Ecomuseu Informação N.º 33 – Outubro | Novembro | Dezembro 2004

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Ecomuseu Informação I S S N : 0 8 7 3 - 6 1 9 7 • Depósito Legal: 106175/96 • Tiragem: 6000 exemplares

Boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal

Índice 3. Exposições 4.5. Programa de Iniciativas do Serviço Educativo 6.7. Tema de Reflexão A investigação e a missão do museu

Nº 8.9.10. Conhecer Uma colecção de modelos e miniaturas de barcos tradicionais do estuário do Tejo 11.12..13. Memórias e Quotidianos Comércio local e espaços de memória

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14.15.16. Património Cultural do Concelho O Núcleo Urbano Antigo de Amora 17.18. Notícias 19. Agenda

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Este trimestre corresponde ao início de um ciclo de reactivação de parcerias e de interacção com a comunidade, centradas no trabalho educativo, enquanto se planificam transversalmente as principais acções e projectos que farão evoluir o processo dinâmico de gestão de património, convergindo com outras vertentes de valorização de recursos e de desenvolvimento local. Planificam-se projectos e preparam-se actividades em que se articulam as várias áreas museológicas, da investigação à difusão, no que respeita ao território em que evolui o património. Sabendo-se que a visibilidade do trabalho do Ecomuseu assenta sobretudo nas exposições e no programa de iniciativas que o Serviço Educativo disponibiliza ao público e aos visitantes, é porém no universo mais alargado de utilizadores do museu municipal e, sobretudo, na interacção com a comunidade, que se potencia o desenvolvimento e o futuro do património, num processo dinâmico ligado a várias vertentes da intervenção autárquica. Merece destaque a exposição do Ecomuseu que a 20 de Novembro será inaugurada no Núcleo Naval, em Arrentela. Embora apresentando-se no reduzido espaço físico do antigo pavilhão de estaleiro readaptado aos fins museológicos, a temática Barcos, memórias do Tejo foi tratada de forma a dar a conhecer e valorizar - para além de um vasto património, material e imaterial, onde se inclui o acervo preservado pelo museu

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Ecomuseu e educação, um processo dinâmico envolvendo a comunidade e o património


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municipal do Seixal – a cultura flúvio-marítima do Estuário do Tejo, na sua globalidade e nas suas especificidades identitárias, apelando a que os visitantes não deixem de fazer a sua descoberta na realidade e em contacto directo com cada sítio e comunidade. Também através desta exposição e dinamicamente, procura-se a complementaridade entre recursos internos e exteriores, assegurando continuidades, perspectivando necessidades de longo prazo e fazendo evoluir compromissos programáticos referentes ao território e à população que o identifica, sem perder de vista uma dimensão territorial mais vasta, a que o Ecomuseu pode corresponder, em função da sua experiência. Iniciada em Setembro, prossegue até [...] a Câmara Municipal do Novembro de 2004 a investigação arqueSeixal está a levar a cabo obras ológica de campo, pelo Serviço de de conservação no edifício da Arqueologia do Ecomuseu, na 6ª campanha Mundet (Seixal) onde [...] se realizada na necrópole medieval/moderna irão proximamente reinstalar as da Quinta de S. Pedro. áreas de serviços que até agora Continuando as medidas de qualificação do Ecomuseu, a Câmara Municipal do Seixal funcionaram no denominado está a levar a cabo obras de conservação Núcleo Sede, na Torre da no edifício da Mundet (Seixal) onde, para Marinha, à excepção da além da permanência de gabinetes de exposição. investigação (Serviço de Inventário e Estudo de Património Industrial) se irão proximamente reinstalar as áreas de serviços que até agora funcionaram no denominado Núcleo Sede, na Torre da Marinha, à excepção da exposição. O programa de acção envolve diversos departamentos e técnicos municipais. Prevê-se que no início de 2005 os referidos serviços, incluindo portanto o Centro de Documentação e Informação, e melhorando muito significativamente a sua logística e localização face à comunidade e ao público, estejam em funcionamento nos espaços que, na sua origem, acolheram a Casa da Infância da firma corticeira Mundet, no Seixal. Por motivos de ordem legal, atendendo aos resultados do concurso público para a empreitada de execução do projecto de Qualificação do Núcleo do Moinho de Maré de Corroios do Ecomuseu - abrangida no Programa Operacional da Cultura (no âmbito da Medida 1.2. do POC - Modernização e Dinamização de Museus Nacionais – Acção 1 - Obras de Construção, Recuperação e Valorização dos Museus) - procedeu-se à sua anulação. Assim, apesar de a Câmara Municipal, em simultâneo e no mais curto prazo ter deliberado e implementado os procedimentos necessários a uma nova abertura de concurso público, vemos incontornavelmente e mais uma vez prolongados no tempo os prazos de obra e de possível reabertura ao público, a anunciar oportunamente. Finalmente, assinalemos, com expectativa quanto às suas repercussões próximas e futuras, entre a escala local e a escala nacional, a promulgação, em Agosto passado, da Lei Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº 47/2004, 19 de Agosto), na qual se vêem reflectidos vários aspectos das últimas décadas de renovação museológica no País, dando lugar a conceitos e princípios essenciais à qualificação das instituições e das iniciativas museais. Para tal, assim como para uma evolução inclusiva da Rede Portuguesa de Museus, são precisos meios de sustentabilidade, para que os museus também sirvam, com rigor e na sua diversidade, o desenvolvimento da cultura e da sociedade. [Graça Filipe]

Ficha Técnica Foto Capa

Ecomuseu Informação nº 33

Pormenor de maqueta de reconstituição de estaleiro naval artesanal (diorama) – Núcleo Naval do Ecomuseu © EMS/CDI, João Martins, 2003.

Edição

Direcção

Grafismo e Revisão

Impressão

Câmara Municipal do Seixal-Ecomuseu Municipal do Seixal

Graça Filipe

Sector de Apoio Gráfico e Edições

Grafema-Sociedade Grágica, SA

Créditos Fotográficos

Tiragem

EMS/CDI, Rosa Reis, Cézer Santos, António Silva, Nelson Cruz, Luis Azevedo, João Martins, Carla Costa, Margarida Valente, Laudelina Emídio, Júlio Pereira Dinis

6000 exemplares

Textos/Investigação

Graça Filipe, João Paulo Santos, Elisabete Curtinhal, João Martins, Laudelina Emídio Informação/Agenda e Notícias

www.cm-seixal.pt/ecomuseu

Carla Costa, Luís Filipe Santos, João Paulo Santos e Graça Filipe

ISSN

0873-6197 Depósito Legal

106175/96


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A investigação e a missão do museu

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Tema de Reflexão

Ao sintetizarmos ideias e apontamentos sobre este tema de reflexão e consultando a Lei-Quadro dos Museus Portugueses, queremos valorizar o facto, quase diríamos histórico, de, finalmente, dispormos deste instrumento orientador e regulador das políticas e das práticas museológicas. Segundo a Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto, o Estudo e investigação são previstos como função museológica (artigo 7º) inerente à valorização dos bens culturais que o museu incorpora ou que pode vir a incorporar, nomeadamente pelo conceito de museu que a Lei consagra (artigos 3º e 9º) e “fundamentam as acções desenvolvidas no âmbito das restantes funções do museu, designadamente para estabelecer a política de incorporações, identificar e caracterizar os bens culturais incorporados ou incorporáveis e para fins de documentação, de conservação, de interpretação e exposição e de educação” (artigo 8º). Atentos à vocação do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS), de museu de território (sendo o “território” de definição complexa e variável, segundo diferentes abordagens de interpretação e de entendimento) e à inclusividade da participação comunitária, juntamente com a tutela municipal, prevenimo-nos face a riscos de delimitação redutora do objecto da investigação a promover pelo museu. A Lei-Quadro indica que “Cada museu efectua o estudo e a investigação do património cultural afim à sua vocação” (artigo 9º- 2). O âmbito e a abrangência do objecto ou do campo de investigação é um aspecto essencial, sobre o qual cada museu, com os respectivos parceiros, terá de exercer a sua reflexão. Os resultados práticos dessas reflexões serão cada vez mais importantes, numa perspectiva dinâmica de Rede de Museus (portugueses),para que se potenciem interacções e cooperações essenciais ao desenvolvimento da investigação, não apenas com fins de qualificação das actividades e dos serviços públicos prestados pelos museus, mas em prol do desenvolvimento cultural e científico em e para todo o País. Actualmente, em termos de equipas internas constituídas e de planos de trabalho, os principais projectos de investigação de longo prazo no Ecomuseu Municipal do Seixal centram-se nas seguintes áreas e temas: a investigação relacionada com a presença romana no território, abarcando os sítios da Olaria Romana da Quinta do Rouxinol (séculos II-V) e da Quinta de S. João/Quinta das Laranjeiras, em Arrentela (séculos III-IV); a investigação centrada na necrópole medieval-moderna da Quinta de S. Pedro, em Corroios (séculos XIII-XVII); o estudo do património proto-industrial e industrial do concelho do Seixal, numa fase de investigação centrada no processo de “industrialização” que abrangeu o território municipal dos séculos XIX-XX; a investigação centrada nos moinhos de maré, particularmente no Moinho de Maré de Corroios (séculos XV-XX). A par de tais projectos, continuará a realizar-se o inventário do acervo museológico incorporado, uma das prioridades transversais às várias equipas e aos serviços - de Conservação e Inventário Geral; de Arqueologia; de Inventário e Estudo de Património Industrial e de Documentação e Informação - estando simultaneamente em vias de implementação o sistema de documentação de património móvel e imóvel do EMS, englobando a informatização do inventário de acervo e dos fundos documentais. Baseado na actualização do Inventário de Património Cultural Imóvel, está ainda a ser elaborado um contributo do EMS para a Carta do Património do Concelho do Seixal.

Investigação arqueológica no EMS, Quinta de S. Pedro: o registo de campo será complementado pela documentação de gabinete e trabalho de laboratório © EMS/CDI, Cézer Santos, 2003.


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Ao nível da Arqueologia o EMS já tem uma experiência consolidada no que toca ao enquadramento científico e mesmo legal da investigação e das actividades que dela directamente decorrem, passando pela conservação e estudo de acervos, até à difusão, num quadro de orientação e de responsabilização das instituições e dos profissionais que, para a generalidade dos museus e outras instituições que se lhe dedicam, está relativamente estruturado. Não consideramos, porém, que se disponham de modelos claros de procedimentos e de regras úteis ao controle do trabalho científico aplicáveis a toda a investigação que se faz no EMS ou que se faz no contexto museológico no nosso país. E apontaremos a pertinência do debate desta questão entre profissionais e responsáveis de tutelas e organismos locais, regionais e nacionais, naturalmente passando pela Rede Portuguesa de Museus.Referimos,a título de exemplo,o caso do património industrial. A sua natureza complexa, envolvendo testemunhos históricos, científicos, técnicos, sociais,arquitectónicos e paisagísticos,entre outros,está longe de encontrar um correspondente corpo profissional, também em termos de formação e de experiência, que face à pouco consolidada prática científica no nosso país, terá de aprofundar parcerias, para responder aos desafios que o EMS se tem proposto defrontar, devido à quantidade e representatividade desta tipologia de património no Concelho, incluindo tanto as actividades de produção, como as que estiveram ou estão ao seu serviço, nomeadamente as de transporte e de comunicação. Para além de estar contemplada na política museológica que fundamenta a programação museológica, a investigação, como as demais funções aplicadas ao cumprimento da missão do museu, tem de ser dotada de meios adequados e de estar contemplada no modelo de organização da própria instituição ou organismo de tutela, não só por forma a inserir os seus profissionais,mas também por forma a facilitar a cooperação com outras instituições.Segundo a Lei-Quadro, “O museu utiliza recursos próprios e estabelece formas de cooperação com outros museus com temáticas afins e com organismos vocacionados para a investigação, designadamente estabelecimentos de investigação e de ensino superior, para o desenvolvimento do estudo e investigação sistemática de bens culturais.” (Artigo 10º. Cooperação científica). Actualmente, os recursos humanos especificamente atribuídos ao EMS, em permanência, pela Câmara Municipal do Seixal, em funções de estudo e de investigação ou que concorrem directamente para estas, de acordo com o perfil e carreiras, são de cerca de uma dúzia de técnicos superiores, de composição já multidisciplinar. Recorre-se também a algumas assessorias específicas, assim como a parcerias, formal ou informalmente instituídas, com outros organismos,tendo um papel activo nalguns dos projectos de investigação anteriormente elencados. Tendo evolutivamente procurado uma diversidade de carreiras de enquadramento, quer das diferentes formações disciplinares necessárias ao EMS, quer das funções e atribuições que é indispensável articular e complementar através de uma gestão global do trabalho da(s) equipa(s), em nossa opinião mantém-se em aberto a controversa questão do lugar que nos museus também pode existir para a carreira de investigador, a par de outras, nomeadamente as já contempladas no EMS, como as de arqueólogo, antropólogo, conservador de museu, técnico superior de história ou arquitecto. Porque, mesmo que administrativamente não se coloque a opção da exclusividade da função, no plano da referida gestão do trabalho da(s) equipa(s) e abrangendo a gestão de outros recursos humanos do museu e dos meios exteriores que se mobilizem, nas formas de implementação de projectos, até na administração das próprias “carreiras” e percursos profissionais, essa já é uma questão emergente no EMS e acreditamos que também o seja para outros museus de média dimensão. Uma estreita ligação do EMS à comunidade tem permitido levar a cabo um projecto de levantamento de testemunhos e recolha oral, levando à constituição de um acervo importantíssimo que dá forma tangível à memória colectiva e ao património imaterial, nomeadamente do que tem expressão em actividades museológicas ou que o museu se empenha em manter de algum modo activo. Toda a actividade de divulgação do EMS, tal como as exposições e as edições, incluindo em formato digital, revestindo várias formas e destinando-se a diferentes públicos-alvo, assim como múltiplas actividades de educação patrimonial, passando por acções de cooperação e parceria no que respeita à formação e ao ensino, são resultado e fundamentam-se em projectos e de trabalho de estudo e investigação já desenvolvido ou simultaneamente ainda em curso. No artigo 9º da Lei-quadro – Dever de investigar – lemos, no ponto 3:“A informação divulgada pelo museu, nomeadamente através de exposições, de edições, da acção educativa e das tecnologias de informação, deve ter fundamentação científica”. [Graça Filipe]

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Conhecer

Uma colecção de modelos e miniaturas de barcos tradicionais do estuário do Tejo Entre o acervo do Ecomuseu Municipal do Seixal reportado ao património náutico, conta-se uma série relativamente numerosa de modelos e de miniaturas de barcos tradicionais do Tejo, constituída para ilustrar a diversidade de tipos de embarcações, quer adaptadas aos requisitos da navegação flúvio-marítima da região do Estuário, quer adaptadas às várias funções em que a população e comunidades ribeirinhas as utilizaram, ao longo dos tempos, aproveitando recursos e potencialidades, no domínio socioeconómico e no domínio cultural, favorecidos pela localização geográfica. Tal série de objectos, de natureza bastante diversa, ainda que parcialmente produzidos no próprio contexto da actividade do Ecomuseu, pode ser considerada uma colecção, na medida em que ao longo dos anos e não obstante a variedade, tanto de autores e/ou executantes, como de tipologias e técnicas aplicadas nos processos de representação, têm características comuns ou complementares, ora tidas em conta a montante da sua incorporação, ora tendo condicionado a sua produção, com fins museológicos e museográficos. Sendo a maioria dos seus elementos de construção bastante recente, o interesse patrimonial do conjunto é inerente à sua coerência enquanto testemunho que integra memórias e saberes-fazer ligados à construção naval artesanal e à navegação tradicional da região do Estuário do Tejo. Refira-se, contudo, que a colecção, se assim considerarmos a série ou Henrique Rodrigues e José Martins, com miniatura de varino em construção. Sarilhos Pequenos © EMS/CDI, Luis Azevedo, 1993. conjunto, não conta muitos modelos ou maquetas a que se atribua um valor histórico específico ou um interesse técnico em particular, por exemplo inerente a uma embarcação representada (ou de que fosse modelo) e que tivesse navegado, como ocorre em colecções e museus marítimos excepcionais ou com referência literária especializada. A este propósito lembremos a Colecção Seixas, da qual foi infelizmente perdido um notável modelo de bote-de-tartarenha, num incêndio em instalações do Museu de Marinha, como nos recordou o Dr. Manuel Leitão na sua monografia dedicada ao Batel do Seixal ou Bote de Tartarenha (trabalho realizado em 1965, divulgado em edição do Museu de Marinha, que também editou em 1990 outra monografia do mesmo autor, dedicada ao “Modelismo Naval”). Henrique Rodrigues quando pintava uma miniatura de antepara de embarcação, na sua oficina em Sarilhos O modelismo naval encontra habitualmente Pequenos © EMS/CDI, Luis Azevedo, 1993. um espectro considerável de apreciadores, desde praticantes, (infelizmente ainda raros no nosso país), a públicos de exibições ou mesmo coleccionadores. Referimo-nos a um universo de pessoas que não só reconhecem os atractivos estéticos e artísticos de modelos bem construídos e cuidadosamente finalizados, mas também que avaliam criticamente a técnica da representação de uma dada embarcação e o nível de rigor de casco e de detalhes de velame, aparelho e palamenta, comparáveis ou tomando por referência os planos à escala de uma dada embarcação. Quando, em 1935, uma comissão de “Seixaleiros” procurou promover um Museu Regional do Seixal, o jornal O Seixalense (2ª série, nº 200), que noticiava as suas actividades, publicava uma lista de objectos que aqueles se propunham recolher, apelando


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à participação dos habitantes do Concelho. Ora, entre outros objectivos, propunham-se “organizar mostruários de miniaturas dos aparelhos de pesca e barcos usados no nosso rio (...)”. Quando foi criado, em 1982, o Museu Municipal do Seixal previu desde logo no seu programa um Núcleo Naval, que veio a ser aberto ao público em Novembro de 1984, a que se associavam embarcações tradicionais recuperadas e uma oficina de construção de modelos artesanais. Esta, depois de ter começado por funcionar num espaço do Núcleo Sede da Torre da Marinha e em seguida no núcleo museológico de Arrentela, veio aqui a dispor de um edifício próprio e reconstruído de raiz para a função oficinal e simultaneamente para acolher públicos. Estes tiveram acesso à nova Oficina Artesanal de Modelos de Barcos do Tejo a partir de Maio de 1993. Com o mestre Arnaldo Cunha, em cujo trabalho se baseou o funcionamento desta actividade oficinal e de transmissão de saberes do Ecomuseu, passou a colaborar a artífice Luciana Casanova, que precedentemente participara num curso profissional organizado conjuntamente pela CMS/Ecomuseu e pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. A ambos se juntou, mais tarde, após um período de voluntariado na Oficina do Núcleo Naval, outro artífice, Fernando Dâmaso.Actualmente, só estes dois últimos constituem a equipa permanente de construção e restauro de modelos, dado o falecimento do antigo carpinteiro de machado e construtor naval, a quem se deve parte significativa dos modelos de barcos do Tejo da colecção do Ecomuseu. Na sua maioria, a colecção do Ecomuseu a que dedicamos neste trimestre a rubrica Conhecer, é constituída por modelos, isto é, representações de barcos tradicionais, executadas à escala, artesanalmente, tomando sobretudo por referência planos editaMestre José Lopes numa Oficina de Iniciação no Núcleo Naval do Ecomuseu dos pelo Museu de © EMS/CDI, Carla Costa, 1993. Marinha, mas também recorrendo a outros planos, complementados por informação oral. Por outro lado, foram incorporadas miniaturas de embarcações, isto é, representações criadas ao gosto e mediante o conhecimento e memória dos seus autores/executantes, em regra detentores de experiência profissional no universo das actividades marítimas e ligadas ao Rio e Estuário do Tejo. Para além dos já referidos executantes e artífices da Oficina Artesanal do Núcleo Naval – Arnaldo Cunha, Luciana Casanova e Fernando Dâmaso – destacam-se outros, associados à actividade do Ecomuseu, em situação de formação profissional, durante o curso a que também aludimos anteriormente, entre 1987 e 1988. É o caso de Ana Rosa Reboco, de Brígida Vinagre, de Carlos Santos e de Joaquim Brito. Também ligados à actividade do Ecomuseu, tendo-lhe prestado uma inolvidável colaboração, por várias vezes partilhada com o público, na década de 1990, salientamos o trabalho de António Quintino, do Seixal, de Henrique Rodrigues, de Sarilhos Pequenos e de Mestre José Lopes, do Gaio/Rosário. De Henrique Rodrigues, assim como de José Martins, a colecção do Ecomuseu dispõe de miniaturas (ou maquetas) que se destacam pela autenticidade da representação pretendida e pelas características da pintura decorativa e de outros aspectos de execução irrepetíveis, que testemunham um saber-fazer transmitido e ainda vivo entre as comunidades ribeirinhas e as gerações outrora ligas às fainas flúvio-marítimas, incluindo portuárias, como é o caso em Sarilhos Pequenos, no concelho da Moita. Felizmente, um deles, José Martins, assim como Luís Reimão, do Gaio, continuam a trabalhar, apenas lamentando nós que a colecção do Ecomuseu ainda não integre nenhum modelo daquele último, o que constitui uma lacuna identificada, mas por resolver em termos de aquisição.

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Para além do carácter particular, nomeadamente de um ponto de vista histórico, que detêm os referidos barcos em miniatura executados por José Silva e por Henrique Rodrigues ou um modelo de bote-de-tartarenha aparelhado por António Quintino, salientamos um objecto que, não sendo da colecção do Ecomuseu, nele permanece em depósito há vários anos e cuja incorporação seria um destino coerente com a história e percurso do mesmo. Trata-se duma miniatura de muleta executada na primeira metade do século XX por um mestre carpinteiro de machado do Seixal, José Silva, especialmente recordada porque, depois de recuperada na Oficina do Ecomuseu, foi utilizada na composição do andor de S. Pedro em várias procissões em honra do Padroeiro do Seixal, na década de 1990, até que, executada por António Quintino, se tenha oferecido uma nova e idêntiModelo de muleta executado por Arnaldo Cunha e restaurado por Luciana Casanova. Inv. EMS.R.1990.423 © EMS/CDI, António Silva, 2003. ca maqueta à respectiva Paróquia. Não obstante vários modelos de barcos do Ecomuseu terem sido numerosas vezes apresentados em exposições e eventos públicos, ora nos seus núcleos Sede e Naval, ora em diversíssimos espaços em que se realizaram actividades dedicadas à temática náutica e das embarcações tradicionais, em Portugal e mesmo no estrangeiro, a verdade é que a colecção nunca foi devidamente valorizada e divulgada, o que deverá proximamente ocorrer na exposição Barcos, memórias do Tejo, no Núcleo Naval de Arrentela e subsequente edição do seu catálogo. Teremos então a ocasião de sistematicamente descrever cada objecto e procurar contextualizar cada representação, expondo parte da colecção, restaurada nos últimos anos, enquadrada num dos subtemas da referida exposição, sobre Pormenor de modelo de falua executado por Fernando Dâmaso. Inv. EMS.2003.10 © EMS/CDI, António Silva, 2003. Trabalhar no Tejo. Por agora, dando resumidamente a conhecer a nossa colecção de modelos e miniaturas de barcos tradicionais do Estuário do Tejo – e não esgotando a divulgação de maquetas de embarcações que fazem parte do acervo do Ecomuseu – limitamo-nos a caracterizar o conjunto quantitativamente e quanto aos tipos de embarcações representadas. Assim, dos 62 objectos considerados como colecção, 56 foram modelos executados à escala e 6 constituem miniaturas ou maquetas sem escala determinada. Tendo todos eles casco e palamenta executados à base de madeira, do conjunto fazem parte 37 modelos produzidos no contexto da actividade oficinal e/ou de formação do Ecomuseu. Os tipos de barcos representados são, uns, de tráfego local - barco de água acima, barco do tráfego de Vila Pormenor de modelo de barco de água acima executado por Luciana Casanova. Inv. EMS.R.1990.420 © EMS/CDI, António Silva, 2003. Franca de Xira, batelão, bote-de-fragata, bote a remos, bote cacilheiro, bote do pinho, bote do Seixal, cangueiro, catraio, falua, falua do Bugio, fragata, lancha fragateira e varino – enquanto outros são de pesca: bote-de-tartarenha, buque, canoa das redes do tapa esteiros, chata de apoio ao tapa-esteiros, canoa da picada, canoa do Seixal, chata da Costa da Caparica, chata de vela latina, chata com remos, dóri, enviada, meia-lua, muleta, saveiro e tapa-esteiros. [Graça Filipe]


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Comércio local e espaços de memória Ainda fazem parte da memória colectiva a venda ambulante e a oferta de serviços no quarteirão ou no bairro, apregoada na rua, à porta das casas, assim como as lojas a cujo balcão se recorda, quase sempre por longo tempo, um mesmo rosto, proporcionando, inerente ao comércio tradicional, estreitos laços pessoais, a que, por vezes dramaticamente, se associam rotinas de sobrevivência familiar. Ligadas ao comércio e aos serviços, as relações de sociabilidade não deixaram de se modificar ao longo do último século, com as transformações ocorridas na economia e no espaço urbano, o consequente redimensionamento dos espaços comerciais – mercados, lojas, armazéns – e as modificações do trabalho ligado ao comércio – nomeadamente aprendizagens e competências, horários e outras formas de enquadramento profissional.

«Antigamente havia muito comércio, por exemplo a Mundet a trabalhar, a Wicander e havia as secas do bacalhau que traziam muita gente do Norte [do país]. O negócio era próspero" (...)Já se sabe, os negócios eram baixos e o dinheiro era curto, mas fazíamos grandes avios, naquele tempo. (...) Vendia-se avulso.» Anúncio "O Seixalense", nº. 139, 1930

Joaquim Francisco Henrique (75 anos, 2003), merceeiro, Seixal.

Em 1911 foi inaugurada a Cooperativa Operária de Consumo 31 de Janeiro. As necessidades do operariado eram levadas em conta também pela firma Mundet que, segundo nos testemunhou em 1999 Amélio Cunha (seu antigo escriturário, na Amora) «formou uma cantina, com pessoal pago, caixeiros(...), como se fossem empregados deles. (...), estavam ao balcão e serviam os operários.» Na Amora foi em 1949 que se fundou a Sociedade Cooperativa Progresso e União Amorense. Guardam-se as memórias da falta de recursos da população:

Memórias e Quotidianos

Anúncio "O Seixalense", nº. 182, 1939

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Antigo mercado do Seixal © EMS/CDI, Nelson Cruz, 1990.

A partir da segunda metade e sobretudo de finais do século XIX, com a industrialização e o incremento dos transportes - fluviais, até meados do século XX e rodoviários a partir da década de 60 da mesma centúria - o comércio local desenvolveu-se no Concelho, dando lugar a um número crescente de lojas e a mercados. Não obstante o crescimento da actividade industrial e inerente concentração de mão-de-obra operária, a região manteve em parte, até meados do século XX, o cariz rural inerente à exploração vitivinícola e à fruticultura, que davam rendimento aos proprietários das quintas.


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«Lembro-me de comprar 10 reis de açúcar quando ia aos recados à minha mãe. A maioria era tudo fiado. Pagava-se uma e ficava outra.» Pastora Baptista Lira (84 anos, 2002), doméstica.

«Não havia o avio da semana. Ia-se aviar quando havia dinheiro... Os pescadores andavam no mar, quando vinham para terra a gente ia-se aviar à loja. Às vezes: Ó tia Maria, assente no rol, quando o meu pai vier a gente paga. E o padeiro era a mesma coisa. Ia-se à padaria buscar o pão e ia para o rol.» Rosalina da Saúde Filipe (84 anos, 2002), antiga operária corticeira na Mundet.

«(...) compravam fiado. Pagavam à semana.Vinham comprar pagavam a anterior e ficava a actual por pagar. Eu apontava no livro, era o rol, e elas levavam o livrinho, se quisessem somar, somavam e já sabiam quanto tinham... » João Basilde dos Santos (91 anos, 2002), merceeiro, Aldeia de Paio Pires

A dureza das condições de trabalho e os prolongados horários a que se sujeitavam aprendizes e caixeiros, também abrangiam comerciantes, pois só alguns proporcionavam emprego fora da família: «(...) vim para aqui em 1924, ainda não tinha treze anos, para a mercearia de um tio meu (...) era todo o dia a trabalhar até às duas da noite, ao sábado. Eu no Inverno tinha as mãos cheias de gretas, das frieiras, de estar a arear as balanças com cinza e limão. Era domingo e tudo, trabalhava-se. Não tinha horário. Só mais tarde (...) reuniram todos e fecharam depois da parte da tarde ao domingo.» João Basilde dos Santos

«Tinham às vezes um rapazinho para ajudar, se fosse preciso e davam ali qualquer coisa, uma bagatela, e eram os familiares. Quem tinha empregados, nesse tempo, que eu me lembre, era o Américo da loja, tinha o Quim, tinha um rapaz de Lisboa.» Rosalina da Saúde Filipe.

«Antigamente abria-se às oito e fechava-se às nove e estava aberto à hora do almoço.Todo o merceeiro tinha que passar por aprendiz. Fui empregado, enquanto miúdo, até me estabelecer. Era salário, comida e dormida." António Vieira (81 anos, 2002), merceeiro, Arrentela.

Francisco Lopes Brandão ao balcão da sua mercearia, no Seixal © EMS/CDI, Laudelina Emídio, 2002.

«Assim que saí da escola, fiz o exame com onze aninhos, doze (...) queriam um mocinho para fazer um mandado e chegava ao fim-de-semana toma lá dois tostões ou três tostões, toma lá uma camisola velha, a tua mãe que arranje, toma lá uns sapatos, hoje almoças cá... E assim prendi-me ao comércio.» Francisco Lopes Brandão, 69 anos (2002) merceeiro, Seixal.

Francisco Brandão, que é decerto um dos comerciantes mais antigos em actividade no Seixal - Sr. Chico - expressou-nos a opinião de que "O mais forte aqui do Seixal eram as mercearias e as tabernas."


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As tabernas ocuparam um lugar próprio no comércio local, sendo espaços com uma especificidade associada à função de convivialidade masculina. Mas outras lojas antigas continuam a ser recordadas e ainda detêm um papel importante como espaço social: «As senhoras (...) vêm aí, fala-se qualquer coisa e assim se passa o tempo. Reúnem-se aqui neste espaço. Geralmente depois do almoço, depois de terem as coisas arranjadinhas é que elas vêm. Sempre foi assim.» Francisco Lopes Brandão

«(...) se vier cá de manhã ou se vier cá ao fim da tarde vê que eu estou sempre aqui rodeada com três ou quatro velhotas porque elas gostam muito de vir para aqui para o pé de mim falar, conversar mesmo sem comprarem nada. (...) Se for ali à tal mercearia, que eu lhe digo [do Sr. Chico], acontece exactamente a mesma coisa. Ele ainda tem lá as cadeiras antigas (...)". Ana Sequeira (2002), retroseira, Seixal.

Abordando este universo de lojas designadas antigas e do comércio dito tradicional o Ecomuseu Municipal do Seixal relaciona-o com um património imaterial, que requer pesquisa urgente, ao pretender-se registar e documentar as práticas, representações, expressões, conhecimentos e saberRetrosaria no Seixal © EMS/CDI, Laudelina Emídio, 2002. -fazer – assim como os seus instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que se lhes associam – que as comunidades, os grupos e as pessoas virão a reconhecer como parte do seu património cultural. Este é, contudo, um domínio complexo de intervenção do museu, sendo necessário um envolvimento de outras entidades, para se assegurar a Ana Sequeira atendendo uma freguesa na sua retrosaria, no Seixal © EMS/CDI, Laudelina Emídio, 2002. vitalidade de tais práticas. Tendo-se iniciado algumas pesquisas, apostamos em chamar a atenção da nossa comunidade de leitores e Amigos para esta realidade, com a participação interessada dos comerciantes de alguns dos mais antigos estabelecimentos do Concelho, a cujos balcões também os fregueses mantêm vivas memórias de muitas décadas. Uma realidade e um universo em que se cruza património cultural e visão crítica, do presente e do futuro, se cruzam, mais uma vez. Hoje em dia, mal temos tempo para reflectir sobre as nossas formas de consumo e como o comércio impôs ao nosso quotidiano e, porventura, às nossas opções de vida, rotinas padronizadas a um nível de decisão muito distante das nossas primeiras necessidades e que há muito ultrapassaram a escala local e mesmo nacional. É, pois, natural o interesse saudoso pelas lojas "antigas" e pelos benefícios do "comércio tradicional", enquanto à grande maioria dos cidadãos parece não ser dada oportunidade de reagir à imposição, senão nos seus hábitos de consumo, pelo menos na envolvente e na paisagem, das "grandes superfícies", que, sob pretexto e promessa de potenciar uma nova qualidade de vida, estampam no seu olhar (irreversivelmente?) o desaconchego cada vez maior do espaço urbano e tornam cada vez mais difícil identificá-lo, também, através do comércio local. [Graça Filipe, com recolha oral de Laudelina Emídio]

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Património Cultural do Concelho

O Núcleo Urbano Antigo de Amora Sendo uma povoação que nasceu e cresceu em terrenos encravados entre quintas senhoriais e ao longo dos caminhos que serpenteavam entre essas propriedades, o topónimo Amora é bem evocativo do ambiente bucólico que caracterizou a envolvente do Núcleo Urbano Antigo até ao terceiro quartel do séc. XX. Sem dados que permitam avançar uma datação precisa para as origens do povoado, lembramos que existem, em áreas relativamente próximas, importantes vestígios da ocupação romana (Quinta do Rouxinol) e medieval (Quinta de S. Pedro). A povoação da Amora desenvolveu-se em duas zonas principais: a primeira, ainda hoje conhecida por Amora de Cima, que se estendia do Largo do Cruzeiro às imediações da Igreja Paroquial; a segunda, dita Amora de Baixo, que parte do local conhecido por Fonte da Prata e se estende ao longo da margem da Foz do Rio Judeu, vulgarmente designada por Baía do Seixal. Não existe qualquer certeza sobre o conjunto edificado que surgiu primeiro.A Igreja já existia no século XVI, conforme atesta uma inscrição no púlpito. As construções originais, hoje transformadas ou substituídas, que confinavam com o Adro, poderão ter surgido naquela época, embora nada garanta que não existissem construções anteriores no local. Na Amora de Baixo, a já mencionada zona da Fonte da Prata, bem próxima da Quinta da Medideira, será indubitavelmente a parte mais antiga deste conjunto. De facto, a Capela de Nossa Senhora da Piedade, integrada numa banda de pequenos imóveis, remontará, pelo menos ao séc. XVIII. A própria Largo do Adro da Igreja Paroquial de Amora. malha urbana deste local Reprodução de fotografia adquirida a Foto Messias. ainda denota influências pré-barrocas, na espontaneidade do traçado das ruas que a compõem. Confinando a sul com o Largo Manuel da Costa, temos mais um conjunto de edificações. Entre os dois referidos conjuntos, existe uma descontinuidade na malha urbana. Será interessante verificar, nomeadamente através de trabalhos arqueológicos, se a área ocupada pela Cooperativa e pelo moderno Centro de Dia da Terceira Idade de Amora terá sido anteriormente ocupada com outros edifícios. A ocupação da faixa de terreno ao longo do Rio resulta de diversas circunstâncias, que seria controverso ordenar por importância relativa, pelo que nos limitaremos a referi-las: as actividades ligadas ao Rio, como sejam a construção e reparação de embarcações, a pesca e o transporte de mercadorias, levando, indubitavelmente, à construção de Estaleiros (o Venâncios foi demolido há menos de uma década), e à fixação das pessoas que exerciam ofícios náuticos; a instalação de vários e importantes estabelecimentos industriais. Por fim, não podemos esquecer que a faixa de terreno junto ao Rio, ampliada por sucessivos aterros, era a área não ocupada pelas grandes quintas senhoriais. E o desenvolvimento do actual Núcleo Urbano Antigo decorreu numa época em que o estatuto de riqueza estava tradicionalmente mais associado à posse de terra do que propriamente ao numerário. Esta situação não era propícia à especulação fundiária ligada à construção, sendo mais importante preservar a integridade dos limites das propriedades. A parte mais recente do Núcleo Urbano Antigo será a extensa banda de edifícios, maioritariamente composta pelo Bairro Operário da Fábrica de Garrafas de Vidro da Amora. Neste caso, a fixação dos trabalhadores foi, evidentemente, a causa da construção destes imóveis. Referiremos agora alguns dos edifícios notáveis da Amora. Na zona alta, haverá a destacar a Igreja Paroquial, que tem como orago Nossa Senhora do Monte Sião. Como atrás referimos, o templo já existia no séc. XVI, tendo sofrido danos por


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ocasião do Terramoto de 1 de Novembro de 1755, como aliás terá acontecido com a quase totalidade dos edifícios da região, de acordo com documentos da época. Uma das torres sineiras permanece inacabada, ignorando-se se não terá sido reconstruída ou se não teria sido originalmente terminada. Num pequeno largo ainda sobrevivente à voragem da urbanização, existiu um Cruzeiro, hoje evocado por um pobre testemunho. Neste largo, as antigas e humildes casas têm vindo a ser sucessivamente abandonadas, demolidas com o argumento do estado de ruína e substituídas por novíssimas e vistosas moradias. Ao fundo das Escadas da Igreja, podemos observar um pequeno marco fontanário, constituído por um pilar em ferro fundido, de produção industrial, instalado na década de 50 do séc. XX, no âmbito da instalação da rede pública de distribuição de águas. Dirigindo-nos para nordeste, a caminho da Fonte da Prata, passamos pela Escola Básica, anteriormente designada por Escola Primária. É um dos vários Modelos Urbanos contemplados pelo Plano Centenário, desenvolvido e implementado no período do Estado Novo. Seguindo o nosso caminho, deparamos com outro edifício notável, sito na Rua Conselheiro Custódio Borja, nos. 1 e 3. Neste imóvel residiu aquela notável figura. Mais tarde, ali viria a funcionar a primeira escola primária da Amora.

Marginal ribeirinha de Amora (Av. Silva Gomes). Reprodução de fotografia adquirida a Foto Messias

Depois, temos o conjunto edificado da zona da Fonte da Prata e Quinta da Medideira. Aqui, destacaremos a já mencionada Capela de Nossa Senhora da Piedade, também conhecida como Capela da Medideira.A imagem do orago é objecto de grande veneração por parte dos amorenses, sendo tradicionalmente realizada uma procissão, no dia 14 de Agosto, mas que parece ter o futuro ameaçado pela fraca receptividade da actual proprietária. Do lado sul da rua, podemos aceder ao edifício da cooperativa Progresso e União Amorense, que as gentes da terra cognominaram orgulho de Princesa das Cooperativas (com humildade, reconheciam o título de Rainha das Cooperativas à Sociedade Cooperativa Piedense, da Cova da Piedade e antiga proprietária da Quinta da Argena, sita em Santa Marta de Corroios). Este edifício teve várias valências, entre elas o Pólo de Amora da Biblioteca Municipal. Continuando o nosso percurso para a marginal, deparamos com um importante conjunto edificado, sito entre o Núcleo Urbano Antigo e o Rio, constituído pelo imóvel da antiga fábrica de moagem e descasque de arroz a vapor, que remonta a meados do séc. XIX, posteriormente adaptado e integrado nas instalações da fábrica corticeira Mundet & Cª. Lda. de Amora, que começou a laborar a partir de 1917. Passando pelos restantes edifícios da citada corticeira, encontramos as instalações da Associação Naval Amorense, que muito tem contribuído para o desenvolvimento das actividades desportivas náuticas. A norte, fora dos limites do Núcleo Urbano Antigo, mas de grande importância para o crescimento demográfico, resultante da oferta de emprego que atraía uma população bastante jovem, encontravam-se diversas indústrias, de dimensões e volume de

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negócios muito variável. Além dos estaleiros navais, destacaremos a Fábrica de Explosivos, sita no Cabo da Marinha que, após vários e graves acidentes, viria a ser transferida para Vale de Milhaços. Continuamos agora com o Rio à vista. Ultrapassando uma pequena banda de construções, chegamos ao Largo Manuel da Costa. Aqui, vamos encontrar outro Marco Fontanário, de constituição e época de instalação em tudo iguais ao das Escadas da Igreja. Mas, neste caso, o Marco Fontanário foi integrado numa operação de requalificação urbana, promovida pela Câmara Municipal do Seixal. Através de testemunhos fotográficos, sabemos terem existido mais chafarizes, poços e marcos fontanários na zona ribeirinha da Amora. Infelizmente, deles já só resta a saudade. Ainda neste Largo, podemos ver um dos poucos cais que sobreviveram às intervenções urbanísticas. A sudoeste deste largo, encontramos a sede da Sociedade Filarmónica Operária Amorense, inaugurada em 1958 e sita na rua do mesmo nome, um dos símbolos dos bem-sucedidos esforços de emancipação cultural da classe operária. Prosseguindo a nossa caminhada, deparamos com o Largo 5 de Outubro, onde se ergue orgulhosamente, desde 1907, um dos dois coretos que ainda testemunham a forte tradição musical cultivada pela laboriosa população do Concelho. Este coreto, financiado por subscrição pública, pertenceu à Sociedade Filarmónica local. Recentemente, foi objecto de obras de restauro, promovidas pela Câmara Municipal. Passada mais uma pequena banda de edifícios, chegamos ao Bairro Operário. Exemplo arquitectónico raro no Concelho, principalmente após a recente demolição do bairro operário da Sociedade Africana de Pólvora em Vale de Milhaços, este conjunto começou por ser conhecido como Bairro dos Alemães, nacionalidade predominante dos operários que vieram trabalhar a partir de finais do século XIX para a fábrica de vidros. O equilíbrio de nacionalidades viria a sofrer alterações radicais durante e após a Primeira Guerra Mundial (em que Portugal interveio de 1916 a 1918), quando na população portuguesa surgiram intensos sentimentos antigermânicos, motivados pelo confronto das forças militares durante aquele conflito. As instalações do Bairro Operário incluíram uma Escola Primária, que funcionou num imóvel sito entre a Avenida Silva Gomes e o Rio, já perto do limite Sul do Núcleo Urbano Antigo. Hoje em dia é difícil imaginar a imponência da fábrica relativamente ao pequeno aglomerado urbano. Imagens da sua época áurea mostram-nos um vasto conjunto de instalações fabris, que se estendia pela área a tardoz do Bairro Operário até aos terrenos actualmente ocupados pela Escola Paulo da Gama. A indústria vidreira instalou-se na Amora em 1888. No ano seguinte, já existiam duas empresas, sitas em duas propriedades contíguas, a Quinta das Lobatas e a Quinta Maria Pires. Década e meia mais tarde, uma nova empresa viria reactivar as instalações da mais antiga, que entretanto cessara a laboração. Seria apenas em 1909 que as empresas se fundiriam, dando origem à Companhia das Fábricas de Garrafas de Vidro da Amora. Potenciando o uso das propriedades, as empresas viriam a instalar os operários na faixa à beira da estrada, que acreditamos ter sido, em boa parte, conquistada ao leito do rio, através de aterros. Em parte dos terrenos da antiga fábrica vidreira, viria a ser implantada, em 1935, a fábrica Produtos Corticeiros Portugueses e posteriormente a Queimado & Pampolim, Lda., também corticeira. Por último, diremos que a cércea predominante dos imóveis do Núcleo Urbano Antigo continua a não exceder os dois pisos. Este facto, aliado à pequena cota dos terrenos da Amora de Baixo, agrava a minimização em termos paisagísticos, motivada pela densidade e elevada cércea da ocupação urbana das antigas Quintas, sitas a poente da zona ribeirinha. O impacto das novas urbanizações é particularmente notório quando observado do miradouro da Igreja Paroquial de Arrentela. O conjunto do Bairro Operário está ameaçado, quer pelo abandono de algumas casas, quer pela tendência de ocupação pelo sector terciário, que se tem vindo a acentuar. [João Paulo Santos]


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