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Estórias da história

Estórias da História Breve retrato de Câmara de Lobos durante a Gripe Pneumónica

Cem anos depois da grande epidemia de gripe pneumónica, conhecida também por “Gripe Espanhola”, a humanidade luta contra uma nova doença infeciosa à escala global, desde o início de 2020. Já a conhecemos pelo nome, mesmo não a compreendendo na sua totalidade: a enfermidade é conhecida cientificamente por ser um coronavírus denominado por SARS coV 2, que infecta os humanos com a doença COVID-19.

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Não é nosso propósito escrever sobre o SARS coV 2 ou COVID-19, as suas consequências para a saúde e a forma como a pandemia está a provocar profundas alterações na sociedade. Já muito se tem escrito, e muito ainda haverá por escrever, no amanhã. Interessa agora a Madeira de 1918-1919, em especial Câmara de Lobos, no tempo de outra pandemia, num outro contexto completamente diferente do que vivemos. Mas peço que ao lerem este pequeno artigo tenham em consideração o agora, os avanços científicos, tecnológicos, e para todos os efeitos, os civilizacionais.

O mundo em 1918, e a Madeira em particular, era um local muito diferente daquele em que vivemos.

Restam poucas, ou quase nenhuma memória viva desses tempos. Se colocarmos em perspetiva, o último combatente da I Grande Guerra faleceu em 2010, e as pessoas mais velhas do planeta nasceram nessa altura. E o que encontramos na Madeira de 1918? Numa palavra, uma profunda crise económica e sanitária. Como escreveu o Diário de Notícias, a Madeira encontrava-se entre a “Peste e a Fome”. (DN, 26/10/1918, p.1)

O contexto mundial e nacional não era o melhor. A Europa estava profundamente desgastada com a longa e terrível Grande Guerra, que provocou milhões de mortos e consumia recursos que já escasseavam. Em Portugal, o esforço de guerra estava a empurrar o país para uma profunda crise política, social e económica. E a Madeira não fugia da avalanche, e a carência de bens alimentícios era enorme. Para

a agravar ainda mais a situação surgiam notícias da pandemia de “influenza pneumónica”, que dizimava famílias inteiras e alastrava como fogo em erva seca.

É seguro situarmos os primeiros casos de gripe pneumónica na Madeira na primeira semana de setembro de 1919, após ancoragem no porto do Funchal do vapor Mormugão. Os primeiros infetados ficaram em quarentena no Lazareto de Gonçalo Aires. A primeira vítima de gripe espanhola, um tripulante do navio, viria a falecer em 20 de setembro de 1918.

O final do mês de setembro e outubro daquele ano foi marcado por restrições ao funcionamento dos liceus e escolas primárias. Os navios e passageiros estavam sujeitos a uma quarentena de 10 dias e à desinfeção das malas. Os navios de mercadoria não podiam aportar já que a Madeira não dispunha das instalações de desinfeção necessárias. As medidas tomadas não diferem das de hoje, a doença vinha de fora e as autoridades tiveram de a conter à entrada. A quarentena, que para muitos de nós parece uma novidade, em 1918 era a palavra de ordem para quem chegava à Ilha da Madeira.

Felizmente para a Madeira do ano 2020, a ciência está mais avançada. Aliás, em 1918, os microbiologistas ainda estavam numa fase embrionária no conhecimento sobre os “vírus”, sabiam que estes existiam, mas não tinham tecnologia para o observar e perceber realmente o que era. Essa observação só seria possível nos anos 30 do séc. XX.

Ninguém teve ilusões sobre a perigosidade da doença, mas pouco se sabia. Num artigo do Diário de Notícias intitulado, “As conspiratas e a influenza pneumónica” era perfeita a consciência de que tão perigoso como a doença, era o que se desconhecia sobre ela, e o melhor que havia a fazer era se precaver-se. (DN, 24/10/1918, p.1)

Câmara de Lobos, de modo particular, será notícia pela severidade com que se abateu a crise social decorrente não só da grande guerra como também devido ao medo da pandemia de gripe pneumónica. Em 11 de outubro de 1918, o Diário de Notícias da Madeira lança um alerta para a situação de extrema pobreza e perante a carestia de preços, que 4 mil pessoas no Ilhéu estavam a viver. Refere a notícia que, pelo menos durante dez dias as pessoas não acendiam lume e viviam de “peros e ponchas”. (DN, “Em Câmara de Lobos”, 11/10/1918, p.1)

Esta notícia, em jeito de apelo, foi lida/ouvida pelas próprias pessoas de Câmara de Lobos que mais que ninguém conhecia a dura realidade com que aquelas pessoas viviam o quotidiano. Em notícia datada de 27 de outubro de 1918, um grupo de senhoras da vila de Câmara de Lobos lançava uma campanha para angariação de roupas. A comissão tinha já por hábito reunir-se quinzenalmente para bordar alguns dos bordados que vendiam com o objetivo de comprar tecidos para confecionarem roupas para dar às pessoas pobres do Ilhéu. Mas esta era uma campanha mais abrangente devido à urgência de acudir a muitas famílias no Ilhéu, sem o que vestir nem o que comer. O próprio governador do Distrito do Funchal, Américo Ciríaco Correia da Silva tomou parte da subscrição doando um generoso donativo. (DN, “A miséria em Camara de Lobos – Fome e Nudez!”, 27/10/1918, p.1)

O mesmo governador, acompanhado pelo representante da Cruz Vermelha, Harrison Diblee e o cónego Homem de Gouveia, visitou Câmara de Lobos três dias depois, em 30 de outubro para verificar in loco o estado sanitário do Ilhéu. (DN, “A Camara de Lobos”, 30/10/1918, p.1)

Parece que a visita do governador deu algum resultado, já que o então administrador da Câmara Municipal de Câmara de Lobos, João Izidoro Araujo Figueira mandou realizar uma limpeza e higienização do Ilhéu. (DN, “Saúde Pública”, 31/10/1918, p.2) É curioso que nas nossas investigações, talvez devido à situação de pandemia, nos anos de 1918 e 1919, praticamente não houve reuniões de vereação na Câmara Municipal de Câmara de Lobos, o que poderia ter ajudado para que a situação precária no Ilhéu tivesse piorado.

Deixo, para finalizar, mais matéria de reflexão sobre a taxa de mortalidade em Câmara de Lobos entre 1917 e 1922. Infelizmente, os registos que chegaram até hoje são cópias dos originais, que não apresentam a causa da morte das pessoas. Ainda assim, os números são ilustrativos, pois em 1917, a mortalidade em Câmara de Lobos era de 182 pessoas e em 1918 era de 355. Já em 1919, a mortalidade aumenta drasticamente para os 521 e em 1920 para 676 pessoas, para depois vir a diminuir em 1921, com 416 pessoas e, por fim, 1922, com 447 óbitos.

Ano

1917

1918

1919

1920

1921

1922 Mortalidade em Câmara de Lobos

Óbitos

182

355

521

676

416

447

Claramente podemos ler que entre 1919 e 1920 o número de mortos aumentou de forma drástica, mas não podemos afirmar completamente que eram resultado da “gripe pneumónica”, pois também a fome ou outra qualquer doença matavam.

Carece um estudo profundo sobre o verdadeiro impacto da gripe pneumónica na Madeira, pois nem o próprio relatório da autoria do Dr. Nuno Silvestre Teixeira intitulado Relatório sobre as duas epidemias de gripe em 1918 – a “espanhola” em junho a julho, e a “pneumónica”, de agosto e dezembro, nos dão respostas claras sobre o que realmente aconteceu, considerando desde já e erradamente, que gripe espanhola e pneumónica eram duas doenças distintas.

Hoje, o mundo é um lugar diferente, a resposta a esta pandemia é diversa, a ciência, e a medicina, em particular, oferece melhores armas para lutarmos contra as doenças. Resta, agora, ajudar o próximo, porque tal como em 1918, só uma sociedade solidária consegue enfrentar os males dos problemas sociais.

Carlos Barradas Coordenador do Centro Local de Aprendizagem da Madeira Universidade Aberta

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