas na minha mente: “eu canto porque o instante existe/ e minha vida está completa/ não sou alegre e nem triste/ sou poeta”. O que o exercício de copista da minha tia diz (assim como a prática “escolar” de trocas de papéis de carta das


meninas dos anos 1980), é que, seja ela considerada boa ou ruim do ponto de vista pedagógico/disciplinar, corriase ali, nos intervalos de aula, debaixo das carteiras, uma poética que participava do cotidiano daquelas meninas, que as inscreviam numa ética comportamental e também estética, mesmo que tal (po)ética (decoradas em tons rosa-roxo e paisagens ensolaradas) confirmava aquilo que praticamente todas as meninas da época eram educadas a fazer: gostar de menininhos, relacionar-se com eles, aceitar o que eles diziam e faziam, casar e ter filhos. Não se trata de desprezar ou elogiar a tal (po)ética: afinal, é preciso historicizar o contexto. E mesmo que haja atualmente resquícios daquele tempo, muita coisa foi ressignificada. As meninas não colecionam mais papéis de carta, fato. Mas há algo daquela prática, de troca e deslumbramento, que se mantém num gesto muito presente no nosso tempo. A imagem do papel de carta me veio justamente no momento em que me deparei, em sala de aula de um curso de extensão, com meninas de 14-17 anos interessadas em literatura não porque viram Machado de Assis na escola ou porque leram um livro sensacional de José de Alencar na biblioteca; mas porque liam com muita frequência poetas de Instagram (ou “instapoets”), que, segundo elas, “diziam algo que fazia sentido a elas”. Elas compartilhavam o gosto por uma poesia que geralmente não é considerada como tal pelos círculos beletrísticos, seja pelo caráter personalista deles, que

25 Papéis de carta feminista


não atingiria a tal “universalidade” requerida pela tradição lírica moderna (que, sabemos, é um critério bem duvidoso), seja pelo preconceito ao suporte virtual. As ansiosas dinâmicas da contemporaneidade recolocaram e restabeleceram a poesia nos espaços do cotidiano, reprojetando não apenas as poéticas, mas também os lugares que estas ocupam. De certa forma, elas são herdeiras do poema-minuto, do concretismo, da poesia marginal, da música popular e demais manifestações que tentaram romper com a Tradição e deram conta de forjar uma nova tradição – para falar, aqui, com Octavio Paz.

Bianca Gonçalves

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A questão feminina surge à baila na justaposição do papel de carta oitentista com os posts de Rupi Kaur, Nayyirah Waaheed e Ryane Leão. Há algo que liga estas duas pontas e, ainda, liga as três poetas: o tom aconselhador e autoafirmativo de um lado, e a presença feminista do outro. Como se a última relesse, em termos de resistência, a ética que movia uma existência abarrotada de símbolos mimados, dando lugar a outra, de crítica e de consciência política. As minhas alunas compartilhavam umas com as outras pelo Facebook e Instagram os poemas daquelas três (sobretudo a última, brasileira, negra, poeta e professora que recentemente publicou livro) com o mesmo gosto que a minha tia trocava papéis de carta, com a diferença que podiam, agora, vislumbrar outras possibilidades, marcadas por raça, gênero e sexualidade, que outrora não se vendia nas bancas de jornais e nem nas papelarias. (Publicado originalmente no blog Bianca não é branca, a 28 de outubro de 2017)


É sobre fazer o poema rebolar 27

Natasha Felix


- notas sobre performance

Natasha Felix

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1. Não sou cantora nem atriz. Só estou conhecendo outros jeitos de falar. 2. Um poeta carioca uma vez me disse que marco as quebras dos poemas com o quadril. 3. Como posso falar dançando 4. Se eu esticar os braços assim 5. A ideia é fazer o poema rebolar. 6. Assisto as performances da Erykah Badu e da Rihanna todos os dias. 7. Roubo muito. 8. Erro mais ainda. 9. Diante do microfone, assumo uma pose constrangida que não me larga. 10. Já que não me larga, vou escolher o melhor jeito de usá-la. 11. Quero ser leve. E despretensiosa. 12. Quero ser furiosa. Dentes à mostra e tudo. 13. Quero que seja divertido. 14. O oposto do que esperam que saia da boca de alguém como eu. 15. No tempo livre, brinco com beats. 16. Estou indo pra um lugar-comum. A leitura está se repetindo, mesmo ritmo, mesma cara. 17. Daí testo outra vez. 18. Sinto que a resposta está em algum lugar entre os rappers e os poetas.


19. A resposta da pergunta que nem terminei de formular. 20. Confio no meu quadril. 21. Quando falo um poema, estou buscando algo que não conheço ainda. 22. Preciso soltar mais o corpo. Saber mais o corpo em cena. Me mover comigo mesma. 23. Não é sobre encaixar um poema em uma música. 24. É sobre fazer com que música e palavra sejam o tipo de inimigo que se quer manter por perto. 25. (Talvez) 26. Gosto de plugar e desplugar versos. 27. Gosto mais ainda de ser corajosa. 28. Chegar ao outro lado. 29. Conduzir. Ser conduzida. 30. Movimentar as peças. 31. Ainda assim, me atrapalho com computadores e pendrives. 32. Não está bom. 33. Ainda não cheguei lá. 34. Desse jeito, acho que convence. 35. Preciso encontrar um jeito melhor de articular as performances como um todo. 36. O intervalo entre um poema e outro precisa se resolver melhor. 37. Ainda não sei como fazer sem me atrapalhar um pouco. 38. O erro faz parte do show. 39. Errar melhor. 40. Quero que as pessoas dancem com o poema.

29 É sobre fazer o poema rebolar


41. Se não tem tesão, não tem jogo. 42. Decorar textos é um alívio mesmo depois de ler as notícias do dia. 43. Penso em Stela do Patrocínio e em Nikki Giovanni. 44. Quero construir uma casa do outro lado do mundo. 45. Um pouco mais embaixo da terra. 46. Levar pessoas comigo. Só as que se interessarem. 47. Seja o que for, ainda não está bom. Precisa ser mais embaixo, cavar fundo com os dedos.

Natasha Felix

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esboço de uma ideia ou de um desejo 31

Taís Bravo


entre Gloria Anzaldúa e Simone Brantes no dia 13 de outubro perdi um 485 e por isso consegui ir sentada em outro 485 que passou em seguida por esse golpe de sorte pude enquanto estava sentada dentro do 485 digitar em meu celular o esboço de uma ideia ou de um desejo [ou algo que seja o caminho entre ideia e desejo como acho que podem ser os poemas] Taís Bravo

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nesse dia queria muito ter tempo silêncio calma mas também alguma energia um corpo estável sem sentir fome ou calor em condições favoráveis à escrita queria um corpo que pode escrever sem ser interrompido queria e pensava enquanto um poema continuava


entre o tempo perdido das esperas em pé dos caminhos em pé das distâncias contínuas de uma rotina interrompida queria sentar para poder escrever mas desde esse dia tenho pensado em abdicar da espera ou da ideia de um tempo que seja possível se sentar para apenas escrever um poema tenho sentido que isso já não é mais possível e ainda assim continuamos de pé desde esse dia penso e sinto que agora é preciso contar com o risco de ser interrompida e continuar enquanto se é interrompida e escrever enquanto se é interrompida e que escrever enquanto sou interrompida talvez seja a condição d e u m a o u t r a f o r m a d e e s c r i t a

33 Esboço de uma ideia ou de um desejo


Um fundo apressado e sujo

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Seane Melo


Esse ano, decidi voltar a bordar. E, enquanto bordava, quis escrever. Primeiro uma carta, depois um ensaio, e até minha tese. Mas sempre que sentia esse desejo e levantava o olhar do tecido, um pensamento me parava. Para escrever, era preciso ainda finalizar o bordado. Essa regra, que eu mesma criei, envolvia um prazer - que aprendi a sentir com o trabalho inútil e calado - e um medo - que tinha de ser obrigada a voltar para o mundo da produtividade. Na carta que pensei em escrever entre as inúmeras idas e vindas da agulha pelos buraquinhos do tecido com padrão de ponto de cruz, queria contar para Estela Rosa que os bordados são pura lógica. Nunca imaginei Estela como uma mulher que bordasse, mas, por algum motivo, pensei que ela ficaria feliz, como eu, com a curiosidade. Durante muitos anos, tive a impressão de que o bordado e a mão eram inseparáveis. E não apenas isso. Imaginava que o bordado era um resultado direto de uma mão. Meus bordados me diziam que havia algo na minha mão - no movimento, na força e no suor que enferrujava as agulhas - que não era completamente apropriado para a tarefa. Desde criança, aprendi que não tinha uma mão boa. Minha mão parece sempre ter estado entre mim e o doméstico. Como algo que sinalizava um desencaixe irreversível. Antes de me tornar mulher, já me descobri em falta. A mão, que não era boa para o bordado ou para

35 Um fundo apressado e sujo


mexer doces sem deixar empelotar, teve que procurar outra função, ainda que imaginária. Pois eu escrevia na cabeça uma fuga para o lugar que muito nova me descobri falhando em ocupar.

Seane Melo

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De fato, o bordado é inseparável de sua dimensão física. Da necessidade da luz para os olhos não cansarem e do encosto certo para as costas, da atenção à posição do pescoço e do cuidado com o movimento do pulso já tão desgastado pelo teclado do computador. Mas tive vontade de contar para Estela que, nessa tentativa de reaver o ato de bordar, descobri que o problema era menos a minha mão que a minha dificuldade para entender a lógica dos desenhos e os caminhos pelos quais ele tinha que seguir para que o avesso ficasse limpo. O bonito do bordado, para mim, não é a analogia direta com a escrita - Kamenszain diz que “já é parte do sentido metafórico comparar o texto a um tecido” -, mas o fato de que dele se tira uma infinidade de fios. Quanto mais se olha, mais se pode encontrar. E isso também poderia valer para o texto, mas implicaria entender o bordado apenas por sua parte visível. Uma imagem que pode ser relida sempre de uma nova forma. Para a bordadeira, no entanto, o bordado é sobretudo o avesso. E ele é o próprio corpo e ato. Mesmo aprendendo que é preciso calcular e planejar o tamanho da linha e os ziguezagues para que o caminho


sempre pareça o mais reto possível, o meu fundo - foi assim que aprendi a falar desde criança - revela pressa, indecisão e aceitação. A aceitação do meu fracasso enquanto mulher perfeita, que também é uma espécie de desafio à mão boa, à minha própria mãe. Neste momento em que, sem razão aparente, busco recuperar o movimento doméstico como um conforto ao que está duro, difícil e paralisado na escrita, recorro justamente a um tecer de laços com uma herança feminina familiar. Mas, principalmente, para confrontar nossos avessos. Neste ato, percebo, aí sim, uma nova analogia entre o bordado e a escrita. Talvez ambos representem, afinal, uma conversa com a mãe, a partir da qual, como diz Kamenszain, “se sedimenta e cresce, como uma teia, o imenso texto escrito por mulheres”.

37 Um fundo apressado e sujo



sobre as autoras Ana Carolina Assis é poeta e educadora. É de São Gonçalo, agora mora no Rio. Construiu a muitas mãos a Oficina Experimental de Poesia (2011 – 2018) e publicou com eles o Almanaque Rebolado (2017, Azougue, Cozinha Experimental e Garupa). Lançou os livros a primavera das pragas (7letras, 2019) e carinhoso (7letras, 2021). Integra a antologia As 29 poetas hoje (Companhia das Letras, 2021, org. Heloisa Buarque de Hollanda). Bianca Gonçalves é poeta, prosadora, pesquisadora, professora, oficineira e performer. É doutoranda em Teoria e História Literária na Unicamp, mestra e graduada em Letras na USP. Tem dois livros de poesia: como se pesassem mil atlânticos (2019) e a sexualidade de meninas ex-crentes (2021). Já publicou em diversas antologias, como o segundo número da Antologia Poética da Revista Cult (2019), Poetas Negras Brasileiras (org. Jarid Arraes) e Poesia Hoje: Negra (org. Ricardo Aleixo), ambas de 2021. Mantém, desde 2016, o blog biancanaoebranca.wordpress.com

39 Ana Carolina e Bianca


Estela Rosa é poeta, caipira e tradutora, nascida em Miguel Pereira, região serrana do Rio de Janeiro. Curadora da iniciativa Mulheres que escrevem, é mestranda em Ciência da Literatura e integra a coordenação do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACCUFRJ. Publicou “Um rojão atado à memória” (finalista do Prêmio Rio de Literatura 2018) e “Miguel”, ambos pela Editora 7 Letras, e “Cine Studio 33” (2021) pela Edições Macondo. Atualmente vive na cidade do Rio de Janeiro. Janaina Abílio é poeta, escritora e terapeuta holística, nascida em 88 no Rio de Janeiro. Lançou seu primeiro livro de poemas ‘e fica um gosto de cica na boca’ pela Garupa Edições em 2019. Sobre as autoras

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Natasha Felix (Santos, 1996) é poeta, escritora e educadora. Em 2018, lançou pela Edições Macondo seu primeiro livro “Use o Alicate Agora”. Dentre as publicações, destaca-se o livro “9 poemas” (Las Hortensias, Argentina) e a coletânea de poetas negras contemporâneas, “Nossos Poemas Conjuram e Gritam” (Ed. Quelônio). A artista desenvolve trabalhos de performance e já participou de projetos como o Instrumental Poesia (Sesc Paulista), Black Poetry (Sesc Ipiranga) e Trovadores do Miocárdio (Balsa). Pesquisa as relações entre a poesia falada e as experimentações corporais e sonoras.


Natasha R. Silva é jornalista e programadora. Formada em Jornalismo pela UFRJ e mestre pela Escuela de Periodismo UAM-EL PAÍS, atualmente trabalha como engenheira de software em Lisboa. É uma das criadoras e editoras de conteúdo da Mulheres que Escrevem. Taís Bravo é escritora e uma das criadoras da iniciativa Mulheres que Escrevem. Formada em Filosofia pela UFF, atualmente pesquisa poesia brasileira contemporânea escrita por mulheres no mestrado em Ciência da Literatura na UFRJ. É autora de “Sobre as linhas extintas” (Editora Urutau, 2018), “Houve um ano chamado 2018” (Macondo Edições, 2019) e “Ato para desembrulhar o vício” (7 Letras, 2019). Seane Melo é jornalista, escritora, doutoranda em comunicação pela Universidade Federal Fluminense e editora do MQE Podcast da iniciativa Mulheres que Escrevem. Possui dois eBooks de contos eróticos publicados de forma independente, “Ao vivo em Goiânia: quatro contos de patroa” (2017) e “O primo de Aziz” (2019), e lançou seu primeiro romance, “Digo te amo pra todos que me fodem bem”, em 2019, pela Quintal Edições.

41 Estela, Janaina, Natashas, Taís e Seane


Esta publicação começou a ser idealizada em 2020, atravessada

As famílias tipográficas utilizadas são:

pela pandemia de COVID-19. Todos

Campora (texto) e

os textos presentes nesta antologia

Abril Fatface (títulos)

foram cedidos pelas autoras e por isso agradecemos imensamente.

Março de 2022



Quer apoiar nossa iniciativa? Aceitamos colaborações via PIX: atendimento.mqe@gmail.com Tem ideias, sugestões ou quer conversar com a gente? Escreva para atendimento.mqe@gmail.com


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