O comboio perdido está de regresso aos carris.

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REPORTAGEM Sexta-feira / 04 de Abril de 2014 / Negócios

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O comboio perdido está de regresso

aos carris O comboio que foi o “ex libris” do Estado Novo, e que fez uma das últimas viagens juntamente com António Salazar até Santa Comba Dão, esteve perdido pelo País durante 40 anos. Agora, reencontrou o Norte. BRUNO SIMÕES BRUNO SIMÃO

Na época de dificuldades que Portugal atravessa, não faltaquem exalte afrugalidade de OliveiraSalazar, o homem que governou o País com mão de ferro e deixou imensas reservas nos cofres da Fazenda Pública – a que custo, isso, já é outra história. Poucos saberão, contudo, que este homem austero permitia ao Estado um “guilty pleasure”: o comboio presidencial, que transportava os presidentes daRepúblicae ministros – e também o próprio Salazar– portodo o País. O comboio eratão luxuoso e asuamarchacustavatanto dinheiro que Marcello Caetanocolocou-lheumfimlogoquepôde,em1970.Mashoje, o comboio presidencialcheiraatintafresca. ComofimditadoporCaetano,ocomboiopresidencial, composto por cinco carruagens e um furgão de carga, foi desagregado, partido, esventrado, espalhado pelo País e colocado ao serviço em funções que nadatinham que ver comoseuobjectivooriginal.Entre1910e1970,estecomboiotransportou,alémdospresidentesdaditadura,como Óscar Carmona ou Américo Thomaz, individualidades como Sidónio Pais, Manuelde ArriagaouTeófilo Braga. Nopassadodia27deMarço,ocomboiopresidencialregressou,pelaprimeiravez,aoNorte.DesdequefoirestauradopeloMuseuNacionalFerroviário,numaintervenção que custou 1,6 milhões de euros, um valor comparticipado em80% porfundos comunitários e comumaajudade

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10% do Turismo de Portugal, este comboio só haviafeito, oficialmente, umamarcha– em direcção aSantaApolónia, em Lisboa. Nestaquinta-feiracinzentae chuvosade fins de Março, acomposição, pintadade fresco, azul com umalistavermelha-viva,segueemdirecçãoaLousado,em VilaNovade Famalicão, onde se localizaumdos pólos do MuseuNacionalFerroviário. Jaime Ramos, actual presidente daFundação Museu Nacional Ferroviário (FMNF), conta que o restauro do comboio foi umadas primeiras ambições destaentidade


criada,em2005,paraconservaropatrimónioferroviário.Uma meta que não foi fácil de alcançar. Afinal, o antigo comboio presidencialestavaespalhadopordiversossítios.Osalão-restauranteencontrava-senonúcleomuseológicodeEstremoz. O salão do Chefe de Estado estavano Entroncamento. Estas duas carruagens, em“estado mínimo de conservação”, eram as que estavam melhor preservadas. Aindaassim, nenhuma delaspoderiacircular.Asoutrasquatrocarruagensencontravam-semuitodegradadas.Osalãodosministrosfoiutilizado, durante 20 anos, no comboio-socorro, que acorriaadescar-

rilamentos,acidenteseavariasnocaminho-de-ferro.Trêscarruagensestiveramexpostas,durantedécadas,àintempériee aactos de vandalismo. “Algumas delas estavamesventradas, ouseja,sóexistiaoleito”,explicaMariaJoséTeixeira,responsáveldaFMNF. Conta-se que, em2010, naviagematé às oficinasdeContumildaEMEF,noPorto,ondeocomboiofoirestaurado,algumasdassuascarruagenstiveramdeserenvoltas emrede paraevitarque caíssembocados de madeira. Recuperarumcomboio que, emalguns casos, jánemtem asmadeiras,aslouças,osutensílios,asportasoumobíliasori>>> página 16

O comboio presidencial viajou até Lousado, onde repousa na foto de cima. A inclinação da linha, na estação, permite perceber que se trata da carruagem-restaurante. À esquerda, a comitiva passa pelas praias de Espinho. Um “Camilo Castelo Branco” declamou textos para os 150 convidados, que puderam conhecer os aposentos presidenciais ao som de guitarras.


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ginais,édifícil,admiteJuditeRoque,doserviçodeConservaçãoe RestaurodaFMNF.“Houveumaalturaemquenossentimosalgo perdidosporquenãosabíamosondeencontrarinformação”,conta. Através de investigação, documentação e de testemunhos de pessoas que tinham visto o comboio acircularno passado, afundação conseguiu reunir os dados necessários parao restauro das carruagens e para a feitura de algumas réplicas de peças que recheavam o comboio presidencial. Peças tais como lavatórios em louça. E, na busca pela informação, houve um episódio curioso: “umsenhorfoitercomanossacolegaedisse:‘eutenhoumasmobílias do comboio presidencialemcasae ouvidizerque o vão restaurar. Quero devolvê-las’”. Escusado serádizer que as peças foramaproveitadas: “claro, eramoriginais!”. Orestauro,quecomeçouem2009eterminouem2013,foicoordenado,jáemContumil,porCarlosMachado,queacumulaexperiênciaarestaurarlocomotivas avapor– e, agora, carruagens. OS OLHOS POSTOS NO PRESIDENCIAL Noutraépoca, o comboio presidencialerasinónimo de prestígio,dedesenvolvimento.Edeconforto:ascomitivasdoEstadopodiam iraqualquerlado e fazeras refeições semterde parar. Agora,osmeiosdetransportesãooutroseaferroviaéumasombrado quejáfoi,sobretudoapósadesactivaçãodecentenasdequilómetros de viaestreitaemtodo o País. Ocomboiocativaedespertacuriosidade.Sejapelascoresmuito vivas, aplicadas hápouco mais de um ano nas oficinas de Guifões, em Matosinhos, ou pelo símbolo da CP – bem redondo, ao contráriodoactual,queéinclinado.Ouaindapelaesferaarmilar, bem visível naúltimacarruagem, ado presidente. No Entroncamento, aindaantes dapartida, quem esperavapelo Intercidades não ficou indiferente. É possível que as duas hospedeiras que fazem o check-in, vestidas com roupas inspiradas no século passado, tambémtenhamajudado adespertaratenções. Afichadaviagemindicaqueahoradepartidaéàs9:13.Masum dos relógios dalinha11, daReguladora– empresaque se localizavaem Famalicão, o que é muito apropriado, umavez que o comboio também viajaparalá– mostraque não é bem assim: o comboiosóarrancaàs9:37.Omaquinistafazsoaroapitoe,enfim,avança. Muito apropriadamente, aimprensaficainstaladanacarruagem dos jornalistas. Aelectricidade só chega uma hora depois e estáfrio, mas o perfume anovo é inconfundível. Cheiraamadeira,cheiraatintafresca.Parecequeocomboiofoidesembrulhado. Os sete compartimentos dos jornalistas, cadaum com seis lugares,receberamumatonalidadeverdealfacee,coisararanosdias de hoje, todas as janelas podem ser abertas – bastasoltar afivela emcourodosopédajanelaedeixá-lacair.Ofrioqueestánãoaconselhaapôracabeçadefora,masestaédaquelasoportunidadesimperdíveis.Aoolharparatrás,alémdesevertodaasilhuetadocomboio,vê-seumhomemafilmarquasetodoopercursoealgunsjovens commáquinas fotográficas. Aviagematéaopassadofaz-sedevagar–amarchadocomboio estálimitadaa70km/h,oquetransformaotempototaldeviagem até Lousado em 5 horas e 15 minutos, um período inimaginável nos dias que correm. Mas, paraquem faz estaviagem de IntercidadesoudeAlfaPendular,alentidãovaleapena:épossívelobservarascasas,camposeriosláfora.Atéseconseguelerasplacasque identificamestaçõeseapeadeiros,tarefaimpossívelcomavelocidade das viagens contemporâneas. Nachegadaàsestações,encontram-sepessoasmunidasdemáquinasfotográficaspararegistaromomentohistórico.NaPampilhosa,numaparagemtécnica,oscuriososeramàsdezenas.Aténo cafédaestação,repletodegentehabituadaaverpassarcomboios. Cadacarruagemestáequipadacomumasalamandraacarvão, quenãoestáligada,equeserviaparafazeroaquecimentodacomposição.Asdecoraçõesvariam:aseguiràdosjornalistas,estáorestaurante,commesasecadeiras,emuitosaficcionadosdaferrovia àconversa. Depois, acarruagemdacomitivae dasegurança, com umamesaaocentroecadeirasàvolta.Acarruagemdosministros, jácom compartimentos individuais revestidos amadeira, tem o mobiliário mais requintado – inclusive lavatórios embutidos. A carruagemdoantigochefedeEstadoincluiumacasadebanhoprivativa, um grande salão. Os compartimentos têm beliches – que, apesardisso,nuncaeramusadosnasviagensoficiais.Sóatripulação, de 15 pessoas, é que dormiano comboio – mas no furgão. PASSEIOS TURÍSTICOS AviagemaVilaNovaFamalicão,feitaemarticulaçãocomacâmaramunicipal local, faz parte de umpacote de três viagens previstas no projecto de financiamento. Parao percurso até àcidade

O comboio presidencial está como novo. Tanto que a sua pintura brilha, mesmo com o céu encoberto. Todas as inscrições técnicas que revestem as carruagens, a amarelo, são recentes e, por isso, bem visíveis. Na comitiva que viajou até Famalicão, a locomotiva destoou do azul e vermelho: vinha pintada de um laranja já baço. Em baixo, uma vista do furgão de carga, inclusive do pequeno compartimento utilizado para despachar a carga. O sinal de alarme, na carruagem dos jornalistas (facilmente identificável pela cor verdealface), já avisava que punia usos indevidos – mas quem é que ousaria mandar parar, por brincadeira, o comboio que transportava o Presidente da República?

minhota,aautarquiafamalicenseapostounumaviagemtemática,apelidandoaexperiênciade“ComboiodasArtes”.Abordo,seguemdoisactoresqueencarnamduaspersonagensligadasàcidade:oescritorCamiloCasteloBranco,quefaleceuem Famalicão, e Artur Cupertino Miranda, banqueiro fundador doBancoPortuguêsdoAtlântico(actualBCP)equeeranaturaldafreguesiade Louro – onde tambémpárao comboio. DoEntroncamentosaíramcercade50pessoas.FoiemAveiro que alotação de 150 pessoas foi atingida, com aentradado autarcafamalicense,PauloCunha,erespectivacomitiva,edezenasdejornalistas.AviagemterminouemLousado,commúsicae discursos de Jaime Ramos e de Paulo Cunha. AlémdasviagensjáprevistasatéCasteloBrancoeatéFaro, ocomboiopresidencialdeverácircularnoscarrisdeformaregular, como produto turístico. “Vamos tentar encontrar um modelodenegócioparacolocarocomboioacircular,equeremos que aCP sejao nosso parceiro”, diz Jaime Ramos. “Isso terá sempre de ser feito com outro operador porque a nossa vocaçãonãoestánasviagensturísticas”,reconhece.Aindaassim, hápotencial: “estamos no Entroncamento e, nessazona, podemospensaremvárioseventos,comoafestaTemplária,e emvisitas aFátimae ao Castelo de Almourol”. PauloCunhagostariaqueocomboioregressasseaFamalicão. “Ficoudemonstrado que o comboio presidencialtemtodas as condições paravoltaraos carris”. Agora, é umaquestão de esperarparavoltaravero comboio apassar.



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