Ecomuseu Informação N.º 32 – Julho | Agosto | Setembro 2004

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Para além da distribuição praticamente integral dos 6000 exemplares do Eco-Info que constituem a sua tiragem (sublinhando-se que cerca de metade desses exemplares é distribuída personalizadamente ou a instituições, por endereçamento postal), muitos interessados acedem à sua edição electrónica, a avaliar pelo número de visitantes do subsite www.cm-seixal.pt/ecomuseu e que desejavelmente deve ser incrementado.

JUL.

O que pensa do(s) Ecomuseu(s)? Pág. 16 - Em debate e http://www.cm-seixal.pt/ecomuseu - Ecomuseus em debate

Índice 3. Exposições Sobre o território e o património industrial do Seixal 4.5. Programa de Iniciativas do Serviço Educativo 6.7. Tema de Reflexão Os museus conservam (?)

Nº 8.9. Conhecer Conhecer a população antiga do Seixal e de Arrentela através da Arqueologia e da Antropologia 10.11.12. Memórias e Quotidianos Do quotodiano fabril aos tempos de lazer: memórias de trabalhadores da Mundet

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SET.

O Ecomuseu Informação é dirigido à leitura e à consulta, ora por quem já é utilizador e visitante do Ecomuseu, ora por quem está potencialmente interessado em conhecer o território do concelho do Seixal através do seu património cultural, incluindo o património incorporado e gerido nesta estrutura museológica, sob a tutela municipal. Trata-se, portanto, de um meio de difusão museológica complementar às exposições e aos serviços quotidianamente promovidos pela Câmara Municipal do Seixal e, tal como estes, destinado aos que, individualmente ou em grupos, nomeadamente por laços de convívio e/ou familiares, frequentam os núcleos museológicos ou navegam nas embarcações tradicionais. É um meio destinado a estudantes, professores e grupos escolares, e, directa e indirectamente, a apoiar actividades que envolvem adultos, jovens e crianças, a comunicar regularmente resultados do trabalho do Ecomuseu junto dos seus Amigos e Doadores e, porventura, a partilhar informação e experiências com outras entidades e organizações com missões afins.

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Estreitar relações entre os públicos, as comunidades e o património

AGO.

Boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal

I S S N : 0 8 7 3 - 6 1 9 7 • Depósito Legal: 106175/96 • Tiragem: 6000 exemplares

Ecomuseu Informação

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13.14.15.16. Património Cultural do Concelho O Núcleo Urbano Antigo de Arrentela 17. Em Debate Perspectivas sobre os Ecomuseus 18.19. Agenda


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Não substituindo de modo algum a vertente essencial da comunicação museológica, as exposições temporárias e de longa duração, este boletim trimestral é sem dúvida um importante esforço da acção educativa e da valorização do património enquanto suporte de identidades locais, como bens colectivos e enquanto testemunhos vitais da evolução do território. Desde a escolha dos temas até à pesquisa, à selecção e à apresentação dos conteúdos dos artigos e dos assuntos divulgados, em cada novo número publicado, toda a equipa multidisciplinar que produz o Ecomuseu Informação trabalha com a expectativa de contribuir não só para estreitar (...) a construção duma relação relações entre os projectos museológicos duradoura dos públicos com o e as comunidades locais, ou os seus mempatrimónio passa por um trabros mais atentos ao desenvolvimento culbalho estruturado, continuado e tural e ao património, mas também exploperseverante (...), alicerçado rar e aprofundar interesses comuns de numa clara definição por parte comunidades e de públicos, se possível abrangendo nesta dinâmica os públicos da tutela a quem compete idenexteriores ao território do Concelho, contificar o lugar do museu na siderados essenciais para suscitar novos política cultural, assim como o olhares e interacções com os testemunhos modelo de gestão a seguir. culturais em que se centra o Ecomuseu. Para a valorização do património museológico, que sabemos ser um incontornável recurso do desenvolvimento sustentável, urge consolidar programas e projectos de qualificação e desenvolvimento, em primeira linha dos actuais núcleos e extensões do Ecomuseu, mas sem retirar de perspectiva outros sítios e conjuntos imperdíveis, como referências culturais de uma sociedade em mudança. Atribuímos grande importância ao alargamento do espectro de utilização de novas tecnologias nas ciências e técnicas do património, podendo o incremento da sua divulgação electrónica ser parte duma estratégia para conquistar novos públicos para os museus. Mas a construção duma relação duradoura dos públicos com o património passa por um trabalho estruturado, continuado e perseverante de toda uma equipa, alicerçado numa clara definição por parte da tutela a quem compete identificar o lugar do museu na política cultural, assim como o modelo de gestão a seguir. E será esse modelo de gestão a sustentar quer a aplicação equilibrada das várias funções museológicas ao património, quer a concretização de projectos, onde cada comunidade se reveja e os quais possa desenvolver, através do exercício da cidadania e recorrendo a instâncias de participação democrática, de tipo associativo, que os poderes instituídos e os próprios profissionais dos museus devem apoiar ou podem mesmo mediar. Qualquer processo de avaliação de e em museus nos parece bastante complexo, mas evidentemente indispensável quando se pensa num projecto de qualificação. O esperado novo enquadramento legal dos museus em Portugal, ainda que muito promissor, não virá, por si só, modificar as realidades museológicas do nosso país, mas constituirá decerto um notável contributo para quem, delineando ou ajustando as políticas culturais, proceda à avaliação do papel dos museus e para os que, no seu dia-a-dia, participem, por diversas formas, na aplicação dos recursos necessários à investigação e à difusão, à conservação e à valorização, à acção educativa e à fruição do património, nomeadamente quando incorporado e gerido pelos museus. [Graça Filipe]

Ficha Técnica Foto Capa

Ecomuseu Informação nº 32

Bote-de-fragata Baía do Seixal © EMS/CDI, Nelson Cruz, 1991

Edição

Direcção

Informação/Agenda

Impressão

Câmara Municipal do Seixal-Ecomuseu Municipal do Seixal

Graça Filipe

Carla Costa; Graça Filipe;

Textos/Investigação

Grafismo e Revisão

Grafema-Sociedade Grágica, SA

Graça Filipe; Ana Luísa Duarte; Jorge Raposo; Carlos Raposo; Carlos Carrasco; Fátima Afonso; Fernanda Ferreira; Fátima Sabino; João Paulo Santos

Sector de Apoio Gráfico e Edições

Tiragem

Créditos Fotográficos

ISSN

EMS/CDI; Rosa Reis; António Silva; Carla Costa; Ana Luísa Duarte; Luís Barros; Fernando Falcão; K4-Conservação e Restauro, Lda; Nelson Cruz

0873-6197

www.cm-seixal.pt/ecomuseu

6000 exemplares

Depósito Legal

106175/96


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3 Exposições sobre o território e o património industrial do Seixal Três novas exposições temporárias produzidas pela Câmara Municipal do Seixal, com programação e organização do Ecomuseu Municipal, convidam-no a conhecer melhor a história e a contemporaneidade do nosso Concelho, particularmente os percursos e os testemunhos da industrialização. As duas exposições temporárias visitáveis na Mundet são complementadas pelas iniciativas promovidas pelo Serviço Educativo do Ecomuseu.

Arrentela x Património de 10 a 18 de Julho, na antiga Companhia de Lanifícios de Arrentela

A exposição Arrentela "vezes" Património tem por principal objectivo potenciar a relação da comunidade local com o seu património e se possível aprofundar uma relação tanto de fruição, como de responsabilidade cívica. A exibição original desta exposição enquadra-se nas Festas Populares de Arrentela, respondendo ao interesse e a uma ideia CLA © EMS/CDI muito motivadora da respectiva Junta de Freguesia, através da qual se tem proporcionado a reutilização de espaços da antiga fábrica de lanifícios. Dedicada não só ao património industrial e à memória da CLA, mas também ao património arqueológico, arquitectónico e artístico da Freguesia, a exposição, que em Julho conta com a participação de antigos trabalhadores da fábrica, poderá ser posteriormente adaptada a outras espaços e contextos de divulgação.

Circuito Museológico Industrial - entre documentar o passado e projectar o futuro a partir de 17 de Julho, no Núcleo da Mundet do Ecomuseu - edifício das Caldeiras Babcock

O projecto do Circuito Museológico Industrial é apresentado aos visitantes a par do núcleo expositivo de interpretação do próprio espaço museológico e do equipamento conservado in situ e que por décadas produziu o vapor necessário à fábrica. Tratando-se de um dos eixos estruturantes do Programa de Qualificação e Desenvolvimento do Ecomuseu Municipal do Seixal (CMS, 2001) o Circuito Museológico Industrial inclui oito sítios e respectivos recursos patrimoniais, correspondendo a um espectro temático muito diversificado, da indústria, das energias, das matérias-primas, da ciência, da técnica e do trabalho (séculos XVIII/XXI). Entre os sítios contemplados, incluindo-se naturalmente a Mundet, contam-se o Moinho de Maré de Corroios, a Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços, o Forno de Cal da Azinheira, o Alto Forno da Siderurgia Nacional, os Lagares de Azeite do Pinhalzinho e da Cooperativa Agrícola de Almada e Seixal, e uma antiga seca de bacalhau da Ponta dos Corvos. Na exposição são visionáveis documentários temáticos em vídeo, sobre: a cortiça, na Mundet; a pólvora, em Vale de Milhaços; o aço, na antiga Siderurgia Nacional e nas actuais indústrias siderúrgicas do Concelho – SN Planos e Lusosider – e os processos tradicionais de moagem no Moinho de Maré de Corroios.

Produzir pólvora em Vale de Milhaços

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Exposição que descreve ao visitante o circuito da pólvora negra, licenciado e instalado em Vale de Milhaços a partir de 1894, assim como o ambiente e alguns aspectos da vida dos trabalhadores da única fábrica do Concelho que comemorou o centenário em actividade - no ano de 1998 - e em que se deu início a um projecto de musealização em contexto original de produção, tendo esta sido interrompida só em 2001. A exposição decorre do importante espólio fotográfico do Ecomuseu constituído ao longo dos últimos anos de funcionamento da fábrica, através dos registos irrepetíveis e singulares da fotógrafa Rosa Reis.

Exposições

A partir de 17 de Julho, no núcleo da Mundet do Ecomuseu - Edifício das Caldeiras de Cozer


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Os museus conservam (?) Para que o leitor não crie falsas expectativas face a um título que parece provocatório (ou, simplesmente,“non-sense”) e possa decidir passar à página seguinte, dizemos-lhe já ser reduzida a nossa sabedoria e pouquíssima a apetência para debates teóricos a acção, informada, consciente e responsável tem matéria que baste à nossa capacidade de reflexão, pelo que os deixamos àqueles que sabem duplamente fazê-lo: porque detêm um profundo conhecimento e sabem comunicá-lo, como é o caso do Professor e Engenheiro Luís Elias Casanovas, de quem aconselhamos vivamente a leitura do artigo “Conservar ou “des-Conservar”, publicado no Boletim da Rede Portuguesa de Museus (Set. 2003, 9: 9-11).

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Tema de Reflexão

Caixotão de tecto de madeira policromada durante o tratamento (limpeza da camada pictórica), in MANGUCCI, António Celso (2003) - Metamorfoses, Regra, Erudição. A iconografia das pinturas mitológicas no tecto da Quinta da Trindade. Seixal: Câmara Municipal do Seixal, p. 35 © EMS/CDI, K4 - Conservação e Restauro, Lda, 1999.

Vem este preâmbulo a propósito de duas ideias, certamente incompreensíveis para o comum dos mortais, isto é, para as pessoas e comunidades onde, com quem, de quem e para quem vivem (é mesmo este o verbo) os museus e os que neles trabalham. Contudo, ao que vamos ouvindo e lendo, este par de ideias é cientificamente estimulante para intelectuais e/ou cientistas que almejam mudanças de paradigma - “os museus não precisam de objectos”, dizem alguns; “os objectos não precisam dos museus”, dizem outros! Não procuraremos comentar nenhuma delas em particular, mas algo de comum a ambas: o esvaziamento ou mesmo desaparecimento da conservação enquanto função museal, entendendo que ela se dirige aos “objectos”, no sentido lato de “bens materiais”, e que, mais do que destino, é da natureza destes o desaparecerem, serem destruídos, morrerem. No entanto, tudo parecerá menos simples se pensarmos nos objectos não como realidades únicas, individuais, imutáveis, mas como entidades que partilham atributos com outras suas semelhantes. Os estudos tipológicos parecem indicar, pelo contrário, que é grande a sua capacidade de transformação e sobrevivência, a que acrescem os fenómenos de aquisição de novos significados e de refuncionalização - uma panela partida usada, mesmo que em parte, como material de construção num muro, desapareceu? É outro objecto? É duas coisas ao mesmo tempo? Para além disso, acontece que conservar, isto é, “manter em bom estado, não deixando que se estrague ou altere; fazer conservação; fazer continuar ou continuar a existir; não deixar desaparecer; não perder ou não deixar de ter; manter-se ou manter em certo estado; não deixar envelhecer” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, Editorial Verbo, 2001), é o que fazemos todos os dias, indivíduos e sociedades, tanto no plano da natureza como no da cultura, compelidos pelo instinto, pela emoção, pela razão, frequentemente por oposição ao seu contrário (mudar, reformar, substituir, perder), muitas vezes divididos, às vezes arrependidos. O primeiro objecto com que temos esta conflituosa relação conservar/destruir é com a nossa própria memória, mas têmo-la também com os afectos e com os objectos que nos rodeiam, desejados ou impostos, pois ora parecem essenciais à sobrevivência física, à afirmação da personalidade ou à perpetuação da nossa memória (o que vamos deixar para que nos recordem depois de morrermos), ora se nos afiguram inúteis, sem sentido, acabando mesmo no caixote do lixo uns, no sótão do esquecimento outros. O que somos, o que nos identifica, o que temos por referência, sejam crenças, valores


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ou bens materiais, é resultado de opções conscientes ou inconscientes de permanência e perda feitas pelos grupos sociais que nos precederem, e é exactamente isso o que fazemos nós próprios hoje, relativamente aos vindouros. Neste sentido, o museu (e antes dele e com ele outras entidades) não é mais do que uma criação social para ordenar e organizar este processo de perda de memória, e nesse facto reside, não sendo niilista, a sua responsabilidade. Enfim, e voltando ao princípio, sendo os objectos materialização de memória, testemunhos de vida,“pedaços da alma das pessoas”, como dizia recentemente Hugues de Varine (“Ecomuseus: que perspectivas, em Portugal, na Europa”, Seixal, 30 de Abril de 2004), não se vê como é que museus e objectos, mesmo que estes sejam apenas uma de entre as várias formas de registo de memória com que o museu trabalha, possam ser realidades dissociáveis e, portanto, que os museus possam alguma vez demitir-se da sua função de conservar. Se o fazem, cumprindo o código deontológico a que estão obrigados, ou não, é outra questão, de que não vamos agora ocupar-nos; nem tão-pouco do modo como, entre a quase sacralização de uns e a menorização, a roçar o desprezo, por outros, os objectos são considerados tanto pelos museus como pelo público - o alargamento do conceito de Património não destronou de todo a ideologia da obra-prima, a sobrevivência da História de heróis.

Pão grego antes e depois de tratamento, in TERRA Mãe... Terra Pão (1997) - Catálogo de exposição. Seixal: Câmara Municipal do Seixal, p. 163 © EMS/CDI, Ana Luísa Duarte,1996.

Aproximámo-nos do “conservar porquê” e “o quê”, falta o “como”. Retomando a etimologia da palavra e a analogia com a experiência de cada um, relativamente aos objectos que lhe são queridos, na maior parte dos casos é muito simples - “não perder ou não deixar de ter”, quer dizer pôr em lugar seguro para evitar roubos ou algum acidente; “manter em certo estado; não deixar envelhecer”, quer dizer arrumar bem, não deixar que o sol queime, a humidade crie bolor e as traças, o “peixinho de prata” ou outros bichos comam... as nossas cartas de namoro, aquela fotografia única do casamento dos nossos avós, a primeira roupa do bebé... E ainda explicar à nossa criança que não pode andar sempre a mexer-lhe, muito menos com as mãos sujas, nem dobrar ou atirar com aquelas coisas ao chão. Mas pode também acontecer que manter algo a funcionar, em vez de guardar quieto, seja mesmo a melhor maneira de conservar, tirando até daí alguma vantagem prática - é o caso da velha e belíssima máquina de costura que herdámos do avô alfaiate, ainda que o mesmo já não se possa dizer do ferro de engomar a carvão! Em qualquer caso, temos de ir olhando de vez em quando, para evitar algum desastre mais ou menos irrecuperável. Os museus têm, noutra escala, estes mesmos problemas para resolver e os mesmos princípios a seguir, chamando-se a isso “conservação preventiva”, para a distinguir de procedimentos mais complexos (“conservação activa” ou “curativa”) e com outras implicações, mas por vezes a única maneira de “salvar” os objectos. A condição simultânea de fonte, independentemente da sua natureza (matéria, técnica, função, idade, proveniência, valor material e simbólico, etc.) e de veículo de transmissão de informação (histórica, económica, antropológica, técnica, artística, etc.) é a razão que justifica a conservação de um objecto.Tornar clara e eficaz a mensagem de que é portador é, porém, um objectivo só conseguido quando nele/para ele confluem todas as demais funções museais, com destaque para a investigação e a comunicação, como é o caso dos exemplos que escolhemos para ilustrar este pequeno texto - um tecto de madeira policromada do século XVIII e... pão. [Ana Luísa Duarte]

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Conhecer

Conhecer a população antiga do Seixal e de Arrentela, através da Arqueologia e da Antropologia A Arqueologia é uma das disciplinas através das quais o Ecomuseu Municipal do Seixal enriquece gradualmente o acervo relacionado com o território do Município ou com as comunidades que historicamente lhe estão associadas. Pela prospecção ou escavação metódica do terreno, em resultado de achados ocasionais ou de acções planificadas, milhares de objectos são recolhidos, desencadeando as habituais rotinas de incorporação, tratamento e acondicionamento. Embora normalmente fragmentados, incompletos e a exigir cuidados de conservação, às reservas do Ecomuseu chega uma multiplicidade de artefactos cujo interesse reside no facto de nos permitirem conhecer a variabilidade do comportamento humano - ao promover a sua salvaguarda, estudo e interpretação, o Ecomuseu passa a dispor de fontes privilegiadas para o diálogo comunicacional com os seus públicos (do meio científico à comunidade local), contextualizando e ilustrando transformações culturais, sociais, técnico-cientíFase de escavação do ossário da Arrentela, ficas, institucionais, no plano simbólico e EMS/CDS © Ana Luísa Duarte, 1997) das mentalidades, etc. No entanto, por vezes deparamo-nos não com o produto da acção humana, mas com o que nos ficou depois da morte de homens, mulheres e crianças, isto é, encontramos os seus esqueletos quando são atingidos os espaços onde foram sepultados - porque, naturalmente, desconhecemos os locais reservados aos mortos pelas comunidades de períodos históricos mais recuados, e porque o tempo alterou esse tipo de práticas sociais. Por exemplo, sempre que se mexe no subsolo, dentro ou próximo de uma igreja, capela ou antiga ermida, é frequente que o achado de ossos e outro espólio associado justifique a intervenção de arqueólogos e de antropólogos. Em primeiro lugar, porque há que responder ao quando, como e porquê foram aquelas pessoas sepultadas naquele sítio e daquela forma; depois, porque os ossos e os dentes preservam informação valiosíssima, sendo possível a partir deles determinar o número de indivíduos e as suas características físicas (sexo, estatura, robustez), saber a idade à data da morte (e daí induzir a esperança média de vida ou a taxa de mortalidade infantil), identificar doenças de que padeceram e levantar hipóteses para as suas causas, conhecer os hábitos de higiene, as dietas alimentares predominantes e, consequentemente, as economias de subsistência e as ocupações profissionais mais marcantes, enfim, avançar no conhecimento de populações e de contextos culturais, económicos e sociais para que, frequentemente, não dispomos de fontes materiais, documentais ou outras. Por esta via sabemos hoje mais sobre as populações antigas de Arrentela e do Seixal, por exemplo - a demolição da anterior sede da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, em 1997, revelou um enorme ossário que se prolonga por debaixo do adro de acesso à capela mortuária da Igreja Paroquial de N.ª Sr.ª da Consolação; no Seixal, a remodelação total do interior do edifício com o n.º 2 da Rua 1º de Dezembro, no local onde se sabe ter existido a ermida de N.ª Sr.ª da Conceição, conduziu à identificação parcial das fundações deste imóvel e de 18 sepulturas. O espólio osteológico recolhido é abundante e justificou que, na sequência de uma parceria que o Ecomuseu vem mantendo com o Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, fosse desencadeado o seu estudo antropológico, através da empresa Bioanthropos. Esse estudo concluiu que as ossadas levantadas na Arrentela correspondem, no mínimo, a 172 indivíduos adultos e 10 de idades entre os 6 meses e os 16 anos o que, atendendo à pequena área intervencionada, nos dá uma ideia das centenas (ou milhares) de pessoas presentes na totalidade do ossário. O estado de conservação só permitiu caracterizar sexualmente 108 dos adultos: 56 homens e 52 mulheres, na sua maioria fale-


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cidos antes dos 50 anos; fisicamente robustos, tinham estaturas médias de 1,66 e 1,56 metros, respectivamente, e não aparentam ter desenvolvido actividade física particularmente violenta, apesar de haver casos de doenças articulares graves, nomeadamente artroses; perdendo muitos dentes em vida e ingerindo uma alimentação pouco abrasiva e pobre em hidratos de carbono, não praticavam quaisquer hábitos de higiene oral. Para além destas considerações gerais, podemos entrever eventos e histórias de vida particulares, como a daquele homem que quebrou completamente o fémur direito, tendo a regeneração óssea formado um calo que o deixou fortemente incapacitado; ou a de outro indivíduo adulto (de sexo indeterminado), a quem uma luxação no braço direito provocou grave deformação do úmero e grandes constrangimentos motores. Para um período mais recente (sécs. XVIII-XIX), a imagem que podemos traçar da população do Seixal assenta num conjunto de, pelo menos, 203 indivíduos, 57 deles ainda na posição original, deitados de costas, com os braços cruzados sobre o peito ou o ventre e as pernas esticadas. Neste último conjunto, a existência de relações de parentesco é sugerida pela sobreposição de vários corpos numa mesma sepultura (chegam a ser oito), sendo evidente no caso de uma mulher com menos de 30 anos que abraça um recém-nascido colocado sobre o peito, num enterramento simultâneo eventualmente após parto mal sucedido que causou a morte de mãe e feto. Uma percentagem de recém-nascidos anormalmente alta (1/3) aponta, aliás, para uma mortalidade infantil elevada. Quanto aos 30 adultos, sabemos que 10 eram do sexo masculino e 11 do feminino; que viveram predominantemente até aos 40-49 anos, apresentando estaturas médias muito semelhantes às de Arrentela (1,65 m / 1,56 m) e uma robustez média; que o número de artroses lombares é baixo relativamente ao que seria de esperar numa população de pescadores, embora haja dois indivíduos com marcas nas clavículas associáveis às solicitações dos músculos no acto de remar; que essa relação com o rio e o mar pode também estar relacionada com o invulgar padrão de desgaste dos dentes incisivos centrais, não explicado pelo acto de comer, mas talvez pelo seu uso como “ferramenta” auxiliar na preparação das redes. Podemos ainda intuir o sofrimento que a gota provocou em duas destas pessoas, patente também na infecção da medula óssea da tíbia de um homem, deformando e encurtando a sua perna direita, ou ainda na grave fractura do colo do fémur de outro, devido a queda ou pancada, desencadeando uma Fase de escavação da Rua 1º de Dezembro infecção que alastrou à tíbia e contribuiu © Rosa Reis, 1999 para a sua morte pouco tempo depois. Apesar da eventual distorção da amostra devido às condicionantes da escavação, o estudo dos restantes 146 indivíduos, reunidos em ossários depois de levantados para dar lugar a enterramentos posteriores, veio reforçar a hipótese do espaço se destinar preferencialmente à inumação de crianças, principalmente muito jovens - mais de 2/3 das 101 crianças identificadas morreram entre o nascimento e os cinco anos de idade. E não terão gozado vida fácil, como demonstram as frequentes alterações ou defeitos do esmalte dos dentes, reveladoras de má nutrição ou eclosão de doenças infecciosas durante o seu desenvolvimento. Ainda assim, terá sido a brincar que uma destas crianças, já com mais de dois anos, partiu o maxilar inferior, devido a queda ou embate violento? Nos 45 adultos incluem-se 27 homens e 15 mulheres, falecidos entre os 30 e os 60 anos, medindo em média 1,61m / 1,55 m, respectivamente; a dieta alimentar, como na Arrentela, é pouco abrasiva e pobre em hidratos de carbono; embora essa não seja a regra, registam-se igualmente artroses severas e outras patologias degenerativas que atestam a sujeição a esforços biomecânicos elevados. Os resultados da investigação arqueológica e antropológica aplicada a contextos funerários na Arrentela e no Seixal permitem-nos começar a preencher algumas das lacunas históricas do conhecimento destas populações. Contudo, outras vias há ainda a explorar, pelo que a seu tempo veremos onde será possível chegar. [Jorge Raposo]

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Do quotidiano fabril aos tempos de lazer: memórias de trabalhadores da Mundet A firma L. Mundet & Sons instalou-se no Seixal em 1905, contando para tal com o saber-fazer corticeiro de trabalhadores provenientes da Catalunha, região originária da empresa. “Os espanhóis... mandavam ali na Mundet, no Seixal era tudo espanhóis!” (Adelina da Conceição, escolhedora de rolha, 06/03/2001, 90 anos)

Além daquela procedência geográfica outras são mencionadas: “[uma] grande parte dos corticeiros que vieram para a Mundet no princípio foi de Albuquerque, de Mérida e a maior parte de Portugal foi de Castelo Branco.Também foi de Sines e Elvas”. (Casimiro Passos Leitão, colaborador do GDM, 31/05/2000, 79 anos).

O mesmo poder de atracção da Mundet incidiria igualmente sobre as populações vizinhas do Seixal, apesar das difíceis condições de acesso à fábrica. “Vinha muita gente de fora: da Aldeia [de Paio Pires], da Arrentela, da Torre da Marinha, eu sei lá. (...) Depois quando estava assim muita chuva (...), lá iam (...) debaixo de chuva, não havia camionetas, ia tudo a pé por aí fora de sobretudo e capas vestidas, coitadas.”

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Memórias e Quotidianos

(Adelina Maria da Conceição, escolhedora de rolha, 06/03/2001, 90 anos)

Em consonância com a dimensão física do estabelecimento e a diversificada actividade industrial, a Mundet admitiu um elevado número de trabalhadores, tendo este atingido o seu valor mais alto no final da década de 40. Em 1937, no seguimento de pedidos de autorização para instalação de novos equipamentos produtivos, a 3ª Circunscrição Industrial da Direcção-Geral da Indústria Oficina de colagem de papel de cortiça na fábrica do Seixal da Mundet & C.ª, Lda. (anos 60 do século XX). Foto: Júlio Pereira Dinis (E.M.S. 2001.145.272.) realizou uma vistoria às instalações fabris da Mundet resultando daí uma extensa lista de requisitos, respeitantes, entre outros aspectos, a condições de trabalho, de higiene e de salubridade, que deveriam ser atendidos e regularizados pela empresa e que reflectem bem as precárias condições de trabalho que então prevaleciam na fábrica. Devido ao elevado número de trabalhadores, prescrevia-se a instalação de refeitórios e de uma creche, em harmonia com as instruções da Direcção-Geral da Saúde. Determinava-se ainda a instalação de um posto de primeiros socorros, a afixação em todas as oficinas e em local bem visível de um cartaz sobre acidentes de trabalho, o conveniente resguardo de todas as correias de transmissão de energia dos motores às máquinas, a captação de pó proveniente das operações de transformação da cortiça e ainda a afixação de avisos em oficinas e armazéns da proibição de fumar, fazer lume e usar luzes de chama livre. Dois anos mais tarde, nova vistoria dá-nos conta que as obras necessárias à instalação de alguns desses equipamentos estariam em fase adiantada, “merecendo reparo o edifício destinado à creche que, talvez não haja melhor no Paiz”. A introdução de novos e diversificados tipos de máquinas operadoras nas oficinas de transformação de cortiça da Mundet (Seixal) intensificou a libertação do pó de cortiça, aumentando assim o risco de contrair doenças pulmonares.As difíceis condições de trabalho são inevitavelmente recordadas pelos antigos trabalhadores da fábrica. “Os fogueiros trabalhavam por turnos (...) as sacas do pó [de cortiça para alimentação das caldeiras Babcock] eram trazidas para baixo do telheiro. O pó era colocado no alimentador. Por vezes estava húmido e era necessário ir mexendo com um instrumento, uma pequena pá de madeira. O operário usava uma máscara, pois quando se despejava, o pó fazia uma grande poeirada.” (Jerónimo Mira, fogueiro, 14/04/1997)


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O ambiente fabril era afectado por outros agentes igualmente perniciosos, entre eles o ruído produzido pelas máquinas operadoras, o calor que imperava em algumas das secções de preparação e transformação de cortiça, e os cheiros das colas utilizadas nalgumas secções, contribuindo para a diminuição da rentabilidade e do bem-estar dos trabalhadores, e ameaçando a sua saúde: “De Inverno é frio, de Verão, um calor, um calor que isto [secção das novas linhas de corkskin] não tinha respiração, o cheiro dos gases que davam aqui da cola, que era um cheiro horrível. Eles até eram obrigados a darem leite.” (Gertrudes Brandão, coladora de papel, 21/12/2001, 69 anos)

Por vezes era a própria vida que estava em jogo, por acidentes não tão raros assim. “A água [nas caldeiras de cozer] está sempre quente, a temperatura da água é sempre a mesma. Já não é do meu tempo, mas acho que morreu aqui um homem na segunda boca da direita para a esquerda, o fardo abriu-se e ele queimou-se do peito para baixo.Também vi alguns colegas meus a serem queimados quando trabalhavam no aparelho [sistema que içava os fardos].” (Manuel Sousa, caldeireiro, 24/07/1997, 36 anos)

A afiação manual das facas (lâminas de vários tipos para corte e perfuração da cortiça) e a operação das máquinas transformadoras da cortiça, eram tarefas em que as mãos e braços dos operários estavam constantemente expostos ao corte da faca, dando origem à maioria dos acidentes verificados nas secções. “Aí nesta segunda máquina quando a gente entra a porta, nesta segunda máquina, ficou um rapazito sem o braço. Apanhou-lhe... estava assim com a mão na coisa de parar a máquina, apanhou-lhe aquilo, levou-lhe assim à máquina, cortou-lhe o braço. Depois ele foi muitos anos contínuo aqui no escritório.” (Eduardo Roque, encarregado da laminagem do papel e decorativos, 07/12/2001, 85 anos)

A intensificação da mecanização do trabalho, e uma maior complexidade na distribuição e controle das operações executadas, implicou um acréscimo do peso da supervisão destinado a assegurar um maior nível de produtividade. Essa preocupação traduziu-se na fiscalização permanente do trabalho dos operários, mediante a vigilância do encarregado que, praticamente, não se ausentava da sua secção. “[A encarregada] Estava ao pé da parede. Ela não trabalhava. Estava sentada numa cadeira alta na secretária, a deitar o olho a ver se a gente conversava. A gente não tinha autorização para isso.” (Teresa de Jesus, escolhedora de rolha, 25/03/1998, 92 anos)

“O Sousa [Joaquim de Sousa, um dos gerentes da Mundet], com o seu bonezinho puxado aos olhos, ia pela fábrica acima parecia que não via nada, mas via tudo o que se passava. Depois, chegava ao pé do encarregado e dizia-lhe:‘Ouve lá, toma cuidado com os trabalhadores, porque estão a fazer isto ou aquilo...’ - e nós a pensar que ele não estava a ver nada! “ (Fernando Serra, encarregado da secção de electricidade, 05/05/1998, 72 anos)

Este regime coercivo e discricionário era parcamente compensado pela perspectiva de promoção e/ou de aumento remunerativo, por vezes também sujeitos a arbitrariedades. “Discutiam meio tostão de aumento de salário, discutiam até ao último tostão.” (Fernando Ribeiro, emp. escritório 21/10/97, 58 anos)

As disparidades salariais entre homens e mulheres, mesmo com igual categoria profissional, eram notórias, sendo consignadas nos próprios despachos ministeriais que, desde 1941, estabeleciam os salários mínimos para os operários da indústria corticeira. O trabalho feminino era ainda mais precário do que o trabalho masculino. Na Mundet (Seixal), em 1957, num total de 2116 operários corticeiros, havia 164 com carácter temporário; destes, 130 eram operárias. A total dependência do salário para subsistir por parte de uma mão-de-obra social e economicamente carenciada foi um factor determinante para a sua subordinação à autoridade dos supervisores e gestores da fábrica, sujeitando-se às medidas coercivas que impunham a disciplina e à ameaça do despedimento.Assim, cada acção ou atitude considerada menos correcta para a disciplina fabril era sancionada de acordo com a sua gravidade. “Estás a fazer queixas, pois agora por estares a fazer queixas ainda vais estar mais dias em casa [suspensa].” [afirmação de um “chefe” por a trabalhadora ter comentado com a sua encarregada um castigo que lhe tinha sido atribuído]. (Teresa de Jesus, escolhedora de rolha, 25.03.1998, 92 anos)

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O maior sistema de incentivos acabaria por ser a prestação de serviços de apoio social (refeitórios, creche e casa de infância) e de assistência médica (Caixa de Previdência do Pessoal da Mundet), a par do desenvolvimento de actividades recreativas, desportivas e culturais, procurando estabelecer/reforçar laços de identidade e compromissos entre chefias e trabalhadores. Esta política era estimulada pelo próprio regime do Estado Novo, tendo a empresa preparado as instalações, dotando-as de equipamentos e algum pessoal técnico para o desempenho dos serviços mencionados. Para os trabalhadores que não podiam contar com outros apoios na educação dos filhos, serviços como os da creche e da casa de infância “era o que ainda dava algum conforto aos pais que iam trabalhar e deixavam as crianças em qualquer lado” (Adelino Tavares, colaborador do GDM, 23.08.2000, 55 anos), constituindo uma compensação para os magros salários que auferiam. “Os patrões pelos trabalhadores faziam muito pouco, mas pelas crianças faziam alguma coisa. O meu marido apanhava só 2$50 de aumento e era de vez em quando. Os trabalhadores ganhavam pouco, mas as crianças tinham tudo o que era bom. Era uma compensação, sem dúvida!” (Piedade Serra, funcionária da creche, 23.04.1998)

A Caixa de Previdência da Mundet, criada em 1942, era subsidiada com as contribuições da Mundet e dos seus trabalhadores, cabendo à primeira a entrega mensal de 3% dos salários pagos e aos segundos um desconto de 5% nos seus ordenados. Com este financiamento a Mundet criou uma organização de que os seus operários se orgulhavam: “[A] Caixa da Mundet era mesmo boa. No país só havia melhor a Caixa da CUF. Esta era a 2.ª (...). Os remédios eram de borla. As radiografias eram de borla. Aquilo era um hospital. Até se chegaram a fazer operações ali.” (Fernando Serra, encarregado da secção de electricidade, 05/05/1998, 72 anos)

Também no campo cultural, a Mundet proporcionou aos seus trabalhadores oportunidades e meios de organizarem os seus tempos livres ao facultar-lhes, na década de 1940, a criação do Grupo Desportivo Mundet (GDM). No seu âmbito cabiam actividades culturais, actividades recreativas e actividades desportivas. No início da década de 1960 nasceram as emissões e animações radiofónicas a cargo do Grupo de Difusão Sonora. O vasto leque de actividades desenvolvidas proporcionaram oportunidades de convívio e de distensão de um quotidiano marcado pela rotina e pela dureza do trabalho, de contacto com realidades culturais distantes do seu quotidiano, que reprePorta-estandarte do Grupo Desportivo Mundet, acompansentavam um rasgar de horizontes e ainda hado por dois atletas das equipas de hóquei em patins e de a oportunidade de formação e prática basquetebol (anos 50 do século XX). Foto: Oferecida por Joaquim José Oliveira ao E.M.S. desportiva. Por isso, a avaliação final é geralmente muito positiva:“[fez-se] um belo trabalho, meteu-se muita cultura, meteu-se muito desporto. Podemo-nos gabar que a Mundet ajudou muito o Seixal e o Concelho.” (Casimiro Passos Leitão, colaborador do GDM, 31/05/2000, 79 anos).

E este é outro traço que marca os testemunhos dos antigos trabalhadores: todas as recordações menos felizes parecem ser remetidas para um segundo plano ou de alguma forma são compensadas com o indisfarçável orgulho por terem trabalhado na maior fábrica de cortiça do mundo e por terem contribuído com o seu trabalho para a grandeza do nome Mundet. “A malta fazia invenções bestiais. Era da gente ficar de boca aberta, tanto trabalhador e tanto artista.” (Casimiro Passos Leitão, colaborador do GDM, 31/05/2000, 79 anos)

[Carlos Carrasco, Fátima Afonso, Fernanda Ferreira, Fátima Sabino]


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A imagem que nos surge na mente à menção de Arrentela é a de uma povoação de ruas estreitas, tortuosas, estendendo-se numa encosta orientada a poente, sobre a foz do Rio Judeu, mais conhecida por Baía do Seixal ou Maré, como amiúde se lhe referem as gentes da terra. Mas quais as origens dessa malha urbana, que podemos encontrar em tantas outras localidades, como é o caso de Almada Velha, Centro Histórico de Évora e de alguns dos mais antigos bairros de Lisboa? Para a compreendermos, teremos de viajar no tempo e no espaço, percorrendo alguns milhares de quilómetros e recuando mais de quinze séculos. RIO Corria o ano de 476 da Era Cristã. Após um longo e irreversível declínio, Roma, o centro de um dos maiores impérios que o Mundo conheceu, soçobrava às investidas dos bárbaros germânicos, que se vinham sucedendo desde o século anterior. A desagregação do Império Romano do Ocidente seria rápida. Convencionalmente, essa data marca o iníPlanta com delimitação do Núcleo Urbano Antigo de Arrentela cio da Idade Média, que haveria de se prolongar por cerca de dez séculos. O clima de instabilidade política e social, que já se fazia sentir durante o lento estertor do Império, acentuou-se repentinamente. Sem a eficácia defensiva das suas outrora poderosas e bem organizadas legiões, as províncias ocidentais tornaram-se presas fáceis dos invasores. As cidades suscitavam particularmente a cobiça dos bárbaros, tanto mais acirrada quanto maior fosse o seu esplendor.As ruas largas e desimpedidas, bem como a malha ortogonal característica do urbanismo imperial romano, eram difíceis de defender, até pela rápida apreensão da planta pelos potenciais invasores, permitindo gizar estratégias de ataque. Os moradores que sobreviveram aos ataques, mas também os invasores que entretanto se estabeleciam e, por sua vez, tinham necessidade de se proteger, começaram a tentar estabelecer uma nova organização social e política. Pequenos reinos vão-se formando, conhecendo diversas fortunas. De todos os povos germânicos invasores, serão os Visigodos a conseguir estabelecer os reinos mais consistentes.A sociedade torna-se essencialmente rural, enquanto os aglomerados populacionais são geralmente pequenos, constituídos por famílias e indivíduos que procuram protecção mútua. Mas as constantes disputas entre reinos virão a revelar-se fatais para esta nova sociedade, que não terá tempo de atingir a plena maturidade. Em 711 da Era Cristã, os muçulmanos árabes e berberes invadem a Península Ibérica. Bem organizados, social e militarmente, unidos por um profundo fervor religioso, estes novos invasores irão pôr rapidamente fim ao domínio visigótico. A cultura muçulmana irá também exercer influência na organização espacial dos aglomerados urbanos. Geralmente discretos, mas omnipresentes, os judeus irão também dar o seu contributo cultural. É desse cruzamento de culturas, umas vezes pacífico, outras animoso, que irá desenvolver-se uma nova cultura na Europa e, particularmente, na Península Ibérica. Podemos reconhecer na Arrentela algumas características desses povoados resultantes de tempos conturbados. Evidentemente, não se pode pensar que qualquer dos edifícios actualmente existentes remonte ao Período Medieval. No entanto, a substituição, reconstrução ou alteração dos primitivos imóveis, aparenta ter respeitado a implantação, contribuindo para perpetuar a estrutura urbanística. A malha urbana é espontânea, não obedece a um plano, mas antes às necessidades expansionistas, mas também de autoprotecção, da localidade. Podemos observar um emaranhado de ruas e vielas, becos e pequenos largos, bem conhecidos dos

Património Cultural do Concelho

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moradores, mas de demorada apreensão espacial para estranhos. Este factor é muito importante em termos defensivos, porque não só minimiza as possibilidades de planeamento de um ataque, como ainda confere aos defensores possibilidades de armar todo o tipo de ciladas, que minam o inimigo física e moralmente. Não sendo certamente o factor decisivo para o modelo de organização espacial, é no entanto de atender à protecção contra os frios ventos do quadrante Norte, que esta malha urbana proporciona à maioria das construções da povoação. Analisando a planta da localidade, mas também trocando impressões com a população, podemos identificar os dois principais pólos de desenvolvimento urbano: o Adro e a Praia (como os naturais da terra designam a zona baixa da povoação, particularmente a área abrangida pelo Jardim, mas que na realidade compreende toda a frente ribeirinha). Muito longe de existir qualquer tipo de rivalidade, pressente-se contudo uma subtil diferenciação nas alusões aos moradores da outra zona. É manifestamente difícil indicar qual dos dois pólos surgiu primeiro, mas inclinar-nos-íamos para o Adro, embora com pouca diferença temporal.A nossa intuição baseia-se na preferência de que sempre gozaram as posições elevadas, por favorecerem a defesa, mas também na localização do templo, sabendo-se a preponderante influência da Igreja Católica sobre a vida e a sociedade até à elevação do estatuto da Ciência. Não será difícil deduzirmos que a população que se fixou nas imediações do Adro estaria mais ligada a actividades agrícolas e pecuárias.

Vista do casario a meia encosta de Arrentela © EMS/CDI, Luís Barros, 1976

Mas a Arrentela também teve sempre uma íntima relação com o rio. Terão sido os habitantes ligados à actividade fluvial quem primeiro se estabeleceu nas imediações da Praia. Os motivos são fáceis de adivinhar. De facto, o transporte de aprestos náuticos de e para as embarcações, subindo e descendo uma encosta com apreciável declive, já era tarefa árdua; associada com a dura faina piscatória ou transportadora, era indubitavelmente esgotante. Por esse facto, as gentes que laboravam no rio acabariam por se fixar nas suas margens, junto dos seus armazéns e das suas embarcações, vigiando os seus bens. Há ainda que considerar a questão da instalação das embarcações em descanso, que teriam de ficar junto às margens e, quando em seco, não eram susceptíveis de ser deslocadas em grandes distâncias; ainda menos encosta acima... A parte intermédia, sita a meia-encosta terá sido gradualmente preenchida com novas construções. Mas, neste ponto, poderá parecer estranho que a ocupação da zona ribeirinha não se tenha expandido. Uma das explicações que se nos afigura mais plausível está relacionada com as Quintas que confinavam a norte, nascente e sul com a área ocupada pelo (actualmente definido) Núcleo Urbano Antigo.A Norte, a Quinta do Cabral; a nascente, a Quinta da Boa-Hora; a sul e sueste, a Quinta de S. João; a sul, a Quinta da Vinha da Ribeira. Não havia grande possibilidade de expansão, numa época em que a riqueza e estatuto social era mais reflexo da extensão das propriedades fundiárias do que propriamente da acumulação de numerário. Temos ainda a referir os importantes vestígios do Período Romano recentemente


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descobertos na Quinta de S. João. As escavações ainda não estão concluídas, mas os elementos recolhidos até ao momento indiciam uma presença entre os sécs. II e IV da Era Cristã, muito provavelmente com uma exploração agrícola. A despeito de considerarmos que o principal valor cultural da Arrentela é o próprio conjunto edificado, pouco adulterado quando o comparamos com os outros Núcleos Urbanos Antigos do Concelho, algumas construções e espaços merecem-nos destaque.

Núcleo Urbano Antigo de Arrentela: perspectiva ribeirinha © EMS/CDI, Fernando Falcão, 1985

O imóvel com maior valor patrimonial é, indubitavelmente, a Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Consolação, edificada no ponto mais alto do povoado, no local onde fontes documentais do séc. XV já referiam a existência de uma Ermida consagrada a Santa Maria. A traça, os elementos construtivos e decorativos existentes no templo, permitem localizar o início da construção pelos alvores do séc. XVI, tendo sofrido sucessivos acrescentos ou alterações nos dois séculos seguintes. Uma inscrição na moldura do portal principal alude aos graves danos sofridos por ocasião do Terramoto de 1 de Novembro de 1755.As recentes obras de reabilitação da cobertura viriam a revelar alguns aspectos construtivos habitualmente inacessíveis, que indiciam que os grandes danos terão sido ao nível da cobertura e da parte superior das torres sineiras. A parte mais elevada do cemitério também indicia uma cronologia paralela à da instalação do templo. Confinante a norte com o Adro, existiu a Sede da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, marco da actividade cultural e lúdica da povoação, desaparecida na voragem do progresso, mas ainda saudosa e carinhosamente recordada pela população. No local, ergue-se hoje o novíssimo Centro de Dia da Terceira Idade de Arrentela, com elementos decorativos pretensamente evocativos do imóvel demolido. Em frente ao resplandecente edifício do Centro de Dia, do lado contrário da Calçada da Boa-Hora, existe um terreno vazio, murado, limpo há poucos meses; aqui, também só resta à população a lembrança da Capela de Nossa Senhora da Boa-Hora, demolida pelo final da década de 80 do séc. XX, não sem que antes os painéis azulejares, o retábulo e o sino tivessem sido encaminhados para um país mediterrânico da União Europeia.As lápides tumulares embebidas no pavimento terão acompanhado o entulho resultante da demolição. Salvou-se a Imagem do Orago, deslocada para a Igreja de Fernão Ferro, que lhe foi consagrada. Esta capela estava directamente relacionada com a Quinta da Boa-Hora, que foi domínio das Senhoras de Linhares, ligadas por laços de parentesco à Família Real (Dinastia de Bragança). Ainda dentro da tradição religiosa da localidade, é mister referir a procissão que percorre anualmente as ruas de Arrentela, ao que se sabe desde 1756, perpetuando a fé e o reconhecimento da população pela intervenção atribuída a Nossa Senhora da Soledade, em 1 de Novembro de 1755, acalmando uma gigantesca onda, subsequente ao terramoto, que ameaçava destruir a povoação. A imagem que um devoto trouxe naquele dia da Igreja Paroquial até ao actual Largo Cândido dos Reis, foi destruída há algumas décadas, vitimada por uma incêndio. Mas a inabalável devoção dos arrentelenses levou à realização de uma nova imagem, a mesma que ainda hoje, no aniversário da data fatídica, evoca a memória das gentes da terra. Antes de começarmos a descida da encosta, olhemos para sul. Aqui se encontra um pequeno conjunto de casas, envolvendo um Cruzeiro, mutilado durante o período dos exacerbados sentimentos anticlericais subsequentes à Implantação da República, em 5 de Outubro de 1910. Pouco adiante, um edifício escolar, de ensino básico (antigamente denominado primário), de um dos vários modelos urbanos do chama-

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do Plano Centenário, implementado durante o Estado Novo. Este edifício escolar é relativamente recente.Anteriormente, as escolas primárias funcionaram em edifícios pré-existentes e adaptados.A escola do sexo masculino estava instalada no primeiro andar de um edifício voltado ao rio, onde ainda se podem observar mastros de bandeiras fixados à guarda do varandim. No piso superior de um imóvel sito na Praça da Liberdade funcionou uma escola para o sexo feminino. Num imóvel próximo, existiu uma escola primária particular. Um pouco mais longe, próximo do rio e a caminho da Torre da Marinha, no local onde hoje se ergue uma Estação Elevatória de Águas Residuais, existiu o Lavadouro Público de Arrentela. A povoação conteve variados estabelecimentos comerciais e pequenas indústrias, com carácter vincadamente familiar. Mas a população da Arrentela também contribuiu, com muita, valorosa e esforçada mão-de-obra, para o desenvolvimento das grandes indústrias da zona, nomeadamente a fábrica do Seixal da Mundet & Cº. Lda. (cortiça), a Companhia de Lanifícios de Arrentela e a empresa A. Silva & Silva (área da construção civil e respectivos materiais). A actividade cultural e lúdica sempre foi acarinhada pelos moradores de Arrentela. No campo da música, a Banda da S.F.U.Arrentelense mantém viva uma tradição que já conta bem mais de um século.A sua antecessora, a Sociedade Filarmónica Fabril Arrentelense (que veio a usar o título de “Real”, antes de se fundir com a Real Sociedade Filarmónica Honra e Glória Arrentelense, daí resultando a actual Filarmónica), chegou a dispor de um coreto no topo Norte do Jardim, construído em 1894, hoje reduzido a mais uma memória. Um edifício, também já demolido, que marcava o topo Sul da zona ribeirinha, chegou a albergar uma Casa de Fados. A tardoz dos imóveis contíguos ao Jardim, no local a que os moradores chamam de verbena, um cinema ao ar livre fez rir, suspirar, e principalmente sonhar, gerações de arrentelenses. O edifício da Junta de Freguesia, feito segundo o traço de Luís Almeida, desenhador da Fábrica Mundet & Cª. Lda., teve inicialmente um pequeno mercado no piso térreo. Este imóvel localiza-se, curiosamente, praticamente no centro da área ocupada pelo Núcleo Urbano Antigo. Referiremos ainda o chafariz do Largo Cândido dos Reis, mais conhecido por Largo da Farmácia, em evocação dum estabelecimento entretanto transferido para a urbanização da Quinta da Boa-Hora. Este ponto de abastecimento público de água foi instalado na década de 50 do séc. XX, no âmbito da implantação da rede pública de distribuição de água no Município. Apesar da face Nascente ter sofrido alterações, ainda podemos admirar os azulejos figurativos, alusivos a actividades tradicionais do Concelho, executados por encomenda para aplicação nos chafarizes. No mesmo local existiu um poço, que dispunha de uma bomba accionada por alavanca, para elevação da água. A Arrentela dispunha de mais dois poços deste tipo, subsistindo apenas o da Praça da Liberdade (mas tendo a bomba elevatória sido retirada), conhecido como Poço do Mota, que se situa junto do portão da Quinta do Cabral, derradeiro vestígio daquela propriedade. Do poço do Jardim, resta uma marca circular no pavimento. Um pequeno chafariz, alimentado com água proveniente do Poço do Mota, existiu na parte mais baixa da Praça da Liberdade, ou Largo do Ramalhete, como referem os moradores. No Núcleo Urbano Antigo de Arrentela, predominam os edifícios de dois pisos, com algumas naturais excepções. Mas a maioritária constância da cércea contribui para a harmonia do conjunto edificado, que acompanha o declive da encosta como se fora um manto. [João Paulo Santos] Roteiro de Museus da Rede Portuguesa de Museus A Câmara Municipal do Seixal distribuiu junto de dezenas de instituições do Concelho exemplares do Roteiro de Museus editado pelo Instituto Português de Museus no último dia 18 de Maio (Dia Internacional dos Museus) e que contribuirá para uma ampla divulgação dos 116 museus, incluindo o Ecomuseu do Seixal, que actualmente integram a RPM. A par deste Roteiro (consultável nos núcleos do Ecomuseu e de que se encontram ainda alguns exemplares disponíveis, em português e em inglês), poderá conhecer melhor os museus da RPM através do site www.rpmuseus-pt.org.


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