Livro do Projeto Histórias & Memórias Fotográficas

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Histórias

&

Memórias

Fotográficas Povo do Concelho do Seixal



O projeto Histórias & Memórias Fotográficas, desenvolvido pela Câmara Municipal do Seixal, através do Centro de Documentação de Informação do Ecomuseu Municipal do Seixal, reúne um conjunto de fotografias antigas, que recuperam um património que é de todos os munícipes do concelho do Seixal que se orgulham do seu passado e da sua história. Como recordar é viver, este projeto tem sido dirigido sobretudo para uma população que ainda reconhece os modos de vida de antigamente, que vive nos núcleos urbanos antigos do concelho do Seixal, tendo sido realizadas várias sessões de divulgação e sensibilização de participação no projeto em lares, centros de dia, associações e coletividades e juntas de freguesia, das quais resultou a recolha de um conjunto de empréstimos de fotografias antigas muito interessante. Mas, porque uma fotografia não fala apenas por si, cada imagem foi acompanhada de um testemunho, evocando sempre histórias e memórias, não só pessoais, mas também coletivas, o que permite documentar aspetos da vida quotidiana de outros tempos, alguns deles desconhecidos para a geração atual. A partir das fotografias recolhidas foi possível organizar uma exposição de rua, exibida em todas as freguesias do concelho do Seixal (no Seixal, Arrentela, Aldeia de Paio Pires, Amora, Fernão Ferro e Corroios) entre 5 de dezembro de 2020 e 28 de fevereiro de 2021, a qual apresentou temas relacionados com a identidade, o lazer e as sociabilidades.

Neste catálogo retomam-se, de forma mais alargada e contextualizada, alguns dos assuntos apresentados na exposição, como as alcunhas, os nomes das ruas e dos lugares antigamente atribuídos pelos populares, as relações de vizinhança e proximidade, o ritmo e o pulsar dos lugares, as atividades económicas predominantes, as memórias de infância, das brincadeiras e dos tempos de escola, o namoro à antiga, os rituais associados ao casamento, a importância das coletividades e das sociedades filarmónicas na fruição de tempos livres e das atividades culturais, os craques desportivos sonantes de outras épocas, os preparativos da ida à praia e os piqueniques, assim como as festividades locais, consideradas o ponto alto do ano e momento de encontro da população. Porque queremos que este projeto de memória seja de todos para todos, queremos que continue a ser um trabalho de futuro, de valorização da identidade local, de modo que continue a contribuir para o resgate das raízes da nossa população, para um conhecimento mais aprofundado do património imaterial da região, da evolução urbana do território, das tradições, da cultura popular, das personalidades locais, das artes e ofícios, das instituições locais, do património e da geografia e história local. Um povo que não conhece o seu passado não pode sonhar o seu futuro, por isso, em nome da história e da força coletiva que o move, urge salvaguardar o legado de um tempo que já não existe, mas que é importante, contando com o apoio da comunidade, não o deixar esquecer. Joaquim Santos Presidente da Câmara Municipal do Seixal



Agradecimentos Particulares Adelino Tavares Adolfo Loureiro Agostinho Sousa Silva Aldemiro Benavente Alfredo Rocha Rodrigues Alice Pinheiro Ana Teresa Pereira António Henriques António Lima Ferreira Cândido Tavares Carlos Policarpo Carlos Ribeiro Catarina Baluarte Celeste Tiago Rego Céu Cunha Edgar Rendeiro Eduardo Palaio Eduardo Pereira Elisabete Gonçalves Pinto Felisbela Ferreira Carvalho Fernando Tasquinha Rebelo Florinda Reis Gabriela Benavente Helena Almeida Lima Hermínia Bento Irlando Tavares Isabel Fernandes Joaquim Martins «Nana» José Filipe Costa Gomes José Meias José Luís Pedro Laurinda Ramos Leonel Fernandes Leopoldo Gonçalves Casanova Magnalda Marques da Mata (através do neto Paulo Bicho) Manuel Fernando Aleixo Manuela Partidário Manuela Rolão Maria Alice Martins

Maria Andreia Borges Maria de Lourdes Brites Maria dos Anjos Candeia Maria do Céu Cunha Maria Emília Lopes Maria Helena Mota Maria Isabel Gomes Maria José de Albuquerque Soares Maria Raquel Tavares Serra Maria Rosete Valente Mariana Oliveira Marque Túlio Nelson Cruz Rosalina Homem Rui Carvalho Salvador Barros Tiago Sara Brito Sebastião Pinheiro Virgínia Fonseca Vitaliana das Neves Vítor Lima Vítor Pinho E a todos que contribuíram para a realização deste projeto. Instituições: • Associação Náutica do Seixal • ARPIA – Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Arrentela • AURPIA – Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos de Amora • AURPIS – Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos do Seixal • AURPIPP – Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos de Paio Pires • L1B – Associação Cultural • Junta de Freguesia de Amora • Junta de Freguesia de Corroios • Junta de Freguesia de Fernão Ferro • União das Freguesias do Seixal, Arrentela e Aldeia de Paio Pires


Índice Um projeto de comunidade .............................................................................................................................................. 7 Ser seixaleiro!................................................................................................................................................................... 13 Arrentela: «Toda a gente era primo do primo»............................................................................................................. 17 Aldeia de Paio Pires: de agrícola a operária . ............................................................................................................... 21 Amora antiga ................................................................................................................................................................... 27 Memórias de infância ...................................................................................................................................................... 33 O namoro de outros tempos........................................................................................................................................... 39 Um casamento: um dia que nunca mais se esquece... ............................................................................................... 43 Tempo de lazer.................................................................................................................................................................. 49 Desporto . ......................................................................................................................................................................... 57 Entre dois dedos de conversa... e outras distrações................................................................................................... 63 Festas populares e religiosas......................................................................................................................................... 71 Conclusão......................................................................................................................................................................... 83 Ficha técnica..................................................................................................................................................................... 84


Um Projeto de Comunidade


personalidades locais, das artes e ofícios, das instituições locais, do património, e da geografia e história local, entre muitos outros aspetos.

Histórias & Memórias Fotográficas – – um projeto de comunidade

Trata-se, portanto, de um trabalho de arqueologia da memória, que lida com as emoções e os afetos, cruzando-se a memória pessoal com a do espaço vivido, num diálogo indissociável, porque é disso que a memória é feita, de lugares, sentimentos e momentos, que se associam num diálogo interminável e que fazem a diferença na vida de cada um e do coletivo, pois apesar da memória poder ser partilhada por quem viveu experiências semelhantes, cada lembrança evocada é também única e particular, e a forma como a contam também, pois tal como escreveu Gabriel García Marquez: «A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la».2 Antes da devolução das fotografias aos seus proprietários, formaliza-se junto destes o empréstimo e a autorização de utilização das imagens e dos testemunhos orais a elas associadas, para efeitos de divulgação do projeto e de atividades culturais e educativas do EMS, para assegurar a conformidade do processo.

«Toda a recordação, por muito pessoal que possa ser, mesmo a recordação de acontecimentos que só nós presenciámos, ou a de pensamentos e sentimentos que ficaram por exprimir, existe em relação com todo um conjunto de ideias que muitos outros possuem: com pessoas, lugares, datas, palavras, formas de linguagem, isto é, com toda a vida material e moral das sociedades de que fazemos parte, ou das quais fizemos parte.» Paul Connerton1 O projeto Histórias & Memórias Fotográficas tem sido desenvolvido desde 2017 pelo Centro de Documentação e Informação (CDI) do Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS). Este projeto tem por base a documentação de fotografias antigas que se encontram incorporadas no CDI, cuja informação disponível é relativamente escassa para o seu tratamento documental, pretendendo-se, deste modo, recolher mais elementos informativos sobre as mesmas, através de ações de divulgação junto da comunidade local para completar a sua descrição e identificação.

Apresentação em lares e centros de dia

Beneficiando desse contacto de proximidade com a população, começou a dinamizar-se também uma campanha de doações e empréstimos de fotografias antigas, que tivessem histórias para contar. Após a receção das fotografias, as mesmas são reproduzidas por um fotógrafo da Câmara Municipal do Seixal (CMS), em formato digital. Em seguida passa-se à fase da sua documentação, sendo imprescindível para isso a contribuição das pessoas que as cederam, incentivando-se que estas nos facultem o seu testemunho pessoal sobre as mesmas, através de entrevistas individuais ou coletivas.

Para a implementação deste projeto de documentação fotográfica e recolha oral, temos contado com a colaboração de segmentos de população diferentes, nomeadamente junto dos seniores, em centros de dia e lares, por considerarmos que este é o público-alvo mais indicado para contextualizar as imagens mais antigas e ser o detentor de um maior conhecimento sobre como era a região antigamente. Nessa perspetiva, temos visitado alguns desses estabelecimentos, onde damos a conhecer o projeto e apresentamos as fotografias antigas do acervo do ecomuseu, relacionadas com a zona de localização dos mesmos. Nesses encontros incitamos os presentes a recordar o passado através das imagens apresentadas e a falarem-nos das suas memórias, assim como apelamos ao empréstimo das suas fotografias antigas, acrescentando assim as suas memórias fotográficas ao património do museu.

Nessas conversas informais sobre as imagens, sem qualquer tipo de guião prévio, tendo como mote apenas o que as fotografias evocam, as histórias antigas e as lembranças associam-se a muitas outras, percorrendo as memórias de infância e de outros tempos distantes e longínquos do momento presente, contribuindo para um conhecimento mais alargado do património imaterial da região, da evolução urbana do território, das tradições, da cultura popular, das 1

CONNERTON, Paul (1983), Como as Sociedades Recordam, Oeiras, Celta, p. 44.

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GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel (2002), Viver para Contá-la, Lisboa, D. Quixote.

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Sessão de grupo de trabalho na sala de leitura do Centro de Documentação e Informação do EMS, 2017. EMS-CDI – Fernanda Ferreira.

Apresentação do projeto Histórias & Memórias Fotográficas nas instalações da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Arrentela, novembro de 2018. EMS-CDI – Fernanda Ferreira.

Nas sessões do grupo de trabalho participaram regularmente José Meias, Nelson Cruz, Rui Carvalho, tendo contado também com a presença esporádica de Vítor Lima, Agostinho Silva, Ana Teresa Pereira, Eduardo Palaio, Eduardo Travassos, Filomena Pereira, Leonel Fernandes, Irlando Tavares, José Luís Pedro, Rosa Santos e Alípio Pinto.

Grupo de trabalho No âmbito do projeto, ressaltamos também a importância do funcionamento de um grupo de trabalho informal3, constituído por elementos da comunidade local e funcionários do ecomuseu, que se reuniram mensalmente, entre 2017 e 2018, nas instalações do EMS. A finalidade da criação deste grupo consistiu em promover o debate e a contextualização de algumas das fotografias antigas do acervo documental do CDI, assegurando também a ligação com o exterior, uma vez que os seus membros foram interlocutores privilegiados junto da comunidade local na divulgação do projeto e na recolha de fotografias.

Sessões públicas de apresentação do projeto Para podermos envolver mais pessoas neste projeto, temos realizado também algumas sessões públicas de divulgação, nomeadamente em associações culturais e juntas de freguesia, como a L1B – Associação Cultural, a Associação Náutica do Seixal, e a União das Freguesias do Seixal, Arrentela e Aldeia de Paio Pires, em que damos a conhecer as coleções fotográficas do ecomuseu e as imagens já recolhidas ao longo do projeto, de acordo com o local onde decorre a apresentação, relacionadas com a toponímia, as coletividades, as festas populares, as tradições, os hábitos quotidianos ou o património edificado, sensibilizando-se sempre os assistentes a participarem no projeto com as suas imagens e memórias.

Nesse sentido, este grupo, apesar de possuir um pequeno núcleo fixo de elementos, funcionou de forma aberta e dinâmica, incluindo em cada sessão quase sempre outros convidados, trazidos por eles, assim como fotografias que recolhiam junto dos seus conhecidos.

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Na fase atual do projeto estas reuniões não se têm realizado, embora os membros do grupo continuem ligados ao projeto e contribuam regularmente

para o mesmo com a recolha de fotografias ou testemunhos.

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Sessão pública de apresentação do projeto Histórias & Memórias Fotográficas, no auditório da União das Freguesias do Seixal, Arrentela e Aldeia de Paio Pires, em Aldeia de Paio Pires, 2018. EMS-CDI – Fernanda Ferreira.

Inauguração da exposição Histórias & Memórias Fotográficas, Aldeia de Paio Pires, dezembro de 2020. EMS-CDI – Cristina Borges.

No fim de cada sessão, identificaram-se os potenciais interessados em emprestar ou ceder fotografias antigas, dando prosseguimento ao processo de recolha de imagens, reprodução e entrevistas posteriores.

Flickr e Oficinas de Memória

Neste âmbito, dinamizaram-se também tertúlias temáticas noutros espaços, como na Sociedade Filarmónica União Arrentelense ou na Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, ou mesmo no Núcleo do Moinho de Maré de Corroios do Ecomuseu Municipal do Seixal, onde falámos de namoros e casamentos de antigamente, de festas populares e religiosas, e de tempo de lazer, temas que foram inspirados nos conteúdos fotográficos e testemunhos recolhidos ao longo do projeto.

Além da exposição de rua, o projeto possui ainda uma dimensão virtual, sendo possível visualizar as fotografias recolhidas, organizadas em álbuns temáticos, na plataforma online Flickr, uma página na internet de partilha de imagens, em que a Câmara Municipal do Seixal já se encontrava representada.4 Complementarmente, o projeto incluiu também uma dimensão pedagógica, incluindo a dinamização de Oficinas de Memória, integradas no Programa de Iniciativas de Serviço Educativo do EMS, dedicadas a público escolar e sénior, em que são explorados alguns dos temas associados ao projeto.

Exposição de rua

Ao promover-se o envolvimento da comunidade local na recolha das memórias relacionadas com o concelho do Seixal, com os saberes e as tradições em vias de desaparecimento ou mesmo já extintas, este projeto contribui, não só para a construção de uma memória coletiva, mas reforça também o sentimento de identidade e de pertença, permitindo ainda, sobretudo no caso dos seniores que têm participado no projeto, valorizar a sua história e o seu percurso de vida, reabilitar as suas vivências pessoais e dignificá-los enquanto agentes participantes no processo de construção da história local, porque é dos contributos da memória individual que vive a memória social.

Um dos objetivos fundamentais deste projeto consistiu ainda na organização de uma exposição de rua, inaugurada em dezembro de 2020, em alguns dos lugares mais significativos das freguesias do concelho (no Seixal, Arrentela, Aldeia de Paio Pires, Amora, Fernão Ferro e Corroios), revelando muito sucintamente alguns dos temas revelados através das imagens que foram recolhidas e que fazem parte do espírito do lugar de onde são originárias. Nesse sentido, a exposição apresentou temas que são retomados neste catálogo, relacionados com a identidade dos lugares, abrangendo aspetos da vida quotidiana, como a infância, a vida nas coletividades, o desporto, as festas populares, os hábitos de lazer e convívio, os namoros e os casamentos, os modos de viver e sentir a terra que se habita, num universo temporal que se baliza entre os anos 40 e 80 do séc. XX. 10


Assim, será através das fotografias antigas e dos testemunhos orais recolhidos que viajaremos até ao passado, percorrendo vivências quotidianas, ligações afetivas aos lugares de pertença e de memória, descobrindo como as pessoas viviam na altura, como era ser criança, ir à escola, as brincadeiras e os castigos, os rituais dos primeiros namoros, o casamento e os seus costumes, os modos de vida, os momentos de lazer nas coletividades e fora delas, a importância da prática desportiva e das atividades lúdicas ao ar livre, os hábitos de lazer e convívio, entre algumas histórias caricatas que ficaram na recordação de quem as conta.

De sublinhar que o projeto Histórias & Memórias Fotográficas só conseguiu ainda abranger essencialmente a população dos núcleos urbanos antigos do Seixal, Aldeia de Paio Pires, Arrentela e Amora, devido sobretudo aos impactos da pandemia de covid-19, que nos dificultou o acesso à população mais idosa e levou ao cancelamento de diversas iniciativas. Mas porque consideramos que este é um trabalho de resgate da memória essencial, pretendemos dar continuidade ao mesmo e fazê-lo chegar ao restante território do município, e nomeadamente à freguesia de Fernão Ferro e Corroios, até porque as imagens valem sempre mil palavras, sendo por isso uma recolha sempre repleta de histórias e de memórias associadas.

Identidade, lazer e sociedade Como já foi referido, o projeto Histórias & Memórias Fotográficas contemplou a organização de uma exposição de rua, apresentada em espaços públicos das freguesias do município do Seixal, tendo como tema central e fio condutor a identidade, o lazer e a sociedade. Neste sentido, a exposição revelou os principais assuntos que foram surgindo na recolha de imagens que fizemos, tendo sido selecionada apenas uma pequena mostra de fotografias, que melhor representasse os aspetos retratados e o espírito do lugar de onde eram originárias. Porque a exposição, pela sua pequena dimensão e efemeridade, nunca poderia per se fazer jus a representar todos os contributos dos intervenientes nesta narrativa, pretendemos com este catálogo retomar algumas dessas memórias fotográficas, contextualizá-las, dar-lhes maior visibilidade e restituir a voz aos seus protagonistas.

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Consulte a página do projeto em http://www.cm-seixal.pt/historias-memorias-fotograficas/historias-memorias-fotograficas.

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Ser seixaleiro!


Ser seixaleiro!

desculpa, avó, mas é assim que dizem. Depois há os Coelha Branca, os Santolas e no prédio ao lado uma senhora Coça e em frente um que é o senhor Chico Bruxo que vive com umas irmãs coitadinhas se lhe chamam bruxas e ao lado, por cima da farmácia, um Vai-te Vai-te e do meu lado direito os Cambalachos (não sei se é nome se alcunha), o Salustra deve ser alcunha porque já o ouvi chamar de Jesuíno e deve haver mais.»8

O natural do Seixal que defende a sua identidade, mais do que seixalense, reclama-se seixaleiro, assumindo um sentimento de pertença a uma herança coletiva, de valores, histórias, tradições e convivência. Uma vida partilhada de afetos, de lutas, de medos e de coragem, de conflitos, de controlo social, de experiências, de trabalho e de quotidianos. É por isso que Eduardo Palaio graciosamente refere que para ser seixaleiro é preciso comportar-se como tal, «[ter] os mesmos defeitos e virtudes, plantados nas “ravessas” pelas tascas e pelos cafés»5, pertencer a uma espécie de tribo que só se poderia explicar e atribuir, segundo o autor, a um certo «perfume-vento», que aí corre.6

Concentrado entre as ruelas, pátios, becos e travessas emaranhadas do seu núcleo, com a igreja ao seu redor, o povoamento no Seixal desenvolveu-se nessa malha urbana apertada que permitia as relações de proximidade e convivência, tendo crescido em direção ao rio, com a construção de ruas cada vez mais largas e arejadas, terreno que foi sendo aterrado e conquistado ao rio.

Viver no Seixal entre as décadas de 40 a 80 do séc. XX, época a que reportam os testemunhos registados ao longo deste trabalho, era viver sempre acompanhado, com redes de vizinhança de entreajuda e solidariedade muito próximas, um modo de vida quase comunitário, vivendo-se porta com porta, tendo a rua como prolongamento da casa. Ser seixaleiro era também ter uma alcunha e pôr alcunhas, todos eram conhecidos, na maior parte das vezes, por um nome que não era o seu, sendo rebatizados conforme a profissão, a ascendência familiar, a sorte ou a ocasião.7

«Da barreira ao rio são cinquenta metros cruzados ao estendido por quatro ruas, a bem dizer três que a última é a marginal. E pelo meio os becos e as travessas: estas às vezes mais largas e então chamam-se Largo da Igreja, Largo da Praça, das Benzedeiras, isto para os mais velhos: mas no fundo não passam de “atravessas...”. As paredes, as ruas, as casas que se defrontam e se encostam. Vive-se em proximidade. Noutros sítios as pessoas é só trabalho e casa, não se falam só habitam.»9 E até as ruas principais, que não seriam mais de quatro, tinham um nome e eram designadas por um outro, existindo uma apropriação do espaço muito característica, uma cartografia que só um verdadeiro seixaleiro ainda consegue distinguir e afirmar com orgulho.

«As pessoas tinham de ter alcunhas, porque se não tivessem alcunhas, o Manuel, ninguém sabia quem era, porque havia muitos Manuéis. Então, como era a alcunha? Era o Manuel da Maria Espanhola, porque a Maria Espanhola era a mãe desse Manuel. Havia um Manuel Pêssego, porque o pai dizia: «O meu filho é um pêssego!» E havia um Manuel Vicente, porque o pai dele cantava fado e tinha a alcunha de Vicente.» (Aldemiro Benavente).

«No Seixal havia quatro ruas, a Rua Nova, a Rua do Meio, a Rua dos Valentes e a Rua do Júlio dos Ovos, não havia mais ruas. A Rua de Trás é a equivalente à Rua Cândido dos Reis, a do Meio é a Miguel Bombarda, a principal é a Paiva Coelho10, e a Júlio dos Ovos11 é a 1.º de Dezembro, a rua dos Valentes12 é a dos Carpinteiros de Machado, a da Marginal era ao lado da praia.» (Irlando Tavares)

«Aqui muita gente é conhecida por alcunhas, só falando nos que moram no nosso largo, os nossos vizinhos já ouvi chamarem pelos fadistas que moram por debaixo do Severa (não sei se é alcunha) e por cima dos Caga-Apitos, 5

PALAIO, Eduardo, «Trás da ponte – Faz sentido – parte 4», no blogue Atrás da Ponte, em linha, consultado em 19 de fevereiro de 2021, disponível em http://trasdaponte.

blogspot.com/2011/12/tras-da-ponte-faz-sentido-parte-4.html. 6

Idem.

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Também Ângelo Matos Piedade refere no seu livro de memórias um vasto leque de nomes e alcunhas que existiam no Seixal antigamente. Cf. PIEDADE, Ângelo Matos

(2006), Memórias Escolhidas 1932/1951, Reed, Lisboa, p. 135. 8

PALAIO, Eduardo, «Estórias com gente da Trás da Ponte. Largo da Igreja Anos 50 séc. XX», no blogue Atrás da Ponte, em linha, consultado em 19 de fevereiro de 2021,

disponível em http://trasdaponte.blogspot.com/2012/10/trasdaponte-estorias-com-gente-de.html . 9

PALAIO, Eduardo, «Trás da ponte – Faz sentido – parte 4», em blogue Atrás da Ponte, em linha, consultado em 19 de fevereiro de 2021, disponível

em http://trasdaponte.blogspot.com/2011/12/tras-da-ponte-faz-sentido-parte-4.html.

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Postal ilustrado da Rua Miguel Bombarda, no Seixal. Ed. Américo L. Tavares. [s.d]. EMS-CDI – Imagem cedida por Edgar Rendeiro.

Postal ilustrado da Rua do Infante D. Henrique, correspondente à atual rua Paiva Coelho, no Seixal. Ed. Alberto Malva. [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Edgar Rendeiro.

Além da designação original destas artérias, existia uma toponímia própria na gíria do seixaleiro, que só conseguimos revelar uma parte, havendo ainda quem se refira aos nomes antigos dados a este traçado urbano. Como é o caso de Trás da Ponte, aonde muitos seixaleiros dizem pertencer, como se fosse um bairro imaginário, perdido no tempo, até porque da ponte não restou história, nem vestígios. Diz quem é de Trás da Ponte, como Irlando Tavares ou Nelson Cruz, que esse nome já vem de tempos muito antigos, pois já assim era chamado pelo avô de Irlando Tavares. Segundo estes filhos da terra, as fronteiras do Trás da Ponte correspondem ao território do Seixal que ficava mais perto do rio, incluindo a zona da curva da sede da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, o Largo da Igreja, a antiga Taberna do Elói, na Rua Cândido dos Reis, estendendo-se até à Taberna do Sousa, junto à fábrica da Mundet.

trabalhadores da construção naval (sobretudo calafates, carpinteiros de machado, serradores e ferreiros), com uma maior ligação ao rio, aos estaleiros navais e à fábrica da Mundet. Muitos viviam em casas modestas, de um ou dois pisos, com más condições de salubridade, exibindo no exterior, em alguns casos, carapaus, chocos ou polvo a secar, redes de pesca, fogareiros de ferro, em que se assava o peixe ou as ostras, entre outros materiais e utensílios ligados à pesca. Por oposição, na Praça Luís de Camões e na Rua Paiva Coelho13, vivia uma outra elite, constituída por construtores navais, magistrados, médicos, empregados de escritório, entre outros, com um estatuto social mais elevado. Por esse motivo, é nessas artérias que se localizam «os edifícios de conceção e construção mais elaborada»14, mais altos e com melhor vista para o rio e para Lisboa, com decorativos revestimentos azulejares e ferros fundidos forjados. A Rua Paiva Coelho era uma via com bastante movimento, comércio e serviços, onde estava também implementada a escola primária masculina Conde de Ferreira, desembocando na Praça da República, onde se localizava o mercado, repleto de bancas e vendedores. A Praça Luís de Camões, por sua vez, era mais recatada, com função sobretudo residencial,

«Chama-se assim por se ter construído um cais na curva da Timbre, que era o único no Seixal, mas as correntes eram muito fortes e então tiraram o cais.» (Nelson Cruz) Apesar de possuir uma área geográfica bastante reduzida, o Seixal tinha ainda outras fronteiras que marcavam a identidade e a dinâmica social e económica dos seus habitantes, vivendo no núcleo urbano antigo uma classe social humilde de pescadores, marítimos, operários corticeiros e 10 11

Esta rua é designada também como rua Nova ou Direita.

«Júlio dos Ovos» era uma alcunha de Júlio da Silva Rodrigues, merceeiro na Rua 1.º de Dezembro, no n.º 19. Esta alcunha teria sido herdada do seu pai, o primeiro

proprietário da loja. 12

Segundo Ângelo Matos Piedade, a Rua dos Valentes ficou assim conhecida em homenagem aos que lutaram contra a ditadura dos Cabrais. «Foi nesta rua que no

dia 24 de maio de 1848, o povo do Seixal resistiu às forças policiais, após se ter amotinado e assaltado as repartições públicas e a igreja (…) Desde essa data ficou o arruamento conhecido pela Rua dos Valentes (…)» (PIEDADE, Ângelo Matos (2006), Memórias Escolhidas 1932/1951, Reed, Lisboa, p. 25).

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Jardim da Praça dos Mártires da Liberdade, no Seixal, vendo-se, ao centro, a sua palmeira, em 1936. EMS-CDI – Imagem cedida por Carlos Policarpo.

Ponta dos Corvos, para passear e conversar nos momentos de lazer, o lugar onde as crianças brincavam e onde se localizava a Casa dos Pescadores, espaço de encontro frequente dos marítimos para consertar as redes de pesca, ou para receber o pagamento da faina ao fim do mês. Era um vai e vem de pessoas, de produtos e mercadorias que chegavam e partiam nas embarcações que atracavam no cais, um local de grande movimento. A vida no Seixal era assim caracterizada por um ritmo próprio, pelo pulsar do ponteiro do relógio e dos dias da semana.

Postal ilustrado da Praça Luís de Camões, no Seixal, vendo-se em primeiro plano o chafariz e ao fundo o coreto da Sociedade Filarmónica União Seixalense. Início do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Carlos Policarpo.

com a sua escola primária para o sexo feminino, o marco fontanário e o coreto da Sociedade Filarmónica União Seixalense a embelezar o espaço. A delimitação geográfica destas ruas acentuava assim fronteiras sociais, rivalidades, classes e estatutos, existindo também uma coletividade em cada uma dessas extremidades, no Trás da Ponte, a Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense e na Paiva Coelho, a Sociedade Filarmónica União Seixalense. Os associados quer de uma, quer de outra, foram eternos rivais, cujas rixas e quezílias marcariam a sociabilidade e o quotidiano dos seixaleiros durante muitos anos.

«O Seixal como que estava sectorizado no aspeto da vivência, sectorizado nos horários que coincidiam com as missas, com o comércio, da praça (…) que coincidia com a escola dos rapazes ou das raparigas, com o trabalho dos pescadores, com a vinda ou entrada e saída dos barcos de passageiros ou mercadorias, portanto a vida era condicionada por isso, por esse horário de cada um, pelos respetivos locais.» (Carlos Ribeiro)

O jardim do Seixal, na Praça dos Mártires da Liberdade, espaço amplo virado para o rio e para o cais era o local neutro onde todos se podiam encontrar, quer fosse para apanhar o barco para Lisboa, ou a lancha para a praia do Alfeite, na 13

Esta rua teve também o nome de Rua Infante D. Henrique.

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SANTOS, João Paulo (2004), «O núcleo urbano antigo do Seixal», em Ecomuseu Informação, boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal, ISSN 0873-6197,

n.º 30 (janeiro, fevereiro e março de 2004), p. 12-15.

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Arrentela:

«Toda a gente era primo do primo»


Arrentela: «Toda a gente era primo do primo»

O núcleo urbano antigo de Arrentela, caracterizado por uma malha urbana de ruas estreitas e tortuosas, estende-se pela encosta, da Igreja Paroquial de Nossa Senhora de Consolação, no seu topo, até ao rio ou à maré, como também lhe chamam os locais, o que favorecia as redes de vizinhança, de uma enorme proximidade e convivência, coexistindo com relações familiares que se aí se fixaram e foram ficando ao longo de gerações, conferindo uma identidade aos lugares de Arrentela, muito associada às histórias familiares e às casas em que viviam. Talvez por isso, como nos diz José Luís Pedro, arrentelense, aí nascido em 1953: «No núcleo antigo toda a gente se conhecia, aquilo era tão pequeno, tão pequeno, que toda a gente se dava com toda a gente. Toda a gente era primo do primo (…) eram famílias inteiras.» Segundo este nosso interlocutor, um dos lugares emblemáticos nas memórias de Arrentela é o Largo do José Marques, situado junto à Calçada do Adro, onde se localizam as casas que têm pertencido à família de José Luís Pedro. De acordo com o seu testemunho, este legado patrimonial foi adquirido por José Marques Coxo e Florinda Maria de Jesus, seus tetravós, oriundos de Oliveira de Frades, após terem fixado residência em Arrentela. Este largo, conhecido na altura por Largo do Campo, era considerado propriedade privada, só passando por ele quem fosse convidado ou tivesse autorização da família. Tornou-se espaço público apenas quando foram construídas outras casas e o largo cresceu, tendo recebido o nome de Largo do José Marques, em memória do seu primeiro proprietário.

Retrato de duas crianças, Olga e Manuel Henrique, no Largo José Marques, Arrentela. Ao fundo vê-se a antiga oficina de Domingos Teixeira, avô materno de José Luís Pedro. Anos 60 do séc. XX? EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

«A macaca tinha sido despejada de Lisboa, onde inicialmente habitava, mais precisamente na Rua Andrade Corvo, numa das várias varandas da “casa de hóspedes” (…) pertença da Tia Libânia (irmã de Gertrudes Maria), por ter feito as suas necessidades para cima da cabeça do governador civil de Lisboa, que por acaso ia a passar naquela altura. [Após ter sido levada para o largo,] a macaca, que estava presa por uma corrente, podia correr de um lado para o outro do pátio, dava-se com toda a gente e era acarinhada por todos (…). Pela sua presença neste pátio, as pessoas começaram a chamar Largo da Macaca ao pátio. Mais tarde, as autoridades locais, por não acharem o nome correto, mudaram-no para o atual nome – Largo do José Marques. A macaca (…) costumava ir atrás das duas bandas filarmónicas existentes na altura em Arrentela, no entanto a rivalidade existente entre as sociedades filarmónicas veio a provocar a sua morte, por envenenamento.» (José Luís Pedro)15

Entre as histórias associadas a este largo contam-se as de uma macaca que aí terá vivido, não se conhecendo já quem com ela tenha convivido, por ser algo que se passou há mais de 100 anos, restando apenas uma memória distante, que foi transmitida oralmente ao longo dos anos aos residentes do largo.

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térreas, de pequenas e acatitadas divisões, sem casa de banho, onde se convivia de porta aberta, ou se cozinhava num fogareiro no exterior, havendo sempre tempo para um dedo de conversa entre os vizinhos e familiares, sobretudo à soleira da porta nos fins de tarde de estio ou aos domingos, quando havia tempo para um pouco de lazer. E em altura de Santos Populares não faltavam as fogueiras, nem a mocidade a saltá-las neste largo, ao som das orquestras da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, «Os Preferidos» e o «Feijão Verde». Neste largo também não faltavam as crianças, todos primos e primas, que brincavam, sob o olhar atento da avó Gertrudes Maria, como assim era tratada por todos, por ficar a tomar conta delas enquanto as mães iam trabalhar para a Companhia de Lanifícios de Arrentela, ou para a Mundet, no Seixal. Era assim um espaço de brincadeiras improvisadas, onde as crianças não paravam e tudo era motivo para se divertirem, nem que fosse subirem para a carroça de João Balezão, com a sua burra Perpétua, e tirarem um retrato.

Retrato de Joaquim Marques Teixeira, tio materno de José Luís Pedro, junto da sua bicicleta, no Largo José Marques, Arrentela. Anos 60? EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

No Largo do José Marques, situa-se ainda uma casa que evoca memórias do tempo em que era a oficina de funilaria de Domingos Teixeira (avô materno de José Luís Pedro), tendo sido convertida num espaço de recordações familiares, desde 2011, onde se guardaram alguns dos utensílios usados nessa arte. Domingos Teixeira, antigo trabalhador nas oficinas da CP do Barreiro, foi também funileiro, tal como o seu pai, tendo sido com este que aprendeu o ofício, numa oficina no Seixal. Era conhecido por todos como um homem habilidoso que se ajeitava a todo o tipo de serviços, sendo por isso muito requisitado pelos arrentelenses, e não só, quando necessitavam de reparações ou de utensílios feitos por ele, como tachos, baldes, alguidares, entre muitos outros. A sua oficina era um lugar onde a bigorna não tinha descanso, ecoando no largo o som do batimento metálico que dava forma aos utensílios por ele criados ou reparados. Neste pequeno largo do núcleo antigo de Arrentela, a rua era uma extensão das pequenas casas 15

José Luís Teixeira Pedro, com várias crianças numa carroça, puxada pela burra Perpétua. Ao lado, vê-se Maria José Marques, sua mãe, no Largo José Marques, Arrentela. Verão de 1957 ou 1958. EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

Também aí se disputavam imensas partidas de futebol, sobretudo quando o terreno era ainda em terra batida, e as portas das casas funcionavam como baliza. Foi nesse largo que José Henriques, mais conhecido por «Zé Gato» (filho de Manuel Marques, um dos cinco filhos de Gertrudes Maria e José Marques Júnior), começou a defender os

Descrição de José Luís Pedro, retirada de um texto de sua autoria, intitulado, «O Meu Caminho», sobre a história da casa de família, que é atualmente uma casa de

memórias familiares.

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Também o desaparecido espaço da antiga sede da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, localizado junto ao adro, era considerado nevrálgico para a atividade cultural e para o convívio da população, tendo sido demolido mais tarde e aí construído o edifício do centro dia da terceira idade da Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos de Arrentela.

primeiros remates na bola, talento que veio a aperfeiçoar enquanto guarda-redes, quer no Atlético Clube de Arrentela, quer no Seixal Futebol Clube e, mais tarde, no Sport Lisboa e Benfica, tendo chegado a representar também a seleção nacional de futebol.

Inauguração do coreto da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, em Arrentela, em 1899. EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

Retrato de José Luís Pedro, quando era criança, no jardim, junto ao coreto da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, na Avenida da República, Arrentela. Anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

No núcleo urbano antigo de Arrentela, outros espaços de sociabilidade caracterizaram a identidade dos arrentelenses, alguns ainda atuais, outros apenas uma memória. É o caso do antigo coreto da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, instalado em 1899 no topo norte do jardim, localizado junto à marginal, onde as crianças brincavam e os músicos da banda filarmónica tocavam durante as festas de Arrentela, com muita gente a assistir. Em maio de 1970, em dia de temporal, caiu-lhe uma árvore em cima, que lhe destruiu a cúpula, tendo acabado por ser demolido.

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Aldeia de Paio Pires: de agrícola a operária


Postal ilustrado, com vista aérea de Aldeia de Paio Pires, 1941. Reprodução Foto Alva. EMS-CDI – Imagem cedida por Edgar Rendeiro.

Postal ilustrado com vista aérea da Av. José António Rodrigues, em Aldeia de Paio Pires, 1946. Reprodução Foto Alva. EMS-CDI – Imagem cedida por Edgar Rendeiro.

«Acho que está na memória de todos os paiopirenses. Quando vinha um avião… lá vem o Mota.» (Adolfo Loureiro)

Aldeia de Paio Pires: de agrícola a operária Através destes postais com fotografias aéreas, datadas dos anos 40 do séc. XX, cedidos para empréstimo por Edgar Rendeiro, é possível recordar Aldeia de Paio Pires como era no passado, o que pouco tem já que ver com o tempo presente, pois evidencia-se uma organização espacial com uma origem essencialmente rural. Assim, é visível um pequeno núcleo urbano antigo, que cresce a partir da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Anunciação, sendo atravessado pela Rua Aristides da Costa e prolongado pela Avenida José António Rodrigues, com um casario térreo que acompanha o próprio percurso das quintas, localizadas paralelamente a estas ruas. No postal, com uma vista geral do aglomerado populacional, saltam à vista as diferenças com o traçado atual, vislumbrando-se a Igreja Paroquial, a antiga Quinta do Mirante, já desaparecida, e a anterior sede da Sociedade Musical 5 de Outubro, que foi entretanto demolida e construída noutro lugar, não sendo visível ainda o depósito elevado de água, que só viria a ser construído nos anos 50 do séc. XX. Dizem os mais antigos que estas imagens poderão ter sido captadas pelo Mota, piloto da Força Aérea que sobrevoava a aldeia para fotografar, espalhando algum receio pelas suas gentes quando o seu avião surgia no horizonte.

Rosa Sousa Gomes e a sua mãe Olívia Gomes (mãe e avó de Maria Emília Lopes), à porta de casa, na Rua D. Elvina Correia, Aldeia Paio Pires, 1969. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

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Assim, até finais dos anos 50 do séc. XX, Aldeia de Paio Pires tinha ainda uma paisagem predominantemente agrícola, com muitas quintas, pomares, vinha e olival, onde muitos cuidavam da terra e do que ela dava. Talvez por esse motivo, a identidade dos paiopirenses tenha estado sempre associada à ruralidade da sua pequena aldeia, que afastada do mundo moderno conservava as suas tradições e modos de viver muito próprios. Em virtude do seu isolamento geográfico em relação a outras freguesias do concelho do Seixal, e pela falta de recursos ou oportunidades para se deslocarem, esse sentimento de pertença e orgulho à terra era bastante incentivado, não faltando as iniciativas e atividades que reunissem a população.

Retrato de grupo de pessoas que trabalhavam na vindima da «Vinha do José dos Santos», Alto dos Bonecos, Aldeia de Paio Pires. Da esquerda para a direita: Manuel Marques, cunhado de Maria Isabel Gomes, em cima da carroça; de pé, o sobrinho Francisco Marques; e à frente a filha de Manuel Marques. Na carroça vê-se ainda António «Burrito». Atrás, vê-se José Filipe, o marido e o cunhado de Maria Isabel Gomes, Armindo Marques. À frente, estão José Manuel Santos, irmão, e o pai José Santos. Finais dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Isabel Gomes.

Essa referência a um tempo marcado pelo ciclo da agricultura ainda se encontra muito presente nas memórias dos paiopirenses mais antigos, sobretudo entre aqueles que faziam da fruta, do vinho e do azeite a sua principal fonte de sustento. Através das fotografias e testemunhos recolhidos junto de Maria Isabel Gomes e José Filipe Costa Gomes, seu marido, evocam-se as memórias da apanha da fruta e das vindimas na quinta da «Vinha do José dos Santos», nome que recebeu do pai de Maria Isabel Gomes, seu antigo proprietário, situada no Alto dos Bonecos. Segundo eles, o trabalho na quinta era de tal maneira intenso, sobretudo nestas épocas, que muitos fazendeiros recorriam a trabalhadores sazonais de fora do concelho para reforçar a mão de obra.

Retrato de grupo de pessoas que trabalhavam na vindima da «Vinha do José dos Santos», Alto dos Bonecos, Aldeia de Paio Pires. Atrás, da esquerda para a direita: Zé Jorge (da Tocha), senhora não identificada, Manuel Marques, cunhado de Isabel Gomes, e outras duas senhoras não identificadas. À frente, vê-se António «Burrito», do Seixal, as sobrinhas de Maria Isabel Gomes, Sião e a irmã mais pequena, José Filipe, o marido, e Estrela. Finais dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Isabel Gomes.

Vindima na «Vinha do José dos Santos», Alto dos Bonecos, Aldeia de Paio Pires. Da esquerda para a direita: a sobrinha mais pequena de Maria Isabel Gomes (irmã de Sião), José Manuel, Estrela, a sobrinha Sião, e José Filipe, o marido. Finais dos anos 50, do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Isabel Gomes. 23


Vindima na «Vinha do José dos Santos», Alto dos Bonecos, Aldeia de Paio Pires. Aspeto das uvas na eira, onde ficavam três dias a arejar. Vê-se da esquerda para a direita: Estrela, Maria Isabel Gomes, os seus sobrinhos e a sua prima Cristina. Finais dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Isabel Gomes.

Preparação de canastras de fruta para vender. Na imagem vê-se Cremilde, amiga de Maria Isabel Gomes, na «Vinha do José dos Santos», Alto dos Bonecos, Aldeia de Paio Pires. Finais dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Isabel Gomes.

Na freguesia de Aldeia de Paio Pires, esta ligação à terra estava presente no quotidiano da sua população, sendo o cheiro a fruta, que se sentia no ar, uma dessas memórias olfativas dos que viveram esses tempos, e que perduram até aos dias de hoje.

«[Vinham trabalhadores] de Catanhede, da Tocha, vinham para cá no tempo de cavar, depois faziam a cava e (…) a gente a semear (…) depois tínhamos de andar a apanhar o feijão… e tínhamos muita uva, era o melhor vinho do concelho, era o das quintas.» (Maria Isabel Gomes)

«Nesta época, uma das coisas mais bonitas de Paio Pires, que me lembro e tenho memórias, é subires a aldeia toda e toda a gente tinha quintas e vinham as canastras com as frutas, ali postas, preparadas, que vinha a camioneta de Lisboa para as levar para o mercado e era um cheirinho a pêssegos.» (Adolfo Loureiro)

As imagens recolhidas mostram-nos, assim, o labor que marcava a vida das pessoas que trabalhavam na produção da fruta e da vinha, que não se restringia ao consumo local, o que exigia um trabalho minucioso, sobretudo no que à confeção das canastras da fruta dizia respeito. Segundo Maria Isabel Gomes, tinha de se selecionar a fruta por tamanho e tipo, e empilhá-la em «castelo», de modo que a fruta ficasse bonita e apresentável para ser posteriormente vendida no mercado da Ribeira, em Lisboa.

Outro dos atributos muito importantes da identidade desta freguesia, e que nem sempre é muito mencionado, eram os seus reconhecidos «bons ares», fruto da sua localização geográfica na margem esquerda da ribeira de Coina, e dos extensos espaços verdes que abundavam no passado. Por ser uma freguesia rural e saudável, Aldeia de Paio Pires era muito procurada por gente de fora, que chegava a vir de Lisboa para passar uma temporada de férias, encontrando na aldeia um lugar para o descanso ou para a cura de algum tipo de doença de pulmões, que era muito frequente na época, como nos testemunhou o antigo médico cardiologista Carlos Ribeiro.

«As canastras tinham de ir muito bem arranjadas, os pêssegos, as peras, que é o que se vê aí. Tinha de ser tudo do mesmo tamanho. A gente tinha de saber fazer aquilo, depois vinha uma camioneta à noite buscar para ir para Lisboa.» (Maria Isabel Gomes)

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Cf. «A Aldeia de Paio Pires: ruralidade, instituição da paróquia e da freguesia, industrialização e mudança», em Ecomuseu Informação, boletim trimestral do Ecomuseu

Municipal do Seixal, ISSN 0873-6197, n.º 25 (outubro, novembro e dezembro de 2002), p. 11-14.

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Os forasteiros, identificados com a calma de Aldeia de Paio Pires, foram ganhando ligações com os locais, chegando em muitos casos a possuir aí uma segunda habitação ou a retornar anualmente. «Paio Pires foi durante muitos anos um centro de vilegiatura, em que vinham pessoas de Lisboa passar aqui o verão em Paio Pires. Acontece que, de facto, Paio Pires por razões especiais (…) tinha condições climáticas e até de trabalho agrícola diferentes de todo o concelho (…), com vento de leste. (…) nessa altura as pessoas preferiam no verão não ir à procura do fresco, preferiam um sítio que não fosse húmido e que fosse calmo. Portanto há um grupo de pessoas que vinham passar as férias a Paio Pires (…). Havia indivíduos tuberculosos, eu conheci alguns que vinham aqui para Paio Pires, por causa dos bons ares.» (Carlos Ribeiro)

Estaleiro de construção da Siderurgia Nacional, zona do alto-forno, Aldeia de Paio Pires. 20 de julho de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria José Albuquerque Soares. Aspeto da terraplanagem dos terrenos da Siderurgia Nacional, durante a sua construção. Fevereiro de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria José Albuquerque Soares.

De acordo com o seu marido, José Filipe Costa Gomes, a instalação da Siderurgia veio acelerar o fim da agricultura na região:

Com a construção da Siderurgia Nacional na freguesia, nos finais dos anos 50 do séc. XX, assistiu-se a uma notável transformação da paisagem de Aldeia de Paio Pires, desaparecendo muitas destas quintas centenárias, como é o caso da Quinta da Palmeira, propriedade da família Almeida Lima, que possuía uma significativa área de exploração agrícola e foi expropriada para a instalação deste complexo fabril16. Também a Quinta da Vinha do José dos Santos, propriedade de Maria Isabel Gomes, já mencionada anteriormente, acabaria por ser vendida na década de 60 do séc. XX, na sequência da morte do seu pai, por não conseguir acompanhar o ritmo intenso de trabalho que a quinta exigia e o elevado custo de vida. 17

«Destruiu-a por completo! De ano para ano, morriam centenas de árvores de fruto. Eu lembro-me que antes de a Siderurgia chegar era tudo arvoredo! Uma canastra de fruta custava 300 escudos e um trabalhador ganhava 30 escudos por dia. Depois da chegada da Siderurgia, uma canastra de fruta custava 30 escudos e um trabalhador ganhava 300 escudos (…), a fruta, que era um dos grandes pilares de sustento para os paiopirenses, tinha desvalorizado de tal maneira que quem tinha terrenos acabou por vendê-los. Foi o fim do comércio da fruta, do vinho e do azeite.»17

Testemunho de José Filipe Gomes, «Gentes e lugares da Freguesia de Aldeia de Paio Pires», em Boletim informativo [da] Junta de Freguesia de Aldeia de Paio Pires, III

Série, n.º 3, novembro de 2004, p.6.

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Com a implantação da Siderurgia Nacional chegaram novos habitantes, inicialmente holandeses, que consolidaram as obras de terraplanagem para a construção deste complexo industrial e, em seguida, outros migrantes, sobretudo durante a década de 60 do séc. XX, em virtude da demanda de mão de obra que esta indústria necessitava. A identidade de Aldeia de Paio Pires recebeu novas influências, de pessoas de vários cantos do país, sobretudo do Alentejo, e de outras localidades, passando a conviver com novas tradições, novos hábitos e sotaques. Aos poucos, a matriz rural da freguesia deu lugar a novas urbanizações e equipamentos e a identidade de Aldeia de Paio Pires passou a integrar as influências de uma população maioritariamente operária.

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Amora antiga


Amora antiga Amora, apesar de ser uma freguesia que durante muito tempo se caracterizou por ter uma paisagem essencialmente agrícola, em virtude das muitas quintas que aí se localizavam, o seu núcleo urbano antigo, localizado em Amora de Baixo, ao longo da margem do rio Judeu, cresceu sobretudo devido ao impacto das indústrias que aí se desenvolveram a partir dos finais do séc. XIX, destacando-se a Fábrica de Garrafas de Vidro de Amora, vulgarmente conhecida por Fábrica dos Vidros, em 1888; e nos inícios e meados do séc. XX, as fábricas corticeiras da Mundet & Cª. Lda e Produtos Corticeiros Portugueses, Lda.; a Sociedade Portuguesa de Explosivos, Lda. (SPEL) e a fábrica da Queimado & Pampolim.

Postal ilustrado com vista do Bairro Operário da Fábrica de Garrafas de Vidro de Amora, designado «Correnteza dos Alemães», localizado na Avenida Marginal Silva Gomes, Amora, lado sul. 1930. EMS-CDI.

Com o fecho da Fábrica de Vidros, em 1930, e a partida dos alemães para o seu país de origem, estas casas passaram a ser habitadas por famílias portuguesas, essencialmente por operários corticeiros, empregados na fábrica da Mundet & C.ª Lda., ou nos Produtos Corticeiros Portugueses Lda., que ocuparam os terrenos da antiga fábrica vidreira.

Postal ilustrado com vista do Bairro Operário da Fábrica de Garrafas de Vidro de Amora, a norte, designado «Correnteza dos Ferros», localizado na Avenida Marginal Silva Gomes, Amora. Foto datada entre 1910 a 1915. EMS-CDI – Imagem cedida por Amélio Cunha. Aspeto do Bairro Operário da «Correnteza dos Alemães», da Fábrica de Garrafas de Vidro de Amora, localizado na Avenida Marginal Silva Gomes, Amora. Anos 50-60 do séc. XX. Fotografia adquirida ao fotógrafo Messias (Amora). EMS-CDI.

Lugar representativo neste núcleo urbano é o antigo Bairro Operário da antiga Fábrica de Garrafas de Vidro, que se estende ao longo da Avenida Silva Gomes, tendo sido construído com o intuito de alojar os operários alemães que aí trabalhavam. O conjunto habitacional é constituído por duas correntezas, antigamente designadas por «Correnteza dos Ferros», a nordeste, e a «Correnteza dos Alemães», a sudoeste, construídas em momentos diferentes.

Foi numa dessas casas térreas, no n.º 116, na «Correnteza dos Alemães», que Celeste Tiago Rego nasceu, em 1938, tendo sido aí que viveu com os pais e onde mais tarde se casou e viveu os primeiros anos de casada. Estas casas, com cerca de quatro divisões18, possuíam uma sala, dois quartos e cozinha, um pequeno quintal nas traseiras, mas não possuíam casa de banho, o que exigia que as necessidades fossem feitas em tigelas, que eram 28


Aspeto do Bairro Operário da «Correnteza dos Ferros», da Fábrica de Garrafas de Vidro de Amora, localizado na Avenida Marginal Silva Gomes, Amora. Anos 60 do séc. XX. Fotografia adquirida ao fotógrafo Messias. EMS-CDI.

Postal ilustrado com a fachada da antiga sede da Sociedade Filarmónica Operária Amorense, na Avenida Marginal Silva Gomes, junto ao Bairro Operário da «Correnteza dos Ferros». 1930. EMS-CDI.

lançadas nas lamas da maré. Quando o saneamento básico foi construído, com rede de esgotos e água canalizada, nos anos 50 do séc. XX, as condições sanitárias destas casas começaram a melhorar.

Localizada junto à «Correnteza dos Ferros», na Avenida Silva Gomes localizou-se também a antiga sede da Sociedade Filarmónica Operária Amorense (SFOA), num edifício que só observando com rigor as fotografias antigas se consegue identificar a qual prédio hoje corresponde. No 1.º andar funcionava a sede da SFOA e no piso térreo terá existido a taberna e mercearia do João do Largo. Os bailes, segundo se lembram Celeste Tiago Rego e Florinda Reis, eram bastante concorridos, essencialmente os de Carnaval, o que se tornava perigoso, pois o tabuado revelava já bastante desgaste e poderia facilmente abater.

De acordo com Florinda Reis, cujos avós também viveram no antigo Bairro Operário, as gerações anteriores que viveram nessas casas passaram por outro tipo de constrangimentos, não possuindo na altura petróleo ou gás para cozinhar, cabendo às mulheres o abastecimento de lenha para se poder cozinhar e aquecer a casa. «A minha mãe (…) conta que a minha avó (…) cozinhava a lenha, não havia gás, nem petróleo (…) e a minha avó saía para os matos à procura de lenha (…) e depois vinha com aqueles feixes à cabeça (…).» (Florinda Reis)

«Era muito perigoso. Já abanava muito. Assisti lá uma vez a um Carnaval, era miúda, com a Ana e a Olívia, elas eram muito macaqueiras… e por baixo desta Sociedade havia uma taberna, que era do Sr. João do Largo e uma mercearia, aquilo com o balançar... balançar, era assim a Olívia e a Ana: “Se isto abater, eu quero cair dentro de uma caixa de bolachas de baunilha”.» (Florinda Reis)

Entre o casario deste Bairro Operário, na «Correnteza dos Alemães», salientavam-se em termos de arquitetura outros equipamentos importantes, como era o edifício de dois pisos, que funcionou como escola para os filhos dos mestres e operários alemães e residência do professor. Na «Correnteza dos Ferros», localizava-se também a «Casa do Leão», que se distinguia pela sua arquitetura e função, sendo o local onde os antigos alemães se reuniam para conviver e onde residia um dos seus sócios gerentes.

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Outro lugar igualmente evocativo de memórias em Amora é a Praça 5 de Outubro, onde se localiza o coreto, datado de 1907, que foi construído através de subscrição pública e oferecido à Sociedade Filarmónica Operária Amorense. Era junto ao coreto que a população de Amora de Baixo se reunia em peso para ouvir a banda tocar em dias de festa, ou simplesmente para passear.

Cf. LIMA, Manuel (2006), Amora: Memórias e Vivências d’Outrora, Lisboa, Plátano, p. 133.

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Largo António Manuel da Costa, antigo Largo Dr. Oliveira Salazar, em Amora. Na imagem identificou-se o antigo edifício da residência da família Gomes Duarte e do registo civil, vendo-se ainda o antigo depósito de água e a entrada para o pátio da Vila Branca. Fotografia adquirida ao fotógrafo Messias. Anos 60 do séc. XX. EMS-CDI.

Retrato de grupo sentado na muralha, junto ao rio, em Amora. Da esquerda para a direita veem-se: Silvéria Maria, Raul, não identificado, João Tavares, Irlanda Rodrigues Soares, Armando Soares, Idalina, Alberto Soares, Luzia Correia. 1948? EMS-CDI – Imagem cedida por Florinda Reis.

«[Havia] muito movimento desde as 6 e meia da manhã. Fechávamos à uma. Abríamos às 5 horas (…) estas pessoas para não levarem o pão para as fábricas nós ficávamos com os sacos, as pessoas saíam às 5 horas e às 5 horas abríamos a porta para recolherem o pão.» (Florinda Reis)

Em Amora de Baixo, destacamos ainda o Largo António Manuel da Costa, antigamente conhecido por Largo Dr. Oliveira Salazar. Foi nesse lugar que Florinda Reis nasceu, em 1942, e cresceu, numa casa encostada às traseiras da antiga sede da SFOA, tendo voltado a residir nela há alguns anos, por questões de saúde.

A ligação ao rio esteve também sempre presente na vida destas gentes, sobretudo na parte ribeirinha de Amora. As atividades económicas, como as dos estaleiros navais e as indústrias que aí se localizaram, foram as principais beneficiadas desta proximidade com o rio, cujos produtos e mercadorias eram escoados através dos cais, como o construído junto à antiga Fábrica de Garrafas de Vidro, nas proximidades da fábrica Mundet, que as fotografias antigas ainda mostram, com um intenso tráfego de fragatas e varinos. Era também junto ao rio que os vizinhos da frente ribeirinha se juntavam em alegre cavaqueira, nos seus tempos de lazer para conviverem, sobretudo quando estava bom tempo.

Foi também nesse largo que se localizou a padaria pertencente ao pai de Florinda Reis, José Rodrigues Alonso, conhecido por «Zé Galego» (um espanhol que escapou à Guerra Civil de Espanha nos anos 30 do séc. XX). Esta padaria, que chegou a ter um forno a lenha, foi o local onde Florinda Reis trabalhou até aos 66 anos, estando atualmente convertida num espaço de animação noturna. Segundo ela, este largo «era muito mais pequeno», mas tinha muito movimento, com «camionetas constantemente para baixo e para cima», e a padaria era um corrupio de gente sobretudo antes de as pessoas irem trabalhar para as fábricas corticeiras da Queimado & Pampolim e da Mundet e depois à saída, às 5 da tarde.

«De verão era um espetáculo, muito fresco, à noite vinha tudo para ao pé do rio (…) Tínhamos a muralha toda, não havia bancos.» (Florinda Reis)

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Mas o rio tinha ainda uma outra função para os amorenses, que recorriam a ele como fonte de alimento para equilibrar o parco orçamento familiar, pescando xarroco e tainha, apanhando lambujinha, berbigão, canivetes, lulas, ostras e outros. Em alturas difíceis, em que as fábricas corticeiras atravessavam momentos de maior crise, as famílias assalariadas das fábricas não tinham outra forma de sustento, se não a de se socorrerem do que o rio fornecia, chegando a haver quem fosse apanhar o peixe que caía das redes da pesca ao cerco, ou então tinham de recorrer ao fiado junto dos comerciantes locais. Como nos revelou Florinda Reis, «este rio matou a fome a muita gente nos finais dos anos 40.»

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Memórias de infância


Memórias de infância Evocar a infância é recuar até a um tempo muito distante na memória, revelando-se, através de uma fotografia antiga ou de uma conversa, afetos e emoções que trazem à recordação a criança que um dia se foi. Ao falarmos com alguns dos participantes neste projeto sobre a sua infância e ao observarmos as fotografias que nos emprestaram alusivas a esse período da sua vida, percebemos o modo entusiasmado como recordam os tempos antigos da escola primária, as caras dos antigos colegas, que nem sempre conseguem já associar aos nomes, os professores que marcaram esses anos, as peripécias e até os castigos infligidos. Recordam um tempo em que ser criança era um misto de liberdade e inocência, acrescida pela severidade e austeridade do método de ensino vigente durante o Estado Novo, que separava rapazes de raparigas, obrigando-os a frequentar turmas organizadas por género, ou escolas femininas e escolas masculinas, conforme podemos ver através dos retratos das turmas dessas épocas (anos 40-60 do séc. XX). Era o tempo das turmas numerosas, que podiam incluir elementos de diferentes anos de escolaridade, da bata branca, das meias pelo joelho e das meninas com laços na cabeça, em que o saber era todo memorizado, como uma cantilena bem sabida na ponta da língua, castigando-se impiamente os incautos, os distraídos e os mal-comportados, existindo o respeito pelo hino e a veneração do retrato do chefe de Estado na sala de aula.

Turma feminina, do ano letivo de 1937-1938, na Escola Primária de Aldeia de Paio Pires, onde se encontra a mãe de Maria Emília Lopes, Rosa Gomes, e a Prof.ª Elvina Correia. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Turma feminina da 4.ª classe, do ano letivo 1957-1958, na Escola Primária de Aldeia de Paio Pires, onde se encontra Maria Emília Lopes. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

«A professora tinha uma régua assim… grossa, grossa, com cinco furos, estás a ver onde era a escola da Arrentela, por cima do café? Punham-nos umas orelhas [de burro], com um livro na mão e punham-nos na varanda ao sol e ao frio.» (Agostinho Silva)

«No primeiro dia de escola, dia 7 de outubro de 1951, às 9 da manhã eu e (…) o Gil, somos da mesma idade, (…) tínhamos acabado de entrar na escola pela primeira vez na nossa vida. Às 10 horas já estávamos a levar seis reguadas cada um [risos]. Nós nem sabíamos que estávamos na escola, estávamos a brincar.» (António Lima Ferreira)

«A Escola de Paio Pires… por baixo era a escola dos rapazes, por cima as raparigas, (…) eu não era capaz de aprender a tabuada de maneira nenhuma, o resto aprendia tudo, mas a tabuada não dava com aquilo (…) Quem não sabia levava orelhas de burro, que eram feitas em papel e ela [a professora] ia pôr a gente na varanda.» (Maria José Albuquerque Soares)

«Todos nós temos as melhores memórias da nossa professora primária. Eu também. A D. Sara de Jesus Santinho Castelejo era uma mulher de pequena estatura mas grande capacidade de ensinamento e controlo do pessoal. Quando cheguei à chamada instrução primária, a D. Sara dava as suas aulas num primeiro andar por cima do café do José Barreto, onde mais tarde foi a sede do Arrentela. Quatro filas de carteiras, uma para cada classe, só rapazes, aulas de manhã e de tarde, um quadro, alguns mapas, mais uns complementos em madeira de figuras geométricas e

«Eu lembro-me, havia o quadro, nós íamos dizer os verbos assim, todos em pé, tudo seguido, e depois quem não soubesse, a gente já sabia, era tudo com a mão aberta e era tudo seguido.» (Maria Emília Lopes) 34


Retrato de uma turma masculina, junto à Escola Primária Conde de Ferreira, no Seixal. Anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Joaquim Martins.

Turma feminina, da 1.ª classe, na Escola Primária em Amora, atual Casa do Educador, onde figura Celeste Rego e a professora Mercês. Anos 40 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego.

Grupo de meninas, após a celebração da Comunhão Solene, em Aldeia de Paio Pires. 17 de junho de 1956. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Retrato de um grupo de crianças após a celebração da Primeira Comunhão, à porta da Igreja Paroquial de Arrentela. Anos 50 séc. XX? EMS-CDI – Imagem cedida por Agostinho Silva.

«Realmente… era assim… tínhamos de ir todas vestidas de noivas, tal e qual. (…) [As que] tinham asas eram as mais pequeninas.» (Maria Emília Lopes)

aquela mulher era capaz de pôr tudo a trabalhar, sendo que as tarefas eram naturalmente diferentes e por vezes punha uns a ensinar os outros, sempre controlando. Tudo isto com o Carmona pendurado na parede a assistir.» (Manuel Fernando Aleixo)19

Entre as memórias de infância figuram também as brincadeiras, as partidas, os momentos de cumplicidade em grupo, que ajudavam a preencher os momentos e a vida. Nos pátios da escola, durante o recreio, ou mesmo na rua, que era antigamente o palco de todas as brincadeiras, as crianças, sobretudo as meninas, entretinham-se com jogos, como o pesão ou a pingocha, a macaca, a corda ou o elástico, enquanto os meninos se juntavam para jogar ao berlinde, ao pião, à mata, ao salto ao eixo, à rolha, ao toca e foge, ou para disputar partidas de futebol, em campos improvisados nos adros das igrejas ou em terrenos descampados.

Além da escola, as crianças eram oficialmente obrigadas a frequentar a catequese na igreja, onde aprendiam a doutrina católica e se preparavam para participar em rituais como a Comunhão Solene e outras cerimónias, impondo um catolicismo praticante. Por esse motivo, não faltam nos álbuns de família fotografias desses dias de festa, com meninas vestidas de branco, usando véu ou tiaras, e, em alguns casos até, vestidos com asas nas costas, como os anjos; enquanto os meninos trajavam um fato a rigor nesse dia. 19

ALEIXO, Manuel Fernando, «A “minha” Arrentela: altos e baixos», no blogue Neto do Biobó: estórias de uma vida preenchida, em linha, consultado em 23 de fevereiro

de 2021, disponível em http://neto-do-biobo.blogspot.com/2013/02/a-minha-arrentela-altos-e-baixos.html.

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Nesses tempos, os brinquedos eram poucos ou inexistentes, por isso todos os pretextos serviam para uma bela brincadeira. «[A pingocha] são três quadrados e depois mandávamos uma pedra e tínhamos de vir ao pé coxinho para apanhar e voltarmos para trás. Saltar à corda, nunca tive muito jeito. Agora jogar à pingocha, jogava muito.» (Celeste Tiago Rego) Numa época em que poucos perigos espreitavam, as crianças sentiam-se livres enquanto brincavam, principalmente nas freguesias mais rurais, como em Aldeia de Paio Pires, onde o campo e a natureza permitiam que os rapazes pudessem andar horas sozinhos, envoltos em atividades lúdicas, às vezes até arriscadas. Envolviam-se em lutas uns com os outros, iam à chinchada (atividade que consistia em apanhar fruta em pomares alheios), lançavam a fisga a ninhos e a pinhas, e faziam asneiras pelo meio, numa camaradagem só interrompida pelo chamado das mães para o jantar.

Crianças brincando na estrada, junto à curva, onde se situa atualmente a sede da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, no Seixal. À esquerda vê-se uma criança chamada Célia e, ao centro, Laurinda Pereira. 1939. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

«O Seixal era uma terra de crianças, eu lembro-me aqui no adro da igreja jogar aqui à bola, e a guarda às vezes intervinha, quando havia missa éramos corridos daqui, depois vinha um senhor que era polícia, uma figura imponente, (…) o Zé Polícia, (…) nós fugíamos todos, dávamos a volta ao Seixal, às quintas, etc. e íamos aparecer do lado de Arrentela, estava ele à nossa espera [risos] (…). O nosso campo da bola era aqui em frente à igreja (…). O coreto era o meu playground, a malta miúda (…) estávamos ali a tentar subir, e outros a tentar que os outros subissem, mas também eram rapazes e raparigas muito fortes e rijas, discutiam e disputavam com a gente.» (Aldemiro Benavente)

«Nós brincávamos por todos os lados. Depois as mães, nós conhecíamos o grito de cada mãe a chamar-nos (…). Nessa altura, nós jogávamos à bola lá em cima no largo da Seixeira, de pé descalço, quem tivesse calçado descalçava-se e, com os sapatos, faziam-se balizas.». (António Lima Ferreira) «No Seixal, um dos lugares de brincadeira era no jardim, na Praça dos Mártires da Liberdade, antes mesmo de se construir o parque infantil, onde as crianças se reuniam para jogar às escondidas, correr, saltar e brincar, sobretudo as que viviam nas proximidades do mesmo, ou estudavam na Escola Primária Conde de Ferreira. A rapaziada andava por aqui porque os rapazes aqui brincavam no intervalo da escola [Escola Conde de Ferreira]. Era um sítio de juventude masculina que andava ali aos saltos e que assistia ao desembarque do peixe que vinha de Lisboa, no cais.» (Carlos Ribeiro)

Outro dos lugares afamados para as brincadeiras era junto ao Estaleiro do Policarpo, no Seixal, localizado em frente à fábrica da Mundet, onde se faziam grandes jogatanas de futebol entre os rapazes. Este, ao contrário dos outros lugares, por ser um espaço de trabalho pesado, era perigoso para as crianças, tal como se veio a revelar com a ocorrência de um acidente que vitimou um dos camaradas de brincadeira, em 1948, quando uma tábua que segurava um barco em construção lhe caiu em cima.

De acordo com Aldemiro Benavente, nascido em 1936, e criado no núcleo urbano antigo do Seixal, outro dos lugares eleitos para as brincadeiras infantis, sobretudo para quem vivia na zona do Trás da Ponte, no Seixal, era o Largo da Igreja, onde os rapazes, a «maltinha» como lhe chamam, se juntavam para uma partida de futebol ou saltavam para o coreto da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, que aí estava instalado.

«Aqui morreu um colega nosso (…) era irmão do Ariolindo, filho do César Tapu. Tínhamos o hábito de encher os saquinhos [de pano] que as nossas mães faziam com serradura e bater na cabeça da malta… [ele] começou a tirar serradura debaixo das cunhas e às duas por três o pau cai-lhe em cima e matou-o. Foi uma morte que nos custou muito a nós.» (Leopoldo Gonçalves Casanova) 36


O rio era outro ponto de diversão para os petizes, sobretudo das freguesias ribeirinhas, como o Seixal, Arrentela ou Amora, sendo aí que aprendiam a nadar. Durante o verão, era ver os jovens a nadar na maré e a saltar da muralha para a água. Conforme iam crescendo e conhecendo as correntes do rio, chegavam mesmo a atravessar em grupo do Seixal à Ponta dos Corvos, não temendo os perigos. «Algumas vezes íamos a nadar [para a Ponta dos Corvos], dependia muito da maré. Para ir para lá era umas horas antes e para vir para cá era na enchente (…) nós fazíamos isso a nadar, mas a conversar da praia até aqui.» (Adelino Tavares) «[Em Arrentela,] quando a maré estava cheia metia-se um ou dois na estrada a dizer para os outros: “Podes mandar-te, podes mergulhar!”. Nós vínhamos lá de trás e mandávamo-nos lá de cima, ainda me lembro muito disso…» (José Luís Pedro)

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O namoro de outros tempos


O namoro de outros tempos Os namoros começavam cedo, geralmente durante a juventude, iniciando-se em lugares que ambos frequentavam, quer fosse nas sociedades recreativas, na igreja, em estabelecimentos de ensino misto ou no trabalho. Entre as ocasiões propícias para esse interconhecimento dos mais jovens destacavam-se os bailes das coletividades, que permitiam que rapazes e raparigas pudessem ter um contacto mais próximo enquanto dançavam, embora sempre controlados e vigiados à distância, quer pela família da rapariga, que costumava estar sempre presente, quer por elementos das próprias sociedades, que garantiam que se cumprissem as regras de conduta e bons costumes desses lugares, chamando à direção todos os cavalheiros que as desrespeitassem. «As meninas disponíveis ficavam na primeira fila do quadrado que era o salão e as mães respetivas atrás, controlando. As músicas ocorriam em séries de três de modo a permitir as trocas, pois dançar duas séries seguidas com a mesma moça podia ser mau prenúncio para ela (ou bom, conforme as escolhas). Os pares eram marcados antecipadamente com um sinal prévio com a cabeça ou com os olhos a que a moça correspondia igualmente, sinal esse que todos viam, menos às vezes os interessados, tal o entusiasmo. Retrato retocado de fotógrafo, de Armindo Fernandes Raimundo e de Elisabete Pinto, na altura ainda namorados. EMS-CDI – Imagem cedida por Elisabete Pinto.

Consoante o grau de confiança no rapaz assim eram permitidas danças mais suaves onde os corpos se uniam, a menos que alguém abusasse e logo a mão esquerda da dama punha o ombro do seu par à distância regulamentar. As mães, conforme o seu interesse no rapaz, assim faziam olhos distraídos. (...) Mas havia os diretores de sala, normalmente um membro da organização (a quem nós chamávamos os fiscais de braguilhas), que recomendavam bom senso em qualquer ocasião.

O pedido de namoro surgia através de um bilhete ou de uma carta, sendo sempre dirigido pelo rapaz à rapariga, a qual podia responder-lhe de imediato ou deixava-o simplesmente à espera de resposta. Era geralmente algo que se fazia às escondidas, em segredo, como nos confirmou Alice Pinheiro, de Arrentela.

De quando em vez, havia as “damas ao bufete” assim denominado porque a música era interrompida e o rapaz tinha de pagar um chocolate ou um bolo, à dama respetiva, que era fornecido e cobrado em plena sala. Com tal operação concluída, lá prosseguia a festa.»20

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«Muito assim às escondidas, e eu muito envergonhada (…). Eu dei-lhe espera de dois, três dias e depois dei-lhe o sim. Depois, algum tempo depois, mas muito pouco... eu não podia falar com rapazes, eu não podia falar com eles, porque para o meu pai era logo namoro.» (Alice Pinheiro)

ALEIXO, Manuel Fernando, «O Baile», no blogue Neto do Biobó: estórias de uma vida preenchida, em linha, consultado em 23 de fevereiro de 2021, disponível em

http://neto-do-biobo.blogspot.com/2018/10/o-baile.html.

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Com o namoro a ficar sério e firmado, a rapariga começava a preparar o enxoval, que ia sendo arranjado e guardado; aprender as lides domésticas e a cozinhar com as mães em casa e frequentar cursos de costura que lhes dessem competências no corte e costura para exercer como profissão ou aplicar no seu próprio lar. Logo que havia vontade e recursos económicos que o permitissem, começava a planear-se o grande dia. Até lá, eram raros os momentos em que o casal podia estar a sós, havendo sempre alguém entre os dois, normalmente a mãe, que impedia o contacto físico entre eles. Ainda assim, muitas histórias comprovam que os namorados arranjavam formas alternativas de escapar a este controlo apertado a que estavam sujeitos.

O passo seguinte passava pelo rapaz ir pedir o consentimento para namorar ao pai da namorada, devendo o mesmo respeitar as regras que lhe fossem estipuladas, podendo ficar à janela, à porta, e numa fase mais avançada no interior da casa, sempre sob o olhar vigilante do pai ou da mãe. O primeiro beijo ocorria sempre de fugida, podendo ocorrer entre uma distração da família ali presente, como nos revelou Elisabete Pinho. «Namorámos 5 anos, foi muito complicado, a minha mãe não me dava largas nenhumas, ela fazia crochet e nós ali… e eu tinha um medo dela que me pelava, tinha aquele respeito (…) Podia estar a chover a potes, que ela não se levantava para ir apanhar a roupa. (…) Mas logo no primeiro dia que ele foi lá a casa ele deu-me um beijinho aqui [na ponta do nariz] eu já não levantei mais a cabeça com a vergonha e fiquei com uma cara, como sei lá o quê. Ainda me lembro do beijo roubado.» (Elisabete Pinto) Durante o período do namoro, que podia ser mais curto ou mais longo, trocavam-se também cartas e bilhetes carinhosos, retratos e até mechas de cabelo, que se guardavam religiosamente. Outro local que era muito frequentado para namorar era o cinema, aproveitando o escuro do cinema, para uma mão dada à socapa ou um beijo fortuito. Segundo Maria Emília Lopes, de Aldeia de Paio Pires, a sala do Cinema São Vicente era um dos sítios considerados bons para namorar pelos jovens da localidade, tendo particular procura a fila J, a chamada a fila dos namorados. «A fila J era a dos namorados. Esta fila J ficava junto à parede da projeção, tinha para aí uns 8 lugares, equivalia a 4 casais, (…) íamos todos para a fila J. O Luís era o responsável pela bilheteira, às vezes nem estava lá, pronto, e então telefonava-se, e dizia-se: «Ó Luís, marca a fila J toda», mas ele já sabia que era aquela. Então íamos para o cinema, os casais, e íamos para ali, não é que fizéssemos nada de mal, mas estávamos mais resguardados, era muito engraçado, íamos todos para ali, estávamos todos seguidos». (Maria Emília Lopes)

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O casamento:

um dia que nunca mais se esquece...


O casamento, um dia que nunca mais se esquece...

Entre as memórias recolhidas no âmbito deste projeto não faltam alusões ao dia do casamento, considerado um dos dias mais importantes das suas vidas. A organização e as despesas do evento ficavam a cargo geralmente da família dos noivos, adaptando-se a cerimónia conforme os bolsos de cada um. No caso de Celeste Tiago Rego e de Manuel Rego, foi um pouco diferente porque decidiram que seriam eles a preparar todos os detalhes do casório, tendo sido inclusive o noivo que foi buscar os cravos cor-de-rosa à Praça da Ribeira, em Lisboa, para decorar a igreja de Amora. «Aquilo foi tudo organizado só por mim e pelo meu marido. A minha mãe, coitadita, não tinha jeito para estas coisas. O almoço foi uma senhora amiga que fez, foi (…) onde é hoje a Joaninhas [infantário]. Aquilo era o “restaurante” (…) da Mundet. Tinha um fogão enorme (…), depois tinha umas mesas e tudo se reunia ali para almoçar, quem trabalhava na Mundet. Depois talvez fosse o meu pai ou meu marido que pediram autorização para o casamento ser lá.» (Celeste Tiago Rego)

Retrato do casamento de Celeste Rego e Joaquim Rego, na Igreja de Nossa Senhora do Monte Sião, Amora. Na imagem veem-se os noivos a serem casados pelo padre José Paula. À esquerda do noivo, vê-se a madrinha do noivo, Augusta. Ao lado da noiva, estão os seus padrinhos, Judite e João Marques. 20 de setembro de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego.

Os casamentos eram, na maioria, oficializados em cerimónias religiosas. No entanto, no Seixal, segundo Maria Raquel Tavares Serra, havia muitos casamentos que não iam à igreja, ficando apenas pelo registo, por haver quem não fosse crente ou tivesse ideologias políticas divergentes. No seu caso, o casamento foi na igreja, mas apenas para fazer a vontade à sogra, que fazia muito gosto na cerimónia religiosa, já que ela não era muito dada aos preceitos católicos. Celeste Rego casou aos 19 anos com Manuel Rego, no dia 20 de setembro de 1959, na Igreja de Nossa Senhora do Monte Sião de Amora; Maria Raquel Serra casou aos 24 anos com Fernando Serra no dia 4 de outubro de 1951, na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição do Seixal. Celeste casou de vestido de cerimónia, de renda e tule, comprou o tecido em Lisboa e mandou fazer o figurino na costureira, e de véu.

Retrato do casamento de Maria Raquel Tavares Serra e Fernando Serra, no Seixal. Na foto veem-se os noivos junto ao carro em que seguiram após a cerimónia religiosa. 4 de outubro de 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra. 44


Retrato de Maria Raquel Tavares e Fernando Serra, no dia do seu casamento no Seixal, 4 de outubro de 1951. EMS-CDI - Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra

Retrato dos noivos Celeste Tiago Rego e Joaquim Rego, na Igreja Nossa Senhora do Monte Sião de Amora, já casados. 20 de setembro de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego.

«O meu casamento levou dois carros, também era ao pé da igreja, até a gente podia ir a pé e foi muita gente a pé. (…) Para já, não havia dinheiro para carros (…), esses carros eram alugados. A gente para ir a um casamento, juntavam-se 3 ou 4 pessoas, alugava-se um carro, quando era assim casamentos mais longe, agora este era ao pé da igreja, não valia a pena alugar carros (…) veio tudo a pé.» (Maria Raquel Tavares Serra)

Os sapatos brancos a condizer foram o mais difícil de encontrar, já que na altura calçava o número 33 e nas sapatarias não havia número que lhe servisse. Como adereço, não faltaram as luvas brancas. Manuel Rego ia elegante, com o seu fato mandado fazer no alfaiate em Lisboa. Maria Raquel no seu casamento optou por um vestido simples, branco, com chapéu, sem véu, sapatos a condizer no mesmo tom. Fernando Serra, o seu noivo, apresentou-se igualmente simples, mas elegante no seu fato negro.

Conforme as posses assim se realizava o tradicional copo de água, também chamada de boda ou banquete. Entre as famílias mais carenciadas, o mesmo realizava-se geralmente em casa, o que obrigava a que todos os convidados, na maioria familiares, se apertassem bastante para caberem nas pequenas divisões da casa, tendo de se ficar de pé, à falta de assentos para todos.

Apesar do curto trajeto entre a Igreja Paroquial do Seixal e a casa dos pais de Maria Raquel, onde o copo de água ia ser feito, os noivos alugaram na mesma um carro, que deu uma volta maior pelo Seixal, para não ficar demasiado próximo, e assim satisfazer os requisitos convencionais dos casamentos da época. 45


Retrato do copo de água do casamento de Celeste Tiago Rego e Joaquim Rego, nos antigos refeitórios da fábrica Mundet, em Amora. Na imagem veem-se os noivos a partir o bolo. À esquerda da noiva, estão os padrinhos João Marques e Judite e, à direita do noivo, Augusta e o marido, padrinhos do noivo. Na fotografia reconhece-se, em frente, Rosalina Tiago, mãe de Celeste Rego, e à direita Manuel Rego, o pai do noivo, e a sua esposa Jacinta. 20 de setembro de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego.

Os noivos, Celeste Rego e Joaquim Rego, e os restantes convidados a chegarem ao local do copo de água, nos antigos refeitórios da fábrica Mundet, em Amora. 20 de setembro de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego.

Retrato de Celeste Tiago Rego e Joaquim Rego, a assinarem os papéis do casamento, na Igreja Nossa Senhora do Monte Sião, em Amora. 20 de setembro de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego

Nos casamentos maiores optava-se muitas vezes por se fazer o banquete nas coletividades ou num recinto em que todos os convidados coubessem. Os pormenores da organização do copo de água ficavam normalmente a cargo da família da noiva, tendo de se pedir emprestado muitas vezes copos, pratos e talheres que chegassem para todos, como nos revelou Rosalina Homem, de Aldeia de Paio Pires, que fez a sua festa na Sociedade Musical 5 de Outubro. No banquete também havia quem aparecesse sem ser convidado.

Recorte de jornal com o anúncio do casamento de Carlos Ribeiro e Maria Helena de Almeida Lima.

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Retrato dos noivos Ludovina Silva e Luisério Silva, acompanhados de algumas meninas, em Aldeia de Paio Pires. A primeira ao pé do noivo é Carmencita e a segunda é a Celeste. Por detrás da Celeste encontra-se a Cecília e a Chica, mãe de Celeste. 1956? EMS-CDI – Imagem cedida por Rosalina Homem.

Retrato de casamento dos pais de Aldemiro Benavente, Maria Gertrudes e José Benavente, no Seixal. Anos 30 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Adelino Tavares.

Criou-se o mito: “Casamento onde o Quirino não fosse, não era abençoado.”Passou a vida inteira a visitar as igrejas do concelho, onde os casamentos ocorriam e sempre com lugar marcado para as bodas respetivas.»21

Não raras vezes ouvimos falar de uma personagem de nome Quirino, figura que marcava presença na maior parte dos casamentos celebrados no Seixal e arredores, deslocando-se até à conservatória para saber antecipadamente onde existia o casório anunciado.

Depois do copo de água podia haver bailarico e música, ou outro programa diferente, consoante os gostos e os recursos dos noivos. No caso de Celeste Rego, os noivos decidiram ir ao cinema São Jorge em Lisboa, enquanto Maria Raquel e Fernando Serra aproveitaram a tarde para passear em Sesimbra e no dia a seguir foram ao teatro de revista, com algumas pessoas de família.

«Tinha um evidente atraso mental, mas andava minimamente composto, envergando sempre uma enorme boina muito puída pelo tempo. Como não dispunha de família que o orientasse, fazia-o ele próprio. Assim fazia-se de convidado aos casamentos e batizados que ocorriam na igreja do Seixal e rapidamente alargou a sua campanha a todo o concelho. 21

ALEIXO, Manuel Fernando, «A “minha” Arrentela: altos e baixos», no blogue Neto do Biobó: estórias de uma vida preenchida, em linha, consultado em 23 de fevereiro

de 2021, disponível em http://neto-do-biobo.blogspot.com/2013/02/a-minha-arrentela-altos-e-baixos.html.

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Retrato de casamento de Vítor Tavares e Manuela Narciso à porta da Igreja Paroquial do Seixal, com família e amigos. 24 de junho de 1961. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra.

«Fomos a Sesimbra no carro do Cardoso, um carro que levava muita gente, 6 pessoas. [Foram] os meus padrinhos e os padrinhos dele e éramos nós os dois. A gente comeu um bolo, bebeu também alguma coisa e andámos ali a passear até ser horas de jantar. Os outros [convidados ] (…) foi tudo de camioneta para Cacilhas, foram passear para Cacilhas.» (Maria Raquel Serra) Entre as classes mais abastadas, era frequente que o casamento fosse anunciado nos jornais locais, geralmente depois de o mesmo ter ocorrido, como sucedia com frequência no periódico Tribuna do Povo, com fotografia da boda e agradecimentos aos convidados.

Retrato de casamento da Luísa Amália, madrinha de José Luís Pedro, em Arrentela, Em primeiro plano, veem-se duas crianças vestidas de branco, José Luís Pedro e Raquel, com as respetivas mães por trás, Maria José Marques Teixeira e Virgínia Maria, no topo da Calçada do Adro, vendo-se ao fundo a antiga sede da Sociedade Filarmónica União Arrentelense. 2 de junho de 1957. EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

Foi o que sucedeu com o casamento do médico Carlos Ribeiro e da sua esposa, Maria Helena de Almeida Lima, que apesar de terem ido casar ao Santuário de Fátima, a 4 de janeiro de 1960, para poderem ter alguma privacidade e se afastarem do mediatismo que o evento teria no Seixal, acabaram por ver o seu casamento anunciado, com a fotografia dos noivos, na capa do jornal Tribuna do Povo de 17 de janeiro de 1960.

«Chega-se a Lisboa, choveu tanto, tanto, tanto (…). O salto do sapato ficou preso nos carris do elétrico (…) e lá fomos para o cinema, a pé, tudo a pé. (…) Estávamos muito cansados, ele tinha-se levantado às seis da manhã para ir buscar o ramo. Passado um bocado, o meu marido a dormir. (…) Chegámos era uma e tal da manhã (…) não havia dinheiro para ficar em Lisboa, tivemos de regressar, nem para ir para uma pensão (…). Quando chegámos tínhamos a família toda em casa e pronto…». (Celeste Tiago Rego)

No âmbito da recolha de fotografias antigas alusivas a esta data tão importante, conseguimos reunir recordações de outros casamentos, como os de Maria Gertrudes e José Benavente, Ludovina Silva e Luisério Silva, Vítor Tavares e Manuela Narciso, além de muitas outras imagens que aqui não conseguimos mostrar.

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Tempo de lazer


As coletividades e a música Numa altura em que o trabalho preenchia a vida, praticamente sete dias por semana, sobrava pouco tempo para o lazer. Esses escassos momentos ocorriam geralmente no fim de um dia de labor ou ao domingo, sendo vividos geralmente num coletivo, entre familiares ou amigos, em ambiente de grande camaradagem. Nesses instantes, as pessoas juntavam-se normalmente nas coletividades para conviverem e se divertirem, sendo estas as principais responsáveis pelo engajamento coletivo e pela promoção e fruição de valores culturais. Como referiu Edgar Rendeiro, natural de Aldeia de Paio Pires:

Banda da Sociedade Filarmónica Operária Amorense, onde figuram 38 músicos e o maestro, junto ao coreto de Amora, 1940. EMS-CDI – Imagem cedida por Amélio Cunha.

«As pessoas tinham de fazer a sua própria festa e tinham de se educar a si próprias no teatro, na música no desporto, e eram as próprias pessoas que se divertiam com as outras através dos recursos locais». Fosse através da música, do teatro, ou do desporto, as gentes locais usufruíam assim do seu tempo de lazer de forma animada, ajudando a construir também elas a história social destas coletividades, das quais destacamos a Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense (SFDTS); a Sociedade Filarmónica União Seixalense (SFUS); a Sociedade Filarmónica Operária Amorense (SFOA); a Sociedade Filarmónica União Arrentelense (SFUA) e a Sociedade Musical 5 de Outubro (SM5O), entre muitas outras.

Banda Filarmónica da Sociedade Filarmónica Operária Amorense. EMS-CDI – Imagem cedida pela Sociedade Filarmónica Operária Amorense.

As bandas filarmónicas, as orquestras e os grupos musicais que se formaram nestas sociedades contribuíram bastante para a aprendizagem musical dos músicos que nelas tocavam, funcionando como escolas de música. Por outro lado, estes agrupamentos musicais permitiram também formar um gosto musical dos que assistiam aos seus concertos, nos salões ou nos coretos, que de outro modo não teriam acesso, existindo uma tradição musical associada a estas sociedades, transmitida de geração em geração, havendo muitas famílias com o seu nome associado ao destas bandas. É o caso dos irmãos Tavares (João Tavares, Adelino Tavares e Arnaldo Tavares), no Seixal, cuja família esteve ligada à Banda Filarmónica da Timbre Seixalense e à Orquestra Jazz «Os Aranhas», criada em 1934, na mesma coletividade. Em Aldeia de Paio Pires, também a família de Jerónimo Costa teve o seu nome ligado ao da Sociedade Musical 5 de Outubro, figura de destaque nos primórdios da banda da «Mimosa», como também foi conhecida.

Músicos da banda da SFDTS numa deslocação a Arranhó, concelho de Arruda dos Vinhos. Da esquerda para a direita: Adelino Tavares, João Tavares, António Lopes e Arnaldo Tavares. 8 de setembro de 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares. 50


Orquestra Jazz «Os Aranhas», da SFDTS, fundada a 10 de agosto de 1934. Era constituída por sete operários corticeiros, José Calqueiro, Adelino Tavares, João Tavares, José Mendes, Rafael Gonçalves e José de Oliveira Gomes. Anos 50, do século XX? EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

Orquestra «Os Preferidos», da SFUA. Da esquerda para a direita: Joaquim Crispim de Oliveira (trompete), José Cardoso de Almeida (saxofone alto), Porfírio Carlos (contrabaixo), José António Aleixo (trombone), Henrique Almeida (bateria). Foi fundada a 1 de novembro de 1939 e extinta em maio de 1955. Anos 40-50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Agostinho Silva.

Postal ilustrado da Banda da SF5O, Aldeia de Paio Pires. 1953. Reprodução Foto Alva. EMS-CDI – Imagem cedida por Edgar Rendeiro.

Além de «Os Aranhas» no Seixal, houve outros grupos musicais que se destacaram nas coletividades do concelho, como os «Boémios» e os «Maçacotos», na Sociedade Musical 5 de Outubro, «os Marrafinhas», os «Preferidos», ou o Conjunto Musical «Luzes da Ribalta» na Sociedade Filarmónica União Arrentelense, entre outros com muito sucesso. Mas se as bandas filarmónicas eram fundamentais em cada freguesia, sendo um dos porta-estandartes da sua identidade, eram também, por vezes, motivos para aguçar as rivalidades entre as coletividades, como sucedia entre a Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense e a da Sociedade Filarmónica União Seixalense, da mesma localidade.

Conjunto Musical «Luzes de Ribalta», da SFUA. Antero Aleixo (guitarra), António Peneira (saxofone tenor), Peneira (vocalista), Alberto Matos (bateria), Paulo David (trompete), Pedro Lourenço (rabecão). 1960. EMS-CDI – Imagem cedida por Agostinho Silva.

Para acautelar os confrontos entre os músicos e a população, estas bandas evitavam os lugares em que se pudessem encontrar nas atuações. Por esse motivo, o dia 1 de maio de 1974 ficou na memória dos seixalenses que presenciaram um momento histórico, quando estas duas bandas se encontraram casualmente nas ruas do Seixal e entre os festejos da liberdade fizeram as pazes, cumprimentando-se, num gesto simbólico.

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Celebração do 1.º de Maio, no Estádio do Bravo, no Seixal. Esta fotografia assinala o dia em que as bandas da SFDTS e da SFUS vieram para a rua tocar e fizeram as pazes. Ao centro, encontra-se João Tavares. 1 de maio de 1974. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

Intervenientes na peça de teatro, da SM5O, «Os Marinheiros», em Aldeia de Paio Pires. Da esquerda para a direita: a segunda, Albertina; a terceira, Albertina Galileu; a quinta, Adelaide; a nona, Emília do Gastão; a décima, Rosa Gomes. 1940? EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Um ano depois, na mesma data, para celebrar as boas relações entre as duas sociedades, José Félix (da SFUS) e Emílio Rebelo (da SFDTS) decidiram em segredo que deviam fazer uma festa que juntasse as duas bandas. para celebrarem com a população, em conjunto com a Banda da Marinha, que apadrinhou o momento das pazes oficiais. Nesse dia, entre abraços e lágrimas, pôs-se cobro a anos de quezílias e picardias. 22

O teatro amador Peça de teatro, apresentada após a opereta «Entre Duas Avé-Marias», em que participou Florinda Reis, no dia da inauguração da nova sede da Sociedade Filarmónica Operária Amorense, em Amora. Da esquerda para a direita: Andrelinda Barros, Natália, Florinda Reis, Natália Santana, Ermelinda e José Carlos. Julho de 1958. EMS-CDI – Imagem cedida por Florinda Reis.

O teatro amador era outra atividade muito popular nestas coletividades. Destacamos aqui, entre outras, o contributo da Sociedade Musical 5 de Outubro, de Aldeia de Paio Pires, sobretudo nos anos 40 do séc. XX, em que sob a encenação de José Costa se produziram diversas peças como «As Carvoeiras» e «Os Marinheiros». Nestas peças participaram os pais de Maria Emília Lopes, natural de Aldeia de Paio Pires, Rosa Gomes e Carlos Costa, que segundo ela terão começado a namorar na altura em que frequentavam o teatro amador da sociedade.

Intervenientes na peça de teatro, da SM5O, «As Carvoeiras», em Aldeia de Paio Pires. Rosa Gomes, mãe de Maria Emília Lopes, é a terceira a contar da esquerda. 1941? EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes. 22

Cf. FITAS, Fernando (2001), Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória: as Filarmónicas, Seixal, Câmara Municipal do Seixal, p. 39.

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Peça de teatro «O Fratricida», no palco da Sociedade Filarmónica União Seixalense, no Seixal. Da esquerda para a direita: Manuel Canelas, Adelino Cunha, Suzete Cunha, Elviro Gama. Anos 40 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por de Maria do Céu Cunha.

Intervenientes em peça de teatro, da Sociedade Musical 5 de Outubro, em Aldeia de Paio Pires, com os pais de Maria Emília Lopes, Carlos Lopes Costa e Rosa Gomes. Anos 40 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Tal foi o que aconteceu a Florinda Reis, que se iniciou nestas lides, ainda muito jovem, na peça de teatro que se seguiu à opereta «Entre Duas Avé-Marias», na inauguração da nova sede da SFOA. «Foi um teatro que nós fizemos, fizeram uma opereta, “Entre Duas Avé-Marias”, depois quando acabava a opereta havia uma espécie de teatro, mas de revista, onde havia grandes homens, entrava o Guié, a Natália, (…) Andrelinda com o “Joaquim Jota” (…) era tudo acompanhado com músicos, e isto era para fechar o espetáculo.» (Florinda Reis) No Seixal, a tradição de teatro amador esteve presente, de uma maneira geral, em todas as coletividades, destacando-se na Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, os «Impagáveis da Timbre».

Revista «Nua e Crua», no palco da SFOA, em Amora, em que participou «Joaquim Jota». 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Marque Túlio.

As fotografias que foram recolhidas, porém, apresentam apenas exemplos de peças apresentadas na Sociedade Filarmónica União Seixalense. Sabe-se que o primeiro grupo teatral nesta coletividade remonta a 1925, com o impulso de José Gomes Pólvora e Alfredo Lucas, tendo sido dissolvido e retomado em 1947, com a criação de um novo grupo, onde se destacaram nomes como os de Adelino Cunha, Manuel Canelas, António Cunha, e mais tarde Wilson Quintino, entre outros.23

Também na Sociedade Filarmónica Operária Amorense se fez muito teatro, tendo existido um grupo dramático, denominado «Os Inquietos», cujo principal impulsionador foi António Pedroso. Este incluía no seu repertório algumas revistas, operetas, comédias e dramas. Entre os participantes no grupo de teatro amador, sublinhamos a prestação de Joaquim Pinto Soares, mais conhecido localmente por «Joaquim Jota», um fervoroso ativista do movimento associativo local. Perante a carência de outro tipo de diversões nesta localidade, o teatro amador constituiu um importante meio de entretenimento da população e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para os mais jovens, que integravam o grupo dramático, ocuparem os seus tempos livres.

23

Uma das peças aí representadas, de que temos imagem foi a «O Fratricida», com Manuel Canelas, Adelino Cunha, Suzete Cunha e Elviro Gama, representada provavelmente nos anos 40, nos palcos da antiga sede da SFUS.

Idem, p.31.

53


Baile da Noite Sevilhana, na SFDTS, no Seixal. Depois do baile existia normalmente um concurso para eleger a vencedora da Noite Sevilhana. Em pé, da esquerda para a direita, vestidas de sevilhanas: Alice, Cremilde, Maria Portugalina, Suzete, D. Angelina (modista, vestida de preto), Helena, Maria Rosa, Lúcia, Maria dos Anjos. Sentadas, da esquerda para a direita: Maria Otelinda, Maria Castelar e Maria Suzete. Entre as crianças da assistência, identificou-se a menina sentada, a segunda à esquerda, Francelina, e a menina em pé ao fundo, Anabela. O conjunto musical ao fundo são «Os Cariocas», da Moita. 1955-1956? EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

6.º «Piz Piz», na Sociedade Filarmónica União Seixalense, no Seixal, com a participação de Raul Solnado. Da esquerda para a direita: Flávio Ferreira, Raul Solnado, Maria do Céu Cunha e, à direita, Adelino Cunha. 1970? EMS-CDI – Imagem cedida por Maria do Céu Cunha.

Um outro espetáculo de varidades, que se encontra representado nas fotografias que foram recolhidas no âmbito do projeto Histórias & Memórias Fotográficas, refere-se ao célebre «Piz Piz», que recriava o ambiente do programa de televisão «Zip Zip», com Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia, durante os anos 60 do séc. XX. O espetáculo recriado por António Cunha e Wilson Quintino, que apresentava momentos musicais e entrevistas, teve tal sucesso que o próprio Raul Solnado veio até à Sociedade Filarmónica União Seixalense participar num deles, o mesmo sucedendo com outras personalidades, como o poeta David Mourão Ferreira, Natália Correia, entre outros.24

Baile da Noite Holandesa, na SM5O, em Aldeia de Paio Pires. Este evento realizou-se em honra dos holandeses que trabalhavam na terraplanagem de terrenos para a instalação da Siderurgia Nacional. 11 de outubro de 1958. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria José Albuquerque Soares.

Revista «Recordar É Viver», na SFOA, em Amora, em que participou «Joaquim Jota». 1970-1971? EMS-CDI – Imagem cedida por Marque Túlio. 24

Ibidem, p.32

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«Esta fotografia é histórica, 16 de maio de 1967, Colóquio de Poesia do Exmo. Sr. Dr. José Carlos, realizado na Timbre Seixalense. Neste colóquio compareceu inesperadamente o russo Yevgeny Yevtushenko (…) no momento em que o poeta russo assinava o livro de ouro da Timbre. É histórica.» (Irlando Tavares)

Os bailes e iniciativas culturais

Baile de Carnaval na SM5O, em Aldeia de Paio Pires. Anos 60 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Nas sociedades filarmónicas e outras coletividades, os bailes davam também geralmente um colorido especial às matinés ou às noites, atraindo gente de todas as idades, mas sobretudo gente nova. Bailes como os de Carnaval, da Pinha, das Chitas, as noites temáticas, como as das Sevilhanas, entre outros, enchiam os salões destas coletividades e eram sempre um sucesso garantido.

Escritor russo Yevgeny Yevtushenko na SFDTS, no Seixal, durante um Colóquio de Poesia, no momento em que assinava o Livro de Ouro da Timbre. 16 de maio de 1967. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

Outro aspeto importante que estas sociedades filarmónicas promoviam eram as iniciativas de âmbito cultural, que permitiam o acesso a programas e eventos, que de outro modo a população local não teria. Salientamos, sobretudo, a ação cultural da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, que apresentou entre outros, concertos de Carlos Paredes, Fernando Lopes-Graça, o Coro dos Amadores de Música, colóquios e sessões literárias com escritores e poetas, entre os quais destacamos a que se realizou com o poeta russo Yevtushenko, de que temos imagem. A visita inesperada deste poeta à SFDTS ocorreu em 1967, quando o mesmo veio a Portugal, a convite da editora D. Quixote, realizar um recital de poesia em Lisboa. No Seixal, a visita do poeta soviético, em plena ditadura, foi preparada com algum secretismo. Tal facto valeu a que sociedade fosse encerrada pela PIDE durante cerca de um mês e se tivessem proibido as sessões culturais.

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Desporto


O desporto Também os clubes desportivos desempenharam um papel importante na sociabilidade e na ocupação dos tempos livres a nível local, quer fosse no desempenho de uma prática desportiva, quer fosse no seguimento entusiástico das principais modalidades que promoviam, como o futebol, o basquetebol e também o hóquei em patins, entre outras. Entre estas, o futebol foi sempre a modalidade que mais adeptos cativou, começando a ser jogado na rua desde tenra idade, ou mais tarde com os amigos em campos improvisados. A partir dos inícios do séc. XX, foram formados os primeiros clubes de futebol na região, sendo o Amora Futebol Clube o mais antigo, com fundação em 1921, seguindo-se o Seixal Futebol Clube; o Paio Pires Futebol Clube e o Atlético Clube de Arrentela (inicialmente designado de Arrentela Foot-Ball Club), criados durante o ano de 1925.

Sebastião Pinheiro, capitão da equipa de seniores, a receber uma moldura com a fotografia da sua equipa, pelo diretor do clube de futebol do Sintrense, 1949/1950?. Na imagem reconhece-se à esquerda de Sebastião Pinheiro, Alfredo Miranda, Ramiro e Salvador Tiago e atrás, Vasco. EMS – CDI – Imagem cedida por Sebastião Pinheiro.

Equipa do Seixal Futebol Clube, no Campo do Bravo.[s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Carlos Policarpo.

Retrato de antigos jogadores dos júniores do Amora Futebol Clube, em Amora. Fim de anos 50?, do séc. XX. Em pé, da esquerda para a direita: Tanganho, António Silvestre “Moca”, António Páscoa Joaquim, João Fernandes, Rui, Bráulio (guardaredes). Em baixo, pela mesma ordem: Alexandre, Magnaldo, Alberto Soares, António Henrique e Sebastião Pinheiro. EMS – CDI – Imagem cedida por Sebastião Pinheiro.

Com a fundação destas equipas e de muitas outras no concelho do Seixal, o futebol tornar-se-ia na modalidade desportiva mais representativa e identitária de cada terra, suscitando partidas aguerridas entre os clubes rivais, repletas de bairrismo, o que tornava a competição ainda mais viva. Entre os muitos jogadores de futebol talentosos que jogaram nestes clubes destaca-se o nome de Albano Narciso Pereira, pelo seu renome e prestígio.

Albano Narciso Pereira, na baliza do Campo do Bravo, Seixal, num jogo não oficial, pois o jogador não era guarda-redes. 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Ana Teresa Travassos Pereira. 58


Albano Narciso Pereira, na sede do SFC, com um grupo de pessoas, incluindo o seu filho, Eduardo Pereira, quando era criança [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Ana Teresa Travassos Pereira.

Celebração da passagem do SFC à 1.ª divisão na época de 1962-1963. Da esquerda para a direita vê-se Fernando Serra, Ministro, Necas e William Landeiroto, antigo diretor do Seixal Futebol Clube e responsável do desporto do jornal Tribuna do Povo. As crianças não foram identificadas. 1963. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra.

Este começou a jogar no Seixal Futebol Clube (SFC), tendo seguido para o Barreirense e depois para o Sporting Clube de Portugal, onde jogou durante 14 anos e se tornou uma figura célebre, ao incluir-se nos cinco jogadores da linha avançada da equipa principal, a que chamavam de «Cinco Violinos».

Em termos de memórias futebolísticas no concelho do Seixal, evocamos também a célebre vitória do Seixal Futebol Clube, no dia 5 de maio de 1963, quando a equipa subiu para a 1.ª divisão nacional, celebrado com euforia e lágrimas derramadas de alegria, como nos recordou Maria Raquel Serra, do Seixal, cujo marido, Fernando Serra, figura numa das fotografias que recolhemos e eterniza para sempre esse dia mítico.

Quando deixou o Sporting Clube de Portugal, em 1957, Albano voltou a jogar no Seixal Futebol Clube, como sénior e chegou a treinar várias equipas do concelho, incluindo o Seixal Futebol Clube, o Amora Futebol Clube e o Paio Pires Futebol Clube, com o qual ganhou o título de campeão da 1.ª divisão distrital da Associação de Futebol de Setúbal, na época de 1969-1970.

Porto de Honra comemorativo pela vitória do Paio Pires Futebol Clube no campeonato distrital da 1.ª divisão na época 1969-1970 nas instalações da SM5O. Lurdes Rosendo, Ezequiel, Albano Narciso Pereira, José da Paula e restantes não identificados. 1970? EMS-CDI – Imagem cedida por Rosalina Homem.

Equipa de basquetebol do Seixal Futebol Clube. Na fila de cima, reconhecem-se João Bandeiro Costa, n.º 3, e Chagas, n.º 12. Na fila de baixo, o primeiro é William Landeiroto, n.º 8, e José Filipe Pinhol, n.º 14 [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Joaquim Martins «Nana». 59


A festa repetiu-se na noite de dia 15 de maio de 1963, quando se organizou uma Marcha Luminosa, cuja iniciativa partiu da Sociedade Filarmónica Timbre Seixalense, à qual se uniram as restantes coletividades, no Campo do Bravo. A marcha com música e letra de Emílio Rebelo seguiu num cortejo, que atravessou o Bairro Novo e seguiu pelas ruas do Seixal, com luzes vermelhas e azuis. Mas apesar do enorme entusiasmo que existia pelo futebol no concelho do Seixal, havia outras modalidades que suscitavam também um grande envolvimento do público, como era o caso do basquetebol. Esta modalidade tinha grande sucesso no Seixal, sendo praticado quer no Seixal Futebol Clube, desde 1945, quer no Grupo Desportivo Mundet (GDM)26, a partir de 1951, quando se concluiu o parque de desportos. Os jogos de basquetebol entre estas duas equipas eram bastante disputados, com as claques bastante animosas.

Primeira equipa de basquetebol do Seixal Futebol Clube. Em pé, da esquerda para a direita, Amélio Santos, Adelino Cunha, e Fanoca. Os restantes não foram identificados. Data provável de 1947. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria do Céu Cunha.

Uma das primeiras equipas de basquetebol a ser formada no Grupo Desportivo Mundet. Em cima, da esquerda para a direita: Mendes, Álvaro Moura, Aldemiro Benavente,Diamantino, Paulo Carvalho, Eduardo Carvalho e Amadeu Pescadinha. Em baixo, seguindo a mesma ordem, veem-se Firmino Batista, António Pedro da Silva, Manuel Alberto do Nascimento Jorge dos Santos, Domingos «Palhuça», António Pereira, José Filipe Pinhol. Início dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Manuela Nobre.

Equipa de juniores de hóquei em patins do GDM. Ao alto, da esquerda para a direita, o primeiro elemento é o treinador dos juniores, Álvaro Cavalheiro. Segue-se Manuel Jorge, Irlando Tavares, Mário Fernando, Nelson Teixeira. Em baixo, da esquerda para a direita, Cuca, José David, José João e Chanoca. 1957. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

Aldemiro Benavente lembra-se bem desses tempos, tendo começado a jogar na equipa de basquetebol do GDM aos 15 anos, e sido inclusive o capitão da equipa. Segundo ele, a rivalidade que existia entre estas duas equipas era muito importante para promover o desporto, a nível local.

«Os jogadores “meteram-se” numa furgoneta e deram a volta à terra. Atrás, iam os músicos, por toda a parte a multidão. À noite houve fogo de artifício e baile, na verbena da sede do Seixal Futebol Clube. Tudo terminou em festa.» 25 25

RODRIGUES, Carlos (12 de maio de 1963), «Euforia, lágrimas, gritos, abraços, Seixal! Seixal! Seixal!», Tribuna do Povo, N.º 299, p.4.

26

O Grupo Desportivo Mundet (GDM) foi fundado em 1950 e, em 1951, foi inaugurada a sua sede e o campo de jogos nas instalações da fábrica Mundet, no Seixal.

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Além da competição, o GDM incentivava também a aprendizagem desta prática através da escola de jogadores principiantes e das equipas de juniores. Irlando Tavares, Vítor Pinho e muitos outros jovens da sua geração integraram as equipas de juniores de hóquei em patins, durante as décadas de 50 e 60 do séc. XX, treinadas por Álvaro Fava e Álvaro Cavalheiro, jogadores também na equipa principal. Dos jovens praticantes de hóquei em patins no GDM, quem se destacou foi sem dúvidas Leonel Fernandes. Segundo nos recordou este antigo jogador, a sua aprendizagem foi um pouco diferente da dos outros, tendo sido conseguida com muito esforço e dedicação.

«Na minha adolescência havia essa influência da Mundet na vida desportiva e cultural do Seixal. Havia uma atividade muito grande. Havia depois rivalidade entre a Mundet e o Seixal Futebol Clube, que também valorizou muito os jovens dessa época, porque uns jogavam aqui, outros ali. Disputavam os mesmos campeonatos, e quando eram jogos entre eles e nós, havia sempre multidões e discussões (…). Ficava totalmente cheio a discutir quem ia ganhar.» (Aldemiro Benavente) Outra das modalidades desportivas que teve bastante popularidade no concelho do Seixal, a partir dos anos 1950 foi o hóquei em patins, com o arranque da prática no Grupo Desportivo Mundet, a partir de 1951, e também no Patronato, em Amora.

Como os recursos familiares não lhe permitiam ser sócio do GDM e a sua vontade de andar de patins era muito grande, fazia de tudo para o deixarem dar uma voltinha.

Equipa de juniores de hóquei em patins, nas instalações do Grupo Desportivo da Mundet. Em pé, da esquerda para a direita, Carlos Gonçalves, Leonel Fernandes, José António. Em baixo, pela mesma ordem, Chagas, Manuel Cambalacho (guarda-redes) e «Sesimbra».1954? EMS-CDI – Imagem cedida por Leonel Fernandes.

Joaquim Meias (pai de José Meias), Dorinda Fernandes (irmã de Leonel Fernandes), Mário Russo e três outras pessoas não identificadas sentadas nas escadas do ringue de patinagem do GDM. Início dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por José Meias.

«Quando o hóquei apareceu aqui no Seixal foi um acontecimento excecional, toda a gente quis aprender a andar de patins. Os indivíduos que jogavam hóquei ensinavam a gente a andar de patins.» (Aldemiro Benavante)

«Eu fazia limpeza, varria, regava as flores, lavava logo as bancadas (…), tudo para ir dar uma voltinha de patins. E assim começou a minha vida no hóquei.» (Leonel Fernandes).

O sucesso desta modalidade no GDM foi praticamente imediato, alcançando, logo em 1952, o título de campeão nacional da segunda divisão da Associação Regional do Sul, com a equipa constituída por Fernando Lima, Álvaro Pereira, Álvaro Cavalheiro, Álvaro Fava, Ilídio Gomes, Vítor Marques e José Milheiro, treinada por Olivério Serpa.

Ao longo dos anos Leonel Fernandes deu provas de ser um grande jogador e, por isso, acabou por ser integrado nas equipas dos juniores e logo que foi possível passou a jogar na equipa principal e a conquistar títulos.

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As atividades do GDM eram muito apreciadas pela população do Seixal, sobretudo ao domingo, quando se podia patinar no ringue, ouvir a locução dos Serviços de Difusão Sonora, transmitida a partir da cabine de som, localizada junto às bancadas do ringue, em que colaboravam Adelino Tavares, Maria de Lourdes Brites, Nelson Leitão e outros. Pelas ruas do Seixal mais próximas, ecoava a música, a poesia, a informação desportiva ou os relatos dos jogos de hóquei, através dos altifalantes instalados nas árvores, junto de uma das entradas da fábrica. «Vinha muita gente sentar-se na bancada ou a namorar, ou a que quer que seja, ou a conversar com as crianças, a ouvir. Depois punham os gaiatos a fazer patinagem ali, alugavam os patins (…) e andavam ali e foi assim que eu também comecei a patinar.

Equipa de patinagem artística do GDM. Da esquerda para a direita: Francisco Nobre, o treinador de patinagem, Nazaré, Teresa, Maria Otelinda, Dália e Dárida [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Manuela Nobre.

Era muito divertido e concorrido (…). Era uma animação para as pessoas do Seixal.» (Adelino Tavares) «Juntava-se aí uma quantidade de pessoas, (…) era uma maneira de nos reunirmos, de estarmos juntos, conversarmos e assim, porque isto não vinha de modo nenhum substituir as coletividades e o que existia nas coletividades, era outra coisa. Isto era virado para a área do divertimento, do desporto e do convívio, até porque as pessoas que vinham aqui eram diferentes das pessoas que iam às coletividades, pessoas mais abertas (…), mas era engraçado, era um bocadinho da tarde e (…) um entretenimento para passar o tempo livre, foi interessante enquanto durou.» (Maria de Lourdes Brites) À tarde, disputavam-se os jogos de hóquei e as bancadas enchiam-se de adeptos para ver as proezas dos jogadores do clube, com Álvaro Cavalheiro ou Leonel Fernandes. O intervalo dos jogos incluía geralmente um espetáculo das patinadoras artísticas, onde brilhavam Nazaré Fernandes, Dárida, Maria Otelinda, Dália, entre outras, treinadas por Francisco Nobre, como podemos ver na fotografia.

Secção de Cicloturismo do Atlético Clube de Arrentela, no 25 de abril de 1945. No verso lê-se que será no Cabo Espichel, mas terá sido captada na Av. Movimento das Forças Armadas, perto do Independente Futebol Clube Torrense (números 33 e 35), na Torre da Marinha. Trata-se de um encontro entre as secções do Seixal Futebol Clube e do Atlético Clube de Arrentela. EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

No que diz respeito às memórias fotográficas relacionadas com o desporto, salientamos ainda o cicloturismo, tendo sido recolhidas algumas imagens que retratam esta modalidade, nos anos 40-50 do séc. XX, onde se veem atletas das secções do Seixal Futebol Clube e do Atlético Clube de Arrentela. Esta era uma prática que promovia tanto o desporto, como a fruição do ar livre, levando os ciclistas a percorrer grandes distâncias, em passeios organizados entre os clubes.

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Entre dois dedos de conversa... e outras distrações


Os cafés

Convívio entre amigos na esplanada do antigo café do Zé do Albino. Em pé, da esquerda para a direita, Fausto Tavares, empregado de mesa do café sem identificação, Joaquim Silva, José Anjos, João Laranjeira, Abílio Pólvora. Sentados, pela mesma ordem: José David, António Augusto, Leitão e Jorge Fernando. Anos 60 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Vítor Pinho.

Retrato de um grupo de pessoas sentadas à mesa no antigo Café Tricana, do jogador de futebol Albano Narciso Pereira, no Seixal, incluindo-se o mesmo no grupo. Este café foi inaugurado em julho de 1959. EMS-CDI – Imagem cedida por Ana Teresa Travassos Pereira.

Nas tabernas e nos cafés, os homens discutiam sobre futebol e os grandes dérbis, comentavam as novidades da terra, os mexericos e a vida alheia, evitando temas que envolvessem política, porque nunca se sabia quem podia ouvir as conversas, podendo haver no recinto possíveis informadores da PIDE que estivessem à cata de informações comprometedoras. Cada café ou taberna era assim o ponto de encontro das mesmas pessoas, tendo os seus habitués, e os seus fregueses fixos, conforme a convergência de interesses das pessoas e os pontos em comum que possuíam. Era o que sucedia no Seixal, de acordo com o que nos contou Nelson Cruz:

Retrato de grupo de homens sentados no Café do Xanita, no Seixal, na Rua Conde de Ferreira. Identificaram-se na primeira mesa, da esquerda para a direita: Carlos Cabrita, o segundo; o alfaiate António «Gadelha», junto à porta encontra-se o proprietário do café, «Xanita», indicado com uma seta e, ao lado, o seu filho mais novo. Em primeiro plano está sentado Pinhó. Anos 60 do séc. XX? EMS-CDI – Imagem cedida por Imagem cedida por Nelson Cruz.

«Cada café tinha os seus frequentadores. O meu pai era do Café Moderno, que era o Café do Fonseca, depois havia outros, que era a malta do Sporting, que iam para o café do Albano [Tricana]. Eu, a malta jovem (…) era tudo para o Café do Zé do Albino, tinha os bilhares…E [havia] o Xanita [onde paravam os mais velhos].» (Nelson Cruz)

Os cafés eram outros lugares onde também se passava o tempo, entre dois dedos de conversa e um petisco na companhia de outros comparsas. Esta era essencialmente uma sociabilidade masculina, visível através das fotografias que recolhemos, em que se observam essencialmente homens ou jovens rapazes.

Em Arrentela, segundo o testemunho de José Luís Pedro, as tabernas desempenhavam também um papel importante na sociabilidade masculina. Depois de saírem do trabalho nas fábricas vizinhas, juntando-se ao copo de vinho, um jogo de cartas. 64


«Nós reuníamo-nos muito na Sociedade e no Atlético Clube da Arrentela e nas tabernas. Porque nas tabernas jogava-se às cartas. (…) Na Arrentela havia umas sete ou oito tabernas e, muitas vezes, estávamos sentados em cima [de pipas].» (José Luís Pedro)

Os piqueniques Outras formas de convívio ocorriam também fora de portas, ao ar livre, entre a família ou amigos, como nos demonstram as várias fotografias que recolhemos. Sobretudo na primavera e no verão, quando o clima convidava a desfrutar o ar livre, as famílias saíam de casa, davam passeios pelo jardim do local onde viviam ou pela muralha ribeirinha, se viviam perto do rio, demorando-se à conversa, enquanto as crianças brincavam. Também se organizavam piqueniques nas matas e nos campos, onde não faltava o farnel e muitas vezes também, conforme a organização dos mesmos, a banda a tocar e um baile improvisado no meio da natureza.

Piquenique no 1.º de Maio, na freguesia de Amora. Na imagem veem-se da esquerda para a direita, em cima: António Tiago, Maria Emília Marques, Rosalinda Tiago, Manuel Tiago, Valentina Tiago e em baixo: a primeira criança à esquerda, Salvador Tiago e a quarta à direita, Rufina. As restantes não foram identificadas. 1 de Maio de 1937. EMS-CDI – Imagem cedida por Celeste Tiago Rego.

«Ali era (…) engraçado, aquele convívio, a música a tocar, a gente a dançar e muito pó, muito pó.» (Celeste Rego) Era, sobretudo, por ocasião do 1.º de Maio que era costume organizarem-se muitos piqueniques, um pouco por todo o concelho do Seixal, com o intuito de comemorar o Dia do Trabalhador. «fazia-se, eu lembro-me com 12 ou 13 anos, quando era pelo 1.º de Maio. Eu morava lá em baixo, vínhamos cá para cima a pé, eu, a minha mãe e o meu pai. A minha mãe fazia sempre arroz de coelho, no 1.º de Maio, era a tradição. E então, vinha o meu pai, com uma mala de vime grande, (…) com uns pratos, antigamente não havia coisas de plástico, uns copos, uma garrafinha de vinho, o tachinho do arroz de coelho. Vínhamos fazer o 1.º de Maio para esse pinhal enorme. (…) [Tocava] uma orquestrazinha que eram os «Limpinhos». (Celeste Rego)

Piquenique na Quinta do Lírio, Seixal, com a família de Adelino Tavares, provavelmente para comemorar o 1.º de Maio. Da esquerda para a direita: Victor Tavares, Adelino Tavares (pai), Adelino Tavares e Miguel. Anos 40-50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Adelino Tavares.

De uma forma discreta, ou às escondidas, estes encontros continuaram a realizar-se, um pouco à revelia, embora com uma intenção camuflada, disfarçando-se as conversas perante a presença das autoridades quando estas surgiam.

Contudo, durante o Estado Novo, por razões políticas, as autoridades proibiram todas as atividades que estivessem associadas à comemoração deste dia, passando a ser reprimidas pela polícia. Por esse motivo, os piqueniques que se realizavam nesse dia passaram a ser vigiados pela GNR, que a cavalo ou a pé controlava os terrenos, como os da Quinta do Lírio, que era bastante procurada pelos locais para piqueniques. 65


Era também na praia da Ponta dos Corvos que se juntavam muitas vezes grupos de jovens rapazes e homens adultos para jogatanas de futebol intermináveis. Alguns iam no barco e transportavam o que era necessário, enquanto outros mais destemidos faziam a travessia a nado para o outro lado.

Idas à praia

«Na Ponta dos Corvos tínhamos lá sempre uma peladinha, jogávamos naquela areia baixinha. (…) O que está com a mão no meu ombro é o Porfírio (…) foi guarda-redes do Benfica, jogou no Seixal, no Benfica, eu também ainda joguei no Seixal (…). Nós na Praia do Alfeite fazíamos assim (…) um montinho para fazer a baliza.» (Adelino Tavares)

Embarcação de transporte para a Ponta dos Corvos [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra.

Retrato de um grupo de pessoas a almoçar na praia da Ponta dos Corvos. Anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Cândido Tavares

Em dias de calor, no verão, as famílias, sobretudo as que viviam no Seixal e arredores, deslocavam-se também até à praia do Alfeite, na Ponta dos Corvos, passando de barco até à outra margem do rio, onde ficavam a desfrutar dos bons ares e aproveitavam para passar o dia, levando o farnel e panos para montar barracas de praia improvisadas.

Grupo de jovens a jogar à bola, na Ponta dos Corvos. Da esquerda para a direita: Adelino Tavares, Porfírio, João da Carlota e Robim. Finais dos anos 50, inícios dos anos 60 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Adelino Tavares.

«Foi lá nos anos 30 que eu aprendi a nadar (…). Era a Praia do Alfeite, [custava] 5 tostões cada pessoa (…) os barquinhos que nos levavam a remos até lá. Marcava-se a hora para nos irem buscar e passava-se um belo dia.» (Carlos Ribeiro)

Já quem era de Aldeia de Paio Pires, como referiu Egdar Rendeiro, gostava de aproveitar os ares do rio, nas imediações, na Quinta do Descanso.

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Retrato de grupo de amigos na Praia do Alfeite, Ponta dos Corvos. Todos os domingos encontravam-se para jogar à bola, na praia do Alfeite. Da esquerda para a direita: Rui Rebelo; Heldér Nogueira (“O Clarica”); José Manuel Lopes Pardal; Zé Rebelo (pai de Rui Rebelo); Armando Silveira; Armando Mendes; António Ferreira (irmão de Vítor Ferreira; antigo trabalhador no Moinho Maré de Corroios). Em baixo. Marcelino Mosca, Artur “Machicha”, Evaristo; criança não identificada (filha do Cajica); Cajica; Carlos Alberto “Cabeta”, Vítor Pinho. Anos 60 do séc. XX. EMS-CDI - Imagem cedida por Vítor Pinho.

Excursão promovida pela Sociedade Musical 5 de Outubro à Arrábida. De pé, da esquerda para a direita: António Catarraia, o quarto; Eugénio Romão, o quinto; Maria Isabel Gomes, a sexta; José Manuel, o sétimo; Virgínia Marques, a oitava; Mariana, a nona; Vítor (filho de Carlos Silva, conhecido por «Mouco da Água»). Na fila de baixo: Estrela, Henriqueta Oliveira, Graça, Ana (mulher do «Mouco de Água»). Deitados no chão: Zé Joaquim, o primeiro; e «Mouco da Água» (com o garrafão), o segundo. Este homem vendia água e tinha ficado com esta alcunha por ser surdo. As restantes pessoas não foram identificadas. Fim dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Isabel Gomes.

Deslocação à praia, provavelmente em Sesimbra. Anos 60 do séc. XX. © EMS-CDI – Imagem cedida por Vitaliana das Neves.

«Lá em Paio Pires chamávamos-lhe a praia do Descanso, e é também uma das minhas memórias mais remotas de infância, porque o meu pai era caçador e ia muito ali para aquelas zonas, naquela pequena baiazita, aquela língua de areia, ali exatamente, as pessoas com os chapéus de sol e a água também era quente, eu também lá cheguei a tomar banho. Mas entretanto a Siderurgia instalou-se e as águas ficaram não muito recomendáveis para o banho.» (Edgar Rendeiro)

Retrato de família na praia, na Costa da Caparica, em 1948. Na fotografia veem-se em pé Sebastião Pinheiro, Benvinda da Costa Pinheiro (mãe) e pessoa não identificada. Em baixo, estão Joaquim Pinheiro (pai) e Augusto Raimundo. EMS-CDI – Imagem cedida por Sebastião Pinheiro. 67


Mas havia também quem aproveitasse o seu tempo livre para ir até praias mais distantes, como era o caso da Costa da Caparica, Fonte da Telha, Arrábida, ou Sesimbra, ou para visitar outras paragens fora do distrito de Setúbal, em passeios e excursões, geralmente organizados pelas coletividades, ou em deslocação particular em transporte público, da Beira-Rio.

Inauguração da piscina nas instalações do empreendimento turístico do Muxito, Vale dos Gatos, Amora. Fins anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Florinda Reis.

«Era a única piscina que a gente tinha, isto era um luxo para Amora e pagava-se. Na altura pagava-se 25 tostões para entrar lá dentro para a piscina. (…) Então, nós íamos a pé daqui de Amora, porque não havia dinheiro, algum dia a minha mãe me dava dinheiro para ir para o Muxito? [risos] Havia aí a maré… (…) Por 25 tostões podíamos estar o dia todo. Eu ia sozinha, outras vezes ia com colegas.» (Florinda Reis)

Excursão familiar a Sintra, Colares, Praia das Maçãs, Seixal. Na fotografia vê-se a Família Tavares e amigos, junto a um carro. Em primeiro plano, da esquerda para a direita: Adelino Tavares e João Tavares. Atrás, pela mesma ordem, Elisa Tavares (esposa de Adelino Tavares) não identificada, não identificada, Emília Tavares (esposa de João Tavares). Atrás, da esquerda para a direita, Sousa, Arnaldo Tavares e elemento não identificado. Anos 40 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

O cinema Outro dos hábitos de lazer que a população do concelho do Seixal prezava, mas dos quais não conseguimos ainda recolher fotografias antigas que o demonstrem, era a ida ao cinema, sendo sempre uma festa quando chegava uma nova fita. Deliciava tanto petizes como adultos, que encontravam na grande tela um momento para fugir à rotina, dar asas à imaginação e conhecer outros lugares e paisagens longínquas. Na antiga vila do Seixal, era no acatitado Cinema do Ângelo Valgôde, localizado num edifício no Largo dos Restauradores, demolido nos anos 90 do séc. XX, que os seixalenses assistiam às sessões de cinema.27

Piscina do Muxito A partir de finais de 1957, com a instalação da estância turística do Muxito, localizada em Vale de Gatos, próximo da Cruz de Pau, surgiu outro local de lazer que passou a ser frequentado por algumas pessoas do concelho do Seixal, sobretudo para usufruto das suas duas piscinas (uma era destinada às crianças e outra aos adultos, com dimensões olímpicas e prancha de saltos). Uma das suas frequentadoras, que esteve presente no dia da inauguração, foi Florinda Reis, natural de Amora, que nos testemunhou o seu gosto pela natação e pela piscina do Muxito.

«O meu Cinema Paraíso foi desde os 30, a sala do velho e depois o remodelado cinema do Ângelo. Ainda pequeno esperava com os outros miúdos à porta, até que alguém conhecido me desse a mão para entrar. Lá dentro sentava-me no chão, outras vezes ficava de pé, frente ao ecrã, esperando pelos documentários, desenhos animados e os filmes.»28

Cf. SANTOS, João Paulo (2005), «Espaços de espectáculos no concelho do Seixal», em Ecomuseu Informação: boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal, ISSN 0873-6197, nº. 35 (abril, maio, junho), p. 18-19.

27

68


«Vinha um indivíduo de bicicleta a pedais trazer a bobine. Primeiro dava lá [no Cinema do Ângelo] a primeira parte do filme (…) depois ia a correr para lá… Às vezes estávamos à espera do filme, as fitas naquela altura partiam-se muito, tinham de estar a colar as fitas e o cinema a dar. Uma vez estivemos à espera da segunda parte mais de meia hora.». (António Lima Ferreira) Só mais tarde, em 1961, é que Aldeia de Paio Pires ganhou a melhor sala de projeção do concelho, o Cinema São Vicente, por iniciativa de Manuel Bonaparte Figueira, apresentando excelentes condições acústicas, num edifício de 3 pisos, com plateia de sala de espetáculos, camarotes e balcão.

Bilhete do Cinema S. Vicente, em Aldeia de Paio Pires, 2.º balcão, Fila H, datado de 21 de novembro de 1970, da soirée, com o preço de 8$00. Fins anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

«Nesse tempo, era no Seixal que estava instalado o único cinema do concelho. Era o tempo dos grandes filmes de acção, principalmente os Western, também conhecidos como filmes de Cowboys ou, “Cavalinhos Brancos”. Em dias de “Cavalinhos Brancos” o cinema ficava cheio que nem um ovo. As “Maltinhas” tinham lugar cativo, as técnicas de luta que se viam nos filmes, tinham que ser postas em prática no dia seguinte ou muitas vezes na própria noite. A “Maltinha” de Arrentela nesses dias deslocava-se ao Seixal e marcava presença no cinema. Vinham a pé e regressavam a pé a Arrentela, acontece que, na passagem pelo estaleiro, o cerco estava montado, umas vezes pela “maltinha” de Trás da Ponte, outras vezes pela “maltinha” do beco, assim o caminho para Arrentela ficava limitado entre os barracões do estaleiro e o muro da Fábrica Mundet. Claro que as pedras e os paus começavam a “chover” até que os elementos da “maltinha” da Arrentela conseguissem fugir.»29 No concelho do Seixal, existiam também outros espaços onde se podia assistir a sessões de cinema, sobretudo nas coletividades, como era o caso da verbena do Atlético Clube de Arrentela, nos anos 50 do séc. XX; ou em salas com melhores condições, como sucedia nas sedes da Sociedade Filarmónica Operária Amorense e na Sociedade Filarmónica União Seixalense.30 Em Aldeia de Paio Pires, ainda há memórias também de cinema ao ar livre, num espaço improvisado junto ao mercado, que não possuía muitas condições, tendo de se esperar muitas vezes pela segunda parte do filme que estava a ser projetada no cinema do Ângelo, no Seixal. 28

PIEDADE, Ângelo Matos (2006), Memórias Escolhidas 1932/1951, Reed, Lisboa, p.119.

29

TAVARES, Irlando, «Trás da Ponte – “Maltinhas”» no blogue Trás da Ponte, em linha, consultado em 24 de abril de 2019, disponível em: http://trasdaponte.blogspot.

com/2011/11/tras-da-ponte-maltinhas.html. 30

Cf. SANTOS, João Paulo (2005), «Espaços de espectáculos no concelho do Seixal», em Ecomuseu Informação: boletim trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal,

ISSN 0873-6197, n.º 35 (abril, maio, junho), p. 18-19.

69



Festas populares e religiosas


Nesta paragem era lançado o fogo.»32 De regresso à igreja de Amora, a procissão parava em frente da Capela de Nossa Senhora da Piedade, na Quinta da Medideira, que era enfeitada e decorada para a ocasião.

Festas Populares No calendário cíclico anual, existia no passado um período muito importante para o lazer das gentes do concelho do Seixal, considerado um tempo de exceção, folguedos e convívios. Falamos das festas populares e religiosas. Embora estas se mantenham no presente, a intensidade com que eram vividas no passado não tem comparação com a atualidade, por constituírem um dos pontos mais altos da sua vida social no ano, em que durante uns dias se dava tréguas à vida do dia a dia. Por ser um tema bastante vasto, abordaremos aqui apenas as festas mais emblemáticas do concelho e os temas que vêm à memória através das fotografias, retomando alguns momentos vividos, de convívio e de sociabilidade que fazem parte da história destas festas.

Após a festa religiosa seguia-se a festa profana, realizada geralmente na Amora de Baixo, com o arraial montado junto ao coreto, e na Avenida Silva Gomes. Sucediam-se os desfiles da Banda da SFOA, com concertos no coreto desta e de outras bandas. O arraial montava-se com varas, com bandeiras hasteadas de pano, decorando-se os mastros com ramos de buxo e balões de papel de seda, com candeeiros pendurados para dar luz, quando ainda não havia eletricidade. Segundo Florinda Reis, as festas chegaram a ser custeadas pelas fábricas da Mundet e dos Produtos Corticeiros, sendo os mastros pagos à Câmara Municipal do Seixal, que custariam na altura cerca de cinco tostões. «e depois como era sem luz, era com aqueles lampiões, que havia a petróleo.» (Florinda Reis)

Festa de Monte Sião, Amora A Festa do Monte Sião é celebrada a 15 de agosto, sendo também conhecida pela sua festa religiosa, com celebração de missa e procissão. Por volta dos anos 50 do séc. XX, a procissão saía da igreja de Amora com oito andores com as imagens da igreja, carregados por homens, que podiam ter feito a promessa de os levar aos ombros. De acordo com os testemunhos recolhidos por Manuel Lima31, na frente da procissão seguia a cruz, tendo havido uma época em que encabeçava a procissão a Guarda Nacional Republicana a cavalo e a fanfarra dos bombeiros. Atrás da cruz vinham as crianças da catequese, vestidas de branco, sucedidas pelos estandartes. Seguia-se o padre, sob o pálio, que segurava o santíssimo sacramento, os andores e no fim deles, o da padroeira de Nossa Senhora do Monte Sião. A fechar a procissão desfilava a banda da Sociedade Filarmónica Operária Amorense, ou da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, tocando. A procissão «saía da igreja, ia ao cruzeiro de Amora (Pedra) dar a volta, descia à Amora de Baixo pela rua Direita, passava ao pé da «Escola Velha», edifício do Conselheiro Custódio Miguel Borja, seguia pela marginal Silva Gomes até à fábrica dos Produtos Corticeiros (Bairro Operário dos Alemães), aí dava a volta próximo do Estaleiro Venâncio e regressava ao cais de Amora, onde parava para abençoar as embarcações dos pescadores e marítimos (…)

Aspeto do coreto da SFOA com a banda a tocar, possivelmente na Festas de Nossa Senhora do Monte Sião [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por Amélio Cunha.

Junto à muralha ribeirinha havia sempre muito movimento, montando-se bancas de venda de louças, e vendia-se melancia e melão em barcos que acostavam no cais de descargas da fábrica Mundet. Entre as várias diversões da feira, existia o tiro ao alvo, os fantoches, os carrosséis e, segundo os mais velhos, o jogo das cavalhadas, que podia ser feito a cavalo, burro, de bicicleta ou a pé, e ter como prémios coelhos, galinhas, frangos, pombos, colocados em cacifos que tinham de ser atingidos com uma vara.33 As cavalhadas realizadas desta forma terão deixado de se realizar durante os anos 50.

31

LIMA, Manuel (2006), Amora: Memórias e Vivências d’Outrora, Lisboa, Plátano, p. 38.

32

Idem, p.38.

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Festa de Nossa Senhora de Anunciada, Aldeia de Paio Pires

De acordo com as informações recolhidas no jornal Tribuna do Povo34, foi em julho de 1851, após a conclusão das obras da Igreja Matriz de Aldeia de Paio Pires, que se designou que as festas em honra da sua padroeira, Nossa Senhora da Anunciada, se realizariam no primeiro domingo de agosto. Segundo a descrição deste jornal, de 7 de agosto de 1955, a festa era: «abrilhantada pelas Bandas Regimentais Infantaria 1 e 2, Caçadores 2 e 5, que vinham no bote de pinho da Casa da Palmeira todo embadeirado e nesta casa recebiam a primeira recepção com arroz doce e os melhores vinhos da sua lavra, e assim começava a festa».35 A festa que, até 1912, se realizava junto ao adro da igreja, foi transferida para o Largo do Campo, atual Largo Dom Paio Peres Correia, nas imediações da sede da Sociedade Musical 5 de Outubro, a partir dessa data. De acordo com a tradição, a festa religiosa é celebrada sempre ao domingo, constando de celebração de missa e procissão pelas ruas da terra, sendo organizada geralmente por uma comissão de festas que preparava o decorrer da mesma com alguma antecedência.

Procissão de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires. À esquerda, a carregar o andor, encontra-se Sílvio Soares (marido de Maria José Soares) e à direita José Bonaparte. A criança, que segue à frente vestida de anjo, foi identificada como sendo Mila Cortegaça. 1965. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria José Albuquerque Soares.

De acordo com a ata da comissão da festa religiosa, datada de 1949, e publicada no livro de Fernando Fitas36, ficamos a saber que a comissão se encarregava de várias tarefas, como a limpeza dos altares, a conservação dos objetos de culto e das imagens que seguiam nos andores, a realização de pequenos restauros na igreja e os preparativos da procissão e dos andores. Para tal, era essencial que esta comissão angariasse fundos, através de peditórios, que assegurassem todas as despesas necessárias, incluindo um bodo para os pobres, distribuído no domingo de manhã, durante a festa.

Como nos recordou Maria Emília Lopes (nascida em 1947, na Aldeia de Paio Pires), existia uma Comissão de Festas da Sociedade Musical 5 de Outubro, que se encarregava da montagem dos mastros e dos arcos e da sua ornamentação, localizados junto à antiga sede desta sociedade. Nessas comissões de festas incluíam-se normalmente Carlos Costa e Jerónimo Costa, ambos irmãos, e respetivamente pai e tio de Maria Emília Lopes, figuras muito respeitáveis nesta coletividade, que trabalhavam anualmente por gosto e carolice na montagem dos arraiais, contribuindo para o embelezamento destas festas.

Depois das cerimónias religiosas, eram os vistosos arraiais da festa que davam um colorido especial à terra. 33

Ibidem, p.38.

34

«O Primeiro Centenário das Festas a Nossa Senhora da Anunciada em Paio Pires!», Tribuna do Povo, n.º 18 (19 de agosto 1951), p.2.

35

«As Tradicionais Festas a Nossa Senhora da Anunciada», Tribuna do Povo, n.º 113 (7 de agosto de 1955), p.2.

36

FITAS, Fernando (2001), Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória: as Filarmónicas, Seixal, Câmara Municipal do Seixal, p. 117-119.

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Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires, dias 31 de julho, 1, 2 e 3 de agosto de 1948, vendo-se a rua enfeitada com arcos. Ao centro veem-se os irmãos Carlos Costa e Jerónimo Costa.1948. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Comissão das festas de Aldeia de Paio Pires. Em cima, da esquerda para a direita: Bizarro, Carlos Costa, Jerónimo Costa, Fernando, Carlos?, Joaquim Anselmo? Em baixo, da esquerda para a direita: não identificado, Rosa, Hermínia, não identificada, Maria Ilda, Vitória, restantes elementos não identificados. 5 de agosto de 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

«Aqui já estava a festazinha composta, onde as vendedeiras vendiam as cavacas, vinham não sei de onde e vendiam assim na rua». (Maria Emília Lopes)

Aspeto da Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires. Realizada nos dias 5, 6, 7 de agosto, 1939. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

A festa costumava ser de tal modo concorrida, que a transportadora de autocarros Beira-Rio, que servia Aldeia de Paio Pires e aí possuía um terminal rodoviário, costumava reforçar as suas viagens nesta altura, como revela o periódico Tribuna do Povo, datado de 19 de agosto de 1951, que referia que Jerónimo Costa e Carlos Costa na Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires. 1 de agosto de 1948. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

«A Beira-Rio foi obrigada a manter um initerrupto vai-vém de camionetas»37. 74


Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires. Largada de touros na Avenida José António Rodrigues. 2 de agosto de 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Hermínia Bento.

Aspeto da Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires, vendo-se a rua enfeitada com arcos. Realizada nos dias 31 de julho, 1, 2 e 3 de agosto de 1948. EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Emília Lopes.

Como podemos ver nas fotografias cedidas por Maria Emília Lopes, na festa não faltavam também barracas de venda montadas, nem cenários improvisados para se tirar uma fotografia «à la minute», entre outras bancas de comes e bebes.

Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires Largada de touros na Avenida José António Rodrigues. 2 de agosto de 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Hermínia Bento.

Através das imagens cedidas por Hermínia Bento, datadas das festas de Aldeia de Paio Pires de 1951, e do artigo do jornal Tribuna do Povo, que se refere às festas nesse mesmo ano, constatamos que essa referência tauromáquica já estava presente nas mesmas. Menciona o referido periódico que: «no domingo foi largado um touro pelas ruas da povoação, o que provocou as peripécias e aventuras do costume, e consagrou a esta localidade, o título de toureira. À tarde a corrida foi animada por toureiros de fama, que trouxeram à praça a sua arte para admiração da afición, que por aqui se vai criando».38

Festa de Nossa Senhora da Anunciada, Aldeia de Paio Pires. Garraiada em arena. 2 de agosto de 1951. EMS-CDI – Imagem cedida por Hermínia Bento.

Entre os momentos de diversão da festa profana, destacavam-se as largadas de touros, na Avenida José António Rodrigues, e as touradas na antiga arena, sendo a tauromaquia um elemento identitário que distingue esta festa das restantes do concelho do Seixal, o que tem perdurado até aos dias de hoje. 37

«O Primeiro Centenário das Festas a Nossa Senhora da Anunciada em Paio Pires!», Tribuna do Povo, n.º 18 (19 de agosto 1951), p.2.

38

Idem.

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Ontem como hoje, a largada dos touros corresponde a um dos momentos de maior emotividade destas festas populares.

Um dos momentos importantes para a construção da identidade arrentelense era sem dúvida a sua festa tradicional em honra de Nossa Senhora da Soledade, realizada a 1 de novembro, Dia de Todos os Santos. Com esta festividade recorda-se o tenebroso dia do terramoto de 1755, e agradece-se o Milagre das Águas, que segundo a tradição se deve a Nossa Senhora da Soledade, a santa que salvou a povoação de Arrentela do dilúvio, ao fazer descer o nível das águas do rio, evitando assim a destruição de casas e edifícios e a calamidade pública nesta localidade. Devido a esta dívida de gratidão, esta santa passou a ser a mais venerada em Arrentela, apesar de a sua padroeira ser Nossa Senhora da Consolação.

Festa de Nossa Senhora da Soledade, Arrentela

Desde essa data que esta festa se celebra como manifestação da devoção da população, embora, segundo informação recolhida no jornal Tribuna do Povo, a festa não se tenha realizado em 1919, tendo sido proibida e perseguida, o que pode ter coincidido com um período mais conturbado da República, com muitos desacatos e movimentos de insurreição popular. E, desse modo, se impediu que as festas se realizassem, ainda que com tentativas da população de fazer sair a procissão da igreja. Mas, com as ruas patrulhadas e vigiadas, nesse ano as festas não puderam sair à rua em Arrentela. «Na véspera, com o início das festas, começaram logo as discussões e as ameaças que a procissão não sairia. No dia seguinte, após a missa solene, e com grande concorrência de fiéis se procedia aos preparativos para organizar a procissão, chegaram inesperadamente uma força da GNR do Seixal, a pé e a cavalo, com ordens terminantes para não deixar sair a procissão da igreja, ainda que para tal fosse necessário empregar a força, inclusive impedir pelas armas tais intentos.» 39 Outra memória importante associada às festas da Nossa Senhora da Soledade remonta a 1949. No dia seguinte à realização da procissão, após a recolha dos andores na igreja, tombou sobre o andor de Nossa Senhora da Soledade uma vela acesa, que estava colocada num dos altares por pessoas que faziam as suas orações ou cumpriam as suas promessas. A imagem que na altura era de roca, articulada e vestida com um manto de tecido, facilmente pegou fogo, consumindo em instantes a imagem e o andor, colocando em perigo outros bens, localizados no lado direito da entrada da igreja. Como recorda Manuel Fernando Aleixo.

Procissão de Nossa Senhora da Soledade, realizada a 1 de novembro. Na imagem vê-se Moisés Gouveia, à esquerda, e Agostinho Silva, à direita, segurando o andor de Nossa Senhora de Fátima. Anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Agostinho Silva.

39

«Voz de Arrentela», Tribuna do Povo, n.º 48 (16 novembro de 1952),p.2.

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Graças ao envolvimento da população, sobretudo das pessoas mais notáveis da localidade, foi possível organizar-se uma comissão para angariar fundos para a aquisição de uma nova imagem, tendo feito parte da mesma os avôs paterno e materno de Manuel Fernando Aleixo. Na altura, esta comissão conseguiu obter aprovação superior para a alteração da imagem junto do Patriarcado, dirigindo-se pessoalmente ao cardeal Cerejeira para expor a situação. Com a aprovação da igreja e os fundos monetários recolhidos, foi possível comprar uma nova imagem de Nossa Senhora da Soledade, mais resistente ao fogo, e continuar a realizar-se a procissão como de costume. A festa religiosa inclui momentos diferentes, começando na véspera, à noite, com a Missa da Ladainha e os seus cânticos. No dia 1 de novembro, a alvorada é assinalada com morteiros, seguindo-se as missas e a procissão, que sai da igreja depois de almoço. Antigamente, seguiam no cortejo da procissão vários andores com as imagens existentes na igreja, incluindo o Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Teresinha, Santa Filomena, Mártir S. João, Nosso Senhor dos Passos e, por fim, a Nossa Senhora da Soledade.42 No presente, muitas destas imagens ficam na igreja, por um lado por questões relacionadas com a sua preservação e, por outro, por não haver braços suficientes para os levar, pois só para carregar o andor da Nossa Senhora da Soledade serão precisos oito homens, aproximadamente, por ser uma imagem muito pesada. Agostinho Silva, natural de Arrentela, recorda-se de ter participado na procissão, preparando e carregando os andores. Segundo ele, os andores eram transportados exclusivamente por homens, existindo muitos que o faziam para cumprir uma promessa. Atualmente, os andores são levados pelas forças de segurança, como os Fuzileiros ou a Marinha, por existirem poucos homens a participar no cortejo.

Procissão de Nossa Senhora da Soledade, no dia 1 de novembro, em Arrentela, vendo-se a imagem de Nossa Senhora da Soledade. Anos 50 do séc. XX? EMS-CDI – Imagem cedida por José Luís Pedro.

«Os sinos tocaram a rebate e toda a população da Arrentela interrompeu os seus afazeres para se dirigir à sua igreja.»40 De acordo com notícia publicada no jornal Tribuna do Povo, de 2 de novembro de 1952:

«Na altura, eu gostava de ir para a igreja para equipar os santos e pôr os santos nos andores (…) gostava de ir para o altar de S. Sebastião e pôr-lhe as setas, aquelas coisas de miúdos. Antigamente não havia Marinhas, não havia Forças Armadas, hoje é que os andores pedem às Forças Armadas para ir... Hoje é quase tudo mulheres atrás dos andores e na altura era só homens». (Agostinho Silva)

«Chegou a recear-se pela continuação da festa. Mas, mesmo sem imagem, não se deixou de fazer no ano seguinte».41

40

ALEIXO, Manuel Fernando, «A família Pedro Aleixo», no blogue Neto do Biobó: estórias de uma vida preenchida, em linha, consultado em 26 de fevereiro de 2021,

disponível em: http://neto-do-biobo.blogspot.com/2012/12/a-familia-pedro-aleixo.html. 41 42

«Arrentela fez ontem com particular brilho a Festa de Nossa Senhora da Soledade: Festa de Todos os Santos», Tribuna do Povo, n.º 47 (2 de novembro de 1952), p.1. Cf. BARBOFF, Mouette (2005), O Milagre das Águas: o Terramoto, Arrentela e a Nossa Senhora da Soledade, Seixal, Câmara Municipal do Seixal, Arrentela,

Junta de Freguesia de Arrentela, p. 94.

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Era comum também acenderem-se fogueiras, um pouco por todo o lado, onde as pessoas se juntavam, assando peixe, chouriços, castanhas ou outro petisco.

A procissão tem por costume iniciar-se na Calçada do Adro, junto à porta da igreja, seguindo em direção ao Largo Cândido dos Reis, junto ao rio, onde se faz a bênção ao mar e às embarcações, em agradecimento do milagre ocorrido em 1755. Segundo o testemunho de José Luís Pedro, o trajeto da procissão poderá ter sido realizado noutros tempos pela calçada, o que dificultaria muito a circulação da mesma, por ser demasiado íngreme, mas não se conhecem vestígios que o comprovem. Atualmente, o cortejo da procissão segue por fora do núcleo urbano antigo de Arrentela.

Festas de S. Pedro no Seixal No Seixal, a grande festa popular e religiosa é a de São Pedro, celebrada a 29 de junho, dia consagrado a este santo padroeiro dos pescadores, que evoca as tradições marítimas do Seixal. No passado, a organização da festa de São Pedro cabia às duas sociedades filarmónicas do Seixal, a Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense e a Sociedade Filarmónica União Seixalense, que decoravam e ornamentavam as ruas e os arraiais consoante a sua localização geográfica. A SFDTS enfeitava o Largo da Igreja e as ruas localizadas nas imediações da sua sede, enquanto a SFUS se encarregava da decoração e montagem dos arraiais na Praça Luís de Camões. Ambas estavam envolvidas na programação da festa, realizando concertos das suas bandas, bailes, quermesses e outros motivos de interesse.

«Segundo dizem os antigos, a procissão chegou muitos anos a descer e a subir a calçada, é o que eu tenho ouvido dizer, porque não há fotografias disso, não há nada. Subir e descer a calçada era muito difícil para as pessoas ombrear com as estátuas, difícil porque aquilo não era plano, já hoje é difícil sendo aquilo plano, agora com essa situação era muito mais difícil.» (José Luís Pedro) No fim do cortejo, seguia a Banda da Sociedade Filarmónica União Arrentelense, uma das referências desta procissão, figurando: «entre o último andor o da Nossa Senhora da Soledade e os crentes acompanhantes.»43 Segundo palavras de Manuel Fernando Aleixo, as atuações da banda começavam a ser preparadas semanas antes. «ensaiando com afinco as marchas a propósito.»44 A procissão era acompanhada de cânticos em honra de Nossa Senhora. «Era espetacular ver passar a multidão carregando os andores, mas o mais bonito era sem dúvida o andor que carregava a Nossa Senhora da Soledade, protetora das gentes de Arrentela, desde o terramoto de 1 de novembro de 1755». 45

Aspeto dos arraiais populares organizados pela SFUS, na Praça Luís de Camões, Seixal. 1939? EMS-CDI – Imagem cedida por Matias Lucas.

A festa de Nossa Senhora da Soledade terminava geralmente com momentos musicais e de convívio na sede da SFUA, havendo quem ainda se lembre dos concertos no coreto, no jardim, ou na antiga sede desta coletividade, e dos bailes que se faziam. 43

ALEIXO, Manuel Fernando, «A “minha” Arrentela: altos e baixos», no blogue Neto do Biobó: estórias de uma vida preenchida, em linha, consultado em 26 de fevereiro

de 2021, disponível em http://neto-do-biobo.blogspot.com/2013/02/a-minha-arrentela-altos-e-baixos.html. 44

Idem.

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Nas fotografias antigas destes arraiais populares da Praça Luís de Camões, sobressaem os vistosos arcos, para os quais terão contribuído muitos associados da coletividade, na pintura, na conceção e montagem, entre os quais Viriato Pescadinha, que foi um dos mentores desta iniciativa. «O arraial da Sociedade União Seixalense começava aqui, onde é a escola, na Praça Luís de Camões e depois estendia-se até ao fim da rua Cândido dos Reis e da Miguel Bombarda, e depois na rua principal, na Paiva Coelho, também dividiam, como se houvesse uma divisão, daqui para ali é a velha, daqui para ali é a Nova. Aspeto dos arraiais populares organizados pela SFUS, na Praça Luís de Camões, Seixal. 1939? EMS-CDI – Imagem cedida por Matias Lucas.

Mas eram arraiais feitos sem ser por profissionais, eram pessoas que sabiam de carpintaria e faziam arraiais soberbos. Isto tinha muita vida.» (Maria de Lourdes Brites) Em ambos os arraiais, da Praça Luís de Camões e do Largo da Igreja, havia lugares para comes e bebes, incluindo pirolitos e cervejas, vendo-se geralmente nas esplanadas muitos homens em alegre convívio. Segundo as memórias de Ângelo Matos Piedade, no Largo da Igreja, durante as festas de São Pedro, não faltavam: «o arraial, os concertos das bandas, os fados, a barraca das farturas e dos mexilhões de cebolada; as vendas das queijadas de Sintra, suspiros, pinhoadas e lagartos.»46 Os bailes duravam a noite inteira neste largo, até à hora em que os mais resistentes ou os madrugadores seguiam na Marcha das Canas, pelas 7 da manhã.

Aspeto dos arraiais populares organizados pela SFUS, na Praça Luís de Camões, Seixal. 1939? EMS-CDI – Imagem cedida por Matias Lucas.

Na Sociedade Filarmónica União Seixalense, ainda há quem se recorde de existir uma comissão de festas, que organizava vários eventos festivos, constituída por um grupo designado de «Anjinhos Enrascados». Além da organização de outros eventos festivos, foi esta comissão que teve a iniciativa de montar o primeiro arraial elétrico, em 1935, nas festas da Atalaia (outra festa que se comemorava no Seixal no último fim de semana de agosto, na Praça Luís de Camões, nas imediações do coreto da sociedade, mas que deixou de ser celebrada há muitos anos). Este arraial, alimentado a luz elétrica, foi o primeiro a ser instalado no Seixal, contando com a colaboração do dono do antigo cinema, que emprestou o gerador da máquina de projeção para iluminar os arraiais.

45

Esplanada de café, no Largo da Igreja, durante a Festa de S. Pedro, no Seixal. [s.d.] EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra.

Texto escrito por José Luís Pedro, «O Meu Caminho», 2011.

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Segundo Fernando Fitas47, que recolheu o testemunho de um dos responsáveis pelo sucesso deste cortejo, Emílio de Oliveira Rebelo, músico da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, esta marcha terá começado por se chamar de Marcha das Camarinhas, em 1950, mas o povo celebrizou-a como Marcha das Canas.

Festa de São Pedro, no Seixal. Baile no Largo da Igreja. [s.d.]. EMS-CDI

De acordo com o testemunho deste músico recolhido por Fernando Fitas48, a inspiração desta marcha terá sido de outro músico associado da SFDTS, Arnaldo Tavares, que teve a ideia de se fazer uma marcha com canas, à semelhança do que se fazia em Cacilhas, Almada.

Festa de São Pedro, no Seixal. Marcha das Canas. [s.d.] EMS-CDI

A marcha passou a incluir um desfile nas primeiras horas da manhã do dia de São Pedro, até à Quinta Manuel André, e mais tarde à Quinta Grande, onde os foliões iam lavar a cara ao poço, levando consigo canas, com uma toalha branca presa na ponta. O cortejo seguia ao som da marcha, que anualmente era composta por Emílio Rebelo. Esta tradição popular criada pela Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense tornou-se assim bastante emblemática, envolvendo magotes de gente. Diz, quem se recorda das marchas mais antigas, que o cortejo de 1971 terá levado cerca de duas mil pessoas àquela hora matutina. Seja um engano da memória ou não, as fotografias revelam uma enorme adesão da população. A Marcha das Canas, segundo Irlando Tavares, terminava no Largo da Igreja, com um grande bailarico, a que se seguia uma almoçarada.

Festa de São Pedro, no Seixal. Marcha das Canas. Entre os músicos reconhece-se Emílio Rebelo, o primeiro à esquerda, seguindo-se-lhe João Manuel Tavares, e o último à direita é Raimundo. 29 de junho de 1971. EMS-CDI – Imagem cedida por Irlando Tavares.

46

PIEDADE, Ângelo Matos (2006), Memórias Escolhidas 1932/1951, Reed, Lisboa, p. 66.

47

FITAS, Fernando, «Histórias Associativas (7) – Designada de Marcha das Camarinhas o Povo rebatizou-a de Marcha das Canas», Jornal Comércio do Seixal

e de Sesimbra, 24 de março de 2017. 48

Cf. FITAS, Fernando (2001), Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória: as Filarmónicas, Seixal, Câmara Municipal do Seixal, p. 22.

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«Eu era miúdo quando a Marcha das Canas estava no seu auge (…). Depois davam a volta ao Seixal, faziam as contradanças, ficavam uma manhã inteira no bailarico (…) durava até ao meio-dia. (…) depois começavam os petiscos, só lá para as tantas é que as pessoas iam descansar.» (Irlando Tavares) Tal como as outras festas anteriormente mencionadas, a festa religiosa de São Pedro tem o seu ponto alto na procissão, que se realiza durante a tarde do dia 29 de junho, começando e acabando no Largo da Igreja. No passado, como no presente, é sempre uma procissão muito concorrida, que atrai muita gente no seu cortejo. Vejamos a descrição que é feita da mesma, em junho de 1959, no jornal Tribuna do Povo:

Aspeto da procissão de São Pedro, a percorrer a Rua da Liberdade, no Seixal, vendo-se, em primeiro plano, a banda da Marinha a tocar. Final dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Vítor Lima.

«Às 16h30 começou a movimentar-se a imponente procissão que percorria entre alas de milhares de fiéis, as ruas da parte baixa da vila e o Bairro Novo. À frente seguiam seis componentes da Guarda Nacional Republicana, com a sua vistosa farda de gala, montando garbosos cavalos brancos. Estandartes das associações paroquiais entremeavam-se com os doze andores, que iam enfeitados a rigor, avultando as maravilhosas e antigas imagens de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da freguesia São João Batista, Santo António, S. Sebastião e as duas da particular devoção dos marítimos- Nossa Senhora da Boa Viagem e S. Pedro. As filarmónicas das Sociedades Timbre Seixalense e Sociedade União Seixalense imprimiam grandiosidade (...) executando marchas religiosas. (...) Frente ao mar conforme a tradição foi dada a bênção com o Santo Lenho (...).»49

Procissão da Festa de São Pedro, no Seixal, durante a bênção dos barcos. Final dos anos 50 do séc XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Vítor Lima.

Logo a seguir ao momento da bênção das embarcações, junto ao rio, descrito por este periódico, a procissão deste ano de 1959 teve um final inusitado, tendo ficado na memória das gentes que estiveram nas festas nesse ano, quando os foguetes começaram a ser lançados e se deu um aparatoso acidente.

Procissão da Festa de São Pedro, nas ruas do Seixal. [s.d.]. EMS-CDI – Imagem cedida por José Albino Rebelo.

49

«Festejos no Seixal», Tribuna do Povo, n.º 207, 5 de julho de 1959, p.4.

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Festa de São Pedro, no Seixal, junto ao cais. Final dos anos 50 do séc. XX. EMS-CDI – Imagem cedida por Vítor Lima.]

Procissão da Festa de São Pedro, na marginal, Seixal. Seguem na procissão António Gavião, António Chanoca «Santana», Vicente, Manuel «da Sociedade», Fernando Serra, Adelino Tavares (pai), Ernesto Calqueiro, Gastão, Dário Moura, Avelino Serra? À frente, a criança que segue à direita é José Luís, filho do «Joca». Anos 50 do séc. XX? EMS-CDI – Imagem cedida por Maria Raquel Tavares Serra.

«Eu estava com o estandarte da Nossa Senhora da Conceição, com um fato muito bonito e fui parar abaixo na praça, fiquei com o fato todo roto, passaram por cima de mim, mas não larguei o estandarte.» (Manuela Partidário) E assim, devido às peripécias que envolveu, esta tornou-se certamente numa das festas de São Pedro que os mais antigos recordam com mais facilidade, sendo várias vezes referidos alguns destes episódios, quando se evocava as festas de São Pedro, no Seixal, quer no grupo de trabalho, em tertúlias ou sessões públicas de apresentação do projeto. Tenha sido pelo medo, pelo susto, ou pelo inusitado da situação imprevista, a verdade é que foi um marco que ficou na memória de quem viveu esse dia.

«O fogo inesperadamente pegou-se ao molho de foguetes e morteiros que por imprevidência se encontrava junto aos improvisados fogueteiros. Um fuzilar aterrador se desprendeu da pilha de explosivos, atroando os ares, provocando uma imensa cortina de fogo e fumarada que por instantes envolveu todo o cais (…) um corpo se viu rolando pela rampa até às águas, que logo ficaram tingidas de sangue. Grande parte da multidão tomada de pânico, correu apavorada, acotovelando-se, pisando-se, gritando. (…) o homem que fora projetado no meio das chamas para a água, nadou para a margem onde foi apanhado por vários populares. Verificou-se então tratar-se do Sr. António Pereira Agostinho, mais conhecido por «Manetas» (…) [que foi] socorrido na clínica de Santo António da Cova da Piedade, onde lhe foram aplicados os primeiros tratamentos»50 Segundo alguns dos testemunhos recolhidos sobre este acontecimento, compreende-se que tal situação terá sido bastante desconcertante, espalhando o pânico entre a população que, aflita, corria sem direção. «Houve aqui um acidente (…) tinha eu uns 17 anos. Estava o «maneta» a lançar fogo, deixou cair um morteiro ao pé dos outros... Bam!!! Foi para o ar... os santos, Nossa Senhora de Fátima, o S. Pedro, foi tudo abaixo, quem estava a segurar os andores deixaram os andores para o chão.» (Fernando Tasquinha Rebelo) 50

Idem, p.4.

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Conclusão Caso disponha de fotografias antigas, saiba as histórias que elas contam, ou conheça pessoas que possam tê-las e documentá-las, contacte o Centro de Documentação e Informação do Ecomuseu Municipal do Seixal para empréstimo ou cedência das imagens, que serão digitalizadas e divulgadas através das coleções do Ecomuseu. Se tiver mais informações sobre as fotografias aqui publicadas, contacte também o Centro de Documentação e Informação.

Neste catálogo percorremos alguns dos temas que foram suscitados pelas fotografias que recolhemos no desenvolvimento do projeto Histórias & Memórias Fotográficas. Através delas conta-se uma parte da história de vida não só dos seus protagonistas, mas do próprio concelho do Seixal, cenário onde tudo se desenrola. Narraram-se histórias de infância, de famílias, de labutas e de trabalho, de dons extraordinários, de convivência e camaradagem, de vitórias e de tristezas, de momentos que ficaram para sempre imortalizados numa imagem e marcaram a vida de quem os viveu. Olhadas agora numa perspetiva patrimonial, histórica e antropológica, essas fotografias antigas ganham uma nova vida, transformando-se num olhar sobre o passado, que nos revela práticas, saberes e modos de estar, testemunhos de um tempo que já passou e tem muito para nos contar e ensinar. A sua documentação e divulgação permite assim relembrar e reconstituir uma paisagem humana, datada temporalmente, levantando interrogações e uma reflexão sobre os efeitos da passagem do tempo, onde todos nos podemos reconhecer, como se as fotografias tivessem um efeito de espelho, que nos devolve um questionamento sobre a vida. Em jeito de conclusão, gostaríamos ainda de sublinhar que as memórias fotográficas nunca se esgotam, são apenas um fio que se quer continuar a desenrolar e a desvendar, encontrando outros enfoques e perspetivas, novos contributos e testemunhos, explorando também temas e vivências de outros lugares do concelho do Seixal, sobretudo nas freguesias em que este projeto ainda não conseguiu abranger. Nesse aspeto, a memória, como José Saramago escreveu, é como um «novelo emaranhado», que se desfia, como se fosse um rio, por onde se navega numa viagem sem ter fim.

Contacte-nos através de e-mail: ecomuseu.cdi@cm-seixal. pt ou pelo telefone 210 976 112.

«Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos cegos, puxo um fio que me aparece solto. Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. É um rio. Corre-me nas mãos, agora molhadas.»

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FICHA TÉCNICA Edição Câmara Municipal do Seixal Pesquisa, recolha de materiais e texto Ana Durão Machado, Ecomuseu Municipal do Seixal Apoio à edição Fernanda Ferreira, Ecomuseu Municipal do Seixal Fotografias Centro de Documentação e Informação do Ecomuseu Municipal do Seixal Empréstimos de colaboradores no projeto Paginação Ana Luísa Freire e Leonor Delicado, Divisão de Comunicação e Imagem da Câmara Municipal do Seixal Revisão Ana Valentim, Divisão de Comunicação e Imagem da Câmara Municipal do Seixal Impressão e acabamento Estúdios Fernando Jorge, artes gráficas Ldª 1.ª edição Abril 2022 Tiragem 500 exemplares ISBN 978-972-8740-78-8

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Informações Ecomuseu Municipal do Seixal­– Centro de Documentação e Informação Núcleo de Mundet – Servicos Centrais Praça 1.º de maio, n.º1, 2840-485 Seixal Telefone: 210 976 112 Email: ecomuseu.cdi@cm-seixal.pt


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