Catálogo da Exposição "Pedras com História – Monumentos da Vila de Atouguia da Baleia"

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ENQUADRAMENTO Esta exposição não pretende apresentar, em si mesma, as perspectivas históricas dos monumentos fotografados. Antes enuncia olhares e emoções, sugerindo desafios de contemplação. Importa saber que, num tempo longínquo, ainda nem Cristo havia nascido, já este solo, sob o sol, começava a fazer história, com povos de várias raças e origens. Mais tarde, entre o rio Douro e o rio Tejo, houve um porto central daquela época na chamada Lusitânia. Era aqui. A terra ainda não se havia imposto sobre o oceano e o cheiro da maresia era comum aos habitantes e visitantes deste lugar, hoje Atouguia da Baleia. Animais selvagens, dos quais se destacava o touro, e densas florestas, aliavam-se ao mar, que vivia os seus dias com grande variedade de peixe. Estuários, lagoas e campos férteis, pareciam, assim, parabenizar toda a natureza e as gentes que povoavam, que atracavam, que visitavam e ficavam. Reinados, lutas políticas, vivências religiosas de vulto e o quotidiano de homens e mulheres, gravaram nestas paragens momentos solenes, de que foram e são palco, monumentos de valor inestimável.

Atouguia da Baleia transporta na sua história, acontecimentos, variações geográficas, património e enigmas que a tornam um caso peculiar na consolidação da nossa identidade ao longo dos séculos. A riqueza do seu património material é testemunho da particular atenção que vários reinados lhe concederam. Sinal de uma grandeza medieval que ainda teima em respirar, pelos interstícios das pedras que sustentam e embelezam as suas quatro igrejas, as ruínas do seu castelo, a sua fonte gótica, o touril, o pelourinho e tantas outras pedras com história. Nesta exposição, convidamos cada um de vós a olhar cada pedra, não só como um pedaço de história mas, eventualmente, seguindo o caminho cruzado do simbolismo e da memória que, no património aqui apresentado, tenta ir ao encontro não só da história ou da religião, mas também encontrar as emoções do profano, através do olhar humano de cada um.



CASTELO MEDIEVAL Ao longe, o céu. Aqui os muros. Suspeitas de existência de um convento, parecem querer perpetuar a memória dos seus frades que faleceram com peste. Apenas pedras, mais tarde promovidas a Castelo. Depois, usando trabalho humano edificado, para outros tempos, outras vontades, D. Dinis manda restaurá-lo. Na idade média, pesca e comércio alcançavam aqui importância inigualável. Havia um porto de mar e uma vila medieval, vitais ao reino e a toda a zona. Piratas começavam a ameaçar e impunha-se reparar o Castelo. D. João III, a pedido e custas de D. Luís d` Ataíde, reparou-o. Séculos depois, a natureza aconchega-o. Reveste-o de arbustos verdes silvestres e amoras. As mesmas amoras que, na década de setenta passada, deliciavam cinco crianças criativas e inconsequentes; na igreja próxima infiltravam-se por entre taipais, madeiras, pedras, ossadas e pó. Buscavam um túnel secreto até ao Castelo adormecido. As paredes das catacumbas não cederam. Os seus espíritos inquietos também não.


IGREJA DE S. LEONARDO – CAPITEL INTERIOR Este silêncio faz-me bem. Olho em redor e sinto-me companhia dos mortos sob o chão, em seus túmulos descansados. Aquece-me o vermelho da passadeira e repouso o meu triste olhar, neste capitel com motivos vegetalistas. Nos outros capitéis, animais e mais plantas. E assim, a irmã natureza sustenta, nas colunas, como que uma cumplicidade com a minha essência humana. Cada vez que entro, ouço as vozes dos cânticos tristes do meu tempo, de véu rendado branco. E logo repouso os olhos no quadro da Natividade, na luz vinda das janelas ogivais da capela-mor e respiro tranquilamente. Na lembrança, levo a avó a comungar e sorrio, desaparecendo todo e qualquer resquício de abandono. Sabes, Deus, a história e a memória são irmãs gémeas. E tu, qual criador, no céu e na terra, apenas pareces soprar o moinho de papel.


IGREJA DE S. LEONARDO – TÚMULO Aqui jaz D. Álvaro Gonçalves de Ataíde, primeiro conde de Atouguia, homem importante no concelho e no reino. Porque poderoso, influente e homem de boas obras, fica mais perto de Deus, junto ao altar-mor. Sua esposa, dona Guiomar de Castro, condessa de Atouguia, agradece, junto ao túmulo, as bemaventuranças conferidas pelo rei a esta família e, saudosa do seu amado, manda construir um coro em 1466, do qual é prova a lápide evocativa da sua construção. Esta igreja é uma extensão de sua casa. Marquês de Pombal, manda picar as suas armas e salgar os seus terrenos, por considerar a família próxima dos Távoras na tentativa da morte de El-Rei D. José. A terra não voltou a ser como era. O tempo ilibou-o da acusação. Mas a importância comercial do lugar foi secando ao sabor do sal.


FONTE DE S. LEONARDO O tempo dá, o tempo tira. A maresia já não chega aqui, o assoreamento foi forte e feio e o oceano está para lá dos terrenos agora agrícolas e, mais ao fundo, arenosos. Resta-lhe a saudade e a companhia do rio de S. Domingos. Sofre o esquecimento, mas aquece a sua face de pedra carcomida, na cor vermelha da paixão. Na memória, o riso dos rapazes e raparigas que vinham buscar água. Com seus potes à cabeça e também no regaço, conversavam ao ritmo do bater descompassado dos corações. Corações que palpitavam ferozmente, pela presença dos seres amados que as seguiam ou esperavam. O sol ditava a hora de ir à Fonte e a Fonte ditava ao sol, a hora de estar ali. O tempo corrói. O tempo constrói.


PONTE Sobre esta ponte, num tempo longínquo, coches percorriam um caminho real até à Serra D`El Rei. Hoje, um rasto do rio de S. Domingos parece ladear a memória da nossa infância. Vemos algum brilho de água, caniçais, terra seca e ervas renovadas em cada inverno. Como uma teimosia esquecida. Ninguém diria que, ali, o caniçal que sustinha a corrente era cúmplice das mulheres que vinham lavar no rio e costuravam conversas alheias. Mas em noites de lua cheia, ao crepúsculo, albergava rituais de bruxas que cantavam ao som do murmúrio sereno das águas. Até o Santo lhes achava graça e de quando em vez, descia dos céus e vinha dançar com elas, como crianças numa brincadeira sem pressas. Dançavam num rodopio de saias e cabelos negros, com vassouras luminosas, a decorar o cenário das noites e os olhos do amor do Santo. Domingos de seu nome.


CRUZEIRO MANUELINO Subo a encosta, Senhora, a muito custo, aqui no Casal da Memória, alivio os meus ais diante de vós. Mães com filhos nos braços. Filhos que a vida deu, filhos que a vida tirou. “Senhora minha, porque não falas, Senhora minha, porque não gritas?”. Essa cruz, em forma de flor-de-lis, em que te amparas, Senhora minha mãe, é também a cruz da minha vida. Até o pelicano, lá em cima, com as suas enormes asas, sempre zeloso com seus filhotes, sabe que até nosso sangue daríamos para os salvar. Trago assim hoje, diante de vós, pedidos de piedade. Recebe Senhora todo o meu cansaço, toda a minha magreza e as noites sem sono. Recebe para acompanhar a tua dor, todo o amor pelo meu filho, que também partiu e que me retalha os pequenos passos que ainda dou. Foi a droga Senhora, desgraçaram-no...


IGREJA DE S. LEONARDO – MARCA DE CANTEIRO As chamadas “marcas de canteiro” são a assinatura dos chamados mestres e oficiais de cantaria, que com seu labor e vaidade construíam os monumentos e neste caso, a Igreja de S. Leonardo. Há quem defenda que este grupo de mesteres deu origem ao corporativismo obreiro, que se estendeu a preocupações religiosas, caritativas, iniciáticas e culturais. Ligados à nobre arte da arquitetura eram como que uma elite respeitada e rica em simbolismo e segredos. O berço da maçonaria. Na história de cada parede, suores, mãos e a força de homens anónimos. No símbolo, autoria, identidade, prosperidade e alegria da obra feita. A eternidade.


IGREJA DE S. LEONARDO – NATIVIDADE A escultura medieval da Natividade encerra enigmas eternos. A brancura do calcário faz jus à candura do rosto, qualquer que seja a interpretação. Duas mulheres têm um segredo. Um segredo de amor e de inigualável colo. Uma, escolhida por Deus para milagres, peça fundamental do presépio, de rosto terno, mãe eterna de muitos homens e mulheres em todo o mundo, decide rachar tão preciosa obra de baixorelevo, para salvar o neto de Rainha Santa Isabel, quando já jazia D. Dinis. Outra, com seu rosto contornado por caracóis ruivos, tem ascendência espanhola, dos Castros. Numa mão segura o livro de leitura diária e na outra, uma flor colhida no jardim do Paço da Serra. Repousa numa almofada quase com insígnias reais, por amor de Pedro, filho de rei. E assim, Maria e Inês convivem nesta dualidade ímpar, dando a todos quantos as olham, a certeza de que este menino representa todos os meninos do mundo que precisam de ti.


IGREJA DE S. LEONARDO – CAPITEL EXTERIOR Capitéis com figuras estilizadas representando seres de origem mitológica tornam-se discretos ao olhar apressado. São figuras meio animal, meio gente para lembrar a complexidade da vida. O termo humanidade teima em reduzir a sua definição à espécie humana, como se o ser humano não fosse animal e o animal não fosse humano. Dará o futuro atributos humanos aos animais, como a história recente deu a alma às mulheres? Segundo Avelino D`Almeida, em tempos remotos e pelas suas inscrições latinas, a Igreja de S. Leonardo, terá sido Templo de Neptuno. Na Grécia antiga, Neptuno era considerado Deus do Mar. E o mar esteve aqui tão perto. Ou Deus da Humidade. E essa nunca aqui faltou. Ao olhar cada capitel, vejamo-lo bem. Diante do sentido que a história traz consigo, a boca abrir-se-nos-á de espanto.


PASSOS Quantas pedras da calçada, Senhor, foram pisadas, quantas nuvens no céu, Senhor, foram passando, sempre com tua cruz imensa vigiando e dando alento aos meus pobres pés cansados e doridos dos meus melhores sapatos. Todos os anos, nunca faltei, Senhor, todas as procissões, lembras-te Senhor, como iam lindas as minhas netas de anjinhos? E as colchas nas janelas, Senhor, brilhavam na rua como as estrelas no céu. E estas ruas estreitas ficavam maiores, Senhor, como a pureza das meninas daquele tempo, com seus véus rendados sobre as cabeças. E estes Passos, Senhor, mesmo quando não há procissões, fazem parte de minha vida. Estou grata, Senhor, por viver nestas ruas e delas ver sempre e viver o caminho do céu.


IGREJA DE S. JOSÉ A Ordem Terceira de S. Francisco chegava à vila e a capela era dedicada a Nossa Senhora da Graça. Durante quatro séculos foi assim. No século XIX, S. José é promovido a padroeiro principal e até aos dias de hoje, como pai de Jesus e dos homens e mulheres, acalenta em seu redor a cultura, que é a razão de todas as coisas. Assim, ladeiam S. José no altar, S. Francisco defensor de todos os seres vivos e Santa Bárbara, defensor de todos quantos trabalham com o fogo, protegendo-nos das tempestades e das chuvas da ignorância. Na figura da identidade franciscana, os braços amparam-se no amor de Deus e acolhem todos os seres. A cultura vive aí.


TOURIL Desde sempre, ainda não havia porto e nas florestas desta terra já touros bravos povoavam os campos. Estes animais e outros, deram ao lugar a notoriedade para a caça. Clima temperado, paisagens idílicas e gente afável. Impunha-se a criação de gado bovino e surgiram as coutadas no concelho. Na pujança de toda a energia que o desenvolvimento tem, constrói-se um Touril, primeiro no país e famoso além-fronteiras. Local de regozijo e divertimento da fidalguia. Mais tarde, serviu de apoio para amarrar animais que vinham à Vila. Hoje, cerca de duzentos e cinquenta anos passados, algumas destas pedras, que tantos touros viram, repousam heroicas e cansadas, ao lado da Igreja Nossa Senhora da Conceição. Esta, particularmente quebrada, parece homenagear os touros das atuais touradas, como que, com cornos protegidos, para salvar os homens… Das bandarilhas, nada os salva.


FONTE GÓTICA Em tempos idos, nas suas imediações, uma gafaria, ou leprosaria, deu-lhe um apelido: Fonte dos Gafos. Homens e mulheres a quem a lepra havia abraçado, escondidos e segregados na sua doença, encontravam na frescura da água algum acalento que não provinha de mais lado nenhum. Mandada construir pela rainha da frase “são rosas, Senhor, são rosas…”, ostenta orgulhosa o Brasão da Vila, reforçando a identidade de um lugar. Ao longo dos tempos, deu as boas-vindas a quem chegava com água abundante e fresca. Os novos tempos, rebaptizaram-na de Fonte Nossa Senhora da Conceição e hoje, restaurada, é a Fonte Gótica. Palco de novas vivências e da história dos nossos antepassados. Na alegria das noites luminosas, do céu, a Rainha Santa Isabel, sorri e junta-se à festa, clicando em estrelas cadentes que iluminam o lugar.


IGREJA DA MISERICÓRDIA A partir desta Igreja, durante dias, meses e séculos, a Irmandade anunciou o evangelho com orações e obras concretas, testemunhando junto de pobres, presos e doentes, o compromisso inicial, banhado de luz pelo manto da Virgem, Nossa Senhora da Misericórdia. Agora, o tímido sol da manhã irrompe devagar por este óculo, quase que aquecendo seu interior sombrio e algo austero. Tenta ser uma luz portadora de alguma alegria, mas não consegue. A morte ainda é indestrutível à condição humana. E nesta nave, os sinais da via-sacra de Jesus Cristo. Nos bancos a escuridão do rosário mais ou menos choroso, da vida dos que partem. A história conjuga assim a dor da morte e a paz, um velho odor a madeira e o frio e humidade que emanam os azulejos. E a estranheza da fé parece suspirar: é assim.


PELOURINHO Nos três degraus, meninos e meninas sentavam-se, brincando num tempo em que não havia brinquedos. Só criatividade e infância pura. Do cimo do pelourinho, o céu é mais azul e o S. Leonardo, dentro da igreja matriz, com as suas capacidades de santo, lança olhares à rua e brinca também. Qual prenúncio de um novo milénio. No século vinte e um, mesmo que as armas dos Ataíde, a mando de Sebastião José de Carvalho e Melo, que tentava a apagar da vontade de matar o rei, tenham sido picadas em 1759, deixando o pináculo desfigurado, mantém-se viva a sua força e pujança rasgando o céu azul. Qual glande masculina investida na concepção de um novo mundo.


IGREJA CONCEIÇÃO

DE

NOSSA

SENHORA

DA

O brilho e a beleza do mármore nascem da fé do teu milagre, Minha Nossa Senhora da Conceição. As cores rosadas Senhora são o meu amor por ti e pelo teu infinito perdão, Senhora mãe de todos os aflitos. Essa alegria de cor contrasta com a falta de cor da minha vida. Linda, a tua Igreja, que este povo suou para te dar, quando soube do teu choro, ao te levarem para outro lugar. Quem te levou naquele tempo, não entendia que a fé tem peso e lugar, apesar de invisível. Era aqui que nos amparavas. Era nos teus olhos quietos que depúnhamos toda a nossa esperança e força. E deles rolaram lágrimas humanas. Cloreto de sódio e água, por tudo o que se despreza por não ser novo. Cheguei a velho, Senhora. Entendi o teu milagre.


NOTA BIOGRÁFICA

NOTA BIOGRÁFICA

António Évora

Cecília Cavalheiro

Nasceu e cresceu respirando as utopias que o céu e o mar sugerem. Tornou-se jovem e aos dezassete anos, dá o salto para a cidade grande. No Cinemar em Peniche, havia passado a peça “A Severa” e o sonho impôs-se sobre todas as coisas e ventos.

As suas raízes estão no Largo de S. Leonardo de Atouguia da baleia, no qual viveu os primeiros treze anos de vida. Apaixonada pela história, por influência paterna, dedica-se aos homens e mulheres que normalmente não fazem história.

Seguiu-se o Conservatório Nacional de Teatro em Lisboa, tendo sido convidado por Amélia Rey Colaço, para o Teatro Nacional onde permaneceu três temporadas. Foi bolseiro da Fundação Gulbenkian e anos mais tarde foi convidado para Assistente de Produção, do Centro de Arte Moderna da mesma Fundação. Desenvolveu a arte de representar em várias Companhias, como o Teatro Experimental de Cascais, a Empresa Vasco Morgado, o Teatro de Braga, a Companhia Rafael de Oliveira, O Bando, e com a Artistas Unidos. Viveu cumplicidades com Amália Rodrigues que o tempo preserva. Participou na área do cinema, em filmes realizados por Fernando Lopes, Artur Ramos, Quirino Simões e Monique Rutler, de entre outros. Fez e faz ficção para os três canais nacionais de televisão. Colaborou também com várias autarquias em matéria de programação cultural, estando nos últimos anos a exercer esta colaboração com a Câmara Municipal de Peniche. Nesta exposição, alia a natureza das suas origens, à aprendizagem adquirida, dando voz visual à sensibilidade ímpar que o caracteriza.

É assistente social há trinta anos e psicoterapeuta há sete. Exerce a atividade profissional na Segurança Social em Lisboa e carrega baterias na costa litoral oeste. É especialista em Intervenção Social em meios de pobreza e exclusão social, colaboradora de entidades académicas, participante em programas dos media, sobre políticas ativas de promoção social, formadora e oradora em seminários sobre instrumentos, medidas e experiências de desenvolvimento social e local em todo o país. Particularmente desassossegada, no que respeita ao país natal que ama, acredita nas pessoas e valoriza sobretudo a criatividade, o espírito crítico e o perfume das flores silvestres. Tem cinquenta anos e vive em Almada. O seu nome herdou-o da avó paterna.


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