Fernando Fitas
Histórias Associativas Memórias da Nossa Memória
2.º Volume
Memórias
Histórias Associativas
da Nossa
Memória 2.º Volume
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Histรณrias Associativas
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Índice Prefácio
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Nota de Abertura
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Casa do Povo de Corroios
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Independente Futebol Clube Torrense
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Ginásio Clube de Corroios
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Associação Náutica do Seixal
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Cooperativa Progresso e União Amorense
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Clube Recreativo da Cruz de Pau
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Portugal Cultura e Recreio
107
Casa do Pessoal da Siderurgia Nacional
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Grupo Recreativo Casal de Santo António
143
Clube de Campismo Luz e Vida
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Grupo Desportivo do Cavadas
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Prefácio No ano em que se comemoram os 40 anos da Constituição da República Portuguesa, a Câmara Municipal do Seixal edita o segundo volume de Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória. Uma iniciativa que reconhece o importante papel assumido pelo movimento associativo do concelho na construção da democracia e da liberdade no Seixal. Ao longo destes 40 anos, no município, Poder Local, instituições e coletividades têm trabalhado em parceria para garantir à população os direitos consagrados na Constituição, cumprindo com os direitos de criação, fruição e expressão cultural, assim como de defesa e valorização do património cultural. Após um primeiro livro sobre as sociedades filarmónicas, Fernando Fitas dá a conhecer as coletividades nascidas com fins de recreação, desporto e cultura, ao serviço da população do concelho do Seixal. Ao vivermos um tempo histórico diferente, em que o movimento associativo e au-
tarquias percorrem um mesmo caminho em parceria, fazemos questão de guardar memória de um outro tempo, em que as coletividades, para além de funcionamentos e estatutos tendencialmente democráticos malvistos pelo regime, organizavam verdadeira resistência ao fascismo do Estado Novo. Nestas casas surgiram peças de teatro, debates de ideias ou mesmo os primeiros televisores e bibliotecas. Também as histórias de solidariedade das casas de comércio e beneméritos locais, a par da dedicação de muitos que, com seus conhecimentos técnicos, saberes profissionais, vocações várias e a força do trabalho gracioso, voluntário e coletivo construíram sedes e as mantiveram de pé e de portas abertas. Valioso contributo para a divulgação da nossa história e identidade, que são indissociáveis do percurso do movimento associativo local, e ainda mais porque celebra um direito de Abril, esta é uma obra que nos parece tão oportuna quanto necessária.
Câmara Municipal do Seixal
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Nota de Abertura Prosseguindo o levantamento constituído pelas memórias, episódios e vivências de associados e ex-dirigentes das coletividades seixalenses fundadas antes de Abril de 1974, com a qual se pretendeu, objetivamente, preservar esse património vivencial antes que a lei da vida se encarregasse de o esfumar, este segundo volume de Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória –, tal como o anterior, inclui histórias, relatos e episódios contados na primeira pessoa do singular por alguns dos mais destacados ativistas afetos às várias agremiações populares do concelho do Seixal. Mais do que um trabalho acerca da história oficial de cada uma delas, este projeto visou antes constituir-se num repositório de memórias avulsas sobre acontecimentos que pela sua natureza escapam à esfera do registo histórico, contadas por alguns daqueles que, tendo tomado parte ativa no processo de desenvolvimento de uma das mais importantes instituições do concelho, por ele são geralmente ignorados. Por essa razão, ao invés de nos procurarmos socorrer preferencialmente dos arquivos das diversas associações objeto deste repositório de acontecimentos, optámos antes por dar voz aos homens e mulheres que, anonimamente, souberam construir ao longo dos tempos o valioso legado social, cultural e humano que aquelas hoje apresentam. Uma opção fundada na convicção de que
os documentos históricos existentes em cada uma das coletividades visadas neste trabalho – nos casos em que a ignorância de alguns antigos dirigentes não os instigou à sua destruição –, se limitam, grosso modo, a enunciar as datas que maior significado interno assumiram, esquecendo quase sempre o contributo individual dado por alguns dos associados à dinamização e dignificação da vida da respetiva agremiação. Tratou-se, no fundo, de uma decisão, que a par de pretender reconhecer essa contribuição, dando voz a alguns dos protagonistas da animação coletiva que caracterizou esta ou aquela coletividade em determinada época, nos permite ainda obter uma ideia mais fidedigna sobre as condições de vida dos habitantes deste concelho da Margem Sul em tempos idos, as suas ocupações profissionais, os salários que auferiam, as deficientes condições sociais em que viviam, os meios de transporte utilizados nesse tempo, as formas de convívio e entretenimento e as suas principais atividades culturais e recreativas. Para além disso, os testemunhos obtidos possibilitaram igualmente a feitura de um retrato mais aproximado das dificuldades que o regime de então colocava ao trabalho diário das coletividades, devido às constantes ingerências com que o poder político tentava interferir no seu funcionamento. Um quadro que chegava ao ponto de a mera
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realização de um colóquio, uma palestra, uma exposição ou um espetáculo musical ter de ser previamente autorizado pelo presidente da câmara, pessoa da confiança do denominado Estado Novo, enquanto as listas para os corpos gerentes só podiam ser apresentadas aos associados depois de obterem o consentimento do Governo Civil. Uma postura ditada pela permanente instigação do medo, situação que levava alguns associados a recusarem responsabilidades diretivas para evitarem aborrecimentos com a PIDE. Enquanto tal, outros mais determinados no combate à ditadura socorriam-se dos espaços de liberdade em que se haviam constituído as coletividades locais para desenvolverem a sua resistência, lutando pela instauração da liberdade e da democracia, pela massificação do desporto e da cultura. De tudo isso e do empenhamento que caracterizou as gentes deste emblemático município da «Outra Banda» em determinado período da nossa história recente, além da sua capacidade de entrega aos valores associativos, se dá conta neste segundo volume de Histórias Associativas, dedicado à Casa do Povo de Corroios, Independente Futebol Clube Torrense, Ginásio Clube de Corroios, Associação Náutica do Seixal, Cooperativa Progresso e União Amorense, Clube Recreativo da Cruz de Pau, Portugal Cultura e Recreio, Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional, Grupo Recreativo Casal de Santo António, Clube de Campismo Luz
e Vida e Grupo Desportivo do Cavadas, através do relato feito por alguns dos seus mais carismáticos sócios e dirigentes. São, se quisermos, fragmentos de um passado que importa reter para que melhor se possa perceber a alteração qualitativa operada em todos os domínios da vida social do concelho e do subsídio dado pelas coletividades a essa elevação, que nos são confiados por aqueles que tendo tomado parte ativa nessa afirmação, por via da sua humildade pessoal e dos superiores valores coletivos que os definem, passam à margem da História que ajudaram a fazer. Tendo presente o carácter implacável do tempo e o lapso decorrido entre o trabalho de campo a que se reporta este volume (1997-2001) e a circunstância de só agora ser possível a sua edição, vários dos depoentes que para ele contribuíram, infelizmente, já não se encontram entre nós. De igual modo, algumas das referências a cargos, entidades, funções ou atividades por eles por relatados poderão estar ultrapassadas. Contudo, porque o objeto que constitui esta publicação se reporta a histórias de homens e mulheres que ajudaram a fazer a história do concelho do Seixal, afigurou-se-nos conveniente manter o texto no registo inicial, em ordem a respeitar as declarações dos intervenientes, proporcionando, assim, a quantos o venham a ler mais uma forma de viajar ao passado.
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Nota sobre o acordo ortográfico Compreendendo e respeitando as determinações impostas às entidades públicas, no que concerne à adoção das normas estabelecidas pelo denominado novo acordo ortográfico, o autor, enquanto membro da Sociedade Portuguesa de Autores, reitera a sua concordância com a decisão tomada sobre a matéria pela instituição representativa dos autores portugueses.
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Casa do Povo de Corroios Uma casa feita de solidariedades
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Casa do Povo de Corroios
A Casa do Povo de Corroios, de acordo com os testemunhos obtidos conducentes à realização deste trabalho, deve a sua génese à dissolução da antiga Associação Humanitária de Beneficência Fúnebre de Corroios, criada ao tempo pelos habitantes daquele lugar, na sua maioria gente de parcos recursos, com o objetivo de acudir aos apertos por que passavam as famílias mais desfavorecidas ali residentes, provendo, designadamente, à realização do respetivo funeral nos casos de falecimento. Vulgarmente conhecida por Casa da Carreta, devido à circunstância de possuir um dos veículos, à época, utilizados para transportar os defuntos, a sua ação estendia-se ainda ao acompanhamento dos moradores a consultas médicas, mormente os que mais dificuldades tinham em deslocar-se, quer por razões económicas, quer por razões de natureza física. Tratava-se, em rigor, de uma entidade que hoje, facilmente, se denominaria de instituição de solidariedade social, ante os intuitos eminentemente sociais que perseguia, atenta às difíceis condições da vida em que, nessa altura, se movia a maioria dos habitantes da terra e que até à data da sua extinção, para dar origem à Casa do Povo, desempenhou um papel de grande relevância.
Ata da assembleia geral da Associação de Beneficência Fúnebre de Corroios, realizada a 28 de janeiro de 1934, evento presenciado por diversas entidades oficiais da época, e no decurso do qual foi tomada a decisão de extinguir a referida associação. Como, de resto, se pode ainda constatar, na mesma sessão foi não só deliberada a fundação da Casa do Povo, como teve igualmente lugar a aprovação dos respetivos estatutos.
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A fundação da Casa do Povo, então designada de Casa do Povo de Amora – por via de o lugar estar integrado na freguesia de Amora –, foi, assim, um processo pacífico, já que o aparecimento desta visava não apenas os associados da extinta Associação Fúnebre, mas alargava a sua intervenção a uma maior franja populacional, aproveitando, desse modo, o alcance de um pacote de medidas que o Estado Novo entendeu tomar no domínio da assistência médica aos trabalhadores rurais, profissão exercida pela generalidade da população local, já que, nesses idos anos, Corroios era um lugar eminentemente agrícola, no qual pontificavam várias quintas e hortas.
Prova disso, aliás, é a atual existência de vários topónimos, tais como Quinta da Mariana, da Varejeira, do Campo, do Castelo, do Rouxinol, etc., cujos produtos, transportados em carroças, abasteciam os mercados hortícolas de Almada e até de Lisboa. Por todas estas razões, a Casa do Povo de Amora, mais tarde rebatizada de Casa do Povo de Corroios, afirmou-se uma instituição vocacionada para a intervenção social, situação que motivou os responsáveis do regime a promulgar, em 1973, o alargamento da sua ação também ao concelho de Almada, missão que manteve até à data da integração da Junta Central das Casas do Povo no sistema de Segurança Social, criado com a instauração da democracia, ocorrida em 25 de Abril de 1974. Foi então que, liberta dos vários condicionalismos de ordem burocrática, se dedicou à promoção da prática desportiva, especialmente junto das camadas etárias mais novas da população, com excelentes resultados, sobretudo no que à ginástica diz respeito, especialmente no que se refere à competição de trampolim, modalidade na qual, de resto, possui alguns campeões regionais e nacionais. O mesmo se dirá em matéria de promoção do xadrez e karaté, a par de um vasto conjunto de atividades de natureza cultural, com particular saliência para o teatro amador, alfabetização de adultos e o ensino da música, entre outras.
Emblema da Casa do Povo à data da sua fundação, razão pela qual a legenda inscrita no brasão da instituição mencionava a localidade de Amora, freguesia a que o lugar de Corroios, administrativamente, pertencia.
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José Maria de Almeida
de relatar a história das histórias que aqui se dão conta, com receio de que alguma não lhes viesse à lembrança, ou cujo registo fosse um pouco mais difuso.
«A história da Casa do Povo é um exemplo de entrega à comunidade» Profundo conhecedor dos acontecimentos que marcaram o historial da Casa do Povo de Corroios, desde os primórdios até à atualidade, por via de lhe haver dedicado grande parte da sua vida, José Maria de Almeida, 70 anos, é não apenas umas das mais respeitadas figuras da instituição, mas, fundamentalmente, uma das poucas memórias vivas do passado e do presente desta casa que, chamando-se do povo, não se limitou a ostentar o seu nome. Poder-se-á mesmo afirmar que muitos anos antes de vir a obter oficialmente essa designação, a instituição já era uma verdadeira casa do povo, ante o espírito eminentemente solidário que presidia à sua atividade. E tão profunda se revelava a comunhão de interesses e objetivos, que não se sabe ao certo se a casa foi feita para o povo ou, se pelo contrário, foi este quem fez aquela. Não é, por isso, despiciendo que este dirigente da Casa do Povo de Corroios seja considerado entre consócios e dirigentes da agremiação aquele que melhor soube memorizar o dia a dia da instituição. E de tal modo o fez que poucos serão os acontecimentos que a sua invejável memória não reteve. Uma reputação, aliás, reconhecida por todos quantos desempenharam funções diretivas na referida agremiação, quando, prontamente, remeteram para José Maria de Almeida a tarefa
Na Casa da Carreta esteve a sua origem Pessoa simples, que de simplicidades várias se alimenta, José Maria de Almeida refere que a Casa do Povo nasceu da extinção da Associação Fúnebre de Corroios, na qual teve papel preponderante António Marques Pequeno, figura de grande relevo, nessa época, mas que hoje se encontra injustamente esquecida. «Foi ele quem doou o terreno para a construção, em 1962, da sede daquela associação, mais tarde denominada de Casa do Povo. O mesmo sucedeu com o Campo de Futebol do Ginásio Clube de Corroios», assinala. «No entanto, devido às dificuldades que então se viviam, as instalações eram diminutas, muito diferentes das que hoje temos», anota. Assim como quem folheia as páginas de um diário, no qual se encontram lavrados os principais episódios que marcaram a sua vivência, o nosso interlocutor recorda ainda o trabalho e a dedicação de Jorge Marcelino, homem de poucas habilitações, mas detentor de uma permanente disponibilidade para com a sua coletividade.
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um dos fundadores da agremiação, facto que levou os corpos gerentes de então a lavrarem em ata um voto de reconhecimento por tudo quanto fizera pela Casa do Povo».
António Marques Pequeno, personalidade conceituada entre os seus conterrâneos, é uma figura a quem as coletividades de Corroios muito devem. A sua disponibilidade para colaborar com as instituições locais instigaram-no a doar o terreno onde se ergueu a sede da novel Casa do Povo.
«Ao seu empenhamento e à sua capacidade empreendedora se deve a realização da obra, para a qual contribuíram diversas entidades. Não foi um processo fácil, já que antes de os trabalhos se iniciarem, um episódio houve que muito veio dificultar as coisas. Tratou-se do falecimento de Manuel Saraiva de Carvalho, proprietário da antiga Quinta da Água, o qual, no regresso de uma das suas frequentes deslocações à câmara, para resolver questões relacionadas com a construção da sede, seria mortalmente atropelado na Estrada Nacional, junto à Quinta do Castelo, local frente ao qual se encontra atualmente a escola secundária», diz. «Um acontecimento que deixou consternada a população de Corroios, pois que, para além de ser uma pessoa muito estimada na terra, era
Manuel Saraiva de Carvalho, vulgo Carvalhinho da Amora, dirigente da instituição que seria mortalmente atropelado na Estrada Nacional 10, quando regressava do Seixal, onde fora tratar de assuntos relacionados com a construção da sede da agremiação.
«Aliás, este não foi o único acidente envolvendo dirigentes da coletividade», refere ainda José Maria de Almeida, «também Jorge Marcelino foi uma ocasião vítima de um atropelamento na Cruz de Pau, quando ali se deslocara para tratar de assuntos da instituição. Felizmente este caso não teve consequências tão gravosas». Para José Maria de Almeida, substituto de Jorge Marcelino na presidência da direção da Casa do Povo de Corroios, o trabalho e a dedicação do seu antecessor no desempenho de tais funções constituem um inequívoco exemplo da capacidade de entrega a uma causa. «Só isso explica que vivendo com muitos apertos económicos, por via de a sua reforma
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do Arsenal do Alfeite ser pequena, haja continuado a dar todo o seu tempo à Casa do Povo, situação que, de resto, só se alteraria quando o substituí, altura em que, por decisão diretiva, passou a desempenhar as funções de contínuo da agremiação», sublinha.
Antecessor de José Maria de Almeida na presidência da direção da Casa do Povo, Jorge Marcelino foi outro dos antigos dirigentes que doaram à agremiação todo o seu tempo e saber, a ela permanecendo ligado até perecer vítima de um ataque cardíaco.
«Essa deliberação, fundada nas mais elementares regras de justiça, visou ainda proporcionar à instituição a permanência, a tempo inteiro, de alguém que estivesse familiarizado com todos os assuntos, ao mesmo tempo que ele via superadas algumas das faltas com que se debatia, devido à sua baixa reforma», explica. «Quis, todavia, o acaso que apenas permanecesse no desempenho dessas funções cerca de três anos, altura em que foi fulminado por um ataque cardíaco».
Suspeição de informadores da PIDE limitou constituição da sua primeira lista Na perspetiva de José Maria de Almeida, apesar de curto, esse foi um tempo de aquisição de grandes conhecimentos acerca da vida da coletividade, já que lhe possibilitou dispor, a qualquer momento, de uma pessoa que dominava perfeitamente o seu funcionamento. «Uma colaboração deveras importante, sobretudo no que concerne à mudança de opinião que a população de Corroios, ao tempo, tinha sobre a Casa do Povo. Tudo porque corria entre os moradores da localidade que em mandatos anteriores alguns informadores da PIDE se teriam infiltrado nos corpos gerentes para denunciar aqueles que se opunham ao regime, situação que motivara um natural sentimento de desconfiança popular», relembra. Apesar de a principal atividade da Casa do Povo radicar na prestação gratuita de cuidados médicos aos associados e respetivo agregado familiar, não se tornava fácil arranjar pessoas para os cargos diretivos, por mor de as gentes terem um juízo muito negativo quanto à atuação daqueles elementos. «Várias foram as pessoas que na altura da elaboração da lista para o meu primeiro mandato declinaram o convite expressando-me tal receio. E o leque de associados não se limitava apenas aos trabalhadores rurais, estendia-se a outras estratos populacionais, entre eles, os funcionários públicos, cujos familiares, à época, não tinham qualquer sistema de assistência médica ou medicamentosa, como era o meu caso», refere José Maria de Almeida.
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De acordo com o relato feito pelo órgão camarário, as festividades acabariam, no entanto, por ser ensombradas com a notícia da queda do teto da estação do Cais do Sodré, acidente que provocou vários mortos e um elevado conjunto de feridos.
Inaugurada pelo governador civil de Setúbal, a 28 de maio de 1963, a sede da Casa do Povo teve grande destaque nas páginas do Boletim, ao tempo, editado pela câmara.
A foto exemplifica, de modo claro, a ênfase colocada pelos responsáveis camarários de então às cerimónias inaugurais do referido edifício.
Não se pense, todavia, que a Casa do Povo apenas exercia a sua atividade no domínio social, vertente na qual assumia maior notoriedade pública. Ela alargava-se igualmente às áreas da cultura, recreio e desporto. «A única coisa que lhe estava vedada, tal como às demais coletividades, era a de promover iniciativas de natureza política», acrescenta, «até porque o regime não no-lo permitia». Sem deixar de aludir aos apertos económicos que, em certos momentos, caracterizaram a vida da coletividade, José Maria de Almeida faz questão de adiantar que devido à boa vontade de um pequeno grupo de associados e dirigentes, apoiados por alguns industriais e comerciantes locais, esses períodos de maior dificuldade acabaram, felizmente, por ser ultrapassados.
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Também a fundação de um rancho folclórico no quadro da agremiação ocorreu nesse período, do mesmo modo que as atuais festas populares de Corroios tiveram a sua génese na Casa do Povo, entidade que conjuntamente com a então comissão de moradores organizou a primeira edição dos festejos, realizados na zona onde hoje se situa a Centro de Convívio da Associação de Reformados, à época uma quinta pertença de António Marques Pequeno. Do programa constaram, não apenas intervenções musicais, mas, também, uma demonstração de xadrez ao vivo.
Tecido empresarial e atual poder autárquico parceiros essenciais do desenvolvimento
Uma das atividades culturais cujo aparecimento se deve a José Maria de Almeida foi o teatro amador, grupo que chegaria a ser considerado como um dos melhores agrupamentos amadores do país, distinção que motivou a sua atuação em várias regiões de Portugal.
Tal como o teatro, o ensino da música foi outra das secções criadas no seio da instituição no decurso de um dos primeiros mandatos de José Maria de Almeida, sendo que o professor responsável pelo seu funcionamento era, ao tempo, o pianista Fernando Fontes, atual diretor do Teatro Nacional de S. Carlos.
«Um esforço ao qual se juntou nos últimos 25 anos o apoio da Câmara do Seixal, que muito nos ajudou a proceder a profundas obras de remodelação e ampliação das instalações, suportando parte significativa dos custos, nomeadamente da construção do pavilhão. Mas outros contributos se revelaram importantes para a concretização desse projeto. Um deles protagonizado pelo associado Adelino Marques, proprietário da empresa construtora do referido equipamento, assumiria um especial significado porque no ato de liquidação da importância que cabia à Casa do Povo, prescindiu do recebimento de uma avultada fatia da mesma», diz.
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Fundada oficialmente em 1934, por um punhado de habitantes de Corroios, a história desta popular agremiação remonta à Sociedade de Recreio e Instrução Musical Corroiense, a qual se fundiu com a Associação de Beneficência Fúnebre, com o objetivo de uma prover aos aspetos recreativos e culturais, nomeadamente ao ensino da música, e a outra de tratar das questões relacionadas com a vertente social. «De outro modo, dificilmente se explica que as duas funcionassem nas mesmas instalações», alerta José Maria de Almeida. «Pena é que logo após o 25 de Abril haja quem tenha dado sumiço a muitos dos documentos que nos permitiam restituir, com o necessário rigor histórico, todo esse passado. E os poucos que restam são os que consegui pôr a recato, salvando-os a essa sanha destruidora», remata o carismático associado da Casa do Povo, presidente da direção da instituição ao longo de vários mandatos e atual presidente da mesa de assembleia geral. Uma dedicação e uma experiência que motivaram, de resto, várias instituições congéneres a solicitar o favor dos seus conhecimentos, disponibilidade que mantém e, mais do que isso, o instigara ainda a envolver-se na criação da Confederação Nacional das Casas do Povo.
Carismático dirigente da Casa do Povo de Corroios, José Maria de Almeida debateu-se, no entanto, com várias dificuldades na elaboração da lista, quando pela primeira vez se candidatou à direção da instituição. Uma onda de recusas, motivada pelo receio com que muitos dos associados viam a simpatia ou ligação que alguns dos anteriores responsáveis dos órgãos sociais da coletividade tinham ao antigo regime.
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Passavam 12 dias do mês de fevereiro de 1925, quando um grupo de jovens moradores no lugar de Torre da Marinha concretizou a sua aspiração de fundar um clube, cuja dinâmica se revelasse capaz de congregar a simpatia e o afeto da pequena comunidade local. Denominada de Independente Futebol Clube Torrense, a jovem agremiação cedo se afirmou o grande polo concentrador das vontades e aspirações do reduzido número de moradores que, ao tempo, constituíam este núcleo habitacional, assumindo-se, tal como os seus congéneres das localidades vizinhas, no instrumento organizador das avulsas pretensões desportivas de quantos ali viviam, em especial da juventude. Consumada a fase de constituição, a novel coletividade prontamente se sediou num pequeno espaço situado no n.º 18 da atual Rua Casal do Marco, conhecido entre as gentes da terra por «Adega do Lambêta», de onde se mudou para o n.º 1 da mesma artéria, daí transitando para o primeiro andar de um imóvel da então Rua General Carmona, hoje denominada Av. Movimento das Forças Armadas. Seria, de resto, neste último local que se constituiria, em 1948, a primeira Comissão de Melhoramentos, liderada por António Cardoso, cuja principal função era a de promover as diligências necessárias à descoberta de um novo local de funcionamento da agremiação, uma vez que aquele onde esta se encontrava já não reunia as condições de acomodamento que o crescente número de associados impunha. É neste cenário que poucos dias antes do final de janeiro de 1951, no decurso de uma reunião havida na casa do associado Tomaz Dias Ferreira, na qual participaram a direção do clube,
chefiada por Valentim Gomes Cardoso, a referida Comissão de Melhoramentos e a então Comissão de Festas, presidida por João Gomes Cortegaça, deliberaram tomar a decisão de proceder à constituição de um grupo de trabalho, denominado Comissão Pró-Sede, cuja missão seria a de levar a efeito todas as iniciativas conducentes à angariação dos 4 000$00 (cerca de 20 €), pedidos por João Manuel T. Melo Correia de Freitas, pela venda de uma parcela de terreno com 600 m2, situada na mesma avenida. Angariada a verba e efetuada a correspondente escritura notarial, novo desafio se levantava aos dirigentes do Independente Torrense. Tal era o de conseguir o dinheiro que possibilitasse a compra dos materiais indispensáveis ao início da construção do edifício sede, motivo suficientemente ponderoso para determinar que o arranque da obra apenas ocorresse no primeiro trimestre de 1953, ou seja, cerca de ano e meio depois da compra do aludido terreno. Convirá, aliás, relembrar, que a maioria dos associados era gente de parcos recursos, pessoas que se ocupavam na extinta Fábrica de Lanifícios de Arrentela ou nas diversas fábricas de transformação de cortiça, à época existentes no Seixal e Amora, auferindo vencimentos miseráveis, razão pela qual pouco mais podia dar ao clube do que magros tostões da quotização mensal. Por essa razão, o projeto somente seria concluído vários anos mais tarde e, mesmo assim, graças ao empenhamento da massa associativa que voluntariamente se dispôs a oferecer a mão de obra, afinal a sua única riqueza. De tudo isso se procurará dar conta nas páginas deste volume, feito com o registo das
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memórias de alguns dos associados do Independente Torrense que participaram nesses acontecimentos ou deles foram testemunhas.
junto aos eucaliptos situados no espaço fronteiro à extinta Fábrica de Lanifícios de Arrentela.
«Primeiro equipamento do Torrense foi confecionado por minha mãe»
Mariana Evangelista Rodrigues Uma memória viva da vida do Independente Considerada entre os dirigentes do Independente Futebol Clube Torrense a pessoa que, eventualmente, mais habilitada se encontrará para falar sobre os primeiros anos de existência do clube, não apenas por ser uma das habitantes mais idosas da localidade, mas também porque desde muito nova acompanha a vida da agremiação, Mariana Evangelista Rodrigues, 83 anos, não esconde a sua surpresa ao ser abordada para contar as histórias ou episódios que lhe ficaram na memória, tendo como pano de fundo a popular coletividade da sua terra. Residente numa velha casa térrea, localizada quase defronte da sede social da coletividade, esta anciã logo se predispôs a relatar os acontecimentos que, do seu ponto de vista, maior significado assumiram na vida da agremiação. Natural da Torre da Marinha e casada com um carismático e dedicado associado da instituição que, mau grado sofrer de gaguez, em tempos idos integrou com desenvoltura o elenco de atores do Grupo de Teatro Amador do clube, Mariana Evangelista Rodrigues conta que a ideia de formar o Independente nasceu dos rapazes que, nessa época, se entretinham a jogar à bola
Fragmentos de uma memória que remonta aos seus tempos de infância, mas que não obstante o tempo decorrido mantém intactos todos os contornos desse registo efetuado há largas décadas, permanecendo vivo nas suas palavras. «Era ali que se treinavam, passando depois para a zona onde se encontra hoje o hipermercado Continente, tendo para o efeito aterrado umas barreiras, ao tempo existentes no local, utilizando para tanto umas vagonetas emprestadas pela fábrica», diz. «Mas, como essa empreitada só podia ser levada a cabo depois das 5 da tarde, hora a que saíam do trabalho, nunca chegaram a ter um campo de futebol, na verdadeira aceção da palavra. Por esse motivo, o terreno em causa apenas servia para treinos, razão porque jogavam sempre fora», salienta. «O seu primeiro equipamento foi confecionado por minha mãe, que sendo modista se encarregou de lhes fazer as camisolas. Estas eram feitas de flanela verde com punhos e golas brancas. De igual modo, foi ela que também confecionou as camisolas com que os mais pequeninos jogavam. Só que neste caso, a cor predominante não era o verde, mas sim o vermelho», adianta. «Isto no tempo em que o clube tinha a sua sede numa antiga adega, utilizada durante o dia por um senhor de Arrentela que ali dava aulas aos garotos, espaço que eu também frequen-
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A foto mostra-nos uma das formações referidas por Mariana Evangelista cujos equipamentos foram confecionados por sua mãe.
tei quando andava na escola», conta Mariana Rodrigues para logo anotar: «Nessa época, a povoação era um pequeno lugar constituído por reduzido número de habitações, mas onde todos os habitantes se conheciam e se tratavam pelo nome próprio». Mais tarde, porque as instalações em causa se afiguraram manifestamente insuficientes para servir simultaneamente de local de aprendizagem da «gaiatagem» da terra e de sede do clube, apesar de as reuniões da coletividade apenas se realizarem à noite, a direção tomou a decisão de efetuar a mudança para umas casas então existentes junto ao local onde hoje se encontra a estação dos correios. «Feita a mudança, havia, pois, que prover ao respetivo mobiliário. Para isso, foi constituída uma comissão de raparigas que tinha como objetivo primeiro organizar bailes e festas, com o intuito de angariar fundos para a aquisição de uma secretária e de umas cadeiras, tal como a
primeira bandeira que o clube possuiu. Quer eu, quer uma irmã minha, integrámos essa comissão.»
Ativista do Independente Torrense e jovem atriz no clube recreativo Como que embalada pelo surpreendente desafio que lhe fora lançado, no sentido de nos confidenciar as recordações da sua juventude, Mariana Evangelista Rodrigues revela ainda que, nessa época, a vida associativa dos moradores da Torre da Marinha se repartia por duas agremiações: o Independente, mais virado para a prática desportiva, e o clube recreativo, cuja atividade se refletia predominantemente no domínio da cultura, devido ao dinamismo do seu grupo de teatro. «Tratava-se de uma coletividade sediada num imóvel da atual Avenida das Forças Armadas,
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situado paredes meias com a churrasqueira ali existente», precisa Mariana Rodrigues, para sublinhar que «a circunstância de haver duas coletividades não constituía motivo de discórdia entre as pessoas da terra já que, na generalidade, os associados de uma eram, igualmente, associados da outra». Extinto há muitos anos, por razões que escapam ao seu conhecimento, o referido clube recreativo, na opinião desta popular adepta do Torrense, possuía um excelente grupo dramático. «A qualidade das peças e o desempenho dos seus atores, entre os quais se contavam dois tios meus, levava frequentemente à receção de convites para se deslocar a outras localidades. Aliás, quando eu era pequena, cheguei a tomar parte em algumas peças, a pedido de meus tios», lembra. Expressando o seu pesar pelo desaparecimento do aludido clube e pelo mencionado grupo cénico, Mariana Rodrigues refere que a sua extinção permitiu, contudo, ao Independente transferir-se para as instalações anteriormente ocupadas pelo seu congénere. Entrementes, o desenvolvimento urbanístico começou a fazer sentir-se, trazendo consigo o aparecimento de novos edifícios e o consequente aumento da população, processo que rapidamente fez com que a nova sede se tornasse, também, insuficiente, para acolher todos os novos associados. Colocados ante o desafio que o crescimento populacional lhes trouxera, logo os dirigentes da coletividade trataram de encontrar uma resposta que se afigurasse duradoura, evitando, desse modo, que a agremiação se visse na contingência de andar com a trouxa às costas.
Projeto de construção do atual edifício sede motivou a criação de várias comissões de fundos Assim nasceu a ideia de promoverem a construção de um imóvel que satisfizesse as necessidades futuras da instituição, valendo-se para tal do costumado trabalho levado a cabo pelas tradicionais comissões de fundos, tão usuais nessa época, sempre que se perspetivava a realização de uma benfeitoria para a agremiação. Um período de grande entusiasmo que mobilizou gente de todas as idades e de ambos os sexos, caracterizado, de resto, por um forte empenhamento, traduzido no aparecimento de vários grupos de trabalho. Um ambiente que, como seria de prever, também contagiou Mariana Rodrigues, impelindo-a a tomar parte numa das comissões de fundos criadas com o intuito de organizarem iniciativas tendentes à obtenção das verbas necessárias à prossecução do projeto. «Enquanto isso, uma outra comissão formada por rapazes», diz Mariana Rodrigues, «tinha a tarefa de conseguir o empréstimo de camionetas que efetuassem o transporte da madeira cedida para a obra pelos proprietários da antiga Quinta da Palmeira, em Paio Pires, para o local da obra».
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A construção da atual sede social da coletividade caracterizou-se por um período de grande fervor clubista, marcado pela criação de vários grupos de trabalho, um dos quais constituído apenas por raparigas que tinha como função vender rifas, organizar festas e bailaricos, com o intuito de angariar fundos para a realização da obra. Uma tarefa na qual Mariana Evangelista e uma das suas irmãs se empenharam de coração e alma.
Graças ao esforço empreendido por todos os associados e amigos, a empreitada chegou a bom porto mais cedo do que Cosme Lopes, então presidente da Câmara do Seixal, previra no discurso que proferiu durante a cerimónia de lançamento da primeira pedra. «Nessa altura, o fervor bairrista que nos animava conseguia mover montanhas, apesar das tremendas dificuldades com que diariamente nos confrontávamos, devido aos baixos salários que a extinta Fábrica de Lanifícios nos pagava», afiança a nossa interlocutora.
Largava pombos-correio para informar parentes sobre a marcha do marcador «Um sentimento que se refletia ainda no permanente acompanhamento da equipa onde quer que ela fosse jogar. Tanto fazia que o jogo se efetuasse em Amora, em Arrentela ou no Seixal, todo o povo da Torre ia apoiar o Indepen-
dente. E os que, por motivos de saúde ou outra ponderosa razão, não se podiam deslocar tomavam conhecimento da marcha do marcador através de pombos-correio,» informa Mariana Evangelista Rodrigues. Convirá, aliás, recordar que a conhecida ativista do Independente Futebol Clube Torrense se reporta a um tempo em que poucos eram os aparelhos de telefone e menos ainda os que tinham possibilidades de dispor de tal meio de comunicação. «Tenho ainda presentes algumas ocasiões em que juntamente com minhas irmãs e as demais raparigas da nossa idade nos deslocávamos a Arrentela e a Amora, levando uma cesta de verga com pombos-correio, que soltávamos no intervalo, a fim de informarmos minha mãe, minhas tias e minha avó sobre o evoluir do resultado. Escrevíamos num papel o resultado, atávamo-lo à pata do animal e largávamo-lo. Como tínhamos um pombal, o animal deslocava-se para aqui e elas tomavam conhecimento do resultado ao intervalo. O mesmo fazíamos no final do jogo», relembra, ao mesmo tempo que solta uma sonora gargalhada, que por momentos a faz esquecer a dureza da vida que lhe foi dado viver. «Mal o pombo chegava e lhe retiravam o papel que este trazia atado à anilha, vinham à rua dar conhecimento a toda a vizinhança, gritando que no fim da primeira parte o Independente estava empatado, a perder ou a ganhar. Igual procedimento tinham no final da partida.» Um entusiasmo acentuado pelo facto de um dos membros da família, Miguel Evangelista, seu tio materno, ser o guardião da equipa local. «O denodo e a capacidade com que defendia a baliza despertaram o interesse de alguns clu-
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bes do Barreiro e outro de Lisboa, chegando a receber convites para que ingressasse nas suas fileiras. Mas a influência de meus avós e o forte apego que o ligava ao emblema da terra falaram mais alto, razão por que declinou os convites», frisa Mariana Evangelista Rodrigues. Um fervor que acabou por morrer. O mesmo sucedeu com a prática do futebol, cenário para o qual concorreu igualmente a completa ausência de estruturas desportivas, principalmente a falta de campo de jogos. «Hoje, o clube dedica-se, em termos desportivos, às chamadas modalidades de pavilhão, ao atletismo e à promoção da ginástica junto das crianças.»
Uma das várias classes de ginástica do Independente Torrense, logo nos primórdios da criação da respetiva secção.
Inscrição do filho obrigou à realização de uma assembleia geral Apesar do carinho que desde gaiata nutre pela coletividade da sua terra natal, Mariana Rodrigues esclarece ainda que mau grado todo o trabalho desenvolvido em prol da agremiação, nunca chegou a associar-se, situação compensada com o facto de o seu esposo ser um dedicado associado da instituição. «Para atenuar essa falta, motivada, de resto, por razões estranhas à minha vontade», diz, «quando meu filho tinha quatro anos decidi associá-lo. Um processo que, na altura, se revestiu de grande polémica, em consequência de muitos sócios discordarem da sua admissão, por mor de tal admissão não respeitar o disposto nos estatutos da coletividade relativamente a essa matéria, devido à circunstância de a criança ter apenas quatro anos e as normas estatuárias estabelecerem como idade mínima os 14. Face à controvérsia gerada, a direção viuse obrigada a promover uma assembleia geral para tratar do assunto. Felizmente, o caso resolveu-se e a inscrição da criança acabou por concretizar-se», conta. Não se pense, porém, que a vida da popular coletividade torrense, no período a que o testemunho de Mariana Rodrigues faz alusão, se resumia apenas ao futebol. Nada disso. O espírito clubista que animava as gentes da Torre da Marinha manifestava-se também noutras vertentes, em particular nas iniciativas de natureza recreativa, como eram as tradicionais cavalhadas e os bailes de roda. Segundo sustenta a carismática adepta, «ain-
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da que animados por um senhor de Arrentela que tocava harmónio, os bailes da Torre organizados pelo Independente gozavam de grande fama em todo o concelho, motivando a afluência de pessoas oriundas de todos os lugares vizinhos,» elucida. «Além disso, não havia orquestras. Mesmo que as houvesse, o clube não tinha posses para lhes pagar, pois, nesse tempo, os sócios pagavam uma quota de três tostões. Ora, como dessa fonte de receita se retirava o dinheiro da renda e se comprava o acetileno para os gasómetros da sede (mais tarde substituídos pelos Petromax), pouco ou nada sobrava. Assim, tais atrevimentos estavam totalmente afastados dos nossos horizontes», afirma. Antiga operária da extinta Fábrica de Lanifícios de Arrentela, unidade fabril para a qual trabalhou 48 anos, Mariana Evangelista Rodrigues salienta ainda que nos anos a que se referem as memórias que se dispôs a relatar, a localidade era habitada por gente simples, homens e mulheres que viviam do magro ordenado que a referida fábrica têxtil lhes pagava, muitos deles sem qualquer frequência escolar ou sem terem concluído a instrução primária, logo desprovidos de outros recursos a que pudessem lançar mão, a não ser, unicamente, a sua capacidade de trabalho. «Felizmente não foi o meu caso, que fiz a 4.ª classe», salienta, «mas como os lanifícios apenas podiam dar emprego a quem já tivesse completado os 14 anos e, mesmo assim, mediante uma autorização do respetivo ministro, só depois de obtida essa autorização pude ingressar na fábrica, onde permaneci até aos 62 anos», relembra, enquanto sublinha que a féria
dos homens era de 10$00/dia (correspondente atualmente a 0,05 €), enquanto as aprendizes que não possuíam a 4.ª classe ganhavam vinte e oito tostões, ou seja, 2$80, o mesmo é dizer pouco mais de 0,01 €. «Assim, porque me encontrava entre as que haviam logrado passar no exame da instrução primária, o meu vencimento era de 3$50/diários», ou seja, menos de 0,02 €.
Moças da comissão de fundos convidadas para madrinhas das primeiras camionetas de carreiras Memórias de um tempo em que a maioria dos habitantes deste lugar da freguesia de Arrentela se deslocava a pé quer para o Seixal, quer para Paio Pires ou para Amora, devido, por um lado, à inexistência de carreiras rodoviárias e, por outro, quando estas apareceram, por via dos reduzidos recursos financeiros com que viviam. «Aliás, quando o empresário de Aldeia de Paio Pires José do Moinho colocou ao serviço as duas primeiras camionetas, as raparigas pertencentes à dita comissão de fundos do Independente Torrense é que foram as escolhidas para madrinhas das viaturas», informa Mariana Rodrigues como quem evoca o importante papel que as moças da sua criação assumiram, tanto no quadro da vida interna da coletividade, como no do próprio concelho. A par da intensa atividade desenvolvida em favor da agremiação com que desde criança simpatiza, mormente o trabalho levado a efeito no âmbito das diferentes comissões de fundos que
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espontaneamente integrou, Mariana Rodrigues ainda encontrou disponibilidade para dar o seu contributo a diversas manifestações culturais, designadamente teatrais. Por essa razão, tomou parte no elenco de várias peças representadas pelo grupo cénico do IFCT, agrupamento amador que promovia, sobretudo, dois géneros de espetáculo: o drama e a comédia, tendo levado à cena um sem número de produções. «Do extenso rol de peças que representei, contam-se, entre tantos outros, os dramas “O Amor de Perdição”, “Amor Louco”, “A Pena de Morte”, “Leonardo Pescador” e as comédias “Guilherme Gil” e “Os Irmãos das Calças Amarelas”, esta última tendo como atores principais dois tios meus».
GNR apreende lanche do grupo de teatro e multa dono da taverna Recordações de uma época em que, fosse qual fosse a peça, cada representação era sinónimo de sala cheia, por mor do interesse que, nesse período, o teatro despertava junto dos habitantes e associados da prestigiada coletividade torrense, decorrente, aliás, da qualidade dos trabalhos que o grupo produzia e do talento daqueles que dele faziam parte, atributos bastantes para que fosse frequentemente solicitado a representar as suas peças em várias localidades da região. «Uma ocasião», relata, «fomos convidados para participar num espetáculo de beneficência no lugar de Sobreda, apresentando a peça que, na altura, tínhamos em cena. Ante o obje-
tivo que presidia à realização da referida festa, entendemos que daríamos igualmente a nossa colaboração, na condição de que, terminada a representação, nos fosse proporcionado um lanche, uma vez que os organizadores haviam decidido que o espetáculo encerrar-se-ia com a nossa atuação, prevendo-se que tal ocorresse um pouco tarde. Acontece, todavia, que quando nos deslocámos à taverna onde nos informaram que o dito lanche nos aguardava, deparámos com uma patrulha da GNR à porta, impedindo-nos a entrada, alegando não serem horas de o estabelecimento estar aberto. De pouco valeu a informação prestada pelo proprietário da casa de pasto, assegurando que fechara à hora legalmente estabelecida, ficando, a partir de então, apenas a aguardar a chegada dos elementos do grupo de teatro participante no referido benefício, a quem, aliás, se destinava tudo quanto estava nas mesas. Argumento que, no entanto, não demoveu os agentes da autoridade da intenção que ali os levou... Em função disso, tivemos de voltar para a Torre sem ingerir coisa alguma, enquanto o dono da tasca era multado e toda a comida que se encontrava disposta em cima das mesas apreendida», conta Mariana Rodrigues, enquanto deixa escapar uma gargalhada motivada pela recordação de tão insólito acontecimento. «Ainda hoje, tantos anos volvidos sobre a data em que tal ocorreu, sempre que falamos nisto, acabamos a rir, devido ao caricato da história», remata. Relatos de episódios que refletem uma profunda vivência coletiva, animada pelo entusiasmo com que participava na vida associativa e,
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Para muitos habitantes da localidade, a coletividade funcionou como a sua grande instituição de previdência, designadamente na época em que um forte surto de tuberculose varreu o país. Na época, muitos foram os espetáculos de diversa índole levados a efeito nas suas instalações, com particular destaque para o teatro e variedades.
por via dela, na dignificação da própria localidade, quer se tratasse da organização de cavalhadas e bailes, quer na realização de concertos dados pelas mais afamadas bandas filarmónicas daquele tempo. Uma delas foi a Banda da Carris que veio graciosamente, mas outras houve que exigiram o pagamento de cachet ou as despesas de deslocação. «É claro, não tendo o clube posses para se meter em aventuras, tínhamos de ser nós a encontrar forma de reunir o dinheiro necessário para fazermos face a esses encargos», assegura Mariana Evangelista Rodrigues. «Ele era vendendo rifas ou colocando flores na lapela dos cavalheiros que assistiam ao concerto, recebendo em troca o que cada um podia
dar. E para as cavalhadas, íamos pedir às diversas quintas, então existentes aqui em volta, para que nos dessem as prendas que serviriam de prémios. Uns davam coelhos, outros davam pombos, outros frangos... Eu sei lá!», salienta a entusiasta adepta do Independente Futebol Clube Torrense. Neste desfiar de gratas memórias sobre a vida da coletividade da sua simpatia, Mariana Rodrigues dá ainda conta do generalizado interesse com que a massa associativa viu o primeiro aparelho de televisão adquirido para a sede da agremiação e do permanente desassossego familiar que o mesmo lhe causava, designadamente por que se encontrava casada há dois anos e o esposo não tinha ordem de passar
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um serão em casa, em consequência de ser ele quem tinha a chave do imóvel, inconveniente ainda mais acentuado pelo facto de não haver mais nenhum aparelho na localidade. «Estava o prédio ainda em construção», refere, «pelo que não tinha janelas, o soalho era de terra batida e as portas feitas com a chapa de uns bidões cortados propositadamente para o efeito. Tudo muito precário. Sem conforto algum, sobretudo no inverno. Mesmo assim, apesar do frio por que passavam, todas as noites era a mesma coisa. Um corrupio de gente batendo-nos à porta, pedindo para que o homem fosse abrir a coletividade. Não lhe davam descanso», sublinha.
Espaço privilegiado de solidariedade para com os que padeciam de tuberculose Sem prejuízo da intensa atividade desportiva, recreativa e cultural que então o Independente desenvolvia, a instituição desempenhava ainda uma relevante função de carácter social em favor dos habitantes da localidade, tal era a de procurar valer aos que por motivos de saúde se viam impedidos de trabalhar e, por conseguinte, impossibilitados de prover ao sustento dos que de si dependiam. Nessas ocasiões, o espírito solidário que caracterizava as gentes da localidade despontava em toda a sua plenitude, sendo, por isso, frequente a organização de iniciativas tendentes à angariação de fundos para acudir a este ou àquele morador. Na opinião de Mariana Evangelista Rodrigues,
«quando o país se viu assolado pela tuberculose, doença que atacou várias pessoas da terra, quem lhes valeu foram os espetáculos e festas de benefício que a coletividade realizou com o objetivo de obter dinheiro para se tratarem. Caso contrário, ninguém lhes valia, pois nessa época não havia caixa de previdência. Por essa razão, a sua grande previdência fora, afinal, o clube. De igual modo, o dinheiro para o funeral de muitos daqueles que não resistiram à doença foi obtido através dessas organizações ou de peditórios efetuados de porta em porta», assevera a popular anciã. Fragmentos de uma vida dedicada à elevação da causa associativa, prestigiando, desse modo, o nome da sua terra natal, sem atender a outros interesses que não fosse, exclusivamente, o que decorria de sentir-se reconfortada por constatar que com o seu esforço e empenhamento contribuíram para estreitar os laços de afetividade entre os moradores e a sua popular coletividade, concorrendo, desse modo, para a afirmação dos traços identitários da Torre da Marinha, enquanto núcleo populacional empenhado na construção das grandes alamedas da solidariedade e da cultura que ao futuro apontam.
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Orlando Matias e Fernando Cruz Dois amantes do teatro amador, dois atores do Grupo Cénico Elementos proeminentes da intensa atividade desenvolvida pelo Grupo Cénico do Independente Futebol Clube Torrense ao longo de diversos anos, Orlando Matias e Fernando Cruz, dois dos vários atores que durante cerca de uma década espalharam o seu gosto pela arte de representar, tanto no palco da popular coletividade, como no das suas congéneres, sediadas ou não dentro dos limites geográficos do concelho, são duas personalidades que muitos dos seus consócios apontam como determinantes na projeção cultural que a agremiação assumiu em determinado período da sua história.
Por esse motivo, o desafio que lhes fora lançado no sentido de recuperarem histórias e episódios vividos nesse período de tempo não só lhes reavivou a memória como, sobretudo, lhes fez regressar à lembrança acontecimentos que já supunham irremediavelmente perdidos na bruma do tempo. Uma solicitação recebida com agrado, encarada, desde logo, como um forte pretexto para rememorar um conjunto de experiências pessoais e coletivas que calaram fundo no imaginário da massa associativa e que, por isso mesmo, permanecem vivas no ideário de quantos as protagonizaram. Não é, assim, despiciendo que as suas primeiras palavras versem as razões que levaram, precisamente em finais de 1974, o aludido grupo amador a optar por suspender a regular produção teatral iniciada no primeiro quartel da década de sessenta. As profundas transformações político-sociais registadas no país e o in-
Na foto, Orlando Matias e Fernando Cruz contracenando numa das diversas peças levadas à cena pelo Grupo Cénico. Enquanto Orlando Matias usa da palavra, Fernando Cruz observa.
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Neste registo fotográfico podem ver-se dois elementos tidos como preponderantes na atividade desenvolvida pelo mencionado grupo cénico. São eles Antero Aleixo (segundo a contar da esquerda), ensaiador e ex-presidente da coletividade, e Joaquim Manuel (também de pé, mas o primeiro a contar da direita), fadista amador, residente na localidade, que abrilhantava o ato de variedades com a qual o grupo cénico finalizava todas as suas atuações.
Segundo Fernando Cruz, numa dessas ocasiões o grupo decidiu mesmo efetuar uma réplica do espetáculo que, ao tempo, Camilo de Oliveira tinha em cartaz, denominado «Café Concerto», utilizando para tanto a denominada prata da casa. A foto regista esse ato, reconhecendo-se, entre outros, Marchão (fazendo de empregado do bar), Carlos (1.º à esquerda), Manuel de Jesus Coelho (de chapéu) e Emília Cruz, olhando para a jovem cantora.
gente apelo sentido pelos que dele faziam parte para participarem noutro tipo de intervenções cívicas tornou problemática a reunião de todo o elenco sempre que tinham lugar os necessários ensaios ou se agendavam espetáculos. Sem deixarem de manifestar o vazio que essa suspensão deixou no quotidiano das suas vidas, ambos sublinham que se tratou de um período extremamente rico, do ponto de vista cultural e humano, mau grado os sacrifícios e o trabalho que cada representação lhes exigia, já que o que estava em causa eram a dignificação e o prestígio da coletividade de que são sócios. «Eu que o diga», atira Fernando Cruz , 71 anos, «porque para além de representar ainda tinha a missão de bater à máquina o texto que cabia a cada um dos outros atores. Se a peça tivesse nove personagens, seriam nove textos que teria de datilografar. Uma empreitada que
me ocupava dias inteiros. O que me valia, nessa época, era a circunstância de trabalhar de noite e ter os dias disponíveis». A realização de tal tarefa acarretava, necessariamente, uma redução do tempo dedicado à família, mas nunca suficiente para beliscar a harmonia do seu lar, uma vez que tanto a sua esposa como a sua filha integravam também o grupo cénico.
Representar peças proibidas pela PIDE Como que reafirmando a convicção manifestada pelo companheiro, Orlando Matias, 68 anos, sublinha que ainda uma das filhas do seu consócio mamava e já os pais a traziam consigo para os ensaios, permanecendo a um canto do palco enquanto estes decorriam. «Só
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dava sinais de si quando a fome a apoquentava, momento em que se suspendiam, momentaneamente, os trabalhos para que a mãe a amamentasse». «Aliás, nem podia ser de outra forma», intervém Fernando Cruz, «porque todas as noites começávamos o ensaio cerca das 21 horas e só por volta da uma da manhã saíamos da coletividade». Vocacionado para a interpretação de dramas, o Grupo Cénico do Independente Futebol Clube Torrense orgulhava-se, segundo os dois ativistas, de ter conseguido representar várias peças proibidas pelo regime do denominado Estado Novo, tais como «A Pena de Morte» e «Amargura de Mãe», contando para tanto com a cumplicidade de um antigo funcionário da câmara, de nome Gaspar, pessoa que no quadro do concelho tinha a responsabilidade pelo cumprimento das instruções censórias emanadas da PIDE e da Comissão da Censura. «A montagem desses espetáculos constituía para todos nós uma aventura, pois, se acaso, a polícia política viesse assistir a alguma das representações, íamos todos presos. Felizmente isso nunca aconteceu», realça o entusiasta ator amador. «Além desse género, produzíamos igualmente uma comédia e um ato de variedades, o qual incluía sempre uma rábula social satirizando os costumes da época e uma marcha popular, uma e outra, escritas por Silva Nunes e Jorge d’Ávila, sendo que os versos desta última variavam em função da localidade onde atuávamos, posto que fazia referência aos mais importantes acontecimentos ali ocorridos», esclarece este ativista do grupo cénico.
«Na noite de passagem de ano, então, a festa era de arromba, já que o programa do serão incluía os três géneros de representação, encerrando com o dito ato de variedades, no decurso do qual atuavam os cançonetistas amadores, Joaquim Manuel e Odete Dioval. Mas tão aliciante quanto tudo o resto era o espírito de camaradagem existente entre todos os elementos pertencentes ao teatro e o permanente convívio que estabeleciam com os demais associados que optavam por passar o reveillon na coletividade,» recorda com tamanha emoção que a voz se lhe embarga e o olhar subitamente se turva. A tal ponto que não consegue deter a rebeldia de duas lágrimas que entretanto se assomaram em seus olhos.
Grupo Amador de Teatro espaço de encontro e de amizades Ultrapassada a breve comoção motivada pela nostálgica recordação dos gratos momentos vividos em tempos idos e recuperado o fio das palavras ou, se se preferir, o fio à meada, este antigo entusiasta do Grupo Cénico do Independente Futebol Clube Torrense volta com igual alento afirmando que «a coletividade era então um espaço de encontro e de amizades que não atendia a idades ou a sexos, quadro que, naturalmente, se estendia ao próprio grupo teatral.» «Apesar disso», refere, «não se afigurava fácil conseguir o ingresso das raparigas nas atividades cénicas. Não é que elas não tivessem vontade de fazer parte do teatro. O problema é que nem sempre os pais viam com bons olhos essas suas pretensões». «Nestas circunstâncias, muitas foram as oca-
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siões em que andei a pedir aos pais de algumas raparigas para que, sob minha responsabilidade, as deixassem integrar o grupo. Uma responsabilidade que incluía a obrigatoriedade de as acompanhar a casa, no final dos ensaios ou espetáculos. De outro modo, víamo-nos em papos de aranha para formar o elenco de muitas peças», sustenta. A evocação de tal procedimento imediatamente despertou em Orlando Matias o desejo de voltar a tomar parte ativa na conversa para atalhar: «Eu próprio cheguei muitas vezes a ir no final dos ensaios levar duas raparigas que moravam nas Paivas. Até porque, nessa época, tudo aqui em volta eram quintas. Assim, por uma questão de mantermos o compromisso que havíamos assumido perante os pais, a que se juntava também a segurança das referidas raparigas, lá ia, volta não volta, com outros companheiros fazer-lhes companhia», diz no seu peculiar jeito de falar, resultante da notória gaguez de que padece. Ex-trabalhador do Porto de Lisboa, Fernando Cruz salienta ainda que tal obrigação acabava, afinal, por impossibilitá-los de se deitaram antes das duas horas da madrugada, não obstante terem impreterivelmente de se levantar todos os dias às seis.
Reativação do Grupo Cénico nasceu num encontro ocorrido no Correr d’Água Marido de Mariana Evangelista Rodrigues, Orlando Matias salienta, no entanto, que o seu ingresso no grupo de teatro da coletividade é posterior àquele em que a sua mulher dele fez
parte, razão pela qual nunca chegaram a contracenar juntos. «Ela integrou um dos primeiros agrupamentos teatrais existentes na coletividade, mas por razões que desconheço, anos volvidos, acabaria por se extinguir, sucedendo-lhe então o grupo a que eu pertenci e no qual permaneci até ao dia em que concluímos que deixara de haver condições para que este se mantivesse em atividade», refere o respeitado associado e figura assídua da agremiação. «Aliás, a ideia de reativarmos a tradição da atividade cénica na coletividade havia surgido no decurso de um encontro realizado numa Quinta do Correr d’Água, em que para além de nós dois, participou ainda António Pinheiro», informa Fernando Cruz. «E a primeira peça que levámos à cena intitulava-se “Ai, que mulheres!...!”, na qual contracenei com minha esposa, que me sovava forte e feio.» «Depois dessa, montámos ainda “A Casa de Pais”, da autoria de Costa Ferreira», acrescenta Orlando Matias, «uma peça que já tinha passado na televisão, interpretada, entre outros, por Manuel Lereno e Elvira Velez e, na qual, desempenhei o papel de pai. Um trabalho feito com todo o rigor, embora se tratasse de um grupo amador», frisa Orlando Matias. «Também desempenhei as comédias “A Quem Deus Promete Nunca Falta” e “O Julgamento do Samouco”. Em todas elas, ninguém acreditava que fosse capaz de desempenhar o papel que me havia sido atribuído, devido ao meu problema de fala», recorda, «mas o certo é que o fiz na perfeição. Não falhou nada», realça o antigo operário da Fábrica de Lanifícios de Arrentela. «Na verdade assim é», confirma prontamente
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Fernando Cruz. «Quem não o conhecesse estaria longe de supor que ele era gago». Um trabalho feito com muito empenho por todos os elementos do grupo, independentemente de qual fosse a peça e, por isso, premiado sempre com lotações esgotadas. O rigor colocado na preparação de qualquer espetáculo esteve na origem da receção de vários convites para se deslocarem a outras coletividades do concelho, chegando mesmo a representarem no Centro Paroquial de Fernão Ferro uma das diversas peças que encenaram, logo na semana imediata à da respetiva estreia. «É claro que sendo o grupo integralmente constituído por gente que apenas encarava o teatro como um meio de entretenimento e de elevação dos seus conhecimentos, e não como um modo de vida, os espetáculos apenas podiam realizar-se aos sábados à noite, posto que no domingo folgávamos», lembra Fernando Cruz. «Ademais, nenhum de nós possuía qualquer tipo de formação teatral, logo ter a pretensão de viver do teatro era coisa que estava fora dos horizontes de quem quer que fosse, ainda que tivesse muito talento, como, de resto, o tinham Manuel Jesus Coelho e a então jovem Sofia, ainda hoje residente na rua da coletividade», sublinha este responsável do antigo grupo. «Mas graças à dedicação e à competência com que Antero Aleixo nos dirigia e ensaiava, aliadas à intuição com que sabia distribuir os papéis pelos atores, em ordem a retirar as potencialidades que cada um possuía, permitia esconder muitas das limitações que eventualmente afetassem o grupo», frisa Fernando Cruz.
Rigor e qualidade dos trabalhos dignificavam coletividade Na perspetiva destes dois ativistas do mencionado grupo cénico, o interesse que nutriam pelo teatro resultava, a um tempo, das fortes relações de camaradagem que os uniam e dos laços de amizade que, por via dela, se estabeleciam, e a outro, procurar que a agremiação tirasse disso algum proveito, nomeadamente através do encaixe de algumas verbas provenientes das receitas dos espetáculos que regularmente nela se realizavam. Nada mais. «Um período de intensa atividade que nos deixou gratas recordações e que, a nosso ver, muito prestigiou a instituição, tanto por força da animação que dava ao Independente e das consequentes receitas que lhe proporcionava, como pelo prestígio que lhe conferiam os frequentes convites que recebíamos para atuarmos em diferentes localidades da região ou fora dela», sustenta Fernando Cruz, que se afirma ainda disponível para voltar a pisar as tábuas se acaso houver oportunidade para tal, o mesmo é dizer, se houver vontade de reativar o grupo. «Não queria morrer sem voltar a representar», confessa, ao mesmo tempo que se deixa tocar mais uma vez pela emoção, sentimento genuíno que o obriga novamente a parar o relato. Por seu turno, Orlando Matias, como que tocado pela sensibilidade do seu companheiro de tábuas e de conversa, apresta-se a garantir: «Não é caso para menos, porque embora tenha começado a fazer teatro já depois dos 30 anos, sempre que ele entrava em cena, enchia o palco tanto com a sua presença, como pela desen-
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voltura com que interpretava os papéis que lhe cabiam». Obviamente que nem só de gratas recordações vivem as memórias de tão dilatado período de tempo. Alguns momentos houve que semearam a angústia no seio dos responsáveis do grupo. Um deles verificou-se com a súbita desistência de um dos atores, ocorrida escassos dias antes da estreia da peça «Hotel Modelo», decisão que, a par de colher de surpresa todo o elenco, espalhou no seio de todos quantos o integravam um profundo sentimento de angústia, ante a eminência de verem o trabalho desenvolvido ao longo de meses ir por água abaixo. «Um golpe com o qual não contávamos», diz Fernando Cruz. «Mesmo assim, a peça acabaria por estrear na data marcada. Valeu-nos a circunstância de eu ser o último ator a entrar em cena e, além disso, saber de cor o texto de todas as personagens que a constituíam. Por esse motivo, tive de assumir a responsabilidade pela interpretação dos dois papéis, função que na opinião dos restantes elementos desempenhei a contento, mau grado apenas ter tido quinze dias para preparar a personagem que tive de assumir quase à última hora», refere com notória satisfação, sem deixar de anotar as permanentes canseiras que tamanha dedicação lhe acarretava, sem receber qualquer tipo de compensação material. «Fazíamos tudo em prol da coletividade e pela dignificação da localidade», sublinha Orlando Matias. «Por essa razão não admitíamos intromissões no nosso trabalho. Nem mesmo da direção, embora uma ocasião esta tenha tentado ditar-nos quais as peças que teríamos de levar à cena, mas deparou-se imediatamente com a
nossa firme oposição, sendo forçada a recuar nos seus intentos. De resto, nem outra coisa seria de esperar, porque ninguém melhor do que nós sabia quais as peças que melhor se ajustariam às características e limitações dos elementos do grupo», salienta ainda o conceituado associado, no seu peculiar jeito de se expressar. Testemunhos de uma época em que o Independente Futebol Clube Torrense se assumia como o grande local de encontro e de convívio dos habitantes da localidade, espaço privilegiado de amizades que permanecem ao longo de uma vida, porque alicerçadas numa genuína camaradagem e num coincidente desejo de dignificar a agremiação. Um sentimento que ultrapassava ainda a vertente do mero entretenimento, visando a ocupação dos tempos livres de quantos a frequentavam, e se projetava aos domínios da elevação do conhecimento e da fruição cultural.
Manuel Batista Silveira, «Néné» O coração e a alma da obra da nova sede Figura central no processo de construção do atual edifício sede do Independente Futebol Clube Torrense e um dos associados mais antigos da prestigiada instituição, Manuel Batista da Silveira, 72 anos, popularmente conhecido por «Néné», devido à forma como seus pais o tratavam, desde terna idade se habituou a frequentar a coletividade, acompanhando o seu pulsar quotidiano.
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Tão assídua convivência associativa e os profundos laços de afetividade que dela prontamente emergiram não passaram despercebidos aos demais consócios que, reconhecendo as suas qualidades e o dinamismo que logo começou a evidenciar, cedo lhe conferiram responsabilidades diretivas. Não surpreende assim que ainda com 17 anos já estivesse investido nas funções de secretário da direção da popular agremiação, ocupando posteriormente outros cargos. «Houve um ano em que cheguei a acumular as tarefas de presidente da direção e de secretário das comissões de festas e de melhoramentos. Esta última era a entidade promotora da construção da sede, a quem, de resto, cabia a missão de conduzir todos os trabalhos tendentes à realização da obra», informa. Praticante de ténis de mesa, modalidade na qual representou o Independente Torrense nos diferentes torneios que, ao tempo, se realizavam um pouco por todo o concelho, Manuel Batista da Silveira, «Néné», refere no entanto que a circunstância de se encontrar ligado à coletividade desde muito novo contribuiu sobremaneira para a sua formação, já que as suas habilitações literárias se ficam pela antiga 4.ª classe.
«Parte da minha formação cívica devo-a à coletividade» «Não fora o saber que a coletividade me proporcionou e a aquisição de conhecimentos que essa frequência em termos humanos e pessoais me transmitiu e, certamente, que o meu grau de cultura geral seria muito menor do que aquele que hoje, graças a ela, possuo. Por isso,
afirmo que parte significativa da minha formação cívica a devo, em larga medida, ao Independente e a outras coletividades a que tenho pertencido», reconhece o ex-dirigente. Elemento preponderante no projeto de construção das instalações onde se encontra presentemente sediado o clube, quer pela capacidade manifestada na congregação de esforços e vontades em torno na concretização de tão caro sonho, quer pelo trabalho despendido ao longo do processo de realização da obra, Manuel Batista da Silveira, ou melhor, «Néné», salienta que os primeiros passos conducentes à execução de tal objetivo foram dados por uma direção a que ele mesmo presidia. «Tratou-se de um dossiê que se deparou com muitas dificuldades. Desde logo, porque teríamos de adquirir o terreno para o efeito», afirma. «Assim, porque sabíamos que João Manuel Coutinho, dono daquela parcela de terra, atravessava um período de algum aperto, motivado pelo vício do jogo, tomei em mãos a missão de o abordar no sentido de saber se pretenderia vender o terreno em causa. Para tanto, desloquei-me numa tarde de sábado ao antigo Café Portugal, situado no Rossio, local onde passava os dias jogando bilhar, na perspetiva de lhe colocar a questão, coisa que não cheguei a fazer, posto que ele mesmo quando me viu me perguntou se estaria interessado na aquisição de certo terreno que ele possuía na Torre da Marinha», adianta Manuel Batista da Silveira, «Néné».
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Terreno para a sede custou quatro mil escudos «Ante esta inquirição, disse-lhe que eu não estava interessado, mas a coletividade, da qual era presidente, poderia, eventualmente, estar disponível para o comprar. Tudo dependia do valor que ele pedisse. Então, ele avançou com uma verba, de que já não me recordo, mas que recusei, tendo formulado uma contraposta de quatro contos – cerca de 20 € –, montante muito elevado para esse tempo e que, por esse motivo, reputava de inegociável. E ficámos neste pé, dado que ele considerou o valor da minha oferta demasiado baixo para as suas pretensões», relata.
Um acontecimento que, a par de dirigentes e associados da popular instituição associativa, contou ainda com a presença de Cosme Narciso Lopes, ao tempo presidente da Câmara Municipal do Seixal, como, aliás, a imagem no-lo documenta.
«No entanto, umas semanas mais tarde, procurar-me-ia na padaria de meu pai e meu local de trabalho, com o intuito de me perguntar se mantínhamos a proposta que lhe havia feito e em caso afirmativo se lhe adiantava naquele momento dois mil escudos para sinalização da transação, sendo o restante entregue por ocasião da escritura. Assim fizemos. Entregues os dois contos em troca de uma declaração na qual ele se comprometia a vender-nos o referido terreno, ultrapassámos o primeiro dos vários obstáculos que se colocavam à construção do edifício que hoje acolhe a agremiação», esclarece o referido ex-dirigente torrense. «A partir daí, tanto os corpos gerentes, como a massa associativa, logo trataram de começar a mobilizar-se visando a recolha de apoios que permitissem levar avante o desejo de todos, tal era o de concretizar tão arrojado sonho coletivo. Para tanto, foram constituídos vários grupos de trabalho. Uns com o objetivo de promoverem festas e outras iniciativas conducentes à angariação de fundos, outros com a missão de reunirem a mão de obra necessária à execução da obra. De forma absolutamente voluntária, uma vez que a agremiação não tinha posses para pagar a quem nela trabalhasse», sublinha. «Por essa razão, só depois da cinco da tarde e aos fins de semana, os sócios laboravam na obra. Cada um fazia o que sabia ou podia. Este fazia massa, aquele assentava tijolo, o outro dava serventia de pedreiro, etc., etc.», diz. Paralelamente, formularam um pedido à então Direção Geral dos Serviços Florestais e Agrícolas para que lhes doasse uns pinheiros da Mata da Machada, Coina, solicitação que obteve parecer favorável daquela entidade, a qual
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os autorizou a retirar quatro grandes árvores, ante o fim a que se destinavam. Mas o peso de uma gorjeta dada ao guarda da referida mata fez com que este fechasse os olhos ao número de pinheiros a abater, pelo que em vez de quatro pinheiros trouxeram seis.
Transporte dos materiais para a obra mobilizava sócios e ambos os sexos «Concretizados os nossos intentos, havia, pois, que providenciar o respetivo transporte da madeira», conta Manuel Batista da Silveira, «Nené». «Para o efeito, solicitei aos proprietários de diversas camionetas de carga o empréstimo das viaturas, uma vez que já havia obtido a disponibilidade dos respetivos motoristas. Dessa forma lográmos, logo no domingo imediato ao dia do abate das árvores, organizar um comboio automóvel que as carregou até às instalações da firma A. Silva & Silva a fim de serem convenientemente cortadas. Uma urgência que se fundava na falta que a madeira fazia à prossecução dos trabalhos e na imperiosa necessidade de proteger a cumplicidade revelada pelo mencionado guarda», relata o ex-dirigente do Independente Torrense e grande impulsionador do referido projeto. «Quando havia determinação, tudo se conseguia», frisa o popular «Nené», «posto que o fervor associativo patenteado pelos habitantes da Torre da Marinha sempre que se tratava do Independente era tal que bastava anunciarmos aos altifalantes da aparelhagem que o clube precisava de voluntários para uma jornada de trabalho e
logo os associados se aprestavam a inscrever-se. Foi desta forma que arranjámos a mão de obra para carregar os pinheiros. O mesmo sucedeu quanto ao transporte da pedra e do cimento necessários à construção do edifício. Assim como a mão de obra utilizada na construção». Residindo atualmente na Área Metropolitana do Porto, o nosso interlocutor não esquece, no entanto, a sua terra natal e os amigos que nela deixou. De igual modo, não esquece a instituição associativa a que esteve ligado desde os seus tempos de infância e as recordações que guarda de tal vivência.
Participação das raparigas servia de incentivo a que a rapaziada nova se inscrevesse «Uma ocasião», relata, «precisávamos de ir ao Zambujal, Sesimbra, carregar cinco camionetas de pedra que nos haviam sido oferecidas pelos proprietários de algumas pedreiras e sem a qual não poderíamos continuar a erguer as paredes da sede. Acontece, porém, que na véspera do carregamento o número de voluntários inscritos para efetuar esse trabalho era manifestamente insuficiente, situação que poderia levar ao cancelamento do comboio automóvel que havíamos perspetivado e à consequente paragem da obra por falta de matéria-prima, cenário que jamais poderíamos permitir se viesse a consumar. É então que me ocorre convidar as raparigas mais bonitas e vistosas da localidade para nos acompanharem nessa deslocação, procedendo à divulgação dessas adesões, através da apare-
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lhagem sonora da coletividade. Um estratagema visando, objetivamente, aguçar o interesse da rapaziada nova em participar nessa jornada. E se bem pensada foi a estratégia, melhores foram os resultados obtidos com esse expediente, dado que em poucas horas arranjámos o número de braços suficientes para tal operação», conta com natural agrado. É claro que nem só de simpatias se lavram as memórias deste associativista torrense cujo fervor coletivo o instigou a entregar-se de coração e alma à criação de uma sede própria para a sua agremiação. As lembranças desse tempo também registam alguns desagravos e incompreensões, protagonizados por alguns conterrâneos que não encaravam bem a concretização desse sonho, por se lhes afigurar que este poderia eventualmente colocar em perigo outras iniciativas de beneficência de que eram mentores. «Uma das entidades que não via com bons olhos a existência de tantas boas vontades em torno da coletividade era precisamente uma comissão que pretendia comprar uma carreta para transportar os defuntos da Torre da Marinha para o cemitério de Arrentela, evitando, assim, que o féretros fossem levados ao ombro», concretiza Manuel Batista da Silveira, «Nené». «A meu ver, uma coisa não invalidava a outra, mas meteu-se-lhes na cabeça que a existência de comissões de fundos no Independente com o objetivo de realizar a obra iria deitar por terra as suas intenções, motivo bastante para que deixassem de passar junto à obra, evitando por esse meio olhar para ela. E o curioso é que as pessoas que integravam a dita comissão da carreta eram todas associadas do clube.
Um deles até era, precisamente nessa altura, o sócio n.º 1 da coletividade. Felizmente, com o correr dos meses, os infundados receios que inicialmente os assaltaram esfumaram-se, dando lugar à prevalência do bom senso. E a tal ponto chegou a sua sensatez que os homens não só concluíram que a obra que estávamos a realizar constituía um claro benefício para a população da localidade, como, para além disso, decidiram ainda entregar ao Independente todo o dinheiro entretanto angariado, para que mais depressa aquela se fizesse», salienta Manuel Batista Silveira, «Nené».
Liquidação dos empréstimos concedidos pelos associados era ditada por sorteio Registo de acontecimentos que, por este ou aquele motivo, marcaram profundamente quem os viveu, até porque o dinheiro para concretizar tamanha empresa não abundava, já que de um modo geral os associados da agremiação eram pessoas de parcos recursos económicos, que viviam da pequena jorna ganha nas fábricas de cortiça e de lanifícios então existentes nesta zona do concelho. «Algumas vezes houve em que, para fazer avançar a construção do imóvel, foi necessário contrair um empréstimo junto da massa associativa. Cada um emprestava a importância que podia, dado que a maioria dos sócios vivia com grandes dificuldades. Por outro lado, também não sabiam quando poderiam receber o respetivo reembolso», informa o conceituado associativista torrense. «Assim, com o objetivo de evitar aborreci-
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mentos, resultantes da liquidação do empréstimo concedido por um associado e não o de outro, adotámos como critério, sempre que os cofres da coletividade tinham algum desafogo, proceder à realização de um sorteio que ditava qual o contemplado. Só dessa forma lográmos amortizar a dívida contraída sem que ninguém ficasse melindrado. É certo que a devolução do dinheiro emprestado chegava a levar anos. Mas era a única coisa que estava ao nosso alcance, embora os que ficaram para o fim se lastimassem da sua pouca sorte», assegura Manuel Batista da Silveira, «Nené». Paralelamente, as comissões de fundos, criadas com o objetivo de angariar o dinheiro que possibilitasse satisfazer os encargos decorrentes da referida construção, prosseguiam o seu trabalho. Uma tarefa que mobilizava sócios e dirigentes, homens e mulheres. Responsável primeiro pelo êxito de tão arrojado empreendimento, qualidade que acumulava com a de membro dos corpos gerentes e elemento da comissão de festas da coletividade, Manuel Batista da Silveira integrava ainda uma das referidas comissões de fundos, situação que o fazia andar numa permanente roda-viva, obrigando-o a deslocações constantes, especialmente em períodos de maior aperto de tesouraria.
Venda de rifas, um método de angariação de fundos «Numa dessas ocasiões, fui ao Laranjeiro, localidade onde a então minha namorada e hoje minha esposa trabalhava, para lhe levar mais uns livros de rifas para ela vender. Sucede que ao entrar na loja surpreendi um sujeito a pedir-
-lhe namoro. Para meu espanto, ela manteve-se impávida e serena e respondeu-lhe que só aceitaria o seu pedido de namoro se ele lhe comprasse as rifas. Uma clara manifestação de apego ao clube, que ainda mais consolidou a nossa relação afetiva, uma vez que o seu objetivo não era o de pretender fosse o que fosse do homem, mas sim angariar dinheiro para as obras da sede», diz com um rasgado sorriso. «De resto, a venda de rifas era uma prática habitual sempre que havia necessidade de se angariar fundos. Por isso, todas as ocasiões serviam de pretexto para promovermos sorteios. Na sua juventude, minha mulher fez inclusive parte de diversas comissões de meninas que se responsabilizavam pelo funcionamento do bazar no decurso das festas da Torre e por altura da quadra de Natal. Tais comissões não podiam faltar, já que a sua existência constituía uma importante fonte de receita. Desde logo, por que eram formadas pelas mais bonitas raparigas da localidade», salienta. Alertando, contudo, para o facto de não possuir já a capacidade de memória de que desfrutou noutros tempos, Manuel Batista da Silveira, «Nené», realça que tal diminuição não afeta o registo dos acontecimentos ocorridos há quatro ou cinco décadas. «Esses mantêm-se inalteráveis», assevera. Afastado das funções diretivas e do dia a dia do Independente Torrense há cerca de quarenta anos, devido à circunstância de ter ido viver para Penafiel, o dinâmico associado sublinha ainda que apesar de o clube se haver transferido para o novo imóvel, mal este começou a dispor de condições, tal situação obstou a que se realizasse a inauguração formal do edifício,
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posto que a obra ainda hoje não se encontra totalmente concluída.
Jogo de matraquilhos, a grande fonte de receita «Creio mesmo que, tratando-se de uma construção que apenas contou com a generosidade dos amigos e associados da coletividade, dificilmente poderia ser considerada acabada, uma vez que não contou com quaisquer tipo de apoios oficiais. Diga-se igualmente que nesse tempo não era hábito do Estado apoiar fosse qual fosse a iniciativa que as coletividades promoviam. E menos ainda quando se tratava de uma agremiação sediada num concelho operário como era o do Seixal», alerta Manuel Batista da Silveira, «Nené». «Esses apoios só começaram a verificar-se depois do 25 de Abril de 1974, com a institucionalização do Poder Local. Antes disso, as coletividades estavam entregues à sua sorte, o mesmo é dizer, à boa vontade dos respetivos sócios. O grande apoio com que, então, contámos, foram os matraquilhos, um jogo que aparecera por essa época e que exercia um grande poder de sedução sobre a rapaziada. De tal ordem que as mesas estavam sempre ocupadas.»
Por via do entusiasmo que se gerara em torno de tão importante obra, à medida que se concluía uma fase da construção, logo as gentes da Torre da Marinha encontravam razão para levarem a efeito uma cerimónia tendente a assinalar o feito. Foi o que sucedeu quando chegaram ao fim as obras da grande varanda, um forte motivo de celebração.
Testemunha de um tempo em que a localidade era constituída por meia dúzia de casas e o comércio se limitava a três tabernas, a agremiação assumia-se como o grande local de convívio dos habitantes, vocação reforçada com o aparecimento da rádio e posteriormente da televisão, devido à aquisição por parte da agremiação dos respetivos aparelhos, por sinal os primeiros a chegarem à Torre da Marinha. «Um bairrismo que se manifestava no fervor com que as pessoas acompanhavam a vida do clube, afinal o grande embaixador da localidade, expresso na prática de diversas modalidades desportivas, entre as quais, futebol, ténis de mesa, atletismo e natação», esclarece o antigo dirigente do Torrense.
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Levados a tribunal por lançar fogo de artifício Relatos de um período histórico em que as autoridade locais exigiam às coletividades a obtenção de uma prévia autorização camarária sempre que pretendiam lançar fogo de artifício a pretexto de mais um aniversário ou assinalando a realização de qualquer festa. «Uma vez, por altura do aniversário da coletividade, solicitámos a Cosme Lopes, ao tempo presidente da câmara, a emissão da competente autorização para lançarmos fogo, documento que nos foi prontamente passado, sem referir que tipo de fogo poderíamos lançar, logo, para além dos habituais foguetes, lançámos também diversos morteiros», relembra Manuel Batista Silveira, «Nené». «Sucede, porém, que mal soaram os primeiros rebentamentos, apareceu uma patrulha da GNR solicitando-nos a autorização para o efeito. Ora, constando que esta não fazia menção expressa ao género de fogo que poderíamos deitar, levou-nos a referida autorização, sem a qual não estaríamos habilitados a lançar nenhum tipo de petardo. Ante esta situação, voltámos a contactar o responsável camarário que nos tranquilizou, aconselhando-nos a prosseguir com os festejos como se o documento não nos tivesse sido levado, continuando, por isso, a deitar o fogo», prossegue o ex-dirigente da popular agremiação. «Acontece que, à semelhança do que se havia passado anteriormente, a GNR voltou à carga, levando-nos a tribunal, acontecimento que prontamente mereceu de Cosme Lopes a sua disponibilidade para ir em nossa defesa, che-
gando mesmo a perguntar ao juiz quem era a entidade responsável pelo que acontecia no concelho, pergunta à qual o meritíssimo respondeu que era o presidente da câmara. Perante tal resposta, Cosme Lopes referiu não compreender a razão de termos sido levados à justiça, tanto mais que o rebentamento dos petardos estava autorizado pelo presidente da edilidade. Nestes termos, o juiz mandou-nos embora, enquanto passava um tremendo raspanete aos agentes, dizendo-lhes que não se atrevessem a voltar à sua presença com um caso semelhante», remata Manuel Batista da Silveira.
Tal como o futebol, a natação foi uma das modalidades que gozou de grande popularidade no seio desta agremiação. A foto apresenta-nos uma das equipas que representou o Independente Torrense, nas estafetas que, em tempos idos, tinham lugar no estuário do rio Judeu.
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Por força do forte sentimento afetivo que se fazia sentir, as celebrações de cada aniversário do Torrense assumiam sempre o carácter de uma festa que enchia invariavelmente o salão da coletividade, como, aliás, a imagem claramente evidencia.
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Ginรกsio Clube de Corroios Uma casa apostada na defesa dos ideais democrรกticos
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Apesar de a sua fundação oficial datar de 10 de fevereiro de 1946, dia em que finalmente obteve a aprovação dos estatutos por parte dos organismos que detinham essa competência, a sua existência remonta, contudo, a cerca de dois anos antes, altura em que os fundadores iniciaram a constituição da agremiação com a entrega dos respetivos estatutos para aprovação das autoridades competentes. No entanto, por considerarem que muitos dos fundadores da coletividade professavam ideais democráticos, os responsáveis pelos organismos que detinham essa função não apenas trataram de reprovar os estatutos, como lhes levantaram uma série de dificuldades com o propósito de os demover de levarem por diante os seus intentos, processo que se arrastou por tão longo período de tempo. Ultrapassada essa situação, aliás, resultante do receio evidenciado pelos serventuários do Estado Novo de que a atividade desportiva, recreativa e cultural desenvolvida pelo Ginásio Clube de Corroios pudesse ser prejudicial aos desígnios do regime então vigente, desde logo os homens e mulheres que estiveram na génese da nova coletividade resolveram lançar-se na realização de um intenso trabalho no domínio da promoção da prática desportiva, em especial o futebol, modalidade ao tempo já muito popular entre as gentes da terra. Mas essa sua determinação estendia-se ainda ao recreio e à fruição da cultura. Foi uma época marcada por constantes torneios desportivos e por um sem número de eventos de âmbito recreativo e cultural, com particular saliência para a ocorrência de bailes, récitas, espetáculos musicais e teatrais, leva-
dos a cabo no barracão que inicialmente serviu de sede social do clube, espaço cuja exiguidade impedia, naturalmente, o normal funcionamento da instituição, a par de se constituir um evidente constrangimento ao aumento desse tipo de acontecimentos. Tal quadro manteve-se até ao início dos anos 1950, década em que se muda para um anexo construído no local onde ainda hoje se situa, junto ao qual montou ainda um palco para a realização de iniciativas de natureza diversa. Se essa mudança constituiu um marco importante na melhoria das condições de funcionamento da coletividade, a construção, ainda que precária, do novo edifício sede, efetuada na mesma década, revelar-se-ia um passo decisivo na intensa atividade que desenvolveria até finais dos anos 1980. Para isso muito contribuiu igualmente o início das obras do Cineteatro, projeto começado em 1973 e que se prolongou até 25 de abril de 1975, data em que oficialmente foi inaugurado. Esta obra, tal como as demais benfeitorias feitas anteriormente, entre elas a ampliação do imóvel, dotando-o de três pisos, compostos por uma biblioteca, salas de jogos, de convívio, de reuniões, camarins e balneários, bem como um minipavilhão, entre outras, foram inteiramente suportadas pela massa associativa já que, até então, não recebera nenhum subsídio oficial para esse ou outro fim. Em consequência de todos esses melhoramentos, grande foi, também, o aumento da atividade desportiva e cultural registado nos anos subsequentes. São disso exemplo a existência de secções de xadrez, badmínton, futebol – nos quatro escalões –, ginástica, campismo, um
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grupo cénico e um grupo de majoretes. Das canseiras que envolveram todos esses projetos se dá agora conta nos testemunhos de alguns daqueles que se entregaram de coração e alma à elevação cultural e desportiva das gentes da terra onde nasceram ou que adotaram como sua.
Emílio de Jesus Fernandes «O Ginásio é um exemplo da capacidade e perseverança do associativismo popular» Emílio de Jesus Fernandes, 74 anos, é um dos elementos do grupo de jovens que esteve na fundação do Ginásio Clube de Corroios, razão pela qual tem desempenhado os mais diversos cargos na coletividade, situação que lhe confere um conhecimento privilegiado sobre o aparecimento da agremiação, suas dificuldades e afirmação, enquanto polo aglutinador dos interesses da juventude da terra. De acordo com o emblemático associado, o Ginásio nasceu no seio de um agrupamento popular, ao tempo existente em Corroios, denominado União Corroiense Futebol Clube, o qual desde 1936 se dedicava à prática do futebol e do atletismo, na Quinta da Mata, ao mesmo tempo que fazia teatro amador e «cantes ao fado» num espaço cedido pelo proprietário da Quinta do Castelo. «Tratava-se de um grupo ad hoc, com cerca de cem sócios e sem personalidade jurídica, tal como muitos outros formados nessa época. Um
pouco à semelhança dos tradicionais grupos excursionistas. Estamos a falar dos anos 1930, um tempo em que o núcleo habitacional de Corroios era muito reduzido, rodeado por uma série de quintas», alerta Emílio Fernandes. «Ora, sucede que a dado momento, considerámos necessário imprimir outra dinâmica ao futebol, o que só poderia verificar-se se mudássemos o campo de jogos para outro local. Foi então que tomámos a António Marques Pequeno o aluguer do terreno onde hoje se situa o recinto desportivo do Ginásio, para nele construirmos o campo da bola. Pagávamos, na altura, uma renda de 100$00 mensais. Formámos um grupo de trabalho para o efeito, o qual tinha por objetivo realizar a obra tão rapidamente quanto possível, mobilizando, para isso, esforços e vontades de todos os amigos da agremiação, quer fossem sócios, quer não fossem. Foi, assim, possível alugar algumas vagonetas de terra para se efetuarem os indispensáveis aterros, sem os quais não nos seria possível concretizar os nossos intentos, já que todo esse local constituía um enorme buraco», relembra. «No entanto, quando se tratou de pagar o aluguer das vagonetas, não havia dinheiro. Valeu-nos, na ocasião, Manuel da Gaia Torres, comerciante que via com muita simpatia o projeto que nos animava, emprestando-nos os 4000$00 de que necessitávamos para satisfazer a respetiva liquidação. Uma ajuda tanto mais importante quanto é certo que, ao fazê-lo, não nos impôs qualquer tipo de condições prévias, apesar de nessa época tal soma constituir uma avultada verba», faz notar Emílio Fernandes. «Convirá, aliás, salientar que todo esse tra-
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balho era feito à força de braços, pela escassa centena de associados que o referido clube possuía, aos quais se juntou a boa vontade de alguns amigos que, prontamente, se dispuseram a colaborar. Só que tanto uns como outros apenas podiam agarrar-se ao cabo das enxadas e picaretas depois do sol-posto, hora a que largavam o trabalho, e nos dias de folga, o que impedia que a obra se efetuasse com a celeridade de que todos gostaríamos. Como se isso não bastasse, a ausência de um muro de suporte da barreira levava a que, quando chovia, as águas escorriam e encarregavam-se de arrastar consigo toda a terra que ali havíamos depositado com o intuito de tornar o recinto plano. Uma dor de cabeça permanente, que se manteve por cerca de três anos, o tempo que levou a concluir a obra. No entanto, quando conseguimos finalmen-
te fazer o campo, a escassez de recursos não nos permitiu construir balneários. Tal situação obrigava-nos, sempre que havia jogo, a irmos tomar banho às charcas ao tempo existentes na Quinta da Água, ou então íamos lavar-nos a casa. Enfim, peripécias que não devem ser esquecidas...», diz Emílio de Jesus Fernandes.
Clube mobilizava rapazes e raparigas Embora tenham sido muitas as adversidades que envolveram o União Corroiense, o querer e a determinação da juventude reunida à sua volta puderam mais do que as tropelias do tempo, razão pela qual sempre que havia uma enxurrada redobrados eram os esforços no sentido de repor o que fora estragado. Um espírito de equipa que não olhava a idades nem sexo.
Uma das primeiras equipas de futebol da popular coletividade de Corroios, a qual integrava alguns dos principais ativistas da instituição.
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«Até as raparigas logo se mobilizavam, quer na feitura de flores, quer na respetiva venda, a qual se processava na colocação de uma flor de papel na lapela de quantos participavam nos piqueniques que fazíamos no pinhal sobranceiro ao campo. Retribuindo a suposta atenção com que a donzela o brindara, o cavalheiro sentia-se obrigado a satisfazer-lhe o pedido de uma moeda. O mesmo sucedia nos bailes, cuja entrada era gratuita», recorda. «Tempos de uma intensa atividade que se repartia pela realização das obras, jogos, convívios e bailaricos, nos quais marcava presença regular a trupe Os Limpinhos, um agrupamento que, à época, gozava de grande popularidade entre a mocidade da terra, o que facilitava não apenas a angariação do valor do seu cachet, como permitia ainda deixar algum lucro». No entanto, a desolação que as enxurradas espalhavam entre a rapaziada do União constituía um excelente benefício para os que, morando na rua onde as águas iam desaguar, aproveitavam a areia vinda do campo para construir alguns muros e anexos das suas habitações. Enfim, um modo de colher benefício das consequências do tempo e da geografia do terreno que hoje é lembrado por Emílio Fernandes com um sorriso de saudade. Neste seu rememorar de histórias e vivências em torno da agremiação que tempos depois daria lugar ao Ginásio Clube de Corroios, o carismático associado lembra ainda que se tratava de uma coletividade que vivia das festarolas que promovia e da quotização dos associados, na sua quase totalidade gente humilde que trabalhava no Arsenal do Alfeite, na Fábrica de Moagem do Caramujo e nas fábricas da Mundet.
«Cantes ao Fado» com Hermínia Silva e Fernando Farinha «Ora, como não tínhamos sede e a barbearia era, ao tempo, o único local de encontro dos habitantes da localidade, nela nos reuníamos. Aliás, foi ali que nasceu o primeiro grupo de teatro, ao qual eu não pertenci, e que se organizaram os primeiros “cantes ao fado”, com Fernando Farinha e Hermínia Silva, tal como as primeiras cavalhadas», diz Emílio Fernandes. «Apesar disso, a circunstância de alguns dos mais empenhados ativistas terem sido chamados para a tropa, como foi o caso de Guilherme Ferreira, e outros se haverem empregado em Lisboa, a que se associava o facto de o Governo da época não ver com bons olhos estes agrupamentos populares nem os seus dirigentes, levou a que cessasse toda a atividade e com ela a própria extinção do clube», acrescenta. «Sucede, no entanto, que havendo uma dívida de quatro mil escudos por pagar, um grupo de amigos do União resolveu, anos depois, à porta de Gaia Torres, avançar para a sua dissolução, constituindo-se, simultaneamente, em núcleo fundador de uma nova coletividade, agremiação que se responsabilizaria pela liquidação da referida verba, assumindo, por via disso, a posição que aquele detinha na utilização do terreno». Em consequência do trabalho desenvolvido por essa comissão, a 10 de fevereiro de 1946 é oficialmente fundado o Ginásio Clube de Corroios, instituição que, desde logo, não gozou dos favores do regime, por se tratar de uma agremiação que se afirmava não apenas vocacionada para a prática do desporto, mas também
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para a promoção da cultura e do conhecimento, atividades consideradas pelos governantes de então como iniciativas elitistas, desprovidas de qualquer raiz popular.
Antiga adega serviu de primeira sede oficial Uma das preocupações primeiras da comissão instaladora do Ginásio era a sede social da agremiação, pois sem instalações não seria possível atingir os objetivos a que se havia proposto, razão pela qual decidiu imediatamente mobilizar esforços tendentes a conseguir o aluguer de um espaço onde esta funcionasse. É, então, que surge a possibilidade de ser utilizada para o efeito uma adega na Quinta do Castelo, devido à circunstância de o seu proprietário haver encetado um processo de aproximação ao movimento popular suscitado pelo aparecimento do Ginásio.
O cartão de sócio n.º 40 do Ginásio Clube de Corroios, emitido a 23 de outubro de 1949, situação que confere a Emílio Fernandes o estatuto de um dos fundadores da prestigiada agremiação da sua terra.
«A esse propósito, assinale-se que a aproximação efetuada por essa personagem, cujo nome me dispenso de pronunciar, escondia a deliberada intenção de controlar, como de resto era usual nos serventuários da União Nacional e do Estado Novo, as atividades que a coletividade levava a efeito, comportamento que nos trouxe alguns dissabores», diz Emílio de Jesus Fernandes. «Apesar de espiados, situação que só mais tarde veio a ser do seu conhecimento, a comissão fez milagres, sobretudo no que se refere às obras de restauro e limpeza do espaço, as quais incluíram a transformação do antigo lagar num magnífico salão de festas (dotado de um excelente palco, no qual atuariam grandes figuras do nosso meio artístico), e à criação de um gabinete para a direção e de um bufete. Por mor de tais condições, aliás, invulgares para o tempo, foi assim possível promover um conjunto de festas e iniciativas várias que proporcionaram que pagássemos todas as despesas decorrentes das benfeitorias feitas e, desse modo, consolidar a existência da coletividade, consubstanciada em agosto desse mesmo ano, na realização de um plenário geral de sócios, no decurso do qual foram aprovados os estatutos, elaborados à luz do que o Clube do Pessoal do Arsenal possuía, e eleitos os primeiros corpos gerentes do Ginásio Clube. A presidência da assembleia geral ficou entregue a Alfredo José dos Santos, corticeiro de profissão, coadjuvado por Joaquim Espinheira (estudante), enquanto a presidência da direção era confiada a Adriano Barroso (pedreiro), acompanhado por António dos Santos (marinheiro), Idílio Domingos Elias (trabalhador ru-
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ral) e meu irmão, Fernando Gracioso Fernandes (operário da construção civil), sendo o Conselho Fiscal presidido por Júlio Moleiro (empregado de comércio)», realça. Como se pode observar, a maioria dos corpos gerentes saídos desse plenário espalhava, de modo claro, os principais estratos sociais das gentes que nessa época constituíam a população de Corroios, refletindo a origem eminentemente popular da nova coletividade, o que, desde logo, lhe granjeou a antipatia das autoridades da época.
«Nascimento do Ginásio é fruto dos novos ventos» «A Segunda Grande Guerra acabara havia um ano. A vitória dos Aliados e dos valores que representavam revelou-se um passo decisivo para que a juventude de então se afirmasse um pouco mais ousada na expressão dos seus ideais. O nascimento do Ginásio Clube de Corroios é, assim, um eco dos novos ventos que sopravam por essa Europa fora e um testemunho do espírito empreendedor que nos animava. Talvez por isso os apaniguados do regime tudo tenham feito para impedir que a coletividade singrasse, quer levantando dificuldades ao normal funcionamento da instituição, quer à aprovação dos estatutos. Entre eles, encontrava-se a dita personagem, adepta confessa da União Nacional, que tudo fazia não apenas para controlar as iniciativas que a agremiação promovia, mas também as atividades de cada um de nós. Foram tempos de grande luta», salienta Emílio Fernandes. Mau grado todos os empecilhos colocados no
seu caminho, os dirigentes do Ginásio conseguiram iludir durante décadas o aparelho do regime, levando a cabo um sem número de iniciativas desportivas, culturais e recreativas, tais como colóquios, cinema ambulante, festas, piqueniques, bailes e cavalhadas. «Para além de tudo isso, foi ainda criado um grupo cénico, constituído por vinte atores amadores, que representavam peças originais, algumas escritas pelos seus próprios elementos, sendo que várias eram em três atos. Tratava-se de um grupo que representava teatro de muita qualidade e no qual desempenhei as funções de encenador. Não surpreende, assim, que as suas atuações registassem sempre casa cheia, atividade que se estendia ainda a coletividades congéneres, nomeadamente do Laranjeiro, Almada e Monte de Caparica, fruto do intenso intercâmbio que então se verificava. Um meritório trabalho cénico que se prolongou até 1978, ano em que ocorreu a sua extinção», refere com mágoa.
«Serventuários do Estado Novo tentaram controlar a coletividade» Tão diversificada atividade recreativa e cultural não a impedia de dedicar particular atenção à prática do futebol, afinal a modalidade que estivera na génese da sua fundação, razão pela qual promovia quinzenalmente um torneio popular no qual participavam oito equipas. Na opinião do carismático associado, «a realização desses torneios que, de resto, traziam grande animação a Corroios, além de corresponderem aos anseios dos associados e da população da localidade, eram ainda uma ex-
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celente fonte de angariação de fundos para a coletividade, já que, para além da receita do bufete, cada uma das equipas participantes pagava a respetiva inscrição. Uma animação que se estendia das oito horas da manhã às oito da noite. Motivos de sobra para que os tentáculos do Estado Novo olhassem o Ginásio Clube de Corroios com grande animosidade. E de tal forma se expressava essa sanha persecutória, que várias foram as rusgas policiais de que foi alvo. A primeira das quais, em 1948, conduzida pelo, então, presidente da Câmara do Seixal e pelo presidente da Junta de Freguesia de Amora, no decurso da qual foram apreendidos o livro de atas, razão pela qual não existem as primeiras atas da direção, o alvará do bufete e os estatutos, documento que só muitos anos depois seria recuperado. Desempenhava eu as funções de presidente da direção. Foi uma situação deveras complicada, porque no caixote do lixo apreenderam alguns exemplares do jornal “Avante!”, ali depositados pela dita personagem a que já me referi. Uma cabala infame, preparada pelos três, com o intuito de nos vergarem ao seu jugo, ou mesmo com o propósito de acabarem com o clube, razão pela qual o aparecimento dos mencionados exemplares motivou a intervenção da PIDE. Daí em diante, todos os anos, a polícia política passava revista às instalações do Ginásio, sendo que numa ou noutra chegaram a dar voz de prisão a alguns dos seus dirigentes», conta Emílio de Jesus Fernandes.
Junta Autónoma de Estradas destruiu sede e todo o património Como se isso não bastasse, em 1955, a Junta Autónoma de Estradas inicia as obras de alargamento da Estrada Nacional 10, junto à qual se localizava a sede da coletividade. Contudo, aquilo que à primeira vista se afigurava um benefício para todos, acabou por revelar-se num claro prejuízo para a agremiação, já que, sem qualquer aviso prévio, viu a sua sede demolida de um dia para o outro e, com ela, o respetivo património. Um golpe tremendo, com que sócios, dirigentes e a própria população de Corroios não contavam. Tudo para impedir a continuação do trabalho que a coletividade vinha desenvolvendo no domínio da promoção da cultura, do desporto e do entretenimento, fatores ainda hoje considerados determinantes no processo de formação da juventude. «Foi, então, tempo de fazer das fraquezas forças, cerrando fileiras contra o despotismo que, à época, caracterizava a atuação política dos serventuários do fascismo, em ordem a evitar que lograssem alcançar os seus desígnios. Face à onda de indignação que se instalou na população, em consequência de tal arbítrio, prontamente se conseguiu alugar uma velha casa situada num lugar adjacente àquele onde presentemente se encontra a igreja de Nossa Senhora da Graça e cuja renda era suportada pelos sócios fundadores, ali permanecendo vários anos», assinala. «Mais tarde, no decurso de uma reunião dos corpos gerentes, decidiu-se contactar António Marques Pequeno no sentido de apurar se ele estaria na disposição de nos vender uma par-
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cela de terreno para nela nos instalarmos com carácter definitivo. Assim, ante a abertura prontamente manifestada quanto à nossa pretensão, acertou-se que o local mais adequado aos nossos intentos seria aquele onde hoje se situa a nossa sede social, ao mesmo tempo que se acordou que o valor da respetiva compra cifrar-se-ia em 37 000$00, (cerca de 185 €), com uma entrada inicial de dois contos (10 €), sendo a restante dívida paga em prestações anuais. Eu sou um dos associados e dirigentes que tomaram parte nessa decisão e no subsequente processo negocial.» Na posse desse espaço, logo trataram de proceder à construção de uma esplanada e um palco ao ar livre, na cave do qual funcionou, até haver condições para novos atrevimentos, a sede social da instituição. «Aliás, logo que nos foi possível, procedemos à cobertura do mencionado palco. No entanto, para nosso pesar, na madrugada seguinte à conclusão da obra, esta caiu. Outra adversidade com a qual não contávamos. Mesmo assim, insuficiente para que cruzássemos os braços e nos resignássemos, já que prontamente nos lançámos na sua reconstrução, suplantando com o sacrifício de muitos associados mais este revés que nos tocara à porta», refere Emílio Fernandes.
comissão de obras cuja capacidade e competência possibilitou o início da construção do salão de festas, benfeitoria inaugurada três anos mais tarde e com a qual ficaram criadas as condições para a coletividade desenvolver e aprofundar atividades de carácter cultural, recreativo e social em prol da sua massa associativa e da população em geral.
Falta de condições físicas não impediu atividade cénica Na opinião deste antigo operário do Arsenal do Alfeite foi, no entanto, em 1972 que o Ginásio Clube de Corroios conheceu o período de maior dinamismo, devido à constituição de uma
Elemento preponderante na atividade do grupo de teatro existente em dado período da história da coletividade, Emílio Fernandes, além de assumir a responsabilidade pela encenação, revelava-se ainda num dos seus grandes impulsionadores. Na foto, o cartaz de um espetáculo, constituído por três comédias, levado à cena na agremiação, na época de Carnaval de 1962.
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Homem de memórias várias, Emílio de Jesus Fernandes conta, igualmente, que após concluir o serviço militar e haver regressado a Corroios, a coletividade se encontrava instalada numa modesta casa junto à igreja, sem condições para acolher a atividade cénica. Todavia, isso não impediu os jovens que integravam o grupo de continuar a ensaiar, pois que, havendo um barracão de circo na localidade, logo trataram de obter autorização para nele efetuarem os respetivos ensaios. «A circunstância de o local não estar dotado de palco não constituiu problema, porque imediatamente arranjámos uns paus de giz e procedemos à sua marcação no chão. Assim preparámos uma peça em três atos, diversas vezes levada à cena, em espetáculos de beneficência tanto a favor de pessoas da localidade que se encontravam doentes ou desempregadas, como de outras terras», diz. «Além disso, a generalidade das peças que levávamos à cena eram imaginadas por nós, pois não havia dinheiro para as comprar. Situação idêntica se passava com o guarda-roupa, os adereços e os cenários, estes normalmente concebidos pelo Casa Pia, um homem que possuía uma enorme vocação para o desenho. Só alugávamos as cabeleiras, tudo o resto era pertença de cada um de nós. O grande problema com que nos defrontávamos residia sobretudo na autorização por parte dos pais das raparigas, por não verem com bons olhos a participação das filhas no teatro, fruto da má reputação que, ao tempo, a revista tinha junto das classes mais favorecidas, apesar de o tipo de teatro que fazíamos nada ter a ver com esse género teatral.
O prestígio de que o grupo cénico desfrutava motivava a receção de frequentes convites para atuar nas agremiações das localidades vizinhas. Neste caso, tratou-se de um espetáculo promovido pelo Clube Recreativo do Feijó, com o intuito de homenagear um dos seus associados e cuja peça, à semelhança de muitas outras, foi encenada por Emílio Fernandes.
Numa ocasião, estivemos duas horas a tentar convencer o pai de uma rapariga para que a autorizasse a integrar a peça que tencionávamos preparar, no entanto, mau grado a nossa argumentação ao fim de todo esse tempo, o homem respondeu-nos que tinha apreciado muito os nossos argumentos, mas a sua decisão mantinha-se inalterável. Foi uma deceção do arco-da-velha», conta. «Mas o que mais me entristece foi a sua extinção, assim como as ca-
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valhadas», remata Emílio de Jesus Fernandes, com indisfarçável mágoa.
Alfredo Santos, «Pica-Pau» «Durante dezoito anos estive casado com o Ginásio» Alfredo Santos, vulgo «Pica-Pau», 81 anos, é outro dos jovens de então que viveu intensamente as peripécias que caracterizaram a fundação do Ginásio Clube de Corroios e de tal forma se empenhou nesse processo que logo foi eleito presidente da mesa da assembleia geral da coletividade assim que esta foi constituída, cargo no qual contou com a ajuda de Avelino Espinheira, um dos poucos rapazes da sua geração que ao tempo possuíam o 5.º ano liceal. É, por isso, com naturalidade que aceita que o tratem como uma das figuras históricas do Ginásio, já que se trata da agremiação a que sempre se devotou e à qual esteve profundamente ligado até ao dia em que partiu para o Canadá, em busca de uma vida melhor. Uma separação motivada pelas circunstâncias da vida, que, no entanto, não chegou para provocar qualquer fissura, suscetível de destruir os laços afetivos que o unem ao clube. «Como não possuía qualquer experiência quanto ao modo de dirigir uma assembleia, quando o Fernando Fernandes, em nome da comissão instaladora, me convidou para assumir a presidência da assembleia geral fiquei um pouco embaraçado, razão pela qual manifestei alguma relutância em aceitar tal incumbência.
Contudo, porque ele teimava em convencer-me, resolvi então solicitar um adiamento das eleições por um período de 40 dias, findo o qual daria uma resposta definitiva. A razão desse pedido fundava-se no facto de por essa altura (estávamos no fim do ano) se realizarem as assembleias para apresentação de contas de diversas coletividades, nomeadamente em Amora, o que me possibilitava a oportunidade de observar o modo como as mesmas eram conduzidas e, dessa forma, aferir as minhas capacidades para aceitar a função que me era proposta. Assim, decorrido esse tempo e após haver observado atentamente a forma como elas se processavam, acabei por entender que talvez conseguisse “desenrascar a onça”, pelo que decidi dar a minha concordância à sua pretensão, anuência que me tornou, em 1946, no primeiro presidente do órgão máximo do Ginásio», recorda Alfredo Santos.
Testemunha de tropelias várias para destruir a agremiação Uma ligação que se manteria por vinte anos, período em que a coletividade terá, porventura, vivido os momentos de maior aflição, quer pela inexperiência dos seus dirigentes, quer, sobretudo, pelas constantes safadezas que determinadas pessoas lhe faziam. Histórias que refletem, afinal, o mau carácter de quem as protagonizou e que ainda hoje provocam um certo azedume às palavras de Alfredo Santos quando a essas pessoas se refere. Tal é o caso de Carvalhinho da Amora, proprietário da casa onde o Ginásio teve a sua primeira sede, o qual,
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na opinião deste ex-dirigente do Ginásio Clube de Corroios, se portou como um bandido. «Esse canalha, sublinho a palavra canalha, adepto confesso do regime de então, tinha a pretensão de integrar os corpos gerentes do Ginásio, com o intuito de controlar as atividades do clube, mas como não logrou os seus intentos, lançou mão de todo o tipo de tropelias para lhe dificultar a vida. Uma delas prendeu-se com as influências que moveu junto da camarilha a que pertencia, constituída pelo presidente da câmara e pelo governador civil, para que fossem reprovados os estatutos da coletividade, quando tinha sido ele mesmo a redigi-los. Uma sacanice que resultou do facto de ter sido eu a ocupar no primeiro mandato a presidência da assembleia geral em detrimento dele e no mandato seguinte haver assumido as funções de presidente da direção». Para este antigo operário corticeiro, «a devolução dos estatutos, por alegadamente conterem erros ortográficos, revelou-se um problema tremendo, porque sem a respetiva aprovação a coletividade não podia funcionar. Houve assim que tentar encontrar quem os voltasse a bater à máquina, coisa difícil naquele tempo já que poucas eram as pessoas que o sabiam fazer, uma carga de trabalhos só ultrapassada, enfim, por uma senhora que pertencia ao Ginásio Clube do Sul, em Cacilhas, mas que me cobrou 20$00, verba que correspondia a cerca de dia e meio de trabalho. Resolvida esta questão, lá se enviaram os estatutos outra vez para o Governo Civil, só que, desta feita, o meu nome não figurava entre os proponentes do documento para evitar que voltassem a ser devolvidos. Tratou-se de uma habi-
lidade que tivemos de fazer, pois o simples facto de o meu nome constar no rol de subscritores constituía, desde logo, motivo bastante para que os mesmos fossem vetados. Insatisfeito com a tramoia que nos armou, esse fulano ainda nos procurou levantar mais obstáculos, agora sob o argumento de que a casa que nos havia alugado não tinha condições para acolher bailes ou espetáculos musicais, tentando, por essa via, que as autoridades proibissem a sua realização. Foi um tempo em que nos confrontámos com vários obstáculos levantados por esse sujeito, tudo com o propósito de impedir que o Ginásio ali promovesse diversos eventos, um dos quais com Hermínia Silva, fadista muito popular nessa altura», refere Alfredo Santos. «Em consequência disso, a Inspeção Geral de Espetáculos veio efetuar uma vistoria às instalações, em resultado da qual o clube esteve oito meses sem ali poder levar a efeito qualquer atividade de cariz musical, por força das obras que lhe foram exigidas para o respetivo licenciamento. Mesmo assim, este só foi obtido devido à circunstância de um dos inspetores que aqui vieram ser Salvação Barreto, cabo do Grupo de Forcados de Lisboa, agrupamento a que pertencia também um moço cá da terra, o qual lhe pediu para dar uma ajuda à resolução da coisa, pelo que, quando concluídas as alterações impostas, o processo lá foi aprovado», lembra.
Demolição da sede tornou peixaria em local de reunião No entanto, os sócios da agremiação não puderam usufruir por muitos anos das benfeitorias introduzidas no imóvel, já que este acaba-
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ria por ser demolido por mor da construção da EN 10. «Nessa altura, tivemos de passar a reunir numa peixaria que, à época, eu possuía, enquanto não arranjámos um espaço onde instalar a sede do ginásio, o que viria a acontecer com a cedência de uma casa do António Pequeno, junto à qual armámos um arraial para levarmos a efeito os bailaricos e um bufete improvisado para fazermos face às despesas. Mas, como a receita não era muita, as dívidas nas lojas que nos fiavam foram-se avolumando, chegando a dívida a cifrar-se em 4000$00, situação prontamente aproveitada pelos inimigos do Ginásio que nela viram uma boa oportunidade para o tentar estrangular, na primeira fila dos quais se encontrava o Carvalhinho da Amora», diz Alfredo Santos. «É, assim, que certo dia me aparece o presidente da Junta de Amora com uma carta supostamente enviada ao governador civil pelas casas comerciais a quem devíamos, notificando-me a regularizar as respetivas contas. O curioso da história é que, a referida carta, escrita por esse sujeito, não resultava de qualquer queixa dos credores mas sim da Casa do Povo de Amora, pelo que, ao reconhecer o respetivo timbre, lhe disse que tinha vindo enganado, porque a esta entidade não devíamos um tostão, como aliás, se provou. Perante isto, o homem ficou atrapalhado e sem saber o que mais dizer, já que a participação não tinha fundamento. Resultado: o homem guardou a dita carta e foi-se embora, dando o assunto por encerrado», conta. «Não ficaram, no entanto, por aí as tentativas tendentes a derrubar o Ginásio Clube de Cor-
roios. Uma delas traduziu-se no envio de um ofício do Governo Civil ao proprietário do terreno onde se situa o campo de jogos, informando-o de que o mesmo iria ser expropriado para a FNAT (Fundo Nacional para a Alegria no Trabalho), porque não podia continuar a ser ocupado por uma coletividade que não dispunha de sede», recorda ainda Alfredo Santos. «Ao mesmo tempo, saía na primeira página do Diário de Notícias uma reportagem ilustrada com a fotografia do governador civil de Setúbal, na companhia de Cosme Lopes, presidente da câmara de então, e desse tal fulano, referindo que aquele espaço iria ser utilizado pela FNAT, mas com a ajuda de um advogado, filho do dono dos armazéns de mercearias Gonçalves, em Cacilhas, amigo do Dr. Barbeitos, lá conseguimos que o caso não fosse para diante», afirma igualmente este associado que adianta ter na ocasião desembolsado conjuntamente com dois outros consócios a quantia de 150$00 (valor equivalente a 0,75 €) para pagamento às finanças do valor correspondente a três meses de renda, em ordem a inviabilizar tal processo.
Terreno das atuais instalações pago a «mole e mole» Ultrapassada essa fase mais complexa da vida da agremiação, um novo ciclo despontou e com ele a aprovação de uma proposta visando a aquisição do terreno onde foram construídas as suas atuais instalações, ideia que colheu vencimento no decurso de uma assembleia geral promovida para o efeito, a qual mandatava a direção para encetar contactos com António Marques Pequeno, no sentido de apurar o valor
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que este pretendia pela área em causa, e com o presidente da câmara, nessa altura Bonaparte Figueira, em ordem a cativá-lo para a aprovação do projeto que tencionavam realizar. «Foi então que numa deslocação que os três fizemos ao local, António Pequeno me pediu 30 000$00 por metro quadrado, valor que estava, de todo, fora do nosso alcance. Eis senão quando Bonaparte Figueira se vira para ele afirmando: “O quê? O senhor quer vender isto ao Ginásio? O senhor António dá-lhe isto e ainda ganha muito dinheiro”. Uma intervenção que apesar de não o ter convencido totalmente, tempos volvidos, o levou a aceitar o valor e as condições que lhe propusemos, quantia que seria paga a “mole e mole” ou, se preferir, a prestações», salienta Alfredo Santos. Adquirido o terreno, havia que começar as obras: inicialmente um muro em torno do campo de futebol, para evitar que as águas da chuva levassem à sua passagem o saibre que ali havia sido depositado, e um barracão que servia de sede, sobre o qual se erguia um palco para os bailaricos. Um e outro construídos com os tijolos refugados da Fábrica de Cerâmica de Vale Figueira, pertença de Vasco Morgado, e umas vigas doadas por André Ferro-Velho. «Criadas essas infraestruturas, constatou-se que não poderíamos estar permanentemente a alugar chuteiras para evitar que aqueles que não tinham possibilidades de as adquirir jogassem descalços, como, de resto, algumas vezes sucedia. O mesmo se passava quanto às camisolas, razão pela qual decidimos comprar na casa Soeiro, em Lisboa, um fardamento novo, mas como não havia dinheiro que chegasse para proceder à liquidação de todo o material,
lá tivemos de ser nós, diretores, a pagar, mais uma vez, da nossa algibeira», refere Alfredo Santos. «Enfim, episódios de uma época marcada por uma vivência entusiástica em torno do Ginásio e da sua afirmação desportiva, recreativa e cultural. Um entusiasmo tão forte que me levou a integrar os corpos gerentes da coletividade durante dezoito anos consecutivos. E a tal ponto se manifestavam os laços afetivos que me ligavam à agremiação que minha mulher se queixava de ter sido trocada pelo clube», conclui Alfredo Santos.
Fernando Gracioso Fernandes «O Ginásio foi uma ideia dos rapazes que jogavam à bola» Embora reconheça a circunstância de ser um pouco mais velho que os demais fundadores do Ginásio, situação que lhe conferiu maior responsabilidade no processo de criação da agremiação, Fernando Gracioso Fernandes, 81 anos, refuta, no entanto, o estatuto de mentor da coletividade, por entender que tal se deveu, essencialmente, ao entusiasmo que a rapaziada de então manifestava pelo futebol. Afastado hoje da vida associativa, por via do reumático que lhe tolhe os movimentos e lhe deforma os ossos dos membros inferiores e superiores, dando-lhes um aspeto estranho e confuso, mas insuficiente para lhe ofuscar a memória, este associado, considerado pelos
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restantes consócios como um pilar essencial na concretização da ideia que animava a juventude da época, é, por isso, uma das testemunhas imprescindíveis da história do popular clube. Irmão de Emílio Fernandes, a ele se deve a mobilização de muitos outros jovens da sua geração tanto para as virtudes do projeto, como para os primeiros corpos gerentes, trabalho que manteve ao longo dos anos subsequentes, quer por via das responsabilidades que a função de dirigente lhe atribuía, quer por defender que a instituição poderia assumir um papel determinante na formação cívica e cultural da mocidade que ao tempo habitava em Corroios, a maior parte da qual detentora de poucas habilitações literárias. Um fervor associativo que, mau grado se encontrar retido em casa há vários anos, se mantém inalterável e se reacende mal transpomos a porta da sua habitação, logo que informado por seu irmão da razão desta visita. Uma alegria que por momentos quase o faz esquecer o padecimento em que se encontra e o leva a entregar-se à conversa com tamanha vivacidade e lucidez que não deixam de surpreender. Para Fernando Fernandes, «tudo nasceu da ideia de um grupo de rapazes mais novos, que aos fins de semana se entretinham a jogar à bola, mas que não sabiam como proceder à legalização do clube, razão pela qual pediram que eu, o Idílio, o Adriano e um outro, cujo nome agora não recordo, os ajudássemos a levarem por diante esse objetivo, até porque a complexidade das diligências que tal tarefa reclamava impunha que as mesmas fossem conduzidas por rapaziada mais velha, para evitar que as pessoas com quem importava falar sobre o as-
sunto pensassem que se tratava de uma brincadeira de gaiatos. No fundo, era uma questão de emprestar a necessária credibilização ao projeto junto daqueles que estavam por dentro das voltas que a constituição de uma coletividade exigia. Uma das primeiras coisas a que nos propusemos foi a de falarmos com Carvalhinho da Amora, adepto confesso do regime vigente e ao tempo presidente da assembleia geral da Casa do Povo, para lhe darmos conta da ideia e ouvirmos a sua opinião, já que as suas convicções políticas (apesar de diferentes das nossas, ainda que isso não o manifestássemos) lhe permitiam gozar de livre acesso ao presidente da câmara e ao governador civil, duas entidades que poderiam inviabilizar todos os nossos esforços. Assim, colocado perante as nossas intenções, o homem acolheu com curiosidade o projeto, solicitando, desde logo, que lhe entregássemos uma cópia dos estatutos para que, em função do seu conteúdo, se pudesse pronunciar convenientemente acerca dos propósitos que estavam na origem do novo clube», começa por referir Fernando Fernandes.
«Uma coletividade erguida pela perseverança da juventude» «Tal resposta levou-me a procurar uns amigos que estavam ligados ao Clube do Pessoal do Arsenal do Alfeite, no sentido de que estes nos facultassem uma cópia dos seus estatutos, por se nos afigurarem aqueles que, por haverem sido elaborados por pessoas com outro grau de habilitações, melhor se poderiam adaptar aos objetivos da agremiação que tencionávamos
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fundar, mas qual não é o meu espanto quando, dias depois de lhe ter entregue os aludidos estatutos, o fulano me vem com a conversa de que o mais aconselhável seria deixarmos cair a ideia de levar avante a criação da coletividade, até porque em Corroios já existia uma: a Casa do Povo, à qual, de resto, deveríamos aderir, ou que nos filiássemos na FNAT. Uma safadeza que nos encheu de indignação», conta ainda com um assomo de revolta nas palavras, não obstante os anos já decorridos sobre a data em que o referido episódio aconteceu.
Sócio n.º 23 do Ginásio Clube de Corroios, Fernando Fernandes, além de participar nas diligências junto das entidades oficiais visando a oficialização da agremiação, integrou igualmente os órgãos sociais da instituição.
«O que ele queria, afinal de contas, era controlar-nos, para desse modo impedir que seguíssemos o nosso caminho. Dizia-se até que mantinha ligações à PIDE, rumor que nos causava algum receio, razão pela qual em todas as conversas que com ele mantive as palavras tivessem de ser muito bem pensadas, não fosse arranjar uma carga de trabalhos», salienta. «Ora, perante esta habilidade, limitei-me a responder-lhe que o que estava no nosso ho-
rizonte não era pertencermos à Casa do Povo nem à FNAT, mas sim um sentimento de independência relativamente a qualquer uma delas», frisa. «Constatando, então, que não nos demovia facilmente de prosseguirmos o nosso caminho, sugeriu que fizéssemos uma assembleia geral observada, nomeadamente por responsáveis da câmara e do governo civil, entidades que ele próprio se encarregaria de convidar para estarem presentes. E assim foi, no dia aprazado para a assembleia lá estavam, entre outros, o presidente da câmara e o governador civil, os quais mal chegaram nos tentaram persuadir de continuar a desenvolver esforços no sentido de fundarmos a coletividade», relembra Fernando Fernandes. «Antevendo o que se iria passar, tratei atempadamente de convidar Avelino Espinheira, um rapaz que nesse tempo já possuía o 5.º ano do liceu e, por conseguinte, com muito mais paleio que qualquer de nós, para argumentar com eles, explicando-lhes o que nos propúnhamos fazer», adianta. «Como, no final de tudo aquilo, o homem não conseguiu fazer prevalecer os seus intentos, imediatamente lançou mão da represália, inventando um enredo tal que levou as autoridades a fecharem o clube por algum tempo, por alegadamente terem sido encontrados jornais “Avante!” no caixote do lixo que estava na sede. Se os jornais lá apareceram, só ele os poderia ter levado, porque mais ninguém sabia que ali estariam», sublinha.
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Nos momentos difíceis, diziam sempre: presente! Para Fernando Gracioso Fernandes, que em 1956 integrou o primeiro elenco diretivo do Ginásio Clube de Corroios, ocupando então o cargo de tesoureiro, a vida nem sempre permitiu que acompanhasse, como pretendia, o dia a dia da sua agremiação, pelo que períodos houve em que teve de se retirar da atividade associativa para prover às responsabilidades que a existência de uma família lhe impunha. «Mesmo assim, sempre que a coletividade passava por momentos de maior dificuldade, lá regressava eu ao meu posto. Uma ocasião, o José Espinheira abordou-me para que voltássemos ao Ginásio, porque o clube estava entregue a rapazes e passava por apertos de vária ordem, resultantes designadamente da demolição das instalações e da destruição do precioso espólio que nelas se encontrava. Um apelo ao qual não podia ficar indiferente, pelo que decidi convidar um grupo de moços da minha idade, todos com mais de 30 anos, para metermos mão à obra, impedindo que o clube fosse por água abaixo. Foi, então, constituída uma comissão que integrava, entre outros, «Pica-Pau», Vitorino Moleiro e o Orlando Gonçalves, que tinha como missão promover um torneio relâmpago e organizar umas festas no campo da bola, iniciativas que geraram umas boas coroas e nos permitiram até avançar para a compra de um equipamento. Mas como o dinheiro não chegava para pagar tudo de uma só vez, alguns de nós tiveram de emprestar do seu bolso a importância que perfizesse a quantia em falta.
A partir daí, as coisas evoluíram de tal modo que não apenas mantivemos em dia o aluguer do campo, como ainda fomos reembolsados do dinheiro que havíamos emprestado para os equipamentos. Pelo menos eu recebi o valor que adiantei. Não sei se com os outros sucedeu o mesmo, mas acho que sim», refere Fernando Fernandes. Para além dessas histórias, outras há que, subitamente acordadas pelo desfiar de recordações, lhe voltam à memória como se ontem tivessem ocorrido e o instigam a prosseguir o seu testemunho, mas, por serem, em tudo, coincidentes com os relatos de seu irmão e Alfredo Santos se consideram já transcritas. Há, no entanto, um episódio ocorrido no dia do ato eleitoral ao qual concorreu Humberto Delgado, cujo âmbito apesar de extravasar a vida da coletividade, não deixa de referir com alguma satisfação. Tal é o caso de o regime de então ter colocado à disposição do povo de Corroios uma camioneta para que este fosse votar no candidato da União Nacional. Sucede, porém, que quem ocupou na sua totalidade os lugares da camioneta foram os apoiantes do General sem Medo, Humberto Delgado, grande parte dos quais rapaziada do Ginásio. «O que se passou foi que ao chegarmos à Junta de Amora, onde decorria a assembleia eleitoral, nenhum de nós pôde votar, por se encontrar impedido de o fazer», diz enquanto esboça um sorriso. «Mesmo assim, marcámos a nossa posição, pondo a nu a falsidade dos resultados apresentados pelo Estado Novo», conclui Fernando Gracioso Fernandes.
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Associação Náutica do Seixal A casa-mãe dos desportos náuticos no concelho do Seixal
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Herdeira natural da antiga Associação da Classe Piscatória da Vila do Seixal, entidade fundada a 1 de novembro de 1896 pelos elementos que, então, integravam a tripulação das doze campanhas de barcos de pesca de alto mar que fundeavam no estuário do denominado rio Judeu, a Associação Náutica do Seixal, primeira instituição local a dedicar-se à prática de tais desportos, é, pois, a fiel depositária do valioso legado histórico e humano daquela que terá sido uma das primeiras organizações de pescadores criadas em Portugal. Assumindo-se, inicialmente, como um projeto protagonizado por um grupo de figuras afetas à aludida associação profissional, que intentavam fomentar entre a juventude local o gosto pela atividade desportiva, a atual Associação Náutica do Seixal (ANS) surge em junho de 1942, enquanto secção desportiva da referida agremiação da classe piscatória, condição que manteve durante várias dezenas de anos. No entanto, por força da reforma imposta pelo denominado Estado Novo às organizações representativas dos pescadores, a designação da mencionada associação acabaria por ser alterada para Casa dos Pescadores da Vila do Seixal e o seu património, entre o qual se encontrava o edifício sede, construído exclusivamente a expensas de quantos laboravam nas citadas campanhas, abusivamente integrado na Junta Central das Casas dos Pescadores. Tal situação não impediu, todavia, a secção desportiva de continuar a desenvolver as suas regulares atividades náuticas, a qual, por via da sua natureza eminentemente lúdica, integrava não apenas pescadores, mas também outros habitantes da vila.
No entanto, com a eclosão da Revolução de Abril e as consequentes alterações que a mesma trouxe em matéria de assistência social dos cidadãos e no consequente desmantelamento das organizações que, escudando-se numa alegada função social, mais não faziam do que servir de suporte aos desígnios do governo fascista, entre as quais se incluía a mencionada Junta Central das Casas dos Pescadores, o quadro alterar-se-ia significativamente. Assim, para evitar que todo o património construído ao longo dos tempos, por diferentes gerações de seixalenses, se perdesse, irremediavelmente, nos labirínticos registos do património do Estado, sem que este haja despendido um cêntimo na sua construção, logo um grupo de ativistas da referida secção desportiva, entretanto designada de Associação Náutica, decidiu «meter os pés à ribeira», o mesmo é dizer, encetar um conjunto de diligências várias, junto de diversas entidades, com o intuito de reclamar a posse de tudo quanto arbitrariamente havia sido integrado nos mencionados registos. Não é, contudo, desse período negro da história associativa dos pescadores portugueses que aqui se fará a devida análise, mas antes dar conta, através dos relatos feitos por alguns dos associados que acompanharam de perto a vida da ANS, do sentimento que animava quantos, em tempos idos, a ela se dedicaram – de corpo e alma. Trata-se de um respigar de lembranças acerca dos sacrifícios a que se entregavam, visando a dignificação da instituição em todas as provas em que participavam (muitas delas fora dos limites geográficos do município e até do país) e, por seu intermédio, a elevação do próprio nome da terra de onde eram oriundos.
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José Benegas dos Santos, «Mestre Santos» «Esta casa matou-me a fome quando fiquei órfão de pai» Habituado desde tenra idade a conviver com os pescadores da sua terra e, por via disso, a banhar-se no espírito de união que marcava o dia a dia dos habitantes da localidade, nos distantes tempos da sua infância e juventude, José Benegas dos Santos, 65 anos, figura carismática da localidade devido à sua constante presença nas instalações da prestigiada agremiação, é uma das testemunhas do fervor que desde os primórdios envolveu o aparecimento da secção desportiva da antiga Associação da Classe Piscatória da Vila do Seixal. Filho de uma humilde família que sobrevivia do trabalho do cabeça de casal, a situação ficou especialmente agravada com o falecimento deste. Tinha, então, José Benegas dos Santos uns oito anos. Desde essa idade que o popular «Mestre Santos» – nome por que ficou conhecido entre as gentes da terra devido ao longo exercício de piloto de rebocadores na barra de Lisboa – se encontra, afetivamente, ligado a esta casa, erguida a pulso pelos homens que do mar retiravam o seu sustento. Com efeito, para escapar aos violentos coices com que a fome o fustigava, posto que sua mãe não dispunha de recursos bastantes para alimentar os filhos nascidos do casamento, o pequeno Benegas dos Santos começou a de-
mandar, diariamente, a sede da Associação Piscatória, no rés do chão da qual funcionava a denominada loja de campanha, local onde se procedia ao conserto das artes, se tingiam e se aparelhavam as redes. Reportamo-nos, claro está, ao período em que a frota fundeada na antiga vila do Seixal era constituída pela tradicional muleta, barco que há muito deixou de sulcar as águas do Tejo, mas cuja memória permanece no coração das suas gentes e no brasão do próprio município. Com efeito, a sua assídua presença e a pronta disponibilidade revelada para ajudar naquilo que as suas modestas forças permitiam, associadas ao conhecimento que os demais habitantes tinham da situação familiar do miúdo, como de resto era normal nos pequenos aglomerados populacionais dessa época, fizeram com que o mesmo fosse acolhido pelo mestre da referida loja, recebendo em troca dos seus préstimos a comida que em casa lhe faltava. «Não se tratava de nenhuma obrigação», começa por afirmar, «mas, como os barcos guardavam sempre um quinhão de pescado, para quem, em terra, cuidava dos apetrechos, todos os dias ali se fazia comida para os que participavam nessas tarefas. Eu comia, também, do que eles confecionavam. Só ia para casa à noite, depois do jantar. Dessa forma, arranjei maneira de matar a fome», confessa.
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O espírito de solidariedade que caracterizava as tripulações das embarcações de pesca sediadas, ao tempo, na vila do Seixal expressava-se não apenas no fornecimento de pescado aos atletas sempre que estes tinham de se ausentar da localidade para representarem a coletividade em provas disputadas na outra margem do rio Tejo, mas, igualmente, assegurando a alimentação dos homens que, em terra, cuidavam das artes. Desse quinhão se alimentava, também, o jovem Benegas Santos.
«A criação da secção desportiva visava fomentar os desportos náuticos» É, pois, neste quadro de recíprocos afetos que José Benegas dos Santos acompanha o pulsar da coletividade do seu coração, constituindo-se num dos (poucos) associados da mencionada agremiação que se dispuseram a relatar as memórias que guardam acerca das diferentes fases por que esta passou. «A atual Associação Náutica do Seixal nasceu por vontade da direção da antiga Associação da Classe Piscatória da Vila do Seixal, que entendeu oportuno proceder à criação de uma secção desportiva, vocacionada para o fomento das atividades náuticas entre a juventude local, ao mesmo tempo que, por seu intermédio, visava prolongar o gosto pelo mar entre os seus descendentes,
colocando-os, igualmente, como legítimos herdeiros da valiosa obra associativa que várias gerações de pescadores, com muito esforço, lograram construir», diz «Mestre Santos». A este respeito, importará sublinhar que o terreno onde se situa a sede da coletividade, leia-se ANS, fora adquirido, em 13 de outubro de 1899, a Vitorino Augusto de Oliveira, por 60 mil reis (0,30 €), e que a construção do respetivo imóvel foi concluída em 22 de dezembro do ano seguinte. Uma obra para a qual contribuíram todas as embarcações da vila, através da doação equitativa do lucro obtido diariamente conseguido com o pescado capturado. «Por essa razão, entre os fundadores da secção desportiva, figuravam Sebastão “Fato-Preto”, Augusto dos Santos Ribeiro, Mateus de Lima da Saúde e João de Oliveira Partidário. Todos eles afetos, nessa altura, aos corpos gerentes da aludida Associação Piscatória», lembra o nosso interlocutor. A par de tais desígnios, a decisão de procederem à criação de uma secção desportiva, da qual também podiam ser sócios cidadãos que exerciam outras profissões, visou, implicitamente, promover o aparecimento de um organismo autónomo que possibilitasse a fuga do restante património da instituição à sanha usurpadora do Estado, manifestada já em 13 de outubro de 1941, com a inclusão da sede da agremiação no espólio da Junta Central das Casas dos Pescadores, sem que os verdadeiros proprietários tivessem sido consultados e afirmado a sua concordância. O fundamento evocado para essa apropriação fundava-se na Lei n.º 1953, de 16 de fevereiro de 1937, aprovada na sequência da aplicação
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do Decreto-Lei n.º 23050, de 23 de setembro de 1933, cujo artigo 3.º determinara a integração compulsiva dos pescadores locais e da sua respetiva associação no Sindicato dos Pescadores do Distrito de Setúbal.
«Espaço deixado vago pelos denominados Pirolitos do Seixal foi transformado na sede da secção» «Tinha eu uns 10/11 anos quando acabaram os Pirolitos do Seixal, designação por que eram conhecidas as embarcações tradicionais da localidade que nesse tempo efetuavam a sua faina no rio», afirma ainda José Benegas dos Santos. «Ora, como entretanto havia sido fundada a secção desportiva da recém-denominada Casa dos Pescadores, o espaço deixado livre pelos apetrechos que esse tipo de arte utilizava passou a ser utilizado pela dita secção, a qual se dedicava, exclusivamente, à prática dos desportos náuticos, em particular, à classe vouga, ao sharpie de doze, mais tarde ao sharpie de nove e, posteriormente, também aos snipes de doze e de nove, classes estas que granjearam muita fama entre a população da terra. Pelas festas de S. Pedro, havia ainda uma equipa de natação que representava a coletividade nas estafetas que tinham lugar num percurso compreendido entre o Cais da Mundet e os pilares da foz do rio Judeu», refere o popular «Mestre Santos». «Nessas provas é que despontaram os grandes nomes que nessa época marcaram o panorama da natação regional, tais como José Pedro, o Adão e o Patrony, estes últimos da Torre da Marinha. Isto num tempo em que o rio era
um manto de água límpida, de onde retirávamos não apenas ameijoa e lingueirão, mas do qual até apanhávamos enguias e linguados à mão, tanta era a fartura de peixe que nele existia!» acrescenta. «Infelizmente, com a construção dos estaleiros da Lisnave e o início da laboração, as espécies que antes demandavam estas águas começaram a desaparecer. Tudo devido à limpeza dos tanques dos petroleiros que ali acostavam», sustenta «Mestre Santos».
«Transportei às costas muita madeira daqui para a firma A. Silva & Silva e desta para as instalações da associação» «Nesse tempo, a reparação dos vougas era feita nas próprias instalações da secção desportiva e o mestre que realizou a obra de adaptar o segundo fosso ao Vouga 64 foi um homem residente em Arrentela, de nome Manuel, que por razões profissionais só podia fazer esse trabalho depois das 19 horas, dado ser empregado na CUF, Lisboa, e só a essa hora chegar ao Seixal», relata o carismático ativista da Associação Náutica do Seixal. «Assim, para que o seu tempo disponível fosse convenientemente aproveitado, coube-me a tarefa de levar as madeiras necessárias a tal operação à serração da firma A. Silva & Silva, em Arrentela, a fim de serem aplainadas. Logo que estavam prontas, fazia o mesmo trajeto, carregando-as às costas ou num carrinho de mão», conta este associado da Associação Náutica, no seu peculiar jeito de pronunciar as palavras ao mesmo tempo que faz bailar entre
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os lábios a costumeira cigarrilha que transporta ao canto da boca. «Nunca ganhei um tostão. Nem isso me importava, porque, sendo órfão de pai, o que deveras me importava era matar a fome, comendo das caldeiradas que António José Cajadas e o seu camarada Santinho todos os dias confecionavam. Essa sim era a razão que me fazia estar aqui todos os dias até às tantas e me obrigava a sacrifícios», sublinha José Benegas Santos. Ademais, é bom que se saiba, que por esse tempo as ocupações profissionais dos habitantes da localidade repartiam-se fundamentalmente pela manufaturação da cortiça e pelas atividades ligadas ao exercício da pesca, as quais incluíam alguns pequenos estaleiros navais. «Nessa época, o que nesta terra havia com fartura, eram tabernas. Ao todo, cerca de cinquenta. Até parecia impossível, como uma vila tão pequena conseguia ter tanta taberna», exclama Mestre Santos. «Mas às nove da noite, todas fechavam as portas. A partir dessa hora não havia ninguém na rua, ia toda a gente para casa. A única pessoa que se via na rua era o homem que andava a acender os candeeiros. Tratava-se de um homem que, por conta da câmara, tinha a função de, todas as noites, abastecer os candeeiros a petróleo então existentes na vila e proceder ao respetivo acendimento, utilizando para esse trabalho umas escadas de madeira. Depois, recolhia-se também a sua casa, pelo que, enquanto o petróleo durasse, havia iluminação pública, quando este acabava, só na noite seguinte voltava a dar luz. Por essa razão, cerca das duas da manhã ficava tudo às escuras», informa igualmente José Benegas dos Santos.
Manuel Alves Ferreira, «Necas» Memórias de um antigo atleta da atual Associação Náutica Manuel Alves Ferreira, vulgo «Necas», antigo atleta da secção desportiva da extinta Associação da Classe Piscatória da Vila do Seixal, mais tarde rebatizada de Casa dos Pescadores da Vila do Seixal, por força das alterações legislativas impostas pelo Estado Novo, com o objetivo de efetuar a fusão de todas as instituições representativas dos pescadores existentes em Portugal, é uma das poucas testemunhas que aceitaram relatar-nos as memórias recolhidas ao longo de várias décadas de profunda ligação à coletividade. Atual sócio número um da Associação Náutica do Seixal, designação adotada depois de Abril de 1974, e de terem chegado a bom porto as diligências tendentes à desafetação da instituição da Junta Central da Casa dos Pescadores, com a subsequente recuperação de parte significativa do seu património, designadamente o edifício construído pelas gerações anteriores, Manuel Alves Ferreira é, pois, um dos associados que mais documentados se encontram sobre a vida e as dificuldades por que passou a sua prestigiada agremiação. Refira-se, a este respeito, que a inclusão da primitiva associação piscatória naquele organismo do Estado, inserida, de resto, num conjunto de medidas legislativas impostas pelo antigo regime, não agradou às gentes da antiga
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vila, que sempre acalentaram o secreto sonho de lograrem, um dia, reaver a sua emblemática agremiação e todo o seu espólio afetivo e patrimonial. Entre os vários associados que se empenharam na prossecução desse superior objetivo, logo que derrubado o governo ditatorial, contam-se, entre outros, Viriato Pescadinha e o popular «Necas». Essa razão e a circunstância de se tratar de um dos poucos velejadores da sua geração que a lei da vida ainda não logrou silenciar fazem dele uma das testemunhas privilegiadas de uma época marcada por inquebrantáveis laços de solidariedade e camaradagem entre os atletas e as tripulações das embarcações de pesca da localidade e pelo permanente espírito de sacrifício que prontamente emergia entre quantos representavam a coletividade nas inúmeras provas náuticas em que esta tomou parte. Embora nunca haja exercido qualquer atividade relacionada com a faina piscatória, situação que todavia não constituiu qualquer impedimento ao seu ingresso na coletividade, Manuel Alves Ferreira, conhecido entre os seus conterrâneos por «Necas», refere que tal ligação remonta aos tempos da sua infância.
«Ideia de fundar secção náutica nasceu no Seixal Futebol Clube» «Tinha talvez uns 10/12 anos quando comecei a frequentar a agremiação. Era ali que tanto eu como muitos rapazes da minha geração nos sentíamos bem, quer por se tratar de uma casa virada ao rio, quer pelo convívio humano que nela se estabelecia», informa Manuel Alves Ferreira.
Primo de um dos fundadores da mencionada secção, o nosso interlocutor revela ainda que «a ideia da fundação de uma secção de desportos náuticos surgiu, inicialmente, no seio do Seixal Futebol Clube, mas, por via de conversas havidas a esse respeito entre os dirigentes desta coletividade e Sebastião Ribeiro, ao tempo diretor da instituição representativa dos pescadores da localidade, concluíram que seria melhor proceder à criação de tal secção no quadro da Casa dos Pescadores». Manuel Alves Ferreira refere igualmente que depois de os estatutos terem obtido a aprovação de Mário Madeira, ao tempo governador civil de Setúbal, estes foram enviados para a Junta Central da Casa dos Pescadores, como, de resto, era norma nesse tempo, em ordem a que pudesse, a um tempo, desenvolver as suas atividades desportivas e, a outro, usufruir do subsídio mensal que aquela entidade habitualmente concedia a este tipo de agremiações. «No entanto, por via de o tesoureiro daquele organismo ser um autêntico forreta, só nos foram atribuídos mensalmente 2000$00 (10 €), sendo, pois, com esse dinheiro e com a reduzida verba proveniente da quotização dos sócios que a agremiação vivia. Em face disso, não havia dinheiro para quase nada», refere o conhecido «Necas». «Mesmo assim, lá conseguimos adquirir aos estaleiros de Álvaro Venâncio, Amora, o nosso primeiro barco: um vouga de três tripulantes, com o qual começámos a competir. Seria, aliás, com essa embarcação que o velejador Rudolfo Ribeiro, conjuntamente com Manuel Pescadinha e João Rosendo, logrou conquistar, em 1948, o título de campeão nacional, sagrando-
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-se, então, o primeiro campeão desta classe natural do concelho do Seixal, ano em que venceram igualmente a Semana da Vela», informa o antigo atleta e ex-dirigente da ANS.
Apertos económicos não impediram coletividade de alargar a sua atividade a outras modalidades desportivas Um feito que acentuou ainda mais o interesse que a juventude local nutria pela agremiação, já que, nessa época, não abundavam na localidade os motivos de diversão, situação que transformava a instituição num dos locais prediletos dos jovens seixalenses, quadro que enchia de satisfação os fundadores da coletividade, então designada Secção Desportiva da Casa dos Pescadores, já que esse fora um dos fundamentos que os levaram a avançar para a criação da aludida secção. «Ali ocupávamos os nossos tempos livres. E fazíamo-lo com tal entusiasmo que apesar das dificuldades económicas fomos, aos poucos, alargando a atividade a outras modalidades, entre elas a vela, a canoagem e, mais tarde, a motonáutica. E de tal modo o fizemos que chegámos a tomar parte em campeonatos nacionais realizados em Angola e Moçambique, posto que, nessa altura, aqueles países faziam parte do território nacional. Além disso, participámos também em provas internacionais promovidas em várias regiões de Espanha e, até, na Dinamarca», lembra Manuel Alves Ferreira.
A equipa que em 1948 logrou sagrar-se campeã nacional da classe vouga, formada, então, por Rudolfo Ribeiro, filho de Sebastião Ribeiro (ou seja, Sebastião «Fato-Preto»), Manuel Pescadinha e João Rosendo, posando para a foto na companhia de Joaquim Landeiroto, Stwart Robim e Duval Landeiroto.
«Quando as regatas decorriam na zona da doca de Belém ou em Algés, tínhamos de meter o barco na água antes das seis da manhã, mas, como não havia outra maneira de o fazer, carregávamo-lo às costas até ao rio. Nos casos em que as regatas tinham lugar ao largo de Cascais, então, saíamos do Seixal por volta da meia-noite. Em qualquer das situações, o esforço que despendíamos era superior ao das demais embarcações, já que, para lá chegarmos, tínhamos de efetuar ainda o respetivo trajeto navegando junto à costa. O mesmo sucedia quanto ao regresso», conta o dedicado associado.
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Histórias de uma época em que as dificuldades eram muitas, por via dos apertos financeiros com que a coletividade se debatia, razão pela qual nenhuma forma de captar receitas podia ser desperdiçada, posto que todos os tostões eram preciosos, tendo em vista os encargos assumidos com a aquisição da citada embarcação. «Para tanto, fazíamos bailaricos, os quais se estendiam até de madrugada», diz Manuel Alves Ferreira, «situação que nos impedia, muitas vezes, de ir à cama, devido à circunstância de o bailarico ocorrer, frequentemente, na véspera de provas. Todavia, para que nossas mães não nos repreendessem, passávamos, sorrateiramente, por casa, desarrumávamos os lençóis e dávamos às de Vila Diogo, a caminho das referidas provas», informa ainda o popular «Necas».
Em 50 anos de vela, colecionou muitas vitórias e alguns valentes sustos Praticante de vela durante cerca de 50 anos, Manuel Alves Ferreira faz ainda questão de sublinhar que, a par dos inúmeros troféus conquistados no decurso de tão extensa carreira desportiva, também colecionou alguns valentes sustos. «Um deles aconteceu em Cascais, numa ocasião em que lá fomos disputar uma prova constituída por várias regatas, situação que nos forçou a permanecer ali alguns dias, pernoitando no barco e tomando banho no rio. Ora, sucede que uma certa manhã – creio que seria ainda inverno –, a temperatura da água estava demasiado fria e ao tomar banho entrei em hipoter-
mia. Valeu-me a atenção dos meus camaradas que me retiraram da água, me enrolaram em casacos e acenderam em terra uma fogueira para que me aquecesse», lembra o conceituado ativista da Associação Náutica do Seixal. Episódio mais complicado viveu, no entanto, Manuel Pescadinha, em consequência de uma súbita reação alérgica à ingestão de camarão, quadro que o forçou a receber assistência no hospital local. Vimo-nos aflitos com ele, dado tratar-se de um dos elementos fundamentais à concretização do objetivo de alcançarmos um bom lugar nas regatas que constituíam a aludida prova. Um cagaço de todo o tamanho!», enfatiza. Ex-funcionário da extinta fábrica Mundet e tripulante do Vouga 68, embarcação construída pelos próprios velejadores nos estaleiros de Alfredo Paulo e com a qual a instituição se sagrou campeã nacional em 1948, Manuel Alves Ferreira relata ainda a enorme deceção sofrida pelas gentes do Seixal quando foi conhecida a notícia de que os jovens da ANS não iriam, afinal, aos Jogos Olímpicos, mau grado as expectativas criadas em torno dessa eventual participação. «Nesse ano “limpámos” todas as provas que integravam o calendário oficial, em função do que chegámos a ser convocados para as Olimpíadas, a disputar em Inglaterra. Mas, porque a classe acabaria por não ser considerada uma classe olímpica pelo respetivo comité organizador, a perspetiva de tomarmos parte nesse evento gorar-se-ia, espalhando uma profunda desilusão, quer entre os atletas, quer entre a população desta terra», adianta o antigo velejador seixalense.
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Apesar de o seu ordenado fazer falta em casa, isso não o impedia de ir às Semanas da Vela A Segunda Grande Guerra terminara havia três anos, cenário que concorria sobremaneira para acentuar o grau de dificuldades que afetavam aqueles que viviam apenas da força do seu trabalho, ainda por cima extremamente mal remunerado, fatores determinantes para que a receita proveniente da quotização não permitisse à coletividade suportar as despesas decorrentes da participação das suas representações nas diferentes provas. «Por essa razão, eram os próprios tripulantes que suportavam as viagens sempre que nos deslocávamos a Espanha ou quando fomos à Dinamarca», frisa. «No meu caso, então, o sacrifício tornava-se ainda maior, já que era órfão de pai e o meu vencimento, ainda que baixo, dava um jeitão a minha mãe», salienta. «Além disso, sempre que precisava de faltar ao trabalho por mor de participar em alguma prova, embora a empresa me justificasse a falta, esse dia, contudo, não era remunerado. Uma situação que ocorria apenas de tempos a tempos, e por um período raramente superior a dois dias», diz ainda Manuel Alves Ferreira. «O problema mais delicado surgiu, todavia, quando teve lugar em Cascais a denominada Semana da Vela, um evento que se prolongava por sete dias, forçando-me a faltar ao emprego todo esse tempo, situação que, pelos motivos já aduzidos, esbarrou na oposição da minha progenitora. Valeu-me, na altura, a circunstância de minha tia coabitar connosco e ter resolvido
interceder junto de minha mãe, para que esta me deixasse ir», recorda igualmente o conceituado ativista do movimento associativo seixalense. «À parte o não pagamento do tempo em que estivéssemos ausentes do trabalho, não havia nenhum outro tipo de encargos, dado que todos os dias vários barcos pertencentes à numerosa frota pesqueira nessa época existente na vila do Seixal demandavam à lota de Cascais, levando-nos sempre um quinhão de pescado, pelo que, dessa forma, tínhamos assegurada a alimentação, ainda que esta, por força das circunstâncias, fosse, durante todo esse tempo, unicamente peixe e marisco», acrescenta o carismático associado da ANS. «A confeção das refeições estava a cargo de “Manuel da Caé”, entusiasta dos desportos náuticos, mas que, por andar apoiado numa muleta de madeira, devido à amputação de uma das pernas, ficava permanentemente na embarcação de apoio, a qual funcionava simultaneamente como cantina e camarata, não obstante dormirmos quase encavalitados uns nos outros», reconhece o antigo velejador seixalense. Noutras ocasiões, quando as chamadas Semanas da Vela tinham lugar entre Pedruços e Algés, quem lhes assegurava o peixe com que se alimentavam era Soares de Oliveira, esposo de uma senhora natural do Seixal e amigo da coletividade, o qual chefiava, ao tempo, a secção frigorífica da doca de Belém, então situada nos terrenos onde se situa a Administração do Porto de Lisboa. «Certo dia, a nossa embarcação ficara tão próxima do iate do embaixador Teotónio Pereira
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que este não resistiu à tentação provocada pelo cheiro de umas sardinhas que estávamos assando e mandou pedir-nos uma sardinha, para provar, solicitação prontamente satisfeita, em muito maior quantidade, mas o homem apenas acabaria por aceitar três, evocando razões de saúde», conta Manuel Alves Ferreira. «Enquanto isso, o vinho era-nos oferecido pelo Salta p’rà Terra, uma taverna nessa altura existente junto à Casa dos Pescadores», confessa ainda o ex-atleta e antigo dirigente da Associação Náutica do Seixal.
Despesas das viagens ao estrangeiro eram pagas através da venda de rifas «O quadro só mudava de figura quando nos deslocávamos ao estrangeiro. Nesse caso, o clube organizador assegurava-nos a estada e a alimentação, ficando a nossas expensas as respetivas viagens, o que apesar de nos acarretar alguns sacrifícios financeiros, sempre se revelava menos pesado, do ponto de vista da exigência física», assinala Manuel Alves Ferreira. Considerando que uma coisa eram as deslocações para localidades situadas na periferia de Lisboa e outra, completamente diversa, eram as viagens ao estrangeiro, ante os encargos que reclamavam, bastas vezes a agremiação se viu impelida a lançar mão da realização de sorteios de rifas, em ordem a angariar os fundos necessários a tais despesas. «Na maioria dos casos, tratava-se de conjuntos de chávenas e respetivos pires ou, então, garrafas de bebidas espirituosas, oferecidos, a nosso pedido, pelas várias casas comerciais da terra.»
Naturalmente que a organização de regatas não era um exclusivo dos demais clubes filiados na Federação Portuguesa de Vela. Algumas regatas houve cuja organização foi confiada à coletividade seixalense, entidade que teria, entre outras atribuições, a responsabilidade de garantir o almoço das tripulações participantes. «Numa das vezes em que tal sucedeu, e face ao elevado número de pessoas que esse tipo de eventos habitualmente implicava, ocorreu-nos a ideia de tornear o problema oferecendo a toda aquela gente uma sardinhada, solução que se nos afigurou ser a mais prática e económica, dadas as limitações financeiras que apoquentavam a coletividade», relata Manuel Alves Ferreira. «Nesse sentido, pedimos a José Esteves, proprietário da antiga seca do bacalhau, que nos emprestasse o seu automóvel para irmos à lota de Setúbal comprar a necessária caixa de sardinha. Mas, com o entusiasmo de nos sentirmos detentores de um veículo muito apreciado nessa época, devido ao seu carácter desportivo, ao invés de rumarmos logo ao nosso local de destino, optámos, primeiramente, por fazer um passeio pela Arrábida e passear nas várias artérias da cidade. Em resultado do fogo exibicionista que nos tomou, quando, finalmente, chegámos ao Seixal, já nossas famílias estavam sobressaltadas, supondo mesmo que tivéssemos sofrido algum grave acidente de viação», diz, ao mesmo tempo que solta um sorriso. Uma aventura tal que a par de provocar a inquietude dos familiares próximos, levantou ainda entre os elementos dos corpos gerentes e associados da instituição o fundado receio de que esta, para além de não conseguir garantir
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o almoço a quantos estavam envolvidos na referida prova, também não lograsse apresentar na mencionada regata uma equipa condigna.
Rivalidade entre Seixal e Barreiro marcava as regatas de barcos tradicionais Outro fator que, por esses tempos, despertava invariavelmente grande agitação no seio dos habitantes do Seixal, designadamente em todos aqueles que seguiam de perto as competições de vela, prendia-se com a notória rivalidade existente entre as embarcações desta vila piscatória e as do vizinho concelho do Barreiro, especialmente nas regatas efetuadas pelos barcos tradicionais do Tejo, tanto os de vela latina, como os de vela de espicha. «Aquilo era uma competição tremenda, porque eram as únicas embarcações que rivalizavam connosco, já que nas outras classes não tinha nenhum tipo de hipóteses. No entanto, assim que terminava a regata, todo esse clima competitivo que caracterizava as relações entre as tripulações de ambos os concelhos se diluía, devido ao cordial relacionamento que sabíamos manter e aos frequentes convívios e petiscadas que fazíamos», anota Manuel Alves Ferreira. É claro que sem esquecer do extenso leque de sacrifícios que, nesse tempo, a prática da modalidade exigia aos atletas, de quando em vez, lá acontecia um momento que lhes conferia algum alento para continuarem a dedicar-se, de corpo inteiro, ao seu desporto preferido: a vela. Um desses momentos ocorreu quando Cosme Narciso Lopes, na ocasião presidente da
Câmara Municipal do Seixal, resolveu atender um pedido que lhe fora formulado por Belo Roque, no sentido de que o edil oferecesse à coletividade um snipe para substituir o Vouga 68, em consequência de esta embarcação não ter logrado obter o desejado estatuto de classe internacional. Uma doação batizada com o nome de João Lopes, pai do ofertante e pessoa muito considerada entre as gentes ligadas ao meio naval, nesse tempo.
Retrato de João Lopes, pai do antigo presidente da Câmara do Seixal Cosme Narciso Lopes e um dos fundadores da agremiação, no quadro da qual desempenhou ainda funções diretivas. O primeiro barco da classe de snipe que a instituição possuiu, resultante de uma oferta feita pelo filho, ostentou o seu nome, em sinal de reconhecimento por tudo quanto fizera em prol da associação.
«Para além disso, João Lopes foi ainda colega do conceituado Patrão Lopes, distinta persona-
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lidade da localidade de Paço D’Arcos, Estoril, devido aos inúmeros salvamentos que efetuou naquela zona do estuário do Tejo, em função dos quais acabaria por ser considerado o pai dos socorros a náufragos em Portugal», esclarece Manuel Ferreira Alves, ou, se se preferir, o popular «Necas». «Por outro lado, João Lopes fora ainda, durante um dado período temporal, presidente da direção da Casa dos Pescadores da Vila de Seixal, entidade que tutelava, então, a ANS, esta última possuindo, à época, o estatuto de secção desportiva da referida Casa dos Pescadores», adianta o nosso interlocutor. Paralelamente, Henrique Tenreiro, um dos braços direitos de Salazar e responsável pela montagem do alegado sistema de previdência aos pescadores – com base no qual o Estado se apropriou do património das diferentes associações de classe, ao tempo existentes em todo o país –, ao tomar conhecimento da oferta, não quis ficar atrás de Cosme Lopes e, também ele, ofertou um barco da mesma classe, a que deram o nome de O Transmontano.
«Permanente apoio dos pescadores constituía um tremendo incentivo» «Em resultado dessa oferta, ficámos, na altura, com dois vougas, dois sharpies (um de nove, outro de doze metros quadrados) e dois snipes», refere o conhecido desportista náutico que revela ainda ter a sua dedicação à prática da vela chegado onde chegou devido à forma como os antigos pescadores o instigavam. «E o que se passou comigo, passou-se com todos os outros», afirma.
«Desde logo porque, nesse tempo, os pescadores encaravam a nossa intervenção em qualquer prova, não apenas como a mera participação de uma coletividade da terra numa manifestação desportiva, mas, acima de tudo, uma representação da sua antiga e emblemática classe profissional», assevera o conhecido «Necas». «Um incitamento permanente que se expressava das mais diferentes formas, quer assegurando-nos a alimentação, sempre que as regatas decorriam fora do concelho, quer incentivando-nos a prestigiar a terra. Daí frequentemente advertirem: “Vocês vejam lá como se comportam! Não nos deixem ficar mal vistos!”», refere Manuel Alves Ferreira. «Aliás, tenho para mim que a boa figura que, nesse período, conseguimos fazer em muitas provas se ficou, também, a dever à maneira abnegada com que alguns dos antigos pescadores se entregavam à preparação das embarcações em que competíamos. Raúl Coxo, António José Bicho, Joaquim Mouco, seu irmão, António José Pereira, Stwart Robim, Manuel Agostinho e Luís Fernando são alguns desses dedicados companheiros que em terra zelavam pelo nosso êxito», lembra o fervoroso associado da ANS. «Como se isso não fosse suficiente, alguns dos mais experientes pescadores bastas vezes se colocavam ainda junto às margens, dando preciosas instruções para bordo das embarcações acerca da melhor forma de alcançarmos os nossos objetivos, face às condições de tempo que naquele momento se verificavam. Aconselhamento sábio, fundado nos profundos ensinamentos colhidos ao longo de uma vida de mar, tantas vezes feito por Sebastião “Fato-Preto”,
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homem a quem a Associação Náutica do Seixal muito deve», reconhece o estimado associado da prestigiada agremiação seixalense.
«Extinção da Junta Central da Casa dos Pescadores fez recear igualmente o desaparecimento da coletividade»
remetendo-os, posteriormente, à Administração Regional de Segurança Social, entidade a quem passámos a pagar uma renda mensal de 2000$00 (10 €), pelo usufruto das instalações», relata o atual sócio n.º 1 da ANS.
Além disso, assinala-se que o carinho dispensado por Sebastião «Fato-Preto», melhor, Sebastião Ribeiro, pois este era o seu verdadeiro nome, à instituição decorria, também, da circunstância de Augusto Ribeiro, seu progenitor, ter sido um dos elementos determinantes na compra do terreno onde fora construída a sede da primitiva Associação da Classe Piscatória da Vila do Seixal, e de seu filho, Sebastião Ribeiro, antigo campeão nacional de vela, representar, ao tempo, a denominada Secção Desportiva da Casa dos Pescadores, hoje Associação Náutica do Seixal. «O período mais difícil da coletividade resultou da sua fusão na Junta Central das Casas dos Pescadores e da consequente integração do património da agremiação nesta entidade», alerta Manuel Alves Ferreira. «Ora, dado que tal procedimento, feito à revelia dos pescadores e contra a sua vontade, assentava ainda numa orientação ideológica com a qual o 25 de Abril nada tinha a ver, o governo emergente da Revolução acabaria por tomar a decisão de proceder à extinção da mencionada Junta Central, endossando os bens patrimoniais da Casa dos Pescadores da Vila do Seixal à sua congénere da Costa de Caparica,
O’Neill Pedrosa, antigo presidente da edilidade seixalense e outro dos primeiros dirigentes da Associação da Classe Piscatória da Vila do Seixal, agremiação de carácter profissional que esteve na génese da Associação Náutica, sua legítima e natural herdeira.
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Memórias de uma época marcada por solidariedades várias, cimentadas, de resto, no profundo espírito bairrista que desde os primórdios da instituição animara não só os seus ativistas mas, também, a restante comunidade local. Um registo imperiosamente ditado pelo superior interesse de preservação de uma realidade que o tempo dilui e que merecia ser resguardada, ante o relevantíssimo legado humano que nos oferece.
Tripulação de uma das embarcações da Casa dos Pescadores, leia-se Associação Náutica do Seixal, nos idos anos cinquenta do século passado. Eram seus tripulantes no momento da captação deste registo fotográfico Manuel Agostinho, Joaquim Landeiroto e Stwart Robim.
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Instituição de cariz cooperativo sucessora da antiga cantina da empresa Mundet, a Cooperativa de Consumo Amorense, fundada a 10 de junho de 1949, deve o seu aparecimento à iminência do encerramento da referida cantina, ditada pelos responsáveis daquela entidade empresarial que, tentando escamotear os desastrosos atos de gestão por si cometidos, logo trataram de imputar o mau desempenho financeiro da empresa aos benefícios que a mencionada cantina proporcionava aos operários que a ela recorriam para adquirirem os géneros essenciais à sua subsistência a preços mais reduzidos. Ante a iminência de verem os seus camaradas lançados no desemprego sem nenhum tipo de indemnização, numa época em que o mundo ainda tentava recuperar das consequências deixadas pela Segunda Guerra Mundial, entre as quais ressaltavam, a par da perda de vidas humanas, os baixos salários e a precariedade dos postos de trabalho, um grupo de trabalhadores lançou a ideia de promover a fundação de uma cooperativa com o objetivo de salvaguardar o ganha-pão aos companheiros que asseguravam o funcionamento da aludida cantina. Para tanto, havia necessidade de obterem junto dos administradores da empresa, para além da cedência de todo o material pertencente à referida cantina, designadamente as medidas, balanças, armações e algumas outras ferramentas necessárias à atividade da novel cooperativa, ainda a autorização para que esta ocupasse pelo período aproximado de um ano as instalações onde, até então, aquela havia funcionado. Obtidos todos estes requisitos, rapidamente aquela dependência, considerada pelos respon-
sáveis da conhecida firma corticeira como uma permanente fonte de prejuízos, se tornou num projeto de grande mérito. A tal ponto que no curto espaço de meses, não só se afirmou como uma entidade cuja função se revelava de grande alcance social para os habitantes da localidade, como logrou ainda proceder à aquisição de uma vasta parcela de terreno, parte da qual acabaria, de resto, por ser cedida à própria empresa. Seria, aliás, nesse amplo espaço disponibilizado à Mundet que anos mais tarde foi construído o atual Bairro dos Corticeiros, no meio do qual os mentores da Progresso Amorense ergueram as novas e funcionais instalações, abandonando o velho barracão da Rua dos Operários e a má vizinhança da rataria que o habitava. Não se pense, no entanto, que a vida da Cooperativa foi um mar de rosas. Desde logo porque este tipo de instituições não gozava da simpatia do regime ditatorial em que éramos forçados a viver, por via da sua persistente recusa em aderir às ideias veiculadas pela União Nacional, a única formação política legalmente autorizada pelos dignitários do poder vigente nessa época. Por essa razão, a sua atividade era vista com desconfiança, motivo suficientemente ponderoso na perspetiva dos responsáveis governamentais para que a PIDE não descuidasse a vigilância a quantos se empenhavam no crescimento desta estrutura criada pelos operários corticeiros de Amora, procurando, desse modo, obstar ao seu desenvolvimento. Para tornear as dificuldades levantadas pela constante presença da polícia política, os dirigentes da União Amorense cedo concluíram que a sua tarefa só poderia chegar a bom termo
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se estabelecessem fortes laços de cooperação com as suas congéneres do Seixal, Almada, Cova da Piedade, Pragal, Alhos Vedros, Ermidas do Sado, Poço do Bispo, Barreiro e Porto. E tão forte foi o seu contributo para o estabelecimento de um pujante movimento cooperativo, que várias personalidades da nossa cultura lhe quiseram prestar tributo, deslocando-se às suas instalações para realizar colóquios. Entre outros, Ferreira de Castro e António Sérgio são dois dos importantes nomes da cultura portuguesa que a visitaram.
Joaquim Pinho Soares «Falta de segurança na doença leva cooperativa a fundar caixa de previdência para valer aos cooperantes» Figura carismática do movimento associativo amorense, devido à constante disponibilidade com que ao longo da sua vida se tem empenhado na elevação das principais agremiações da atual cidade de Amora, Joaquim Pinho Soares, conhecido entre os seus conterrâneos por «Joaquim Jota», é uma das poucas testemunhas ainda vivas cujo depoimento se afigura imprescindível sempre que se pretenda conhecer alguns dos principais aspetos que levaram à criação da Cooperativa Progresso e União Amorense. Antigo operário da unidade fabril que a Mundet possuía na referida localidade, foi um dos vários operários da mencionada empresa que viveram de perto a criação da Cooperativa, da
qual, aliás, se tornaria funcionário, nela permanecendo até aos anos 1980, altura em que esta entendeu suspender a sua atividade. Membro do grupo de 12 operários que constituíram a comissão que levou por diante a tarefa de realizar o trabalho conducente à concretização de tão significativo projeto, quer para os trabalhadores da fábrica, quer para a demais população amorense, refere que a ideia começou a despontar entre o operariado quando este tomou conhecimento de que uma das primeiras deliberações tomadas pela nova gerência daquela unidade fabril, mal se viu investida nas suas funções, foi a de pretender encerrar a cantina que a empresa detinha no antigo lugar de Amora, para abastecer os seus trabalhadores. «Dessa comissão fazia parte também Amélio Batista Cunha, funcionário da contabilidade e responsável pelos serviços sociais da fábrica, pessoa que, de certo modo, liderou as negociações com a gerência para que esta nos cedesse o material afeto à cantina, além da respetiva autorização para que utilizássemos, pelo período de dois anos, o barracão onde a mesma funcionava», informa Joaquim Pinho Soares. «Para além disso, havia necessidade de proceder à legalização da cooperativa, para o que pedimos o apoio às nossas congéneres da Cova da Piedade e de Sacavém, cujos estatutos nos serviram de minuta para elaborarmos os nossos. Ademais, como não poderíamos permanecer no espaço da antiga cantina por mais tempo do que aquele que estava estabelecido, logo Amélio Cunha tratou de encetar negociações com o proprietário da Quinta do Rosinha, com vista à sua aquisição», relembra o conhecido amorense.
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Trabalhador da Cooperativa durante 26 anos Efetuada a transação, a novel agremiação transferiu-se para um velho imóvel existente na aludida quinta, aproveitando a circunstância de uma antiga fábrica de xailes que nele funcionara se encontrar desativada e aquele espaço estar a ser usado como palheiro. Paralelamente, dava início aos trabalhos de construção de um novo e funcional edifício. «No entanto, não se pense que foram fáceis esses primeiros dois anos de vida da cooperativa», diz Joaquim Jota. «Tratou-se de um período marcado por grandes aflições, pois que, para além das habituais dificuldades com que uma instituição desta natureza se debatia, teve ainda que se confrontar com a concorrência movida por uma sociedade de cariz comercial, denominada “loja nova”, situada, ao tempo, no Largo do Coreto e criada por uma fação constituída por três ex-trabalhadores da Mundet», recorda. Por essa razão e porque as despesas eram muitas, não havendo, por isso, condições para grandes atrevimentos, o mesmo é dizer, para a assunção de novos encargos, a cooperativa iniciou a sua atividade sem um único funcionário, apenas abrindo as portas a partir das 17 horas, altura em que os elementos que integravam a comissão instaladora largavam o trabalho. «Graças a essa política e a uma acentuada redução na percentagem de lucro que obtínhamos nos produtos que comercializávamos, as coisas lá se endireitaram, posto que tal procedimento nos permitiu colocar os géneros a preços mais baixos do que os restantes estabelecimentos,
ao tempo existentes na terra», refere Joaquim Pinto Soares. «Para tanto, elegemos como fornecedores privilegiados os agricultores da região, critério que nos permitiu, desde logo, um decréscimo no valor da respetiva venda aos associados, por mor da redução nos custos de transporte da mercadoria. E quando tal não era possível, devido à percentagem dos artigos ser muito baixa, não nos deixando, assim, grande margem de manobra, a qualidade que estes ofereciam à população de Amora era incomparavelmente superior à que o restante comércio apresentava para a mesma gama de produtos», sublinha o popular «Jota». Fruto da acertada orientação tomada, rapidamente a União Amorense concitou a adesão das gentes da localidade e, com ela, uma tal afluência diária de cooperantes que a equipa diretiva se viu forçada a admitir dois empregados para a ajudarem a fazer face a tão grande movimento, uma vez que para os elementos que a integravam se tornava deveras impossível dar conta do recado. Um processo de afirmação e desenvolvimento que se estendeu por vários anos, traduzido, de resto, num progressivo aumento quer do número de cooperantes, quer no de funcionários, sendo um deles, precisamente, Joaquim Pinho Soares, que nela permaneceu 26 anos, ou seja, cerca de 24 meses antes de a instituição suspender a sua atividade.
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Uma ordem de despedimento provocada pelos torpores do álcool
Não obstante ter sido funcionário da Cooperativa União Amorense durante mais de duas décadas e meia, Joaquim Pinho Soares é ainda um dos fundadores da instituição à qual se encontra ligado desde 12 de janeiro de 1949, ou seja, logo nos primórdios da fundação da referida agremiação, como no-lo atesta o respetivo cartão de sócio. Uma dedicação que o tornou objeto de uma homenagem realizada pelos colegas e pela direção da mencionada agremiação.
«A par do fornecimento de géneros alimentícios aos cooperantes a preços mais convidativos, a cooperativa colocava ainda à sua disposição uma secção de artigos de vestuário. Por outro lado, no início de cada ano, os lucros obtidos no ano anterior eram por eles divididos equitativamente», afirma este carismático habitante de Amora.
Instado a relatar alguns episódios que a memória dessas quase três décadas de trabalho como motorista ao serviço da Cooperativa reteve, Joaquim Pinho Soares, ou «Joaquim Jota», se assim se entender, recorda um que ainda hoje lhe desperta alguns sorrisos, pelo caricato que a situação encerra. «Uma ocasião», conta, «foi-me ordenado que transportasse o presidente e outros elementos da direção às instalações de uns vitivinicultores de Palmela, a fim de provarem a qualidade de uns vinhos antes de negociarem a respetiva compra. Sucede, no entanto, que um dos diretores participantes na referida prova, a páginas tantas, não resistiu à sonolenta espiritualidade que a bebida lhe provocou, acabando por adormecer numa das adegas sem que os outros soubessem do seu paradeiro», prossegue. «Ora, como à hora aprazada para o regresso não comparecera no local combinado, o presidente, após algum tempo de espera pelo retardatário, decidiu mandar-me seguir viagem sem ele, na convicção de que este já se teria ido embora sem avisar. Enganou-se redondamente, pois, volvidas algumas horas sobre a nossa chegada a Amora, o bom do homem, que para fazer o trajeto de regresso a casa tivera de tomar a carreira, irrompe furibundo pela Cooperativa dando-me ordem de despedimento, por me ter vindo embora sem ter esperado por ele», diz. «Valeram-me, na circunstância, os outros
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membros da direção, que o chamaram à razão e lhe disseram que eu apenas coloquei a carrinha em andamento porque tal me foi ordenado. Foi então que admitiu ter-se deixado toldar pelo vinho, confessando o que lhe sucedera, enquanto reconhecia que, afinal, era ele quem faltara ao estabelecido. Em função do que o caso ficou imediatamente em águas de bacalhau. Enfim, peripécias que os anos não apagam...», diz o antigo funcionário da Progresso e União Amorense.
Aviar à caderneta e receber à semana De acordo ainda com Joaquim Pinho Soares, as condições económicas em que a generalidade dos habitantes da localidade, nesse tempo, vivia levavam-os a grandes apertos, em resultado dos baixos salários que então auferiam tanto nas diversas fábricas situadas na freguesia, como nas demais unidades fabris situadas fora dela. «Nessa época, as pessoas recebiam a féria à semana, mas como se tratava de ordenados de fome, que mal davam para o comer, a instituição resolveu promover a criação de um sistema de cadernetas que distribuiu pelos cooperantes. Para que se tenha uma ideia mais precisa do valor pago aos operários, direi que, quando em 1948 se fundou a Cooperativa, a Mundet pagava 18$00/dia a cada maquinista certificado, ou seja, àquele que poderia operar com qualquer máquina de corte, como era o meu caso. Tal método permitia não apenas anotar os géneros que cada um levantava, como proporcionava ainda ao seu titular a faculdade de pro-
ceder semanalmente ao respetivo pagamento», relembra Joaquim Jota. «Paralelamente havia ainda o crédito a longo prazo, uma forma de pagamento que se processava ao longo de meses, normalmente utilizada pelas pessoas quando tinham de participar no casamento de algum familiar e precisavam de uma indumentária condizente. Na maior parte dos casos, tratava-se da aquisição de fatos, vestuário que, à época, custava cerca de um conto de réis, um dinheirão, diga-se, e, por consequência, não podia ser liquidada de uma só vez por quem via o esforço do seu trabalho ser tão mal pago», adianta o cooperativista.
Uma Caixa de Previdência para acudir aos cooperantes Considerando, no entanto, que essas formas de tentar valer aos apertos por que passavam os moradores da freguesia, na sua maioria gente operária que vivia do mísero salário que as fábricas lhe pagavam, os órgãos sociais da Cooperativa entenderam em dado momento proceder à fundação de uma secção interna que lhes valesse na doença, uma valência tanto mais importante quanto é certo que, por essa altura, quase nenhum dos cooperantes beneficiava de qualquer regalia da segurança social. «Nesse tempo, as pessoas quando estavam doentes e necessitavam de ficar em casa, ficavam sem nenhum provento para sobreviver», refere Joaquim Pinho Soares. «Ora, como também não recebiam qualquer subsídio do Estado devido a essa incapacidade, as situações de penúria sucediam-se a um ritmo que tornava quase nulos os efeitos das coletas pontuais le-
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vadas a efeito pelos companheiros de trabalho da pessoa necessitada.
João Rodrigues dos Santos, «João da Carapinha» «Cooperativa teve uma função social de grande importância para as gentes de Amora»
Figura carismática da vida associativa da sua terra natal, Joaquim Pinho Soares, para os seus conterrâneos «Joaquim Jota», cedo se afirmou um dos entusiastas das diferentes iniciativas promovidas pelas coletividades amorenses, independentemente de quem elas tivessem como objeto. Aqui o vemos conduzindo uma viatura da Progresso e União Amorense, durante um evento dedicado à terceira idade.
Por essa razão, entendeu-se que seria importante proceder à criação de uma Caixa de Previdência, constituída por fundos provenientes dos lucros gerados anualmente pela atividade comercial da instituição e cujo objetivo primeiro era o de atender precisamente a esses casos, evitando, assim, que para além da doença que os apoquentava, se vissem ainda privados de se alimentarem por falta de recursos», salienta o empenhado militante das agremiações populares da sua terra.
Pessoa sempre disponível para participar em iniciativas que tivessem a ver com o objetivo de melhorar a vida dos seus conterrâneos, João Rodrigues dos Santos, vulgo «João da Carapinha», é, tal como «Joaquim Jota», um dos muitos operários corticeiros das extintas fábricas de Amora cuja atividade associativa se estendeu por várias coletividades da sua terra natal. Procurando dar sempre o melhor das suas faculdades, capacidade e saber, essa sua participação nas mais representativas instituições associativas da localidade manifestava-se, no entanto, de diferentes formas: nuns casos, integrando os corpos sociais, noutros, o grupo de teatro e, noutros ainda, envolvendo-se na organização de espetáculos de variedades, geralmente, fados – valendo-se para o efeito da circunstância de ser um dos elementos do autodenominado Grupo de Fadistas de Amora –, com o intuito de minorar as carências de um ou outro habitante que se encontrasse doente e, por esse motivo, se visse impedido de trabalhar. Não surpreende, assim, que também ele se haja deixado prontamente seduzir pelo espírito solidário que a Cooperativa Progresso e União Amorense perseguia, tendo por isso feito parte dos seus corpos gerentes em diversos mandatos, no último dos quais investido nas funções de presidente da direção.
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Passagem pela direção valeu-lhe corte de relações com alguns conterrâneos Para João Rodrigues dos Santos, a sua passagem pelo cargo de presidente da instituição, em 1962, embora lhe tenha trazido algumas alegrias, também lhe acarretou vários aborrecimentos pessoais com alguns cooperantes, que não entendiam as regras que presidiam ao funcionamento de uma agremiação desta natureza e os superiores interesses em que a mesma se alicerçava. «Nesse contexto, o sentido da minha atuação foi o de procurar pôr cobro aos abusos que certas pessoas vinham cometendo em matéria de levantamento de produtos sem se preocuparem com a satisfação do posterior pagamento, o que motivava uma ultrapassagem clara do montante que cada um poderia atingir semanalmente e o consequente descontrolo financeiro da cooperativa», assevera. «Essa postura determinou que certas pessoas afetadas pela orientação tomada, nessa altura, me deixassem de falar, situação que se projetou até aos dias de hoje», refere em jeito de confidência. Antigo operário da fábrica de produtos corticeiros, «João da Carapinha», de seu nome João Rodrigues dos Santos, adianta ainda que tudo se devia à bondade de alguns funcionários, incapazes de dizer não a quem quer que fosse, logo aproveitada de forma abusiva por meia dúzia de cooperantes que dela se valiam para cravar o calote. «Por via disso, uma ocasião, tive de ordenar a suspensão temporária de um trabalhador, por
este não ter respeitado as diretrizes emanadas da direção quanto ao fornecimento a certo cooperante, cujo avio se encontrava cortado devido à sua persistente falta de liquidação das dívidas contraídas. Foi a única forma de os forçar a acatar a orientação traçada pelos corpos gerentes e, em última instância, repor a autoridade, ilegitimamente ignorada por atitudes de compaixão para quem dela não era merecedor», sustenta o antigo dirigente cooperativo.
Caixa de Previdência da Cooperativa valeu a muita gente de Amora Solicitado a esclarecer os objetivos e o modo de funcionamento da Caixa de Previdência existente no quadro da instituição, este ex-responsável da União Amorense assegura que a principal intenção de avançar para a sua criação foi a de atenuar as situações de miséria que afetavam alguns lares da localidade, devido à circunstância de o chefe de família se encontrar doente e, por essa razão, sem meios de prover ao sustento do seu agregado. «Era, a nosso ver, um modo de garantir o pão de cada dia a quem momentaneamente não o podia ganhar. Uma contingência agravada pela total demissão com que o Governo de então encarava as questões sociais dos trabalhadores. Assim, para facilitar a sua eficácia, a referida Caixa de Previdência funcionava autonomamente, sendo a gestão dos fundos que lhe estavam afetos feita por uma comissão constituída por Amélio Batista Cunha, seu primo, José Carlos Cunha e por Leonardo Pereira Nunes, limitando-se a direção, depois de ter em seu po-
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der o respetivo comprovativo médico, a emitir a competente autorização para o fornecimento diário dos géneros, até ao montante a que o beneficiário em causa tinha direito», realça João Rodrigues dos Santos. Reportamo-nos, claro está, a um tempo em que os salários diários praticados pelo empresariado eram extremamente baixos, colocando o operariado local no limiar da penúria, bastando uma curta ausência ao trabalho por motivos de saúde para que esta se concretizasse em toda a sua plenitude.
O entusiasmo com que João Rodrigues dos Santos, ou, se se quiser, «João da Carapinha», se entregou à defesa dos interesses da Cooperativa Progresso e União Amorense foi de tal ordem que a sua passagem pela direção da instituição lhe valeu um punhado de animosidades junto dos cooperantes.
Por tudo isso, é legítimo afirmar que a instituição valeu a muita gente, especialmente aos mais desfavorecidos, aqueles que apenas tinham de seu a força dos braços que a natureza lhes deu, e que, por isso mesmo, se viam aflitos para levar uma vida com um mínimo de dignidade.
«É evidente que então, como hoje, também havia oportunistas que procuravam tirar partido dos benefícios que a Caixa oferecia aos beneficiários, utilizando na concretização dos seus fraudulentos objetivos todo o tipo de expedientes», diz João Rodrigues dos Santos. «Entre eles, o mais habitual era o recurso à baixa médica para usufruir do subsídio atribuído pela Previdência da Cooperativa e, simultaneamente, obter outras fontes de rendimento através da realização de biscates. Mas, curiosamente, quem mais utilizava este estratagema era quem menos precisado estava», afirma. Ante o que nos é relatado por estes dois elementos ligados à União e Progresso Amorense, poder-se-á concluir que, para lá da sua atividade comercial, alicerçada, de resto, numa política de redução de preços, visando facilitar o acesso aos produtos de primeira necessidade por parte de quantos, nessa época, viviam no reduzido núcleo habitacional de Amora, a instituição revestia-se ainda de uma outra função social de grande relevância. «Paradoxalmente, quando todos acreditávamos que estariam, finalmente, reunidas as condições para que esta afirmasse a sua pujança, devido ao derrube do fascismo e à consequente remoção dos entraves que o regime levantava ao movimento cooperativo, foi quando começámos a observar o seu definhamento», confessa João Rodrigues dos Santos, numa sentida expressão de pesar.
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A génese do seu aparecimento radica na constituição de uma comissão formada por um grupo de operários que nos início dos anos 1950 habitavam o antigo lugar da Cruz de Pau e tencionavam promover umas festas populares naquela zona do concelho, ideia que, desde logo, não obteve os favores do então presidente da Câmara do Seixal, atitude consubstanciada num sem número de entraves colocados à prossecução dos desígnios que os motivava. As adversidades, ditadas exclusivamente pela circunstância de se tratar de um projeto liderado por um conjunto de pessoas afetas ao operariado local, foram insuficientes para os demover de levarem a cabo os seus intentos, posto que ante a ausência de fundamentação que justificasse as dificuldades criadas à autorização dos aludidos festejos, por parte daquele responsável camarário, imediatamente avançaram com a indicação de que parte dos fundos conseguidos através da organização das festas seriam canalizados para instituições de assistência. Embora não se saiba se terão concretizado a intenção manifestada junto do administrador do concelho, ou se tal argumento fora unicamente evocado como um mero instrumento retórico, visando ultrapassar a má vontade que este evidenciava, o certo é que conseguiram debelar os empecilhos com que, até esse momento, se haviam confrontado. Obtida luz verde para a realização dos festejos, aquele pequeno lugar constituído, à época, por um pequeno aglomerado habitacional rodeado de quintas e hortas prontamente começou a atrair durante os dias em que as festividades decorriam milhares de forasteiros, os quais lhe conferiam um novo colorido e lhe emprestavam
um movimento que contrastava, em absoluto, com os restantes dias do ano. Uma animação que se manteve cerca de uma dúzia de anos. Desse núcleo de entusiastas nasceu a vontade de avançar para a criação de uma estrutura coletiva que respondesse à necessidade de prover ao recato dos apetrechos utilizados nas referidas festas, designadamente postes de madeira, fios elétricos, lâmpadas, flâmulas e tudo o mais, alugando para o efeito um terreno, onde construíram um barracão e no qual passaram a reunir-se. Numa dessas reuniões, alguém aventou a ideia de procederem à fundação de um clube, sugestão recebida com agrado pelos participantes que imediatamente o denominaram de Clube Recreativo da Cruz de Pau. Vencidas as muitas canseiras resultantes do processo de elaboração e posterior aprovação pelo governador civil dos estatutos da novel instituição, nascia oficialmente, a 1 de novembro de 1954, esta popular coletividade. Para satisfação dos poucos moradores da zona e maior contentamento da juventude local que via nesse aparecimento o despontar de um novo agente capaz de aumentar a organização de festas, cavalhadas e bailaricos. Funcionando durante largas décadas num edifício construído pelos fundadores da agremiação, numa língua de terreno contígua ao aludido barracão e integrada na parcela que haviam alugado, só no final dos anos 1980 abandonou aquele imóvel graças à doação pela câmara municipal de um novo imóvel, com o intuito de lhe proporcionar outro grau de funcionalidade e o desenvolvimento das suas atividades desportivas, recreativas e culturais, com a dignidade
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que a sua história e a memória dos seus fundadores, legitimamente, merecem.
António José Leite Ativista das festas populares, dedicado associado e antigo dirigente do Clube Recreativo da Cruz de Pau
dicado nesta localidade do concelho do Seixal desde 1950, ano em que imediatamente integrou a chamada Comissão Organizadora das Festas Populares da Cruz de Pau, um dos mais concorridos festejos, ao tempo, realizados na área do município.
Comissão de festas da localidade está na origem do clube
Testemunha fidedigna de um dilatado período da vida da popular instituição da Cruz de Pau, devido à dedicação que no decurso de várias décadas lhe dispensou, António José Leite, 74 anos, é um dos diversos associados e fundadores do Clube Recreativo da Cruz de Pau cujo pulsar se confunde, em certo período da história da coletividade, com o da própria agremiação. Não é, assim, despiciendo que tanto na ótica de muitos dos seus consócios como na dos corpos gerentes da agremiação seja considerada uma das pessoas que mais profundamente conhece as vicissitudes por que passou o referido clube em dada época da sua existência, qualidade a que se associa ainda a modéstia e a descrição que sempre caracterizaram a sua conduta pessoal e associativa. Homem simples, que tem na generosidade com que se entregou à causa coletiva um dos seus mais importantes atributos, quase se sente envergonhado quando solicitado a revelar os acontecimentos que a memória de tão prolongada ligação registou. É natural de Cabeceiras de Basto, mas ra-
«A festa tinha lugar no decurso do mês de junho, embora o trabalho preparativo se iniciasse em janeiro, com a receção das propostas de marcação do terrado por parte dos feirantes que aqui afluíam», conta. «Tratava-se de um acontecimento que, oficialmente, demorava três dias, mas que se prolongava sempre por mais um, este último tradicionalmente destinado à arrematação das derradeiras prendas do bazar». As festas eram levadas a efeito no local onde hoje se situa o Largo da Cruz de Pau, espaço que, pela sua amplitude e configuração, permitia a colocação das tradicionais barracas de tiro, os carrosséis e as pistas de automóveis, numa zona que se estendia até às imediações da taberna ainda ali existente. Noutra zona, que se projetava da esquina da Estrada dos Foros, passando pelo terreno onde se situa o centro comercial, as barracas de comes e bebes, bugigangas, quinquilharia, artesanato, etc. ocupavam uma pequena língua de terreno da atual Rua Infante D. Augusto e que se projetava até quase ao depósito de água. O coreto, construído em madeira para receber as atuações das bandas filarmónicas que animavam as festividades, encontrava-se implan-
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tado num terreiro das proximidades. «Tudo aquilo eram terrenos cujos proprietários não aproveitavam para o cultivo fosse do que fosse, autorizando-nos que os utilizássemos para fazer as festas», refere António José Leite, que adianta ter sido no seio dessa comissão que, anos mais tarde, nasceu a ideia de se formar um clube. «A ideia de transformarmos a comissão numa instituição de cariz associativo apenas surgiu anos depois, fruto da constatação de que, sempre que necessitávamos de proceder ao apuramento das contas de cada edição das festas, tínhamos de nos reunir na antiga taberna do velho Manuel Simões (pai de António Simões, jogador do Benfica e elemento da seleção nacional que representou Portugal no Campeonato do Mundo, realizado em Inglaterra, em 1966), com todos os inconvenientes daí resultantes», diz o conhecido associado do CRCP. «Para obviarmos isso, tomámos o aluguer de um terreno no qual funcionara uma antiga oficina de boquilhas, propriedade do esposo da dona daquele espaço, mas desativada por morte do seu utilizador, junto à qual se encontrava uma barraca onde guardávamos o material com que armávamos o arraial, uma vez que esse aluguer se processou em nome da referida comissão, entidade que continuava a assumir a responsabilidade pela organização das festas, como, aliás, sucedeu nos anos subsequentes».
Manuel Simões, pai do internacional de futebol António Simões e proprietário de uma antiga taberna na localidade, estabelecimento que funcionou como a sede da Comissão das Festas Populares da Cruz de Pau, entidade que estaria na génese do clube recreativo. Tal como Celestino da Cunha Ribeiro, o papel deste comerciante foi igualmente determinante para o aparecimento da coletividade.
Bailaricos e serões televisivos, os grandes polos de atividade Dada a natureza operária da maioria dos elementos que constituíam a aludida comissão e a baixa escolaridade que quase todos eles possuíam, houve alguns embaraços à oficialização da coletividade, motivo bastante para que os primeiros tempos da sua existência se tenham caracterizado por um funcionamento semiclandestino, já que apesar de se encontrar constituído, ainda não gozava do competente reconhecimento oficial, devido à ausência dos respetivos estatutos.
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tância que o segundo televisor a chegar a esta terra se encontrava nas precárias instalações da agremiação», recorda António José Leite. «O outro estava instalado no café do “Bencelau”, o primeiro estabelecimento do género existente na localidade», acrescenta. «Aliás, nesse tempo, não havia o hábito de cobrar bilhetes de ingresso, antes colocávamos à entrada uma mesa com um livro de rifas para uma garrafa de ginja ou de anis e cada uma das pessoas que lá ia passar o serão para ver a televisão comprava uma rifa, no valor de dez tostões (0,05 €). Dessa maneira, obtínhamos não só o dinheiro para pagar mensalmente a prestação do televisor, como ainda captávamos alguns fundos para o funcionamento da sede», esclarece o empenhado associado.
Agremiação concita o interesse de todos os habitantes do lugar
António José Leite, associado do Clube Recreativo da Cruz de Pau, cuja vivência, em dado momento da sua vida, se confunde com a da própria coletividade, especialmente nos tempos que antecederam a sua oficialização e nos anos subsequentes à sua legalização enquanto associação de cariz recreativo.
«Foi, de resto, nesse terreno, que passámos a organizar os bailaricos de verão, embora, volta não volta, nos víssemos forçados a parar o baile para regarmos o chão, posto que a poeira era tal que as raparigas não se viam com tanto pó», conta o ex-funcionário da Fábrica de Pólvora de Corroios. «Não obstante o clube estar numa fase anterior à sua legalização, a realização daquela benfeitoria constituiu uma obra de vulto para a localidade, uma vez que, naquele tempo, não havia mais nada com que as pessoas se divertissem. E de tal modo se refletiu essa impor-
Ante este cenário, caracterizado, de resto, pela reduzida oferta de motivos de diversão, os bailes assumiam-se como uma das poucas alternativas que se colocavam à juventude, mas a circunstância de estes se realizarem num local de terra batida levantava alguns inconvenientes, devido à poeirada que a evolução dos pares produzia. Neste contexto, resolveram cimentar o mencionado espaço com o objetivo de o dotar de condições que permitissem obviar a tal situação, obra para a qual contaram com a preciosa ajuda da firma A. Silva & Silva, que a par de lhes ofertar 20 sacos de cimento, lhes assegurou ainda o transporte de algumas camionetas de gravilha para o efeito.
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Personalidade a quem a agremiação muito deve, quer por via dos apoios que lhe concedeu ainda antes de esta ter existência formal, quer pelo empenho com que acompanhou os seus primeiros passos, Celestino da Cunha Ribeiro, para além de fundador da instituição, é ainda um associado muito lembrado pelos antigos dirigentes da coletividade.
A este propósito, diga-se, que quando começaram o fecho do recinto quem lhes emprestou a camioneta com que transportaram para a Cruz de Pau os postes de madeira comprados num estaleiro situado próximo da velha estação de comboio do Seixal foi, precisamente, a Fábrica de Pólvora, a instâncias do seu mestre geral, Celestino da Cunha Ribeiro, e do já referido comerciante Manuel Simões. O mesmo aconteceu com a doação de um elevado número de bidões para a cobertura.
Obras de beneficiação das instalações torna-o alvo de um processo judicial Um conjunto de benfeitorias que não colheram, no entanto, a simpatia da proprietária do terreno, a qual decidiu apresentar no tribunal
de Almada um processo contra António José Leite, por alegadamente haver cimentado um terreno de semeadura. «Foi com natural surpresa que certo dia recebo uma intimação para comparecer no tribunal por via de uma ação que havia dado entrada naquela comarca e na qual eu era apontado como réu. Uma notificação que me deixou profundamente confuso, motivo bastante para que me deslocasse ao tribunal a fim de saber, afinal, do que se tratava», conta «Eis qual não é o meu espanto quando o escrivão me informa que o processo em causa mais não era do que uma ação de despejo, informação que ainda mais aumentou a minha confusão, posto que a única coisa que tinha alugada era a casita onde vivia, além de que a respetiva renda se encontrava em dia», salienta António José Leite. «Um imbróglio que se acentuava à medida que o funcionário judicial prestava novos informes acerca do processo, já que a dado momento me referiu que o motivo da citada ação se prendia com um terreno de semeadura, que eu arrendara à Sr.ª D. Henriqueta, sito na Rua Infante D. Augusto, Cruz de Pau. Informado acerca dos pormenores do caso, esclareci-o que a propriedade em causa não era nenhum terreno de semeadura, mas sim o local onde funcionava a coletividade, além de que o arrendatário não era eu, mas sim a agremiação, embora esta não se encontrasse, ao tempo, formalmente oficializada e da qual apenas era um mero diretor. Ouvindo isto, o escrivão aconselhou-me a arranjar um advogado para contestar a mencionada ação, sob pena de virmos a ser condena-
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dos e lançados na rua, eventualidade que me encheu de preocupação, porquanto deitava por terra não apenas todo o trabalho que, até essa altura, havíamos desenvolvido, como o significativo investimento feito tendente a melhorar as condições oferecidas aos associados», sublinha.
Instigador da legalização da coletividade e seu dirigente durante 22 anos Chegado à Cruz de Pau, imediatamente tratou de convocar os demais elementos da direção para uma reunião com o objetivo de apreciarem a situação criada com a existência de tal processo e qual a posição a tomar: contestar a ação ou deixar que o despejo viesse a consumar-se, com as consequências daí decorrentes. Colocados perante este dilema, logo Celestino da Cunha Ribeiro, por sinal primo da autora da referida ação, opinou no sentido de que se avançasse para a contratação de um advogado que tomasse em mãos a tarefa de contestar os fundamentos aduzidos pela senhoria e efetuasse a defesa do clube, missão confiada a Correia Tavares, que ao aceitar o processo lhe solicitou a indicação de várias testemunhas. «Para tanto, foram indicadas três pessoas. Duas delas, Celestino da Cunha Ribeiro e Natalina Simões, irmã de António Simões, antigo futebolista internacional do Benfica, um e outro primos da autora da queixa, cujos depoimentos foram determinantes para que ganhássemos esta batalha», informa. Tamanho aperto, resultante, em larga medida, da circunstância de a coletividade não se
encontrar oficializada, fez despertar nos seus responsáveis a necessidade de acelerarem o processo conducente à sua legalização, em ordem a evitar o aparecimento de novos sobressaltos. Utilizando como modelo os estatutos de uma agremiação congénere, prontamente elaboraram o mencionado documento que submeteram à aprovação do Governo Civil de Setúbal, entidade que sem delongas o apreciou e despachou favoravelmente. Ligado aos órgãos sociais do clube durante 22 anos, 16 dos quais ininterruptamente, António José Leite lembra que tão prolongada permanência em cargos diretivos não resultava de qualquer sentimento de apego ao poder, mas sim da imperiosa vontade de evitar que a coletividade caísse num vazio diretivo, dada a inexistência de listas, sempre que havia eleições. «Mau grado a profusa divulgação da convocatória eleitoral por diversos locais da terra, sempre que chegava a noite da eleição dos novos corpos sociais, nunca aparecia nenhuma lista. Tal quadro forçava-nos, invariavelmente, a ter de organizar, à última hora, uma lista entre os associados presentes. Essa foi a razão que me levou, tal como a outros consócios, a integrar durante tantos anos os corpos gerentes do Clube da Cruz de Pau», esclarece. «De outro modo, a coletividade fechava as portas e tínhamos de entregar as chaves à câmara, situação que jamais poderíamos admitir. Deus nos livre de alguma vez permitirmos que uma coisa dessas viesse a acontecer! Nem pensar! Custasse lá o que custasse!», assevera António José Leite. Fruto dessas contingências e do seu perma-
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A par das festas, do arraial popular e dos habituais bailaricos, a realização de excursões abertas não apenas a associados do clube mas também a toda a população do antigo lugar era outra das iniciativas que a agremiação, por vezes, levava a efeito.
nente espírito de entrega aos valores associativos, expressos na disponibilidade para participar na vida da sua coletividade, acabou por ser considerado como que um presidente vitalício do CRCP, o que lhe acarretava um tremendo desgaste, quer a nível pessoal, quer em termos familiares. «É claro, para isso, muito contribuía ainda o facto de a localidade ser habitada por um reduzido número de pessoas. Ao tempo, não havia mais que meia dúzia de casas, tudo o resto eram quintas agrícolas», recorda o ex-dirigente. «Só mais tarde, com a urbanização de muitas delas, é que a população começou a crescer». Tal quadro não impedia, todavia, o clube de se assumir como o grande polo de diversão dos moradores da Cruz de Pau, uma vez que, para além dos serões televisivos e dos bailaricos que
todas as semanas promovia, organizava ainda as festas da localidade, evento anual que atraía gente de todo o concelho.
«Espetáculos de música e cavalhadas traziam à Cruz de Pau milhares de pessoas» «A preparação dos festejos era tarefa que nos exigia não apenas muito esforço físico, como também um elevado esforço financeiro, já que não contávamos com o apoio de nenhuma entidade, antes pelo contrário. Por cada vara que espetávamos no chão para montar o arraial tínhamos de pagar 2$50 (0,01 €) à câmara. Além disso, o regulamento municipal que, ao tempo, existia determinava ainda que pagássemos 10 por cento da receita obtida. Quanto às varas,
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pagávamos, agora os 10 por cento é que não. Se o fizéssemos, o que clube ganhava não dava para pagar as despesas que tínhamos», confessa António José Leite. Realizados em junho de cada ano, os festejos começavam, no entanto, a ser preparados logo em janeiro, com a receção das reservas enviadas pelos feirantes que ali afluíam, posto que se tratava de um excelente meio de negócio, sendo, por isso, cada palmo de terra disponível muito disputado pelos vendedores ambulantes. «Para isso, muito contribuía o aliciante programa de variedades que elaborávamos, o qual atraía todos os dias milhares de forasteiros. Dele constava a atuação de várias bandas, entre elas a de Amora, a de Arrentela e, um ano, até conseguimos trazer a banda da Incrível Almadense», refere. «As festas duravam quatro dias, pelo que em cada noite atuava uma delas. Na derradeira noite de festejos, tradicionalmente reservada à venda dos últimos artigos da quermesse, atuava um conjunto musical». «Outro motivo de grande animação», anota António José Leite, «era o tradicional torneio de cavalhadas, ou melhor, de burricadas, uma gincana semelhante a um torneio medieval no qual o cavaleiro, munido de um pau e, no caso presente, montado num jumento, procurava enfiar a lança que empunhava numa argola pendurada num forte cabo, fixo numa e noutra extremidade por varas. O objetivo seria o de arrecadar o prémio que a argola tivesse. Só que muitas vezes, ao contrário de lograrem o apetecível prémio, saia-lhes um cântaro de água, pelo que, quando o hábil cavaleiro lograva desferir o golpe certeiro, obtinha como recompensa uma valente molhade-
la», esclarece o nosso interlocutor. «Uma das razões que tornavam as cavalhadas num acontecimento que entusiasmava o público e os participantes radicava nos convidativos prémios angariados pelas comissões de fundos (masculina e feminina) durante um peditório realizado junto do comércio local e dos proprietários das várias quintas então existentes. Mas não se pense que o dito peditório se limitava apenas à zona da Cruz de Pau, não senhor, estendia-se até Vale de Milhaços.
Enquanto as atividades lúdico-recreativas marcaram um período áureo da vida do popular clube, a atividade cénica desenvolvida pelo seu Grupo de Teatro, dirigido por José Batista, marcaria igualmente uma época de intensa intervenção cultural. A foto mostra-nos, pois, esse grupo de jovens amantes da arte de Talma.
E porque o trajeto era feito a pé, carregando uma jaula para recolher os animais, o grupo que nele tomava parte incluía rapazes e raparigas, acompanhados sempre por um membro dos corpos gerentes para evitar eventuais faltas de respeito. No final do dia, um associado detentor de uma carroça efetuava a recolha da mencionada jaula. Quando aquela chegava, era um regalo ver a quantidade de animais que tra-
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zia. Ele eram latas de conserva, galinhas, coelhos, frangos... tudo, coisas muito apreciadas nesse tempo, porque não chegavam todos os dias à mesa da maior parte da população», refere António José Leite.
Contração de doença pulmonar determina o seu afastamento do clube e, com ele, o fim das festas Antigo funcionário da Fábrica de Pólvora, entidade da qual se demitiu em 1971, porque, segundo diz, o ordenado que auferia naquela unidade fabril mal dava para comprar uma camisa, optando, então, por se estabelecer no ramo da restauração, abrindo um café, atividade esta que ao fim de 13 anos se viu forçado a abandonar, por via de ter contraído uma doença pulmonar que o deixou bastante debilitado. «Face à falta de saúde em que me encontrava, tive igualmente de deixar a vida associativa, dado que a enfermidade de que padecia exigia muito repouso, situação incompatível com o desempenho do cargo que assumia no quadro da coletividade», conta. «Por essa razão, decidiu-se realizar uma assembleia geral com o objetivo de proceder à substituição dos corpos gerentes, mas as pessoas que aceitaram integrar essa lista só o fizeram na condição de o clube deixar de organizar as festas populares, porque não estavam dispostos a dar-se aos trabalhos que a promoção dos festejos implicava. À falta de outras alternativas, tivemos de aceitar essa imposição e, com ela, o fim daquela tradição», diz, num misto de impotência e conformação.
Mesmo assim, quando as forças permitiam, não deixava de dar um salto ao clube da sua afeição. «O amor que lhe tinha falava mais alto», sustenta. Um sentimento que o impedia de deixar de acompanhar a vida da coletividade que ajudara a fundar e à qual dera parte significativa da sua vida, recebendo em troca uma vasta experiência associativa. Experiência essa que se revelaria muito útil aos seus sucessores, sempre que tinham entre mãos algum caso mais delicado para resolver.
As atuações do Grupo Amador de Teatro constituíam um dos grandes acontecimentos em matéria de intervenção cultural levada a efeito pela coletividade. Um trabalho que colhia o agrado da massa associativa, a qual esgotava a lotação do antigo salão de festas. A foto mostra-nos a cena de uma das diversas peças montadas pelo mencionado agrupamento.
Não é por isso despiciendo que os consócios lhe hajam atribuído o título de sócio honorário, um gesto que visou, objetivamente, retribuir-lhe tudo quanto fez pela agremiação.
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Espetáculos de benefício, outra vertente da agremiação Sócio número três do Clube Recreativo da Cruz de Pau e uma das suas mais populares figuras, António José Leite afirma ainda sentir algumas saudades desses tempos associativos, apesar das privações que marcavam o dia a dia de quem vivia da sua força de trabalho. Uma consequência direta dos baixos salários que se praticavam à época. «Um tempo que, mau grado as condições de vida oferecidas à maioria dos habitantes do concelho, essencialmente operários, fomentava, contudo, um maior espírito de união entre aqueles que sobreviviam unicamente do seu esforço braçal», realça. «Prova disso eram os frequentes bailes, as cegadas ou outro tipo de espetáculo em benefício de pessoas que por mor de se encontrarem doentes não podiam prover ao sustento dos seus familiares. Chegavam a realizar-se cinco e seis por ano. Durante o período em que exerci funções diretivas no clube, raro era o ano em que isso não sucedia.» Contrariamente ao que se verificava com os serões televisivos, esse tipo de acontecimentos processava-se com ingressos pagos, dado o cariz eminentemente solidário que presidia à sua promoção. «As entradas custavam 2$50 (0,01 €), valor que, à época, assumia algum significado na bolsa de muitas pessoas, ainda que tal quantia seja hoje insignificante. Um valor que ninguém se recusava a pagar, já que até os artistas que neles atuavam o faziam graciosamente. E quando o programa desse benefício incluía baile, o con-
junto musical Luna, inteiramente formado por sócios do clube, nunca faltava», realça o antigo dirigente da popular coletividade. Não se pense, porém, que a atividade do Clube Recreativo da Cruz de Pau, no período a que se reporta o depoimento deste seu entusiasta associado, se limitava a promover bailaricos e a realizar as festas populares. Ela estendia-se ainda ao teatro e ao desporto, designadamente ao futebol. «Tínhamos também uma boa equipa de futebol de onze que disputava torneios populares, inteiramente constituída por rapazes da terra e na qual jogaram António Simões e seu irmão Chaninha. Treinavam, então, numa espécie de campo, situado ao fundo da Azinhaga do Soutelo e efetuavam os jogos no recinto do Cova da Piedade», diz António José Leite, terminando, assim, o seu vivo depoimento.
José Ramos, vulgo «José Lino» Memórias e vivências de um ativista do Clube da Cruz de Pau José Jacinto Chaveiro Ramos, vulgarmente tratado pelos habitantes da localidade por «José Lino», devido ao nome de seu pai, é um dos fundadores do Clube Recreativo da Cruz de Pau, condição a que se juntou ainda a circunstância de ser um dos elementos que integraram a equipa de futebol que representou a agremiação em diversos torneiros populares, frequentes nas décadas de 1950 e 1960.
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Entusiasta da vida associativa, devido ao espírito de camaradagem que se estabelecia entre todos aqueles que frequentavam a agremiação, este funcionário da Junta de Freguesia de Amora desde muito novo se interessou pela mundividência que tal ambiente lhe proporcionava. Segundo este associado, a génese do clube esteve num grupo de homens, todos mais idosos do que ele, amantes da caça, os quais se encontravam regularmente na antiga taberna, propriedade do pai do jogador de futebol António Simões, estabelecimento que acabou por funcionar como a sede do grupo, para combinarem os locais onde iam realizar as caçadas, bem como as suas habituais almoçaradas. «Tal grupo, denominado pelos próprios de Os Gatos Pingados, numa clara alusão ao estado em que geralmente todos ficavam no final de cada patuscada, começou, a dado momento, a revestir-se de outra organização, em consequência da qual começou a alargar o âmbito da sua atividade, promovendo, designadamente, bailaricos num terreno contíguo às traseiras da mencionada casa comercial». O êxito dessa iniciativa, fundado numa forte adesão quer dos habitantes do lugar, quer de gentes provenientes de outras localidades vizinhas, motivou alguns dos elementos do referido grupo a aventarem a hipótese de organizarem umas festas populares, à semelhança das que se realizavam noutros locais do concelho.
Descascar pinheiros para o arraial, um dos seus primeiros trabalhos «A proposta colheu vencimento, pelo que logo decidiram meter mãos à obra, começando por pedir aos guardas dos pinhais então envolventes à Cruz de Pau uma série de troncos de pinheiro para se fazerem as varas que suportariam o arraial. Obtida a madeira, cujo transporte se efetuou em carroças desde os locais de abate até às imediações do espaço onde o aludido grupo funcionava, havia, pois, que proceder à respetiva descasca, tarefa na qual também tomei parte», refere. «O problema é que, a par do pinho constituir uma planta que deita muita resina, razão suficiente para que nos sujasse bastante, ainda por cima foi colocada ao sol, situação que fez aumentar ainda mais a nossa missão, já que, quanto mais sol a madeira apanhava, mais resina libertava. Uma dor de cabeça. Mas enfim, lá se “desenrascou a onça” e se montou a primeira edição das festas», conta José Jacinto Ramos. Elemento da comissão de jovens, constituída com o objetivo de ajudar os mentores da iniciativa a levar a cabo os seus intentos, o nosso interlocutor informa igualmente que foi esta entidade quem procedeu à construção do antigo coreto. Uma estrutura em madeira, coberta com chapas feitas de bidões oferecidos pela Fábrica de Pólvora.
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Aluguer do barracão custava 250$00 por mês
Membro da comissão de jovens criada com o intuito de apoiar os mentores da construção do coreto da Cruz de Pau, José Jacinto Ramos foi um dos habitantes do pequeno lugar afetos ao clube que assistiram ao ato inaugural do referido espaço, cerimónia realizada em junho de 1952. Tratou-se de uma obra concebida por Linares Ferreira e cuja inauguração registou grande adesão popular.
«A obra, concebida e executada por dois rapazes que integravam a dita comissão, incluiu ainda a construção de uma quermesse, destinada à comissão de raparigas. Finalizada a festa, achou-se por conveniente falar-se com a proprietária do barracão onde, anos depois, viria a funcionar formalmente o clube, no sentido de no-lo alugar para nele se guardarem os materiais utilizados na montagem dos festejos, nomeadamente as varas e o arraial, já que se tratava de uma elevada quantidade de barrotes e de uma enorme extensão de fio elétrico e lâmpadas, que se estendia do depósito de água até ao Largo da Cruz de Pau, projetando-se ainda pela Rua Infante D. Augusto e por um troço de terreno então existente no lado esquerdo do atual largo», informa José Jacinto Ramos.
Acordado o aluguer pelo valor de 250$00 por mês, cerca de 1,25 €, logo que arrumados os tarecos, prontamente se tornou no local de encontro dos ativistas das festas e d’Os Gatos Pingados, razão bastante para que, volvido pouco tempo, ali fosse instalado um pequeno balcão para atender os convivas que pretendessem «molhar a palavra». Daí à constituição do CRCP foi um passo. Até porque a dado momento a senhoria levantou um contencioso tal, visando desalojá-lo do referido barracão, que chegou ao ponto de se recusar a receber a renda, pelo que esta passou a ser mensalmente depositada em seu nome, na dependência do Seixal da Caixa Geral de Depósitos. «Tamanho diferendo, veio, afinal, antecipar a legalização da instituição, enquanto coletividade, estatuto que até essa altura não dispunha, dado funcionar com um carácter informal, não obstante ser gerida por órgãos sociais eleitos entre os aderentes», diz este associado. Formalizada a constituição da agremiação, foi seu primeiro presidente Celestino da Cunha Ribeiro, que empreendeu uma série de benfeitorias, tais como a ampliação do bar, um compartimento para a direção e a construção de uma vedação, no terreno situado nas traseiras do aludido barracão, no qual tinham lugar os bailaricos, além da montagem de um palco. «A construção do mencionado bar custou, ao tempo, 1700$00 (8,50 €), valor que incluía já o material e a mão de obra especializada, no caso um ladrilhador para assentar os azulejos que
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revestiam o balcão, visto que na direção não havia ninguém que exercesse essa arte.» Fundador de uma pequena biblioteca no CRCP, iniciativa na qual contou com a colaboração de dois outros companheiros, José Jacinto Ramos refere igualmente que o apogeu das festas da localidade se registou entre 1953, ou seja, no ano anterior à constituição oficial do clube, e 1958, ano em que deixou o serviço militar. «Durante esse período, as festividades populares da Cruz de Pau chegaram a ser consideradas o maior acontecimento do género em todo o distrito de Setúbal. Chegou mesmo a pedir meças à feira de Santiago. Vinha gente da Charneca de Caparica, Corroios, Santa Marta, Vale de Milhaços, Paio Pires, Seixal, Arrentela, Fernão Ferro e até de Sesimbra e Setúbal. Depois disso, embora se continuassem a realizar, as festas não se revestiam da mesma imponência. Poder-se-á afirmar que não passavam de uma réplica daquilo que haviam sido. Por essa razão, as pistas de automóveis, os carrosséis e o poço da morte, entre outros motivos de diversão, deixaram de marcar presença», relata em tom pesaroso.
Celestino da Cunha Ribeiro, um homem determinante na afirmação do Clube Recreativo da Cruz de Pau É, igualmente, nesse período que no âmbito da popular agremiação ocorre a formação da primeira equipa de futebol, cujo funcionamento se processa de modo autónomo, tendo os respetivos equipamentos sido adquiridos na Casa Sena, Lisboa, por 5200$00 (26 €).
«Tal importância constituía, ao tempo, uma verba muito elevada para as posses da coletividade, razão pela qual, embora os equipamentos tivessem o emblema do CRCP, a sua aquisição foi feita a expensas de cada um dos catorze elementos que a constituíam, mediante a apresentação de um cartão de crédito emitido por uma casa comercial da localidade, em que esta se obrigava a responder pela eventual falta de pagamento dos artigos levantados, ao mesmo tempo que se comprometia a receber de cada um as respetivas prestações, no valor de 2$50 (0,01 €) por semana, o mesmo que pagávamos ao clube pela quota mensal», esclarece José Jacinto Ramos. Referimo-nos, claro está, a uma época em que a instituição possuía, no dizer deste associado, cerca de 50 sócios, número que apesar de hoje se afigurar insignificante, representava, então, mais do que a totalidade dos moradores do lugar, ao tempo constituído por umas dezenas de casas de habitação e meia dúzia de casas comerciais, duas ou três das quais, tavernas. Ante a ausência de campo próprio, disputavam os jogos quer no recinto do Cova da Piedade, quer no do Ginásio do Sul, hoje pertença do Beira-Mar de Almada, quer ainda no do Ginásio de Corroios, entidade que lhes cedia as instalações desportivas em condições economicamente mais vantajosas, dado que não dispunha de balneários. Em função disso, equipavam-se nas traseiras de uma taverna situada à entrada daquela localidade. «Além disso, fazíamos todas as deslocações a pé, carregando com o saco dos equipamentos», assinala José Jacinto Ramos. «No final dos jogos, cada qual levava o seu para casa, a fim de
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ser lavado e na terça-feira seguinte tinha de o entregar ao presidente do clube», realça. «Paralelamente, organizávamos também alguns torneios populares, utilizando para tal o campo da Medideira, cedido pelo Amora Futebol Clube. Aliás, por essa altura tínhamos uma equipa que chegou a bater a formação do Amora, então um dos mais fortes conjuntos do concelho, por três bolas a zero.»
sua posterior transformação em coletividade de cultura e recreio. «A ele se deve, em certo sentido, o aluguer do barracão primeiramente utilizado pela mencionada comissão para guardar o material utilizado na montagem do arraial e, numa fase ulterior, se estabeleceu a sede da coletividade». A par das atividades recreativas já referidas, desenvolvidas nessa época pelo CRCP, outra há que mobiliza os associados da agremiação, em especial os mais novos. Tratava-se dos habituais autos carnavalescos, género que colhia grande adesão junto da juventude e gozava da simpatia entre os mais velhos.
Ameaças de prisão pairaram sobre os membros da comissão juvenil Para além de José Jacinto Ramos, que jogava na posição de guarda-redes, entre os atletas que integravam a equipa de futebol do Clube Recreativo da Cruz de Pau figurava o jovem António Simões – o segundo a contar da direita, na fila de baixo –, atleta que, anos mais tarde, se tornaria num dos mais destacados jogadores do Sport Lisboa e Benfica e da seleção nacional de futebol que representou Portugal no Mundial de Inglaterra.
Uma atividade que se prolongou até meados da década de 1960, altura em que por via de quase todos os seus elementos terem entrementes constituído família optaram por entregar os destinos dessa secção aos mais novos, confiando-lhes igualmente todo o equipamento desportivo que haviam comprado. «Daí para a frente, não sei o que fizeram ao material que lhes deixámos», diz, enquanto sublinha o relevante papel que, a seu ver, Celestino da Cunha Ribeiro assumiu em todo o processo de criação da comissão de festas e na
No entanto, esse tipo de brincadeiras, fruto da irreverência juvenil, acabaria uma ocasião por causar alguns embaraços àqueles que nela participaram, já que não atenderam às condições políticas que, ao tempo, se registavam e às fortes ligações existentes entre o regime de então e a igreja católica, situação que os levou a recear a prisão. «Essa história foi motivada pela organização de um cortejo da queima do Judas, manifestação popular censurada pelo governo de Salazar, que a pretendia extinguir. O aludido cortejo “fúnebre” inteiramente constituído por rapaziada da terra integrava, entre outros figurantes, uma “viúva”, que carpia a sua mágoa com um tal alarido que chamava a atenção de toda a gente, um padre e um sacristão. Este último, munido de um pincel, tinha como principal função salpicar
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os demais elementos que participavam no desfile, sempre que o “pároco” fazia uma pausa no sermão que ia proferindo aos “fiéis”. Sucede, porém, que alguém não terá gostado do teor da prédica e resolveu participar às autoridades, motivo suficiente para que no dia seguinte fôssemos intimados pelo cabo da GNR do Seixal a comparecer no posto, convocatória que nos provocou fundados calafrios, não apenas por força de ser apontado como um sujeito violento, mas, sobretudo, porque o homem era pior que as cobras. O que nos valeu foi a circunstância de um dos elementos que integraram o cortejo ser irmão do padre de Amora. Não fora isso, não sei onde o caso chegaria. Ter-nos-íamos visto em palpos de aranha», reconhece José Jacinto Ramos. «Noutra ocasião», lembra o associado do CRCP, «em conversa com António José Leite comentou-se a inexistência de qualquer placa indicativa da Cruz de Pau, circunstância que levava quem aqui vinha pela primeira vez visitar familiares ou amigos a ir parar ao Fogueteiro, à Amora ou à Torre da Marinha. Tal bastou para que imediatamente decidíssemos fazer uma placa de madeira para afixarmos à entrada da localidade. Contudo, quando concluímos a sua execução, alguém nos avisou de que o então presidente da câmara (já não sei se Bonaparte Figueira, se Narciso Cosme Lopes) tinha, entretanto, sido informado da nossa iniciativa, estando apenas na expectativa da sua concretização para nos mandar prender. Avisados de tal intenção, acabámos por recuar nos nossos intentos, guardando a referida placa debaixo do palco que havíamos construído na
sede», conta esta ativista do Clube Recreativo da Cruz de Pau.
Feitura do primeiro estandarte, iniciativa da comissão de raparigas Neste repositório de episódios e memórias que a erosão do tempo não logrou apagar, o conhecido sócio do Clube Recreativo da Cruz de Pau faz ainda notar uma série de eventos que escapam ao conhecimento de muitos dos seus consócios. Entre eles está a feitura do primeiro estandarte da coletividade, exposto numa das vitrinas do atual edifício-sede. «A ideia de mandar fazer o estandarte nasceu de uma comissão de fundos formada por raparigas, tendo, para o efeito, efetuado um peditório junto dos moradores da localidade. Mas, como os tempos eram outros e a vontade de comparticipar no engrandecimento do clube, um sentimento que animava todos quantos aqui residiam, quem se prontificou para o confecionar gratuitamente foi uma senhora enfermeira que dava pelo nome de D. Sara, residente na Rua Infante D. Augusto, ou seja, na mesma rua onde, à época, a coletividade se encontrava instalada», relata o nosso interlocutor. «No dia em que ela concluiu o estandarte e no-lo entregou, foi uma alegria que nem queira saber», afirma José Jacinto Ramos, esboçando um expressivo sorriso de saudade.
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Tradicionalmente considerado o Dia das Mentiras, 1 de abril também pode ser o dia escolhido por um grupo de amigos para dar pública notícia da concretização de um antigo sonho que há muito acalentavam. Isso mesmo aconteceu, em 1960, no Bairro Manuel André, com um grupo de rapazes que há longo tempo tencionava levar avante a ideia de fundar uma instituição associativa, capaz de congregar os esforços e vontades de todos os que acreditavam ser possível levar a cabo a constituição de uma coletividade naquela zona habitacional. Contaram para isso com a adesão de alguns dos habitantes mais conhecidos do lugar, entre eles várias senhoras, que pagavam semanalmente uma quota de 1$00, ou seja, 4$00 por mês, valor correspondente a 0,02 €, estímulo que, provindo dos adultos, muito concorreu para afirmarem a determinação que colocavam na realização dos superiores objetivos que os mobilizavam. Formalizada a fundação da novel agremiação, logo optaram por denominá-la de Portugal Desporto e Cultura, designação que, todavia, não pudera ser oficializada, por via de a instituição não possuir condições para a prática desportiva. Nesse contexto, resolveram, pois, promover uma reunião em casa de Jaime Costa, um dos elementos envolvidos no processo de formação da coletividade, com o propósito de ultrapassar a dificuldade inesperadamente surgida, no decurso da qual decidiram alterar a denominação inicial para Portugal Cultura e Recreio, torneando, dessa forma, tal impedimento de ordem jurídica. Seria, aliás, num terreno cedido por esse
mesmo fundador que funcionaria ainda um conjunto de chinquilho, atividade que constituía, ao tempo, uma das poucas formas de diversão e de convivência entre os associados, e se realizavam no verão vários espetáculos. Adquiridas as primeiras estruturas, designadamente o aluguer de um espaço onde durante várias décadas funcionaria a sede social e com elas a chegada de novos sócios, prontamente decidiram proceder à criação de uma comissão administrativa, cuja missão seria a de tratar de todas as questões relacionadas com a legalização da coletividade, dossiê oficialmente concluído em setembro do mesmo ano. Procurando confirmar a justeza do nome escolhido para a agremiação, logo nasceu entre a massa associativa a vontade de formar um grupo cénico, projeto de natureza teatral cuja atividade regular se prolongou por vários anos, com o agrado de quantos assistiam às suas representações. Enquanto isso, processava-se também a fundação da biblioteca, constituída, de resto, por algumas centenas de bons livros. Tamanha diversidade de eventos, reveladores do quão pujante se afirmava a novel associação, acabaram por acarretar outro grau de preocupações aos dirigentes que, à época, comandavam os destinos da instituição, resultantes, em larga medida, do crescente aumento do número de associados, o qual tornou exíguas as instalações onde funcionava a sede social. Neste quadro, mau grado os esforços desenvolvidos pelos diversos órgãos sociais que presidiram ao clube, no sentido de solucionarem tão aflitivo constrangimento, até certo ponto impeditivo do normal desenvolvimento das múltiplas atividades que caracterizavam a coletividade,
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só na década de 1990 o Portugal Cultura e Recreio logrou ultrapassar tal dificuldade, com a abertura de um novo e espaçoso edifício, imóvel projetado e construído pela Câmara Municipal do Seixal propositadamente para acolher esta popular instituição do Bairro Manuel André.
Álvaro Simões Custódio, «Álvaro Preto» Fundador, dirigente e ativista do Portugal Cultura e Recreio Membro do grupo fundador do Portugal Cultura e Recreio, agremiação a que se encontra ligado por laços de grande afetividade, Álvaro Simões Custódio, vulgo «Álvaro Preto», 74 anos, é uma das figuras proeminentes da popular coletividade seixalense, quer pelas diversas funções diretivas que ao longos dos tempos foi chamado a desempenhar, quer por ser tratar de um dos elementos preponderantes desse núcleo promotor. Bom conversador, qualidade que associa à de homem simples, este carismático associado da mencionada agremiação logo que convidado a relatar as memórias que guarda da sua longa experiência associativa, prontamente aceitou a solicitação, dispondo-se de imediato a desenrolar o extenso novelo de histórias que a vida lhe permitiu viver no âmbito da referida instituição. De acordo com Álvaro Simões Custódio, quando uma meia dúzia de adolescentes do bairro começou a aventar a ideia de criar um clube já ele havia entrado na casa dos 30 anos e, com
isso, adquirido uma maturidade que outros não possuíam, situação que se afigurava essencial à credibilidade e ao bom êxito de tão ousado projeto. «A maior parte da rapaziada tinha idades compreendidas entre os 16 e os 20 e poucos anos», informa, «todos eles habitantes do antigo bairro da Quinta Grande, lugar constituído, nessa época, por meia dúzia de casas, habitadas por cerca de trinta famílias – se tanto. Só mais tarde, com o crescimento urbanístico da zona, o topónimo seria alterado para a sua atual denominação», informa.
Jogo do chinquilho, a primeira atividade «Como todos nos conhecíamos e os rapazes estavam apostados em conferir ao projeto a necessária credibilidade que este exigia, resolveram, então, abordar alguns vizinhos de idade superior, que habitualmente se entretinham a jogar chinquilho em Paio Pires, entre os quais eu me incluía, para os convidar a tomar parte no processo. Aceite o convite, logo ficou decidido que a primeira atividade do clube seria o chinquilho, em função do interesse que os novos aderentes nutriam por essa modalidade, muito popular à época», diz Álvaro Simões Custódio. Mesmo sem que houvessem ainda escolhido o nome a atribuir ao clube, logo Belarmino Dias, um dos convidados a ingressar na equipa constitutiva da agremiação, se dispôs a falar com o pai no sentido de que este emprestasse um terreno que possuía nas imediações do bairro, em ordem a que o grupo promotor da novel coletividade dele se servisse para as suas atividades.
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A partir daí, passaram a encontrar-se regularmente, tendo, a 1 de abril de 1960, os 21 aderentes (tantos quantos, desde fevereiro desse mesmo ano, haviam sido aliciados a participar na concretização de tal sonho) realizado, formalmente, a primeira assembleia para eleger os seus órgãos sociais e escolher o nome a dar à instituição.
A foto regista a presença de Álvaro Simões Custódio e do seu consócio Godofredo Cruz, no decurso de uma sessão solene de um aniversário da agremiação seixalense, escutando as palavras de Carlos Alberto Almeida, representando, nesse ato, a Federação das Colectividades de Cultura e Recreio.
«Na ocasião, apresentei a proposta para que o clube se chamasse Os Leões das Vinhas, posto que toda esta zona era constituída por vinhedos, mas a proposta não colheu vencimento, já que outro camarada apresentara uma outra no sentido de que a designação fosse Portugal Cultura e Desporto, denominação que obteve a preferência da maioria dos participantes», esclarece. «No entanto, a posterior aprovação dos estatutos, enquanto agremiação de índole desportiva, acarretaria uma tal morosidade, de todo avessa aos nossos objetivos, que imediatamente optámos por alterar a sua denominação para
Portugal Cultura e Recreio, conferindo-lhe, assim, uma natureza diferente daquela que havíamos perspetivado.»
Aluguer da sede assumiu papel relevante na afirmação da coletividade Construídas as fundações que suportassem a coletividade e dispondo já de cerca de 50 associados, que pagavam uma quota semanal de 1$00, um problema se colocava aos seus dirigentes: a falta de uma sede onde a agremiação pudesse funcionar, afirmando a sua vocação social, recreativa e cultural. «Este cenário chegou, aliás, a provocar alguma desmotivação num ou noutro sócio, que chegaram a pôr a hipótese de desistirmos da ideia, entre eles o primeiro sócio da agremiação, mas felizmente que na semana imediata àquela em que tal eventualidade se levantou, conseguimos arranjar casa, aluguer que mantivemos até ao dia em que nos mudámos para este novo edifício», conta o atual sócio número um da popular instituição. Dado esse importante e decisivo passo, criadas ficaram as condições para que a coletividade desenvolvesse, eficientemente, a sua intervenção e, a tal ponto o fez, que passados cerca de quatro anos, se encontrava já em condições de proceder à aquisição do terreno contíguo, pelo valor de um 1 000 000$00, ou seja, cerca de 5000 €. «Esse terreno acabaria por integrar o acordo de permuta estabelecido com a câmara, na década de 1990, com vista à construção da atual sede do clube», salienta Álvaro Simões Custó-
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dio, ou melhor, «Álvaro Preto», nome pelo qual é conhecido entre os demais consócios. Para o ex-dirigente, «não se pense, contudo, que na vida da instituição tudo foi fácil. Nada disso, sobretudo nos primeiros anos da sua existência, período em que algumas vezes sucedeu chegar o fim do mês e não haver dinheiro para pagar aos fornecedores os artigos encomendados para o bar», reconhece. «Nessas ocasiões, para evitar que o crédito fosse cortado, lá emprestava eu dinheiro da minha algibeira. O mesmo se poderá afirmar relativamente a outros diretores. Isto sem sabermos quando é que a coletividade teria possibilidades de nos reembolsar das importâncias emprestadas. O mesmo se verificou quando se efetuou a compra da casa», conta.
Criação do grupo cénico, um grande dinamizador Natural de Buarcos, Figueira da Foz, mas radicado neste antigo lugar da freguesia de Arrentela há largas dezenas de anos, Álvaro Simões Custódio entregou-se de coração e alma à consolidação da agremiação que orgulhosamente ajudou a fundar, desdobrando-se, para tanto, em múltiplas iniciativas. Entre elas, assinalam-se a criação da discoteca e a cofundação da biblioteca do clube, tarefa para a qual contou com a colaboração de outros companheiros. Apesar disso, prefere destacar a criação do grupo cénico, cuja atividade, em sua opinião, se revelou de vital importância em matéria de animação cultural, quer pelo interesse que despertava em quantos dele faziam parte, quer pelo entusiasmo que gerava tanto entre os as-
sociados como entre as gentes do lugar. «Peças houve que estiveram em cena vários meses. Sempre com lotação esgotada», sublinha. «Vinha gente do Seixal, do Bairro Novo, de Arrentela e de Paio Pires ver as nossas representações, situação a que não era alheio o carinho que Álvaro Cordeiro dispensava ao trabalho do grupo e o cuidadoso empenho que seu pai colocava na preparação de cada espetáculo, apesar de se tratar de um homem sem formação teatral, mas que amava profundamente o teatro, sobretudo o drama e a comédia», recorda o conceituado associado, também ele ator e músico do aludido grupo cénico. «Não surpreende, pois, que a casa estivesse sempre lotada. Mesmo sabendo que cada ingresso custava 5$00 (pouco mais que 0,02 €), ninguém desistiu de ver as peças que levámos à cena», reafirma Álvaro Simões Custódio.
Tocador de harmónica e ator amador «Além de integrar o elenco, também tocava gaita de beiços», adianta o antigo dirigente, «já que, entre 1945 e 1947, integrei uma orquestra afeta à Sociedade União Seixalense constituída por harmónicas e instrumentos de cordas, que chegou a tocar nos extintos Rádio Clube Português, Rádio Graça, Rádio Peninsular e Voz de Lisboa e só não atuou na antiga Emissora Nacional porque tínhamos de nos sujeitar a uma audição prévia. Ora, como não havia posses para efetuarmos duas deslocações quase seguidas, tendo de faltar ao trabalho, vimo-nos forçados a excluí-la», informa o popular «Álvaro Preto».
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No entanto, o falecimento do seu homónimo e primeiro presidente da direção, apelidado entre as gentes do bairro de «Álvaro Pintor», acarretou o fim do grupo cénico, uma vez que não encontraram quem o substituísse, até porque a generalidade dos atores eram jovens habitantes do lugar, sem nenhum tipo de experiência teatral anterior. E os poucos conhecimentos que tinham resultavam da sua participação no referido agrupamento. Com a desativação do grupo, extinguiu-se também um dos grandes fatores de afluência das raparigas à coletividade. «Aliás, uma das grandes asneiras por nós cometidas quando se processou a fundação do clube consistiu na absurda decisão de apenas considerarmos como fundadores os vinte e um aderentes do sexo masculino que estiveram na fase inicial do processo e não alargarmos esse núcleo também às mulheres e raparigas que se haviam associado antes da oficialização da agremiação», reconhece Álvaro Simões Custódio. «Uma decisão machista, que hoje, certamente, não se repetiria», assinala. Filho primogénito de um casal que tivera dois outros rebentos, mas que deixara de contar com o contributo do chefe de família ainda Álvaro Simões Custódio não havia completado oito anos, adversidade que cedo o privou de gozar a sua infância, pois, nem tão pouco chegou a frequentar a primeira classe.
Devido ao carinho que sempre dedicou à coletividade que ajudou a fundar, Álvaro Simões Custódio, vulgo «Álvaro Preto», foi, até ao dia do seu falecimento, a 18 de agosto de 1999, não apenas um dos mais diligentes associados da popular instituição, mas também um dos seus mais destacados dirigentes.
Trabalhando inicialmente como servente de pedreiro e depois na agricultura, tinha 13 anos quando rumou até ao concelho do Seixal, local de residência do homem que sua mãe encontrara para companheiro, mas com quem ele não se dava, situação sobremaneira agravada com a morte da progenitora, cerca de ano e meio após a sua chegada. Tal desenlace, para além de o deixar numa terra onde quase não conhecia ninguém, acabaria, afinal, por antecipar o seu abandono do lar no dia imediato ao do cortejo fúnebre, achando acolhimento na casa de umas senhoras situada numa quinta, propriedade de José Dias e na qual, anos volvidos, se realizariam as primeiras provas de chinquilho promovidas pelo Portugal Cultura e Recreio.
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«Cartilha Maternal» de João de Deus achada na Quinta da Fidalga instiga-o a aprender a ler e escrever Aos 16 anos empregou-se como hortelão na Quinta da Fidalga, onde certo dia, entre dois lances de enxada, deparou com um livro que lhe despertou o interesse ante a forma como se encontrava impresso. «Soube mais tarde tratar-se da “Cartilha Maternal” de João de Deus», afirma. «Esse achado motivou-me uma enorme curiosidade e fez crescer dentro de mim a vontade de aprender o significado de cada uma das letras. Nesse sentido, comecei a perguntar a um e a outro que letra era esta e que letra era aquela. E com tanto entusiasmo o fiz, que ao cabo de um mês escrevi uma carta. É certo que com muitos erros ortográficos, mas todos quantos a leram perceberam o que ela dizia», afiança este antigo trabalhador rural, convertido a operário corticeiro da firma Wicander mal acabou o serviço militar e ao serviço da qual permaneceu 28 anos. Sucede, no entanto, que no início dos anos 1950, por via da divulgação feita junto dos operários da referida fábrica de uma norma publicada pelo governo da época que permitia que todos quantos não tivessem realizado o exame da terceira classe o pudessem fazer, frequentando um curso noturno criado para o efeito, «Álvaro Preto», assim que tomou conhecimento dessa possibilidade, imediatamente sentiu o apelo se inscrever. «Com aquilo que de modo próprio antes aprendera, seis meses me bastaram para que concluísse a primeira e segunda classe e fizes-
se ainda o exame da terceira», acentua Álvaro Simões Custódio. «O mesmo aconteceu com a quarta classe, já então trabalhava como cooperante na Compelmada, cooperativa metalúrgica fundada em 1969». Uma vontade de valorização pessoal que transportou para o interior da coletividade, daí que, mal esta encontrou uma sede, tenha perspetivado apetrechá-la com uma biblioteca, projeto em que foi secundado por outros camaradas de direção. Detentor de uma interessante experiência associativa adquirida entre 1948 e 1950, período em que integrou os órgãos sociais da Sociedade Filarmónica União Seixalense, os conhecimentos colhidos por Álvaro Simões Custódio ao longo desses anos revelar-se-iam de grande utilidade em matéria de oficialização do Portugal Cultura e Recreio, dado que a elaboração dos estatutos da novel agremiação teve como principal referência os da sua prestigiada congénere. «A par da biblioteca, constituída, ao tempo, pelos livros que as nossas posses permitiram que reuníssemos e pelos constrangimentos que a ditadura impunha à circulação das obras de certos autores, criámos também uma discoteca, secção cuja função primordial era a de arranjar discos para desenvolver uma das principais atividades que o clube promovia: a realização semanal de bailes e, por consequência, uma das suas grandes fontes de receita», afirma este conceituado ativista associativo. «Integravam a dita comissão da discoteca dois outros companheiros que muito ajudaram ao êxito dessa atividade», frisa.
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Figura habitual nos corpos gerentes e membro de comissões de fundos
poderia ser ignorado pelo antigo dirigente do Portugal Cultura e Recreio neste seu acervo das histórias e memórias guardadas ao longo de tão prolongada vivência associativa.
Figura habitual nos corpos gerentes durante uma dezena de anos, sendo que nos anos em que tal não ocorreu (e foram cinco) integrou sempre uma das várias comissões de fundos existentes na agremiação, razão pela qual fez parte da biblioteca dois anos e na discoteca oito consecutivos, trabalho que bastas vezes acumulou com as funções de diretor. «Foi com o esforço desenvolvido por essas comissões que conseguimos comprar a máquina de café, a telefonia, a televisão. O mesmo aconteceu relativamente à compra do gira-discos, do gravador e da aparelhagem de som com que faziam os bailes», refere. «Só uma grande força de vontade dos sócios, em particular aqueles que integraram as várias comissões de fundos, permitiu à coletividade valorizar o seu património sem ficar a dever um tostão a quem quer que fosse», realça Álvaro Simões Custódio. «E tanto assim era que quer eu como outros consócios diversas vezes fomos apanhar lambujinhas e caracóis para serem confecionados e vendidos no bar da agremiação», conta. «A vida era muito difícil, nesse tempo, e tudo quanto contribuísse para que o bar da instituição obtivesse mais alguma receita assumia uma importância vital». A este propósito, importará ainda referir que as mencionadas comissões de fundos não integravam somente elementos do sexo masculino, algumas houve constituídas apenas por jovens associadas e esposas de sócios e cujo labor assumiu um tal dinamismo que, de modo algum,
Mulheres tiveram um papel determinante no apoio ao teatro e na promoção de iniciativas «As mulheres assumiram um papel determinante na vida da coletividade, sobretudo no que se refere à preparação das múltiplas iniciativas que, nessa altura, se levavam a cabo, nomeadamente os bailaricos, a confeção do guarda-fato utilizado pelos atores nas várias peças que o grupo cénico representou e outros acontecimentos tendentes à angariação de fundos. As suas comissões revelavam, invariavelmente, uma capacidade inovadora que nos surpreendia a cada momento, não estranhando, por isso, que fossem elas quem angariava mais dinheiro para os cofres da agremiação», reconhece Álvaro Simões Custódio. «Nos casos em que se lhes afigurava não disporem de condições para fazer um ou outro fato, efetuavam o seu aluguer em casas da especialidade, assumindo as respetivas comissões os custos resultantes desse aluguer», adianta. Outra das curiosidades de que se revestia a vida das coletividades nesses idos tempos era a da nomeação dos padrinhos da agremiação, titulo honorífico geralmente atribuído a alguém que pela sua posição no quadro social do lugar gozava de grande consideração entre as gentes da localidade. Uma realidade que perpassava pela generalidade das associações seixalenses
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e a que, logicamente, a novel instituição não se podia furtar. «A ideia de arranjarmos uns padrinhos para o clube surgiu logo na vigência da primeira direção, por entendermos que sendo pessoas que desfrutavam de um certo prestígio entre os moradores da zona, a agremiação poderia colher algum benefício com essa escolha. No caso em apreço, a nomeação recaiu no proprietário de uma pequena ourivesaria e de um pequeno chalé, cuja posição social lhe conferia um estatuto diferente dos demais habitantes do bairro», esclarece.
Ante a natureza meramente simbólica do título, os padrinhos acabavam, afinal, por assumir um papel decorativo que apenas ganhava algum significado no dia do aniversário da coletividade, por via da oferta do respetivo bolo e de algum eventual donativo atribuído à instituição. «Para além disso», adianta Álvaro Simões Custódio, «nas ocasiões em que o clube lhe bateu à porta solicitando ajuda para resolver algum problema mais aflitivo, nunca recusou a ajuda pedida», afirma o conceituado ativista.
João Cruz Um alentejano no Bairro Manuel André
Trave-mestra da sua existência, a relação de afetividade que a coletividade estabelecia com os associados chegava ao ponto de fomentar o envio de postais de Boas Festas à direção e demais consócios, por parte daqueles que no cumprimento do serviço militar obrigatório, eram enviados para a guerra colonial.
Dedicado ativista do movimento associativo do concelho do Seixal, por via da sua empenhada participação na vida do Portugal Cultura e Recreio, instituição na qual integrou os corpos gerentes em diferentes mandatos, João Cruz é um dos ex-dirigentes da popular agremiação mais respeitados pelos seus consócios. Possuidor de uma simplicidade que ressalta em cada frase que pronuncia, este associado do PCR prefere sublinhar o espírito de entrega que presidiu à conduta de muitos dos seus pares, procurando, desse modo, desvalorizar a sua intervenção pessoal no quadro daquela entidade associativa. Testemunha de muitos episódios ocorridos no dia a dia da coletividade do bairro onde há longo tempo estabeleceu residência, alguns deles remontando mesmo aos primórdios da sua fun-
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dação, a existência deste popular clube confunde-se, em muitas ocasiões, com o quotidiano de João Cruz, tão profundo se revelou o afetuoso relacionamento que lhe dedicou ao longo de várias décadas. Um dos inúmeros episódios que guarda dessa prolongada vivência associativa e que nos faz questão de salientar reporta-se, precisamente, a esse período inicial da agremiação, num momento em que alugada a casa onde funcionou a sua sede, se constatou não haver meios financeiros que permitissem dotar o espaço com energia elétrica. «Tratou-se de uma carência prontamente ultrapassada por Marcolino Antunes, um associado desta casa que imediatamente procedeu à ligação de uma extensão ao quadro da sua residência, fornecendo, dessa maneira, a eletricidade ao clube. Enquanto tal, José André cedia gratuitamente um anexo, para que a coletividade pudesse levar a efeito um vasto conjunto de diversões tradicionais na época». O referido anexo, tão útil à jovem coletividade e aos reduzidos meios financeiros de que esta dispunha, revelar-se-ia uma trave-mestra na consolidação do espírito clubístico que estivera na sua génese. Uma relevância que motivaria os seus dirigentes a proceder, numa fase ulterior, à respetiva aquisição, medida que obteve a simpatia dos associados, por a considerarem uma manifestação da determinação que caracterizava as gentes do bairro.
Fundação de grupo cénico, festas de Natal e Carnaval animaram coletividade Volvido esse período inicial, logo começou a desenvolver um conjunto de atividades de âmbito recreativo e cultural que despertavam o interesse generalizado dos sócios, entre elas um grupo de teatro amador. «Foi seu mentor Álvaro Cordeiro, um dos fundadores do clube, o qual acumulou durante muitos anos as funções de responsável e ensaiador, tarefas que desempenhou com muita dedicação, competência e honestidade», informa João Cruz. «Diga-se, aliás, que o mencionado grupo cénico manteve uma regular atividade durante cerca de duas décadas. Dedicava-se preferencialmente à comédia, embora, a espaços, também representasse um ou outro drama», acrescenta João Cruz, que sublinha ainda a inexcedível dedicação de Palácios e Godofredo Cruz, dois outros dirigentes do Portugal Cultural e Recreio. «À persistência e à dignidade com que souberam tratar dos assuntos da coletividade se devem as instalações que esta atualmente possui», sustenta. Reavivado o registo dos acontecimentos vividos na agremiação e do espírito de solidariedade que caracterizava dirigentes e associados, o nosso interlocutor dá igualmente nota de um vasto programa de iniciativas recreativas geralmente levadas a efeito nas quadras de Natal e de Carnaval. «Nessas épocas, organizávamos habitualmente festas para as crianças, iniciativas que se revestiam de um cariz profundamente soli-
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dário, posto que se destinavam a proporcionar-lhes alguns agradáveis momentos de diversão e a quem se ofertava uma pequena lembrança, comprada com o dinheiro obtido num peditório feito, porta a porta, por uma comissão de fundos criada para o efeito.
mar os bailaricos, contribuindo para dar vida à agremiação. O mesmo se dirá quanto às várias secções desportivas.»
As festas de Carnaval e de Natal eram iniciativas que enchiam de alegria a pequenada do antigo Bairro Manuel André, que exultava com os mimos que lhe eram dispensados, como, de resto, a foto no-lo confirma.
Aparelho de televisão acentuou função recreativa e social do clube
Figuras destacadas da popular instituição associativa do Bairro Manuel André, Godofredo Cruz – de pé, junto ao palco – e Emílio Palácios – ao lado do orador – são dois antigos dirigentes da coletividade cujo labor é sublinhado pelos seus consócios.
Para além disso, promovia-se ainda, na época de Entrudo, um concurso de trajes carnavalescos, o tradicional baile da pinha e, de quando em quando, sessões de fado, animadas por fadistas amadores residentes no concelho». Como as posses não eram muitas e os bailes constituíam, ao tempo, uma importante fonte de receita que de modo algum poderia ser desprezada, alguém sugeriu, em finais dos anos 1960, princípios de 1970, a formação de uma trupe musical, aproveitando a faculdade de alguns associados tocarem diversos instrumentos. «O agrupamento, integralmente formado pela prata da casa, tinha por função primordial ani-
Relatos de uma época em que, a par de o local se encontrar pouco urbanizado, os motivos de diversão dos habitantes do lugar eram poucos, situação que concorria para o estabelecimento de fortes laços de amizade entre quantos nele viviam. «Por essa altura, o leque de diversões era muito reduzido e quem tinha telefonia ou televisão, não direi que fosse rico, mas que era muito remediado era», diz João Cruz. «E quem pretendesse ouvir ou ver certo programa tinha de pedir ao vizinho se lhe consentia a realização desse desejo. Em face disso, logo que o clube comprou um aparelho de TV, as pessoas passaram todas as
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noites a convergir para a sede, transformando-a no principal centro recreativo, desportivo, social e cultural do Bairro Manuel André, função que, de certa maneira, ainda hoje mantém», refere este alentejano que se deixou seduzir pelo movimento associativo seixalense. «Vinham, sobretudo, assistir aos programas de variedades e às transmissões de jogos de futebol, posto que, nessa época, a programação televisiva apenas versava o mero entretenimento, ignorando deliberadamente quase tudo o que tivesse a ver com a cultura. Aliás, tal orientação resultava de uma imposição do regime fascista, extensiva também à rádio e aos jornais, para evitar que as pessoas tivessem uma verdadeira consciência da realidade social em que viviam. Um ditame que, felizmente, nunca obteve eco junto das coletividades, já que eram nestas casas que as pessoas podiam usufruir da liberdade que a ditadura lhes negava. Por essa razão, creio ser justo reconhecer que o Estado democrático muito deve ao movimento associativo, pois foram este tipo de instituições que assumiram a função de esclarecer muitos cidadãos acerca da natureza hedionda do regime de então e da opressão que o suportava.»
laboração das quatro fábricas que possuía no Alentejo. Para evitar o desemprego, optou por aceitar a transferência para o Seixal, concelho onde facilmente se integrou na vida associativa, mercê da larga experiência que adquirira na sua terra natal, fruto da passagem pelos corpos gerentes das mais importantes associações locais, mormente as que agrupavam os habitantes mais desfavorecidos daquela vila. Uma atividade iniciada aos 18 anos, no Eléctrico Futebol Clube, agremiação que dirigiu num tempo em que esta disputou o Campeonato Nacional da Segunda Divisão Nacional, cuja equipa chegaria, de resto, a treinar. Para além disso, dirigiu a Sociedade Filarmónica Pontessorense.
Ativista associativo e sindical desde os tempos da juventude Natural de Ponte de Sor, Alto Alentejo, e antigo chefe de escritório da unidade fabril que a empresa Mundet possuía naquela localidade, João Cruz radicou-se no Bairro Manuel André corria o ano de 1962, devido à profunda crise que, na altura, afetou o setor corticeiro, situação que levou a referida empresa a reduzir a
Para além de integrar ao longo de vários mandatos os órgãos sociais do Portugal Cultura e Recreio, João Cruz ainda encontrava tempo para colaborar em diversos periódicos, tanto de âmbito nacional, como de âmbito regional.
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De igual modo, deu ainda muito do seu tempo disponível à atividade sindical, tendo durante vários anos assumido o cargo de delegado do sindicato corticeiro nos distritos de Évora, Beja e Portalegre. «A integração no quadro associativo da antiga vila do Seixal processou-se, de algum modo, por mor de Manuel Rebelo e de outros colegas que conheciam o meu percurso e me aliciaram para presidir ao Grupo Desportivo Mundet. Permaneci nessas funções quatro anos consecutivos, numa época em que a coletividade possuía duas excelentes equipas: uma de hóquei em patins, onde pontificavam Álvaro Cavalheiro e Leonel (mais tarde internacional), e outra de basquetebol que contava com William Landeiroto, António Pedro e Cunha», relembra. Antigo presidente da mesa da assembleia geral do Portugal Cultura e Recreio, coletividade onde desempenhou também as funções de membro do conselho fiscal, João Cruz repartiu ainda a sua militância associativa pela extinta Cooperativa Operária de Consumo 31 de Janeiro, entidade na qual durante uma dúzia de anos integrou os corpos diretivos.
Convívio com José Malheiro, Manuel Cabanas e Álvaro Cordeiro determinante na formação cívica e política Paralelamente, esteve ligado durante cerca de 8 anos consecutivos ao Sindicato do Empregados de Escritório do Distrito de Setúbal, na qualidade de representante da classe no concelho do Seixal, organização na qual, garante, «antes do 25 de Abril de 1974, foram feitas coisas muito
bonitas no que concerne ao desmascaramento da matriz política do regime e que reuniram a colaboração do médico José Malheiro, primeiro candidato da lista distrital apresentada pela oposição democrática às eleições de 1969, mestre Manuel Cabanas e o engenheiro Álvaro Cordeiro. O convívio que com eles mantive e os ensinamentos obtidos ao longo dos anos em que tive funções dirigentes, quer no sindicato, quer nas diversas coletividades do Seixal, contribuíram fortemente para consolidar o ideário democrático que desde a juventude me animava. De uns e de outras, colhi, pois, a maior riqueza de que um homem da minha idade pode dispor: o vasto acervo de sabedoria que muito valorizaram o conhecimento que eu tinha da vida e um vasto rol de sinceras amizades cultivadas entre a massa associativa das diferentes instituições a que pertenci», afirma perentório. Autor de cinco livros sobre diversos temas e colaborador dos extintos «República», «Diário de Lisboa» e «Gazeta do Sul», João Cruz mantém uma colaboração esporádica nos jornais «Ecos do Sor», periódico da sua terra natal, e na «Tribuna do Povo», quinzenário editado no Seixal. Na perspetiva do conhecido ex-dirigente do Portugal Cultura e Recreio, «parte significativa da riqueza cultural e do património humano das gentes do concelho resulta da intensa atividade levada a cabo pelas suas coletividades, nos domínios da promoção, divulgação e fruição da cultura e no seu valioso passado de resistência à opressão fascista, já que era nestas universidades populares que muitos democratas desenvolviam a sua luta pela instauração da
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democracia», defende este alentejano, adotado pelas gentes do Seixal, como se nele tivesse nascido.
Adelino José Dias «A coletividade sempre foi a minha segunda casa» Elemento preponderante, tal como Álvaro Simões Custódio, do núcleo de amigos que esteve na génese da agremiação, Adelino José Dias, 75 anos, é outra das figuras imprescindíveis quando se pretende coligir o registo das memórias e vivências dos homens e mulheres que confiaram o melhor do seu esforço à promoção do movimento associativo seixalense. No caso vertente, entregando-se com todo o empenho à fundação e consolidação do Portugal Cultura e Recreio, estrutura associativa criada com o objetivo de proporcionar aos habitantes de um pequeno aglomerado populacional da freguesia de Arrentela alguns momentos de diversão, tão necessários ao equilíbrio emocional daquela comunidade, ante o grau de dificuldades que marcavam o seu quotidiano. Não surpreende, por isso, que o seu nome tenha sido um dos primeiros a serem sugeridos assim que informámos os corpos gerentes sobre a natureza e o objetivo deste projeto. Desde logo, porque, a par de se tratar de um dos fundadores da popular instituição, é ainda um dos associados que mais vezes exerceu funções diretivas no quadro do referido clube, situação que lhe confere um apreciável acervo de memó-
rias que importa preservar. «Tudo começou numa parcela da nossa quinta pertencente a meu irmão mais velho, constituída por um pequeno olival, onde se encontravam alguns amigos que gostavam de jogar o chinquilho, uma modalidade muito em voga nessa época», diz Adelino José Dias. «Passado algum tempo, pensou-se em tomar o aluguer de uma casa para instalar a sede da agremiação, mas para que o contrato de arrendamento pudesse efetuar-se havia que encontrar um fiador, responsabilidade que acabei por ser eu a assumir ante a circunstância de deter a titularidade de uma propriedade, ou seja, parte da referida quinta», adianta.
Criação de uma verbena mobilizou associados Ultrapassadas as formalidades conducentes à celebração do aluguer havia, pois, que arranjar maneira de promover iniciativas que possibilitassem a angariação de outras verbas que não as provenientes da quotização dos sócios, objetivo cuja concretização se afigurava algo difícil ante a circunstância de se tratar de um fogo de habitação, logo pensaram na criação de uma verbena onde pudessem levar a cabo tais realizações. «Nesse sentido, solicitei a um associado, pessoa que, aliás, chegaria a desempenhar as funções de presidente da mesa da assembleia geral da coletividade, que nos cedesse, a título gratuito, o terreno que possuía nas traseiras da sede, pedido esse que prontamente colheu satisfação», informa Adelino José Dias.
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da sua existência marcadamente bairrista. O mesmo aconteceria relativamente ao aludido terreno onde funcionava a verbena.
Compra da antiga sede da agremiação foi determinante para a sua consolidação
Adelino José Dias, outro dos fundadores do Portugal Cultura e Recreio, foi um dos antigos moradores do Bairro Manuel André e ex-dirigente da instituição que até à data do seu falecimento, em julho de 1998, manteve sempre uma forte ligação à coletividade.
«Nele instalámos não só a referida verbena, onde passámos a organizar os tradicionais bailaricos, como ainda criámos um espaço para a prática do chinquilho», refere. «Com a receita proveniente da realização de tais bailaricos e do movimento do bar, efetuámos várias alterações no interior da casa, nomeadamente o derrube de algumas paredes com o intuito de a dotar de salas mais amplas, dado que a sua construção tivera como objetivo um fim diferente daquele que passara a ter.» Alguns anos decorridos sobre a data em que teve lugar a celebração do mencionado aluguer, os corpos gerentes da agremiação decidiram, então, proceder à sua aquisição, decisão que, a par de significar, ao tempo, um assinalável investimento, se revelou também de grande importância em matéria de consolidação das suas características, em especial as que decorriam
«Compras que, a meu ver, se revelaram de grande utilidade», salienta Adelino José Dias, «já que, além de proporcionarem à coletividade a faculdade de usá-las com bem entendesse, constituíram uma importante valorização do seu património, embora nos derradeiros anos de utilização o telhado do salão deixasse entrar água, quase obrigando quem nele se encontrasse quando chovia a recorrer ao guarda-chuva», sustenta este cofundador da popular agremiação do Bairro Manuel André. Ademais, importará salientar que na época a que se reporta o testemunho do respeitado militante associativo, poucas eram as habitações existentes nesta zona da freguesia de Arrentela, limitando-se o parque habitacional do referido lugar quase exclusivamente a umas quantas casas térreas ou de dois pisos, situadas junto à atual Avenida dos Metalúrgicos, artéria que, já nessa altura, estabelecia a ligação rodoviária entre a antiga vila do Seixal e Aldeia de Paio Pires. Tudo o resto eram quintas agrícolas, pinhais e olivais. «Para além disso, a circunstância de a agremiação possuir esse imóvel acabou por ser determinante no processo de permuta formalizado com a câmara tendente à construção do novo edifício sede», considera o conhecido associado.
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Enquanto isso, salienta ainda o facto de pertencer a uma família que desde os primórdios da coletividade integrou diferentes funções nos órgãos sociais da agremiação. «Quer eu, quer meus irmãos éramos todos sócios do clube», informa.
Elemento de uma família profundamente ligada ao clube «E o primeiro presidente da mesa da assembleia geral da instituição foi meu cunhado. Além disso, eu exerci vários cargos diretivos durante sete anos. Nesse período, só não assumi as funções de tesoureiro, porque nunca quis mexer em dinheiro. Mas isso não me inibia de trabalhar tanto quanto os outros. E de tal modo assim era, que cheguei a levar feijão do meu terreno para cozinharmos umas feijoadas para os companheiros que colaboravam connosco nas obras de remodelação da primeira sede, evitando, dessa forma, gastarmos um tostão que fosse à coletividade», esclarece Adelino José Dias. Uma relação de tal modo forte que se projetou ao longo dos anos com tanto vigor que ainda hoje se manifesta na assiduidade com que frequenta a agremiação. «Só nos tempos em que estive hospitalizado, devido aos dois acidentes, é que não vim à coletividade. Tirando esses períodos, quem me quiser encontrar só terá de vir à sede, entre as duas e as cinco da tarde. Todos os dias. Aliás, a coletividade sempre foi a minha segunda casa», sublinha o dedicado associado do Portugal Cultura e Recreio. «É uma forma de acompanhar o dia a dia da agremiação que ajudei a fundar, visto que a idade já não me permite outro tipo de intervenção,
que não seja a que tomar parte nas assembleias gerais», reconhece. É claro que nem só de alegrias e vitórias se constitui o acervo de memórias de Adelino José Dias em torno da popular agremiação do Bairro Manuel André, algumas inquietações também ficaram registadas no seu imaginário. Entre elas, as que resultaram das dificuldades impostas pelo anterior regime em matéria de aprovação dos elementos que integraram algumas listas para os órgãos sociais da coletividade. «Alturas houve em que sob a alegação de que o clube estava entregue a uma direção afeta ao Partido Comunista, os caciques do fascismo quase conseguiam fechar a coletividade. Nós é que nos opusemos e conseguimos evitar que levassem a cabo os seus intentos», refere. «Foram tempos lixados, esses, em que vivemos sob a suspeita dos sicários do Estado Novo», salienta Adelino José Dias. Enfim, memórias de uma vida dedicada à causa associativa, contadas por alguns daqueles que, com o seu esforço, determinação e persistência fizeram das instituições populares de base do concelho do Seixal um dos baluartes da elevação cultural dos habitantes deste município. Um repositório de histórias e vivências, relatadas de viva voz, com a autenticidade e simplicidade dos que as testemunharam e as souberam guardar no imperecível álbum das suas mais perenes recordações. Um espólio feito com inegável empenho e entusiasmo que muito contribui para um melhor conhecimento da história do concelho, nas múltiplas vertentes em que esta se constitui.
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José Florindo Tempera A nova geração de dirigentes da popular agremiação Figura habitual nos corpos sociais da instituição na década de 1990, altura em que decidiu, finalmente, aceitar o convite que lhe fora dirigido para integrar o elenco diretivo da coletividade, José Florindo Tempera é um dos representantes da nova geração de dirigentes do Portugal Cultura e Recreio que assumiram a responsabilidade primeira de preservar o legado humano deixado pelas gerações antecedentes, valorizando, ao mesmo tempo, o seu vasto património afetivo e social. Residente no bairro há cerca de 27 anos e sócio da agremiação há mais de 25, este algarvio, oriundo da cidade de Lagos, refere que embora tenha sido várias vezes convidado para integrar o elenco diretivo do popular clube, só por volta de 1992 resolveu aceitar o repto que lhe fora lançado pelos demais elementos que na ocasião integraram a lista, por considerar que se encontravam ultrapassados os fundamentos que o levaram a declinar os anteriores convites. Tais recusas prendiam-se com o modelo de funcionamento de algumas valências internas, entre elas o bar, porque, em sua opinião, tomava demasiado tempo aos membros da direção, com evidente prejuízo para as restantes atividades recreativas, culturais e sociais que a coletividade desenvolvia. Apesar disso, recorda com agrado o espírito de camaradagem que se fazia sentir na época
em que aqui fixou residência, resultante, em larga medida, do intenso convívio que os bailes proporcionavam aos associados, já que, por essa época, a agremiação constituía a principal centralidade do bairro, quer pela sua localização geográfica, quer pela diversidade de iniciativas que levava a efeito. «Outra das grandes atrações que o Portugal Cultura e Recreio possuía, nesse tempo, era a televisão, aparelho que concitava o interesse de elevado número de pessoas, uma vez que se tratava de um bem a que poucos tinham acesso. Em função disso, quase todas as noites a velha sede se enchia de associados e moradores que pretendiam ver os programas que ela transmitia. Esse meio de entretenimento acabava, afinal, por funcionar como um polo aglutinador das gentes do bairro em torno da coletividade», afirma o dirigente associativo. Obviamente que a circunstância de a agremiação dispor de um aparelho de TV, a par de concorrer para o estabelecimento de fortes relações de amizade entre quantos a frequentavam, propiciava ainda um acrescido movimento do bar, traduzido no consequente aumento da respetiva receita, o que muito jeito dava aos cofres da instituição. «Para que se tenha uma ideia do quão importante se afigurava, então, essa fonte de rendimento, diga-se apenas, que, por essa altura, os sócios do PCR pagavam uma quota semanal de 1$00, correspondente a menos de 0,01 €», recorda José Florindo Tempera. Claro que o depoimento deste responsável associativo se reporta ao período em que a coletividade funcionava num exíguo prédio alugado na Avenida dos Metalúrgicos e as principais
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atividades de natureza desportiva e recreativa, tais como o tradicional chinquilho e os bailaricos, tinham lugar num terreno anexo, graciosamente cedido por Jaime Costa. «Anos depois, o mencionado terreno seria, de resto, adquirido pela agremiação à firma Costel, pelo valor de mil contos (cerca de 5000 €). E a angariação da verba em causa resultou do trabalho realizado por uma comissão criada com esse objetivo, entidade que, para além de outras iniciativas tendentes a captar fundos, promoveu uma subscrição entre os associados, sendo que cada subscritor pagou uma quantia de 1000$00, ou seja, 5 €. Eu fui um deles», salienta. Tratando-se, com efeito, da única entidade local capaz de centralizar as atenções, vontades e saberes das gentes que à época habitavam este antigo lugar da freguesia de Arrentela, não surpreende, pois, a expressiva adesão que a referida campanha registou, entre associados e simpatizantes. Desde logo porque a par de a aludida compra constituir uma valorização do património da agremiação, tal aquisição significava ainda uma garantia da prossecução da regular atividade recreativa que a instituição promovia, com particular destaque para o teatro e para a realização de espetáculos de variedades, eventos olhados com muita simpatia por quantos faziam parte daquela pequena comunidade. «Tais espetáculos, além de assumirem uma grande relevância em matéria de animação cultural, contribuíam ainda para fortalecer os laços de convivência entre os moradores da Quinta Manuel André, reforçando o sentimento associativo que ao tempo os animava», diz José Florindo Tempera.
O mesmo sucedia com as restantes secções que o clube mantinha em funcionamento, entre elas a biblioteca, através da qual proporcionava aos associados a possibilidade de requisitarem gratuitamente os livros que entendessem, desde que as obras pedidas constassem do respetivo acervo. «No entanto, as limitações impostas pela exiguidade das anteriores instalações impediu que esse equipamento de âmbito cultural se mantivesse em funcionamento durante largo período, situação que brevemente pretendemos alterar, devido à circunstância de termos entretanto mudado de sede e com ela havermos logrado conquistar as necessárias condições que possibilitam a sua reativação», anuncia este dirigente associativo. «Para além disso», acrescenta, «a funcionalidade que ora possuímos permite-nos manter em atividade diversas modalidades desportivas, tais como o halterofilismo, futebol de salão nos escalões feminino e masculino, taekwondo, diversas classes de ginástica jazz, aeróbica e de manutenção, mobilizando cerca de 260 atletas, alguns dos quais residentes fora dos limites do bairro e, até, do próprio concelho», informa José Florindo Tempera. Para além de todas estas atividades, o Portugal Cultura e Recreio é uma instituição que mantém as suas portas abertas a um amplo conjunto de iniciativas de âmbito cultural e social promovidas por diversas entidades que exercem a sua intervenção no quadro deste importante concelho da margem sul do Tejo.
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Fundado numa perspetiva completamente distinta das restantes coletividades do concelho, já que apenas os funcionários da empresa dele podiam ser sócios, o Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional (CPSN), criado em 1961, com o intuito de proporcionar aos trabalhadores da referida unidade fabril a prática do desporto e do lazer, surge na sequência da instalação da empresa em Aldeia de Paio Pires. A circunstância de dispor de um elevado número de trabalhadores, na sua maioria associados da agremiação, e de contar com significativos apoios financeiros e materiais da empresa, consubstanciados num conjunto de infraestruturas desportivas que não estavam ao alcance das restantes associações seixalenses, por via das dificuldades financeiras com que estas se
debatiam, cedo o tornaram numa das mais ecléticas e pujantes agremiações do concelho. Tal situação, aliada à existência de um parque de jogos, no qual sobressaia um pavilhão gimnodesportivo mandado construir pela administração da Siderurgia, logo que se processou a instalação da fábrica, conferiu-lhe a possibilidade de desenvolver um diversificado leque de modalidades. Entre elas, conta-se o atletismo, o karaté, a patinagem, a ginástica, o andebol e ténis de mesa, entre outras, mas a sua prática estava limitada apenas aos trabalhadores e seus familiares, posto que apenas estes poderiam ser sócios da agremiação, ante o cariz marcadamente empresarial que presidiu ao seu aparecimento e à sua manutenção. Apesar desses condicionalismos, muitos fo-
A circunstância de se tratar de uma agremiação inserida no quadro social de uma das maiores empresas do país, beneficiando, por isso, de apoios que as restantes coletividades não desfrutavam, permitia ao clube manter em atividade um amplo conjunto de modalidades. A patinagem artística era uma delas, que ainda hoje se mantém.
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ram os habitantes do concelho que beneficiando do estatuto de trabalhador da extinta Siderurgia Nacional puderam usufruir de uma regular atividade desportiva, o mesmo sucedendo com os seus familiares diretos, em especial os filhos, situação que lhes possibilitava uma ocupação dos tempos livres, em condições verdadeiramente ímpares a nível concelhio e, nalguns domínios, até em termos regionais, ante a qualidade dos equipamentos de natureza desportiva que o clube lhes oferecia. Neste capítulo, refira-se que uma das comunidades populacionais que mais vantagens colheram da existência da mencionada coletividade foi Aldeia de Paio Pires, uma vez que era nesta localidade que a empresa detinha uma das suas grandes unidades fabris – a outra encontrava-se na cidade da Maia, Porto –, situação aproveitada pelos operários aqui residentes que disso tiravam o devido proveito. Por essa razão, parte significativa da juventude moradora nesta freguesia iniciou, ao longo de várias décadas, a sua atividade desportiva no CPSN, motivo bastante para que, em determinado período da vida da agremiação, esta detivesse um extenso rol de secções e ocupasse algumas centenas de ativistas. Além da prática da atividade física proporcionada aos seus associados, o Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional possuía ainda uma importante vertente cultural, alicerçada, de resto, numa valiosa biblioteca e na periódica realização de espetáculos, musicais, teatrais e dança, além da promoção de atividades recreativas, tais como saraus de ginástica e bailes, designadamente por ocasião da passagem de ano e do Carnaval.
Infelizmente, os constantes processos de reestruturação por que a empresa passou a partir do início dos anos 1980, com a consequente redução de postos de trabalho, conduziram em 2001 à desativação da aludida unidade fabril e arrastam, aos poucos, também a agremiação para uma situação de definhamento.
Francisco Vilar e Albino Marques Relatos de uma vivência que os tempos não apagam Francisco Vilar, engenheiro, e Albino Marques, operário, são dois funcionários da Siderurgia Nacional que, a par da atividade profissional que desenvolviam no quadro da referida empresa, assumiram durante um largo período de tempo funções diretivas no âmbito do Clube do Pessoal da mencionada entidade empresarial. Convidados a relatar os acontecimentos que, a seu ver, maior importância tiveram no contexto associativo da época e que, por tal motivo, guardados ficaram no seu imaginário, é com agrado que relembram os tempos em que a agremiação evidenciava uma pujante atividade desportiva, recreativa e cultural, afirmando-se como uma das entidades associativas que maior protagonismo assumiram no contexto regional. Colaborador da secção cultural antes de Abril de 1974 e presidente da direção da coletividade logo após a eclosão da Revolução dos Cra-
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vos, Francisco Vilar refere que a vida do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional assenta em dois períodos distintos. Um projetou-se desde 1961, ano da fundação da agremiação, até 1974 e o outro, desde esse ano até finais da década de 1980.
Promover conjunto de atividades que envolvesse toda a massa laboral «O primeiro caracterizou-se pela dinamização de um conjunto de atividades que, não obstante incluírem alguns operários e trabalhadores de setores diversos, assentava numa perspetiva que visava, fundamentalmente, satisfazer os gostos de quantos estavam afetos aos quadros técnicos, iniciativas que, de resto, não despertavam o interesse da generalidade da massa laboral, quer pelo tipo de realizações em causa, quer pelos condicionalismos colocados ao operariado, designadamente os que resultavam das limitações impostas pelos próprios horários», esclarece Francisco Vilar. «O segundo, marcado por uma maior abrangência, privilegiou as diferentes camadas sociais que constituíam, ao tempo, o leque populacional da empresa, filosofia que permitiu, então, a promoção de um conjunto de espetáculos muito significativos para a época, tanto do ponto de vista da qualidade artística que apresentavam, como no que dizia respeito à adesão que suscitaram entre os diferentes estratos que compunham a massa associativa», sublinha o antigo dirigente. «Tal postura, aliada a uma campanha de desinformação levada a cabo junto do conselho de
gerência que, ao tempo, liderava os destinos da empresa, acabaria por motivar este a interferir na vida interna do clube, pretendendo mesmo ditar a orientação política do trabalho desenvolvido pelos corpos diretivos da agremiação e o plano de atividades, retirando-lhes a autonomia de que gozavam, remetendo-os, assim, para uma situação de meros tarefeiros», adianta o conhecido ativista do CPSN.
Acentuar o espírito de convivência e de confraternização entre os trabalhadores da empresa foram a pedra de toque da agremiação. A secção de xadrez era um vivo exemplo desse clima. Neste registo fotográfico, Francisco Vilar é o segundo da última fila.
«Essa situação ocorreu no período em que desempenhava as funções de presidente da direção nacional do clube, posto que este possuía uma delegação na cidade da Maia, concelho onde se encontrava instalada a outra fábrica da empresa, causando essa decisão da administração um evidente mal-estar não apenas no seio dos membros dos órgãos sociais da agremiação mas, também, entre os associados, que a consideraram uma ingerência em assuntos que não lhe diziam respeito», sublinha Francisco Vilar.
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Dinamismo e capacidade mobilizadora derrotam campanha de desinformação feita junto do conselho de gerência «Felizmente, na sequência de uma reunião por mim solicitada ao conselho de gerência, tendente a analisar as implicações sociais que poderiam resultar de tão abrupta medida, o assunto foi ultrapassado, porquanto os seus membros concluíram que as informações que lhes haviam sido anteriormente veiculadas não correspondiam, de todo, à realidade dos factos.» «Para isso muito contribuiu a circunstância de o conselho de gerência ter aceite um convite que lhe endereçámos para assistir a um dos saraus de ginástica que a agremiação regularmente promovia, tendo o administrador em causa ficado surpreendido com o que vira, já que as notícias que lhe chegavam faziam supor que o clube não mantivesse em atividade tantos atletas, nem mobilizasse tanta gente», atalha Albino Marques. Embora evidenciando alguma dificuldade em expressar-se, em consequência de um acidente cardiovascular, sofrido anos depois de ter deixado os afazeres associativos, este antigo dirigente do CPSN sempre vai acrescentando: «Em função de tudo quanto lhe fora dado observar, em especial a capacidade organizativa que o clube patenteava, refletida, aliás, no elevado número de praticantes que tomavam parte neste tipo de eventos e na moldura humana que a eles assistia, logo se encarregou de promover junto dos restantes elementos da admi-
nistração a defesa do trabalho que a coletividade estava a desenvolver», conta pausadamente Albino Marques, fazendo de cada uma das palavras que profere um exercício de articulação. «A partir daí, nunca mais houve problemas dessa natureza, já que aquele administrador constatou que o trabalho que levávamos a efeito de modo algum desprestigiava a empresa, como alguns quiseram fazer crer, antes a dignificava e enobrecia», refere o antigo operário siderúrgico.
Atividade desportiva e cultural regista grande desenvolvimento depois da Revolução de 1974 Por outro lado, importará referir que, para além da atividade desportiva, já antes do 25 de Abril a instituição desenvolvia uma relevante atividade cultural, através da sua biblioteca, estrutura da qual se socorriam os filhos de muitos funcionários da empresa para os seus estudos, quer por via do empréstimo de livros, quer por via da sua consulta. «Neste capítulo», adianta Francisco Vilar, «diga-se ainda que no início de cada ano letivo, o clube colocava à disposição dos empregados da empresa que tivessem filhos em idade escolar a possibilidade de procederem à requisição dos respetivos manuais, sendo os custos de tais aquisições suportados pela entidade patronal, na condição de que no final de cada ano letivo os mesmo fossem devolvidos ao clube. Isto nos casos em que a biblioteca os não tivesse. Quando os tinha, efetuava o seu empréstimo a quem deles precisasse.» Tratava-se, no entender dos dois dirigentes
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da agremiação, de um modo de contribuir para a formação das novas gerações, aliviando os pais de tal despesa já que os ordenados, nessa época, não eram assim tão elevados que lhes permitissem prescindir dessa forma de apoio que a instituição lhes proporcionava. «A par disso», diz Francisco Vilar, «no período em que estive ligado à biblioteca, esta promovia regularmente a difusão da obra de vários escritores, entre eles Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Ferreira de Castro e Jorge Amado, realizando para o efeito uma mostra dos livros de cada um, acompanhada da sua biografia», informa o ativistas associativo. «No que respeita à realização de outras iniciativas, será de mencionar alguns colóquios, quase sempre sobre temas desportivos, até porque nessa altura as limitações que o regime político nos impunha condicionavam bastante a discussão de assuntos de natureza social», recorda Francisco Vilar. «E no que se refere à atividade meramente recreativa, salientem-se os bailes de Carnaval e de fim de ano, manifestações que colhiam a simpatia dos associados, tanto pelo reduzido preço de ingresso, como pela qualidade das orquestras que os abrilhantavam, razões suficientemente fortes para que nessas ocasiões o pavilhão se apresentasse praticamente repleto. Só no caso de ainda haver lugares deixados disponíveis pelos sócios e seus familiares se admitia a entrada a quem o não fosse», afirma, enquanto salienta que o objetivo primeiro de tais organizações não era o de obter lucros, mas, fundamentalmente, proporcionar à massa associativa alguns momentos de diversão, sem prejuízos financeiros para a instituição.
«Aqui vieram grandes nomes do teatro e da música portuguesa» Considerando que também aqui o seu testemunho se afigura importante para uma melhor aferição do trabalho que, neste domínio, o CPSN desenvolvia, Albino Marques sublinha ainda os vários espetáculos de variedades e de teatro, sobretudo revista à portuguesa, realizados nas instalações do clube. «Grandes nomes da música portuguesa, como Hermínia Silva, Carlos do Carmo e Paco Bandeira, atuaram no nosso pavilhão, o mesmo sucedendo com algumas das principais companhias que representavam este género teatral, tão popular nessa época, devido à forma como conjugava a crítica social com a piada política, coisa que agradava à maioria dos associados, que por essa razão acorriam a esses acontecimentos», frisa Albino Marques, elemento dos corpos gerentes que assumiu a incumbência de proceder à contratação de muitos desses eventos. «Dos vários atores que pisaram o nosso palco, destaco Rogério Paulo, Morais e Castro e Canto e Castro, entre tantos outros, quer apresentando as peças que na altura interpretavam, quer participando na festa de Natal que, em colaboração com o conselho de administração, o clube realizava para aos filhos dos trabalhadores da empresa», anota ainda o carismático dirigente associativo, como quem revisita um passado recente que lhe deixou gratas recordações.
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construção da aludida unidade fabril. Isso apenas se verificou algum tempo volvido sobre a data em que esta iniciou a sua laboração, dizem os dois antigos dirigentes da coletividade, devido a um comentário feito por um representante de Salazar, no decurso de uma visita que efetuou à fábrica, ao reparar que ao invés do que se verificava no complexo industrial da CUF, Barreiro, a Siderurgia Nacional não dispunha de qualquer tipo de instalações vocacionadas para prestar apoio social aos seus trabalhadores.
Devido à circunstância de ser ele quem tratava de contratar muitos dos espetáculos levados a efeito no Pavilhão do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional, Albino Marques desempenhou um papel preponderante na dinamização cultural registada em determinado período da vida do clube. Na foto, encontra-se ao centro, sentado ao lado da esposa, no decurso de um jantar oferecido no final de um espetáculo aos elementos de um grupo que atuara nas instalações da coletividade.
«A organização de tão importante acontecimento de carácter anual constituía uma tarefa bastante trabalhosa, uma vez que, conjuntamente com a contratação dos artistas, ainda tinha a missão de negociar a compra dos brinquedos com as firmas que os comercializavam, já que o número de exemplares em causa era de tal ordem que nos levava até a abrir um concurso para o efeito, ao qual concorriam as maiores empresas do ramo», informa ainda Albino Marques.
Fundação do clube deveu-se a reparo feito a Champalimaud por um representante de Salazar Não se pense, contudo, que a fundação do clube e das infraestruturas de natureza desportiva e cultural que este hoje possui foram edificadas na mesma altura em que decorreu a
Além da patinagem, do xadrez e das restantes modalidades que a agremiação mantinha em funcionamento, o futebol de salão era outra das valências que tinha alguns adeptos entre os associados e ativistas. Francisco Vilar, na segunda fila, de braços cruzados, foi um dos entusiastas dessa modalidade.
«Não gostando de ter sido verberado por tal postura, decorrente, de resto, da convicção de que essa função não lhe caberia a ele, mas sim ao Estado, já que pagava aos seus empregados ordenados superiores aos que, ao tempo, eram praticados na CUF, António Champalimaud decidiu, então, instigar junto dos quadros que lhe estavam mais próximos a constituição de um clube de pessoal, assumindo a empresa
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Importante polo dinamizador da vida desportiva, social e recreativa de Aldeia de Paio Pires
os custos das instalações sociais e desportivas que este necessitasse», conta Francisco Vilar.
A circunstância de as instalações do clube se situarem num espaço contíguo à unidade fabril concorreu sobremaneira para a promoção do desporto e ocupação dos tempos livres da juventude de Aldeia de Paio Pires, situação que contribuiu não apenas para o desenvolvimento da localidade, mas também para a criação de uma estreita cooperação entre a agremiação e a junta de freguesia. A foto regista o momento em que Francisco Vilar, ao tempo presidente do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional, entrega uma lembrança a José Jorge Loureiro, então responsável da Junta de Freguesia de Aldeia de Paio Pires.
«No que se reporta à construção do pavilhão, há até uma situação curiosa, a qual exemplifica a falta de conhecimentos revelada pela comissão organizadora que procedeu à fundação do clube, tal era a de o referido equipamento não dispor de dimensões que lhe permitissem disputar quer competições regionais, quer nacionais, problema que acabou por ser corrigido à última hora, com o recurso à ocupação dos topos.»
Apesar de se tratar de uma coletividade alicerçada num modelo organizativo completamente distinto do que esteve na génese das suas congéneres, o aparecimento do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional acabou por se afirmar como um importante fator de desenvolvimento social e desportivo para os habitantes de Aldeia de Paio Pires, isto porque, para além de uma significativa franja da sua juventude ter o pai a trabalhar na empresa, usufruindo, por isso, das infraestruturas que a agremiação possuía, também beneficiava de uma série de serviços que esta colocava à disposição dos associados. «Um dos serviços que mais afluência registava», conta Francisco Vilar, «era a denominada farmácia, embora não se tratasse de farmácia alguma, mas sim de uma secção onde os sócios adquiriam leite para bebés e outros produtos lácteos, a preços mais convidativos e com a vantagem de o respetivo custo lhes ser apenas debitado no final do mês. Por essa razão, o CPSN chegou a figurar entre os dez maiores pontos de venda que a Nestlé possuía em termos nacionais. «O mesmo se passava com a apelidada secção de óleos, que mais não era do que uma autêntica drogaria, onde se vendia de tudo um pouco, desde detergentes a produtos de limpeza, óleos, passando por baterias de automóvel, pneus, etc.» Instituição de cariz associativo que apesar de manter em atividade um vasto conjunto de mo-
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dalidades apenas se dedicava aos chamados escalões de formação, razão porque muitos dos seus atletas, designadamente os que praticavam hóquei em patins, quando chegavam a júnior transitavam para outras agremiações, tendo alguns deles ingressado no Seixal Futebol Clube e, outros, em equipas da primeira divisão. «Tal postura resultava de uma orientação que privilegiava o desporto de massas, entenda-se os associados e seus familiares, em detrimento de uma política desportiva alicerçada unicamente nos aspetos competitivos», adianta Albino Marques. «A par da vertente desportiva», lembra este ex-dirigente, «promovíamos uma regular atividade recreativa, em particular excursões, iniciativas que se caracterizavam pelos momentos de grande convívio entre todos aqueles que nelas participavam». Dois depoimentos produzidos por antigos dirigentes da prestigiada agremiação dos trabalhadores da extinta Siderurgia Nacional, pontuados, a espaços, pelo amargo travo da saudade. Um retrato de como a firmeza destes homens, habituados a derreter o aço, facilmente se verga ante a elevada temperatura dos sentimentos.
José Rosa Figueiredo Um poeta na biblioteca
1974 chegou a dar à estampa dois livros de poemas, o segundo dos quais prefaciado por Alexandre Cabral, é um dos muitos operários cuja participação na constituição da mencionada agremiação decorre do entusiasmo que desde muito novo nutre pelas coletividades e pelo trabalho cultural que estas desenvolviam. Por essa razão, integrou os corpos gerentes de diversas associações da Baixa da Banheira, freguesia onde reside, tendo fundado as bibliotecas do Ginásio Atlético Clube e do Clube União Banheirense, ao mesmo tempo que desenvolveu meritória atuação nos grupos cénicos da localidade. Não surpreende assim, que, a par de se tratar de um dos obreiros do aparecimento do Clube do Pessoal da empresa onde laborava, a sua intervenção se haja notado precisamente na área da cultura, o mesmo é dizer, na biblioteca, a única secção que a coletividade, ao tempo, possuía vocacionada para os domínios do saber e do conhecimento. Para este associativista natural do Barreiro, pai do malogrado ex-presidente da Junta de Freguesia da Baixa da Banheira e vereador da cultura da Câmara da Municipal da Moita, José Manuel Figueiredo, a constituição do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional está marcada por numa polémica, já que na altura foram apresentados como fundadores da instituição várias pessoas que não tinham sido vistas nem achadas em todo o processo.
Antigo funcionário da extinta Siderurgia Nacional e um dos fundadores do Clube do Pessoal da referida unidade fabril, José Rosa Figueiredo, 76 anos, poeta que no pós-25 de Abril de
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Lista oficial dos fundadores do clube ignorava alguns dos mais empenhados ativistas
Fundador da biblioteca e o primeiro vice-presidente não engenheiro
«Uma manobra que visava objetivamente atribuir os louros do trabalho desenvolvido a engenheiros e outros quadros da empresa, quando afinal foram operários e outros trabalhadores como eu que levaram a cabo tal tarefa», diz. «Em função disso, logo que tomei conhecimento de tão indecente manobra, imediatamente me insurgi contra tal atitude, lavrando um protesto escrito, pois não considerava correto que os verdadeiros fundadores da coletividade, aqueles que, como eu, figuram em diversos documentos que antecederam a sua formalização, vissem subitamente o seu nome desaparecer dessa relação», salienta. Ainda assim, reconhece que o principal dinamizador da fundação do clube foi um quadro técnico da empresa, que mais tarde desempenhou as funções de diretor da unidade fabril que a Siderurgia Nacional (SN) possuía na cidade da Maia, mas cujo nome não se recorda. Admitido na SN com o cargo de encarregado da secção de soldadura, no período em que ainda decorriam os trabalhos de construção da referida fábrica, José Rosa Figueiredo refere, no entanto, que o aparecimento da agremiação se revelou uma missão algo facilitada pelo apoio que a administração concedeu à concretização do projeto. «Neste quadro, fundar uma coletividade tornou-se, por isso, tarefa fácil, já que dispúnhamos de condições que as demais agremiações não possuíam», sustenta ainda este antigo dirigente.
Membro dos órgãos sociais do clube no decurso de vários mandatos, chegando mesmo a ser eleito vice-presidente para as atividades culturais, José Rosa Figueiredo sublinha igualmente um conjunto de gratas recordações que esse tempo lhe deixou: «a maior das quais», assinala, «foi a de ter participado na criação da biblioteca, espaço dedicado ao conhecimento e à cultura, que em dado momento da vida da agremiação se revelou de grande importância para a formação de muitos jovens, devido ao apoio que prestava aos estudantes, através do empréstimo de livros. Tal empréstimo contemplava não só os trabalhadores da empresa que pretendiam aumentar as suas habilitações literárias, mas, também, os filhos dos funcionários», acrescenta.
A circunstância de não dispor de uma licenciatura, como a generalidade dos seus colegas de direção, não o inibia minimamente, posto que a sua permanente entrega à leitura e à aquisição de conhecimentos da vida supria essa eventual falta, tornando-o, assim, num dos mais cultos elementos dos órgãos sociais, e, por consequência, uma das personalidades mais solicitadas pelos seus pares.
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«Uma experiência que me deixou gratas recordações», confessa, «aumentadas ainda com a circunstância de ter sido o único vice-presidente que não era licenciado em engenharia, já que, nesse tempo, quer a presidência, quer as vice-presidências para as diferentes secções eram sempre ocupadas por quadros técnicos, geralmente engenheiros com algum destaque interno», frisa. «Por conseguinte, a minha eleição para o cargo de vice-presidente para as atividades culturais constituiu, ao tempo, uma pedrada no charco do status que, até aí, havia sido seguido», sublinha José Rosa Figueiredo. Reportamo-nos, claro está, a um período anterior a Abril de 1974, época em que, a par do empréstimo de livros, a biblioteca levou também a efeito alguns colóquios, embora não saiba precisar quantos e quais os temas neles abordados, esquecimento que atribui à circunstância de há mais de 14 anos se encontrar aposentado e à natural perda de memória provocada pelo avanço da idade. «Festas e espetáculos de variedades, então nem têm conta», afiança este ativista do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional. «O mesmo se dirá quanto à organização de passeios que a coletividade regularmente levava a efeito. Tratava-se de uma iniciativa que colhia grande adesão entre os associados. A tal ponto se expressava essa adesão que uma vez chegámos a encher 16 autocarros de 52 lugares cada um».
«O clube preferiu apostar noutras modalidades em detrimento do futebol» Assumindo-se como uma instituição de âmbito social que desenvolvia a sua atividade nos domínios da promoção de eventos desportivos e recreativos e cuja atuação visava, objetivamente, o universo da empresa, a atuação do clube não deixava, todavia, de projetar, por essa forma, o nome da própria entidade empresarial para lá dos seus limites geográficos, ação que agradava sobremaneira à administração da referida unidade fabril, razão pela qual lhe dispensava um permanente apoio financeiro, colocando-o a salvo de qualquer eventualidade que pudesse colocar em causa a normal realização das suas atividades. Um quadro que contrastava com as tradicionais dificuldades que caracterizavam a existência das demais coletividades do concelho. «É evidente que o CPSN nunca atingiu a projeção desportiva que o seu congénere da CUF logrou alcançar, fundamentalmente porque a nossa orientação foi sobretudo dirigida para o fomento da prática de outras modalidades que não o futebol, já que, por essa altura, este se tornava numa indústria que movimentava muitos contos de réis, filosofia que escapava em absoluto aos nossos desígnios», esclarece José Rosa Figueiredo. Para além de toda a atividade recreativa e desportiva, a agremiação editava ainda uma publicação ilustrada, denominada «O Convívio», cujo diretor era, por força de uma determinação estatutária, o presidente da direção do clube mas, na verdade, a publicação foi, duran-
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te vários anos, coordenada pelo nosso interlocutor. «Essa publicação trimestral, distribuída gratuitamente aos associados, acolhia igualmente a colaboração de todos quantos nela quisessem participar, mesmo que não fossem funcionários da empresa», diz este antigo trabalhador da extinta Siderurgia Nacional. «Também aqui convirá referir que o apoio da empresa se fazia sentir, pois era ela quem assumia as despesas das minhas deslocações a Setúbal, cidade onde se encontrava a tipografia que procedia à impressão da revista, pagando-me, por essa razão, os dias em que estivesse ausente do meu posto de trabalho para acompanhar essa operação e as refeições que ali tivesse de efetuar». Segundo José Rosa Figueiredo, não obstante o limitado âmbito da aludida revista, isso não a dispensava de passar pela censura, como, de resto, sucedia com todas as publicações editadas em Portugal, mas a observância de tal disposição legal e a notória sanha que caracterizava os censores nunca constituíram obstáculo à publicação de textos cujo conteúdo se revestia de um cunho eminentemente social, tarefa algo difícil, ao tempo, dada a natureza repressiva do regime.
«Apesar dos constrangimentos, sempre iludimos a censura» «Em todo o caso, sempre publicámos o que entendemos, sem termos problemas com a censura», atira o antigo dirigente. «Só que para tanto, as coisas tinham de ser bem feitas, de modo a que não nos tornássemos em mais
um alvo dos homens que empunhavam o lápis azul», acrescenta ainda este fundador da biblioteca e responsável pela secção cultural, à qual estava afeta a mencionada revista. Detentor de uma grande experiência associativa, fruto da militância cultural e da intervenção cívica que sempre o instigou a participar na vida das coletividades da localidade onde reside, estando mesmo ligado, nos anos 1960, à fundação de uma escola nas instalações do Ginásio Atlético Clube da Baixa da Banheira, iniciativa que lhe valeu a perseguição da PIDE, um dos tentáculos do opressivo regime de então. No entanto, logo que se perspetivou a criação de um Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional, imediatamente se deixou seduzir pela ideia, entregando-se de corpo e alma à sua concretização. «É claro que a minha atuação no quadro do movimento associativo da Baixa da Banheira me acarretou alguns problemas com o fascismo, mas por absurdo que possa parecer, enquanto estive ligado ao Clube da Siderurgia, nunca senti que as perseguições de que era alvo cá fora se verificassem também lá dentro», refere José Rosa Figueiredo. «De igual modo, acrescento que nunca dávamos conhecimento da lista para os órgãos sociais do clube ao Governo Civil, ao invés do que sucedia com as demais coletividades, as quais viam, muitas vezes, afetado o seu normal funcionamento por via de alguns dos nomes nela inscritos serem cortados pelo representante do governo no distrito», adianta o autor de «Poemas das Algemas Quebradas». «Isso talvez se ficasse a dever ao extremo cuidado com que, tanto eu, como os restantes elementos conotados com a oposição, procurá-
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mos evitar tomar qualquer atitude suscetível de comprometer a agremiação e, desse modo, inviabilizar o trabalho que nela desenvolvíamos», esclarece o entusiasta militante associativo e reconhecido antifascista. Episódios que nos dão conta de uma entusiástica vivência associativa e nos remetem ainda para um tempo que importa não esquecer, re-
latados por aqueles que tomaram parte ativa na história do movimento associativo desta região do país, no caso em apreço do Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional, e muitas vezes são por ela esquecidos, apesar do relevante contributo prestado à valorização da dimensão humana em que assenta a história e o pujante processo de desenvolvimento do concelho do Seixal.
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Grupo Recreativo Casal de Santo António O único centro de convívio da pequena comunidade local
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Nasceu em 5 de maio de 1965 com o intuito de proporcionar ao crescente número de habitantes que se fixavam no pequeno núcleo habitacional do Casal de Santo António a existência de condições que permitissem a ocupação dos seus tempos livres e, com elas, o desenvolvimento de laços de convivência e vizinhança suscetíveis de fomentar o aparecimento de um forte espírito de comunidade entre todos quantos ali residiam. Não surpreende, assim, que o Grupo Recreativo Casal de Santo António se apresente como uma das mais genuínas agremiações populares do concelho, na linha, aliás, das pequenas coletividades de bairro emergentes do estabelecimento de relações de boa vizinhança que caracteriza este tipo de instituições, onde todos se conhecem e diariamente se relacionam. Sucede, no entanto, que todas as organizações tendentes a promover o convívio entre as pessoas não obtinham a simpatia do regime de então, motivo bastante para que o aparecimento da referida agremiação não apenas tenha sido visto com desconfiança por parte dos responsáveis das estruturas que localmente o suportavam, mas se haja ainda confrontado com a sua intolerância e incompreensão. Não foi, por isso, fácil a vida da popular coletividade, a qual além de não poder contar com nenhum tipo de apoio, quer este se manifestasse através de um incentivo material ou no mero plano moral, se teve de debater tanto com as suas próprias dificuldades, como com as tremendas dificuldades que lhe eram impostas pelos representantes do denominado Estado Novo colocados nesta região do país. Ante este cenário, e atenta a escassez de
recursos de que este tipo de entidades dispunham, por diversas vezes tiveram os dirigentes do mencionado Grupo Recreativo de encerrar as portas, situações que, no entanto, não quebraram o forte espírito associativo que animava a comunidade populacional que formava este pequeno núcleo da freguesia de Arrentela. Por esse motivo, quando eclodiu a Revolução dos Cravos, a popular coletividade encontrava-se encerrada, acontecimento que pela sua natureza veio aumentar significativamente o alento de quantos pugnavam pela elevação cultural dos portugueses, perspetivando a abertura de um novo e promissor ciclo de vida ao movimento associativo.
Aspeto da entrada da sede social da agremiação, antes da realização do conjunto de benfeitorias levadas a efeito com a mão de obra dos próprios associados e dirigentes.
Uma onda que perpassou igualmente pelos associados do Grupo Recreativo, os quais logo trataram de proceder à criação de uma comissão administrativa visando a reabertura da coletividade e a criação de uma lista para os corpos gerentes, um trabalho iniciado em 12 de outubro de 1974 e concluído a 13 de novembro desse mesmo ano, com a realização da corres-
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pondente assembleia geral, no decurso da qual teve lugar a eleição dos respetivos órgãos sociais. Obviamente que os ventos de liberdade que, ao tempo, sopravam de norte a sul do país não eram, por si só, suficientes para remover todos os escolhos que haviam marcado os últimos anos de existência da instituição, requerendo, por isso, uma forte determinação e um profundo empenhamento aos consócios que se dispuseram a tomar parte na delicada empresa de levantar a coletividade da letargia em que esta se encontrava mergulhada, tarefa que exigiu de todos quantos a ela se entregaram um elevado
espírito de sacrifício e o consequente prejuízo da vida particular de cada um. Um persistente esforço, que se prolongou por cerca de cinco anos, visando a consolidação daquele que era e continua a ser o único centro de convívio das gentes que constituem este carismático núcleo urbano, situado paredes meias com as instalações da Siderurgia Nacional e erguido pouco tempo depois de a referida unidade fabril ter iniciado a sua laboração, com o objetivo de incentivar a fixação daqueles que pretendiam estabelecer residência próxima do local de trabalho.
Uma das diversas equipas de futebol que representaram o Grupo Recreativo Casal de Santo António.
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José Maria Alves Memórias de um dos fundadores do popular Grupo Recreativo Elemento pertencente ao núcleo fundador da popular coletividade, à qual, de resto, permanece ligado por indestrutíveis laços de afetividade, José Maria Alves é um dos muitos habitantes do lugar de Casal de Santo António que, buscando uma vida melhor, se fixaram neste pequeno aglomerado habitacional situado num dos extremos da freguesia de Arrentela. Tal como outros moradores do bairro, também ele era ainda jovem quando aqui estabeleceu residência, numa época em que os motivos de diversão não abundavam, a não ser os que as quintas em redor lhes proporcionavam, razão bastante para que neles começasse a germinar o desejo de fundarem um clube, à semelhança do que se registara noutras zonas do concelho. Tal anseio acabaria por colher a simpatia de alguns dos habitantes pertencentes a outros escalões etários, mobilizando, dessa forma, outros saberes e vontades, de todo indispensáveis à realização de tão ambicionado objetivo. Poder-se-á, por isso, afirmar que o aparecimento do Grupo Recreativo Casal de Santo António constitui uma clara manifestação do espírito empreendedor que caracterizava os jovens que, ao tempo, ali residiam, instigados pela enorme vontade de encontrarem um local de convívio e de entretenimento, suscetível de lhes proporcionar outras formas de ocupação dos tempos livres, para além dos habituais jogos de futebol.
«Uma pessoa que muito contribuiu para a realização do projeto que nos animava foi António Veiga», começa por salientar José Maria Alves, que destaca ainda os contributos de Manuel Joaquim, António Ferreira, José Borralho, Manuel António, entre outros, e sem os quais mais difícil seria levar a cabo a fundação da coletividade, dada a complexidade das formalidades burocráticas que um processo dessa natureza impunha. «Meu irmão Manuel, também ele mais velho que qualquer de nós, foi outro dos elementos que colaborou ativamente na resolução dos quesitos legais que, na altura, nos foram exigidos para a legalização do clube e das inúmeras deslocações que tais documentos obrigavam. Isto numa época em que poucas eram as carreiras de transportes públicos para esta zona do concelho», adianta o mencionado associado.
Pouca idade de José Maria Alves impediu-o de figurar entre os cinco primeiros fundadores «António Veiga, então, foi incansável nas constantes deslocações que teve de fazer a Lisboa, a fim de tratar de assuntos relacionados com a legalização da agremiação, perdendo, por via disso, muitas horas de trabalho e a consequente redução do seu ordenado no final do mês. Uma coisa pouco provável nos dias de hoje», afirma José Maria Alves. A propósito do processo de oficialização da popular instituição, um episódio que importa registar prende-se com o facto de o nome do conhecido entusiasta do Grupo Recreativo Casal de Santo António, tido como um dos dois
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principais mentores da criação de uma coletividade no bairro, não poder figurar entre os cinco primeiros elementos da lista de sócios fundadores, já que, nessa altura, estes teriam forçosamente de ser adultos. «A lista em causa era constituída por 25 nomes, aparecendo eu em segundo lugar, devido à circunstância de todos me reconhecerem como um dos autores da ideia», diz José Maria Alves, «só que por imperativos de ordem legal, os cinco primeiros subscritores não podiam ser menores, ou seja, ter menos de 21 anos, situação que me impediu de figurar nesse quinteto, já que apenas tinha 17 anos. Em função disso, a lista teve de ser refeita, sendo o lugar que me estava inicialmente destinado atribuído a João Barreira, passando eu a ocupar uma posição de menor relevo», esclarece. Uma etapa vencida a pulso, designadamente porque o regime vigente não observava com bons olhos este tipo de iniciativas ante a sua génese eminentemente popular, um cenário que dificultava sobremaneira o seu dia a dia, uma vez que para além de não desfrutarem de nenhum tipo de apoio concedido pelas entidades oficiais, estas ainda lhes levantavam obstáculos por dá cá aquela palha.
Primitiva sede da coletividade funcionava no Café da Maria Sobrevivendo apenas da quotização dos seus associados, não se perspetivava, assim, possível, dispor de uma sede própria. Contudo, a existência de um café, por sinal, o único estabelecimento do género ao tempo localizado no bairro, circunstância que o tornava no principal
ponto de encontro dos moradores do lugar e a boa vontade do seu proprietário permitiram que o Grupo Recreativo utilizasse as suas instalações como sede social. «No referido estabelecimento, denominado Café da Maria, mais tarde propriedade de minha sogra, é que nos reuníamos e guardávamos os troféus que lográvamos conquistar. Aliás, foi precisamente nesse café que arranjei namoro com minha esposa, fator que reforçou ainda mais os profundos laços de afetividade que me ligam ao clube, apego que, de resto, se mantém até hoje», conta José Maria Alves. Mais tarde, devido à exiguidade do espaço, decidiram os responsáveis da coletividade instalar-se numa antiga barbearia, mudança a que não foi estranho o rumor de que esta iria transferir-se para a atual Avenida General Humberto Delgado, Paio Pires, tendo, logo que tal rumor se concretizou, arranjado um fiador e falado com o senhorio do imóvel para tomar o respetivo aluguer. «Os principais líderes desse processo foram António Veiga, já então morador do prédio, e José Varandas, barbeiro que exercia a sua atividade profissional nesta zona do concelho, entre tantos outros. Por força da minha tenra idade, não tomei parte ativa nessas diligências, mas recordo-me que inicialmente o caso andou um pouco embrulhado, por via de o senhorio imaginar que não pagássemos a renda. Uma desconfiança que o levou a permitir que o imóvel chegasse a ser utilizado, durante alguns meses, como aviário. Felizmente que tais reservas se dissiparam e lá resolveu alugar-nos a casa», relata o nosso interlocutor.
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Obras de beneficiação da sede realizadas pelos sócios e dirigentes Alcançada tão desejada vitória, havia, pois, que proceder à remodelação do espaço, dotando-o das necessárias condições de funcionalidade, tendo em vista o uso a que ora se destinava, entre elas diversas benfeitorias, nomeadamente a criação de um balcão para a instalação de um pequeno bar, instrumento essencial à obtenção de fundos que pudessem ajudar a suportar o encargo resultante da renda, mesmo tendo em conta que, nessa altura, um café custava 1$00 e um bagaço 0$50. «Considerando que as posses eram poucas, fomos nós que realizámos todas as obras, dando não apenas a mão de obra mas participando, também, nos peditórios que levámos a efeito, com o intuito de angariar fundos que nos permitissem adquirir os materiais que não encontrávamos no concelho. E como não havia possibilidades de comprarmos tudo quanto precisávamos, pedimos uns sacos de cimento a várias firmas do concelho, designadamente à empresa A. Silva & Silva. Uma tarefa que mobilizou novos e velhos. Uns soldavam, outros faziam o trabalho de pedreiro. E os que não tinham jeito para uma coisa nem para outra faziam massa», assinala José Maria Alves. «Estamos a falar de um tempo em que os ordenados eram muito baixos, fazendo com que as pessoas vivessem com grandes dificuldades. Por essa razão, o valor da quota tinha, forçosamente, de ter em atenção as possibilidades dos moradores do bairro, até porque as rendas de casas então praticadas já andavam nos 400$00
(cerca de 2 €), verba muito significativa para a época. Em muitos casos, o vencimento auferido pelo inquilino não chegava para satisfazer essa obrigação mensal, vendo-se, pois, este obrigado a subalugar parte da habitação, para conseguir pagar a renda», relembra o empenhado associado do Grupo Recreativo Casal de Santo António.
Valorizando, desde a primeira hora, as características de sociedade de bairro, o Grupo Recreativo prontamente se tornou no grande centro de convívio dos habitantes do Casal de Santo António, quer se tratasse de adultos ou de jovens.
Natural de Mação, Santarém, mas residindo com um irmão mais velho, José Maria Alves fixou-se no pequeno lugar de Casal de Santo António aos 14 anos, situação que lhe confere o estatuto de testemunha privilegiada da vida, dos hábitos e modus vivendi dos habitantes do
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referido bairro e, em particular, da agremiação que ajudou a fundar. «Tratava-se, tal como hoje, de um núcleo populacional constituído por gente simples, que vivia exclusivamente do seu trabalho. Ora, como os ordenados eram extremamente baixos, tudo quanto ganhavam destinava-se a assegurar o seu sustento, cenário que afetava igualmente a vida da instituição, cujos recursos de que dispunha resultavam unicamente da quotização dos associados e das receitas do bar. Por via disso, quando se aventou a ideia de arranjarmos um emblema para o clube, este não tinha condições para pagar a quem o pudesse fazer, acabando tal trabalho por ser confiado a um associado que revelava um certo jeito para o desenho», revela este fundador da popular coletividade.
Jogos tradicionais portugueses, bailaricos e jogos de futebol entre os associados eram boas fontes de receita Um quadro de dificuldades que obrigava os dirigentes da agremiação a frequentes exercícios de imaginação tendentes a descobrir formas de obter receitas que possibilitassem a compra dos materiais necessários à realização de pequenas benfeitorias, como a reparação do balcão do bar ou a pintura das paredes interiores da sede, trabalhos que os próprios levavam a efeito noite dentro. «Para isso, organizávamos periodicamente os denominados jogos tradicionais portugueses, em especial o pau de cebo e corridas de sacos, aproveitando para tal a existência de um amplo terreno situado em frente às instalações do clu-
be», lembra José Maria Alves. No vasto conjunto de memórias coligidas ao longo dos anos, o antigo dirigente do Grupo Recreativo Casal de Santo António assinala ainda ter sido esta a primeira agremiação do concelho a praticar cicloturismo, «isto num tempo em que a modalidade quase não tinha expressão», afirma. A par de outras iniciativas visando a angariação de fundos, tais como a promoção de sorteios e a realização de peditórios, os convívios futebolísticos entre os associados constituíam outra grande fonte de receita, uma vez que cada elemento da equipa perdedora ficava obrigado a pagar 10$00, ou seja, 0,05 €. «Tal como sucedia nas demais coletividades, os bailes eram igualmente uma excelente forma de obter receitas. Para tanto, construímos um palco de madeira, aproveitando para o efeito o terraço da casa mas, como se tratava de um espaço em terra batida, volta não volta lá tínhamos de andar a regá-lo. Mesmo assim, trouxemos aqui grandes conjuntos desse tempo. Alguns deles, porventura os melhores de quantos então existiam, como o Holliday In, sediado no Barreiro, e outro da Cova da Piedade, cujo nome agora já não recordo, vieram cá atuar diversas vezes. O seu cachet andava entre os 500 e os 600$00 escudos, importância equivalente a 2 ou 3 €, quase uma fortuna para a época, especialmente porque as entradas de não sócios custavam no máximo 30$00 (0,15 €) já que os associados pagavam aquilo que entendiam ou podiam», adianta José Maria Alves.
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Espetáculo com Hermínia Silva, Max e Paco Bandeira durou até de manhã «Casos houve em que a verba obtida não chegava para pagar ao conjunto e lá tinham os membros da direção de suprir da sua algibeira o valor em falta. Tal situação não ocorreu apenas uma ou duas vezes, aconteceu frequentemente. Isso só não se verificava nos diversos espetáculos de variedades que levávamos a efeito. Num deles, atuaram Hermínia Silva, a qual trazia sempre Paco Bandeira, seu afilhado artístico, Max e muitos outros nomes do nosso meio musical», informa o entusiasta fundador do popular Grupo Recreativo. «Todos vieram gratuitamente e as únicas condições que nos colocaram foi a de apenas virem depois de haverem terminado as respetivas atuações nas casas de fado onde cada um trabalhava e lhes assegurarmos não apenas o transporte mas também o regresso a Lisboa. Como, nesse tempo, só Leal Augusto e Otílio Guerreiro possuíam automóvel, coube-lhes a eles a tarefa de irem buscar e levar os artistas, pelo que acabaram por não ver nada. Além disso, o mencionado espetáculo teve lugar no Cinema S. Vicente, também ele graciosamente emprestado pela família Bonaparte Figueira, então proprietária da referida sala, já que as instalações do clube não dispunham de condições para realizar tal acontecimento», informa. «Uma noite que ainda hoje permanece na memória de quantos estiveram envolvidos na sua organização», refere com evidente satisfação José Maria Alves. «A casa esgotou e o entusiasmo com que o público os recebeu foi tal que o
programa se estendeu até de manhã», diz José Maria Alves. Na opinião deste fundador da popular instituição do Casal de Santo António, tratou-se de um evento que reuniu uma ampla conjugação de esforços e vontades, como, aliás, era norma nessa época, quer da parte dos dirigentes da agremiação promotora, quer de outras personalidades ligadas ao movimento associativo local. «Esse clima de entreajuda que ao tempo se observava explica que apesar de nada ter a ver com o Grupo Recreativo mas, antes, com o Clube do Pessoal da Siderurgia Nacional, o engenheiro Francisco Vilar, pessoa que nutria um elevado apreço pela nossa coletividade, tenha sido uma das personalidades que intercederam junto dos proprietários do cinema para que estes nos cedessem aquele espaço, para nele realizarmos o mencionado espetáculo», acrescenta o antigo dirigente associativo.
Natureza eminentemente popular da agremiação e seus associados torna-a no único centro de convívio dos habitantes do bairro Ante a natureza eminentemente popular da aludida agremiação, a realização deste tipo de eventos, além de constituir um meio de proporcionar aos associados alguns momentos de lazer e de cultura, constituía ainda uma forma de obtenção de fundos, posto que as únicas fontes de receitas que então possuía provinham exclusivamente da quotização e da exploração do bar. No entanto, a promoção desse género de ini-
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ciativas revestia-se de um carácter esporádico, dado que apenas ocorriam de tempos a tempos. O único que resultava de uma programação devidamente calendarizada era o baile de fim de ano. Tudo o resto acontecia quase de forma espontânea, fruto do bom relacionamento pessoal que um ou outro elemento da direção mantinha com este ou aquele cançonetista. «O tradicional baile de fim de ano, esse sim, era antecipadamente programado, já que se tratava de uma iniciativa cujos ingressos assentavam na reserva de mesas, geralmente ocupadas pelos sócios, que para tanto pagavam em função do número de cadeiras que cada uma delas tivesse. Um modelo organizativo que nos permitia pagar a quem vinha tocar e captar algum dinheiro, ainda que pouco, para a coletividade», refere José Maria Alves. «Outra curiosidade em torno da agremiação resulta do facto de esta se ter constituído no grande centro de convívio das pessoas do bairro, contribuindo, assim, para que todos se conhecessem pelo seu nome próprio, independentemente da idade de cada um», sublinha o ativista do Grupo Recreativo. «No fundo, a instituição sempre desempenhou o papel de principal motor da vida social desta zona da freguesia. E tanto assim é que quando por motivos de força maior o clube se viu forçado a encerrar as portas, o bairro deixou de ter qualquer atividade social. Desde logo, porque neste núcleo populacional, ontem, tal como hoje, não existia mais nenhum local de convívio onde as pessoas se pudessem encontrar para trocarem impressões ou debaterem ideias». Ademais, importará salientar que a atividade desenvolvida pela coletividade não se limitava
apenas à realização do habitual baile de fim de ano e de um espetáculo de variedades. Quando as circunstâncias o permitiam, estendia-se ainda ao teatro, expressão artística que despertava especial interesse junto dos associados, devido à existência de um grupo cénico infantil.
A intervenção da coletividade no quadro da pequena comunidade que habitava esta zona residencial estendia-se também ao domínio da cultura, devido à existência de um grupo de teatro infantil cuja atividade suscitava o interesse dos mais jovens moradores do bairro.
«O elenco, formado por crianças de idades compreendidas entre os 6 e os 12 anos, evidenciava tamanha desenvoltura que chegou a receber convites para atuar em Almada, Setúbal, Seixal e noutras localidades da região. Mas como se isso não fosse suficiente, o entusiasmo que o aparecimento do grupo cénico despertou no seio dos moradores foi de tal ordem que tanto os cenários, como as peças eram também da autoria de pessoas do bairro. O mesmo acontecia com o ensaiador», conta o ex-dirigente do Grupo Recreativo Casal de Santo António.
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Aquisição da sede social conseguida através de empréstimo concedido pela massa associativa Não obstante as dificuldades com que este tipo de instituições se debatia, o fervor associativo que animava os sócios da instituição não perdia, contudo, o seu fulgor inicial, tornando possível a concretização de alguns projetos quase impensáveis para as possibilidades de uma coletividade como esta. Uma clara manifestação do quão profundo se afirmava esse espírito associativo revelou-se no momento em que o senhorio decidiu apresentar à agremiação uma proposta tendente a propor a venda das instalações onde esta se encontra sediada. «Quando recebemos a proposta para comprarmos a sede pelo valor de 350 contos (cerca de 1750 €), ficámos um pouco embaraçados, uma vez que as posses do clube eram poucas e o recurso ao crédito bancário estava fora do nosso alcance, já que nenhum dos membros dos corpos gerentes tinha condições para se responsabilizar por tamanha dívida, pois viviam do seu modesto ordenado. Face a essa situação, convocou-se uma assembleia geral para debater o assunto e procurar encontrar uma solução que possibilitasse ultrapassar o problema que tínhamos entre mãos. Ora, como não se vislumbrava outro meio de solucionar a questão, lembrei-me de sugerir que se efetuasse um empréstimo junto dos cerca de 400 associados que a coletividade possuía, participando cada um com uma verba de mil escudos.» Aprovada a proposta e definidos os meios de a tornar exequível, imediatamente surgiram os primeiros subscritores. Entre eles, José Maria Alves, que não só se afirmou disposto a tomar
parte nas iniciativas conducentes à sensibilização da massa associativa para a bondade de tal subscrição, como ainda ofereceu o valor da sua comparticipação financeira na referida campanha. «Depois de mim, outros se seguiram. Uns oferecendo também a parte que lhes cabia e outros ofertando o seu trabalho, como, aliás, sucedeu com o alfaiate do bairro, o qual, para além de comparticipar com mil escudos, decidiu igualmente dar o corte de um fato, no valor de cinco ou seis contos, um dinheirão para aquele tempo, viabilizando, desse modo, a realização do sorteio de um fato confecionado à medida do detentor da rifa premiada», lembra o carismático associado e cofundador do Grupo Recreativo Casal de Santo António.
João da Silva Barreira Mais de três décadas ligado à agremiação Pessoa muito estimada entre os associados da popular coletividade, João da Silva Barreira, 63 anos, ourives de profissão, é um dos muitos habitantes do bairro que acompanharam a par e passo quer o nascimento do Grupo Recreativo, quer a sua consolidação, enquanto local de convivência entre os moradores deste reduzido núcleo populacional. Poder-se-á mesmo afirmar que a circunstância de possuir um estabelecimento no coração do bairro, desde os tempos em que o aparecimento da agremiação ainda não passava de um sonho acalentado pelos mais novos, conferia àquele espaço uma vocação social que extravasava a mera atividade comercial, dado que se tornara num dos principais veículos de infor-
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mação sobre tudo quanto acontecia no mencionado lugar, como, aliás, era característico dos pequenos aglomerados populacionais. Desde logo porque tratando-se de uma casa pela qual passavam diariamente tanto os clientes, como os vizinhos, uns contratando os seus serviços, outros motivados unicamente por dois dedos de conversa, facilmente se compreende que a loja de João Barreira e Silva haja também assumido, nessa época, o interessante papel de polo recetor das novidades que ali aconteciam. Não é, por isso, despicienda a afirmação segundo a qual este militante associativo se constitui uma das testemunhas fidedignas acerca da fundação da modesta mas prestigiada instituição do Casal de Santo António cuja existência, de resto, tem acompanhado desde a sua génese.
Aluguer da sede custava 400$00/mês «Corria, talvez, o ano de 1962, quando surgiram os primeiros grupos de rapazes a jogar futebol nas quintas que envolviam os edifícios aqui existentes, começando a conquistar alguns troféus nos torneios em que participavam. Mas porque não tinham onde guardar as taças, recorreram ao proprietário do café, então aqui existente, para que este autorizasse a respetiva deposição no seu estabelecimento. Obtida essa autorização, logo a rapaziada começou a eleger esse espaço comercial como o seu local de encontro predileto. Daí à ideia de se proceder à formação de um clube foi um pequeno passo. Tanto mais que a casa onde funcionava a antiga barbearia do bairro havia, entretanto, ficado devoluta, situação que muito os estimulou a le-
varem por diante os seus intentos», começa por relatar João Barreira. «O aluguer foi tomado por 400$00/mensais (cerca de 2 €), importância muito avultada para aquela altura, situação que obrigava os dirigentes da nova agremiação a desdobrarem-se em iniciativas que permitissem a angariação do valor necessário à satisfação de tal encargo. Uma delas foram precisamente os bailes, aproveitando a dinâmica que ao tempo este tipo de realizações possuía, utilizando para tanto o terraço situado nas traseiras da casa. Sucede que o terreno era de terra batida e apresentava alguns buracos, o que provocava, por vezes, a queda de alguns pares, percalços que, ao invés de se tornarem num motivo de aborrecimento para quem neles se via envolvido, antes contribuíam para a criação de um clima de boa disposição e de saudável convivência que animava quantos neles participavam, na sua maioria gente do bairro», conta este associado da popular coletividade. Um espírito de convivialidade e união, alicerçado em sólidas relações de boa vizinhança e aprofundado, mais tarde, na agremiação, com a criação de um grupo de teatro amador, cujo talento evidenciado por aqueles que o integravam não apenas levou o nome da instituição a várias localidades do concelho, mas o projetou também para além dos seus limites geográficos. «A formação do grupo cénico e o entusiasmo que se gerou à sua volta reforçou ainda mais esse clima de coesão que definia as gentes do Casal, na sua quase totalidade operários da Siderurgia Nacional», diz João da Silva Barreira. «Por esse motivo, as representações realizavam-se ao fim de semana e o género de teatro
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Uma das formas inicialmente utilizadas pela agremiação para congregar em seu redor os moradores do referido bairro assentava no estabelecimento de intercâmbios com agremiações de outros pontos do país, em ordem a que, tendo como pretexto um jogo de futebol, entre a coletividade seixalense e as suas congéneres, igualmente promovesse a organização de excursões a várias localidades de Portugal. A foto regista a equipa que representou o Casal de Santo António numa dessas iniciativas. No caso, João Barreira encontra-se ao centro, na fila de cima.
a que se dedicava era, geralmente, a comédia, dado ser aquele que mais agrado registava entre os associados e o que mais se ajustava às características dos atores, todos eles amadores». Intervalando sempre que possível as atuações do referido grupo teatral com a promoção dos tradicionais bailaricos, a massa associativa da agremiação todos os domingos encontrava um motivo de interesse para se reunir e conviver, já que nessa época o quadro de ofertas de entretenimento era incomparavelmente mais reduzido do que aquele que hoje se verifica, tanto a nível concelhio, como no quadro da região. «Fruto desse ambiente, marcado pela sã ca-
maradagem, anos volvidos, lá surgiu um conjunto musical formado por rapazes que aqui moravam, o qual começou, então, a abrilhantar os bailes, pois até essa altura a música era ao som de acordeão, já que não havia dinheiro para mais», adianta o popular associado. Além de todas as iniciativas já mencionadas, uma há que merece igual referência por parte do nosso interlocutor: tratou-se do intercâmbio mantido durante vários anos com uma agremiação de Ermesinde, no decurso do qual os associados do Grupo Recreativo se deslocaram àquela localidade nortenha para retribuir visitas que os elementos da sua congénere haviam feito.
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Na foto, Sérgio Gomes, o segundo a contar da esquerda na fila de cima, e Luís Miguel, o da direita na fila de baixo, foram dois dos jovens do bairro que se iniciaram na popular coletividade. O primeiro deixou a atividade desportiva para se dedicar às artes do espetáculo, o seguindo prosseguiu a sua carreira com algum êxito, chegando a representar vários clubes da Primeira Divisão, entre os quais o Sporting Clube de Portugal.
«Apenas um ano não pertenci aos órgãos sociais da coletividade» «Um período muito interessante da vida da nossa coletividade que nos possibilitou o convívio com outras gentes», sublinha o conceituado dirigente associativo, cuja ligação à coletividade se prolonga há mais de 30 anos, dado que desde a fundação da aludida instituição só houve um ano em que não integrou os órgãos sociais da popular agremiação. «Depois de ter passado diversas vezes pela direção, decidi apenas manter a disponibilidade para fazer parte da mesa da assembleia geral, por via de evitar conflitos familiares provocados pelas exigências que se colocam a quem de-
A foto apresenta-nos a primeira equipa juvenil constituída no seio do Grupo Recreativo Casal de Santo António.
sempenha funções diretivas neste tipo de coletividades e pelo consequente afastamento do lar que o desempenho de tais funções obriga», salienta João Barreira. «Além disso», acrescenta, «os estatutos iniciais da coletividade vedavam a entrada das mulheres na sede da agremiação, situação que aumentava ainda mais a sua animosidade relativamente ao clube. O problema só seria ultrapassado quando se procedeu a uma reformulação estatutária, alteração que ocorreu vários anos após a fundação da instituição. Até aí, era um bico de obra pertencer à direção, já que quem dela fizesse parte sabia que, volta não volta, se teria de confrontar com desavenças conjugais, alegadamente motivadas pela sua ausência de casa, mas cuja verdadeira origem radicava, afinal, que tão absurda disposição constasse dos estatutos», esclarece o conceituado dirigente do Grupo Recreativo Casal de Santo António.
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«Creio que a colocação desse artigo nos estatutos resultou do espírito que prevalecia nessa época, já que a maior parte das pessoas que lideraram o processo de oficialização da coletividade haviam frequentado um sistema de ensino primário que distinguia sexos, colocando rapazes e raparigas em escolas separadas, incutindo-lhes, desde crianças, a ideia de que havia coisas permitidas aos rapazes que eram vedadas às raparigas. A meu ver, foi essa deformação educativa que acabaria por ser vertida nos estatutos do clube. Felizmente, tudo se modificou, até porque, com a entrada das mulheres na coletividade, esta adquiriu uma nova dinâmica, permitindo o aparecimento de novas valências, tais como a pesca desportiva e o teatro», realça João Barreira. Com efeito, tal adequação estatutária, tendente a transformar a agremiação na verdadeira sala de convívio dos habitantes do lugar, possibilitou ainda a entrada de uma lufada de ar fresco, expressa na criação de diversas atividades recreativas e culturais, e com elas a descoberta de novos talentos, tanto no domínio das artes, como a nível desportivo. «Sérgio Gomes, jovem que está a fazer uma interessante carreira nas artes circenses, é um dos miúdos que despontou em consequência do trabalho levado a cabo nesse período. O mesmo se dirá da cançonetista Tina, filha de um dos associados que já presidiu à direção da coletividade, cuja carreia teve o seu início em espetáculos ou festas promovidas pelo Grupo Recreativo. E no capítulo desportivo, o que atingiu maior notoriedade foi o futebolista Luís Miguel, que representou o União de Leiria, Sporting Clube de Portugal, Campomaiorense e Farense», informa João da Silva Barreia.
Agostinho Gomes da Silva Um madeirense rendido ao espírito associativo Natural da cidade do Funchal, Madeira, mas radicado há várias décadas neste lugar do concelho do Seixal, Agostinho Gomes da Silva, vulgo «Silva Alfaiate», por mor de ali exercer o seu ofício, utilizando para o efeito uma das dependências da sua própria residência, é outro dos habitantes do bairro que seguiram de perto o processo de gestação e crescimento da sua representativa coletividade. Dir-se-á que a circunstância de ter instalada a sua oficina de costura num rés do chão de um edifício situado paredes meias com a atual sede da instituição associativa faz dele um dos observadores privilegiados dos diferentes estádios por que esta passou ao longo da sua existência. Desde logo porque, habituando-se a trabalhar com as persianas levantadas, para que mais aliviada fique a vista quando tem de observar os riscos dos pespontos ou alinhavos, prontamente fez nascer em muitos vizinhos o hábito de se deterem diante da sua janela com o intuito de trocarem com ele dois dedos de conversa. É, pois, neste quadro de sociabilidade, tão característica nessa época, que Agostinho Gomes da Silva fixou raízes, tanto profissional como socialmente. A tal ponto que adotou como seu verdadeiro nome aquele que a vizinhança lhe atribuiu, relegando para plano subalterno o que figura no Bilhete de Identidade, preferindo, pois, identificar-se como «Silva Alfaiate», designação
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pela qual é conhecido entre os associados da coletividade e demais gentes do lugar. Não é, por isso, gratuito dizer-se que este amante das causas associativas, às quais já se dedicava antes de deixar a sua ilha natal e rumar ao continente em busca de melhores condições de vida, se revela numa das testemunhas cujo depoimento importava colher neste trabalho acerca do popular Grupo Recreativo sediado no Casal de Santo António.
«O clube nasceu em minha casa» «O clube nasceu na minha casa», atira Agostinho Gomes da Silva, ou, se se quiser, «Silva Alfaiate», logo que instado a desfiar as suas memórias no quadro da aludida agremiação. «A história começou quando o eletricista aqui do bairro, um rapaz de apelido Ferreira, procedia à montagem de uma instalação elétrica em minha casa e me deu conta da vontade da rapaziada em realizar uma excursão a Mação, Abrantes, desejo que, em seu entender, esbarrava nas evidentes dificuldades económicas que, ao tempo, se faziam sentir, dado tratar-se de uma zona pobre, habitada por pessoas que auferiam ordenados muito baixos», revela o conhecido associado. «Perante tal cenário, tomei a liberdade de lhe sugerir que se fizesse uma sociedade formada pelos interessados, pagando cada um uma pequena importância semanal, de modo a que, quando chegasse a altura prevista para tal deslocação, houvesse o dinheiro necessário ao pagamento do autocarro ou, em alternativa, que se organizassem alguns jogos de bola entre a rapaziada, ficando os elementos da equipa
derrotada obrigados a pagar uma verba antecipadamente definida, valor que revertia para a concretização desse passeio», adianta este associado do Grupo Recreativo. «O entusiasmo que caracterizou esta primeira iniciativa foi de tal ordem que imediatamente fez despertar a intenção de se constituir uma coletividade. Nessa altura, o grupo tinha apenas doze elementos dinamizadores, ou seja, os onze rapazes que formavam a equipa, mais eu, que assumia as funções de massagista, o mesmo é dizer, o guarda do garrafão», afirma com um expressivo sorriso. «Acontece, entretanto, que a barbearia então existente onde hoje se encontra a sede ficara devoluta, tendo-me sido proposto o seu aluguer mas, como não estava interessado, prontamente dei conhecimento do assunto à restante rapaziada, tendo-se decido empreender diligências para que o senhorio a alugasse ao clube, o que veio a suceder algum tempo depois. Mas, como a anterior utilização da casa nada tinha a ver com a que, a partir daí, lhe seria dada, concluímos ser oportuno efetuar uma pequena decoração do espaço, pelo que mais não fosse, colocando-lhe uns cortinados nas janelas, de modo a evitar que este se apresentasse despido no dia da abertura», conta o empenhado associado. «Comprados os tecidos e constatando-se não haver, entre nós, mais ninguém capaz de confecionar os cortinados, por via da minha profissão, recaiu sobre mim essa tarefa, razão pela qual na noite que antecedeu a abertura, ter tido de trabalhar até de manhã, para que à hora de abrir as portas tudo estivesse conforme», salienta o popular «Silva Alfaiate».
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«Uma festa que registou a colaboração de vários fadistas amadores e cuja organização contou com a participação de diversos associados, o que nos permitiu arranjar alguns tostões, mas insuficientes para assegurar o pagamento da renda desse mês. Ora, como se dava a feliz coincidência de haver aqui no bairro um rapaz que tocava gaita de beiços, instrumento em que eu também dava um jeito, ocorreu-nos a ideia de efetuarmos alguns ensaios com o intuito de começarmos a realizar todas as tardes de sábado um bailarico, com o propósito de angariamos fundos. A iniciativa prolongou-se por alguns meses, pois nessa altura não havia outra forma de entretenimento», explica Agostinho Gomes da Silva. «O pior foi que a dada altura as pessoas se cansaram e a receita obtida não chegava sequer para a luz. Por via disso e porque para pagarmos a renda não podíamos pagar a luz, lembrei-me de fazer uma ligação clandestina de minha casa para a sede, só que, para mal dos meus pecados, um certo dia os empregados da União Elétrica vieram bater-me à porta com a missão de me cortar a luz. Vi-me um pouco atrapalhado para descalçar esse “par de botas” ao mesmo tempo que a coletividade esteve prestes a fechar as portas», confessa. «Porém, graças à boa vontade de um associado, o caso lá se resolveu.»
A Alma Mater do enterro do entrudo Vencida esta etapa, havia, pois, que oficializar a agremiação, missão que se revestiu de elevada complexidade ante as dificuldades colocadas pela PIDE, que não aceitou o nome de diversos fundadores, tendo o Governo Civil devolvido todo o processo. «Para além de pretenderem que os estatutos fossem como eles lá entendiam, ainda por cima riscaram o nome de vários proponentes, por consideraram que estes nem tão-pouco podiam ser sócios, muito menos figurar entre os 25 fundadores da coletividade. Enfim, o cabo dos trabalhos!... Mesmo assim, lá arranjámos quem os substituísse e, apesar dos inúmeros contratempos com que nos confrontámos, conseguimos, finalmente, ultrapassar o problema», relata o dedicado ativista do Grupo Recreativo.
A circunstância de haver estabelecido residência fora da ilha da Madeira não constituiu nenhum impedimento a que Agostinho Gomes da Silva continuasse a cultivar o gosto pela música. Para isso muito contribuiu o seu ingresso na Orquestra Alegres do Ritmo, agrupamento do qual fez parte nos anos 1950, como no-lo confirma a presente foto. Neste registo, Agostinho Gomes da Silva encontra-se na primeira fila, sendo o quarto a contar da direita.
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É neste quadro de normalidade constrangida que dão início à programação de um conjunto de iniciativas periódicas, as quais suscitam o agrado tanto dos associados como dos demais habitantes do bairro. Entre elas, o arraial popular e os respetivos bailes, por ocasião dos Santos Populares, e o enterro do Carnaval, vulgo, Enterro do Bacalhau, cortejo no qual o nosso interlocutor desempenhava o papel de padre. «Para não fugir à regra, todos os preparativos deste acontecimento tinham também lugar em minha casa, local onde se construía a respetiva urna, depois de comprada a madeira para o efeito e se faziam os paramentos necessários à “cerimónia”. Reunidas as figuras que habitualmente integram este tipo de cortejos, consegui igualmente obter ainda a participação de uma charanga para abrir o desfile, atrás da qual eu me posicionava, tendo a meu lado o “sacristão”, transportando um penico cheio de água que servia para de vez em quando molhar o pincel com que borrifava a assistência», refere no seu peculiar modo de se expressar, um misto de pronúncia madeirense e continental. «Um desfile, geralmente, efetuado não apenas pelas duas ou três ruas que constituem o bairro, mas incluía igualmente algumas das principais artérias de Aldeia de Paio Pires. Numa ocasião, quando chegámos ao Alto do Brejo, já levávamos dezasseis automóveis a acompanhar o cortejo. Ninguém queria perder um momento que fosse, uma vez que só no fim do percurso se procedia à queima do boneco que fazia de morto. Por aí se poderá aferir do interesse que esta paródia, composta por vários momentos picarescos, despertava nos habitantes quer do Casal, quer dos outros lugares por onde passa-
va», diz. E fala com tal convicção que dir-se-ia estar novamente a viver cada um desses felizes momentos, preciosamente guardados no mais belo recanto da sua memória. Embora reconheça que tal iniciativa constituía uma boa fonte de receita para a coletividade, o certo é que, em dado momento, constatou não lhe ser possível continuar, todos os anos, a suspender o seu trabalho durante uma semana para se dedicar inteiramente à preparação dos vestidos e demais indumentária utilizada pelos participantes no aludido evento, decidindo, por isso, retirar-se. «Essa manifestação durou cerca de cinco anos consecutivos, mas, com o meu afastamento da organização, aquilo que começava a afirmar-se como uma tradição anual que enchia de contentamento os associados do Grupo Recreativo acabou, inevitavelmente, por morrer, em consequência de não haver ninguém que lhe desse continuidade», afirma num tom resignado.
Antiga amizade com Max traz cantor à coletividade Retratos de uma época em que a agremiação se assumia como o ponto de encontro, de convívio e de confraternização dos moradores do referido lugar, um espírito de coesão tão vincado que despertava o interesse de pessoas residentes noutros locais. «Pessoas havia que, contagiadas pelo ambiente e alegria que marcavam as nossas iniciativas, todos os anos vinham assistir às festas que promovíamos. Quer se tratasse do Carnaval, quer se tratasse dos arraiais populares», conta. «Ora, como nessa altura os ordenados
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eram muito baixos e poucos aqueles que tinham capacidade para comprar um televisor, a coletividade acabava por funcionar como o principal centro de diversão então existente nesta zona da freguesia». Embora também ela não tivesse meios de adquirir um aparelho de TV, coisa que somente aconteceria anos volvidos, ante a permanente aflição em que vivia, tal não inviabilizava a promoção de outras formas de entretenimento destinadas aos associados. «Uma ocasião chegámos a realizar uma matança de porco, acontecimento que incluiu um programa bastante diversificado, visto que, para além do habitual almoço a quantos nela quiseram tomar parte, incluiu igualmente os tradicionais jogos populares portugueses, designadamente o pau de sebo, iniciativa que concitava sempre grande curiosidade entre a assistência», revela Agostinho Gomes da Silva, ou, se se entender, «Silva Alfaiate». «Mau grado as dificuldades com que a agremiação vivia, conseguimos, todavia, fazer coisas muito lindas. Outro evento que ficou marcado na história do Grupo Recreativo Casal de Santo António foi a participação do cançonetista Max num espetáculo promovido com o objetivo de angariar fundos», sublinha o carismático mestre de alfaiataria, que adianta: «Considerando que tanto eu como Max éramos naturais da Madeira e havíamos trabalhado juntos na costura, em resultado do que estabelecemos uma forte amizade, coube-me a mim a incumbência de assegurar a sua participação nesse espetáculo, no qual também atuaram Hermínia Silva, Paco Bandeira e Vitória Maria, estes contactados por um funcionário da Polícia Judiciária, de nome
Guerreiro, pessoa que nutria uma grande simpatia pela nossa coletividade». Excertos de uma vivência que a memória preserva e através dos quais melhor se poderá ajuizar o quão difícil se tornava a subsistência deste tipo de instituições, bem como os constantes exercícios de imaginação exigidos a quem as dirigia. Um depoimento feito ao correr da lembrança que nos informa acerca dos modos de entretenimento utilizados pelas gentes que demandaram este lugar na busca das condições de vida que não encontravam nas suas terras de origem. Como fora, de resto, o caso deste alfaiate madeirense.
José Vaz e Aurora Gomes Relatos e memórias de dois entusiastas do grupo de Santo António Elementos determinantes na consolidação do Grupo Recreativo Casal de Santo António, enquanto polo de convergência de interesses dos moradores deste pequeno lugar do concelho do Seixal, José Vaz e Aurora Gomes são, por isso, duas figuras cuja intervenção no quadro da popular coletividade é muitas vezes mencionada pelos restantes consócios, devido ao dinamismo que imprimiram ao trabalho desenvolvido no âmbito da promoção dos valores associativos e na elevação cultural da população local. O primeiro por via da sua prolongada ligação à agremiação e da larga experiência obtida no de-
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curso das diversas funções que lhe foram confiadas, no âmbito dos vários órgãos sociais por que passou ao longo de diferentes mandatos. A segunda devido ao permanente entusiasmo que colocou no acompanhamento da atividade do grupo cénico, de que é uma das fundadoras. Neste contexto, afigurava-se indispensável ao bom sucesso de um trabalho desta natureza a obtenção dos seus depoimentos, tornando, assim, mais completo o repositório de memórias e vivências daqueles que, ao longo dos anos, fizeram do aludido Grupo Recreativo uma das mais singulares instituições associativas deste município, ante o cariz familiar que a caracteriza. «Eu tinha 27 anos quando se processou a fundação do clube» começa por afirmar José Vaz, «assumindo, na ocasião, o cargo de vogal da direção, sendo que a atividade desenvolvida, nesse tempo, se limitava à realização de uns jogos de futebol, modalidade que esteve na origem do aparecimento da coletividade, e a uns bailaricos, até porque, nessa altura, pouco mais poderíamos fazer, dadas as limitações e constrangimentos que o regime então vigente colocava a este tipo de entidades associativas», salienta. «Devido a esse conjunto de razões e às dificuldades económicas com que a coletividade se debatia, os membros dos corpos gerentes é que acabavam por realizar todas as tarefas relacionadas com o seu funcionamento. Eram estes quem pintava a casa, quando esta precisava de uma pintura; quem efetuava as obras; quem procedia diariamente à sua limpeza e quem assegurava a normal atividade do bar. Ninguém recebia o que quer que fosse por executar esse trabalho. A não ser o reconhecimento dos só-
cios, bem entendido», acrescenta o conhecido dirigente. «Aliás, um espírito que se projetou até aos nossos dias, mas que nessa época se acentuava pelo facto de as mulheres não terem acesso às instalações da agremiação, devido a uma disposição estatutária e, menos ainda, a de alimentarem a pretensão de tencionarem ocupar qualquer lugar nos órgãos sociais», lembra José Vaz.
«Fomos a primeira direção do clube a incluir mulheres nos corpos sociais» Atenta ao evoluir da conversa, e como que impulsionada pelas palavras do seu consócio, Aurora Gomes opta, então, por quebrar o silêncio, abandonando em definitivo a posição de mero ouvinte, para informar que o quadro só seria alterado tempos depois de haver entrado em funções uma direção da qual ela fizera parte. «Embora os estatutos discriminassem as mulheres, esse grupo de pessoas decidiu fazer tábua rasa de tal disposição e meteu algumas mulheres nos órgãos sociais. Só mais tarde é que nos lembrámos de que os estatutos do clube continham esse artigo e se resolveu promover a sua revisão», sublinha a dinâmica associada, colhendo o referido sublinhado a imediata concordância do seu colega de direção. Talvez por isso, a coesão do elenco diretivo se haja revelado tão forte e empenhada, que difícil seria distinguir quais os trabalhos que cabiam a uns e a outros, dado que todos participavam nas diferentes tarefas que quotidianamente se lhe deparavam sem atenderem ao sexo de quem o
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fazia. Uma atitude que permitiu à instituição ganhar um novo fôlego e adquirir um dinamismo como nunca havia até aí registado. «Era normal ver-se os homens a nosso lado, fazendo os trabalhos de limpeza das instalações. Não se fazia distinção entre serviço de homens e serviço de mulheres. Não se reparava nessas coisas. O que nos importava era a elevação da coletividade e, por seu intermédio, a divulgação do nome do bairro. As únicas vezes em que se poderia notar alguma separação de funções eram na organização das festas que o clube levava a efeito, cabendo-nos, na ocasião, a missão de preparar a comida, enquanto eles tratavam das obras tendentes ao bom êxito desses acontecimentos», adianta Aurora Gomes. De acordo com os nossos interlocutores, outro dos aspetos onde se observava também a distinção entre sexos foi quando entenderam proceder à cobertura do quintal da coletividade, com o intuito de proteger os associados dos rigores do sol e da maresia nas noites de arraiais populares, colocando para o efeito uma esteira de canas, colhidas nos campos situados nas proximidades do bairro. «Devido à natureza do trabalho e à circunstância de que, quem o fizesse, teria de andar empoleirado no escadote, a tarefa teve de ser confiada aos homens. Além disso, como o volume de canas a transportar era, deveras, significativo, pedimos ao proprietário de uma carroça e de um muar que nos assegurasse esse serviço», diz José Vaz.
Entrada das mulheres nos órgãos sociais constituiu uma lufada de ar fresco Uma lufada de ar fresco que se traduziu ainda no aparecimento de um vasto conjunto de atividades de âmbito recreativo e cultural, com especial relevância para o grupo de teatro infantil, o qual tinha como responsáveis Aurora Gomes e as suas consócias Maria Isaura Pinto e Ana Varandas, carinhosamente tratada por Anita. «O talento dos jovens que formavam o mencionado grupo e a desenvoltura com que cada qual interpretava o papel que a cada um cabia motivou a receção de diversos convites para atuar nas mais importantes coletividades do concelho e dos concelhos limítrofes», assinala a ativista da popular agremiação do Casal de Santo António. Um êxito para o qual muito concorreu a imaginação da associada Ana Varandas, que escrevia os textos que constituíam a generalidade das peças representadas pelo aludido grupo, cuja atividade cénica incidia fundamentalmente na denominada revista à portuguesa, género muito apreciado entre a massa associativa da referida coletividade. «Convirá, pois, realçar, que para além de escrever os textos, era ela quem assumia também a responsabilidade pela encenação de todos os espetáculos que levávamos à cena. Tratava-se de um trabalho feito com muita seriedade, posto que o mais velho dos jovens que formavam o elenco do grupo tinha apenas 13 anos», anota Aurora Gomes. «Da mesma forma, éramos nós quem confecionava os fatos que os atores vestiam em cada
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Elemento pertencente aos corpos sociais do Grupo Recreativo em diferentes mandatos, José Vaz, na segunda fila, o terceiro a contar da esquerda, assevera que só não foi presidente da coletividade por entender não possuir temperamento compatível com o cargo.
uma das peças, embora nenhuma de nós fosse modista. Um espírito de grupo que se alargava às mães das crianças, sempre recetivas a comprar os materiais indispensáveis à confeção dos mencionados trajes», salienta a empenhada ativista do grupo cénico. «Daí que as suas atuações esgotassem sempre a lotação das salas. Tanto as que tinham lugar na sede da nossa coletividade, como as que se realizavam noutras agremiações congéneres. Na Sociedade 5 de Outubro, então, tivemos de apresentar o espetáculo duas vezes, por que na primeira vez em que lá fomos, ficaram tantas pessoas cá fora quantas as que sala comportava», informa igualmente Aurora Gomes. No entanto, o processo de crescimento das crianças que dele faziam parte e o despertar das mesmas para outro tipo de ocupação dos
seus tempos livres forçou a extinção do grupo, acontecimento que marcou profundamente quem se envolveu de coração e alma neste projeto.
«Cançonetista Vitória Maria madrinha do Grupo Recreativo» Enquanto isso, a atividade cultural desenvolvida pelo Grupo Recreativo do Casal de Santo António, no período a que se reportam os testemunhos coligidos junto daqueles que mais de perto acompanharam a vida da mencionada instituição associativa, não se reduz ao aparecimento, apogeu e extinção do aludido grupo cénico, cuja existência, de resto, permanece viva na memória dos associados, ela estendeu-se igualmente à realização de alguns espetáculos
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musicais em que participaram nomes importantes do nosso panorama artístico. De tal modo que Vitória Maria, uma consagrada cançonetista desse tempo, se dispôs a aceitar o estatuto de madrinha da popular coletividade arrentelense, tendo, por essa razão, visitado diversas vezes o clube, ao mesmo tempo que deu o seu contributo para a realização de alguns espetáculos, um dos quais tendente a captar fundos para a execução de obras de beneficiação da sede social.
público que impossibilitava, desde logo, qualquer pretensão de o levarmos a efeito no acanhado espaço de que dispúnhamos», conta este antigo operário da extinta Siderurgia Nacional. «Em boa hora o fizemos, já que a receita obtida nos possibilitou adquirir os materiais para levarmos avante as obras que tencionávamos fazer, uma vez que a mão de obra estava garantida através da massa associativa e dos membros dos corpos gerentes. Todos trabalharam voluntariamente, durante uma série de fins de semana. Mesmo os que tinham uma formação mais especializada, como eram os casos dos consócios Francisco Pimenta e de Manuel Garcia», recorda José Vaz. Um conjunto de benfeitorias que se projetaram ao longo de vários anos e que tiveram como trave-mestra o espírito de sacrifício e o fervor associativo que mobilizava associados e dirigentes em torno da coletividade, cimentando o forte clima de união que os moradores deste pequeno aglomerado populacional sempre evidenciaram.
Grupo de sócios e moradores assinalava Dia do Trabalhador antes da Revolução de Abril Fotografia da associada Aurora Gomes, principal instigadora do aparecimento de um grupo de teatro infantil no seio da instituição e uma das primeiras mulheres a integrar os corpos sociais da agremiação, dado que até essa altura estas não podiam ser sócias da coletividade devido a uma disposição estatutária, situação ultrapassada com a revisão dos respetivos estatutos, processo levado a efeito devido à sua persistência e no qual, de resto, desempenhou papel determinante.
«Devido à exiguidade das nossas instalações, esse acontecimento teve de se efetuar no Cinema S. Vicente, posto que os nomes que integraram o cartaz asseguravam uma tal afluência de
Um quadro de entreajuda e de cumplicidade que instigava um grupo de sócios a comemorar o 1.º de Maio, mesmo quando tal era expressamente proibido. «Como o antigo regime proibia qualquer tipo de comemoração do Dia do Trabalhador, havia um grupo de pessoas ligadas à coletividade que entendia não deixar passar em claro tão importante data, razão pela qual todos os anos se
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juntavam num almoço de convívio. Para evitar engulhos à coletividade, o dito almoço tinha lugar fora das instalações do clube, realizando-se quase sempre no campo, já que aproveitávamos e levávamos a família para partilhar connosco esse momento», refere ainda o nosso interlocutor. Ligado aos corpos sociais da instituição há mais de duas décadas, José Vaz acrescenta ainda que no cargo de tesoureiro já permanece há dez anos. Se a esses se juntarem os mandatos em que foi vice-presidente e vogal da direção, dir-se-á que é um dos dirigentes que há mais tempo se mantém em funções. «No decurso destes 20 e tal anos, só não fui presidente da direção porque entendo não ter temperamento para desempenhar esse cargo. Prefiro, antes, ser um pouco o homem dos sete ofícios, de que a coletividade se serve para reparar uma porta que se estragou, colocar um vidro que se partiu ou arranjar uma fechadura que se encontra danificada. Isso sim ajusta-se ao meu perfil», atira o versátil dirigente do Grupo Recreativo Casal de Santo António. Como quem pretende fazer justiça ao nome do bairro onde se situa e à sua própria denominação, o popular Grupo Recreativo não podia, pois, ignorar a quadra dos Santos Populares, motivo bastante para que desde os seus primórdios haja procurado assinalar aquela festiva época, promovendo um conjunto de iniciativas tendentes a animar o referido lugar. «As festividades em torno dos Santos Populares eram outro dos momentos anuais em que
a vida da coletividade adquiria mais vivacidade, quer pela montagem do tradicional arraial, quer pela realização dos bailaricos, a que se junta ainda uma recheada quermesse, cujos produtos são ofertados pelos associados, comerciantes e demais habitantes do bairro, revertendo, como é natural, a receita das respetivas rifas para os cofres do clube», dá conta José Vaz. «Trata-se de uma tradição que remonta aos primeiros tempos da coletividade e que se manteve até hoje, adquirindo, ano após ano, maior dimensão e vigor, devido à circunstância de a agremiação continuar a assumir o papel de polo dinamizador desta pequena comunidade», conclui Aurora Gomes. Eis, pois, um diversificado conjunto de histórias e memórias relatadas por dirigentes e associados de uma das mais modestas mas emblemáticas coletividades do concelho do Seixal, cujo conteúdo nos remete para a importância que este tipo de instituições tiveram na elevação cultural das gentes que o habitam. Com estes testemunhos, mais fiel e rigoroso fica traçado o perfil dos principais traços identitários dos verdadeiros protagonistas da história do município, em determinada época, sobretudo no que aos domínios da intervenção popular se reporta. Afinal, um dos pilares que estiveram na génese do atual processo de desenvolvimento concelhio, iniciado no final dos anos 1970, o qual pretende, objetivamente, salvaguardar esse relevante legado humano e social como uma das peças mais ricas da sua história coletiva.
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Espaço de convivência de democratas, que dele fizeram um refúgio onde podiam respirar um aroma de liberdade, tal como respiravam o puro ar campestre, no fundo o grande denominador comum de todos quantos encontravam no contacto com natureza um dos principais modos de ocuparem os tempos livres, o Clube de Campismo Luz e Vida cedo se afirmou um veículo de promoção dos benefícios que a atividade campista assume no equilíbrio emocional do ser humano e um instrumento de resistência à tenaz perseguição que o regime fascista movia àqueles que a ela se dedicavam. Talvez porque esta atividade, assente na fruição de lugares sem muros ou barreiras que lhes dificultem os gestos ou lhes limitem o olhar, se afigurasse aos governantes de então uma das práticas lúdicas que mais difícil lhes seria vigiar, apesar do repressivo aparelho policial de que dispunham. Daí a considerarem-na uma atividade non grata foi um pequeno passo, sendo, por isso, observada com grande desconfiança por parte dos dignitários do denominado Estado Novo. Mesmo assim, um grupo de entusiastas do convívio com a natureza, entre os quais se incluíam Raul Canal, Bruce Salgado e Augusto Perdigão, decidiram avançar para a criação de uma secção de campismo no âmbito da Sociedade Filarmónica Timbre Seixalense, a qual acabaria por ser extinta devido a um conflito gerado entre a direção da instituição e os responsáveis da referida secção, diferendo que teve como epílogo a expulsão dos jovens campistas dos quadros de associados da secular coletividade e, em consequência da qual viria a ser criado o Núcleo de Campismo Luz e Vida, filiado na respetiva federação a 24 de julho de 1953.
Emblema da secção de campismo da Sociedade Timbre Seixalense, extinta em consequência de alguns dos mais preponderantes ativistas da referida secção terem sido expulsos da agremiação por motivos de ordem política.
Com ele cresceu também a difusão do campismo e o consequente interesse da população da antiga vila piscatória, sobretudo da juventude, pela prática de atividades ao ar livre. De tal forma que se contavam os fins de semana em que não se viam grupos de jovens de mochilas às costas a caminho dos campos, ao mesmo tempo que se assistia ao aparecimento de dois outros núcleos, O Seixalense e o Fusão, impulsionados por elementos do Luz e Vida. No entanto, se a atividade campista já era vista com antipatia por parte das organizações que suportavam o poder então vigente, a calorosa adesão dispensada pelas camadas mais jovens da população local a esta saudável ocupação dos tempos de lazer ainda mais acentuou essa desconfiança, traduzida na criação de uma série de obstáculos organizativos e na vigilância permanente aos elementos preponderantes
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nos mencionados núcleos, forçando-os a reunirem-se no quintal de um, na casa de outro e mais tarde num quarto alugado. Não obstante este clima de intimidação, ou quiçá devido a essa atitude persecutória manifestada pelas entidades oficiais e seus cães de fila, os líderes dos referidos núcleos decidiram em 1965 proceder à sua fusão, constituindo, a partir desse momento, o Clube de Campismo Luz e Vida, embora a sua oficialização ocorra em outubro do ano seguinte, com a aprovação dos respetivos estatutos.
Emblema do Núcleo de Campismo Luz e Vida, fundado por alguns dos jovens que haviam sido proibidos de entrar na Timbre Seixalense, entre os quais figuravam Raul Canal e Bruce Marques. A constituição da atual agremiação campista do concelho do Seixal resultaria, aliás, da fusão deste núcleo com dois outros entretanto criados. O aparecimento de ambos processou-se sob a égide dos elementos provenientes da aludida secção de campismo da mencionada Sociedade Filarmónica.
mas se alicerçou igualmente na abertura de uma sede social, na fundação de uma biblioteca, onde os associados pudessem enriquecer os seus conhecimentos não apenas acerca da natureza, mas também sobre as condições de vida dos homens e, mais tarde, na ampliação das instalações, obra para a qual muito concorreram José Manuel Barradas e o poeta popular Francisco Nobre. Uma história feita de lutas várias, marcada pela dignidade com que se posicionaram ante as adversidades que se atravessaram no seu percurso, as enfrentaram e venceram. Tanto as que decorreram das próprias condições socioeconómicas que caracterizavam a vida das gentes da localidade nessa época, quer as que lhes foram levantadas pelas estruturas afetas ao aparelho governativo de então, ou pelos seus apaniguados. Uma história de coragens múltiplas, construída pelo querer, pela vontade e pelo sonho que animava os obreiros deste projeto associativo, ora recuperadas através dos testemunhos de alguns dos seus obreiros, em ordem a evitar que a memória coletiva dos homens e mulheres desta terra não fique envolta na difusa neblina que ensombra os nossos dias, para com ela se dissipar ao sopro da primeira brisa.
Um caminho de esforço e determinação, desbravado a pulso por quantos se entregaram de corpo inteiro a esse ideal, o qual não se esgotou nos acampamentos em que participavam,
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Raul Canal Amor à liberdade leva-o ao movimento campista Personalidade muito respeitada entre os seus conterrâneos, quer pela sua persistente militância associativa, quer por via das responsabilidades autárquicas que foi chamado a desempenhar no quadro da localidade, Raul Canal é um dos cidadãos da atual cidade do Seixal cujo percurso de vida se encontra marcado, desde muito novo, por uma forte ligação às coletividades da sua terra. Daí que ao longo dos anos tenha sido convidado pelos seus consócios para desempenhar várias tarefas no quadro das mais prestigiadas instituições associativas da localidade, com especial relevo para as comissões culturais, espaços de formação cívica, de debate, de reflexão e de resistência à ditadura então existente em Portugal. Antigo funcionário da fábrica Mundet, estabelecimento fabril onde fervilhavam os ideais de liberdade e de justiça social, princípios caros ao operariado que ali laborava e que o instigava a tomar parte ativa nos movimentos populares de contestação ao regime, através da realização de diversas greves e de outras formas de luta, Raul Canal cedo se deixou seduzir pela nobreza de tais sentimentos, procurando transportar esses valores para o quadro da sua intervenção associativa, tal como sucedeu, de resto, com outros jovens da sua geração.
Raul Canal e sua esposa, nos tempos de juventude, ou seja, na época em que ambos ainda integravam a secção de campismo da Sociedade Filarmónica Timbre Seixalense.
Neste contexto, afigura-se, pois, normal que se encontre entre os elementos dinamizadores da secção de campismo da Timbre Seixalense e, posteriormente, entre os fundadores do Núcleo de Campismo Luz e Vida, dado tratar-se de uma atividade pela qual nutria grande apetência, posto que, a par de lhe proporcionar um reconfortante contacto com a natureza, lhe permitia ainda desfrutar da liberdade que o regime há muito havia sonegado a todos os portugueses.
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«O movimento campista no concelho do Seixal teve origem num grupo de jovens progressistas» «No concelho do Seixal, o movimento campista teve origem num grupo de jovens progressistas que, ansiando pela instauração de um Estado democrático, viram nesta forma associativa um eficaz modo de escaparem à constante vigilância que o aparelho policial movia àqueles que perfilhavam tais ideais, já que a circunstância de a localidade estar, nesse tempo, rodeada de quintas e pinhais lhes permitia efetuarem os seus encontros e reuniões longe dos olhares indiscretos da PIDE», começa por informar Raul Canal. «A ideia surgiu no seio da Timbre Seixalense, coletividade que acolhia a maioria dos jovens que, à época, se encontravam politicamente mais esclarecidos, tendo concluído que o melhor lugar para trocarem ideias seria o campo, em função do que decidiram avançar para a fundação de uma secção de campismo. Isto num tempo em que a sua prática se processava de saco aos ombros, ou seja, para irmos para qualquer sítio íamos a pé, razão pela qual éramos apelidados de malucos por aqueles que menos consciência política possuíam, dado entenderem que andávamos com a casa às costas», lembra. «O número de adesões a este tipo de desporto foi de tal ordem, fruto aliás do desejo de estabelecer contacto com jovens de outras zonas do país e de desfrutar de uma maior ligação à natureza, que, logo nos anos 1950, começámos a levar o nome do Seixal, por intermédio da Tim-
bre, a diversos acampamentos realizados em diferentes pontos do território nacional», diz o antigo operário corticeiro e, mais tarde, trabalhador da extinta Cooperativa Operária 31 de Janeiro. «Além desses aspetos, importa referir que tratando-se de uma secção que incluía entre os seus fundadores vários elementos afetos ao Movimento de Unidade Democrática, vulgo MUD Juvenil, a circunstância de este ter sido, entretanto, proibido pelo regime de exercer qualquer atividade fez aumentar substancialmente o número de jovens que tencionaram integrar a mencionada secção, já que, com a ilegalização daquela organização, deixavam de dispor de um importante veículo de divulgação das suas aspirações e de um instrumento de luta política e de intervenção cultural», salienta o popular militante associativo.
«Atividade campista permitiu ao MUD Juvenil manter-se ativo» Ante a senha proibicionista e persecutória que caracterizou esse período negro da nossa história, fácil foi o desenvolvimento do espírito que esteve na génese do movimento campista em muitas localidades do país. A antiga vila do Seixal não foi exceção. Desde logo porque tratando-se de uma terra constituída, ao tempo, por uma forte comunidade operária, com especial destaque para a classe corticeira, este tipo de instituições apresentava-se aos olhos dos jovens oposicionistas mais clarividentes como um dos palcos privilegiados para continuarem a travar o seu combate contra o fascismo. «Ora, a liberdade que o governo nos tirava
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encontrávamo-la no campismo, para o seio do qual transportámos a estrutura organizativa do MUD Juvenil, situação que permitiu mantermo-nos organizados, continuando a efetuar as nossas reuniões periódicas, utilizando para o efeito as tendas que levávamos para o campo», prossegue Raul Canal o seu vivo relato.
Por razões compreensíveis, o campismo constituía, nessa época, um forte pretexto para que os jovens ligados ao MUD Juvenil continuassem a desenvolver a sua atividade política. A foto mostra-nos alguns jovens seixalenses afetos àquele movimento oposicionista ao regime fascista, momentos depois de uma reunião realizada numa das várias quintas ao tempo existentes ao redor da antiga vila. Entre os participantes na referida reunião encontravam-se Raul Canal (o primeiro da esquerda), José Alves de Almeida (o segundo), vindo propositadamente da Cova da Piedade para dirigir a reunião, Edmundo Portela (o terceiro), Monteiro Alves (em quarto) e Mário Ramos (em quinto). Saliente-se ainda que na aludida reunião também tomou parte Bruce Marques, o qual não figura, contudo, neste registo fotográfico porque foi quem desempenhou o papel de fotógrafo.
«Em tudo isto há até um aspeto curioso», diz, enquanto deixa escapar um surpreendente sorriso. «Prende-se com o facto de a primeira tenda que possuímos ter sido feita com a capota de um automóvel. Tal não impediu, contudo, que por ela passassem diversas figuras da resistência, que connosco vieram reunir. Um deles, Alexandre Castanheira, elemento da direção
central do MUD Juvenil e membro do Clube de Campismo do Concelho de Almada, instituição que, à época, apadrinhou o movimento campista no concelho do Seixal e, por consequência, o aparecimento da nossa agremiação».
«Luta pela chamada semana-inglesa remonta ao início dos anos 1950» Passo a passo, a organização de acampamentos adquiriu um carácter mais frequente entre a juventude local, motivando, com isso, um crescente aumento de aderentes, fatores que permitiram à organização ganhar um certo peso entre a juventude seixalense, concorrendo, de modo evidente, para incentivar os mentores do projeto a abrirem uma nova frente de luta: a de começarem a reivindicar a denominada semana-inglesa. «É bom que se saiba que já por volta de 1950-1951, a malta se batia pela semana-inglesa, conquista que só se alcançaria largos anos mais tarde, mas para a qual muito contribuíram as movimentações iniciadas no quadro das estruturas campistas lideradas pelo MUD Juvenil», sublinha Raul Canal. «Segundo me lembro, essa foi a primeira vez que um fogo de campo foi utilizado para se formular um apelo aos campistas presentes, no sentido de se unirem em torno de uma exigência dessa natureza. Aliás, a circunstância de nessa altura as pessoas trabalharem todo o dia de sábado constituiu um dos motivos que levaram os fundadores da secção de campismo da Timbre Seixalense a submeter à apreciação da assembleia geral, realizada a 27 de abril de 1950, uma
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proposta visando a oficialização da mesma no seio da coletividade, a qual colheu a aprovação dos associados presentes, processando-se a sua fundação logo no dia 1 de maio», informa o carismático dirigente associativo.
retivo, chegou ao ponto de ameaçar encerrá-la se alguns dos dinamizadores da aludida secção viessem a figurar na lista dos futuros corpos gerentes, acabaram por conduzir à extinção desta, em abril de 1953», lembra o conhecido seixalense. «Uma atitude que veio satisfazer os desejos de uns e contou com a resignação de outros, por recearem que as ameaças do edil se concretizassem. Uma decisão para a qual fomos atirados, devido ao clima que nos fora criado por tomada por um grupo de caciques do presidente da câmara», esclarece Raul Canal.
«Pressões do presidente da câmara instigaram expulsão dos responsáveis da secção de campismo da Timbre Seixalense»
Na foto, vários elementos femininos que tomaram parte no acampamento organizado pelo Atlético Clube de Arrentela nos dias 7 e 8 de julho de 1951 e no decurso do qual, por iniciativa dos elementos do MUD Juvenil afetos à secção de campismo da Timbre Seixalense, foi pela primeira vez lançada num fogo de campo a palavra de ordem visando a luta pela denominada semana-inglesa. Entre os participantes figuravam a esposa de Raul Canal (segunda a contar da esquerda) e Bruce Marques, atrás da tenda.
«A referida secção, diga-se, para além de possuir hino próprio, cuja letra fora escrita pelo poeta popular Francisco Nobre, integrava ainda um coro, um grupo cénico e uma biblioteca infantil, esta última apadrinhada pela biblioteca da Incrível Almadense, representada no ato inaugural por Alexandre Castanheira. Mas os constantes embaraços que, por um lado, lhes foram criados pelos responsáveis da banda e, por outro, pelo então presidente da câmara, cujo grau de ingerências assumiu tal dimensão que, num período em que a coletividade se debatia com dificuldades para formar o elenco di-
Convirá frisar que nesses idos anos, aquele cargo, tal como os demais cargos camarários, constituíam uma mera extensão do aparelho fascista, dado tratar-se de um lugar de nomeação e, por via disso, ocupado apenas por quem lhe fosse afeto, sendo que, no quadro das suas atribuições enquanto entidade máxima do concelho, se incluía a permanente fidelidade ao governo, o mesmo é dizer, colaborar estreitamente com as forças policiais e a PIDE na repressão aos movimentos oposicionistas ou a quem por eles manifestasse simpatia. «O início do conflito entre a secção da banda e a secção de campismo da Timbre Seixalense resultou do correto posicionamento tomado pelo responsável desta secção ante a Federação de Campismo, Bruce Marques Salgado, face aos
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obstáculos e exigências colocados pela direção, entre os quais a retenção e violação da correspondência que diversas entidades nos dirigiam, designadamente a federação e agrupamentos congéneres, ao mesmo tempo que o seu presidente se arrogava no direito de censurar quer as cartas recebidas, quer as expedidas, além de pretender impedir qualquer dos elementos da secção de desempenhar funções diretivas no âmbito da própria secção», denuncia Raul Canal.
res da mencionada biblioteca infantil. Com efeito, por uma questão de princípio e de dignidade, os membros da aludida secção não podiam tolerar tamanho conjunto de arbitrariedades, resolvendo, por isso, bater com a porta, dando conhecimento à direção da coletividade de tal resolução através de carta assinada pela comissão diretiva da citada secção autónoma, formada por António Monteiro Alves, Raul da Silva Canal, Bruce Marques Salgado, Abílio Cachaça, José João Duarte Dias e Fernando Álvaro Pinto.
Entusiasta do campismo, para além da sua faceta poética, Francisco Nobre, autor da letra do hino da extinta secção de campismo da Timbre Seixalense, reunia ainda outros atributos, entre eles o de tocador de harmónica. A foto documenta um dos momentos em que o popular poeta seixalense, acompanhado à viola por Marques da Silva, anima um acampamento de aniversário do Clube de Campismo Luz e Vida, realizado na antiga Quinta do Lírio.
«Ora, considerando que já nesse tempo era norma os órgãos de cada uma das secções existentes na coletividade serem eleitos pelos seus pares, considerámos tais intromissões uma violação das normas internas e, como tal, refutámo-las, face à ilegitimidade de que as mesmas se revestiam», afirma igualmente o devotado ativista associativo e um dos fundado-
Bruce Marques, Raul Canal e Fernando Álvaro Pinto, três dos elementos da comissão diretiva da secção de campismo que se rebelaram contra as intromissões e a violação da correspondência protagonizadas pelo presidente da direção da secular coletividade, posando para a fotografia na companhia de Álvaro Rodrigues, jovem campista setubalense e membro do comité de Setúbal do MUD Juvenil.
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Em função dessa tomada de posição, todos eles acabariam por receber, a 14 de abril do referido ano, uma carta da direção informando-os de que haviam sido expulsos da coletividade, situação que, ante o cenário já descrito, os levou a admitir poderem vir a ser detidos a qualquer momento, em consequência dos motivos evocados para a expulsão se prenderem com a alegada prática de atividades políticas de natureza subversiva dentro da agremiação.
Recolha de assinaturas a favor da paz leva-o a estar detido por várias horas «Receio que adquiria contornos ainda mais preocupantes à medida que íamos sabendo que eles haviam posto a correr essa versão entre os associados da instituição e demais habitantes da vila para explicar tão forte medida punitiva», confessa o nosso interlocutor. «Antes disso, ou seja, logo a seguir à II Grande Guerra, num período em que a presidência da câmara estava confiada a Cosme Lopes, promovemos pela calada da noite a inscrição de frases alusivas à paz em diversos locais da vila, ação prosseguida no dia seguinte, com um porta a porta por toda a vila, visando a recolha de assinaturas para um abaixo-assinado pela paz, jornada na qual participaram igualmente jovens provenientes de Almada, Barreiro e Cova da Piedade e no decurso da qual fui preso conjuntamente com dois outros camaradas, tendo sido levado para a cadeia então instalada no rés do chão do edifício dos Paços do Concelho», relata Raul Canal. «Ao saberem das detenções, tanto os partici-
pantes no porta a porta, como a população da localidade, prontamente começaram a concentrar-se no largo fronteiro à câmara, reclamando a nossa libertação, situação com a qual Cosme Lopes não contava, motivando-o a efetuar uma série de telefonemas para o governador civil. Todavia, porque este estaria fora de Setúbal numa atividade relacionada com a União Nacional, o único partido então autorizado dado tratar-se do partido do regime, e, desconhecendo, na ocasião, sua mulher exatamente a localidade onde a referida atividade tinha lugar, não logrou falar com ele», adianta o mencionado ativista. «Neste contexto, e atendendo a que começava a anoitecer sem que os populares dessem mostras de tencionar retirar, Cosme Lopes chamou-nos ao seu gabinete com a intenção de nos repreender, argumentando que os amigos da paz eram eles, leia-se, os defensores do Estado Novo, e não nós. Nesse momento retorqui: “Então, se são vocês os amigos da paz, por que motivo nos manda prender?”. Ao ouvir a minha resposta, exaltou-se e vociferou: “Vão à merda. Ponham-se daqui p’ra fora!...”. Mandando-nos embora, para nosso alívio e sua tranquilidade, dado que não sabia o que fazer connosco, posto que era notória a aflição que o tomava quanto a uma eventual reação dos populares, caso nos mantivesse detidos», refere Raul Canal. «Não obstante ter-nos libertado, porque não conseguira chegar à fala com o governador civil, ainda fomos diversas vezes intimados pela PIDE para lá irmos prestar declarações. Mas como em todos os interrogatórios sempre reafirmámos que nos limitámos a acompanhar uns jovens que nesse dia chegaram à terra e começaram a fazer uma recolha de assinatu-
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ras a favor da paz, lá conseguimos escapar. O que não significa que não tenhamos ficado debaixo de olho, situação que volta não volta nos causava algum receio, nomeadamente quando ocorriam manifestações contra o regime ou naquele período em que os caciques que haviam tomado a Timbre Seixalense puseram a correr a versão de que tínhamos sido expulsos devido a atividades subversivas dentro da coletividade», anota o respeitado democrata e ex-dirigente associativo.
Ideais democráticos motivam criação de núcleos campistas Mau grado o ambiente criado à sua volta, a temeridade que caracterizava os jovens de então e a enorme vontade de continuarem a batalha pela instauração de uma democracia falariam mais alto, levando-os, algum tempo volvido, a proceder à criação, em 24 de julho de 1953, de um Núcleo Campista, ao qual atribuíram a designação de Luz e Vida, grupo que, de resto, estaria na génese do prestigiado clube de campismo seixalense, cuja responsabilidade estava confiada a Bruce Marques Salgado. «O grupo fundador do mencionado núcleo era constituído por 19 elementos, titulares de carta de campista. Mas, devido à elevada quantidade de adesões verificadas e à circunstância de as normas federativas, nessa época, não permitirem que cada núcleo tivesse mais do que 19 campistas encartados, para ultrapassarmos esse obstáculo, vimo-nos forçados a proceder à criação de um outro núcleo, que denominámos de Núcleo Campista Seixalense e do qual fui nomeado responsável, pelo que a morada da
sede deste segundo era a de minha casa», informa Raul Canal. Ademais, para que o espírito de companheirismo fosse, em tudo, semelhante, ou porventura ainda mais acentuado ao que haviam logrado alcançar no interior da extinta secção da Timbre Seixalense, logo trataram igualmente de arranjar um hino cuja letra se constituísse num fator de motivação e de união entre todos os jovens da localidade que comungavam dos valores e princípios campistas. Para o efeito, solicitaram os bons ofícios de Alexandre Castanheira, que pouco tempo depois lhe trouxe um poema intitulado «Hino Campista», letra que imediatamente colheu a sua simpatia, por refletir o quanto lhes ia na alma. Não surpreende, pois, o entusiasmo que envolveu o aparecimento do citado núcleo, uma vez que muitos foram os associados da Timbre Seixalense que se manifestaram solidários com todos os que haviam sido expulsos da agremiação.
«Só nós sabemos o quanto nos custou a expulsão de sócios de Timbre!» Alguns deles ousaram até escrever à direção da coletividade, afirmando que se acaso os elementos da direção da secção de campismo lhes houvessem facultado previamente o teor da sua missiva, tê-la-iam também subscrito. Enquanto outros, revoltados com a arbitrariedade cometida sobre os rapazes, decidiram demitir-se de sócios da aludida instituição. «Ninguém imagina o quanto aquela condenação nos custou!... Especialmente porque foi
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dentro daquela coletividade que nos fizemos homens. O mesmo se passou com muitos daqueles que se manifestaram solidários connosco», confessa Raul Canal. «Foi, por isso, grande o reconforto que sentimos quando tomámos conhecimento do poema para o hino, constatando que este acabava, no fundo, por descrever o que nos havia sucedido e mais do que isso: fazia a nossa reabilitação. O que nos tocou profundamente», frisa o fervoroso campista. Enquanto isso, um grupo de associados da Timbre Seixalense, descontentes com a situação criada pelos dirigentes da agremiação que deliberaram expulsar os jovens, decidiu empreender um movimento tendente a mobilizar a massa associativa em torno de uma proposta visando a readmissão destes no quadro de associados da centenária coletividade, objetivo que lograram conseguir, embora nem todos os beneficiados com tal medida tenham, nessa altura, voltado, por via de se acharem ainda muito feridos com a afronta de que foram alvo. «Um deles, António Monteiro Alves, só há alguns anos decidiu regressar à qualidade de associado da Timbre. Eu e outros companheiros optámos por regressar mais cedo do que ele, em respeito por todos aqueles que se envolveram nesse processo de reposição da justiça, dado tratar-se de uma iniciativa que calou fundo em cada um de nós», reconhece Raul Canal. «Mesmo assim, tivemos de enfrentar uma situação com a qual, de todo, não esperávamos. Tal era a de os promotores da expulsão haverem queimado as nossas fichas de inscrição, com o propósito de inviabilizarem que recuperássemos o número de sócio que possuíamos à data do nosso afastamento, de acordo, aliás,
com a decisão tomada pela assembleia geral que deliberou a nossa integração», salienta o devotado resistente.
«Criação dos três núcleos visava já fundação do clube» Relatado este conjunto de tristes ocorrências, que durante muitos anos lhe provocaram um acentuado aperto de coração e, ainda hoje, lhe escurecem a alma, Raul Canal detém-se, exclusivamente, no processo de fundação do seu amado Clube de Campismo, dando conta, pormenorizadamente, das diversas fases que ao tempo tiveram de ser ultrapassadas até este lograr obter a respetiva oficialização. «Volvido pouco tempo sobre o aparecimento do mencionado Núcleo Campista Seixalense, este atingiu também as 19 cartas, o que imediatamente nos instigou a promover ainda um outro núcleo, que designamos de Núcleo Campista Fusão, cujo nome já deixava antever os desenvolvimentos futuros, logo que este lograsse igualmente obter as 19 cartas e, conforme acordado entre os responsáveis dos três núcleos, decidimos, então, juntar as cartas dos membros de todos eles, elaborar um regulamento comum e requerer à federação que procedesse à consequente inscrição enquanto clube, cujo nome seria Clube de Campismo Luz e Vida, em homenagem à designação atribuída ao primeiro dos três núcleos. O mesmo sucedendo com o emblema, dado que a única alteração que este sofreu foi a que se prendeu com a substituição da palavra “núcleo” pela palavra “clube”», informa este popular fundador da referida instituição associativa.
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Ora, sabendo-se que nessa época a economia da localidade assentava na laboração das diversas fábricas de cortiça e nos reduzidos salários que estas pagavam a quem nelas trabalhava, facilmente se compreende que reduzidos fossem também os recursos financeiros de que os elementos pertencentes aos diversos núcleos possuíam, dado tratar-se, na sua generalidade, de pessoas afetas ao operariado local, situação que os obrigava a um permanente exercício de imaginação visando a captação de fundos que assegurassem o normal funcionamento dos aludidos grupos. «É evidente que atendendo às condições sociais desse tempo, resultantes dos baixos salários que então se praticavam, as pessoas debatiam-se com grandes dificuldades, quadro que se transmitia a todo o tipo de instituições populares então existentes. Por via disso, tínhamos de promover frequentemente sorteios, método muito utilizado nessa altura, para obtermos o dinheiro necessário ao funcionamento dos mencionados núcleos, dado que estes não dispunham de nenhum apoio, a não ser o que lhes era dispensado pelos seus próprios elementos, através da venda das respetivas rifas», lembra Raul Canal. «Aliás, para além destes, o único apoio significativo com que contávamos fora o que D. Patrocínia Marques, mãe de Bruce Marques, sempre nos concedeu, confecionando-nos gratuitamente as tendas, que depois alugávamos a quem não tivesse nenhuma e necessitasse desse equipamento para participar neste ou naquele acampamento», salienta ainda este fundador do Luz e Vida.
Seixal marcava forte presença em quase todos os acampamentos Curioso será informar que o processo de aluguer das referidas tendas se encontrava devidamente definido de acordo com uma tabela estabelecida internamente para o efeito. Donde, o usufruto da mesma por um período de férias até 15 dias custava ao utilizador uma verba de 2$50, ou seja, cerca de 0,01 €, significando tais alugueres uma importante fonte de receita para a entidade que o concedia. Aliviada a tensão emocional decorrente da narração das peripécias que envolveram a sua expulsão da denominada Sociedade Velha, leia-se Timbre Seixalense, Raul Canal recupera agora um conjunto de episódios que a sua longa experiência campista reteve. Uns devido à surpreendente graça de que se revestiram, outros pelo inusitado efeito que provocaram em quantos os testemunharam. «Numa ocasião, resolvemos participar num acampamento em Ofir, mas como o dinheiro não abundava optamos por ir de stop, entenda-se, à boleia, isto numa altura em que a falta de disposição dos automobilistas para dar transporte a desconhecidos era muito acentuada, devido a uma suposta notícia proveniente de França acerca do homicídio cometido por um alegado campista sobre o automobilista que concedera levá-lo. Enquanto eu e Bruce Marques lográmos apanhar boleia no automóvel do pai de um jovem que também estava nesse acampamento, outros tiveram de contentar-se com a caixa de carga de uma camioneta que transportava sacos de cimento e carvão, na condição de
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ajudarem o motorista a efetuar a descarga. Quando chegaram ao acampamento, vinham cobertos de pó. Dir-se-ia mais um grupo de mascarados que havia perdido o rumo do que alguém que fosse para tomar parte num encontro campista. Por via disso, mal largaram os sacos, tiveram de meter-se imediatamente debaixo do chuveiro, tal o estado em que se apresentavam», conta Raul Canal no seu peculiar jeito de soletrar sílaba a sílaba, como quem saboreia as palavras. Outro episódio houve ainda, desta feita ocorrido nas Caldas da Rainha, que igualmente se assoma à memória do nosso interlocutor e que por lhe parecer interessante logo passa a relatar: «Outra vez, por ocasião de um acampamento nas Caldas da Rainha, coincidente com o período de férias da Mundet, circunstância que fez com que alguma da rapaziada tivesse ido com um dinheirito no bolso, mas insuficiente para ser gasto à tripa-forra, pois teria de ser acautelado o montante necessário para pagar a viagem de regresso», adverte Raul Canal. «Ora, sucede que no decurso de um jogo de futebol, no qual utilizávamos uma excelente bola que pedíramos emprestada a uma criança, desafortunadamente rebentámo-la, em consequência do que tivemos de a pagar, já que se tratava de um tipo de bola que custava, na altura, uma mão cheia de massa. Divididos equitativamente os custos resultantes do rebentamento do esférico, verificámos que um dos elementos do grupo, António Oliveira Loja, já há vários dias deixara de ter o dinheiro que lhe permitisse pagar o bilhete de regresso, visto não ter sabido administrar devidamente o
que lhe pertencia, porquanto não se privara de nada quanto lhe apetecera», informa ainda o referido associativista.
Bruce Marques e António Loja, ladeando Francisco Marques Valente, mestre sapateiro que exercia o seu ofício no denominado Bairro Novo e figura muito respeitada entre os jovens campistas do Seixal, dado tratar-se de uma personalidade que, por via da sua condição de opositor ao antigo regime, pagara com a prisão o seu ideário de fraternidade.
«Em função disso, acabou por ter de ser pôr à boleia, enquanto todos nós fomos tomar o comboio que nos trouxesse até Lisboa. O interessante da história é que, para sua felicidade, acabaria por chegar ao Seixal primeiro que os restantes companheiros, episódio que o levava a gabar-se: “Então vocês queriam que eu me privasse do tabaco, ou do café e do bagacinho, para não ter problemas em regressar a casa? Estavam muito enganados! A verdade, é que não prescindindo de tudo isso, acabei por ser o primeiro a chegar. Se tivesse ido na vossa conversa, ainda por cima teria gramado uma série de horas sentado num banco de madeira”,
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pretendendo, dessa forma, fazer chacota acerca das nossas preocupações», informa o entusiasta do Luz e Vida.
Acampamento na zona do Porto leva Canal e Bruce Marques a regressarem de bicicleta Encontrada a ponta do extenso novelo de histórias e peripécias guardadas ao longo de tantos anos de atividade campista, Raul Canal dá ainda conta de uma outra em que voltou a ter a companhia do seu inseparável amigo Bruce Marques. Tratou-se igualmente da penosa viagem de regresso de um acampamento, realizado no Porto, em que haviam participado.
«A ida fez-se bem, visto termos assegurado o transporte numa camioneta de carga que ia levar materiais para a construção do estabelecimento hospitalar que nesse tempo estava a ser erguido em Oliveira do Hospital. O único inconveniente que se nos deparou prendeu-se com a circunstância de o veículo em causa sair do Lavradio, daí que tivemos de efetuar o trajeto entre a vila do Seixal e aquele lugar do concelho do Barreiro de bicicleta, situação que nos obrigou a levar os velocípedes para o mencionado acampamento», anota Raul Canal. «Terminado este e não tendo dinheiro para pagar as sobretaxas decorrentes do transporte das bicicletas, optámos por efetuar nelas o nosso regresso a casa, tendo, para o efeito, decidi-
A prática do campismo tornara-se uma atividade que merecia a adesão de parte significativa da juventude seixalense desse tempo. A foto, obtida por Raul Canal, regista o momento em que um elevado número de participantes se dirigia para o acampamento realizado em Arrentela, em 1951.
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do repartir o percurso em várias tiradas, uma vez que, para além, de ser humanamente impossível efetuar tantos quilómetros de uma só vez, ainda carregávamos às costas todo o material necessário à nossa participação no aludido acampamento», precisa o conhecido ativista. «Por via disso, a estirada efetuou-se por etapas, a primeira das quais nos levou até Aveiro, seguindo-se Lousã, Coimbra, Caldas da Rainha e finalmente, Seixal, sendo que os locais de pernoita eram jardins, como foram os casos de Aveiro e Coimbra, nesta última o espaço escolhido para o efeito foi o Choupal, na Lousã, o terreiro de uma capela situada em plena serra e, nas Caldas, o areal da Foz do Arelho. Uma época de intensa atividade campista. Raro era o fim de semana que não íamos de saco às costas até à Costa de Caparica, Sesimbra ou Setúbal. Tanto fazia ser verão ou inverno», informa Raul Canal. «Atualmente, a maior parte dos sócios do Clube de Campismo fá-lo em rulote», adianta. «Mais do que uma forma de entretenimento, para nós, o campismo constituía um modo de estarmos na vida, fundado no convívio com a natureza que concorria para fortalecer os laços de amizade que nos ligavam, ao mesmo tempo que contribuía para o estabelecimento de relações de amizade com pessoas naturais de outras zonas do país, ante o espírito de comunhão que imediatamente despontava entre quantos a ele se dedicavam», sublinha o cofundador do Clube de Campismo Luz e Vida. «Tratava-se, se se quiser, de um espírito instigado pela descoberta de novas perspetivas de encarar a vida e, simultaneamente, um meio de combate à vilania e ao despotismo que caracterizavam o regime, e no ódio feroz que este ma-
nifestava relativamente aos ideais de liberdade, progresso e justiça», precisa Raul Canal.
Morte de Salazar provoca desentendimento com colegas da direção por via do hastear da bandeira do clube a meia haste «Aliás, há até um episódio curioso, ocorrido no dia em que foi noticiado o falecimento de António Salazar e que me provocou algum desagrado, dado tê-lo interpretado como uma desconsideração cometida por um grupo de sócios que procediam à execução de obras de beneficiação da antiga sede, os quais, ao tomarem conhecimento da notícia, resolveram colocar a bandeira do clube a meia haste, sem que me tenham consultado, enquanto diretor da agremiação», conta o dedicado dirigente. «Não estavam em causa as razões que os levaram a cometer tal ato, alicerçado no receio de que se o não fizessem a instituição poderia ser objeto de represálias por parte das entidades então instituídas, receio que se avolumava com a circunstância de o Luz e Vida ser uma coletividade fundada e dirigida por cidadãos conotados com a oposição ao regime», acrescenta. «Ao saber da sua atitude, inquiri-os acerca dos fundamentos que os levaram a agir dessa maneira sem, tão-pouco, me consultarem, pois, de acordo com o estatutos da coletividade, a colocação da bandeira a meia haste apenas se processava quando algum dos associados falecia. Ora, dado que não era do meu conhecimento que o homem fosse sócio do clube, a colocação da bandeira não deveria ter sido feita
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sem o conhecimento de todos os membros da direção», assevera Raul Canal. Antigo funcionário da Cooperativa de Consumo 31 de Janeiro, instituição na qual desempenhou também as funções de presidente e diretor ao longo de vários mandatos, Raul Canal lembra ainda que, na data em que Salazar faleceu, desempenhava o cargo de gerente da mencionada entidade, no âmbito do qual figurava igualmente a responsabilidade pela colocação da bandeira a meia haste sempre que algum cooperante perecia. «Sucede que não havendo, também aqui, nenhuma ficha de adesão do sujeito, ignorei o seu falecimento, não colocando a bandeira a meio pau, atitude que, volvidas algumas horas, levou o chefe da polícia a questionar-me por que razão o mastro da cooperativa se encontrava sem a respetiva bandeira, em sinal de respeito pela morte do presidente do conselho», prossegue o consagrado antifascista seixalense. «Respondi-lhe que tal se devia à observância dos estatutos da instituição, os quais apenas previam os hastear da bandeira a meio pau quando ocorria o falecimento de algum cooperante, o que não era o caso», justifica Raul Canal. «Desagradado com a minha explicação, o fulano resolveu, então, invetivar pessoalmente diversos diretores da agremiação sobre aquilo que ele considerava uma falta de respeito ao luto nacional pela morte de tão ilustre personalidade, em função do que, depois de ter caído a noite, a direção da cooperativa me mandaria chamar para me solicitar esclarecimentos acerca dos motivos que me levaram a ignorar tal procedimento», relata o devotado resistente.
«Justificados os fundamentos de tal posição, com o disposto nos estatutos da agremiação, solicitar-me-iam que, para evitar possíveis represálias sobre a instituição, procedesse à colocação da bandeira, mas, ante a minha recusa a esse pedido, acabaria por ser Armando Cunha Santos, camarada que, aliás, estivera largos anos detido por motivos políticos e, ao tempo, diretor da cooperativa, a chamar a si essa incumbência», diz Raul Canal, figura que, a julgar pela clareza com que expressa as suas ideias e convicções, parece evidenciar uma total indiferença ao cansaço provocado pelo peso dos anos.
António Monteiro Alves Ativista do MUD Juvenil e percursor do movimento campista Destacado ativista da extinta secção de campismo da Sociedade Timbre Seixalense, situação que o tornou num dos associados expulsos da referida coletividade, no decurso do processo detalhadamente relatado pelo seu consócio e companheiro Raul Canal, António Monteiro Alves é, igualmente, um dos percursores do movimento campista no concelho do Seixal, do qual o Clube de Campismo Luz e Vida é o natural sucessor. Pessoa afável, este artista plástico seixalense cuja sensibilidade terá sido fortemente molestada com a referida expulsão, ferida que o atingiu tão profundamente que só ao fim de várias
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décadas começou a cicatrizar. Elemento preponderante na atividade desenvolvida pelo MUD Juvenil, ante a circunstância de se tratar do representante do concelho do Seixal na estrutura distrital do aludido movimento oposicionista, Monteiro Alves ainda hoje revela alguma amargura com tudo quanto se passou, sentimento que o instiga a sopesar as palavras sempre que se reporta aos acontecimentos que estiveram a montante da criação da citada agremiação campista. Bastas vezes mencionado pelos seus camaradas como um dos impulsionadores do campismo no seio da juventude da antiga vila e um dos jovens que, à época, maior formação política revelavam, a obtenção do depoimento de Monteiro Alves acerca das memórias que guarda desses difíceis tempos de luta contra o fascismo afigurava-se imprescindível à realização deste projeto, com o qual se procura traçar um retrato, tão fiel quanto possível, do aparecimento e consolidação do popular Luz e Vida e dos condicionalismos históricos que presidiram à sua gestação e ao seu nascimento.
«Aparecimento do movimento campista no concelho do Seixal deve-se ao MUD Juvenil»
legação do MUD Juvenil no Seixal», começa por contar António Monteiro Alves. «Ora, face ao clima de perseguição que, nessa altura, as forças policiais moviam a tudo quanto fosse conotado com a oposição democrática, facilmente concluímos que o local mais seguro para efetuarmos as nossas reuniões seria o campo. Desde logo porque, nesse tempo, parte significativa do território concelhio era constituído por pinhais», relembra o nosso interlocutor. «Neste contexto e com o intuito de iludirmos a apertada vigilância que as autoridades da época exerciam sobre todos os movimento sociais, utilizámos o campismo como pretexto para justificar as nossas frequentes idas para o campo, as quais tinham, como verdadeira finalidade, perspetivar as lutas contra o regime do denominado Estado Novo», informa. «Em resultado desse objetivo, eminentemente político, acabar-se-ia, também, por fomentar o gosto pela prática campista junto dos que aderiram à estrutura local do mencionado movimento juvenil e de todos os outros que, a pretexto do convívio com a natureza, acabariam igualmente por ser ganhos para o combate contra o fascismo», assegura.
«Em rigor, poder-se-á afirmar que o aparecimento do movimento campista no concelho do Seixal se deve ao MUD Juvenil, organização que acolhia a generalidade dos jovens afetos ao PCP, partido no qual eu militava. É, pois, no âmbito da atividade desenvolvida pelo partido que me foi dada a tarefa de organizar uma de-
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«Secção de campismo da Timbre Seixalense surge como uma necessidade de elevar o grau organizativo da estrutura»
Responsável pela criação de um comité do MUD Juvenil na antiga vila do Seixal, Monteiro Alves aproveitava a circunstância de a localidade, ao tempo, estar rodeada de quintas e muito arvoredo para, a pretexto do convívio com a natureza, efetuar as reuniões da mencionada organização, anos antes ilegalizada por Salazar. A foto documenta um desses encontros de trabalho, no qual tomaram parte Edmundo Portela (primeiro da esquerda), Monteiro Alves, Raul Canal, Mário Ramos e Bruce Marques.
Uma atuação que, a coberto das virtudes que o contacto com a natureza proporcionava, motivaria muitos jovens da época a aderir ao campismo. E de tal forma se manifestou esse interesse que os líderes do movimento se viram na necessidade de submeter à apreciação dos órgãos sociais da Timbre Seixalense uma proposta visando a criação de uma secção de campismo, ideia que colheu vencimento no decurso de uma assembleia realizada a 27 de abril de 1950.
Tal criação foi fundada no desejo de procurar conferir outro grau organizativo à estrutura que, semana após semana, ia despontando, posto que o volume de aderentes não se compadecia com o carácter familiar que havia presidido ao funcionamento do grupo. Até porque o volume de expediente que tal fenómeno gerara não permitia que a mesma continuasse a funcionar em casa de um dos seus elementos, a par de tornar inviável a realização de reuniões que tivessem um âmbito mais alargado. Além disso, era ainda intenção dos responsáveis pelo aparecimento deste movimento promover um conjunto de atividades de cariz cultural, entre elas diversas conferências e colóquios sobre os diferentes temas que, à época, marcavam a atualidade. «Assim, devido a um conjunto de ações que desenvolvemos, cerca de 3 anos após a fundação, a referida secção acabaria por ser extinta, decisão para a qual muito contribuiu o corpo da banda e as pressões que o então presidente da câmara exerceu junto dos seus responsáveis e dos restantes elementos que, ao tempo, a constituíam», revela Monteiro Alves. «Um processo caracterizado por um conjunto de arbitrariedades várias, perpetradas com o deliberado propósito de ferir a nossa sensibilidade de homens e de campistas e que desaguou na nossa irradiação de sócios da agremiação, decisão também ela ilegal, tal como muitas ou-
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Registo fotográfico de alguns dos participantes no primeiro acampamento organizado na denominada Quinta de Baixo, pela secção de campismo da Timbre, entre os quais figuram Monteiro Alves e sua esposa. Corria o ano de 1950. No entanto, por razões de ordem política, três anos volvidos, a mencionada secção seria dissolvida e os seus responsáveis expulsos da coletividade. Decisão tomada pela direção da agremiação que gerou grande controvérsia entre os habitantes da localidade.
tras deliberações tomadas, nesse período, por aqueles que dirigiam a Sociedade», precisa o destacado ativista.
«Jovens seixalenses presentes nos primeiros acampamentos realizados a nível nacional» Tal desenlace não os impediu, contudo, de manter a sua regular atividade campista, participando, a título individual, designadamente nos acampamentos regionais e nacionais então promovidos pela respetiva federação. Ademais, aproveitavam a circunstância de geralmente efetuarem juntos a viagem para realizarem as suas reuniões no respetivo percurso e
a consequente distribuição de tarefas no âmbito do MUD Juvenil. Isto enquanto não procederam à fundação do primeiro dos núcleos campistas já referidos pelo seu camarada Raul Canal. «Nesse sentido, poder-se-á afirmar com propriedade que mau grado as dificuldades que nos foram deliberadamente criadas, o movimento campista e, por seu intermédio, o MUD Juvenil esteve sempre ativo no concelho do Seixal», realça Monteiro Alves. Membro da Comissão Distrital de Setúbal do aludido movimento oposicionista, entrementes forçado à clandestinidade por via da ilegalização imposta pelo denominado Estado Novo a todas as suas atividades, António Monteiro Alves recorda, desse tempo, um episódio ocorrido no
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Laranjeiro, o qual inicialmente lhe provocou um enorme susto, mas cujo desfecho acabou por se tornar surpreendente. «Dado que, naquela época, a zona do Laranjeiro dispunha de um vasto pinhal, decidimos ali realizar uma reunião da comissão distrital do MUD, posto que se nos afigurava tratar-se de um local que nos oferecia mais garantias de segurança. Eis qual não é a nossa surpresa quando a certo momento avistamos uma patrulha da GNR, montada em dois enormes cavalos, dirigindo-se na nossa direção», diz Monteiro Alves. «Quem dirigia essa reunião era, precisamente, Alexandre Castanheira, ao tempo líder distrital do MUD Juvenil». «Claro que os 6 participantes na reunião ficaram sem pinga de sangue, presumindo que estaríamos todos presos. Mas, porque soubemos manter uma serenidade tal e uma tão convicta descontração, os guardas não suspeitaram fosse do que fosse, limitando-se a dar as boas-tardes, seguindo o seu caminho, sem nos inquirir acerca do que ali estávamos fazendo. Apesar disso, não ganhámos para o susto», confidencia. «De tal ordem que nunca mais esqueci a imponente imagem dos cavalos encaminhando-se para nós.» Registos de uma intensa atividade política e associativa que a memória soube reter, adquiridos num tempo em que as deslocações para os diversos acampamentos se processavam através dos reduzidos meios de transporte então existentes. «Esses encontros nacionais caracterizavam-se por um inequívoco espírito de companheirismo, assumindo os tradicionais fogos de campo uma especial importância, pois tratava-se de
uma manifestação aproveitada por muitos dos que neles participavam para revelarem os seus dotes artísticos, com particular saliência para a declamação de poesia e para se passar a palavra em matéria de ações de luta política contra o regime», sustenta Monteiro Alves.
«Espírito de união e entreajuda marcava quotidiano de todos nós» Se tudo isso não fosse, por si só, suficiente para se aferir sobre o marcante espírito de camaradagem e de entreajuda que animava os elementos cuja atividade assumia maior preponderância no quadro do movimento campista quer do concelho, quer do distrito, Monteiro Alves revela ainda um aspeto elucidativo do clima de união que então se verificava: «dado que, ao tempo, o material era demasiado caro para as nossas posses, a tenda que, então, utilizava fora talhada por um camarada alfaiate, membro da Comissão Distrital do MUD Juvenil e cozida por minha esposa. O mesmo sucedeu com os sacos-cama». Legitimamente considerados um dos grupos pioneiros do movimento campista português, dada a circunstância de vários dos seus elementos terem tomado parte nos primeiros acampamentos nacionais então organizados pela respetiva federação, Monteiro Alves justifica tal convicção com a presença de vários membros do núcleo do Seixal no acampamento realizado em Ofir, o terceiro evento do género levado a efeito em Portugal. «Quando os acampamentos ocorriam nos arredores do Seixal, as deslocações faziam-se a pé, e nos que tinham lugar na Costa de Capari-
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ca, Arrábida, Feijó ou Laranjeiro, alguns de nós iam a pé e outros de bicicleta», informa ainda António Monteiro Alves. Uma atividade que em dado momento da sua vida fora forçado a suspender, por mor de se dedicar aos estudos e porque a célula do PCP, partido ao qual pertencia, entendeu, em dado momento, ser mais relevante o seu contributo na luta contra o regime que tal atividade se efetivasse no quadro da intervenção que aquela força partidária desenvolvia nos estaleiros da CUF, então instalados na Rocha do Conde de Óbidos, seu local de trabalho. Em função disso, deixaria de exercer qualquer atividade no MUD Juvenil. «Só por essa razão não sou um dos fundadores do clube», frisa. «De outro modo, não faria sentido excluir-me de tão aliciante projeto, já que eu tinha sido um dos elementos que estiveram na origem do movimento campista no concelho, do qual, aliás, o Luz e Vida é o natural sucessor, quer por via das pessoas que o fundaram, quer pelos ideais que presidiram ao seu aparecimento», sublinha. Diga-se, no entanto, que esse interregno na atividade campista não se estendeu, contudo, à militância política, pois, segundo afirma, «mau grado estar, desde então, desligado do movimento campista, isso não obstou a que mantivesse ao longo desse tempo uma intervenção de natureza política, dada a minha condição de militante do Partido Comunista Português», refere. Antigo elemento pertencente à comissão da biblioteca da Timbre Seixalense, secção que desenvolveu um relevante trabalho cultural e cuja ação contribuiu significativamente para a
formação e consciencialização política de muitos jovens desse tempo, António Monteiro Alves assinala ainda que esse trabalho resultava de uma orientação dada pelo PCP, ante o carácter tremendamente repressivo do regime. «Era no quadro das comissões culturais das coletividades que a generalidade dos democratas desenvolvia o seu trabalho, levando à prática as orientações emanadas pelo partido. Isso verificava-se quer por intermédio das iniciativas que elas promoviam, quer através das obras que adquiriam e das sugestões de leitura que faziam aos seus frequentadores, especialmente quando se tratava de amigos ou de consócios em quem depositavam maior confiança. Além disso, chegavam a emprestar livros de sua pertença, muitos deles escondidos, em consequência de se encontrarem proibidos pela PIDE», informa o ativista associativo. Membro da comissão de greve efetuada em 1947 pelos operários da indústria naval instalados no Cais da Rocha de Conde de Óbidos, situação que o obrigou a fugir para casa de uns familiares no Montijo, a fim de escapar à detenção, António Monteiro Alves esclarece ainda que a sua atuação no âmbito das coletividades seixalenses, em especial nas secções culturais e no movimento campista, constituía um mero complemento da intervenção político-partidária que exercia no quadro do estaleiro onde trabalhava. «Por via disso, tal como acontecera com outros companheiros, bastas vezes fui incomodado pela PIDE que, de quando em quando, me batia à porta questionando-me sobre este ou aquele assunto. O mesmo sucedeu com Raul Canal, molestado pela polícia política ao longo
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de várias décadas, em consequência do seu ativo empenhamento nas atividades do MUD Juvenil», sublinha António Monteiro Alves.
Augusto Santos Perdigão Recordações do mais experiente elemento do grupo fundador Membro fundador do Clube de Campismo Luz e Vida e, tal como Raul Canal e António Monteiro Alves, igualmente fundador da extinta secção de campismo da Sociedade Filarmónica Timbre Seixalense, Augusto Santos Perdigão, o mais veterano e experiente elemento desse grupo de jovens progressistas, devido à sua passagem pelos corpos gerentes da mencionada agremiação, na qual, de resto, chegou a desempenhar as funções de presidente da direção, é outra das figuras que dedicou parte significativa da sua vida à elevação das coletividades da antiga vila do Seixal. Amante do convívio com a natureza, quer por via dos encantos de que esta se revestia, quer pela comovente sensação de liberdade que tal contacto lhe proporcionava, sentimento ainda mais acentuado pelo carácter repressivo e ditatorial do regime, Augusto Perdigão logo se predispôs a tomar parte no projeto de criação de uma secção de campismo no quadro da sua predileta agremiação. Considerando que o aparecimento do aludido núcleo e o trabalho por este realizado constituíram um passo determinante, em matéria de organização, enquadramento social da juventude e dinamização da própria coletividade, nessa
época, sentiu-se bastante chocado com a forma como a direção da Timbre procedeu à extinção da estrutura que ele havia ajudado a criar, especialmente porque a achava uma mais-valia que deveria ser preservada. Por esse motivo e apesar de na altura em que tão infeliz decisão foi tomada não desempenhar nenhuma função diretiva na referida secção, decidiu manifestar-se contra a extinção da aludida secção, tendo-se solidarizado com os rapazes que a dirigiam.
«Solidariedade com os rapazes levou-me a acompanhá-los na fundação do Luz e Vida» «Embora soubesse que a razão que presidiu a todo esse controverso processo radicava na natureza do regime político que, então, governava e do sentimento de receio que tomava muitos dirigentes associativos, não podia, todavia, deixar de me rebelar contra tal decisão», começa por afirmar o conceituado dinamizador da mencionada secção. «Por essa razão, decidi escrever uma carta à direção da coletividade, na qual expressava a minha solidariedade a todos quantos haviam sido objeto de sanção, ao mesmo tempo que afirmava a minha corresponsabilização pelas diferentes iniciativas que eles tinham protagonizado», refere. «Neste contexto e para que mais claro ficasse o meu desagrado com a situação criada, acabei por me afastar da agremiação, acompanhando-o na fundação do Núcleo de Campismo Luz e Vida, grupo que assumiria a tarefa de preparar o aparecimento do Clube de Campismo Luz e
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Vida, o que aconteceu alguns anos volvidos, quando se processou a fusão com outros dois grupos congéneres, entretanto nascidos sob influência dos jovens afetos ao primeiro dos aludidos núcleos», adianta Augusto Perdigão. Tratava-se, como se sabe, de um tempo em que o movimento campista esboçava os seus primeiros passos, razão pela qual muitas das iniciativas que, à época, se realizavam assumiam um carácter algo selvagem, devido, fundamentalmente, à falta de uma estrutura organizativa capaz de enquadrar os diversos agrupamentos que espontaneamente despontavam, um pouco por todo o país, instigados pelo profundo sentimento de liberdade que invadia a juventude de então. «É nesse contexto e devido à experiência política colhida por Bruce Marques, Raul Canal e Monteiro Alves, na organização juvenil do Movimento de Unidade Democrática, que se alicerçou a criação de uma secção de campismo no seio da Timbre Seixalense, a qual visava, objetivamente, reunir à sua volta todos os jovens da terra que ansiavam pela liberdade», sustenta Augusto Perdigão. «Ora, sendo a vila do Seixal um meio pequeno, onde todos sabiam das simpatias de todos, apesar de nenhum um de nós andar a apregoar os seus ideais, desde logo porque se o fizessem revelariam uma enorme insensatez, ante os riscos que uma tal atitude comportava, também não os escondiam, designadamente entre os seus amigos», diz. «Nesta conformidade, mal começou a constar a informação de que estava a ser fundada uma organização campista na Timbre Seixalense, tendo como mentores precisamente aqueles
três rapazes, imediatamente suscitou a animosidade das entidades oficiais, as quais só descansaram quando viram as suas pressões surtirem efeito com a extinção da mencionada secção e a expulsão dos respetivos impulsionadores», esclarece o nosso interlocutor.
A criação da secção de campismo da Timbre resultou da experiência política que Bruce Marques, Monteiro Alves e Raul Canal possuíam e visava congregar à sua volta os jovens desse tempo que ansiavam por um país livre. O contacto com a natureza assumia, assim, um cunho mais abrangente, que muito os estimulava, além de proporcionar a passagem de alguns momentos de descontração, como o que a foto ilustra e na qual Augusto Perdigão observa, conjuntamente com Bruce Marques e Fernando Pinto, o seu descendente.
«A circunstância de eu e Raul Canal andarmos a aprender esperanto fez aumentar a vigilância das autoridades locais» «Para agravar ainda mais a situação e a consequente vigilância que as autoridades locais moviam aos principais elementos deste grupo, entre os quais eu me incluía, juntava-se a circunstância de tanto eu como Raul Canal andarmos a aprender esperanto, língua considerada
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maldita pelos adeptos do regime, quadro que levou os progenitores de alguns dos mais novos rapazes da terra a proibirem os seus descendentes de acompanharem ou, mesmo, falar connosco», acrescenta Augusto Perdigão. «Aliás, outro aspeto curioso que marcava os nossos convívios e os acampamentos em que participávamos, quer os que ocorriam na região, quer fora dela, eram as canções que entoávamos, geralmente proibidas pela censura, dado tratar-se de temas construídos por diversos compositores a partir de poemas de José Gomes Ferreira, Sidónio Muralha e Carlos de Oliveira, entre outros. Todos eles considerados malquistos pelas estruturas do regime fascista», revela ainda este fundador do Luz e Vida. A este propósito será oportuno sublinhar que, sentindo-se pouco dotado para cantar, apenas se atrevendo a tamanha ousadia quando a canção era interpretada em coro, Augusto Perdigão não deixava, contudo, de mostrar o seu talento noutras áreas da expressão artística, designadamente declamando poesia. E de tal modo o fazia que prontamente se constituía num dos principias animadores dos denominados fogos de campo. «Considerando que tinha pouco jeito para cantar e só o fazia quando se tratava das Canções Heróicas do maestro Fernando Lopes-Graça, optava por dizer alguns poemas ou ler contos de Leão Tolstoi e de outros autores muito apreciados pela rapaziada que, ao tempo, participava nessas manifestações, leituras que tinham como principal objetivo estimular a luta pela liberdade e pela democracia no nosso país», confessa Augusto Perdigão.
«Alexandre Castanheira, o editor Lyon de Castro e a jovem advogada Odete Santos participavam em vários fogos de campo» «Não se pense, todavia, que era eu o único a declamar poesia. Nada disso. Nesses encontros campistas, colaborava igualmente um rapaz de Almada, chamado Alexandre Castanheira, o qual também dizia muito bem poemas de cariz social e político. O mesmo acontecia com a então jovem Odete Santos, hoje uma prestigiada deputada do Partido Comunista Português, e Álvaro Rodrigues, um moço de Setúbal que animava sobremaneira esses espaços de convívio». Uma iniciativa lúdica visando o fortalecimento dos laços de companheirismo entre todos quantos participavam nos mencionados acampamentos, obviamente aproveitada pelos que detinham uma maior formação política para denunciarem as arbitrariedades do regime, utilizando para o efeito as mais diferentes formas de expressão artística. «É claro que nessas manifestações recreativas participava quem queria. Não havia impedimentos fosse de que natureza fosse. E o mais relevante de tudo residia na liberdade com que cada um dizia o que entendia. Não havia constrangimentos de âmbito partidário, dado que o principal inimigo dos democratas e dos campistas era precisamente o regime que nos oprimia», realça Augusto Perdigão. Obviamente que a ausência de barreiras à liberdade de expressão possibilitava o aparecimento de um ou outro interveniente que resolvia debitar o que lhe aprouvesse sem atender às
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flagrantes contradições que perpassavam por todo o seu discurso.
Os denominados fogos de campo constituíam momentos de grande mobilização cultural, posto que, bastas vezes, tomavam parte nesses acontecimentos alguns jovens de grande talento, que anos depois se tornariam grandes referências do nosso meio cultural. Nesses eventos, por vezes, intervinha a jovem advogada Odete Santos e, num outro, participaram Sérgio Ribeiro, José Carlos de Vasconcelos e ainda Manuel Freire e Adriano Correia de Oliveira. A foto documenta precisamente a presença destes dois grandes nomes da chamada canção de intervenção, sendo Manuel Freire o que está de boné e Adriano Correia de Oliveira o jovem elegante que se encontra a seu lado.
«Numa ocasião, apareceu um indivíduo que procedeu à leitura de um poema no qual fazia o elogio de Napoleão Bonaparte, das invasões francesas e dos oficiais portugueses que se passaram para o lado das forças ocupantes, mandando às malvas a independência nacional», conta. «Perante tão absurdo e vergonhoso dislate, logo Alexandre Castanheira pediu a palavra
para, de modo brilhante, desmontar, uma por uma, as boçais exaltações que o referido poema continha, de todo avessas ao espírito campista e aos superiores valores que o suportavam, razão bastante para que lhe haja dado uma eloquente lição de liberdade e de patriotismo, atentamente escutada por quantos assistiam a esse fogo de campo», adianta Augusto Perdigão. «Aliás, mal o homem acabou a sua declamação e sem que soubesse qual seria a exposição de Alexandre Castanheira, também eu tencionei solicitar a palavra para contestar o conteúdo de tão absurdo texto, mas ele antecipou-se-me e com os instrumentos de análise crítica que dispunha, aliados à clarividência que sempre o caracterizou, desmontou, uma por uma, todas as afirmações feitas naquele extenso poema, coisa que, certamente, eu não lograria fazer», refere igualmente o associativista seixalense. Recordações de uma história que, à semelhança de muitas outras por si vividas, nos permitem ajuizar sobre o permanente esforço de sensibilização que instigava os mais atentos ativistas do movimento campista nos tempos subsequentes ao seu aparecimento, designadamente aqueles que possuíam outro grau de formação, quer política, quer académica. «Paralelamente, os fogos de campo incluíam também gincanas e provas de perícia, uma das quais só admitia senhoras, dado que visava apurar qual delas estrelava mais depressa um ovo. Momentos que procuravam objetivamente reforçar o clima de confraternização entre todos quantos comungavam do interesse de usufruir da natureza», lembra Augusto Perdigão. «Entre muitas outras figuras que, à época, marcavam também presença assídua nesses
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eventos lúdico-culturais, contavam-se os editores Francisco e Adelino Lyon de Castro, fundadores das Publicações Europa-América, figuras conotadas com a oposição ao regime, devido aos fortes ideais democráticos que defendiam, convicções que, de resto, levaram a PIDE a encarcerar pelo menos um deles durante algum tempo», refere ainda este fundador da popular agremiação seixalense.
«Campanha do general Delgado foi uma das batalhas mais apaixonantes travadas contra o regime fascista» Além disso, Augusto Perdigão faz notar que «ontem como hoje, o sentimento que me animava não era o de pretender que os demais pensassem como eu, só para satisfazer um mero capricho pessoal. Não, senhor. O que me instigava era a profunda vontade de contribuir para despertar as consciências quanto aos fundamentos doutrinários do fascismo que, então, nos oprimia», sublinha. «Uma das mais apaixonantes batalhas travadas nesse sentido foi a candidatura do general
Humberto Delgado à Presidência da República, um período que mobilizou todas as nossas energias e no decurso do qual se promoveram diversas reuniões conducentes a envolver outros movimentos, algumas delas alvo da intervenção das forças repressivas, devido à dimensão que adquiriram», garante ainda o antigo dirigente do Luz e Vida. «Neste contexto, creio que, quando se escrever a história completa do movimento campista português, facilmente se confirmará o quão relevante foi o seu trabalho em matéria de consciencialização dos portugueses e do papel que soube assumir no processo que conduziu à Revolução levada a cabo pelo Movimento das Forças Armadas em 1974», sustenta Augusto Perdigão, que atribui grande parte da sua formação cívica aos ensinamentos que o campismo lhe ofereceu, fundamento mais do que suficiente para que se haja envolvido de coração e alma na fundação do Clube de Campismo Luz e Vida, uma casa que sempre teve as suas portas abertas aos desafios do futuro e aos caminhos da liberdade, no que, em sentido lato, de mais elevado esta contém.
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Grupo Desportivo do Cavadas Uma agremiação nascida para fomentar o desporto
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Grupo Desportivo do Cavadas
Insatisfeitos com a ausência de qualquer estrutura que mobilizasse os jovens deste lugar da freguesia de Arrentela para a prática de atividades de natureza desportiva e recreativa, um grupo de moradores da zona do Cavadas, entre eles diversos rapazes que nutriam uma particular apetência para o futebol, começou a instigar os demais habitantes do lugar para a necessidade de fundarem uma agremiação, suscetível de agrupar à sua volta os talentos que despontavam na localidade. A ideia correu célere, conquistou novos adeptos entre as gentes do lugar e com eles um novo alento tomava quantos se envolveram na concretização de tão ambicioso projeto, ante a escassez de recursos de que dava mostras a maioria dos seus promotores, dado tratar-se de gente humilde que vivia exclusivamente do fruto do seu trabalho. Com efeito, tão forte foi o entusiasmo que se gerou em seu redor e tantas as boas vontades que se manifestaram disponíveis para colaborar na realização desse objetivo, que a coletividade acabaria por ser fundada precisamente a 1 de maio de 1970, uma data amaldiçoada pelo regime então vigente, adotando como sede social as instalações de um café, nas quais permaneceu até conseguir o aluguer de uma loja. Sobrevivendo, praticamente, a expensas dos seus dirigentes, os quais se encontravam obrigados a pagar uma quota mensal de 50$00 (0,25 €), valor significativo para o tempo, devido aos baixos salários praticados, mas que se afigurara de relevante importância para atender às despesas resultantes do funcionamento inicial da agremiação. Um esforço suportado por um grupo de seis
elementos, constituído por Afonso Abrantes Augusto, António Joaquim Soares, Augusto António Leão Formiga Vieira, José António da Silva Ministro, José Pedro da Silva Romão e José Pedro Pinho Duarte, que permitiu ao novel Grupo Desportivo criar alicerces entre a comunidade local, especialmente junto da juventude, cativando-a para a prática desportiva. De tal sorte que a breve trecho várias eram já as equipas que representavam a popular coletividade nos diferentes torneios populares que, por essa altura, se realizavam em diversas localidades do concelho. O mesmo sucedera com os denominados escalões de formação, os quais incluíam ainda equipas de juvenis e juniores, estes últimos participando em competições oficiais organizadas pela respetiva estrutura federativa. Paralelamente, desenvolveu um conjunto de atividades lúdicas e culturais, com particular incidência no fomento do xadrez e damas, ao mesmo tempo que procedia à criação de uma biblioteca, após o que procedeu à criação de outras valências, designadamente a ginástica infantil e o atletismo, modalidade aberta a todos os escalões etários. Um dinamismo que, todavia, não escondia as dificuldades que sempre marcaram a vida da mencionada agremiação, motivadas tanto pela falta de uma sede social que oferecesse aos associados e atletas as mínimas condições de funcionalidade, falta essa suprida apenas na década de 1990 graças ao apoio da edilidade, como pela ausência de um campo de futebol, tudo isto agravado pelas constantes aflições financeiras que marcavam o dia a dia da mencionada agremiação.
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Os seis fundadores do Grupo Desportivo do Cavadas, entre os quais se contam Augusto Leão e José Pedro Romão.
Apesar de tudo, o empenhamento e a determinação colocados por dirigentes e atletas do Grupo Desportivo do Cavadas na busca de soluções que concorressem para a manutenção e consolidação deste projeto associativo foi de tal ordem que hoje todos a consideram uma das mais dinâmicas coletividades, quer da freguesia de Arrentela, quer do próprio concelho do Seixal. De tudo isso se procurará dar conta nos depoimentos que alguns dos seus destacados associados e dirigentes nos confiaram, para que melhor se conheça a memória coletiva das gentes que ao longo dos tempos se fixaram neste concelho e, com o seu esforço, dedicação e sa-
ber, não apenas valorizaram o património humano e afetivo desta franja territorial do país, mas, sobretudo, o tornaram num espaço que sabe preservar o que de mais belo e valioso qualquer terra pode ter: os seus habitantes e as instituições que eles mesmos fundaram e dirigem.
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Grupo Desportivo do Cavadas
Augusto Leão e José Pedro Romão Memórias de dois fundadores da jovem agremiação do Cavadas Elementos do grupo de entusiastas que se envolveram na difusão da ideia de promover a criação de uma coletividade nesta zona habitacional, atividade que os levou a integrar o primeiro elenco diretivo do Grupo Desportivo do Cavadas, Augusto Leão e José Pedro Romão são dois dos fundadores da popular agremiação, os quais, por via dos largos anos que lhe dedicaram, gozam de um elevado respeito junto dos seus consócios. Mais do que um remoto desejo evidenciado por um grupo de jovens residentes neste antigo lugar situado entre a Torre da Marinha e Paio Pires, os quais, nos seus tempos de lazer, se dedicavam à prática do futebol, o projeto de procederam à fundação de um clube resultou de uma necessidade sentida por quantos integravam o referido grupo, pois de outro modo ver-se-iam forçados a jogar num agrupamento popular então existente na denominada Quinta de Cima, o qual lhes cedia os equipamentos para o efeito. Para ultrapassarem os inconvenientes que um quadro desta natureza acarretava, ao qual se juntava ainda o inconfessado intuito de concorrerem para a afirmação e dignificação da sua zona habitacional, o modo que se lhes afigurou mais adequado para concretizarem tais desígnios foi o de intentarem a fundação de uma agremiação.
A par disso, a conjugação de esforços e vontades conducentes à concretização de tão caro objetivo mobilizaria não apenas os mentores da ideia, mas também todos aqueles que, gostando de praticar futebol, não encontravam condições que lhes possibilitassem o regular exercício dessa atividade no lugar onde residiam. Desde logo porque o aparecimento de um clube permitir-lhes-ia colocar um ponto final no permanente quadro de dependência em que se encontravam, sempre que tencionavam dar livre curso aos seus interesses desportivos.
Jovens amantes do futebol avançaram com a ideia É, pois, neste contexto que um certo domingo, quando regressavam da mencionada quinta, Augusto Leão chamou a atenção dos demais companheiros para a circunstância de aquela zona ser formada por um aglomerado constituído por meia dúzia de casas e possuir uma coletividade, ao passo que o Cavadas, um espaço territorial constituído por muito mais edifícios e com uma população bem mais numerosa, não dispunha de nenhuma entidade associativa. «A partir daí», relata Augusto Leão, «começámos a juntar-nos num café, situado na Estrada Nacional, para amadurecermos a ideia e debatermos as questões relacionadas com a realização de tão importante projeto». «A primeira tarefa que se nos colocou», esclarece José Pedro Romão, «foi a de tentarmos comprar os equipamentos, objetivo que, diga-se, não se revelou de fácil execução, uma vez que apesar de haver muita força de vontade para levar avante tal intenção, o dinheiro era pouco.
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Grupo Desportivo do Cavadas
Valeu-nos, então, a circunstância de estarmos sediados no dito café, denominado Pastelaria Alentejana, e não pagarmos renda.» A notícia do aparecimento da novel agremiação começou a correr entre os habitantes do bairro e, com ela, novas adesões se registaram, cenário que obrigou os dirigentes do clube a procurarem outro espaço para efetuar as suas reuniões. «Ora, dada a circunstância de a referida pastelaria ser uma casa comercial, vimo-nos na necessidade de procurar outro local para realizarmos as nossas reuniões, encontrando num barracão cedido pelo mestre Jorge Sá, um carpinteiro que, ao tempo, tinha a sua oficina junto ao antigo campo do Atlético Clube de Arrentela, o espaço para o efeito, solução que se revelou transitória, posto que o homem tinha muito trabalho e nem sempre o aludido barracão estava disponível para reunirmos», conta Augusto Leão. «Em função disso, optámos por mudar-nos para outro barracão, situado numa propriedade de Tio João Maria, do qual transitámos para um outro, localizado na Quinta da Boa Hora, utilizando apenas a morada do referido estabelecimento como endereço postal», adianta José Pedro Romão, que acrescenta terem sido tempos algo conturbados os que o clube viveu nesses primeiros anos de existência, devido à constante mudança de instalações. «Foi um período em que andámos permanentemente com a trouxa às costas, mas lá conseguimos organizar as coisas de maneira a que os sócios pudessem jogar à bola. Afinal, o principal aliciante que a coletividade lhes oferecia, já que, nessa época, quem não fosse associado não po-
dia utilizar os materiais alugados pela instituição. Estes estavam exclusivamente à disposição dos sócios. De mais ninguém! Tratava-se, em bom rigor, de uma forma de estimular a rapaziada que gostava de dar uns pontapés na bola a associar-se», sublinha o citado fundador e dirigente do Grupo Desportivo do Cavadas.
Primeiras botas oferecidas por um associado Um cenário que durou algum tempo, visto que a natureza eminentemente popular da coletividade, constituída, grosso modo, por operários e outros assalariados, gente que vivia apenas da venda do seu trabalho, auferindo, por consequência, salários extremamente baixos, não permitia aos dirigentes da jovem agremiação aventurarem-se na compra dos respetivos equipamentos desportivos. «Isso só se alterou quando o associado José Sequeira Mariano, numa das suas deslocações a Espanha, decidiu trazer como lembrança os pares de botas suficientes para calçar uma equipa de futebol. A partir daí é que começámos a pensar em adquirir o restante equipamento», explica Augusto Leão. Vencida esta etapa, importava agora proceder à legalização da instituição, mediante a elaboração e posterior aprovação dos estatutos, tarefa que não se afigurava fácil, devido aos poucos conhecimentos que a generalidade dos elementos que constituíam a direção da coletividade tinha neste domínio, face à reduzida escolaridade que a maior parte deles possuía. «Essa é que se revelou uma fase mais complicada», atira prontamente este fundador do
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GDC, «especialmente porque houve necessidade de introduzir uma série de alterações ao rascunho que aquele sócio que nos ofereceu as botas submeteu à apreciação da direção, situação que suscitou alguma discussão interna. Então a que envolveu a aprovação do emblema do clube, foi uma coisa terrível, já que se revelou extremamente delicado arranjar um consenso que contentasse as diferentes opiniões aventadas a esse propósito», revela ainda Augusto Leão. «A divergência resultava fundamentalmente de uns serem benfiquistas e pretenderem que o símbolo do clube tivesse as cores do Benfica, o mesmo sucedendo com os que se afirmavam adeptos do Sporting. Assim, para que nenhum dos contendores ficasse descontente, sugeri que as cores fossem o amarelo e o preto», informa ainda este nosso interlocutor, para logo acrescentar que a sua execução ficou a cargo do aludido associado, tarefa que acumularia com a de proceder à elaboração do citado documento, socorrendo-se para o efeito dos estatutos do Benfica, arranjados por José Ministro, outro dos fundadores da agremiação.
Não havia dificuldades em formar lista para os órgãos sociais nem na cobrança das quotas Tempos difíceis esses, dado que os membros dos corpos sociais, a par de se depararem com as formalidades conducentes à oficialização da coletividade, se viram, entretanto, a braços com nova mudança de sede social, desta feita para um outro café, situado na Estrada Nacional, cujo aluguer a instituição decidira tomar, razão
pela qual, segundo uma escala semanal previamente estabelecida, todas as noites, cada um deles estava de serviço ao balcão. «Dessa maneira, conseguimos fazer face aos encargos resultantes dos honorários de uma advogada contratada para nos aconselhar no processo de aprovação e posterior publicação no “Diário do Governo” dos estatutos do clube», salienta Augusto Leão. «Por força dessas circunstâncias e dos apertos com que nos víamos, creio que atualmente se afigura mais simples arranjar um elenco diretivo, porque o grau de sacrifícios que, nesse particular, são exigidos revelam-se deveras inferiores àqueles com que nos confrontávamos nessa altura», enfatiza José Pedro Romão. Não se imagine, contudo, que, à época, os órgãos sociais do Grupo Desportivo do Cavadas eram apenas constituídos por gente jovem. Entre eles havia igualmente pessoas de idade mais avançada que, na opinião dos dois entusiastas da popular agremiação, muito lhes valeram, sobretudo pelo sábio aconselhamento que souberam evidenciar sempre que se levantava algum problema que se revestia de maior complexidade. «Mas, por força da carolice e do carinho que, nesse tempo, todos nutriam pelo clube, ao longo dos cinco mandatos consecutivos em que presidi à direção, nunca senti, apesar de tudo, grandes dificuldades em constituir uma lista para os corpos gerentes», refere Augusto Leão. Uma dedicação que se manteve, mesmo quando deixou de presidir aos destinos da agremiação, passando nos anos imediatos pelos restantes cargos quer da direção, quer da assembleia geral e do conselho fiscal.
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«Um aspeto que exemplifica o espírito que rodeava o clube prende-se com a facilidade com que, nesse tempo, desempenhei o cargo de tesoureiro, dado que não havia necessidade de ir à procura dos sócios para pagarem as quotas. Eles é que vinham à sede e nos pediam para vermos quantas tinham em atraso. Além disso, casos houve, designadamente no princípio do ano, em que estas ainda não estavam feitas e já alguns pretendiam efetuar o respetivo pagamento, sendo o seu valor de 20$00 (0,10 €) mensais», acrescenta. «E o curioso é que não tínhamos apenas como sócios moradores deste núcleo habitacional. Entre os associados, havia igualmente pessoas que residiam na Torre da Marinha e noutros locais do concelho», refere.
Construção das atuais instalações sociais exigiu muito trabalho voluntário Não obstante o quadro de disponibilidade que a massa associativa evidenciava em matéria de liquidação atempada da respetiva quotização, isso não significava que os dirigentes fizessem o seu mandato com uma perna às costas. O processo de construção das suas atuais instalações sociais e desportivas são disso prova eloquente, dado que lhes exigiu um elevadíssimo número de horas de trabalho. Com efeito, enquanto José Pedro Romão e outros dirigentes dispensaram particular atenção às questões relacionadas com os trabalhos conducentes à execução da obra da sede, benfeitoria promovida pela câmara municipal, no âmbito do plano de apoio às instituições as-
sociativas sediadas no concelho, Augusto Leão dedicara-se a levar a bom termo a construção do ringue polidesportivo, anexo ao referido edifício. «Foi um período que exigiu muito de nós, já que todas as tardes, mal saíamos dos nossos empregos, vínhamos para aqui trabalhar. O mesmo se verificava nos fins de semana. Uns faziam o trabalho de pedreiro, outros davam serventia. Cada um colaborava no que podia», sublinha o dinâmico dirigente associativo. «Aliás, diga-se, que a localização das instalações estava prevista para o outro lado da estrada», esclarece José Pedro Romão, «todavia, dado que o loteamento perspetivado para o local não contemplava qualquer tipo de indústria, como seria desejo dos promotores, mas só habitação e comércio, a promessa que nos havia sido feita pelo urbanizador, segundo a qual nos doaria o terreno situado nas traseiras dos prédios para construirmos a sede da agremiação, acabou por gorar-se», diz ainda o mencionado associativista. «No entanto, constatando que os proprietários desta antiga quinta, também eles sócios da coletividade, a haviam vendido para nela ser construída uma urbanização, ao verificarmos que todo este espaço, situado nas traseiras dos imóveis, ficava completamente devoluto, tomámos a iniciativa de solicitar os bons ofícios da autarquia, no sentido de reunirmos esforços visando a transferência da implantação da sede para este local. Um projeto que, felizmente, lográmos levar a bom porto e que nos permitiu dispor de umas instalações dignas, dignificando, com isso, a própria zona onde o clube se insere», sustenta José Pedro Romão.
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Entretanto, com o processo de desenvolvimento urbanístico da zona e o consequente aumento da população local, a coletividade viu-se confrontada com outro tipo de solicitações, nomeadamente as que se prendiam com a necessidade de promover uma diversificação das suas atividades regulares, sobretudo no que à prática desportiva dizia respeito.
Criação da secção de atletismo constituiu um passo determinante na diversificação das atividades desportivas É nesse cenário que em dada altura, os corpos gerentes da agremiação decidem proceder à criação de uma secção de atletismo, aprovei-
tando para tanto os conhecimentos técnicos e a disponibilidade manifestada pelo associado Joaquim Maia para assumir essa responsabilidade, visto tratar-se de uma pessoa que já desempenhara idênticas funções no Grupo Desportivo das Paivas, mas do qual se havia desligado. «A criação da secção de atletismo ocorreu durante a vigência de uma das direções a que presidi», conta José Pedro Romão. «E com tal vigor se afirmou que a agremiação acabou por abandonar a prática do futebol, modalidade que esteve na origem da sua fundação, chegando mesmo a ter duas equipas federadas nos escalões de juvenis e juniores, as quais utilizam o campo de jogos do Atlético Clube de Arrentela», lembra igualmente o respeitado dirigente do Grupo Desportivo do Cavadas.
À semelhança do que sucedera com outras coletividades de bairro, também o Grupo Desportivo do Cavadas deve o seu aparecimento ao futebol e à necessidade que alguns moradores sentiram de promover a fundação de uma agremiação nesta zona da freguesia de Arrentela.
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«Contudo, a minha ausência dos corpos gerentes, em determinado período da vida do clube, criaria condições à extinção da aludida secção, posto que os responsáveis que, à época, dirigiam a coletividade não manifestavam grande apetência pela prática da modalidade. Foi pena, pois, creio que a manutenção do futebol não beliscaria os excelentes resultados obtidos pelo atletismo», lamenta. Além disso, não deixa de ser surpreendente que o principal entusiasta pela manutenção da secção de futebol no seio da agremiação, a par de não integrar nenhuma das equipas representativas da instituição, era ainda o que mais trabalho tinha com a sua existência, em consequência de ter sob a sua responsabilidade o funcionamento do bufete, sempre que estas jogavam em casa. «Um trabalho que não se limitava apenas a servir ao bufete. Incluía também a tarefa de carregar os couratos, as febras, o pão, o vinho, as cervejas e todos os outros produtos necessários ao funcionamento de um bufete. O mesmo sucedia no final», relata José Pedro Romão. Experiência diferente teve Augusto Leão, considerado pelos seus pares um dos praticantes mais habilidosos entre quantos representaram a popular coletividade do Cavadas nos inúmeros jogos de convívio ou torneios populares que nesse tempo se realizavam, quer no concelho, quer fora dele. «Nessa altura, fomos a várias localidades do Alentejo disputar partidas amigáveis com equipas locais. Tratou-se de uma época em que percorremos quase toda aquela província, ao mesmo tempo que tomávamos parte em torneios, organizados tanto por nós, como por outras co-
letividades da nossa região ou mesmo da zona de Lisboa», informa este cofundador do Grupo Desportivo do Cavadas.
Ausência dos «carolas» levou também à extinção da secção de pesca desportiva Um tempo em que o futebol constituía um ótimo pretexto para a regular promoção de excursões, iniciativas que colhiam o agrado generalizado da respetiva massa associativa, ante a natureza lúdica que as caracterizava, ao mesmo tempo que permitiam assegurar o transporte dos elementos que integravam a equipa, pois, de outro modo, tornava-se impossível à agremiação efetuar tais deslocações, já que não dispunha de qualquer veículo. «Então, um ou dias depois de havermos afixado na sede um papel a informar da realização deste ou daquele passeio, a camioneta ficava cheia», sublinha Augusto Leão. «Situação semelhante se verificava, de resto, com a pesca desportiva, outra das modalidades que decidimos criar alguns anos depois da fundação e que, tal como acontecia com o futebol, também mobilizava muitos adeptos. No entanto, a circunstância de os principais “carolas” da secção se encontrarem, em dada altura, ausentes aqui da zona levou à extinção da referida secção», refere ainda o carismático ativista. Por via disso, durante largos anos, esta fora a modalidade preferida dos dirigentes da instituição, situação para a qual muito contribuiu a oferta feita por um dos associados, ao entender doar as botas necessárias para a formação da primeira equipa que representou o referido
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Grupo Desportivo nos vários torneios populares que ao tempo se realizavam. Não satisfeito com tudo quanto houvera feito pela instituição que ajudara a fundar, entregando-se de corpo e alma a todas as tarefas que lhe surgiram pela frente, Augusto Leão ainda conseguiu arranjar tempo para assumir as funções de treinador de uma equipa feminina de futebol de salão, cuja existência, aliás, se revelaria efémera. «Tudo resultou de uma solicitação feita por um grupo de raparigas que pretendia praticar futebol de salão através da coletividade, pedido que, de resto, mereceu da nossa parte toda a recetividade. Todavia, porque não conheciam ninguém que as treinasse, acabei por ser eu a assumir tal responsabilidade, mesmo sabendo das profundas limitações que possuía por ausência de habilitações para o efeito», informa. «E não se pense que aquilo que eu fiz era caso virgem. Outros dirigentes associativos igualmente o faziam, pois, nesse tempo, tínhamos de ser pau para toda a obra. Mas como isso ocorreu numa época de férias escolares, assim que a atividade letiva recomeçou, a equipa desfez-se, mau grado todo o empenho que coloquei no desempenho da tarefa a que me havia comprometido», confessa ainda Augusto Leão. Um episódio que reflete fielmente o senti-
mento de entrega que caracterizava os dirigentes associativos que ao tempo passaram pelas coletividades do concelho, o qual os instigava a servir ao balcão, a ser moço de recados, alvenéu, atleta, treinador e tudo o mais que fosse necessário ao normal funcionamento da instituição a que estivessem ligados. Uma total doação dos tempos de lazer que desprezava os sacrifícios pessoais, relegando para um plano subalterno a própria vida familiar de cada um. Tudo por mor da agremiação a que pertenciam. Sem nenhum tipo de interesse que não fosse o de pugnarem pelo crescimento e dignificação da respetiva entidade, colhendo como contrapartida do seu esforço o reconhecimento dos demais consócios. Apenas isso. Relatos de histórias e episódios cujos únicos registos são os que os próprios protagonistas retiveram. Um património vivencial que extravasa os limitados domínios das meras experiências pessoais que cada viveu, para se afirmar num relevante contributo para história do concelho do Seixal, nas suas múltiplas vertentes. Um legado que, se acaso, não fosse devidamente preservado através do acervo oral consubstanciado neste projeto, perder-se-ia também com o desaparecimento físico de quantos nele se predispuseram a colaborar, relatando as suas memórias.
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ficha técnica Título: Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória Autor: Fernando Fitas Edição: Câmara Municipal do Seixal Coordenação de edição: Divisão de Cultura e Património Conceção gráfica e revisão: Divisão de Comunicação e Imagem Cedência de imagens: movimento associativo e particulares Impressão e acabamento: Greca, Artes Gráficas 1.ª edição: outubro de 2016 Tiragem: 250 exemplares Depósito Legal n.º: 416119/16
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Histórias Associativas Memórias da Nossa Memória
2.º Volume
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