ecomuseu informação BOLETIM TRIMESTRAL DO ECOMUSEU MUNICIPAL DO SEIXAL
OUTUBRO . NOVEMBRO . DEZEMBRO
n.º 37 . 2005
Aumentar e diversificar a frequência e a participação dos públicos, em interacção com a comunidade As actividades do Ecomuseu divulgadas neste último boletim de 2005 perspectivam, por um lado, um intenso trabalho destinado a aumentar e a diversificar a frequência e a participação dos públicos. Por outro lado, essas actividades constituem momentos de interacção ou são resultantes de projectos desenvolvidos no âmbito de parcerias, visando a divulgação do património concelhio. Os Núcleos Naval e da Mundet, com as suas actuais exposições, assim como as embarcações Amoroso e Baía do Seixal, acolhem a maioria das iniciativas para que se convidam os públicos do Ecomuseu do Seixal. Salienta-se porém a apresentação de uma exposição num espaço associativo, organizada conjuntamente com a Comissão de Festas em Honra de Nossa Senhora da Soledade e contando com a participação da Paróquia de Arrentela. ÍNDICE 3. EXPOSIÇÕES
10.11.12 .
17.18.19.
4.5.6. PROGRAMA DE INICIATIVAS
CONHECER
PATRIMÓNIO CULTURAL
DO SERVIÇO EDUCATIVO
A colecção de azulejaria da
DO CONCELHO
6.7 AGENDA
Quinta da Trindade, no Seixal
O Património Cultural Imóvel
8.9.TEMA DE REFLEXÃO
13.14.15.16.
e a expansão urbanística
Qualificação e desenvolvimento
MEMÓRIAS E QUOTIDIANOS
do concelho do Seixal
do EMS.
O passado no presente:
(I) Princípios da política
relatos de vidas dedicadas
museológica face à Lei-Quadro
à cortiça e à Mundet
dos Museus
02 ECOMUSEU INFORMAÇÃO . nº 37 OUT.NOV.DEZ 2005 A diversidade temática centrada no nosso território continua a ser uma mais-valia e simultaneamente um desafio para a planificação e o trabalho do Ecomuseu Municipal, num processo em que se estreitam relações com outras entidades e parceiros, locais e exteriores. As edições assinalam-se também como importante meio de difusão a que a Câmara Municipal do Seixal continua a dedicar uma particular atenção, rentabilizando os recursos técnicos e de informação que o Ecomuseu desenvolve ou para cuja promoção contribui. Outro aspecto que se salienta na actividade museológica municipal do último trimestre do ano é a articulação entre dois ciclos de organização dos recursos museais e de prestação de serviços ao público e utilizadores, reconhecendo a importância de atender, no Programa de Iniciativas do Serviço Educativo, a necessidades e interesses específicos da comunidade educativa. Procurando simultaneamente fazer evoluir projectos locais e projectos mais abrangentes, seja no âmbito da Rede Portuguesa de Museus, seja em colaboração com outras entidades exteriores, para além de museus, existe um propósito de transversalidade e de descentralização, através das quais consideramos contribuir, passo a passo, no âmbito da acção de museu municipal, para um desenvolvimento integrado de recursos e para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos no Concelho. (...) existe um propósito de transversalidade e de descentralização, através das quais consideramos contribuir, passo a passo, no âmbito da acção de museu municipal, para um desenvolvimento integrado de recursos e para a melhoria da qualidade de vida (...)
Pretendendo não só comunicar com públicos de várias gerações, como potenciar a comunicação destas, entre si, dando lugar à transmissão e à construção de memórias, sem dúvida que o Ecomuseu poderá ter um papel tanto mais activo quanto for capaz de interagir continuadamente com públicos e profissionais jovens. A renovação de recursos, essencial no saber-fazer e na aplicação de saberes técnicos, está intimamente associada à exigência de períodos relativamente longos que os museus precisam de investir nos seus projectos, por forma a que os seus resultados sejam socialmente relevantes. Em relação aos museus e à sua função social, e no quadro das políticas culturais, são necessárias acções duradouras, algumas assegurando-se mesmo em permanência, procurando fazê-lo de formas sustentáveis e com a participação das comunidades, para a preservação de patrimónios que, enquanto recursos de desenvolvimento, não são bens renováveis. [Graça Filipe]
WWW.CM-SEIXAL.PT/ECOMUSEU
FICHA TÉCNICA FOTO CAPA Ex-voto proveniente da Igreja Paroquial de Arrentela, evocativo da protecção de Nossa Senhora de Soledade. Óleo sobre madeira, Autor desconhecido (séc. XIX), refª inv. EMS 1990.14D. Em exposição: Núcleo Naval, “Barcos memórias do Tejo”
EDIÇÃO
DIRECÇÃO
GRAFISMO E REVISÃO
TIRAGEM
Câmara Municipal do Seixal Ecomuseu Municipal do Seixal
Graça Filipe
Sector de Apoio Gráfico e Edições da C.M.S.
6000 exemplares
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
0873-6197
EMS/CDI, António Silva, Cézer Santos, João Martins, Rosa Reis e Mouette Barboff
106175/96
TEXTOS/INVESTIGAÇÃO
Graça Filipe, Ana Luísa Duarte, Fátima Sabino, João Paulo Santos INFORMAÇÃO/AGENDA/
Distribuição gratuita Assinaturas a pedido junto do EMS
/NOTÍCIAS
IMPRESSÃO
Carla Costa e Graça Filipe
Fotolitaria - Gabinete de Produção Gráfica Lda.
ISSN DEPÓSITO LEGAL
TEMA DE REFLEXÃO «estamos abertos a receber (...) sugestões quanto ao futuro Regulamento do EMS, sobretudo nas vertentes da sua interacção com as comunidades (...)»
Qualificação e desenvolvimento do EMS. (I) Princípios da política museológica face à Lei-Quadro dos Museus Decorridos quatro anos e meio após a aprovação, pela Câmara Municipal do Seixal, do Programa de Qualificação e de Desenvolvimento do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS) para o período de 2001 a 2006, iniciamos neste trimestre a publicação, como Tema de reflexão, de uma série de textos baseados no nosso trabalho de avaliação dos objectivos e dos projectos abrangidos nos dois principais eixos de reprogramação museológica então estabelecidos (um eixo reportado à qualificação dos núcleos museológicos existentes e à musealização da Mundet, outro eixo destinado à constituição de um circuito museológico industrial). A reflexão sobre os resultados atingidos, os problemas e as limitações à qualificação e ao desenvolvimento de alguns projectos do EMS remete-nos simultaneamente para a análise de actualização do enquadramento legal, atendendo a um novo e importante instrumento, a Lei-Quadro dos Museus Portugueses – nº 47/2004, de 19 de Agosto. Não só pretendemos partilhar aspectos da reflexão e da nossa discussão interna, como estamos abertos a receber quer contributos críticos para uma discussão mais alargada dos problemas que se vão enunciando, quer eventuais sugestões quanto ao futuro Regulamento do EMS, sobretudo nas vertentes da sua interacção com as comunidades e da sua relação com os públicos/utilizadores. O EMS integra e gere espaços, sítios e acervos como recursos de desenvolvimento, enquanto espaços vivenciáveis e/ou fruíveis, que potenciem a transmissão de memórias e sejam elementos dinâmicos de construção da memória social. A actividade e a gestão do património ligado ao EMS, num território em mudança, devem ancorar-se em princípios e métodos de trabalho fundamentados na avaliação, entre outros aspectos, da relação entre as potencialidades devidas à emergência do projecto Mundet e de outros processos de patrimonialização e a lentidão de concretização ou mesmo paragem de alguns projectos. Preocupa-nos o efeito do retardamento de acções, quer no plano da preservação física, quer numa perspectiva social e cultural, por exemplo adiando a devolução à comunidade, como espaço de vivências urbanas, de sítios industriais identificados pelo seu valor patrimonial, correndo os riscos de quebra da cadeia transmissora de memórias de várias gerações, associadas ao trabalho. A sustentabilidade do acrescentamento e da valorização de novos patrimónios, potencialmente recursos de desenvolvimento local e realidades socialmente agregadoras, implica a apropriação e a oportunidade de envolvimento por parte da comunidade, assim como a activação de mecanismos de reconhecimento formal, em que os museus tomam parte, entre outros organismos, se tal for decisão das suas tutelas.
Forno de fundição na Quinta da Trindade, após intervenção de consolidação pela CMS/Ecomuseu com o apoio da Euroárea © EMS/CDI – Cézar santos, 2005
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TEMA DE REFLEXÃO
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Pretendemos enquadrar a nossa experiência territorial numa política museológica local continuando a privilegiar as nossas especificidades e a identidade pouco a pouco adquirida pelo EMS, mas naturalmente sem perder de perspectiva a política museológica nacional, particularmente do ponto de vista dos progressos da Rede Portuguesa de Museus. Com base no artigo 2º da Lei 47/2004, de 19 de Agosto, que parcialmente transcrevemos, vejamos assim os princípios nele consignados, a que deve obedecer e que consideramos subjacentes a essa política museológica: - a afirmação dos museus como instituições indispensáveis para o desenvolvimento integral [da pessoa]e a concretização dos seus direitos fundamentais; a promoção da cidadania responsável, [constituindo] os museus instrumentos indispensáveis no domínio da fruição e da criação cultural, estimulando o empenhamento de todos os cidadãos na sua salvaguarda, enriquecimento e divulgação; serviço público, através da afirmação dos museus como instituições abertas à sociedade; coordenação [na criação e na qualificação de museus], de forma articulada com outras políticas culturais e com as políticas da educação, da ciência, do ordenamento do território, do ambiente e do turismo; transversalidade, através da utilização integrada de recursos nacionais, regionais e locais; informação, com o fim de permitir em tempo útil a difusão o mais alargada possível e o intercâmbio de conhecimentos, a nível nacional e internacional; supervisão, [através de] acções promotoras da qualificação e bom funcionamento dos museus e de medidas impeditivas da destruição, perda ou deterioriação dos bens culturais neles incorporados; descentralização, através da valorização dos museus municipais e do respectivo papel no acesso à cultura, aumentando e diversificando a frequência e a participação dos públicos e promovendo a correcção de assimetrias neste domínio; cooperação internacional, através do reconhecimento do dever de colaboração, especialmente com museus de países de língua oficial portuguesa, e do incentivo à cooperação com organismos internacionais com intervenção na área da museologia. As especificidades do EMS, emanadas da sua missão e susceptíveis de uma contínua adequação ao território de referência, não devem interferir na aplicação dinâmica e criativa de tais princípios, nomeadamente quanto às prioridades e opções de qualificação a tomar em três principais domínios, indissociáveis entre si, de planificação e de programação: o do acervo (e das colecções museais), o do pessoal e dos recursos técnicos humanos (verdadeiramente condicionante do modelo de gestão e provavelmente a área mais condicionada pela forma de articulação da tutela com os demais elementos gestores) e o da comunidade e dos públicos. Tornou-se do senso comum reconhecer que o mundo dos museus mudou, mesmo que nem sempre tenhamos dados objectivos para uma avaliação concreta das mudanças, quantitativas e qualitativas, da nossa realidade museal. Indiscutivelmente, as comunidades (sobretudo em experiências como a do Seixal, entre outras) e os públicos (mais acentuadamente nos museus de tutela nacional ou em que as tutelas políticas investiram nas potencialidades de mediatização das instituições museais) tomaram um lugar muito importante. No caso do EMS defendemos que é ainda necessário privilegiar a sua ancoragem social e de estreita relação com as comunidades, tanto ao nível do acervo como da proximidade de relações, em sentido funcional e patrimonial, do seu pessoal e equipa técnica, com as comunidades. Porém, face à globalização e reconhecendo a crescente importância do domínio dos públicos, o EMS, com outros museus, carece(m) de um trabalho sucessivamente convergente para satisfazer e qualificar os seus públicos, quer porque devemos aproveitar melhor e partilhar meios de divulgação e de conhecimento, quer porque podemos ajudá-los a distinguir e a escolher produtos e serviços, segundo as necessidades, não só a nível de oferta cultural diferenciada que lhes podemos proporcionar, mas também num plano mais exigente de interacções e de possíveis envolvimentos que entre grupos de interesse e museus se possam estabelecer. [Graça Filipe]
CONHECER «O maior [...] conjunto é [...] o da azulejaria setecentista, particularmente a de composição figurativa, pela sua diversidade temática e riqueza iconográfica»
A colecção de azulejaria da Quinta da Trindade, no Seixal “SEIXAL, Quinta da Trindade. De notar, pela quantidade e variedade, os painéis historiados do século XVIII, já isolados em séries iconográficas. Vemos figurações dos Quatro Elementos, das Quatro Estações, e dos Cinco Sentidos: cenas religiosas, cenas venatórias e profanas. Trata-se na verdade, de um conjunto notável – quase diríamos «mostruário» – de azulejaria setecentista, com exemplares raros do primeiro quartel e painéis de composição convencional dos meados do século. Infelizmente nem todos os quadros estão íntegros e bem agrupados.” SIMÕES, João Miguel dos Santos (1979) – Azulejaria em Portugal no Século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 376.
Painel de azulejos hispano-árabes (séc. XVI), refª inv. EMS 1996.84 © EMS/CDI – Fernando Falcão
A Quinta da Trindade, imóvel classificado, propriedade municipal e núcleo do Ecomuseu, detém, além de outro património, um conjunto de aplicações azulejares que vão de produções quinhentistas sevilhanas a exemplares monocromáticos do final do século XIX e inícios do XX, passando por azulejaria seriada e figurativa dos séculos XVII e XVIII, proveniente de olarias de Lisboa. A colecção, presentemente objecto de inventário e fotografia digitais, indispensáveis a trabalhos subsequentes de investigação e conservação, presume-se constituída de modo peculiar, naturalmente tido em conta para a definição de critérios a adoptar na respectiva documentação, em resultado da qual foram identificadas 161 aplicações ainda em suporte arquitectónico (nºs de inventário 2003.963 a 2003.990, 2003.1028 a 2003.1142 e 2003.1357 a 2003.1374), a que acrescem vários painéis já levantados por imperativos de conservação, e outros que se encontraram encaixotados mas evidenciando, desde logo por estarem incompletos, terem já estado aplicados algures, de onde foram arrancados.
Painel de azulejos ornamentais (séc. XVIII), refª inv. EMS 2003.1114 © EMS/CDI – António Silva
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CONHECER
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De facto, a junção de produções de tipologias e épocas diversas – por exemplo, hispano-árabes com azulejos de pó de pedra brancos já do século XX, ou diferentes padrões de azulejos seiscentistas numa mesma unidade de suporte, como é o caso do painel de azulejaria de padrão do século XVII aqui apresentado, enfim, a dispersão de um determinado programa temático de azulejaria figurativa por várias dependências da casa, apontam para sobreposição de proveniências. Da primitiva quinta da Ordem da Santíssima Trindade e/ou de proveniência desconhecida, certo é que o conjunto azulejar reunido neste espaço é fruto da vontade, opções e gosto dos proprietários que o edifício conheceu entre 1834 e 1982, com destaque para Manuel Martins Gomes Júnior, que sabemos aqui residente em 1907 e falecido em 1943, personagem para quem remetem tanto originais montagens como a falta de integridade de alguns painéis, claramente reaplicados nas primeiras décadas do século XX. Os exemplares mais antigos, entretanto levantados e incorporados nas reservas do Ecomuseu, são de fabrico sevilhano da primeira metade do século XVI, com decoração vegetalista, quase todos executados em técnica de aresta (são poucos os de corda seca), com vidrado a branco, azul, cor de mel, verde e manganês, e formavam um silhar de composição enxaquetada de padrão isolado (2 por 2), com azulejos brancos dos anos quarenta do século XX envoltos por cercadura de placas rectangulares de motivos idênticos ao do padrão . A azulejaria seriada do século XVII é sobretudo constituída por aplicações de padrão policromo, combinando por vezes módulos cronologicamente distintos, como é o caso do que aqui se apresenta, formado por dois padrões e um friso – seguindo a tipologia de Santos Simões, o padrão P-385, do terceiro quartel, está aplicado na parte superior, como se fosse uma barra, delimitado em cima e em baixo pelo friso F-22 enquanto na parte inferior foi usado Painel de azulejos de padrão o padrão P-255, de meados de seiscentos. (séc. XVII), ref.ª inv. EMS 2003.1061 Ainda do último quartel da mesma centúria, temos © EMS/CDI – António Silva azulejaria figurativa, nalguns casos levantada por imperativos de conservação, aqui representada por painel subordinado ao tema da caçada à raposa, praticada pela fidalguia, trajando à época da Restauração. Trata-se de obra provavelmente inspirada em estampas do Álbum De Venationes, gravadas por Philipe de Galle a partir de originais de Ian Van der Strate (Stradanus). A composição, a azul e branco com contornos a manganês, insere-se numa moldura rectilínea de óvulos.
Painel de azulejos de composição figurativa (tema: caçadas, último quartel do séc. XVII), ref.ª inv. EMS 2003.1090 © EMS/CDI – António Silva
O maior e mais rico conjunto é, porém, o da azulejaria setecentista, particularmente a de composição figurativa, pela sua diversidade temática e riqueza iconográfica. A uma série desse conjunto referimo-nos já noutra ocasião, justificando-se que em breve a retomemos de forma mais desenvolvida, bem como a outros exemplares da mesma tipologia.
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CONHECER
Por agora, escolhemos dois outros grupos, o ornamental e o de figura avulsa, o último dos quais frequentemente relegado para lugar secundário, por se lhe atribuir menor valor decorativo, associando-o à utilização em espaços interiores ou exteriores menos “nobres” (cozinhas, corredores, alegretes de jardim, etc.), enquanto alternativa de gente pouco abonada aos magníficos revestimentos historiados, programas de encomenda que só as elites podiam pagar. Da azulejaria ornamental, destacamos um conjunto de cerca de uma dezena de painéis que decoravam as escadarias principais de um edifício nobre civil ou eclesiástico, surgindo aqui desagrupados e, nalguns casos, bastante mutilados, dispersos pela escadaria principal, escadas secundárias exteriores e alegretes do jardim, representando artefactos bélicos – uma armadura rodeada de canhões, lanças, tambores e estandartes, num desenho centrado, em tons de azul claro que contrasta com a cercadura azul escuro de ornatos fitomórficos rocaille.
Painel de azulejos de figura avulsa (1ª metade do séc. XVIII), refª inv. EMS 2003.1054 © EMS/CDI - António Silva.
A azulejaria seriada de figura avulsa é aplicada normalmente em silhar, com uma cercadura específica – parte do desenho (os cantos de “estrelinha”) é igual ao dos azulejos da aplicação interior, particularidade que confere grande unidade decorativa ao conjunto, de tema único ou múltiplo, incluindo representações de flores e frutos, animais, paisagens, figuras, embarcações, etc. No caso do painel aqui representado, da primeira metade do século XVIII, alternam flores e aves, observando-se ainda um coelho e um barco. Concluímos esta brevíssima apresentação, cujo propósito foi o de proporcionar aos leitores do Ecomuseu Informação um primeiro contacto com a colecção de azulejos da Quinta da Trindade, notando que o trabalho de registo e inventário a que começámos por nos referir, mais do que um fim em si mesmo, é um instrumento de excelência para o conhecimento dos objectos e das colecções, e se traduzirá, a prazo, em resultados que por certo partilharemos. [Ana Luísa Duarte] DESTAQUES BIBLIOGRÁFICOS ALBERTO, Edite Martins (1999) – A Quinta da Trindade. História da Ordem da Santíssima Trindade no Seixal. Seixal: Câmara Municipal do Seixal (Património e História, 1).
............................................................. MANGUCCI, António Celso (2003) – Metamorfoses, Ordem e Erudição. A Iconografia das Pinturas Mitológicas no Tecto da Quinta da Trindade. Seixal: Câmara Municipal do Seixal (Património e História, 2).
............................................................. MANGUCCI, António Celso (2005) – “As Gravuras de Nicolas Lancret e os Azulejos da Quinta da Trindade, no Seixal”.
Al-Madan. Almada. IIª Série. 13: 113-118.
............................................................. DUARTE, Ana Luisa (2003) – “As Idades da Vida. Colecção de Azulejaria da Quinta da Trindade”.
Ecomuseu Informação. Seixal. 29: 7-8.
............................................................. SIMÕES, João Miguel dos Santos (1997) – Azulejaria em Portugal no século XVII. Lisboa: Fundação Caloust Gulbenkian, Tomo I: Tipologia, pp. 57, 63, 132, 231.
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MEMÓRIAS E QUOTIDIANOS «[...] a Amora tinha 1200 trabalhadores e o Seixal tinha bem mais de 3000. » - J. Miró
O passado no presente: relatos de vidas dedicadas à cortiça e à Mundet No ano do centenário da instalação da empresa industrial corticeira Mundet no Seixal (1905-2005) voltamos a dedicar esta secção do Ecomuseu Informação às memórias e aos quotidianos que lhe estão directamente ligados. Baseamo-nos em entrevistas direccionadas para as experiências na organização e na gestão da firma, quer na vertente de produção, quer na de comercialização, junto de dois antigos trabalhadores - Mário Nunes Tiago e José Miró Riberas - cujo testemunho registámos pela primeira vez e que assim participaram no nosso trabalho de pesquisa e de recolha oral sobre a indústria corticeira e a história local. Mário Nunes Tiago vive no Bairro Novo, portanto no núcleo urbano antigo do Seixal. Nasceu na Aldeia de Paio Pires, em 1919. O seu pai era natural do distrito de Coimbra e veio trabalhar para uma quinta, na agricultura, até se tornar operário da fábrica de vidros de Amora. Após o encerramento desta, ele não acompanhou a deslocalização da indústria do vidro (para a Marinha Grande e para o Porto) voltando à actividade agrícola, sobretudo ao trabalho nas vinhas e acabando por se tornar caseiro da Quinta da Achorda, no Alto dos Bonecos. Mário Tiago tinha então uns 10 ou 11 anos. Na Amora, embora encerrando a fábrica de vidros e de garrafas, outra importante indústria atraía muita mão-de-obra naquele início de século XX. Em 1917, em Amora, a L.Mundet & Son abria a sua segunda fábrica instalada neste Concelho. Mário Tiago evidencia o papel assumido naquela altura pelo industrial Luiz Gubert: « [...] era um homem que dormia com os olhos abertos. Então, as cortiças vinham do Alentejo e naquele tempo não havia camionetas para carregar aquilo. Vinham era de barco ou de caminho-de-ferro. A razão – uma das razões talvez [...] para abrir a Amora, foi como fechou a Fábrica dos Vidros, havia pessoal excedente da fábrica e com facilidade arranjavam onde trabalhar [...]. Segunda razão, o Rio Judeu é um rio que banha a Amora, a Arrentela, tal e tal. [...] Os barcos varinos iam por ali acima e atracavam àqueles portos. A cortiça era carregada para ali por carroças dos montes das herdades que estavam mais perto era ali, e ali era onde os varinos eram carregados. E só arrancavam dali – olha, este ano estavam mal – quando vinham aquelas grandes enxurradas que eles começavam a flutuar e depois vinham Tejo abaixo. Uns inflectiam para o Seixal e outros, a maior parte, para a Amora. »
Interior de edificio de escritórios, antiga Casa de Infância de Mundet (Seixal) © EMS/CDI
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MEMÓRIAS E QUOTIDIANOS
Mário Nunes Tiago fez a 4ª classe e depois foi trabalhar para o campo, junto do pai, nas videiras ou na apanha da azeitona. Iniciou o seu percurso na Mundet aos 14 anos, em 1933, como faxina, ao mesmo tempo aproveitando a oportunidade de estudar por correspondência – Contabilidade, Desenho, Francês. Dos tempos de faxina até que passou aos serviços de organização, a sua memória percorre a evolução dos processos de produção, incluindo a intervenção dos consultores exteriores e de quem passou pela Mundet. Profissionalmente, evoluiu sobretudo a partir do momento em que passou de operador de máquina de fazer rolhas para encarregado da pesagem, tinha aí uns 25 anos. Nessa altura foi decisiva a sua formação em Contabilidade, conseguida através do seu esforço pessoal. Mais tarde foi chamado a colaborar em estudos operacionais e de organização da empresa, como recorda: «Simplificação de postos de trabalho. [...] É muito doloroso, porque, às vezes, para se simplificar [um processo] de trabalho, muitas vezes, sacrifica-se um operário, o trabalho de um homem. [...] Mas é assim. Estivemos nós [...] a fazer cronometragem, a fazer cálculos de tempo e organigramas e essas coisas. É claro a gente vai ganhando um certo calo e um certo arcaboiço naquilo tudo. De forma que depois foi preciso ir às outras fábricas, associadas à Mundet ou não [...] Percorri o Algarve, percorri o Porto, os Amorins. No distrito: Montijo, Moita. [...] Já me casei com 35 anos, porque sentia que não tinha bases económicas.» A esposa de Mário Nunes Tiago, Teresa Canelas, também trabalhou na Mundet, ao longo de 45 anos: entrou com 18 e saíu com 63. Na Creche do Seixal por ela passaram quase duas mil crianças. Uma nova etapa surgiu na vida profissional de Mário Nunes Tiago, com a saída de um engenheiro da fábrica do Montijo. Graças ao seu trabalho e experiência, iria substituí-lo, passando a dirigir aquela fábrica da Mundet, uns meses antes do 25 de Abril de 1974. Seguindo decisões da gerência, seria depois colocado na secção da prancha da fábrica do Seixal, repartindo porém responsabilidades e rotinas de deslocações semanais na fábrica do Montijo, para onde acabaria por regressar, alguns meses após o 25 de Abril. Aí se ocupou da produção de aglomerados, até ao final do seu desempenho profissional, com 66 anos, em 1985, depois de ter empregue 52 anos de trabalho na firma e pouco tempo antes do encerramento da fábrica, em 1988 e do fim da Mundet. Em Maio de 2005, Mário Nunes Tiago registou algumas das suas memórias num relato que intitulou ”Reviver a Mundet”. Relembrou o percurso da história da empresa, a sua proveniência catalã, passando pela época da sua expansão em Portugal e pelo mundo, até à falência, anunciada por longos anos de má gestão e de interesses alheios à indústria e ao comércio corticeiros, que nem o esforço de numerosos trabalhadores após o 25 de Abril permitiu superar. Em 2005, muitos continuam a aguardar que lhes sejam pagos ordenados em atraso da década de 80 do século XX, por que esperam desde a venda da Mundet em hasta pública, em 1996 .... A par de diferentes origens e percursos de infância, através da Mundet podem cruzar-se interessantes experiências profissionais ligadas à cortiça: foi, por exemplo, o caso dos nossos dois entrevistados, Mário Nunes Tiago e José Miró Riberas, este último natural de Palamós, na província de Girona, na Catalunha. Em 1935, quando José Miró Riberas tinha 6 anos, o seu pai, Jaime Miró Gubert, veio trabalhar para a Mundet de Amora, com a função de encarregado geral da fábrica. O seu avô, o catalão José Miró Girbal, tencionara montar uma fábrica de cortiça em Portugal, pois já tinha um familiar estabelecido na Azaruja. A sua avó tinha laços com uma família cujo nome se liga à cortiça e, concretamente, à Mundet: Luiz Gubert era seu primo. José Miró recorda a sua importância como gerente da firma Mundet & Cª Lda - através do qual, aliás, seu pai ingressou na fábrica de Amora: « (...) o Sr. Luiz Gubert realmente foi um grande homem como indus-
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trial [...] Naquele tempo, os dois maiores industriais que existiam em Portugal, era o Sr. Luiz Gubert e era o Alfredo da Silva da CUF. Eram as duas maiores empresas que havia em Portugal. Até há quem diga que eles quando tinham problemas para resolver se juntavam.[...] O Luis Gubert era um homem pequenino, todo roliço, mas às 7 h e meia já estava na fábrica. » José Miró viveu na Amora (Correr d’Água) até 1939, ano em que a família se mudou do Seixal para o concelho vizinho, Almada, onde até hoje ele mora, no Laranjeiro. Jaime Miró Gubert trabalharia durante perto de 10 anos para outra grande firma corticeira – a Produtos Corticeiros Portugueses, em Amora – voltando porém às funções de encarregado geral da Mundet em Amora por volta de 1949 (até ao encerramento da fábrica, em 1964): «Naquela altura, a Amora tinha 1.200 trabalhadores e aqui o Seixal tinha bem mais de 3000. » Possuindo o 7º ano que concluíra no Liceu Passos Manuel, José Miró entrou, por seu lado, com 20 anos, para a Mundet, em 1950. Viveria os tempos turbulentos - incluindo a saída de gerência de Luiz Gubert e de Joaquim de Sousa - que haviam marcado os anos de crescimento e de afirmação da firma corticeira: «Eles saíram os dois, porque o sobrinho [Joseph Mundet] ganhou o pleito judicial. O advogado deles era o Dr.Bustorf Silva e o outro era o Dr. Azeredo Perdigão. [...] Eu entrei em 50 e já ele [Luiz Gubert] não estava cá. Quando ele saiu em 1950, a Mundet comprou a maior quantidade de cortiça que até hoje uma única empresa comprou em Portugal. Foi um milhão de arrobas de cortiça. Uma arroba são 15 kg, por isso, está a ver, são 15 milhões de kg de cortiça. Até hoje não houve ninguém que comprasse essa quantidade de cortiça numa campanha. [...] Eu lembro-me, quando fui para a Amora, que estive na secção de prancha da Amora, tinha umas pilhas enormíssimas [...] daqueles fardos de amadia com 16 e 17 fardos de altura – e aqui no Seixal era a mesma coisa. [...] Nunca havia falta de matéria-prima. E a vantagem que tinha, era trabalhar a matéria-prima nas melhores condições. [...] tinha pessoal abundante, tinha máquinas que, para a época, eram boas, o que permitia à Mundet fazer uma diversidade de produtos que ninguém mais fazia.» Os relatos de José Miró retratam sucintamente o seu percurso profissional: « [...] disseram-me para onde é que eu queria ir. E eu disse: escritório, não quero, porque eu não me estou a ver sentado numa cadeira. Eu gosto mais do trabalho da fábrica. Então disseram-me assim: com as habilitações literárias que tens, vais [...] aprender a cortiça. E amanhã podes ser um comprador da Mundet, quer dizer da parte técnica. E assim foi. Fui para a secção de prancha da Amora. Estive lá um ano e tal ou coisa assim. Já ia também para o mato, para a escolha da cortiça e compras e tudo o mais. [...]eu tinha que aprender, porque fui leigo na matéria. Havia lá um senhor, que era o encarregado da secção de prancha, que até era espanhol, por sinal.[...] O Julião Garcia é que, evidentemente, começou a ensinar-me [...] Mais tarde veio uma crise, as fábricas passaram a dias e depois admitiram a possibilidade de eu ir para a parte das vendas para Lisboa. Estive 10 ou 12 anos em Lisboa, na secção de pedidos – na secção de vendas – e depois [...] esse Publicidade à Mundet in Revista Indústria Portuguesa 29, 1930
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CONHECER
eng. António da Silva Carvalho pensou em deixar de exportar cortiça em prancha aqui de Portugal e pensou em exportar directamente a partir de Espanha. Então alugaram uma fábrica em Algeciras. [...]Eu devo ter ido para Lisboa em 1952 ou 1953. [...] Saí em 63 para Espanha. Estive dois anos em Algeciras até 1965. E [...] regressei para o Seixal. [...] até 85. A Mundet acho que fechou uns 4 ou 5 anos depois. [...] Fui para a Corticeira Valério. Convidaram-me para ir trabalhar. Até me apareceram dois convites na mesma altura [...]» Da profissão José Miró salienta ainda o benefício de ter viajado muito ao serviço da Mundet, no que chegou a juntar-se a Mário Tiago: « [...] Posso dizer que dei duas voltas ao mundo. É uma recordação que eu tenho e foi um benefício que eu tive da minha actividade profissional. Foi uma coisa com que eu lucrei bastante, foi ter tido a possibilidade de viajar. Se não fosse assim, não tinha possibilidade de ver o mundo. Tive possibilidade de ir várias vezes ao Japão e à Austrália, à Nova Zelândia, Singapura, Arábia Saudita, América do Sul quase toda. Fui à América Central. O continente que eu conheço menos é África. [...] [Fui] à Polónia em 1974 a seguir ao 25 de Abril [...]Fui à Checoslováquia, fui à Hungria, à República Democrática Alemã várias vezes, à Bulgária ...» Quanto à história da Mundet em Portugal e com a experiência que lhe deram os “35 de Mundet” José Miró Riberas relaciona o desmoronar da fábrica com a crescente influência de pessoas que não detinham conhecimentos directamente ligados à matéria-prima e também com erros de administração que seriam insuperáveis já na altura da revolução democrática, antes da intervenção dos trabalhadores, a quem muitos viriam a culpar pela falência, porém há muito previsível: « Quanto a mim, uma das causas (...), foi isto a partir de uma determinada altura, ser entregue a pessoas que não estavam metidas dentro do ramo [corticeiro], nem tinham capacidade para dirigir a empresa, quando havia, dentro da empresa, pessoas que podiam ter sido puxadas. [...] A meu ver, a rede de agentes que a Mundet tinha e a forma como tudo estava montado, podia dar muito mais rendimento do que tratando directamente, porque os agentes eram pessoas que nós já conhecíamos, e eles também conheciam a Mundet, conheciam os próprios clientes e conheciam o mercado deles [...] Outro [erro], evidentemente, foi o facto de terem contratado, por exemplo, engenheiros vários que contrataram para aí e que desconheciam completamente todo o movimento da indústria corticeira e que, afinal de contas, não deram provas de nada. [...] Evidentemente vinham para aqui ganhar uns ordenados muito superiores aos principais responsáveis das fábricas e, ao fim e ao cabo, para nada. [...] Não eram pessoas que tivessem uma actividade produtiva dentro da empresa. » Naturalmente, os anos de trabalho e os percursos profissionais destes dois técnicos corticeiros conciliaram-se de diferentes modos com a sua vida social e familiar, dando hoje lugar a atitudes pessoais distintas face ao passado e ao que recordam da Mundet, pelo menos naquilo que registam como tendo mais importância nas suas vidas. As memórias presentes de Mário Nunes Tiago e José Miró Riberas mostram que a sua vida, os seus êxitos e as suas frustrações os conduziram a seleccionar momentos passados, vivências e protagonistas que consideram marcantes, ora pelo lado positivo, ora pelo lado negativo, no que concerne a Mundet. Muitos desses momentos, alguns factos ou protagonistas recordados, são comuns aos que pudemos registar noutras fontes orais reportadas à fábrica. Frequentemente, convergem com a interpretação de acontecimentos ou fases que se vão delineando através da pesquisa histórica documental em curso pela equipa do EMS, usando nomeadamente o arquivo da empresa. [Graça Filipe e Fátima Sabino]
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PATRIMÓNIO CULTURAL DO CONCELHO «Boa parte dos imóveis construídos para determinado fim permanecem funcionais ou são reconvertíveis [...]»
O Património Cultural Imóvel e a expansão urbanística do concelho do Seixal O Património Cultural Imóvel constitui a vertente material mais partilhada das memórias e identidades colectivas. Deste modo, seria lícito presumir que a sua importância seria mais facilmente valorizada. No entanto, tal não se verifica. O ser humano sedentarizado é um animal de hábitos, diríamos mesmo de rotinas, ainda que não conscientemente assumidas. Os nossos espaços de vivência quotidiana estão repletos de inúmeros objectos, pessoas, animais, usos, costumes e edifícios em que deixámos de reparar, por integrados num cenário que, de tão familiar, se tornou rotineiro. O sentido crítico vai progressiva mas inexoravelmente desaparecendo, sucumbindo à voragem da massificação. As construções e espaços urbanos, no sentido mais lato do vocabulário técnico e portanto, designando também os conjuntos edificados em áreas rurais, que são fruto de saberes, técnicas, tradições e vivências de sucessivas gerações, são metamorfoseados em símbolos de uma suposta pobreza material e espiritual endémica, de modo a servir os interesses de uma sociedade crescentemente mercantilista e consumista. Felizmente, ainda é bastante grande o número de pessoas que, dotadas de maior sensibilidade ou mais esclarecidas, encara a preservação e valorização do Património como um processo de evolução cultural sustentável. De facto, as identidades e memórias colectivas são forjadas num processo contínuo e dinâmico, onde o passado, o presente e o futuro são indissociáveis entre si. É deveras lamentável que os arautos dos valores de uma sociedade contemporânea em que tudo é efémero, onde o passado é ignorado e o presente estará sempre desactualizado em virtude de uma permanente insatisfação, qualifiquem os defensores dos valores patrimoniais como saudosistas, nostálgicos, retrógrados ou até mesmo com epítetos menos brandos, enquanto se reclamam modernistas, progressistas, arrojados, inovadores, dinâmicos, ou qualquer outro termo que sirva como máscara de respeitabilidade para a ambição desmesurada, a sede de poder, promoção ou prestígio, a especulação fundiária e imobiliária. Este antagonismo de posições face aos valores patrimoniais gera, com excessiva frequência, situações em que a intervenção acaba por ser de tal modo protelada que a degradação do Património Imóvel atinge a irreversibilidade. Também sucede que a procura de soluções absolutamente perfeitas e como tal inatingíveis, reflexo directo da permanente insatisfação que acima mencionámos, acaba muitas vezes por resultar em reutilizações desadequadas, economicamente insustentáveis ou mesmo na excessiva prorrogação das intervenções, com os desastrosos efeitos supra referidos.
Quinta da Fidalga, em Arrentela: o conjunto edificado e envolvente arborizada constituem um imóvel com vastas potencialidades de reutilização © CMS – António Silva.
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PATRIMÓNIO CULTURAL DO CONCELHO
O Concelho do Seixal não tem sido incólume aos efeitos inerentes a uma grande, rápida e crescente pressão urbanística. Nas últimas três décadas, nomeadamente, a paisagem do concelho sofreu profundas alterações, com as antigas quintas fraccionadas em numerosos lotes ocupados com grandes edifícios onde predomina o betão armado, de estética fortemente discutível, as árvores dando lugar a candeeiros e as azinhagas ao asfalto. O planeamento não tem sido predominantemente vocacionado para a busca contínua da melhoria da qualidade de vida das populações, ao não promover o contacto das pessoas com a natureza, que lhes permitiria (re)descobrir um mundo de estímulos para os sentidos. De igual modo, os imóveis impregnados de histórias, memórias, saberes e vivências, gradualmente suprimidos, deixam lacunas no processo cultural, que assim se faz por rupturas. A par de investimentos de monta na reabilitação de alguns imóveis de reconhecido valor cultural, tem-se verificado a progressiva adulteração de construções existentes, de importantes conjuntos edificados, nomeadamente os Núcleos Urbanos Antigos, e um alarmante número de demolições. Sem qualquer ordem cronológica ou mesmo de importância relativa, atente-se numa brevíssima relação de alguns dos principais imóveis concelhios com valor cultural, desaparecidos nos últimos vinte e cinco anos: . Chafariz do Largo D. Paio Peres Correia, em Aldeia de Paio Pires; . Casa da Quinta de Nossa Senhora da Soledade, freguesia de Arrentela; . Dois pavilhões da antiga Companhia Lisbonense de Seca do Bacalhau, na Ponta dos Corvos, freguesia de Amora; . Instalações fabris da Wicander, no Seixal; . Moinho de Maré da Raposa, freguesia de Amora; . Edifício Principal, Edifício da Cooperativa dos Trabalhadores, Edifício das Máquinas de Vapor, Casa do Peso e Poço, da Companhia de Lanifícios de Arrentela, na Torre da Marinha; . Capela da Quinta Nova do Rio Judeu, na Torre da Marinha; . Conjunto edificado da Quinta do Rouxinol; . Estaleiro Naval de Alfredo dos Reis Silveira, no Seixal; . Edifício onde funcionou o “Cinema do Ângelo”, no Seixal; . Antiga Sede da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, no Seixal; . Antiga Sede da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, em Arrentela; . Edifício do antigo café e casa de fados, ditos “do Bonifácio”, em Arrentela; . Bairro operário da Sociedade Africana de Pólvora, em Vale de Milhaços, freguesia de Corroios; . Instalações fabris da SOCER, na Quinta do Serrado, freguesia de Amora; . Estaleiro Naval “Venâncios”, em Amora; . Instalações do (previsto) Museu da S.P.E.L. - Sociedade Portuguesa de Explosivos, Lda., em Vale de Milhaços, freguesia de Corroios; . Galerias de mineração do Período Romano, em Vale de Gatos, freguesia de Amora; . Lagar de Vinho da Quinta de Santa Teresinha, freguesia de Seixal; . Capela de Nossa Senhora da Boa-Hora, em Arrentela (o edifício foi demolido por volta de 1980; o subsolo, que se acreditava conter duas sepulturas, foi totalmente removido há menos de um ano); . Terraço Paleolítico da Quinta da Trindade, freguesia de Seixal; . Dependências agrícolas, eira, tanque de rega, poço e respectivo engenho, na Quinta da Trindade, freguesia de Seixal; . Dois armazéns da Companhia de Agricultura de Portugal, na Quinta da Trindade, freguesia de Seixal; . Cocheiras da Fábrica Mundet & Cª., Lda, no Seixal; . Casa do Cais da Mundet & Cº., Lda., no Seixal; . Ermida de Santa Marta de Corroios, no lugar do mesmo nome, freguesia de Amora.
Saliente-se que os últimos sete imóveis da lista supra foram destruídos nos últimos doze meses. Recuando um pouco mais, poderíamos referir os coretos da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense (sito no Largo da Igreja, no Seixal), da S. F. União Seixalense (sito na Praça Luís de Camões, no Seixal), da S. F. União Arrentelense (sito na zona do Jardim de Arrentela), os lavadouros públicos do Seixal (sito na
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Quinta dos Franceses), de Arrentela (junto ao antigo matadouro) e do Correr d’Água (freguesia de Amora), mais de uma dezena de chafarizes, poços e marcos fontanários… A lista completa seria demasiado extensa para aqui ser publicada. No entanto, propomos ao leitor uma reflexão sobre as demolições acima mencionadas que obedeceram a uma finalidade concreta. Com excepção do Moinho de Maré da Raposa, que permitiu a construção da Ponte da Fraternidade, convenhamos que a destruição dos restantes imóveis foi resultado de uma planificação que não favorece a integração e valorização do património. E afinal, será assim tão difícil fomentar a recuperação e rentabilização da maioria dos citados imóveis? A título de exemplo, nunca faltaram pedidos de particulares para a concessão de imóveis com valor cultural, para instalação de estabelecimentos de restauração e bebidas, com o compromisso de uma escrupulosa recuperação, respeitando a traça dos edifícios. Antes da instalação do Núcleo do Concelho do Seixal da Cruz Vermelha Portuguesa, a antiga Estação Ferroviária do Seixal foi um dos imóveis mais pretendidos para esse fim. As medidas agora tomadas em relação ao Estaleiro da Fidalga, em Arrentela, e ao Coreto da Sociedade Filarmónica Operária Amorense, em Amora de Baixo: Moinho de Maré Novo dos Pauum exemplo de intervenção cuidada e bem sucedida listas, na Azinheira, Seixal, ten© EMS/CDI – Francisco Silva,1997. do em vista a sua concessão e reabilitação, poderiam ter sido aplicadas a outros edifícios, que acabaram por ser demolidos. Também será difícil invocar o mau estado de conservação dos imóveis, considerando o tempo e a dificuldade verificados nas recentes demolições… Apesar da sua vetustez, os edifícios ofereceram forte resistência à força das máquinas. Se a morosidade e especificidade de intervenções de reabilitação de imóveis constituem um factor menos atractivo, nomeadamente do ponto de vista económico, haverá que ter em conta que, regra geral, os edifícios apresentam um tipo de construção, aperfeiçoado por sucessivas gerações, adequado às funções a que se destinavam e ao clima da região. Desde que devidamente pensada e assumida, a integração do património imóvel em novas urbanizações não apresenta excessivas complicações. Os coretos, os chafarizes, os poços e os marcos fontanários constituem excelentes elementos decorativos e funcionais de mobiliário urbano. Os pontos de abastecimento público permitem à população desfrutar de água de boa qualidade e disponibilizada gratuitamente. Boa parte dos imóveis construídos para determinado fim permanecem funcionais ou são reconvertíveis com algumas alterações, como é o caso das as igrejas paroquiais e sedes de colectividades. As casas de quintas, e as áreas ajardinadas que muitas vezes lhes estão associadas, além da função habitacional, constituem excelentes bases para criação de unidades de turismo rural ou de habitação, mas também para sedes de colectividades ou instituições de carácter social (solução a ponderar para a criação da rede pública de jardins de infância), no caso concreto do concelho do Seixal, com importante vertente cultural. [João Paulo Santos]