Ponte de Lima tem um verdadeiro caminho de peregrinos de Santiago

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Diário do Minho Este suplemento faz parte da edição n.o 29218 de 9 de Maio de 2011, do jornal Diário do Minho, não podendo ser vendido separadamente.

Patrimonio

CAMINHO DE SANTIAGO P o n t e

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II

Patrimonio Introdução

Hoje, o suplemento “património” do Diário do Minho é algo diferente. O tema é o Caminho de Santiago, de Ponte de Lima, um troço imensamente rico, a nível de património material e imaterial. No entanto, é impossível falar do Caminho de Ponte de Lima, sem fazer o seu enquadramento nacional e internacional, nomeadamente a origem da devoção e a sua importância em termos europeus. O Caminho de Ponte de Lima tem cerca de 30 quilómetros, quase exclusivamente por campos. Ou seja, enquadra-se na perfeição na origem da palavra peregrino, isto é, aquele que atravessa os campos [Per Agros]. Uma das diferenças deste suplemento em relação aos outros é que aborda não um monumento, mas várias estruturas com interesse patrimonial e imaterial: capelas, cruzeiros, fontenários, pontes, alminhas, entre outros elementos, além de contos, estórias e lendas. O Caminho de Santiago está mais vivo do que nunca. O Diário do Minho foi testemunha disso mesmo, pela quantidade de peregrinos, das mais diversas proveniências, que nesse dia faziam o percurso. Até ao fim do ano, o caminho será geo-referenciado. O albergue de Ponte de Lima, aberto em 2009, está a ser uma mais-valia não só para o caminho como para o município.

A

devoção a Santiago é antiquíssima, podendo ter origem na Alta Idade Média. O fenómeno, ainda que numa junção de lendas, estórias, história, fé e política, tornou-se quase universal, dando origem a grandes peregrinações pelos Caminhos de Santiago de Compostela. A investigação e o debate à volta dos caminhos de Santiago, na Galiza, já produziu uma enorme quantidade de bibliografia. Por isso, até porque o nosso espaço é limitadíssimo, vamos apenas deixar pistas sobre a origem do fenómeno, pinceladas sobre o contexto europeu e português e concentrando-nos no Caminho de Ponte de Lima. Apesar das controvérsias, é dado como certo que S. Tiago terá evangelizado na Hispânia, mais precisamente em Iria Flavia, actual Padrón, Galiza. Depois de martirizado, o corpo é trazido pelos discípulos e sepultado num “Campus Stellae”, Compostela, perto de Padrón. Segundo Arlindo de Magalhães Ribeiro da Cunha, autor da publicação “Santiago em Portugal — a devoção e a peregrinação”, o fenómeno terse-á afirmado no contexto do reino das Astúrias, cobiçado pelos muçulmanos. Nessa época, tropas cristãs de Ramiro I, das Astúrias, derrotaram as muçulmanas. A partir de então, o apóstolo tornou-se patrono

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PEREGRINAÇÃO A COMPOSTELA GANHOU FORÇA A PARTIR DO SÉCULO XI, COM A CONSTRUÇÃO DA CATEDRAL

Fazer o Caminho de Santiago é uma «plástica para a alma» da luta contra os infiéis. Não é por acaso que Santiago aparece representado como o “mata-mouros”. A construção, no século XI, da grande catedral de Compostela, foi o início de uma época de ouro das peregrinações. Desde sempre, reis, papas, religiosos e as mais variadas autoridades civis e militares fizeram o Caminho. Mas também os pobres, movidos sobretudo pela fé, fizeram questão de fazer o percurso. E terão sido estes que, atravessando os campos a pé, deram origem à palavra peregrino, do latim “per agros”, aquele que atravessa os campos. Estes peregrinos distinguiam-se dos que iam por estradas romanas ou outras em carros de bois, a cavalo ou ainda em liteiras. As peregrinações transformaram-se num fenómeno quase universal, mormente na Eurora, e surgiram vários caminhos. É por isso que a Santiago chegam peregrinos por mil caminhos diferentes e de mil maneiras diferentes. E é também por isso que, ao longo do percurso, foram construídas alminhas, cruzeiros, fontenários e albergues para apoiar os peregrinos. O Diário do Minho conversou com Ovídio Vieira, duplamente responsável pelo Albergue de Peregrinos de Ponte de Lima. Como funcionário da Câmara Municipal é responsável pela instituição; e como peregrino, também é o gestor do espaço, em regime de voluntariado. Já fez o Caminho por diversas vezes. Explica que nem sempre o fez por fé, mas recomenda vivamente a

> Na Facha, a paisagem foi enfeitada com vieiras, símbolos do Caminho de Santiago

todos aqueles que possam fazer o Caminho que o façam. E justifica: «o Caminho de Santiago é a plástica para a alma». Faz questão de dizer que a frase não é dele, mas de uma peregrina de Lisboa, da associação de peregrinos “Via Lusitana”. «Eu acho que ela tem razão. É, de facto, uma plástica para a alma», concorda Ovídio Vieira. Introspecção e fé Ainda sobre a importância de se fazer o Caminho, este peregrino reconhece que, quando começou,

> Peregrinos sul-africanos junto às alminhas de Santiago, próximas da capela de S. Sebastião,

não era o melhor exemplo de peregrino, mas hoje não dispensa uma ida anual a Santiago. E não é tanto por razões de fé. «O Caminho de Santiago é um espaço de introspecção e de procura de nós mesmos. Um espaço de busca interior. Se isto é fé ou não, não sei. Também não sei onde termina a busca interior e começa a fé. A única coisa que sei é todos os anos faço o Caminho, porque preciso dele para me encontrar comigo mesmo. Mas eu vi a fé dos outros e comecei a ter fé na fé dos outros. Não sei se isto já é ter algu-

ma fé. E enquanto puder, vou lá dar um abraço ao apóstolo Santiago. Ele pode contar isso», refere Ovídio Vieira, em tom de brincadeira. A importância do Caminho ultrapassa as fronteiras da fé. É também um espaço de património e cultura. Em 1987, foi declarado Primeiro Itinerário Cultural Europeu. Em 1993, o Caminho Espanhol foi classificado como Património da Humanidade. Outros caminhos esperam a mesma classificação. O agora beato João Paulo II, como peregrino, também ajudou a revitalizar o Caminho.

> Além da sinalética, a Câmara de Ponte de Lima vai geo-referenciar o Caminho


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III

Ponte de Lima tem um verdadeiro caminho de peregrinos de Santiago

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troço do Caminho de Santiago, no território de Ponte de Lima, faz parte do chamado Caminho Central que começa no Porto e acaba em Santiago de Compostela. Sem descortesia pelos restantes troços, o que se pode dizer é que Ponte de Lima tem um verdadeiro caminho de peregrinos de Santiago, onde não falta nenhum ingrediente; ou seja, tem um bom percurso por campos, [per agros], fora do rebuliço e dos perigos das estradas nacionais, tem alminhas, capelas e igrejas, cruzeiros, pontes, fontanários, casas com histórias, além das indispensáveis lendas e ditos populares, que ajudam a apimentar o troço. O Caminho entra no concelho de Ponte de Lima, proveniente de Barcelos, entre Balugães e Poiares. Depois passa por freguesias como Navió, Vitorino dos Piães, Facha, Seara, Correlhã e Ponte de Lima, onde está o albergue, à saída da Ponte. Depois do albergue, os peregrinos passam por Arcozelo, Cepões e Labruja, até ao Alto da Portela, que é o local mais emblemático do Caminho, pela dureza da subida da Serra da Labruja. «Costumo dizer aos peregrinos que quem subir a Serra da Labruja chega a Santiago», disse. Dentro do concelho, o Caminho é uma conjugação de ruralidade e património diverso. «Felizmente, não coincide com as estradas nacionais, com excepção de meia dúzia de metros. Este caminho permite que o peregrino encontre a paz e a introspecção que procura. O peregrino pode andar à vontade, porque apenas é “incomodado”, de vez em quando, por um tractor ou uma motorizada», analisa. Por pura e feliz coincidência, no dia em que o Diário do Minho fez o troço, constatou que o Caminho continua a ser percorrido por muita gente de todo o lado. Encontrámos peregrinos nos locais mais simbólicos como na capela da Senhora das Neves, com um cruzeiro e uma ponte; junto ao cruzeiro do lugar de Pedrosa, também em Correlhâ; junto à capela de S. Sebastião e alminhas de Santiago, na Facha; na capela da Senhora das Neves, em Labruja; na Ponte da vila, entre outros locais, além do próprio albergue. Encontramos peregrinos portugueses, italianos, alemães, sul-africanos, além de outras proveniências. «A vegetação, a água, as pedras do caminho e o silêncio são a melhor companhia do peregrino. Porque o peregrino está à procura da paz e do silêncio. E só consegue esta paz, esta introspecção, se tiver tranquilidade e segurança. Só neste contexto consegue a tal plástica para a

> A Vila de Ponte de Lima agrada aos peregrinos e desperta o desejo de regressar

alma. É melhor fazer o Caminho do que ir a um psiquiatra», garante. Mas o troço vai ficar melhor ainda. A autarquia de Ponte de Lima está a preparar uma boa geo-referenciação do Caminho. A ideia é facilitar a utilização de GPS. «O caminho está bem marcado com setas amarelas para Santiago e azuis para Fátima. Gostaríamos que, até ao final do ano, o Caminho estivesse marcado com sinalização definitiva, tanto na direcção de Santiago como na direcção de Fátima. O objectivo é colocar as setas, que já estão prontas, em casas, com a devida autorização dos

proprietário, por forma a estarem menos sujeitas a vandalismos e roubos. Queremos ser o primeiro concelho do país a ter sinalização definitiva», desejou Ovídio Vieira. Caminho ensina a viver feliz com pouco Segundo este responsável, o Caminho de Santiago ensina outras lições aos peregrinos. Porque a dureza do percurso e o cansaço obrigam-nos a reflectir sobre a vida. «Há muitas coisas que podemos associar ao caminho. O desprendimento, por exemplo. Porque, na

> Conjunto muito interessante em Correlhã, com peregrinos, capela e cruzeiro

mochila temos que transportar apenas o que precisamos, o estritamente necessário. Ou seja, temos que nos desprender de muitas coisas que não fazem falta. Chegamos à conclusão que podemos viver com pouco, e sermos felizes». Mas o Caminho traz ainda outras vantagens, como o conhecimento da natureza humana e outras culturas. Porque o peregrino cultiva o companheirismo, a partilha e a entreajuda. «Costuma-se dizer que dentro de um albergue de peregrinos nunca falta nada. Se alguém está doente há sempre uma aspi-

rina. Se for preciso, juntam-se um coreano, um brasileiro, um alemão e um americano, cada um faz o seu prato e consegue-se um jantar internacional. Pega-se numa guitarra e cada um canta músicas da sua terra. O albergue só recebe peregrinos a pé, de bicicleta ou a cavalo. Não é uma casa de turistas. Tem andar com a sua credencial de peregrinos. Paga uma taxa de três euros, com direito a descanso numa cama, água para se refrescar, lavar a roupa e secar, além de uma vista fantástica proporcionada pela varanda do albergue.

> Encontramos peregrinos nos locais simbólicos do Caminho, como na capela de Labruja


Patrimonio

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AEROPORTO SÁ CARNEIRO ESTARÁ A AJUDAR NO CRESCIMENTO DE PEREGRINOS QUE PASSAM POR PONTE DE LIMA

Albergue com números extraordinários é mais-valia turística para o concelho

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Albergue de Peregrinos de Ponte de Lima, aberto em Julho de 2009, está com números extraordinários. O início de 2011 está a deixar os responsáveis muito optimistas em relação ao próximo Verão. Ovídio Oliveira, rosto do albergue, não tem dúvidas de que a estrutura já é , e vai continuar a ser, uma mais-valia turística. «Estou muito satisfeito com o trabalho que está a ser feito. Foi uma mais-valia para Ponte de Lima. A estrutura é uma mais-valia em termos turísticos, porque toda a gente gosta de Ponte de Lima, que é uma surpresa. Os peregrinos não esperam encontrar uma vila tão harmoniosa, com património e com tudo o que precisam, além de um bom albergue à sua espera. Em resumo, Ponte de Lima agrada-lhes», explicou Ovídio Vieira, que acrescenta ainda outro factor: os pontelimenses estão a gostar dos peregrinos, prestam-lhes apoio e oferecem sorrisos que abrem portas e corações. O crescimento do número de peregrinos em 2011 está a ser surpreendente, pela positiva. Desde o início do ano tem havido um aumento, mensal. «Só em Abril tivemos um aumento superior a 82 por cento. Em 2010, acolhemos 323 peregrinos e este ano foram 590. Ou seja, mais 267 peregrinos. Por isso, estamos com grande expectativa para o Verão», disse o responsável do albergue. O ano de 2009 foi de arranque, logo, era desconhecido e só funcionou a partir de Julho. Faltava a divulgação. Esperava-se que 2010, por ser Ano Santo Jacobeu, seria a explosão. Foi

> O albergue proporciona uma vista deslumbrante

> Albergue está a ter uma procura extraordinária em 2011

bom, mas não como se esperava. «2011 está a ser surpreendentemente muito bom em termos de peregrinos», garante Ovídio Vieira, que tem a seguinte interpretação: por um lado, porque o Caminho Português é cada vez mais procurado; por outro lado, a própria publicidade à volta do Ano Jacobeu deu a entender que os albergues estariam esgotados. O que não foi verdade. Mas fez com que muitos peregrinos decidissem adiar a viagem para um ano mais calmo, neste caso 2011. «É que o peregrino procura paz e introspecção e não rebuliço», lembrou. Mas Ovídio Vieira avança com outra explicação, também ela com lógica. Trata-se do «fenómeno alemão», que está a ser mais uma surpresa, com muitos peregrinos. «A abertura do aeroporto Francisco Sá Carneiro a voos de baixo custo foi positiva. É uma grande vantagem ter um aeroporto internacional, no início de um Caminho muito bem marcado. O que faz fluir peregrinos de todo o mundo. As pessoas chegam aqui por uma bagatela e entram logo no Caminho. Depois, em Santiago, também facilmente regressam a casa de avião», justificou. No ano passado, por duas ocasiões, o albergue esteve à beira de esgotar a lotação, com 58 peregrinos. Este ano já estiveram 56 numa só dia, no início da Semana Santa. De resto, os alemães lideram nas dormidas. No entanto, em termos de peregrinos que passam no albergue para carimbar a caderneta, a lista ainda é liderada por portugueses. Os peregrinos que passam pelo albergue não devem chegar aos 50 por cento dos que fazem o caminho.

> Os peregrinos têm boas condições para o descanso no albergue de Ponte de Lima


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