Ecomuseu Informação N.º 31 – Abril | Maio | Junho 2004

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Boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal

Índice 3.4.5.6.

9.10.11.12

Programa de Iniciativas do Serviço Educativo

Conhecer Património imaterial incorporado: o registo de testemunhos e memórias através de levantamento oral

7.8.

Tema de Reflexão Ecomuseu - para além da 13.14.15. palavra, reflectir sobre os Património Cultural princípios e a acção museal do Concelho

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Moinhos de maré do Seixal: 20 anos de classificação 16.17.. Memórias e Quotidianos Histórias e memórias de trabalhadores siderúrgicos 18.19.

Agenda

MAI.

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ABR.

A propósito de mais um 18 de Maio e dadas as complexas situações em que vivem muitos museus portugueses, a questão que se coloca, nomeadamente aos profissionais que neles trabalham, tanto para os públicos e utentes dos seus serviços como para as comunidades em primeira instância detentoras dos seus acervos, é a do que queremos comemorar no Dia Internacional dos Museus em 2004. Aproveitemos para questionar e procurar os meios para suscitar o debate, tão alargado quanto possível, sobre o papel dos museus e de que meios estes são dotados para o cumprir, num inquietante contexto global de problemas, não só socioculturais, entre o âmbito local e regional e o âmbito nacional, mas de índole universal e civilizacional, a que os museus estão profundamente ligados. Porque no concelho do Seixal, em Maio, também se assinala o 22º aniversário da instituição do museu municipal e associando simbolicamente tal facto à comemoração do 30º aniversário da revolução democrática de 25 de Abril de 1974, da qual decorreram condições fundamentais à renovação e à expansão museológicas em Portugal, a Câmara Municipal do Seixal entendeu pertinente promover, a 30 de Abril, um colóquio intitulado “Ecomuseus” – que perspectivas, em Portugal, na Europa. Contando com o apoio da Rede Portuguesa de Museus, a participação de Hugues de Varine será sem dúvida um importante contributo para a discussão de experiências, na perspectiva por ele próprio defendida de que “o desenvolvimento local é um

JUN.

O que queremos dos Museus?

I S S N : 0 8 7 3 - 6 1 9 7 • Depósito Legal: 106175/96 • Tiragem: 6000 exemplares

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campo de aprendizagem, onde se adquirem progressivamente os saber-fazer, onde cada um se serve sobretudo do seu bom-senso, onde se vive na complexidade, onde se aprende com os outros e sobretudo com as pessoas que encontramos no terreno” (in Les racines du futur, p. 9). Dedicamos o Tema de reflexão deste trimestre à abordagem dos processos de experimentação e projectos centrados no património através dos quais, com o Ecomuseu Municipal do Seixal, se tem de alguma forma contribuído para a transformação da vida das comunidades e da paisagem e para a valorização do território concelhio. Este tipo de reflexão passa sem dúvida pela avaliação da composição e do desem[...] estaremos longe de entender o penho da equipa técnica do museu, sabendo-se que tem evoluído bastante, num sentido de Ecomuseu se não dermos uma aprofundamento de saberes e de competênmaior atenção à interacção [...] cias profissionais, cada vez mais ligados ao cocom uma grande diversidade de nhecimento do território específico, à envolpessoas e colectividades [...] num vente do Ecomuseu e às experiências no terprocesso que sustenta as activireno. Mas estaremos longe de entender o dades e o quotidiano do museu, Ecomuseu se não dermos uma maior atenção onde se encontram apoios,estímuà interacção, em grande medida através daquelos, conhecimentos e saberes, uns les mesmos trabalhadores, com uma grande com concretização material visídiversidade de pessoas e colectividades, maiovel, outros que potenciam realizaritariamente das comunidades locais, mas não ções e projectos futuros.Tudo isto só, num processo que sustenta as actividades e faz parte do património cultural o quotidiano do museu, onde se encontram intangível [...] apoios, estímulos, conhecimentos e saberes, uns com concretização material visível, outros que potenciam realizações e projectos futuros. Tudo isto faz parte do património cultural intangível com que os museus lidam crescentemente e para cujas actividades àquele aplicadas podem decisivamente contribuir as novas tecnologias, por exemplo nas áreas de documentação e de difusão. Um dos verdadeiros desafios de inovação que também se coloca a este Ecomuseu é o da conservação do património imaterial, para o que concorrerá, quer a investigação quer todo um processo de trabalho museal de interacção com as comunidades e com a sociedade em geral, sensibilizando para a valorização da diversidade cultural, inclusive no âmbito da criação e para que melhor se explorem as relações culturais das sociedades humanas com o meio natural. A importância que atribuímos aos saberes, competências e criatividade de que as populações e comunidades são detentoras, que herdam, desenvolvem e transmitem, assim como o papel que o património intangível assume, de enraizamento cultural e como inspirador de continuidade em relação às gerações precedentes, são objecto de realce através de dois artigos deste 31º Ecomuseu Informação, nas rubricas Conhecer e Memórias e Quotidianos. Em período de comemorações, também não podemos deixar de evidenciar os 20 anos passados sobre a classificação dos moinhos de maré do concelho do Seixal, como património cultural imóvel de interesse público, num artigo de esclarecimento sobre um tema que mantém actualidade, em contexto de ordenamento de território e de revisão do Plano Director Municipal, e de desafio a uma atitude de cidadania por parte dos nossos leitores, quanto aos instrumentos de protecção e à (des)valorização do património colectivo. [Graça Filipe]

Ficha Técnica Ecomuseu Informação nº 31 Foto Capa

Aspecto do Moinho de Maré do Zeimoto no final dos anos 70 do século XX © EMS/CDI

Edição

Direcção

Grafismo e Revisão

Impressão

Câmara Municipal do Seixal-Ecomuseu Municipal do Seixal

Graça Filipe

Sector de Apoio Gráfico e Edições

SIG-Sociedade Industrial Gráfica

Créditos Fotográficos

Tiragem

EMS/CDI; Rosa Reis; Jorge Raposo; Carla Costa; Luís Azevedo; Margarida Valente; Laudelina Emídio e Carlos Carrasco

6000 exemplares

Textos/Investigação

Graça Filipe; Elisabete Curtinhal; Ana Cláudia Silveira Informação/Agenda e Notícias

www.cm-seixal.pt/ecomuseu

Carla Costa; Graça Filipe;

ISSN

0873-6197 Depósito Legal

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Utilizando a palavra inventada e aplicada pela primeira vez em França, em 1971, em certa medida para qualificar uma inovação, assim como para contornar o efeito negativo da clássica designação de museu, constatamos que o conceito não parou de evoluir, aplicado à museologia, nomeadamente por Georges Henri Rivière, que introduziu e estruturou a componente do tempo, a da participação da população e uma dimensão territorial. O ecomuseu foi progressivamente concebido como um museu integral onde se multiplicaram os domínios de investigação e de intervenção, adquirindo desejavelmente um estatuto associativo. Expandindo-se para além da França, a denominada ecomuseologia conheceu um notável período de aplicação entre 1971 e 1980.Tornados realidade de domínio público, em 1983 os ecomuseus eram definidos [pelo dicionário enciclopédico Larousse] como uma instituição cultu-ral que assegura sobre um dado território as funções de investigação, de conservação, de apresentação e de valorização de um conjunto de bens naturais e culturais representativos de um meio e dos sucessivos modos de vida que aí ocorreram. Também foi em 1983 que se deu a adopção formal da designação de ecomuseu pelo Museu Municipal do Seixal. Foi devida, segundo António Nabais, então seu responsável, a Hugues de Varine,que nele identificara as “verdadeiras características de um ecomuseu”.Conquanto possa ter proporcionado alguma clarificação teórica das linhas de orientação preconizadas desde a criação do museu,mais do que influído directamente na sua evolução,a nova denominação teve sobretudo efeitos no meio museológico e profissional e na forma de mediatização, associada à novidade que a utilização do vocábulo constituía no nosso país e que a tutela até certo ponto aproveitou para transmitir a ideia de pioneirismo e de inovação da iniciativa museológica do município. Na verdade, para várias outras experiências simultaneamente em embrião ou em curso, as respectivas tutelas poderiam, com idêntica justificação, adoptar a mesma denominação, mas não o fizeram. E assim se veio, não só a identificar o Museu Municipal do Seixal com a designação de Ecomuseu, mas também a explorar, no plano museológico, as ideias, conceitos e propósitos teóricos da ecomuseologia e, em parte, da nova museologia. Hoje em dia, conquanto reconheçamos que a questão não é prioritária no quadro de clarificações programáticas de que carece a realidade museológica tutelada pela Câmara Municipal do Seixal e de que a mesma tem de ser ponderada sob diversos prismas, questionamo-nos, no plano museológico, sobre a pertinência de continuarmos a usar a mesma designação, sabendo que a tal não corresponde a aplicação de um conceito capaz de identificar tipologicamente ou de sintetizar a complexa estrutura museal em apreço. Embora defendendo que tal questão pode ainda ser deixada em aberto, não deve ser subestimada a dificuldade que constitui, para qualquer pessoa não iniciada em assuntos museológicos, entender verdadeiramente o que possam significar,para além da própria originalidade ou raridade da denominação,as especificidades de um ecomuseu, sobretudo quando podem simultaneamente apreender e estar familiarizados com a heterogeneidade dos museus,tanto em função dos campos temáticos e dos acervos que abarcam, tanto em função dos espaços ou dos projectos e meios por que comunicam com os públicos,sem que tal obrigue à adopção de diferentes designações enquanto tipo de instituição. Também no que concerne à iniciativa ou à participação da comunidade, a experiência do Seixal não se distingue do modelo comum de tutela autárquica, ainda que a experiência não cesse de potenciar importantes formas de interacção com grupos de acção e de interesse centrados no património cultural. De resto, assumimos quanto à questão da iniciativa comunitária um cepticismo decorrente da análise do carácter intrínseco dos museus, ligado à memória, duvidando de que a sua existência e actividade possam ser vistas, no tempo e no espaço, indissociadamente da esfera em que se enquadram as suas tutelas.Ainda que, pela prática, reconheçamos aos museus, particularmente os de tutela local, enormes potencialidades de comunicação e até mesmo de mediação entre grupos de interesse e poderes instituídos, no que toca à acumulação de capital cultural, enquanto grau de enriquecimento de uma comunidade por meio da aquisição e a valorização de bens e produtos culturais duráveis. Ao longo de mais de duas décadas, o Ecomuseu Municipal do Seixal serviu de estrutura para projectos de investigação, de inventários e de documentação de património, de classificação e/ou de propostas de protecção e salvaguarda, de educação patrimonial e de educação para a cidadania, de exposições, de edições e de inúmeras actividades centradas no património natural e cultural, material e imaterial, reportado ao território e à população do concelho do Seixal, com vista a contribuir para a construção e a transmissão das memórias colectivas e para um

Tema de Reflexão

Ecomuseu - para além da palavra, reflectir sobre os princípios e a acção museal


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desenvolvimento local sustentável.Vários desses projectos configuraram processos de experimentação, por vezes com o envolvimento de elementos das comunidades locais, outros com positivas ligações a instâncias científicas e académicas, muitos deram lugar a parcerias com entidades e organizações que se suporiam totalmente exteriores aos museus e com quem estabelecemos laços e cumplicidades duradouros.A memória e o património têm sido instrumentos e processos que contribuem para a transformação da vida das comunidades e da paisagem e para a valorização do território. Poderemos lembrar projectos e acções continuadas, como a preservação e reutilização de património náutico,com as viagens e programas de educação e lazer no Tejo,iniciados em 1982, ou como a sensibilização para a salvaguarda e o conhecimento do património industrial, desde as primeiras acções na área da arqueologia industrial na Fábrica de Vidros de Amora em 1982-1983, até aos grandes desafios do presente, com a municipalização da Mundet, o projecto de musealização do Circuito da Pólvora Negra de Vale de Milhaços e a preservação do Alto Forno da Siderurgia Nacional, ou como a consistente actividade arqueológica, não só na vertente de acções de emergência mas sobretudo através de projectos de investigação sustentados por parcerias e colaborações interdisciplinares, abrangendo a Olaria Romana da Quinta do Rouxinol, único sítio até hoje classificado de monumento nacional no Concelho. Devemos igualmente assinalar o processo de integração do Moinho de Maré de Corroios na estrutura museológica municipal, a partir de 1986, reflectindo sobre a complexa experiência da sua conservação em funcionamento e no quadro de classificação do conjunto dos moinhos de maré existentes no Concelho, fazendo-nos reflectir e questionar os meios efectivos de salvaguarda e de valorização do nosso património natural e cultural.Assim como devemos lembrar a protecção da Quinta da Trindade, imóvel de interesse público, com a integração no sistema territorial polinucleado do Ecomuseu, evoluindo e mantendo-se em aberto até aos dias de hoje, a par de vários outros projectos que não se esgotam no património cuja propriedade é municipal, como é exemplo o prolongado investimento nas intervenções de salvaguarda e valorização de outro imóvel de interesse público, a Igreja Paroquial de Arrentela. Não obstante todos estes percursos de trabalho e de um notável acrescentamento de acervos e da patrimonialização de testemunhos culturalmente relevantes no território concelhio, o Município não dispõe ainda das necessárias instalações para os respectivos serviços, nem de reservas museológicas adequadas.Tais carências constituem a grande preocupação actual, em que se deverão concentrar esforços de investimento e de procura de parcerias. Para além desta prioridade,relevaríamos a questão da estrutura orgânica em que se articulam os serviços que aplicam as funções de museu, propriamente ditas, centradas nos acervos incorporados e nos imóveis e sítios geridos pelo Ecomuseu Municipal, e a extensão de competências daqueles serviços,desproporcional aos meios e recursos com que contam,dado que abrangem um vasto terreno de acção e uma diversidade de património para que urge encontrar soluções sustentáveis de intervenção e de valorização, num quadro de desenvolvimento local que obviamente ultrapassa as ideias e princípios da ecomuseologia. É também neste quadro global, de articulação da gestão de um sistema museal vocacionado para o território concelhio, com uma estratégia municipal para o desenvolvimento local, que identificamos outra prioridade, de reflexão e de acção: a composição e a formação profissional da equipa técnica e científica e as parcerias a implementar com entidades exteriores ao Ecomuseu, incluindo naturalmente a Rede Portuguesa de Museus, mas a alargar para além do meio museológico, face às exigências de um museu que pretende continuar a intervir à escala do território e a corresponder a interesses das comunidades. [Graça Filipe]

Colóquio

“Ecomuseus” que perspectivas, em Portugal, na Europa data: 30 de Abril 2004 local: Auditório Municipal – Fórum Cultural do Seixal inscrições: até 26 de Abril


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Património imaterial incorporado: o registo de testemunhos e memórias através de levantamento oral No âmbito da sua missão, o Ecomuseu Municipal do Seixal visa contribuir para a construção e a transmissão das memórias colectivas no concelho do Seixal, para o que desenvolve, entre outros projectos, os de recolha oral, de que nos últimos anos se tem ocupado essencialmente a equipa de estudo e inventário do património industrial. A abordagem das temática do trabalho e das memórias do quotidiano, ora ligados à industrialização ora à ruralidade, revela-se fundamental para apreender os aspectos económicos, sociais, culturais e políticos do concelho do Seixal em diferentes épocas da sua história, ou seja, aquelas a que se reportam as memórias das pessoas entrevistadas. A abordagem biográfica é um método amplo e fecundo de estudo do vivido social e actualmente é consensual, entre os investigadores, a noção de que para “fazer história” é imprescindível recorrer a diversos tipos de fontes disponíveis, entre as quais as fontes orais, e trabalhá-las em conjunto, sob uma perspectiva crítica. As fontes orais fornecem-nos informações sobre acontecimentos de um passado recente e através das suas expressões narrativas, contribuem para esclarecer e interpretar esse passado. Para além de serem um instrumento susceptível de nos dar essa interpretação do real social, são ainda capazes de preservar a especificidade da pessoa entrevistada.

Exemplificação de gesto de trabalho por Raul Silvestre, antigo operário da Fábrica de Empalhação de Amora © EMS/CDI, Laudelino Emílio, 2003

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O primeiro projecto de recolha oral desenvolvido no Ecomuseu Municipal do Seixal decorreu em 1988, com recurso a colaboradores externos à equipa, ligados à Educação de Adultos. Entrevistaram-se vinte e quatro trabalhadores da construção naval (carpinteiros de machado e calafates), um pescador e seis outros indivíduos, sobre a temática da vida quotidiana concelhia. Os suportes que contêm este importante acervo imaterial são cassetes e bobines, sujeitos a particulares cuidados de conservação devido à sua antiguidade e fragilidade. As entrevistas realizadas no âmbito deste levantamento, nomeadamente as que se referem à construção naval e à pesca, começaram a ser transcritas recentemente no âmbito de um aprofundamento da pesquisa sobre o património náutico do concelho do Seixal, tendo-se obtido até ao

Conhecer

A generalização da prática da recolha oral no âmbito das ciências sociais e humanas ocorreu nos Estados Unidos da América em meados do século passado na sequência da mudança de mentalidade de alguns investigadores que entenderam que a história não se deve fazer apenas com as elites mas também com os cidadãos comuns e mesmo com as denominadas minorias. O factor tecnológico que deu impulso a este movimento foi o surgimento dos gravadores de cassetes que implicaram maior mobilidade e baixos custos de gravação.


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presente importantes testemunhos sobre aquelas actividades passadas, de extrema importância para a comunidade local. “Eu o que me lembra era quando os barcos chegavam ao Seixal, era muitos pescadores, a terra era outra coisa. Era uma terra alegre, uma terra viva e quando eles andavam ao mar, isto era uma terra morta”. António Cândido Quintino - Pescador (1988). “A bandeira da Câmara, eu até tenho uma quadra sobre isso, é o macete, a enxó e o machado. O machado do carpinteiro de machado e a enxó e o macete é a peça principal de um calafate que é a minha profissão, eu tenho uma quadra sobre isso: à beira mar fica o Seixal com os seus lindos canteiros, terra de construção naval, pescadores e corticeiros”. Carlos Tavares Gonçalves - Calafate (1988). Com a municipalização da fábrica Mundet em Dezembro de 1996 e a constituição da equipa de estudo e inventário do património industrial do Ecomuseu Municipal do Seixal, os projectos de recolha oral tomaram lugar sistemático no trabalho de investigação planificado, abarcando, entre outros temas, as Desenho de reconstituição funcional de Lagar de Azeite do Pinhalzinho © Mª João Cunha indústrias, as quintas e a sua produção agrícola, as actividades económicas artesanais, o comércio tradicional, o abastecimento público de água, as festas religiosas e as famílias que pelas actividades de várias gerações se destacaram no Concelho. Numa breve contextualização do território correspondente ao actual concelho do Seixal, importa referir, quer as actividades ribeirinhas como a pesca, a construção naval e o tráfego fluvial, quer as actividades agrícolas, pois o Seixal foi um concelho marcadamente rural até à segunda metade do século XIX, altura em que se iniciou o desenvolvimento industrial, com a instalação de unidades fabris nos sectores da produção têxtil, vidreira, química, de pólvora e corticeira. No âmbito das actividades agrícolas tiveram uma abordagem especial a produção das quintas existentes no Seixal, os lagares de vinho e os lagares de azeite. Acerca destes últimos gostaríamos de salientar, no trabalho de campo desenvolvido no Lagar da Quinta do Pinhalzinho, a componente de recolha oral desenvolvida, que permitiu identificar espaços funcionais, descrever pormenorizadamente o trabalho do lagareiro e caracterizar actividades complementares desde o olival ao comércio ambulante, passando pelo fabrico de utensílios. Face à sua importância, outras actividades tradicionais foram objecto de levantamento oral e de registo de testemunhos: do tanoeiro Arménio Guímaro de Matos que se estabeleceu na Torre da Marinha em 1954; de tipógrafos, nomeadamente João Costa, a quem o Ecomuseu Municipal do Seixal adquiriu equipamento; dos caleiros Júlio do Rosário Simões e José Antunes para esclarecimento de questões relacionadas com o Forno de Cal da Azinheira que integra o projecto de Circuito Museológico Industrial do Concelho do Seixal; do aferidor Francisco Maria Rego de Almeida que durante trinta e dois anos de actividade na Câmara Municipal do Seixal aferiu e conferiu diversos equipamentos para algumas empresas, entre as quais, a Mundet, a Wicander, a Queimado & Pampolim e ainda a Siderurgia Nacional, sendo ele próprio testemunha de parte da história industrial do Concelho. Por fim, a temática do comércio tradicional no âmbito da qual se realizou um trabalho que permitiu classificar e identificar algumas lojas de comércio tradicional ainda existentes no concelho tais como: retrosarias, mercearias, tabernas, padarias, barbearias, oficinas de sapateiro e farmácias. A ruralidade do Concelho e as mudanças introduzidas com a implantação das diversas fábricas que marcaram durante anos o pulsar da vida quotidiana dos habitantes são assuntos recorrentes nas diversas entrevistas realizadas:


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“Ninguém tinha trabalho. A Amora era uma terra pobre mas depois uns senhores alemães pensaram em fazer uma fábrica de vidros onde é hoje os produtos, onde trabalhava o meu pai. (...) Quando abriu a fábrica dos vidros veio muita gente desviada lá de cima da província com os bolsos cheios de dinheiro. Vendiam as terras para vir viver para esta terra porque havia uma fábrica”. Pastora Baptista Lira – Doméstica (2002). No âmbito do levantamento patrimonial das indústrias concelhias, desenvolveram-se projectos de recolha oral sobre diversas fábricas, entre as quais, a Companhia de Lanifícios de Arrentela, a Indústria de Têxteis Artificiais, a Mundet, a Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços e a Siderurgia Nacional - Empresa de Serviços. Em 1997, teve início a recolha oral reportada à Companhia de Lanifícios de Arrentela. Não obstante a degradação dos imóveis e a quase total ausência de equipamentos, o facto das entrevistas terem sido realizadas no interior da fábrica e de os entrevistados terem fornecido descrições pormenorizadas, permitiu fazer a reconstituição do espaço, da cadeia operatória e dos equipamentos. Para além disso, foi possível obter testemunhos sobre as vivências dos operários, como o que se segue e que remonta à década de 40 do século passado: “Aquilo não tinha condições nenhumas, aquilo era frio, era vidro por cima e estava a pingar geada por cima da gente e às vezes lá o rapaz que estava lá a mandar enchia uns latões grandes de fogareiro de carvão (...) e andava a empurrar para ao pé da gente para a gente ter tino nas mãos para dar os nós e fazer aquilo tudo”. Mariana Evangelista Rodrigues – Operária da Companhia de Lanifícios de Arrentela (1997). Ainda no ramo da indústria têxtil desenvolveu-se um projecto de recolha oral na Indústria de Têxteis Artificiais, a uma escala menor e com a condicionante de ter sido feito no exterior da fábrica. Contudo, o facto de se ter abrangido um número considerável de trabalhadores abarcando diferentes categorias profissionais permitiu fazer uma reconstituição do espaço fabril e da cadeia operatória ali desenvolvida. Na sequência deste projecto, o afinador de máquinas António Brás vem colaborando com o museu na recuperação de um tear mecânico do seu acervo. No que se refere à fábrica Mundet, o levantamento oral junto de antigos trabalhadores iniciou-se também em 1997 com o objectivo principal de utilizar essas fontes no estudo do património industrial Trabalhadores do Alto Forno da S.N. da fábrica para a contextualização, a inter© EMS/CDI, Rosa Reis, 1999 pretação e a compreensão dos sistemas e equipamentos da produção, das relações técnicas, das práticas sociais, do saber-fazer, da inovação e dos modos de vida dos operários corticeiros. "Íamos todos juntos até à Mundet, descalços, com camadas de geada, que às vezes a gente tem frio, mas o próprio andar aquecia-nos, descalços e com umas alpercatas com a sola de borracha por cima de pano (...), debaixo do braço por baixo, porque quando passasse o portão tinha de ir calçada”. Carmelinda Miranda - Operária da Mundet (2001). Até ao momento tem-se privilegiado o estudo e a interpretação das diferentes oficinas e instalações sociais da fábrica abrangendo um espectro variado de categorias profissionais, sendo que o registo dos testemunhos visa a valorização do património industrial da fábrica. Ao contrário do que sucedeu noutros projectos, o trabalho de campo encontra-se condicionado pelo facto de a equipa ter desde o início lidado com a fábrica desactivada (o seu encerramento data de 1988), não obstante, sempre que

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possível, as entrevistas serem realizadas no sítio, nomeadamente na secção e junto aos equipamentos com os quais o entrevistado trabalhou. Um outro projecto de recolha oral, que decorreu paralelamente a um levantamento fotográfico exaustivo, teve lugar na Sociedade Africana de Pólvora, em Vale Milhaços, entre 1998 e 2002, numa altura em que já se perspectivava o seu encerramento. Usufruindo da mais-valia representada pela manutenção em actividade de todo o circuito de produção da pólvora negra e da colaboração de todos os funcionários da empresa, registou-se o processo de fabrico e os modos de funcionamento dos equipamentos técnicos empregues, nomeadamente da máquina a vapor. Os depoimentos recolhidos deram ainda a conhecer a memória da comunidade formada pelos operários residentes no bairro da fábrica. A vizinhança de dezenas de anos desenvolveu fortes laços de solidariedade e favoreceu a emergência de Arsénio Silva, antigo trabalhador da Mundet centros de convívio e de recreio dinamiza© EMS/CDI, Carlos Carrasco, 1998 dos pelo Grupo Boa União, organizador de torneios de futebol e de diversas festas, entre as quais as dos santos populares. Finalmente, a Siderurgia Nacional - Empresa de Serviços onde, entre Junho de 2000 e Março de 2001, se desenvolveu a componente de recolha oral como complemento ao levantamento funcional, incluindo o registo fotográfico do processo produtivo e instalações que se havia iniciado em 1999. Realizaram-se entrevistas a 81 trabalhadores seleccionados de acordo com a sua categoria profissional, uma vez que se procurou abranger todas as profissões existentes em cada uma das secções da fábrica. Deste projecto, resultou o registo dos testemunhos dos operários da única siderurgia integrada do País e a apreensão da sua memória colectiva, fundamental para a história do Concelho onde a implantação desta indústria e a consequente migração de centenas de trabalhadores foi estrutural. “(...) a consciência que eu tinha nessa altura era de que era bom, aquilo que se dizia era que era bom para o concelho porque entretanto a Mundet estava a começar em crise, era bom porque trazia emprego, trabalho para as pessoas. Agora se eu for pensar hoje, eu diria que este concelho era um jardim, era muito mais bonito e tudo isso foi danificado (...) a ideia que eu tinha e que eu penso que as outras pessoas tinham era uma coisa que ia fabricar aço, que a gente não dizia que era aço, dizia que era ferro e que ia montar automóveis e montar sei lá o quê, não tinha ideia. Eu lembro-me que havia pessoas que diziam:“aquilo vai fazer tanto calor que aqui nem se pode viver”. Albertino dos Santos Ramião - Operário da Siderurgia Nacional (2000). Os registos efectuados têm sido divulgados pelo Ecomuseu Municipal do Seixal em diversas iniciativas: desde a exposição Com os homens do aço. Jornada memória no Alto Forno da Siderurgia Nacional patente no Núcleo da Mundet e em materiais como o catálogo da exposição, o vídeo Com os homens do aço. História, memória e património e o folheto sobre o Alto Forno da Siderurgia Nacional, relativamente ao qual existem intenções de recuperação e musealização apesar de não estar ainda definido nenhum projecto nesse âmbito. Não obstante a diversidade de níveis de aprofundamento e de resultados obtidos pelos projectos de recolha oral desenvolvidos pelo Ecomuseu Municipal do Seixal, e apesar de várias condicionantes de execução, face aos objectivos propostos, actualmente o Ecomuseu integra um acervo imaterial vasto e de enorme importância para o estudo da memória social e da história contemporânea do concelho do Seixal, cujo tratamento e divulgação se associarão ao trabalho de investigação e de programação museológicas. [Elisabete Curtinhal]


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A importância patrimonial dos moinhos de maré existentes no Seixal foi reconhecida pelo Decreto do Governo nº 29/84, de 25 de Junho, que os classificou como Imóveis de Interesse Público. Cumpridos 20 anos sobre a sua classificação patrimonial, torna-se pertinente reflectir sobre o contexto que envolveu todo o processo. Apesar de reconhecido o seu valor memorial, tem sido notória a inexistência de sinergias que garantam a criação das condições necessárias à sua subsistência, o que nos faz recordar a lapidar observação de Ramalho Ortigão: "A autoridade, incerta, vagamente definida, a quem tem sido confiada a conservação e a guarda da nossa arquitectura monumental, procede com esse enfermo, de quem se incumbiu de ser o enfermeiro, por dois métodos diferentes: umas vezes deixando-o morrer; outras vezes, para que ele mesmo não tome essa resolução lamentável, assassina-o." (O Culto da Arte, publicado em 1896 com dedicatória à Comissão dos Monumentos Nacionais). Tendo sido referenciados já em 1965 num estudo sobre os moinhos de maré em Portugal apresentado ao I Simpósio Internacional de Molinologia, que se realizou nesse ano no nosso País, estas estruturas moageiras, abandonadas no decurso do século XX e já então em processo de degradação, foram gradualmente chamando a atenção de determinados sectores da sociedade, quer pela existência de um conjunto significativo deste tipo de edifícios no território correspondente ao concelho do Seixal quer pelo estado de conservação de alguns deles, nomeadamente o Moinho de Maré de Corroios, que sempre se manteve em funcionamento. Esta maior atenção coincidiu com a introdução e difusão de novos conceitos relacionados com a protecção do património arquitectónico, que se traduziriam num alargamento da própria noção de património e na reformulação da noção de monumento. De facto, se a Carta de Veneza, publicada em 1964 na sequência do II Congresso Internacional de Arquitectos e Técnicos de Monumentos Históricos, consagrou um novo conceito de "monumento", passando a considerar como tal não apenas as grandes criações arquitectónicas, mas também os conjuntos urbanos ou rurais, incluindo as obras consideradas modestas, mas às quais se reconhece valor cultural pela sua importância histórica, arqueológica, artística, científica, técnica ou social, a Carta Europeia do Património Arquitectónico, proclamada no Congresso sobre o Património Arquitectónico Europeu, realizado em 1975 em Amesterdão, veio afirmar que o património arquitectónico testemunha a presença da História e a sua importância na vida, constituindo uma parte essencial da memória da Humanidade, sendo imperiosa a sua transmissão às gerações futuras. As transformações políticas e sociais que ocorreram em Portugal após o 25 de Abril de 1974 favoreceram, quer a introdução de novos conceitos relativos à protecção patrimonial quer a eclosão de movimentos associativos locais de defesa do património. O próprio Movimento das Forças Armadas promoveu a Campanha de Dinamização Cultural e Acção Cívica, que decorreu entre Outubro de 1974 e Outubro de 1975, através da qual pretendeu promover a cultura popular e democratizar a cultura, tendo subjacente a ideia de que "A cultura não se impõe: a cultura nasce do povo (...)" (Movimento - Boletim Informativo das Forças Armadas, nº 4, 12 de Novembro de 1974). Neste contexto, foi implementado, no Verão de 1975, o Plano de Trabalho e Cultura, desenvolvido sob a concepção e a liderança de Michel Giacometti, com o objectivo de efectuar um levantamento patrimonial a nível nacional, que terá influenciado muitos dos levantamentos patrimoniais de âmbito local ou regional que se vieram a desenvolver nos anos subsequentes. Entre as diversas Associações de Defesa do Património que desenvolveram actividades a nível local nas décadas de 1970 e 1980, o Grupo de Investigação e Divulgação Científica (GIDC), sediado em Almada (e posteriormente com um núcleo constituído na Escola Secundária de Amora), promoveu a reflexão sobre a questão das alternativas energéticas e, por essa via, abordou a produção de energia hidráulica, dando enfoque ao estudo dos moinhos de maré, em particular aos que se localizavam no Seixal. Das actividades em que se envolveu e de que nos são dadas notícias através do Suplemento "Divulgação Científica", editado pela referida associação no Jornal de Almada entre

Património Cultural do Concelho

Moinhos de maré do Seixal: 20 anos de classificação


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Março de 1977 e Outubro de 1983, destaca-se, em Junho de 1978, a organização de uma exposição sobre Meio Ambiente no âmbito da qual ocorreu um colóquio sobre alternativas energéticas que contou com a participação do investigador Eurico da Fonseca, tendo sido feitas alusões aos moinhos de maré do Seixal. Já em 1980, na sequência da realização em Tróia de um Encontro Nacional de Grupos Ecologistas, foi programada, enquanto actividade conjunta a diversas associações, uma Campanha de Defesa do Património dedicada aos Moinhos de Maré. Em resultado do trabalho desenvolvido pelo GDIC relacionado com esta temática, foi inclusivamente produzido pela RTP, em 1981, um documentário sobre os Moinhos de Maré do Seixal. Paralelamente, foi apresentado ao IV Congresso Nacional de Arqueologia, realizado em 1980, um trabalho sobre estas estruturas moageiras. Na mesma época, a preservação dos moinhos de maré do Seixal constituiu também uma preocupação do poder político local. Data de Fevereiro de 1976 a primeira intervenção formal da Comissão Democrática Administrativa da Câmara Municipal do Seixal, que havia sido eleita em Plenário de Moradores realizado na Sociedade Filarmónica União Seixalense em 1974, tendo em vista assegurar a protecção dos moinhos de maré existentes no Concelho. Em ofício datado de 27 de Fevereiro desse ano, complementado com diversas fotografias dos imóveis a que se aludia, e assinado pelo então Presidente da Comissão Administrativa, Eufrázio Filipe Garcês José, enviado à Comissão Nacional para o Ano do Património Arquitectónico Europeu, que se assinalou em 1975, alertava-se para a falta de protecção a que estavam sujeitos estes edifícios, referenciando-se a recente destruição do Moinho de Maré da Raposa, demolido aquando da construção da Estrada Municipal de ligação entre a Amora e a Arrentela sobre o rio Judeu, assim como o igualmente recente aterro da caldeira do Moinho de Maré do Breyner, que contribuiu para a destruição do conjunto e da paisagem. Solicitava-se o apoio e intervenção daquela Comissão Nacional, dado faltarem à Câmara Municipal do Seixal "os meios necessários ao seu completo levantamento e estudo" e expressava-se a aspiração de se "iniciar o processo que evite outras inúteis destruições" (Arquivo do IPPAR, Processo de Classificação dos Moinhos de Maré do Seixal, Ofício nº 1068 da Câmara Municipal do Seixal, de 27 de Fevereiro de 1976). A 25 de Março de 1976, a Comissão Nacional para o Ano do Património Arquitectónico Europeu remeteu o referido ofício à Direcção-Geral do Património Cultural, dependente da Secretaria de Estado da Cultura, então tutelada pelo Ministério da Comunicação Social, que entendeu ser útil solicitar à Associação Portuguesa dos Amigos dos Moinhos (APAM) o envio de elementos relativos aos moinhos em causa "que possibilitem o seu estudo, com vista à sua classificação" (Arquivo do IPPAR, Processo de Classificação dos Moinhos de Maré do Seixal), pedido esse que se formaliza em Abril de 1976. Em resultado desta solicitação, em 24 de Junho de 1981, a APAM remete ao Instituto Português do Património Cultural um processo contendo 27 folhas dactilografadas, 18 mapas e plantas e 24 fotografias, que constitui o resultado do levantamento efectuado a pedido da Direcção-Geral do Património Cultural, o qual foi remetido, em Setembro de 1981, para apreciação de uma comissão presidida pelo Dr. João Manuel Bairrão Oleiro. Ainda no mesmo ano, e na sequência da sessão da Câmara Municipal do Seixal de 12 de Junho, é remetido um ofício ao Presidente do Instituto Português do Património Cultural (IPPC), em que se solicitava a classificação dos moinhos de maré do Seixal. É emitido pelo IPPC um parecer favorável a esta solicitação atendendo à "raridade dos conjuntos existentes em Portugal, o seu valor artístico e histórico e constituírem elementos notáveis da categoria tipológica - arquitectura industrial". Entretanto, a 28 de Janeiro de 1982, a deputada Ercília Talhadas, do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, apresenta um requerimento ao Governo sobre os moinhos de maré do Seixal. Na sequência desta intervenção, a Presidência do Conselho de Ministros, através do Gabinete do Ministro de Estado adjunto do Primeiro-Ministro solicita informações ao Ministério da Cultura e da Coordenação Científica e, a 20 de Abril de 1982, informa-se a Câmara Municipal do Seixal sobre o despacho favorável do Secretário de Estado da Cultura à classificação dos moinhos de maré do Seixal como imóveis de interesse público. A 21 de Dezembro de 1982, começaram a ser oficiados os proprietários dos moinhos de maré relativamente aos processos de classificação em curso, alguns dos quais mani-


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festaram a sua discordância, havendo mesmo quem já tivesse projectado a demolição das estruturas existentes. A Siderurgia Nacional, proprietária da Quinta da Palmeira, chegou inclusivamente a negar a existência de qualquer moinho de maré na sua propriedade. Tendo esta questão merecido a análise da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo que se pronunciou acerca de um recurso apresentado pela Siderurgia Nacional, E. P. relativamente ao Moinho de Maré da Quinta da Palmeira, foi emitido, a 22 de Outubro de 1987, um acórdão em que se afirma: "A circunstância de o moinho se encontrar em ruínas não lhe retira o interesse artístico, histórico ou turístico que o IPPC entende que se mantém apesar de conhecer o seu estado". Em Janeiro de 1983, foi publicado pela Câmara Municipal do Seixal um edital relativo ao processo de conservação dos moinhos de maré, tendo sido visitados por solicitação do IPPC, no decurso desse ano, a maior parte dos edifícios por técnicos da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais integrados na Direcção de Serviços Regional de Lisboa, de que resultou a elaboração de um relatório técnico em que se preconizavam as medidas de reparação e consolidação dos edifícios entendidas como necessárias e urgentes.

Moinho de Maré da Quinta da Palmeira, 1958

Finalmente, após ter sido reconhecida pelo IPPC a importância destes edifícios e o seu "interesse cultural, como exemplar de arquitectura industrial, sendo aliás de notar a sua raridade em Portugal", foi publicado a 25 de Junho de 1984 o Decreto do Governo que permitiu a salvaguarda deste conjunto patrimonial. No entanto, o único edifício onde de facto se promoveram obras sistemáticas de conservação e cujo funcionamento se tem vindo a garantir é o Moinho de Maré de Corroios, adquirido pela Câmara Municipal do Seixal em 1980 e posteriormente aberto ao público como núcleo museológico integrado no Ecomuseu Municipal do Seixal. A acompanhar a exposição instalada no local, a Câmara Municipal do Seixal editou em 1986 uma monografia da autoria de António Nabais, intitulada História do Concelho do Seixal. Património industrial - moinhos de maré, a qual se integra num conjunto de publicações que resultam do trabalho desenvolvido pelo grupo de trabalho que desde 1979 procedeu, por determinação da Autarquia, ao Levantamento Histórico-Cultural do Concelho. Actualmente encontra-se em desenvolvimento um programa de qualificação do Núcleo do Moinho de Maré de Corroios, o único que subsiste em condições de funcionamento no Estuário do Tejo, sustentado num projecto de investigação que pretende servir de suporte à preparação da exposição evocativa dos seus 600 anos e simultaneamente documentar a actividade desenvolvida pelos moinhos de maré do Seixal. Incidindo, não só no edifício em si mas também na sua envolvente, tem subjacente o propósito de contribuir para a valorização da experiência concreta de uma comunidade local e do seu evoluir histórico, dando significado humano a determinados elementos patrimoniais - no caso, os moinhos de maré do Seixal - na certeza de que a História, longe de obedecer a objectivos contemplativos ou regionalistas, desempenha um papel fundamental na formação e activação da cidadania e na formulação de estratégias propiciadoras do desenvolvimento local. [Cláudia Silveira]

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Histórias e memórias de trabalhadores siderúrgicos Uma das componentes do trabalho de campo desenvolvido, entre 1999 e 2001, pelo Ecomuseu Municipal do Seixal no âmbito do levantamento patrimonial da Siderurgia Nacional – Empresa de Serviços, S.A. foi a recolha oral, tendo sido realizadas entrevistas a 81 trabalhadores de várias secções da fábrica. Não obstante a diversidade das histórias de vida e das experiências enquanto operários da indústria siderúrgica, dos discursos narrativos dos entrevistados fazem parte histórias e representações comuns que, ultrapassando o nível da memória individual, concorrem para uma memória social do colectivo de trabalhadores da Siderurgia Nacional. Em Outubro de 2000, próximo do seu encerramento, trabalhavam na SN – Empresa de Serviços 798 operários, uma ínfima parte dos 6350 que fizeram parte dos quadros da Siderurgia Nacional em 1982, antes dos planos de reestruturação delineados entre as décadas de 70 e 90 do século passado, tendo sido em meados desta última que se deu a sua cisão e privatização.

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Memórias e Quotidianos

Trabalhador da Coqueria © EMS/CDI, Rosa Reis, 2000

A referência a estes acontecimentos que se revestiram de extrema importância para a evolução da empresa é pertinente, uma vez que, inevitavelmente, as memórias dos trabalhadores são, simultaneamente, reflexo e complemento da história daquela que foi a única fábrica siderúrgica do nosso País a produzir aço pela via integrada, isto é, pela transformação das matérias-primas em gusa na instalação do Alto Forno. Quando em 1961 a empresa iniciou a sua produção, a maioria dos trabalhadores, oriundos de várias regiões do país (sobretudo do Alentejo), com experiências profissionais fora do mundo de trabalho fabril e à procura do primeiro emprego estável após o cumprimento do serviço militar obrigatório, aspiravam a um começo de vida que, à semelhança do que então se previa para a empresa, seria promissor: “Na altura era um trabalho certo, não havia problemas de emprego, era uma coisa que a gente via que não ia acabar, todas as empresas tinham um fim e esta era uma empresa única em Portugal, em princípio toda a gente dizia que isto não acabava”. Joaquim Botelho – Vazador na área do vazamento contínuo – Aciaria (19/10/2000). Aquando do ingresso na fábrica e à excepção de alguns quadros médios e superiores, a generalidade dos operários, sobretudo dos que iriam estar afectos às áreas de produção propriamente ditas, desconheciam as instalações fabris, o processo produtivo e obviamente o conteúdo funcional das profissões a que estavam destinados, algumas delas recém-criadas precisamente com a introdução da indústria siderúrgica no País: “(...) a grande maioria era mão-de-obra não especializada, mão-de-obra oriunda na maioria do Alentejo, pessoal que estava, a vida deles era a agricultura, digamos assim (...) e considero que as pessoas que arrancaram com aquela fábrica e conseguiram produzir aço, para mim, foram uns autênticos heróis. Houve ali pessoas que foram uns autênticos heróis, trabalhadores anónimos”. Albertino Ramião – Secção da Laminagem (11/07/2000). Apesar de uma parcial automatização de equipamentos levada a cabo na empresa e do desenvolvimento de esforços para melhorar os ambientes de trabalho, o que é facto é que até ao encerramento da Empresa de Serviços os trabalhadores debateram-se com más condições


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de trabalho, nalguns casos agravadas pela degradação de algumas instalações. À poluição causada pelo excesso de pó, gás e ruído, acrescia a exposição a altas temperaturas inerente à indústria em questão. Uma vez que nem todas as instalações foram alvo de processos de modernização, algumas tarefas exigiam ainda grande esforço físico.As doenças profissionais mais comuns entre os operários eram a silicose (vulgarmente chamada de pó nos pulmões) e outros problemas do foro respiratório, o reumatismo e deficiências visuais e auditivas. Por fim, o facto da Siderurgia Nacional ter sido uma fábrica de funcionamento ininterrupto obrigava à realização de turnos causadores de distúrbios do sono, alimentares e da vida familiar: “Desde gases, fumo, calor, vou empregar uma expressão talvez um bocado dura: força bruta que é quase o que se trabalha ali, altas temperaturas que é o pior que pode haver e mal pago!”. José Colaço – 2º fundidor – Alto Forno (30/08/2000). “Eu já faço turnos há 19 anos seguidos, nos turnos não há horas para comer, não há horas para dormir, isto ao longo dos anos a pessoa descontrola-se. Basta dizer que quando vou de férias, a primeira semana não durmo bem”. Armando Gonçalves – Operador de regulação – Subprodutos da Coqueria (28/06/2000). Tendo em conta que, em 2000, parte significativa dos trabalhadores tinham uma antiguidade na fábrica superior a 25 anos, facilmente se percebe a importância que tinham para os mesmos a criação de laços de amizade, as situações de entreajuda no local de trabalho e as formas de convívio dentro e fora da empresa. Contudo, existiam conflitos suscitados, sobretudo nos últimos anos, pelo recurso a trabalhadores externos, pelas diferenças salariais e pela perspectiva de encerramento que trouxe consigo a pré-reforma apenas a uma parte dos trabalhadores, mas o balanço de um trabalho colectivo de décadas era essencialmente positivo: “A gente constrói aqui uma família, portanto, a gente estamos oito horas com os nossos filhos e com a nossa mulher e aqui estamos doze, treze, catorze, quinze, portanto, é uma família”. Asdrúbal Morais – Pontista – Aciaria (17/10/2000). Apesar das diferenças e das dificuldades,os trabalhadores siderúrgicos uniram-se ao longo dos anos em redor de objectivos e princípios comuns: pela construção de uma vida estável e pelo crescimento da única siderurgia portuguesa. Como já foi referido, o percurso da Siderurgia Nacional não foi tão promissor como se previra nos anos 60. O abandono do Plano Siderúrgico Nacional, a adesão à então Comunidade Económica Europeia e, posteriormente, a cisão da empresa conduziram ao que alguns trabalhadores chamaram de princípio do fim da Siderurgia Nacional: “Uma coisa é nós estarmos a tratar de um neto que acabou de nascer e outra coisa é nós estarmos a tratar de um avô que já tem 90 anos.A gente com o neto está sempre com perspectivas, o que é que vai ser? O avô com 90 anos, o que é que a gente pode esperar dele?”. Albertino Ramião – Secção da Laminagem (11/07/2000). Com o encerramento da Empresa de Serviços em Março de 2001, desapareceram do panorama laboral nacional algumas profissões específicas e inerentes à produção do aço. Grande parte dos trabalhadores que não foram abrangidos pela pré-reforma por terem uma idade inferior a 50 anos enfrentaram sérias dificuldades de reintegração no mercado de trabalho (que nalguns casos se mantêm na actualidade) devido à experiência profissional inadequada para o exercício de funções noutros sectores e a existência de problemas de saúde: “Encontro-me numa situação em que nem dá para ir trabalhar para outra empresa, tenho já esta idade e mais a mais a trabalhar numa siderurgia, nem dá para ir para a pré-reforma. É de lamentar que ao fim de vinte anos a trabalhar numa empresa de alto risco seja despejado para o fundo de desemprego, encaro com um bocado de tristeza esta situação”. José Leitão – Encarregado – Aciaria (17/10/2000). Para concluir, é de referir ainda que do discurso narrativo dos entrevistados faziam parte menções ao Alto Forno, simultaneamente como o símbolo da Siderurgia Nacional e como o único testemunho patrimonial com a carga simbólica necessária para assegurar a transmissão da memória colectiva dos homens do aço portugueses. Neste sentido, a existência de um projecto para a sua salvaguarda reunindo o consenso da esmagadora maioria dos trabalhadores, deve fazer parte da política de reconversão urbana do espaço industrial: “Sempre houve na tradição da Siderurgia Nacional, a parte emblemática da Siderurgia era o Alto Forno”. Vítor Bernardes – Responsável pela Rede Eléctrica (28/02/2001). “Isto é um património do concelho do Seixal, da indústria siderúrgica”. Augusto Gatinho – Operador de vazamento – Aciaria (19/10/2000). [Elisabete Curtinhal]

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