Catálogo da Exposição Memórias da Terra, das Águas e dos Povos do Museu de Arqueologia de Alvalade

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Ficha técnica TÍTULO: Memórias da terra, das águas e dos povos COORDENAÇÃO: Manuela de Deus – Direção Regional de Cultura do Alentejo (DRCALEN) / Fernanda do Vale e José Matias (DCD/CMSC) TEXTOS: Ana Maria Costa – Laboratório de Arqueociências (LARC) / Instituto Dom Luiz – Faculdade de Ciências – Universidade de Lisboa (IDL); Carlos Marques da Silva – Departamento de Geologia – Faculdade de Ciências – Universidade de Lisboa / Instituto Dom Luiz – Faculdade de Ciências de Lisboa (IDL); Carlos Tavares da Silva – Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS); Catarina Alves; Fernanda do Vale (DCD/CMSC); José António Falcão – Coordenador do Centro UNESCO de Arquitectura e Arte; José Carlos Quaresma – FCSH – Universidade de Lisboa / CHAM (Centro de Humanidades); José D’ Encarnação – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; José Matias (DCD/CMSC); Joaquina Soares – Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS); Manuela de Deus (DRCALEN); Miguel Serra – Arqueólogo – Divisão de Cultura e Património da Câmara Municipal de Serpa / Centro de Estudos e Arqueologia, Artes e Ciências do Património – Universidade de Coimbra / PAOC – Projecto Arqueológico do Outeiro do Circo (Beja);Milton Pedro Dias Pacheco – CHAM (Centro de Humanidades) / Centro Interdisciplinar de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra / Casa-Museu Elysio de Moura; Pedro Valente Fernandes – Universidade do Algarve; Rodrigo Banha da Silva – FCSH – Universidade de Lisboa / CHAM (Centro de Humanidades); Rui Fragoso – Empresa Smile at Culture, Lda.; Sofia Tereso – Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS) / Universidade de Coimbra / Instituto de Estudos Medievais (IEM) / Universidade Nova de Lisboa (FCSH). CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DO CATÁLOGO DE PEÇAS: José Matias (DCD/CMSC); JVZ Audivisuais; José Vicente |

Agência Calipo2020; Paulo Chaves (DCI/CMSC); Rosa Nunes CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DA CAPA: Paulo Chaves CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DA CONTRACAPA: Rita Neves CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES: Ana Castela; César Figueiredo; Fernando J. S. Correia DESENHOS DO CATÁLOGO DE PEÇAS: Fernanda Sousa; José Matias; Manuela de Deus; Teresa Rita Pereira IMAGENS MANUSCRITOS: Torre do Tombo (p. 167); Biblioteca Nacional Digital (p. 178) CARTA ARQUEOLÓGICA: Eduardo Porfírio, Miguel Ferreira (Palimpsesto) CONCEPÇÃO GRÁFICA: Gabriela Semedo (DCI/CMSC) REVISÃO DE TEXTO: António Massano; Nélia Brito (DCI/CMSC) EDIÇÃO: Câmara Municipal de Santiago do Cacém IMPRESSÃO: Gofactory TIRAGEM: 200 exemplares ISBN: DEPÓSITO LEGAL:

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Índice AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS À ARQUEOLOGIA DE ALVALADE:

de finais do século XVIII a meados do século XX MANUELA DE DEUS, JOSÉ MATIAS E FERNANDA DO VALE

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DA ORIGEM DA TERRA À OCUPAÇAO HUMANA:

uma história geológica em Alvalade, Santiago do Cacém CARLOS MARQUES DA SILVA E ANA MARIA COSTA

O SÍTIO ARQUEOLÓGICO DA GASPEIA E O TERRITÓRIO NEOLÍTICO DE ALVALADE JOAQUINA SOARES E CARLOS TAVARES DA SILVA

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"GUERREIROS DO BRONZE":

a Idade do Bronze nas planuras do Sado MIGUEL SERRA

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A REGIÃO DE ALVALADE DO SADO:

entre o sul da Lusitania e o Mediterrâneo romano JOSÉ CARLOS QUARESMA E RODRIGO BANHA DA SILVA

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HERDADE DA DEFESA 3.

Um sítio romano em Alvalade Sado CATARINA ALVES

ANÁLISE ZOOARQUEOLÓLICA DO MATERIAL FAUNÍSTICO DO SÍTIO ROMANO DA HERDADE DA DEFESA 3 PEDRO VALENTE FERNANDES

EPÍGRAFES ROMANAS DE ALVALADE-SADO JOSÉ D' ENCARNAÇÃO

A REGIÃO DE ALVALADE DO SADO NO PERÍODO VISIGÓTICO (entre 409 a 711 d.C.) JOSÉ CARLOS QUARESMA E RODRIGO BANHA DA SILVA

(RE)CONQUISTAS: Alvalade entre as origens medievais e as revoltas liberais (séculos XIII-XIX) MILTON PEDRO DIAS PACHECO

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CUIDAR DO CORPO, CUIDAR DA ALMA:

Do "Complexo Assistencial" do Espírito Santo à Igreja da Misericórdia de Alvalade JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO

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A ASSISTÊNCIA NA ÚLTIMA MORADA:

Os enterramentos na Igreja da Misericórdia de Alvalade SOFIA TERESO E RUI FRAGOSO

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Página anterior: Fauna e flora do rio Sado Ilustração © Fernando J. S. Correia, 2020 - Composição da autoria de Fernando Correia e elementos individuais de F. Correia e colaboradores (Cláudia Barrocas, Rosa Alves, Francisco Cunha, Marcos Oliveira, Wilma Ferrari)

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A Rota dos Museus do Município de Santiago do Cacém resulta da forte aposta da Câmara Municipal na salvaguarda da memória coletiva, conservando os testemunhos do passado, transmitindo-os às novas gerações para que sejam, num futuro próximo, os guardiões da importante herança cultural que nos foi legada. Neste sentido, entendeu a Autarquia instituir uma rede de museus interligados, representativos e interpretativos das várias realidades patrimoniais do Concelho, descentralizados pelo território. A Rota é constituída pelo Museu Municipal e por vários polos, sendo o Museu de Arqueologia de Alvalade a unidade mais recente, cofinanciado por fundos europeus (FEDER) através do Programa Operacional Regional do Alentejo - Alentejo 2020. Este financiamento insere-se no Eixo Ambiente e Sustentabilidade, no domínio da Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos e nas operações do tipo Património Natural e Cultural. A nova estrutura museológica vem reforçar as cinco já existentes no Concelho (Museu Municipal de Santiago do Cacém, Moinho da Quintinha, Centro Interpretativo de Miróbriga, Museu do Trabalho Rural de Abela e o Museu da Farinha de São Domingos), alargando a oferta cultural ao nível das temáticas abordadas e da abrangência territorial. A instalação do Polo Museológico de Arqueologia de Alvalade, cumpre a materialização de uma aspiração da Câmara Municipal de Santiago do Cacém e da população local que, geração após geração, foi recolhendo vestígios arqueológicos encontrados à superfície ou durante as lavouras. A grande envolvência da comunidade foi fundamental para a concretização deste projeto, demonstrando um forte sentido de memória coletiva e de identidade cultural. A área geográfica que corresponde ao antigo concelho de Alvalade é atualmente parte integrante do Município de Santiago do Cacém. Localiza-se a nascente do território concelhio, na planície interior, beneficiando das férteis várzeas irrigadas pelo rio Sado e pela ribeira de Campilhas, onde homens e animais, ao longo de milhares de anos, encontraram nestas águas a sua fonte de vida, fixando-se nas suas margens. Desse tempo antigo e das gentes que aqui viveram ficaram inúmeros vestígios que hoje constituem um rico património arqueológico, de que podemos observar uma parte considerável no museu e sobre o qual o presente catálogo se debruça. O catálogo que agora se edita é o culminar de um longo processo que o Município iniciou em 2009, com a primeira fase das escavações arqueológicas e antropológicas na antiga Igreja da Misericórdia de Alvalade. Seguiram-se, ao longo de vários anos, algumas obras de beneficiação das coberturas, em parceria com a Junta de Freguesia de Alvalade e várias exposições temáticas no âmbito da arqueologia, da história e da etnografia. Em 2014, procedeu-se a prospeções pictóricas na cúpula da antiga capela-mor da igreja, tendo sido descoberta uma importante pintura a fresco de cariz religioso, representando um concerto de anjos, restaurada em 2016 e que muito veio valorizar este novo espaço museográfico. No verão de 2017, a Autarquia deu início à grande empreitada de obras de adaptação do edifício a Museu de Arqueologia, seguindo-se todas as adjudicações necessárias à sua instalação, a par com o trabalho interno, levado a cabo por técnicos da autarquia, assessores e colaboradores externos, dando-se o processo de instalação do museu por concluído, no final de outubro de 2020. A exposição permanente do Museu de Arqueologia de Alvalade vai proporcionar-nos uma longa viagem no tempo e na história. Ao nível da paleontologia, através dos fósseis recolhidos na década de 1930, podemos observar os primitivos cavalos do Vale do Sado e dentes de alguns dos tubarões que se alimentavam nas águas mais profundas do golfo marinho 9


aqui existente há cerca de cinco milhões de anos, denominado Bacia de Alvalade. Ao nível da história, a arqueologia permite-nos, através do conhecimento atual e do acervo exposto no museu, viajar desde os mais recuados vestígios da presença humana na região há cerca de 8000 anos, através dos caçadores-recoletores do Mesolítico, passando pelos vários períodos cronológico-culturais, até ao século XVI, com a atribuição da Carta de Foral a Alvalade por D. Manuel I e a construção da Igreja da Misericórdia, concluída em 1570. Estamos convictos que o Museu de Arqueologia de Alvalade vai contribuir para a preservação da memória coletiva deste território, e para a divulgação do património material e imaterial, traduzindo-se num fator de desenvolvimento local e contribuindo, igualmente, para a valorização turística, pedagógica e científica do património cultural, histórico, arqueológico, etnográfico e natural.

AGRADECIMENTOS O Museu de Arqueologia de Alvalade não teria sido possível sem o inestimável contributo de instituições e entidades locais, a quem a Câmara Municipal de Santiago do Cacém agradece, nomeadamente, à Casa do Povo de Alvalade, à Junta de Freguesia de Alvalade, ao Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança e a muitos alvaladenses, pelo empréstimo ou doação de peças, cedência de fotografias, partilha de documentação, disponibilização para a gravação de depoimentos e outras informações relevantes. Agradecemos igualmente aos investigadores autores dos textos, aos ilustradores científicos, designers e outros técnicos especializados, bem como às equipas envolvidas, internas e externas à Câmara Municipal e a todos os que, de alguma forma, tornaram possível levar a cabo este projeto. Um agradecimento especial à Direção Regional de Cultura do Alentejo pela colaboração da arqueóloga Manuela de Deus, como assessora que, desde o primeiro momento, integrou a equipa de trabalho. Ao pintor e museógrafo António Viana, igualmente um agradecimento especial, pela assessoria, pelas soluções de design encontradas para a valorização das peças e pelo imprescindível apoio na montagem da exposição. Ao Museu de Arqueologia e Enografia do Distrito de Setúbal, o nosso especial agradecimento pela cedência de peças e por todo o apoio prestado.

ÁLVARO BEIJINHA Presidente da Câmara Municipal de Santiago do Cacém

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Página anterior: REFLEXOS do PASSADO / PROJEÇÕES do FUTURO Ponte Medieval de Alvalade Janeiro de 2010 Fotografia de José Matias

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AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS À ARQUEOLOGIA DE ALVALADE: de finais do

século XVIII a meados do século XX MANUELA DE DEUS1, JOSÉ MATIAS2 E FERNANDA DO VALE3

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om o presente texto pretende-se fazer uma breve alusão às referências mais antigas sobre a Arqueologia do território de Alvalade e de Ermidas, às primeiras “explorações arqueológicas” conhecidas e aos seus principais protagonistas. Esta ação abarca dois momentos distintos. O primeiro, situado no último quartel do século XVIII e na viragem para o século XIX, deve-se à atividade de D. Frei Manuel do Cenáculo, então Bispo de Beja. O segundo, decorrido quase um século depois, é protagonizado por José Leite de Vasconcelos, uma figura e reconhecimento nacional, e pelo Padre Jorge de Oliveira, Prior da paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Oliveira de Alvalade, cujos trabalhos, que poderemos considerar anteriores à difusão de uma arqueologia científica na região, tiveram uma enorme relevância a nível local no registo e na coleção de materiais arqueológicos.

1. ALVALADE NO LABOR ARQUEOLÓGICO E COLECIONISTA DE FREI MANUEL DO CENÁCULO As primeiras referências à arqueologia da região de Alvalade são da autoria de D. Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, nomeado Bispo de Beja em 1770 e que se mudou para esta cidade em 1777, após a morte do rei D. José e o afastamento político de Marquês de Pombal. Cenáculo foi uma figura de relevo na cultura do século XVIII que desempenhou um papel importantíssimo no nascimento dos acervos museológicos em Portugal. Era um humanista com amplos conhecimentos linguísticos (conhecia o árabe, o siríaco, o aramaico, o latim), fomentou o estudo de várias áreas do saber e cultivou a Arqueologia. A partir de Beja, Cenáculo reuniu um conjunto de correspondentes e colaboradores que o informavam das diversas antiguidades que eram descobertas nas suas paróquias e nas terras vizinhas. Aproveitava as suas deslocações e visitas pastorais para observar objetos e visitar sítios arqueológicos e, inclusive, para fazer “escavações” arqueológicas, como sucedeu na Herdade do Raco, no Cercal, em 1798, ou em Miróbriga, onde incentivou o pároco local, Bonifácio Gomes de Carvalho, a realizar escavações.

O trabalho que desenvolveu à frente da diocese de Beja e o seu espírito colecionista permitiram-lhe comprar e recolher variadíssimos objetos que reuniu na diocese, no Museu Sisenando Cenaculano Pacense, inaugurado em março de 1791 e que constitui o primeiro museu aberto ao público em Portugal. O museu contava com coleções de numismática, epigrafia, escultura, pintura, arqueologia, história natural e era ponto de visita obrigatório para viajantes, colecionistas e estudiosos. Quando foi nomeado arcebispo de Évora, em 1802, deslocou para esta cidade a maior parte da coleção onde instalou, junto ao paço arquiepiscopal, uma biblioteca e um museu, que estão na origem da atual Biblioteca Pública de Évora e do Museu de Évora, Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo. Entre 1781 e 1801, D. Frei Manuel do Cenáculo deslocou-se nove vezes à região de Sines e Santiago do Cacém, o que é absolutamente extraordinário tendo em atenção as inúmeras ocupações do bispo, a sua idade e a dificuldade das viagens à época. A viagem entre Beja e Santiago do Cacém ou Sines era feita de sege, uma carruagem pequena e mais rápida, a saída ocorria de madrugada e demorava dois dias. O itinerário passava por Santa Vitória, Ervidel, São João de Negrilhos, Jungeiros, Monte Espada, Monte do Roxo, Nossa Senhora da Abela, São Bartolomeu da Serra e Santiago do Cacém. Sobre estas viagens encontramos alguma informação em correspondência e entre os manuscritos que deixou e que fazem parte dos seus Diários. Nestes encontramos desde anotações sobre os itinerários, as despesas efetuadas e as receitas obtidas com os sacramentos e as anotações de natureza histórica e arqueológica, etc. Durante as suas deslocações para zonas mais afastadas, e quando não era possível regressar a Beja4, Cenáculo e a sua comitiva ficavam, habitualmente, alojados nas casas das paróquias ou na casa da aristocracia e de notáveis locais, como sucedia em Santiago do Cacém, onde se relacionava com Frei Bernardo Falcão, proprietário da Quinta dos Olhos Bolidos, ou com João Falcão Murzelo de Mendonça, proprietário da Quinta de São João. 13


Nas duas primeiras jornadas a Sines, Cenáculo ficou alojado em São Bartolomeu da Serra, provavelmente nas casas do Prior da paróquia. Porém, a partir de 1792 passou a pernoitar no Monte do Roxo, em Alvalade, propriedade do capitão Francisco José Águas, cuja esposa, Bárbara Francisca Antónia Pacheco Nobre5, era cunhada de J. F. Murzelo de Mendonça, proprietário da Quinta de São João. Esta mudança pode dever-se, na nossa opinião, a motivos de natureza arqueológica, na medida em que, desta forma, Cenáculo poderia observar e acompanhar mais de perto os trabalhos de escavação promovidos pelo capitão Francisco José Águas na sua propriedade e os achados que fazia. A riqueza dos vestígios na envolvente do monte seria extraordinária e daqui terão saído algumas peças para o Museu do Bispo, em Beja, tendo permanecido as restantes na posse dos proprietários do monte. Segundo Jacques Marcadé, um dos estudiosos de Cenáculo e do bispado de Beja, Francisco José Águas receberia o Bispo faustosamente na sua propriedade (1978, p. 141), o que parece ser corroborado pelas listas de despesa que se conservaram que apontam para um número maior de criados, quando comparado com outros locais.

entre ambas. A máscara da esquerda representa um jovem e a da direita um homem com barba. Não se trata de uma lucerna grega, mas antes de uma peça do período romano, fabricada na península itálica por volta dos séculos I-II d.C. e apresenta na base a marca do oleiro onde foi produzida – COPPI.RES –, que consiste na abreviatura do nome latino Caius Oppius Restitius (Deus, 2016, p. 67 e 86).

No Monte do Roxo, Cenáculo observou algumas descobertas e deu testemunho do aparecimento de moedas, de inúmeras “paredes antigas” em ambas as margens da ribeira de São Romão6 e de três lucernas encontradas numa sepultura, das quais o proprietário lhe enviou uma, que classificou como sendo grega (Cenáculo, 1949, p. 240; Vasconcelos, 1895, pp. 339-340), e ainda um provável lagar “onde se acharão bagulhos ressequidos de uvas”, o que constituirá a primeira referência a restos vegetais em contexto arqueológico (Fabião, 2011, pp. 70-71).

Na Viagem ao Alentejo e Algarve em 1799, a segunda que fez a Portugal nesse ano, José Cornide permaneceu em Beja mais tempo do que o previsto devido às condições climatéricas adversas e aceitou a sugestão de Cenáculo para visitar Alvalade e o Monte do Roxo. Em Alvalade contaram-lhe que nos campos à volta da vila se encontram sepulturas e moedas romanas, porém, esclarece que nada viu que fosse dessa época.

Alguns dos viajantes que passaram pelo Alentejo em finais do século XVIII visitaram a coleção e o Museu que Frei Manuel do Cenáculo havia reunido e que granjeava nome internacionalmente entre os intelectuais da época. Destes viajantes destaca-se José Andrés Cornide Saavedra y Folgeira, natural da Corunha, pelas descrições e pelos desenhos que fez de algumas das peças do Museu, os quais permitem, passados mais de duzentos anos, conhecê-las e, em alguns casos, associá-las ao local de proveniência. É graças aos desenhos e às notas que tomou no seu diário de viagem, publicados em 2009 (Abascal e Cebrián), que podemos identificar na atual coleção do Museu de Évora a lucerna do Monte do Roxo que em 1799 se encontrava exposta no museu do Bispo, em Beja. É uma lucerna de fabrico cuidado, o disco está decorado com duas máscaras de teatro e tem um vaso 14

Figura 1 – Lucerna do Monte do Roxo desenhada por José Cornide, em 1799 (Abascal e Cebrián, 2009, p. 403)

Sobre o Monte do Roxo, diz ser uma propriedade que se localiza na confluência da ribeira do mesmo nome com a ribeira de São Romão, nome dado à época a este troço do rio Sado, e que nela vive uma senhora que é viúva7. Dá-nos conta de que à volta da casa se encontraram várias sepulturas com tijolos romanos que foram usados no pavimento de um celeiro, onde os pôde observar, bem como, junto à casa, o pavimento de um lagar de “formigão” romano (argamassa romana) e, junto a ele uma provável pedra de lagar que se recolheu dentro da adega. Dá também conta de que na soleira de uma igreja, certamente a Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Roxo, se encontrava uma pedra de mármore decorada, que desenhou mais tarde, de memória, (Abascal e Cebrián, 2009, p. 602) e que corresponderá a um fragmento de cancela de uma antiga basílica visigótica (Figura 2). Cenáculo partilhava a opinião de um conceituado geógrafo da época, Juan López – que publicou, em 1798, o


Mappa de la Lusitania Antigua, com su correspondencia moderna – de que o Monte do Roxo corresponderia à antiga povoação de Oxtracas devido aos vestígios arqueológicos que aí se encontravam, e que em Alvalade, ou nas suas imediações, se situaria a cidade de Aranni ou Arandis, por aí se se terem recolhido restos da maior antiguidade, particularmente na Amêndoa, junto à vila de Alvalade (Cenáculo, 1949b, p.426), onde não terá chegado a observar vestígios arqueológicos. À luz do pensamento e dos conhecimentos atuais, reconhece-se a fragilidade da base empírica que está na origem de tais ilações, no entanto, esta posição reflete o conhecimento da época e não deixa de ser revelador da interação e da partilha de conhecimentos que existia entre Cenáculo e Juan López e da preocupação que existia em identificar, no terreno, as povoações mencionadas nas fontes clássicas.

Figura 2 – Cancela Visigótica desenhada por José Cornide, observada, em 1799, na soleira da porta da antiga Igreja da Nossa Senhora do Roxo (Abascal e Cebrián, 2009, p. 602)

2. A ARQUEOLOGIA DE ALVALADE NA VIRAGEM DO SÉCULO XIX E NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX O PAPEL DE LEITE DE VASCONCELOS E DOS SEUS COLABORADORES José Leite de Vasconcelos Cardoso Pereira de Melo nasceu em Ucanha (Mondim da Beira), em 1858, e faleceu em Lisboa, em 1941. Embora se tenha licenciado em Medicina, exerceu esta atividade durante pouco tempo. Em 1887 mudou-se para Lisboa onde exerceu o cargo de conservador e professor de numismática da Biblioteca de Lisboa (Fabião, 2008). Foi a partir da biblioteca que desenvolveu o seu interesse pelas antigas religiões de Portugal e pela Arqueologia e onde levou a cabo uma intensa atividade e reuniu um volume significativo de coleções que o levaram a fundar o Museu Ethnológico, em1893, o atual Museu Nacional de Arqueologia. Fundou a revista O Archeólogo Português, em 1895, e foi responsável por uma vastíssima obra escrita. Embora se tenha dedicado a inúmeras matérias, a Arqueologia, a Etno-

grafia e a Filologia assumiram um papel predominante na sua carreira. Dedicou toda a sua atividade à observação, à recolha e ao registo das tradições populares, da língua e dos vestígios do passado longínquo, manifestações e testemunhos materiais que considerava necessário preservar e que se estavam a perder. A sua pesquisa estendeu-se a praticamente todo o território nacional e percorreu o país acompanhado dos seus informantes e colaboradores. Após uma intensa fase de dedicação à Arqueologia, a partir de 1920 concentrou-se mais na sua obra Etnografia Portuguesa e reduziu a atividade arqueológica, passando as intervenções de campo a serem feitas, cada vez mais, pelos seus colaboradores e funcionários do Museu. À semelhança do que sucedeu em outras regiões, Leite de Vasconcelos manteve uma estreita ligação com figuras da região, através de correspondência, tais como: Dr. João Gualberto Cruz e Silva, que realizava escavações em Miróbriga e fundou o Museu Municipal de Santiago do Cacém; Padre Jorge de Oliveira, pároco de Alvalade que se dedicou ao colecionismo e à história do antigo concelho de Alvalade; Francisco António da Cruz; Dr. Manuel Mateus, um dos seus informadores na região; Dr. António Pereira de Carvalho, advogado de Santiago do Cacém; Augusto Ernesto Teixeira de Aragão, filho do famoso numismata Dr. Teixeira de Aragão; Dr. António Augusto Félix da Cruz, médico e vereador da Câmara Municipal; J. M. Durães, proprietário; A.M. Freire de Andrade, farmacêutico de Santiago do Cacém e vereador da Câmara Municipal. Um dos seus principais colaboradores na região era o Dr. Manuel Mateus, natural de Grândola (1870-1955), que o informa das antiguidades que vão aparecendo e que são encaminhadas para Lisboa, para o Museu Etnológico. Manuel Mateus era licenciado em Direito, exerceu o cargo de presidente da Câmara Municipal de Grândola entre 1929 e 1934 e era, pelo menos, proprietário da herdade do Monte Novo, situada a 7 quilómetros de Grândola (Muralha, s.d., p. 1059), na qual o próprio refere ter “encontrado sinais de caminhos antigos na direção dos pontões do Sado” (Mateus, s.d., p. 1052). Dedicou-se à história local e à arqueologia da região de Grândola e das zonas limítrofes do vale do Sado, particularmente ao período romano. Publicou um artigo n’ O Arqueólogo Português com a suas observações acerca do Castelo Velho do Lousal (1895, pp. 239-240) e o artigo intitulado “Grândola Antiga”, no Álbum Alentejano, na década de 1930. É a Manuel Mateus que se deve a única referência antiga a um sítio arqueológico na zona de Ermidas, o 15


“Castelinho da Algeda”, que classifica como da “época que precedeu o domínio de Roma” e que terá continuado a ser habitado depois da conquista romana (Mateus, s.d., p. 1052)8. Entre 26 de dezembro de 1905 e 11 de janeiro de 1906, Leite de Vasconcelos visita a região de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines naquela que denomina como “Excursão Arqueológica à Extremadura Transtagana”, designação que atribuiu à parte do Alentejo que pertencia ao então distrito de Lisboa. A convite do Sr. Joaquim Cordeiro Batista permanece em Alcácer do Sal até ao dia 30, data em seguiu para Grândola a convite do Dr. Manuel Mateus, que o acompanhou na visita a vários locais e onde fez algumas escavações. A partir de Grândola visitou Santiago do Cacém, Sines e Santa Margarida do Sado, angariando novos contactos e colaboradores na região (Vasconcelos, 1914; s.n., 2017, p. 12). Além dos dados de natureza arqueológica, Leite de Vasconcelos interessa-se pela etnografia e pelas tradições locais. Guilherme Gameiro, desenhador do Museu que o acompanhava na excursão, registou em desenho o carro alentejano que foi utilizado na deslocação entre Grândola e Santa Margarida do Sado, cedido por um lavrador.

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Como Leite de Vasconcelos nos dá conta, a lápide, da Idade do Bronze, não se encontrava no seu contexto original e havia sido reaproveitada como tampa de uma sepultura mais recente, que ele indica ser de “época histórica”. Além de ter observado os restos da sepultura onde se encontrava a estela, Leite de Vasconcelos fez escavações na zona, onde encontrou mais sepulturas, porém, nenhuma seria da Idade do Bronze e as restantes tampas que encontrou não apresentavam decoração. Sobre esta necrópole escreve que a publicará em ocasião mais oportuna (op. cit. p. 301), o que não chegou a suceder. Claramente interessado no tema, Leite de Vasconcelos apressa-se a publicar o estudo da estela n’ O Arqueólogo Português nesse mesmo ano, na secção que havia inaugurado dois anos antes, intitulada Estudos sobre a época do bronze em Portugal, nos quais dedica alguns artigos às necrópoles e às estelas decoradas identificadas na região de Beringel, Santa Vitória, Mombeja e Ervidel e cujo fenómeno cultural tem continuidade na região de Alvalade e São Bartolomeu da Serra, onde também se conhece outra estela decorada do mesmo tipo.

Figura 3 – Carro utilizado por Leite de Vasconcelos na deslocação a Santa Margarida do Sado. Desenho de Gameiro (Vasconcelos, 1914, est. VI, figura 37)

Figura 4 – Estela da Herdade da Defesa (Almagro Basch, 1966, p. 58)

Em 1908, o “coletor-preparador” do Museu Etnológico, José de Almeida Carvalhaes efetuou uma deslocação ao Alentejo, durante a qual terá passado pela zona de Alvalade. Poucos dias antes da sua deslocação à Herdade da Defesa, um grupo de trabalhadores havia encontrado durante a lavra uma pedra de xisto decorada. Leite de Vasconcelos, através de Manuel Mateus, obteve autorização do proprietário, o Sr. Francisco António da Cruz, também de Grândola, para recolher a lápide para o Museu e para realizar escavações no local, o que faz em março do mesmo ano (Vasconcelos, 1908, p. 300).

Sem entrarmos em aspetos de natureza mais científica, é de notar o rigor positivista com que Leite de Vasconcelos descreve a estela e procura paralelos para os motivos decorativos nela representados. Sem entrar em grandes ilações de natureza teórica, interpreta a estela como a tampa da sepultura de um guerreiro da Idade do Bronze, na qual observa uma espada com a representação de prováveis correias de suspensão, a haste de uma arma, outra arma que pensa ser uma espécie de machado cuja lâmina tem a forma de pelta e cujo cabo tem um apêndice semilunar. Embora tivessem


procurado, não encontraram quer sepulturas da Idade do Bronze, quer outros vestígios desta época.

O CONTRIBUTO DA IMPRENSA REGIONAL À época, a imprensa regional dava notícia, com alguma frequência, do aparecimento de achados arqueológicos fortuitos feitos na região. Estas notícias tinham, por vezes, ecos na revista do então Museu Etnológico, O Arqueólogo Português, a qual seria enviada para as redações de alguns periódicos, como era o caso do jornal O Campo d’Ourique. Em 1901 (Víctor, p. 2), o semanário O Campo d’Ourique, noticia, a par da identificação de uma moeda romana em Bucelas, o aparecimento de um machado de pedra polida, de época pré-histórica, encontrado na herdade de “Valle de Messejana” por um couteiro do Sr. José Domingues Fernandes. A descrição do machado é bastante exaustiva e inclui informação sobre a forma, as dimensões e o tipo de rocha utilizado no seu fabrico. Em 1902, O Campo d’Ourique noticia o aparecimento de cinco instrumentos de bronze, junto de uma moita na herdade da “Caspea” (Víctor, p. 3) os quais correspondem aos cinco escopros de bronze cujo aparecimento o Padre Jorge Oliveira situou em 1908, descobertos no Monte Novo da Gaspeia, um pouco a norte da Defesa, e que, segundo o mesmo, terão sido doados pelo seu falecido proprietário, José Domingos Fernandes, ao Museu Municipal de Beja (Oliveira, 1937?, p. 1085). No mesmo semanário, em outubro de 1906, é dada a notícia do aparecimento de três “trituradores de pedra” nas herdades de Vale de Messejana e de Caveira, que foram mostrados pelo seu proprietário, José Domingos Fernandes. Segundo o redator, “Poucas regiões conhecemos tão abundantes em vestígios das épocas pre-históricas e dos primeiros séculos de civilização, como a extensa área situada ao poente de Messejana entre esta villa e a ribeira de São Romão” (Víctor, 1906, p. 1), nome que era dado, na época, a este troço do rio Sado. A provar essa riqueza, são enumeradas lanças de pedra de Valle de Coelheiros, sepulturas romanas no Carapetal, Valle de Serrão e Escanchados (este em Messejana); de época mais antiga na herdade do Carrascal (Monte Negro) e no Monte Grande; machados e escopros de pedra e bronze das herdades da Daroeira, de Vale de Messejana e de Caveira. Embora não seja possível localizar com exatidão o local de proveniência dos achados, alguns dos topónimos encontram-se claramente no território de Alvalade.

Também o aparecimento de fósseis não passa despercebido ao redator que escreve ser trivial em certos pontos “onde os terrenos são formados por areias e saibros, serem encontrados a pequena profundidade, mariscos, búzios, conchas e vieiras no estado fóssil, e n’outros, como na herdade dos Escanchados, haver poços d’agua salgada” (Víctor, op. cit.). Mais tarde, e sob a pena do Padre Jorge de Oliveira, o quinzenário Nossa Terra, de Santiago do Cacém, vai assumir um papel importante na divulgação dos seus artigos sobre a história de Alvalade que eram anunciados, pelo próprio, como contributos para uma monografia, projeto que não chegou a ser concretizado.

ALVALADE E AS VIAS ROMANAS Um dos temas recorrentes da arqueologia de Alvalade são as vias romanas que atravessariam o território, mas das quais não existem, até à data, vestígios materiais. Mário Saa (1893-1971) foi um dos mais destacados intelectuais alentejanos da sua geração, publicou obras e artigos sobre temáticas bastantes distintas, desde poesia, à filosofia, à arqueologia e à problemática camoniaina. A sua atividade na área da Arqueologia terá sido bastante influenciada pela figura de Leite de Vasconcelos, com quem terá contactado de perto nas escavações que este levou a cabo na propriedade da sua família no Ervedal, em Avis (Carneiro, 2012). A par da gestão da sua propriedade agrícola, publicou em vários volumes a obra Grandes Vias da Lusitania. Itinerário de Antonino Pio.

Figura 5 – Extrato da "Carta Itinerária ao Sul do Tejo" publicada em As grandes vias da Lusitania (Saa, 1963)

No volume IV da sua obra, Mário Saa nomeia algumas vezes Alvalade e o seu território. No que se refere à via que ligaria Ossonoba (Faro) a Salacia (Alcácer do Sal) 17


e partindo do pressuposto de que a cidade romana de Aranni se localizaria na atual Garvão, considera que a estrada romana seguiria por Alvalade e Ermidas até Santa Margarida do Sado. Segundo o mesmo autor, de Aranni e do itinerário principal partiria uma via que ligaria às ruínas romanas do Castelo Velho de Santiago do Cacém (Miróbriga) que atravessaria a ribeira de Campilhas e passaria a sudoeste de Alvalade.

no terreno vestígios dessas vias – as quais poderiam não ser feitas com calçada –, não são conhecidos indícios de uma fundação romana para a ponte e não há dados arqueológicos que permitam caracterizar com rigor a função, a tipologia e a cronologia mais rigorosa dos sítios arqueológicos de época romana e que papel desempenhariam na estruturação do povoamento e das redes viárias.

As características naturais da região de Alvalade favoráveis à circulação não deixam de ser realçadas por Mário Saa: “A via de Antonino, a partir de Garvão com destino ao norte, Salacia – Serapia, vai transpor a ribeira em Alvalade, notável centração romana com muitas facilidades viais e excelentes travessias fluviais. Alvalade era o funil do trânsito geral, dos sectores setentrionais para os meridionais”; “Os vaus na ribeira de S. Romão, em Alvalade, são o Porto de Beja e, a juzante, o Porto dos Coitos”; “(…) pela mesma borda da ribeira, por Defesa, Retorta, Valmargem, Gáspeas, Corredoura (este o nome que outrora era dado às grandes vias militares), e, enfim, Figueiras, defronte dos arqueológicos lugares de Conqueiros, e Metade. Preforma na vila de Alvalade a sua principal artéria” (Saa, 1963, p. 231).

PADRE JORGE DE OLIVEIRA, PRIOR DE ALVALADE – VOCAÇÃO PELA ARQUEOLOGIA Padre Jorge de Oliveira nasceu a 8 de novembro de 1865 em Samuel (Soure), assumiu os destinos da paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Oliveira, em Alvalade, a 13 de março de 1908, onde veio a falecer a 8 de julho de 1957. Aqui, interessa-se por várias vertentes do saber, principalmente pela arqueologia e pela história do antigo concelho de Alvalade, mas também pela paleontologia. Além de notas históricas, nos artigos que escreveu inclui referências a usos e costumes, às características naturais do território e a aspetos da vida socioeconómica do território de Alvalade.

Mário Saa desenvolveu, à época, um trabalho muito significativo de análise linguística e toponímica, de observação cartográfica e de terreno e de análise de fontes arqueológicas. Sobre a eventual localização da região de Alvalade na via que ligaria Faro a Alcácer do Sal, há a referir que embora vários autores tenham apontado para a possibilidade de Aranni se situar em Garvão, no concelho de Ourique, outros trabalhos têm levantado a possibilidade (Maia, 2000 e Bernardes, 2006), bastante plausível, de este local corresponder à atual aldeia de Santa Bárbara de Padrões (Castro Verde). Tem sido reconhecido por diversos estudiosos a muito provável existência de um erro na descrição do Itinerário de Antonino Pio, na medida em que as distâncias indicadas de Faro a Aranni e desta a Alcácer do Sal são incompatíveis. A partir da análise das distâncias e de outros fatores, João Pedro Bernardes observa que estas são compatíveis com as distâncias entre Beja (Pax Iulia) e Aranni e entre esta localidade e Faro, concluindo que o erro do Itinerário poderá residir num lapso que indica Salacia em vez de Pax Iulia (Bernardes, 2006) como destino do itinerário. Não obstante, não é de excluir a existência de outras vias de ligação e a possibilidade de a ponte de Alvalade, de cronologia medieval, ter dado continuidade a uma via romana que ligaria Miróbriga a Pax Iulia, passando por Aljustrel (Barata, 1998, p. 18). Porém, não se reconhecem 18

Figura 6 – Fotografia de Padre Jorge de Oliveira. Cedência: Ângela de Atayde e Dr.ª Ana de Atayde

Começa, desde logo, a colecionar materiais arqueológicos. Uns que surgem ocasionalmente durante os trabalhos agrícolas e que lhe são oferecidos por trabalhadores ou por proprietários e outros recolhidos por si em algumas escavações arqueológicas que fez em torno de Alva-lade. Das suas notas, destacam-se os materiais de época romana, provenientes da herdade de Conqueiros


– nas ruínas romanas de “Ametade” – e na herdade da Ameira, nomeadamente no Monte Branco, no Monte do Telheiro e, principalmente, na várzea do Brejo onde fez escavações. Mais próximo de Alvalade, menciona também vestígios romanos nas imediações da sua casa, no local designado Cerrado, que pertenceria a Maria Lança, e na várzea de Alvalade, na courela de “M. Mendes” (Oliveira, 1908-?). Além do interesse que já deveria ter pela Arqueologia, Padre Jorge de Oliveira poderá ter beneficiado de um ambiente favorável para o desenvolvimento das suas pesquisas e da sua atividade colecionista e deverá ter encontrado, localmente, algum eco para o seu entusiasmo. Embora possam ter contactado diretamente em Alvalade, recorde-se que a vinda de Leite de Vasconcelos à Herdade da Defesa, para escavação e registo da estela da Idade do Bronze, ocorre precisamente no ano e no mês em que o Padre Jorge Oliveira chega a Alvalade. É também provável que alguns dos informadores e correspondentes de Leite de Vasconcelos tenham passado a fazer parte do seu círculo de contactos. Presume-se que se terá integrado, ou contactado de perto com intelectualidade e a elite local e regional. Correspondeu-se com Soares Víctor, editor e secretário da redação do jornal O Campo d’Ourique que noticiava o aparecimento de vestígios arqueológicos e de fósseis marinhos. Mantém também ligações com o Dr. João Gualberto da Cruz e Silva, fundador do Museu Municipal de Santiago do Cacém, entidade à qual chegou a doar objetos, escreve a Leite de Vasconcelos e corresponde-se com Georges Zbyszewski, geólogo ao serviço do Instituto Geológico e Mineiro. Reconhecido pelo seu labor, entre 1931 e 1932 é colaborador do “quinzenário literário e noticioso” Nossa Terra, de Santiago do Cacém, onde assina sob o pseudónimo de “Ómega” redigindo notas históricas sobre a Comenda de Alvalade, a concessão de forais e o Foral de Alvalade, a assistência em Alvalade e o papel da Misericórdia, a visita do Duque de Terceira, entre outros temas, os quais fariam parte de uma “monografia de Alvalade, em preparação”. Ainda na década de 1930 é convidado a escrever sobre a vila de Alvalade para o Album Alentejano pelo seu diretor, o jornalista Pedro Muralha onde redige, em 1937, o artigo Alvalade Antiga (Oliveira, pp. 1084-1087). Nas suas notas sobre arqueologia, o Padre Jorge de Oliveira demonstra que procura, de alguma forma, informar-se sobre os estudos e os trabalhos que eram desenvolvidos por arqueólogos seus contemporâneos.

No artigo que publica no Album Alentejano apresenta os principais indícios da presença do homem na região e atribui os primeiros “ocupantes” à “segunda idade da pedra”, ao Neolítico, “cêrca de 5000 anos antes de Cristo, segundo a cronologia adoptada pelos arqueólogos mais distintos, como o demonstram os numerosos machados polidos, de diferentes tipos, os raspadores, trituradores, pilões, discos e desengrossadores, indícios de tribus sedentárias, que encontraram na terra elementos bastantes para as suas exigências rudimentares.” (Oliveira, 1937?, p. 1085). O artigo faz menção à Paleontologia, nomeadamente, aos fósseis de dentes de Hipparion gracile e de peixes já extintos, anteriores ao aparecimento do Homem, e prossegue com mais informações de natureza arqueológica e histórica sobre o território de Alvalade. Não deixam de ser curiosas, nos artigos que escreve e que consultámos, as referências, ainda que breves, à paisagem e à orografia do terreno, denotando, ainda que de forma não explícita, o reconhecimento de uma relação entre as características naturais e a ocupação humana do território.

Figura 7 – Frontispício do manuscrito do Padre Jorge de Oliveira (1908-?). Cedência: Ângela de Atayde e Dr.ª Ana de Atayde

Da coleção de Arqueologia do Padre Jorge de Oliveira fariam parte objetos arqueológicos de diferentes épocas, no entanto, deveriam predominar os materiais pertencentes à Pré-história, mais especificamente ao Neolítico – entre 5500 e 3000 a.C (antes de Cristo) –, e ao período Romano (do século II a.C. ao século V d.C.). Entre estes materiais encontrar-se-iam machados de pedra polida, elementos de pedra para moagem manual de cereais, fragmentos de tijoleira e de telhas (tegulae e imbrex), de ânforas e outros recipientes de época romana e um conjunto de moedas de diferentes épocas. Reconhecendo que os seus conhecimentos da área da Arqueologia eram superficiais, escreve a Leite de Vasconcelos, a 13 de abril de 1914, a solicitar o envio da 19


coleção “O Archeólogo Português”, editada pelo Museu Etnológico, e relata, de forma genérica, alguns dos achados que tem feito em Alvalade (Oliveira, 1914). Curiosamente, Leite de Vasconcelos terá solicitado mais informações a um dos seus correspondentes em Santiago do Cacém, o advogado António Pereira Carvalho, que lhe responde a 5 de junho de 1915, com uma lista de achados que se encontram na posse do Padre Jorge de Oliveira e a informar que este não tenciona fazer doações ao Museu Etnológico (Pereira, 1915).

interessa-se pelo assunto e entra em contacto com o Padre Jorge de Oliveira (Zbyszewski, 1938). A partir deste momento, trocam alguma correspondência e G. Zkyszewski veio a realizar o estudo destes fósseis que publica em 1947, num artigo denominado “Hipparion gracile du Vale do Sado” e a colaboração entre ambos culmina com a oferta do fragmento de maxilar ao então Museu dos Serviços Geológicos, na altura dirigido pelo Eng.º António Viana, para figurar nas vitrinas da exposição.

Figura 8 – Decalque de moedas árabes, que estariam na posse de um morador em Alvalade, feito pelo Padre Jorge de Oliveira. Cedência: Ângela de Atayde e Dr.ª Ana de Atayde

Com a provável colaboração de G. Zbyszewsky, o Padre Jorge de Oliveira organiza e cataloga uma pequena, mas interessante, coleção que inclui espécimes fósseis, entre eles dois dentes de Hipparion gracile e alguns dentes e restos de esqueleto de seláceos já extintos (peixes da família das raias e dos tubarões), uma concha de bivalve não fóssil, e um número reduzido e avulso de espécimes que inclui minerais e pequenos artefactos de pedra.

A presença de fósseis marinhos que apareciam em terrenos mais arenosos, particularmente quando se abriam poços, chamavam a atenção das gentes da região. Porém, a descoberta de um conjunto de fósseis, na década de 1930 (Zbyszewski, 1947), por ocasião da abertura de um poço no Monte Novo do Concelho, por parte do Sr. Joaquim Bento (que doou os exemplares ao Padre Jorge de Oliveira), assume particular relevância e interesse, não só local, como de alguma comunidade científica da área da Geologia. A cerca de 7 metros de profundidade, foram encontrados, em níveis de areia muito fina, fragmentos de um maxilar, com alguns dentes molares e um dente maior isolado que foram classificados como pertencentes a uma espécie de cavalo já extinta, o Hipparion gracile. À mesma profundidade, ou um pouco mais profundo, terão sido encontrados vários dentes de espécies de peixes já extintas, atribuídas ao Miocénico (época geológica), muito anterior ao aparecimento da Humanidade, e que, por essa razão, é estudado pela área da Paleontologia. Esta descoberta terá levado ao contacto com alguns geólogos, entre os quais Ernest Fleury e o Eng.º Lereno Antunes Barradas que na altura se encontrava na região a desenvolver trabalhos e que apresenta a primeira notícia sobre os concheiros mesolíticos do vale do Sado, na zona de Alcácer do Sal. Georges Zbyszewski, geólogo de naturalidade russa, que se encontrava a desenvolver um estudo sobre a geologia e a pré-história desta zona do Alentejo, e que tomou conhecimento da descoberta dos fósseis de Hipparion gracile através do Dr. João Gualberto da Cruz e Silva, 20

Na primeira metade do século XX ainda se praticavam em Portugal diferentes tipos de Arqueologia. Se por um lado a disciplina procurava, sobretudo por via da arqueologia pré-histórica, dotar-se de maior cientificidade e rigor, sobretudo ao nível dos métodos de trabalho e de escavação e à crescente importância dada à estratigrafia e ao contexto arqueológico, por outro lado, existia um número considerável de colecionadores, proprietários, informadores, sobretudo a nível regional, que desempenharam um papel de grande relevo no registo dos testemunhos do passado e na constituição de coleções locais e regionais. Foi este o caso do Padre Jorge de Oliveira, figura de maior relevo de Alvalade que não apenas reuniu uma coleção pessoal de Arqueologia como se preocupou em pesquisar e em deixar obra escrita sobre a arqueologia e a história de Alvalade. Desafortunadamente, faleceu antes de ver concretizado o objetivo de escrever e publicar uma monografia sobre Alvalade, no entanto, deixou-nos alguns objetos, artigos e apontamentos que a família soube acarinhar e que interessa estudar e perspetivar à luz do seu tempo!

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Direção Regional de Cultura do Alentejo. Câmara Municipal de Santiago do Cacém, Divisão de Cultura e Desporto. 3 Câmara Municipal de Santiago do Cacém, Divisão de Cultura e Desporto. 4 Durante a sua estada em Sines, Frei Manuel do Cenáculo ficava 2


alojado na residência do Governador Militar da Praça. As Jornadas a Sines, onde fazia banhos de água salgada, tinham como objetivo principal restabelecer a saúde e revigorar “fibra e nervos” (Pereira, 2018, 23), o que tentava conciliar com a ação pastoral, o conhecimento do território do litoral e a atividade arqueológica. 5 (1764-1843) – Paróquia de Roxo, Registo de Casamentos. 12-07-1764 a 08-02-1843. 6 Nome dado a este troço do rio Sado. 7 Francisco José Águas faleceu a 22 de novembro de 1797. 8 Agradece-se ao Dr. Nuno Inácio a informação relativa à referência ao “Castelinho da Algêda”.

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Página anterior: Fauna da orla costeira da Bacia de Alvalade no final do Miocénico. Equídeos Hipparion, sirénios – dugongos Ilustração © Fernando J. S. Correia, 2021 - Composição da autoria de Fernando Correia e elementos individuais de F. Correia e colaboradores (Cláudia Barrocas, Rosa Alves, Francisco Cunha, Marcos Oliveira, Wilma Ferrari)

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DA ORIGEM DA TERRA À OCUPAÇÃO HUMANA:

uma história geológica em Alvalade, Santiago do Cacém CARLOS MARQUES DA SILVA1 E ANA MARIA COSTA2

1. O TEMPO E A HISTÓRIA DA TERRA A Terra é um planeta dinâmico e, por essa razão, a sua geografia, o seu clima e os seus ambientes, bem como a vida que nela existe, estão em constante mudança. A Terra é também um planeta muito antigo. Estima-se que a sua formação se iniciou há cerca de 4600 milhões de anos (4600 Ma ou 4,6 Ga), havendo evidências de que nela existe vida há, pelo menos, 3500 Ma. Ela encerra em si um enorme conjunto de histórias, umas já conhecidas e muitas outras por revelar, todas elas preservadas no registo geológico. Cabe à Geologia estudar e desvendar, em cada pedaço de rocha, em cada camada e em cada fóssil desse registo, a origem e a evolução do nosso planeta, a sua idade e quais os processos geológicos que o formaram. É com base na investigação desenvolvida desde há longa data pelos geólogos que conhecemos o passado e a dinâmica da Terra. Mas muito mais há ainda para descobrir! Uma das formas de organizar e de representar esta história tão extensa é através da Tabela Cronostratigráfica Internacional3 (Figura 1), um documento produzido por uma organização científica internacional, a Comissão Internacional de Estratigrafia, parte da União Internacional de Ciências Geológicas, onde são apresentadas as divisões do Tempo Geológico, a sua cronologia e as mais recentes datações radiométricas, quantitativas, das fronteiras que as definem (Cohen et al., 2013). As unidades da Tabela Cronostratigráfica (Eonotema, Eratema, Sistema, Série, etc.) correspondem a sequências de camadas geológicas e a corpos rochosos formados durante um determinado intervalo de tempo geológico (respetivamente, Éon, Era, Período, Época, etc.) que, no seu conjunto, materializam a história da Terra. A individualização das divisões do tempo geológico, as unidades geocronológicas, baseia-se nos acontecimentos mais marcantes ocorridos ao longo da evolução do planeta e documentados no registo geológico. Sobretudo, em eventos relacionados com a evolução da vida na Terra, bem documentados pelos seus fósseis.

Contada muito brevemente, esta história começou há cerca de 4600 Ma, por uma fatia temporal informalmente designada Hadaico (do grego Hades, deus do submundo e dos infernos). Esta fase da história do planeta representa os eventos ocorridos durante o período de tempo compreendido entre o início da formação da Terra a partir da acreção de gases e poeiras cósmicas sob constante bombardeamento de corpos extraterrestres, de planetesimais, e a posterior estabilização da sua estrutura interna, com um núcleo e manto quente e ativo e uma superfície arrefecida sob oceanos e atmosfera (Nisbet e Fowler, 2003; Moorbath, 2005). Foi durante o Hadaico que, a partir de materiais da Terra, como resultado da potente colisão de um enorme corpo extraterrestre, se formou a Lua. Devido à idade extraordinariamente antiga e ao caráter conturbado e inconstante desta fase da história da Terra, os elementos geológicos de idade hadaica são extremamente raros. São conhecidas algumas inclusões microscópicas do mineral grafite em cristais de zircão posteriores, por exemplo. Contudo, não existem rochas ou formações geológicas dessa idade. Ou seja, não há verdadeiramente registo geológico hadaico. Daí o caráter informal desta unidade na tabela cronostratigráfica. As primeiras evidências claras da existência de vida datam do Éon Arcaico (do grego arkhaios, antigo, antiquado; dos 4000 aos 2500 Ma). São conhecidos vestígios interpretados como fósseis de bactérias com 3500 Ma provenientes de rochas siliciosas, de chertes, da Austrália Ocidental. Os mais antigos estromatólitos conhecidos, estruturas organo-sedimentares produzidas por cianobactérias, ainda ocorrendo na atualidade, remontam a esse tempo. As cianobactérias são organismos unicelulares procariontes fotossintéticos e o oxigénio por elas produzido gerou grandes mudanças na atmosfera e nos oceanos. Foram elas as responsáveis pela transformação, já no Proterozoico, entre os 2400 e os 2000 Ma, da atmosfera pobre em oxigénio, redutora, de então numa rica neste elemento, oxidante, causando um episódio marcante da história do nosso planeta 25


conhecido como o Grande Evento de Oxigenação (Hodgskiss et al., 2019). Para o final do Éon Proterozoico (do grego próteros, primeiro, e zoe, vida; dos 2500 aos 541 Ma) surgem os primeiros organismos multicelulares eucariontes heterotróficos, os primeiros animais. Os mais antigos vestigios inequívocos destes seres provêm do registo fóssil do Proterozoico Superior de Ediacara na Austrália e têm cerca de 558 Ma de idade (Bobrovskiy et al., 2018). Correspondem a fósseis de animais marinhos de corpo mole, achatados, assemelhando-se a panquecas de forma oval, estriados radialmente, muito distintos de tudo o que conhecemos da atualidade. Eram, juntamente com outros animais da altura, elementos da chamada Fauna de Ediacara.

Provavelmente, vários aspetos ambientais conjugados contribuíram para este desfecho. Normalmente são invocadas causas terrestres para esta extinção, nomeadamente, eventos de vulcanismo cataclísmico registados no que hoje corresponde à Sibéria (mas que na altura tinha outra expressão e localização geográfica distinta), desencadeando episódios exacerbados de efeito de estufa e consequentes alterações climáticas, com subidas de temperatura global ultrapassando 10ºC, assim como decréscimo do teor em oxigénio e acidificação dos oceanos.

O Éon Fanerozoico (do grego phanerós, visível, evidente, e zoe, vida; dos 541 Ma à atualidade) é caracterizado pelo aparecimento generalizado e geologicamente abrupto de organismos com elementos esqueléticos mineralizados, duros. Moluscos bivalves e gastrópodes, artrópodes (por exemplo, as trilobites), braquiópodes, equinodermes, etc. já estão abundantemente representados no registo fóssil câmbrico. Originalmente, apenas os oceanos alber-gavam vida. Ainda durante o Paleozoico inferior, a vida conquistou os ambientes terrestres. Primeiro as plantas, durante o Ordovícico, seguidas dos animais, no Silúrico. Os primeiros vertebrados terrestres surgem no Devónico. O Fanerozoico é ainda marcado por cinco eventos globais de decréscimo acentuado da biodiversidade, ocorridos durante períodos de tempo geologicamente curtos, isto é, ocorrendo em poucas centenas de milhares de anos. Estes episódios são conhecidos como eventos de extinção em massa (Raup e Sepkoski, 1982; Racki, 2019). O registo geológico de dois desses eventos, o ocorrido há cerca de 252 Ma e o ocorrido cerca dos 66 Ma, é a base da subdivisão original do Éon Fanerozoico em três eras: Paleozoico (541-252 Ma), Mesozoico (252-66 Ma) e Cenozoico (desde há 66 Ma). A extinção em massa que marca o final do Pérmico, a mais significativa dos últimos 541 Ma, ao ponto de ser conhecida informalmente como “a mãe de todas as extinções”, acarretou o desaparecimento de cerca de 80% das espécies marinhas de então. Muitos grupos biológicos típicos do Paleozoico, tais como as trilobites e as goniatites, bem como os corais rugosos (Rugosa) e tabulados (Tabulata), por exemplo, desapareceram nesta altura. Esta extinção não pode, com base nos dados atuais, ser explicada por um cataclismo único. 26

Figura 1 – Tabela cronostratigráfica simplificada. Adaptada de Cohen et al. (2013), atualizada em 2020. * Ma - Milhões de anos. Figura © Carlos Marques da Silva, 2020

O evento de extinção do final do Cretácico, famoso por ter vitimado os dinossáurios não-avianos, é um evento global de referência que é usado para marcar a transição do Mesozoico para o Cenozoico (Figura 2). Neste evento desapareceram grupos biológicos bem conhecidos de todos, quer em ambientes terrestres, quer marinhos, de vertebrados e de invertebrados, assim como de plantas. Por exemplo, os pterossáurios, répteis marinhos como os plesiossáurios e os mosassáurios, as amonites, as belemnites e os bivalves rudistas, extinguiram-se nessa altura. Estima-se que cerca de 65% das espécies de organismos marinhos de então se terão extinguido. A crise biológica finicretácica é seguramente o evento geológico mais conhecido do grande público e o mais detalhadamente estudado do ponto de vista pa-


leontológico de todo o registo geológico. Atualmente, é consensual entre a comunidade científica que esta extinção em massa foi desencadeada pelo choque de um corpo extraterrestre de grandes dimensões, de um asteroide com vários quilómetros de diâmetro. A biodiversidade recuperou de todos estes eventos de extinção e no final do Cenozoico, antes do início do impacto da Humanidade no planeta, quer na natureza biológica, quer na geológica, e das consequentes alterações ambientais e climáticas, estava no seu auge. Ao longo da história da Terra, muitos grupos biológicos surgiram, diversificaram-se e extinguiram-se. Essa é a sequência normal da evolução biológica. As trilobites, desaparecidas no final do Paleozoico, e as amonites, no final do Mesozoico, são dois exemplos notáveis. Enquanto existiram foram elementos muito importantes dos ecossistemas marinhos. Hoje apenas os conhecemos do registo fóssil. Os dinossáurios, contudo, não se extinguiram. Surgiram no Triásico, há cerca de 230 Ma, pouco antes dos mamíferos (há cerca de 210 Ma) e ainda hoje existem, representados pelas aves, surgidas no Jurássico. As aves são atualmente encaradas como um grupo particular de dinossáurios bípedes, de terópodes, com penas e com capacidade de voar, que sobreviveu à extinção em massa do final do Mesozoico. Atualmente, no Cenozoico, as aves são mais diversificadas que os mamíferos. Apesar de, em ambientes terrestres considerarmos os mamíferos como o grupo biológico mais bem-sucedido, tendo sobrevivido aos dinossáurios não-avianos, o certo é que hoje em dia as aves são mais abundantes e diversificadas. De certo modo, tal como durante o Mesozoico, continuamos a viver num mundo de dinossáurios.

Durante a longa história da Terra tudo nela sofreu mudanças. Não apenas a vida que alberga. Até o que mudando tão lentamente nos parece imutável, como a geografia dos continentes e das bacias oceânicas e o relevo das cadeias de montanhas, se transformou significativamente ao longo do tempo. Por via da dinâmica interna do planeta, a superfície da Terra altera-se, evolui. Investigando o registo geológico, recuperando a informação que ele encerra, sabemos que no passado os continentes tinham uma expressão e uma disposição muito diferente da atual, que a sua configuração sempre se modificou ao longo do tempo geológico e que existiram oceanos, cadeias de montanhas e ambientes hoje há muito desaparecidos (Figura 3).

Figura 3 – Continentes e oceanos no Triásico, há cerca de 220 Ma, uma geografia muito diferente da atual, com o supercontinente Pangeia rodeado pelo oceano global Pantalassa. Figura de Fama Clamosa, CC BY-SA 4.0, em commons.wikimedia.org/w/index.php? curid=85466018

2. A BACIA DE ALVALADE A Bacia de Alvalade, os sedimentos nela depositados, as suas sequências estratigráficas e os seus fósseis registam uma parte desta história de grupos biológicos, de ambientes e de geografias em mudança, uma parte que decorreu durante a Era Cenozoica. No Eocénico, há cerca de 30 a 40 Ma, o território que hoje corresponde a Alvalade e à região circundante sofreram subsidência, ou seja, sofreram afundamento gradual. Gerou-se uma ampla depressão, a Bacia de Alvalade (Figura 4), que foi gradualmente preenchida por sedimentos trazidos pelos rios que na altura para ela confluíam. As camadas geológicas formadas a partir destes sedimentos constituem hoje a Formação Vale do Guizo (Figura 5).

Figura 2 – Os cinco principais eventos de extinção em massa ocorridos durante o Éon Fanerozoico da história da Terra, marcados por acentuado decréscimo da biodiversidade à escala global num período de tempo geologicamente curto. Adaptado de Racki (2019). Figura de Carlos Marques da Silva, 2020

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Figura 4 – Expressão geográfica da Bacia de Alvalade (Miocénico superior a Pliocénico inferior). Linha a cheio: limites cartográficos da bacia; Linha a tracejado: limites inferidos. Adaptado de Pais et al. (2013). Ilustração © Fernando J. S. Correia, 2021

Mais tarde, nos finais do Miocénico, há cerca de 7 Ma, a bacia foi inundada pelas águas do oceano. Formou-se um amplo golfo marinho. Nas suas margens, associados aos rios de então, desenvolviam-se ambientes estuarinos e, para além deles, estendiam-se ambientes continentais terrestres.

Posteriormente, não obstante alguma atividade tectónica importante, o Sado entalha a sequência sedimentar originada desde o Eocénico, criando o traçado que conhecemos atualmente. Nas suas margens existem terraços fluviais, ricos de areias e cascalheiras. É também nas suas margens que ocorrem vestígios das primeiras ocupações humanas nesta região.

Figura 5 – Amostra de rocha da Formação Vale do Guizo: Conglomerado castanho-avermelhado, heterométrico, constituído sobretudo por calhaus de quartzo de dimensões variadas, resultante de sedimentação em ambientes de leque aluvial em clima árido. Fotografia © José Vicente | Agência Calipo, 2020

Os estratos da Formação Esbarrondadoiro (Figura 6) resultam do enchimento sedimentar desse golfo e são essas camadas geológicas e os fósseis que elas encerram que nos contam a história neogénica da Bacia de Alvalade. 28

Figura 6 – Afloramento da Formação Esbarrondadoiro: Arenito amarelado, fino, micáceo, por vezes fossilífero, resultante de sedimentação em ambiente marinho. Fotografia © José Vicente | Agência Calipo, 2020


3. O REGISTO FÓSSIL São comuns, no território de Alvalade, os achados de vestígios de animais que aqui viveram há milhões de anos. Tais achados suscitam a curiosidade de todos. Como é possível que nesta região apareçam dentes fossilizados de tubarão? De onde vêm as conchas de ostras que surgem em Monte Espada? Os tubarões são animais marinhos, mas não há mar em Alvalade! Alguns destes curiosos objetos foram recolhidos e guardados pelo Padre Jorge de Oliveira, pároco de Alvalade na primeira metade do século XX. Foi o seu interesse pelos testemunhos do passado, nomeadamente pelos fósseis, que levou o jovem Georges Zbyszewski, geólogo e paleontólogo, russo de nascimento, a contactá-lo em 1936. Zbyszewski, então Assistente da Faculdade de Ciências da Universidade de Paris, deslocara-se a Portugal para estudar a Geologia das formações litorais quaternárias nacionais no âmbito dos seus trabalhos de doutoramento. Foi Zbyszewski, desde 1940 geólogo dos Serviços Geológicos de Portugal (hoje, Laboratório Nacional de Energia e Geologia, LNEG), quem estudou os fósseis recolhidos pelo pároco, publicando as suas conclusões sobre os dentes de Hipparion em meados do século passado (Zbyszewski, 1947). O “tesourinho de fósseis” do Padre Jorge de Oliveira (Figura 7), já fazendo parte da história de Alvalade, conta-nos igualmente uma história bem mais antiga, uma história de ambientes passados e de grupos biológicos desaparecidos.

Figura 7 – Na década de 1930, o R.P. Jorge de Oliveira recolheu no Monte Novo do Concelho um conjunto de fósseis posteriormente estudados por Georges Zbyszewski dos Serviços Geológicos de Portugal. Entre eles encontravam-se os de Hipparion. Alguns dos fósseis então encontrados foram agrupados nesta coleção. Fotografia © José Vicente | Agência Calipo, 2020

A informação sobre os animais e plantas do passado da Terra está contida no registo geológico sob a forma de fósseis, ou seja, de vestígios orgânicos preservados nas rochas. Os fósseis, juntamente com os minerais e as rochas, os estratos e os recursos geológicos, incluindo o petróleo e o gás natural, são elemento fundamental da geodiversidade, da componente abiótica, não biológica, da Natureza. Os fósseis são o objeto de estudo da Paleontologia. Estudando vestígios de organismos do passado preservados nas camadas rochosas, esta disciplina científica estabelece a ligação entre as ciências geológicas e as biológicas. Os fósseis são como "cápsulas do tempo" que nos foram enviadas, por vezes há centenas de milhões de anos, por organismos há muito desparecidos. Para se obter a informação biológica e geológica contida neles é necessário entender como se formam, ou seja, é necessário compreender os processos de fossilização, perceber como a informação biológica do passado é transposta para os fósseis no registo geológico do presente. A fossilização inicia-se com a morte dos organismos ou com a geração dos vestígios passíveis de fossilizar (Figura 8). É nesse momento – e não apenas após o enterramento – que começam a atuar sobre os restos biológicos os processos que determinam o modo como eles chegarão até nós como fósseis, bem como o seu estado de conservação. Contudo, não é necessário que um organismo morra para que dê origem a restos fossilizados. Para se obterem fósseis de folhas, por exemplo, não é necessário que a planta que as gerou morra. Basta que essas folhas caiam e sejam integradas num material geológico, num sedimento, por exemplo. Do mesmo modo, para se obter uma pegada fossilizada de um dinossáurio jurássico, o animal não teve de morrer. Bastou que se deslocasse sobre um substrato plástico, moldável, um que preservasse as impressões das suas patas. Vejamos um exemplo mais comum, envolvendo um animal vertebrado terrestre do grupo dos Equídeos, dos cavalos. Em Alvalade, no Monte Novo do Concelho, por exemplo, são conhecidos fósseis de animais deste grupo, de Hipparion, de idade miocénica superior a pliocénica inferior. A fossilização inicia-se com a morte do organismo. Após a morte, frequentemente, o corpo do animal é arrastado e depositado num local diferente do da morte (Figura 8.1). Durante esta fase de transporte pós-morte e pré-enterramento, o cadáver pode ser alvo de organismos necrófagos que dele se alimentem, podendo continuar a ser arrastado por correntes e enxurradas. Como resultado, o cadáver é comummente des29


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Figura 8 – A fossilização inicia-se com a morte do organismo (1). Entre a morte e o enterramento pode ocorrer o arrastamento e o desmembramento do cadáver. Uma vez os restos esqueléticos enterrados (2), ocorre a petrificação dos elementos do esqueleto (3), transformando os ossos originais nos fósseis que poderemos encontrar preservados no registo geológico (4). Estes processos, sobretudo os pós-enterramento, podem atuar durante muitos milhões de anos. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20214

membrado, o esqueleto, desarticulado e os seus ossos, fraturados. É por isto que os fósseis de esqueletos completos de animais vertebrados são tão raros! A dada altura ocorre o enterramento (Figura 8.2). É a partir deste instante que temos um fóssil, a partir do momento da integração do resto ou vestígio biológico num contexto, num meio geológico. Entre o enterramento do cadáver e a descoberta do seu fóssil podem decorrer milhões de anos (Figura 8.3). É durante esta fase pós-enterramento que os restos biológicos são petrificados, mineralizados, e se formam os moldes internos e externos. Chega até nós, normalmente, apenas parte da informação biológica original, uma parte do esqueleto original do organismo (Figura 8.4).

Contudo, a fossilização não é um processo que acarrete forçosamente perda de informação. Uma pegada fossilizada não é muito diferente do original! Desde a sua formação até à sua descoberta, não há perda significativa de informação biológica. Por outro lado, durante a fossilização, também há ganhos de informação, sobretudo de informação geológica sobre as condições de formação dos fósseis. Tudo o que nos fósseis e no modo como ocorrem nas camadas regista o que aconteceu aos restos orgânicos após a morte do organismo (orientação dos restos, fraturas, desarticulação, marcas deixadas por necrófagos, deformação, etc.) é informação que não estava associada ao organismo original, mas que chega até nós, mostrando-nos como e em que condições ambientais decorreram os processos de fossilização. Não é informação biológica, mas sim geológica, tafonómica.

Figura 9 – Tubarões: predadores de topo no mar miocénico da Bacia de Alvalade. Carcharias (à esquerda) e Carcharocles (à direita). Ao centro, uma raia miliobatiforme. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20214

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Figura 10 – Fauna da orla costeira da Bacia de Alvalade no final do Miocénico. Da esquerda para a direita. Equídeos Hipparion, sirénios – dugongos – e bancos de ostras Crassostrea gryphoides. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20214

Na região de Alvalade, estão expostas à superfície as camadas sedimentares da Formação Esbarrondadoiro formadas nos finais do Miocénico e no início do Pliocénico, há aproximadamente 7 a 5 Ma. É nelas que encontramos as rochas e os fósseis que nos permitem saber que naquele tempo, na região de Odemira – Ervidel e quase até Alcácer do Sal existia um golfo marinho em cujas margens ocorriam – entre outros – ambientes estuarinos (Figura 4).

Nos ambientes marinhos mais profundos do golfo ocorria uma fauna variada de tubarões, de raias e de animais – peixes e invertebrados – de que eles se alimentavam, bem como cetáceos (Figura 9; e.g., Antunes e Balbino 2003). Junto à costa, em ambientes pouco profundos, com fundos cobertos de plantas marinhas, viviam sirénios, dugongos, que delas se alimentavam (Figura 10). Nos estuários e baías protegidas proliferavam bancos de ostras (Figura 10 e 11).

Figura 11 – As ostras Crassostrea gryphoides viviam sobretudo em ambientes estuarinos. Após a morte, as suas valvas podiam ser arrastadas por correntes e servir de substrato a esponjas perfurantes. As valvas fossilizadas são somatofósseis das ostras. As perfurações, icnofósseis das esponjas. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20214

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Nos ambientes terrestres circundantes existiam Hipparion (Figura 10), um equídeo hoje extinto, e outros animais vertebrados do grupo dos elefantes, das girafas, dos roedores, etc. (Antunes et al., 1986), bem como um coberto vegetal esparso, incluindo plantas de porte herbáceo, arbustos e árvores, e com bastantes clareiras.

4. A HISTÓRIA NÃO ACABA AQUI Há cerca de 2 Ma atrás, já durante o Período Quaternário, surgem na África Oriental os primeiros representantes do género Homo, o grupo biológico a que pertence a espécie que integra todos os humanos da atualidade: Homo sapiens. As suas vidas e a sua passagem por aquelas paragens está documentada por somatofósseis dos seus esqueletos e por icnofósseis das suas pegadas deixadas nos sedimentos plásticos das margens de antigos lagos da região (Roach et al., 2016). O estudo destes vestígios estabelece a ligação entre a Paleontologia e a Arqueologia, por via da Bioarqueologia Humana e da Bioantropologia. Em Portugal, o vestígio mais antigo de ocupação humana conhecido data do Plistocénico, tendo cerca de 400 mil anos. Trata-se de um fragmento de crânio encontrado na Gruta da Aroeira, em Torres Novas, durante escavações arqueológicas que decorreram entre 2013 e 2015 (Daura et al., 2017). Em Alvalade não se encontraram, até à data, evidências de ocupação humana tão antigas. Os vestígios arqueológicos descobertos em Alvalade já não fazem parte do registo geológico, mas sim do arqueológico. Contam, não a história geológica da região, mas sim uma outra história, a dos nossos antepassados humanos, a nossa História.

de F. Correia e colaboradores (Cláudia Barrocas, Rosa Alves, Francisco Cunha, Marcos Oliveira, Wilma Ferrari).

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Departamento de Geologia, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa. IDL - Instituto Dom Luiz, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa. 2 LARC - Laboratório de Arqueociências | DGPC and CIBIO / InBIO. IDL - Instituto Dom Luiz, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa. 3 A Tabela Cronostratigráfica Internacional com versões em variadas línguas, inclusive em português europeu e brasileiro, e toda a informação relacionada com a definição e a atualização regular das suas unidades pode ser consultada e descarregada na página da International Comission on Stratigraphy (ICS) em https://stratigraphy.org.. 4 Composição da autoria de Fernando Correia e elementos individuais

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RAUP, David M. e SEPKOSKI, J. John (1982) – Mass extinctions in the marine fossil record. Science 215, pp. 1501-1503. ROACH, Neil; HATALA, Kevin; OSTROFSKY, Kelly; VILLMOARE, Brian; REEVES, Jonathan; DU, Andrew; BRAUN, David; HARRIS, John; BEHRENSMEYER, Anna e RICHMOND, Brian (2016) – Pleistocene footprints show intensive use of lake margin habitats by Homo erectus groups. Scientific Reports 6, 26374. ZBYSZEWSKI, Georges (1947) – Hipparion gracile du Vale do Sado. Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal 28, pp. 297-300.


GLOSSÁRIO Biocronologia (do grego bíos + vida + khrónos, tempo + lógos, tratado, estudo). Disciplina paleontológica que se ocupa do estudo dos aspetos temporais, da cronologia, da vida do passado da Terra e da formação dos fósseis. Uma das três subdivisões conceptuais da Paleontologia, juntamente com a Paleobiologia e a Tafonomia. Cherte (provavelmente, do inglês chert). Rocha sedimentar siliciosa formada por precipitação química de sílica amorfa biogénica. O sílex é um tipo de cherte. Cronostratigrafia (do grego khrónos, tempo + latim stratu, camada + grego gráphô, escrita, descrição). Disciplina da Estratigrafia que estuda as relações temporais e a idade relativa (i.e., posicional) das camadas geológicas e demais corpos rochosos. Éon (do grego aiôn, duração, eternidade). Período incomensurável de tempo. Em Geologia, a mais ampla unidade de tempo geológico, podendo compreender várias eras. Estratigrafia (do latim stratu, camada + grego gráphô, escrita, descrição). Disciplina da Geologia que estuda os corpos rochosos constituintes da crosta terrestre, organizando-os em unidades geológicas, em camadas e formações, estudando a sua distribuição e relação espacial e a sua sucessão ao longo do tempo com o objetivo de interpretar a história da Terra. Estromatólito (do grego stroma, camada + lithos, pedra). Estruturas organo-sedimentares laminadas, resultantes da precipitação de carbonato de cálcio e do aprisionamento de finas particulas de sedimento como resultado da atividade biológica de cianobactérias. Eucarionte (do grego eu, verdadeiro + káryon, núcleo). Organismos constituídos por células providas de núcleo definido e de mitocôndrias. Os animais e as plantas são organismos eucariontes. Fóssil (substantivo, do latim fossilis, desenterrado). Todo e qualquer vestígio orgânico, somático, isto é, corpóreo (somatofóssil), ou de atividade orgânica (icnofóssil), de organismos do passado, preservado em contextos geológicos e identificável com o seu produtor. Geocronologia (do grego gê, geo, Terra + khrónos, tempo + lógos, tratado, estudo). Ciência geológica que se ocupa da datação e sequenciação cronológica, ao longo do tempo, dos eventos da história da Terra. Geodiversidade (do grego gê, geo, Terra + diversidade). A variedade de elementos geológicos, abióticos, que constituem o planeta Terra. Os minerais, os fósseis, os vulcões, as águas subterrâneas, as camadas geológicas, os recursos minerais, os solos, as rochas e as paisagens, etc., são todos elementos da geodiversidade.

Geologia (do grego gê, geo, Terra + lógos, tratado, estudo). Ciência que estuda o planeta Terra, a sua origem, história, estrutura e os seus elementos constituintes (rochas, minerais e fósseis), bem como os processos relacionados com a sua evolução e dinâmica interna e externa. Heterotrófico (do grego héteros, outro, diferente + trophe, alimentação). Ser vivo incapaz de produzir os seus próprios nutrientes, tendo de consumir matéria orgânica pré-existente, proveniente de outros organismos, principalmente de animais e plantas. Icnofóssil (do grego ikhnós, traço, vestígio + fóssil). Fóssil de um vestígio de atividade biológica, vital, comportamental, de organismos do passado. Paleontologia (do grego palaiós, antigo + ontós, ser + lógos, tratado, estudo). Ciência natural que estuda a vida do passado da Terra, a sua evolução ao longo do tempo, assim como o modo como se formam os fósseis. A Paleontologia, estudando fósseis, estabelece a ligação entre as ciências geológicas e as biológicas. A Paleontologia subdivide-se em Paleobiologia, Biocronologia e Tafonomia. Paleobiologia (do grego palaiós, antigo + biologia). Disciplina paleontológica que se ocupa do estudo da vida do passado da Terra, por via da análise dos fósseis. Uma das três subdivisões conceptuais da Paleontologia, juntamente com a Tafonomia e a Biocronologia. A Paleobiologia subdivide-se em Paleozoologia, Paleobotânica, Paleoecologia, etc. Planetesimal (do latim planeta + infinitesimal, infinitamente pequeno). Segundo a hipótese planetesimal de formação dos planetas, são objetos celestes sólidos formados por aglomeração de poeiras cósmicas que, colidindo e agregando-se, geram corpos celestes cada vez maiores. Ao atingirem 1 km de diâmetro, os planetesimais poderiam agregar outros planetesimais, por atração gravítica mútua, até formarem pequenos protoplanetas. Procarionte (do grego pró, antes de + káryon, núcleo). Organismo constituído por célula desprovida de núcleo definido e de mitocôndrias. As bactérias são organismos procariontes. Somatofóssil (do grego sóma, corpo + fóssil). Fóssil de um resto ou de um vestígio do corpo – isto é, somático – de organismos do passado. Tafonomia (do grego taphós, enterramento, sepultura + nomia, regra, gestão). Disciplina da Paleontologia que estuda a integração da informação biológica do passado no registo geológico, isto é, que estuda a fossilização, a formação dos fósseis. Uma das três subdivisões conceptuais da Paleontologia, juntamente com a Paleobiologia e a Biocronologia.

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PALEONTOLOGIA Fotografias de © José Vicente | Agência Calipo, 2020 (a), José Matias (b) e Paulo Chaves

"TESOURINHO DE FÓSSEIS"

(a)

Na década de 1930, o R.P. Jorge de Oliveira reuniu uma coleção de fósseis e de outros materiais. Entre eles encontravam-se os de Hipparion estudados por Georges Zbyszewski dos Serviços Geológicos de Portugal. Alguns dos fósseis então encontrados foram agrupados nesta coleção. Dimensões: 19 cm C. | Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - EA/65) | Coleção: particular

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Hipparion gracile

(b) Réplica de fragmento fossilizado de maxila de exemplar juvenil de Hipparion apresentando dois dentes pré-molares decíduos. Formação Esbarrondadoiro. Miocénico superior a Pliocénico inferior. Dimensões: 7 cm C. | Proveniência: Monte Novo do Concelho, Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º 5749) | Réplica em exposição | Coleção: Museu Geológico e Mineiro

Carcharhinus

Dente fossilizado de tubarão. Formação Esbarrondadoiro. Miocénico superior a Pliocénico inferior. Dimensões: 14 mm A. | Proveniência: Monte Novo do Concelho, Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - AA/43) | Coleção: particular

Fauna da orla costeira da Bacia de Alvalade no final do Miocénico. Equídeos Hipparion gracile. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20211

Carcharias

Dente fossilizado de tubarão. Formação Esbarrondadoiro. Miocénico superior a Pliocénico inferior. Dimensões: 23 mm A. | Proveniência: Monte Novo do Concelho, Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - AA/44) | Coleção: particular

No mar Miocénico os tubarões eram abundantes e diversificados. A forma dos dentes destes animais está relacionada com a sua dieta. Dentes alongados e afilados possibilitam caçar presas mais ágeis. Dentes mais triangulares permitem despedaçar presas mais robustas. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20211

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Crassostrea gryphoides

Crassostrea gryphoides

Valva fossilizada de ostra. Formação Esbarrondadoiro. Miocénico superior a Pliocénico inferior. Dimensões: 19 cm C. | Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - EA/65) | Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

Crassostrea gryphoides

Valva fossilizada de ostra. Formação Esbarrondadoiro. Miocénico superior a Pliocénico inferior. Dimensões: 18,6 cm C. | Proveniência: Monte Espada, Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - 2) | Doação: António Alves da Silva | Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Valva fossilizada de ostra. Formação Esbarrondadoiro. Miocénico superior a Pliocénico inferior. Dimensões: 20 cm C. | Proveniência: Monte Espada, Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - 1) | Doação: António Alves da Silva | Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Fauna da orla costeira da Bacia de Alvalade no final do Miocénico. Sirénios – dugongo – e bancos de ostras Crassostrea gryphoides. Ilustração © Fernando J. S. Correia, 20211 1

Composição da autoria de Fernando Correia e elementos individuais de F. Correia e colaboradores (Cláudia Barrocas, Rosa Alves, Francisco Cunha, Marcos Oliveira, Wilma Ferrari)

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Página anterior: REPRESENTAÇÃO DE ACAMPAMENTO RIBEIRINHO NEOLÍTICO Ilustração de César Figueiredo

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O SÍTIO ARQUEOLÓGICO DA GASPEIA E O TERRITÓRIO NEOLÍTICO DE ALVALADE JOAQUINA SOARES1 E CARLOS TAVARES DA SILVA2

CONTEXTO FÍSICO DA BACIA DE ALVALADE A génese da Bacia de Alvalade relaciona-se com uma das fases iniciais dos movimentos tectónicos alpinos desencadeados pela convergência das placas euroasiática e africana durante o Cenozóico (Pais et al., 2012, p. 89). Teve início no Paleogénico (entre o Eocénico médio e o Oligocénico inferior), posteriormente à abertura do Atlântico e à rotação da microplaca ibérica. A falha de Messejana limita-a a SE e o sistema de falhas do vale inferior do Tejo delimita o seu flanco NW. Na área de Ermidas Sado há indícios de atividade neotectónica em falhas de direção N-S, que afectam sedimentos miocénicos e plio-quaternários (Figuras 1 e 2).

O Paleogénico está representado pela Formação de Vale do Guizo (Antunes 1983; Gonçalves e Antunes 1992), que se depositou na Bacia de Alvalade como resposta sedimentar à erosão das escarpas de falha relacionadas com a reativação da rede de fraturas tardivariscas (Pimentel, 1997). O início do Neogénico foi assinalado pela transgressão miocénica a partir da região de Setúbal, no Aquitaniano, e que progrediu para SE, tendo atingido Alvalade (Formação de Esbarrondadoiro), e Ferreira do Alentejo (Costa, 1994). A posição sub-horizontal dos depósitos do Neogénico e do Plistocénico (Formação de Panóias), em dinâmica de subsidência e concomitantemente de sedimentação, é responsável pelo aplanamento geral da área da Bacia de Alvalade (Carvalho et al., 1983), morfologia contrastante com o relevo talhado, por vezes vigoroso, das formações paleozoicas da Zona Sul Portuguesa. Nos limites sudoeste, este e norte, a Bacia de Alvalade é delineada por afloramentos do Complexo Vulcano-Sedimentar da Faixa Piritosa Ibérica (FPI), respetivamente em Cercal/S. Luís, Aljustrel (Leitão, 2014) e Lousal (Matos e Oliveira, 2003). O rebordo da Bacia de Alvalade terá sido a principal fonte abastecedora de matérias-primas para a manufatura da utensilagem lítica das populações pré-históricas deste território. A Formação de Alvalade, constituída por areias fluviais alaranjadas do Pliocénico, estende-se por amplas áreas, tal como os depósitos de cobertura (terraços, depósitos de vertente, areias dunares e aluviões), de Idade Quaternária (Cunha, Pais e Legoinha, 2009; Pais, Cunha e Legoinha, 2010; Pais et al., 2012), que constituíram o substrato para assentamento da maior parte dos sítios arqueológicos.

Figura 1 – Bacias cenozoicas do Ocidente ibérico. Adaptado de Pais et al., 2012

Embutidos na superfície culminante da Bacia de Alvalade, surgem terraços fluviais e depósitos de planície de inundação, antigas lagoas, ao longo dos principais cursos da rede hidrográfica quaternária. Durante o ótimo da transgressão flandriana, Alvalade teria abrangido vasta 39


Figura 2 – Enquadramento geológico da Bacia de Alvalade ou do Alto Sado, na Zona Sul Portuguesa. Adaptado de Oliveira et al., 2006

área húmida e lagunar em resultado da confluência das ribeiras de Campilhas, Roxo e rio Sado, a avaliar pelos leitos de cheia desses cursos de água. Este produtivo cenário flúvio-lagunar terá compensado o microclima de caráter mais seco que o da zona costeira, determinado pela geomorfologia da Bacia, em posição de abrigo aerológico criado pelas Serras de Grândola e Cercal (Andrade, 2016). A distribuição dos vestígios neolíticos no território de Alvalade (atuais freguesias de Alvalade e Ermidas-Sado do concelho de Santiago do Cacém) segue o desenho da rede hidrográfica, salientando a importância desse fator locativo. Por outro lado, as comunidades neolíticas de Alvalade procuraram solos arenosos para a implantação das suas aldeias, por questões de salubridade e de práticas agrícolas. Tenha-se presente que os solos mais férteis para a agricultura cerealífera, os barros, de grande desenvolvimento vertical e com fraca representação regional (≤10%), seriam impraticáveis com a tecnologia do Neolítico antigo e médio. Pelo contrário, seriam elegíveis pelas primeiras comunidades campo40

nesas os solos incipientes (regossolos), bem representados na região (≥ 23%) e podzolizados, ou, implicando embora um maior investimento em trabalho, os solos mediterrâneos, de perfil evoluído, onde o maior teor de argila se concentra na base do perfil (c. 38%) (Alexandre e Correia, 2016). Durante o Boreal e Atlântico − as cronozonas holocénicas que aqui mais nos interessam − a paisagem seria bem mais arborizada do que atualmente. Com informação proveniente dos estudos palinológicos das lagoas da costa alentejana (Queiroz e Mateus, 2004) e do estudo antracológico dos carvões das lareiras mesolíticas da Gaspeia, realizados por Ernestina Badal (2003) e João Tereso e Paula Queiroz (2020) é possível admitir que a área seria coberta por floresta mista de pinheiro bravo (Pinus pinaster), pinheiro manso (Pinus pinea), sobreiro (Quercus suber) e azinheira (Quercus ilex subsp. ballota). Ao longo dos cursos de água subsistem ainda, muito desmantelados, vestígios da floresta ripícola, com salgueiros, choupos, loendros, atabuas, troviscos, matos diversos, junça, juncos, usados ainda hoje na cestaria e na cobertura de cabanas (Figuras 3-5).


Figura 3 e 4 – Aspectos do corredor ripícola da margem esquerda do Sado no sítio arqueológico da Gaspeia. Fotos de José Matias

A madeira terá substituído parcialmente a pedra, face à escassez de rochas consolidadas, quer na construção do espaço habitado e no arranjo dos campos agrícolas, quer na produção artesanal.

o Paleolítico superior, mas trata-se de um indício ainda muito vago, que requer confirmação em futuros trabalhos de campo.

. Figura 5 – Margem esquerda do Sado. Gaspeia. Em primeiro plano, sobreiros dispersos e fetos no leito de cheia do rio. Foto de José Matias

ORIGENS DO POVOAMENTO HUMANO Frequentação durante o Paleolítico (?) Não existem evidências inequívocas da frequentação do território restrito de Alvalade durante o Paleolítico inferior e médio. No entanto, alguns artefactos do Paleolítico inferior, nomeadamente bifaces, foram recolhidos em terraços do Sado (Figura 6), (Burke et al., 2011), bem como no litoral de Sines (arriba do Pessegueiro), onde uma datação pelo método de termoluminescência lhes atribui a idade mínima de 150.000 anos (Debenham, 1997; Cardoso, 2019). O achado de fragmento de ponta de jaspe de tipo Vale Comprido em Monte Novo dos Modernos 2 (Ermidas-Sado, aldeia) indicia eventual presença dos primeiros Homo sapiens na região, durante

Figura 6 – Integração do antigo concelho de Alvalade – Território de Alvalade – na bacia do Sado. Localização dos sítios do Paleolítico antigo e médio identificados no âmbito da prospeção realizada em 2004-2008 (Burke et al., 2011) e de três sítios, provavelmente do Paleolítico superior e Epipaleolítico/Mesolítico antigo, identificados pela empresa Palimpsesto por adjudicação da Câmara Municipal de Santiago de Cacém

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OS PRIMEIROS ACAMPAMENTOS DE CAÇADORES-RECOLECTORES Há cerca de 8000 anos, a Bacia de Alvalade era habitada por grupos de caçadores-recolectores mesolíticos. Estabeleceram-se nas margens do Sado.

O SÍTIO ARQUEOLÓGICO DA GASPEIA Mesolítico final As escavações arqueológicas realizadas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), em uma extensão de 219 m2 sob a direção dos signatários, no sítio da Gaspeia revelaram um acampamento mesolítico3, datado no intervalo de 6030 a 5720 cal BC, sobreposto, nos finais do 6º milénio/ primeira metade do 5º milénio cal BC, por uma ocupação do Neolítico antigo evolucionado. A região era então coberta, como antes referimos, por floresta mista de pinheiro e de carvalhos de folha perene; o rio dilatava-se aqui em extensa toalha líquida, bebedouro natural para a fauna de grandes mamíferos e certamente rica em peixe4. A identificação deste acampamento mesolítico amplia os territórios explorados pelas comunidades mesolíticas do Sudoeste português, e coloca em evidência o protagonismo das populações autóctones do Mesolítico final no processo de neolitização. Com efeito, não só a forma de ocupação do espaço e as principais estratégias de subsistência, mas também as estruturas de combustão domésticas e a indústria lítica prosseguirão, sem acentuadas descontinuidades, adentro dos primeiros tempos neolíticos.

Figura 7 – Distribuição dos principais sítios do Mesolítico Final do Sul de Portugal: A- Vale do Tejo; B- Paleoestuário do Sado; C- Costa Sudoeste de Portugal. Adaptado de Soares e Tavares da Silva, 2018

A indústria em pedra lascada encontra-se bem representada; as matérias-primas utilizadas foram sobretudo seixos rolados de quartzo leitoso provenientes dos depósitos do Sado e cherte, das intercalações do complexo vulcano-sedimentar do Cercal/S. Luís; nas técnicas de talhe predomina a percussão indireta, direcionada para a obtenção de lamelas, de acentuado microlitismo; de entre os instrumentos retocados, destaque para a produção de elementos geométricos de projétil (zagaias ou arpões), sobretudo na forma de segmentos, segundo a técnica do microburil e retoque abrupto.

Não é possível, por agora, definir a rede de interações desta comunidade com os grupos mesolíticos do paleoestuário do rio, entre a foz do Xarrama e Alcácer do Sal, e os grupos da costa sudoeste portuguesa, de Melides a Sagres, embora se possa aceitar, como hipótese de trabalho, a existência de relações entre o acampamento mesolítico da Gaspeia (Figura 7), o único até agora escavado na Bacia de Alvalade, e o provável acampamento de base, parcialmente contemporâneo, do Vidigal, na costa alentejana. Figura 8 – Gaspeia, 2005. Sondagem XIX. Escavação da camada do Mesolítico .

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Figura 9 – Gaspeia. Sondagem XIX. Núcleo habitacional do Mesolítico. Distribuição dos artefactos líticos estudados

Foram identificadas diversas lareiras (Figuras 8-9) instaladas em depressões escavadas nas areias, repletas de seixos de quartzo, usados como acumuladores térmicos. O combustível era constituído por lenha de pinheiro que arde mais rapidamente e lenha de sobro e azinho de combustão mais lenta. Para atear o fogo eram usadas gramíneas selvagens. As lareiras comportaram-se como polos de sociabilidade, de atividade artesanal, de culinária (presença de fragmentos de ossos) e aquecimento. É provável que a Gaspeia fosse um acampamento de inverno associado ao acampamento de base do Vidigal localizado sobre a plataforma litoral a sul de Porto Covo. A cronologia, o aprovisionamento de matérias abióticas e a tecno-tipologia da indústria em pedra lascada aproximam estes sítios. Por outro lado, também a distância geográfica entre eles é menor que entre a Gaspeia e os sítios mesolíticos do paleo-estuário do Sado.

Neolítico antigo evolucionado Durante o Neolítico antigo, o sítio da Gaspeia volta a ser ocupado, presumivelmente também em regime sazonal. Os testemunhos dessa ocupação distribuem-se pela vasta área da jazida de modo polinucleado, sem podermos afirmar se esses núcleos teriam funcionado simultaneamente ou se corresponderiam a ocupações escalonadas no tempo curto, sem expressão arqueológica. Tal como no Mesolítico, foram escolhidas áreas arenosas, evitando as formações argilosas que confinam a oeste com a Gaspeia. Este padrão locativo é o mais frequente durante o Neolítico antigo do ocidente peninsular porque o meio arenoso, ao permitir a fácil drenagem das águas pluviais, garantia maior salubridade. No caso da Bacia de Alvalade, o território neolítico organizou-se em função da rede hidrográfica (Sado e ribeiras de Campilhas e Roxo) de cuja reunião resulta uma vasta área húmida, e muito

provavelmente lagunar durante o Neolítico, como anteriormente referimos. Os habitats localizaram-se, pois, nas margens desse grande “lago interior”. A fase de ocupação neolítica mostrou-se verdadeiramente excecional por ter revelado um locus com numerosas estruturas de combustão, repletas de seixos, tal como as do Mesolítico, mas organizadas em bateria (Figuras 10 e 11). Estariam, certamente, ao serviço de uma forma de economia especializada, que consistiria, por hipótese, na conservação pelo calor e fumo, de quantidades apreciáveis de pescado e/ou de caça destinados provavelmente a armazenagem em estabelecimento de base, no âmbito de uma estratégia de mobilidade logística. Devido à acidez dos sedimentos, quase não se conservou matéria orgânica. Porém, ficaram impressos no barro de revestimento dos solos de habitat grãos de trigo e cevada, identificados por Hans-Peter Stika (2020): Triticum monococcum, Triticum dicoccum, Hordeum vulgare que documentam a inclusão de cereais na alimentação dos habitantes da Gaspeia. A indústria em pedra lascada prossegue a tradição mesolítica no que respeita à tecnologia e tipologia, havendo a acrescentar apenas um novo tipo de projéctil, a flecha transversal. As fontes de aprovisionamento são as utilizadas no Mesolítico. Os artefactos polidos biselados, necessários à actividade agrícola, estão representados por fragmento de machado longo (?), de eclogito, de grande qualidade técnica e em matéria-prima exógena, o que documenta rede de trocas de acentuada amplitude; os artefactos bujardados, também escassos, estão presentes através de fragmentos de elementos de mó e de polidor portátil. 43


Figura 10 – Gaspeia, 2002-2005. Sondagem XIX. Plano da base da C.2C (ocupação do Neolítico) com as estruturas de combustão organizadas em bateria e os termoclastos acumulados no seu exterior

A cerâmica é o principal indicador crono-corológico desta fase de ocupação (Figura 12). Produzida manualmente e, de um modo geral, cozida em ambiente redutor-oxi-

PROCESSO DE NEOLITIZAÇÃO Mudança socioeconómica maior no tempo longo (Soares e Tavares da Silva, 2004), a passagem da economia re-

Figura 12 – Gaspeia neolítica. Recipiente de cerâmica de forma ovoide (reconstituição), decorado por impressões organizadas em cinco linhas paralelas, imediatamente abaixo do bordo, e por grupos de caneluras verticais e paralelas que partem de mamilo de perfuração vertical. Desenho de Teresa Rita Pereira e tintagem de Fernanda Sousa; foto de Rosa Nunes Figura 11 – Gaspeia, 2005. Aspecto da escavação, após a desmontagem das estruturas de combustão neolíticas da Camada 2C da Sondagem XIX

dante (núcleo cinzento escuro e superfícies castanhoavermelhadas), forma um conjunto estilisticamente homogéneo que se distribui por toda a área escavada. Possui formas simples, esferoidais ou ovoides, de bordo não espessado. Apresenta decoração executada pelas técnicas da impressão com recurso a elevada diversidade de matrizes (nas quais se inclui a concha do Cardium), associadas às técnicas do boquique, da incisão, e a motivos plásticos. A cerâmica corresponde, no seu polimorfismo decorativo, ao que tem vindo a ser designado por Neolítico antigo evolucionado, datável entre os dois últimos séculos do 6º milénio cal BC e a primeira metade do milénio seguinte. A sua decoração contrasta, pois, com a monotonia decorativa (essencialmente impressa) da cerâmica da fase precedente, com datas do segundo quartel/meados do 6º milénio cal BC e representada por reduzido número de jazidas5. 44

colectora complexa do final do Mesolítico (caça-pesca-recolecção-armazenagem) à agropastorícia terá ocorrido, a diferentes ritmos espácio-temporais, no Sudoeste Ibérico, com a incorporação progressiva das espécies animais e vegetais domesticadas (na lógica da economia de largo espectro) e a integração das inovações tecnológicas neolíticas (utensilagem em pedra polida e cerâmica), com manutenção da tecnologia tradicional do talhe lítico, e persistência dos sistemas mesolíticos de aprovisionamento e gestão de muitos dos recursos naturais. Desta forma, a neolitização teria constituído para os seus autores, as comunidades mesolíticas em diversas etapas de assimilação das inovações, uma via de dilatação do espectro de recursos alimentares, intensificação económica necessária para responder à dinâmica de crescimento demográfico entretanto verificada (Soares, 1997).


O modelo teórico de osmose cultural (Tavares da Silva e Soares, 2007), associado ao processo percolativo de geometria fractal (Rodríguez Alcalde, Alonso Jiménez e Velázquez Cano, 1996), que defendemos para a neolitização do Sudoeste Ibérico, opõe-se ao da onda migratória por via marítima de “colonos pioneiros”. O nosso modelo aposta em mecanismos de interação e de transferência de informação e materiais através de redes de relações de reciprocidade baseadas essencialmente em práticas exogâmicas e nos filtros culturais e ecológicos impostos à circulação e assimilação das inovações pelos diferentes grupos em presença (Figura 13); o modelo é suportado pela teoria do caos, onde a imprevisibilidade se ajusta bem à contingência do comportamento humano. No nosso modelo, não há lugar para migrações de “colonos”, o que não obsta à mobilidade de pessoas nos territórios intra e intergrupais, aliás confirmada pelos estudos de paleogenética que admitem ter sido a diversidade genética moldada predominantemente por processos locais. O sítio da Gaspeia e o processo de neolitização subjacente admitem modelo de organização territorial em mosaico, com fronteiras permeáveis a transferências de múltiplos sentidos.

Figura 13 – Principais sítios do Neolítico antigo da Costa Sudoeste Portuguesa, com particular destaque para a Gaspeia (vermelho)

Figura 14 – Modelo esquemático dos factores estruturantes e do sistema de relações interactivas do processo de neolitização na Costa Sudoeste Portuguesa (Soares, 1997)

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DO SÍTIO DA GASPEIA AO TERRITÓRIO NEOLÍTICO DE ALVALADE: Instrumentos Polidos e Bujardados No âmbito da instalação do Museu de Arqueologia de Alvalade surgiu a oportunidade de se proceder ao estudo de um conjunto de 132 instrumentos líticos, sendo 70 (53%) de pedra polida (machados, enxós e sachos) e 62 (47%) de pedra bujardada (elementos dormentes e moventes de mós manuais, polidores e afiadores portáteis utlizados na manufatura e/ou mais provavelmente na reparação de instrumentos em pedra polida, e ainda percutores). A amostra incluiu peças de coleções institucionais e particulares e foi reunida graças ao empenhado esforço da Drª Fernanda do Vale e de José Matias, responsáveis pelos museus municipais de Santiago do Cacém a quem vivamente agradecemos a colaboração dispensada no que concerne à logística e à recolha de informação e de imagens, propositadamente realizadas por José Matias para o enquadramento paisagístico da região em apreço. Os grupos neolíticos do território de Alvalade (área do antigo concelho)6 não dispunham localmente, na Bacia ceno-antropozoica de Alvalade, de recursos litológicos necessários à produção da maior parte da utensilagem lítica. Faltam afloramentos de rochas duras, excetuando os grauvaques no limite norte (área de Ermidas), a cerca de 10Km da atual vila de Alvalade. O grauvaque foi o litotipo mais utilizado na utensilagem bujardada com 35 peças (56,5%), enquanto nos instrumentos polidos a preferência recaiu sobre anfibolitos com 56 efetivos (80%) e pórfiros com 6 exemplares (8,6%). Os anfibolitos

mais próximos de Alvalade estão disponíveis nas áreas de Lousal e Aljustrel, a distâncias mínimas, respetivamente, de cerca de 16 e 30km, o que implicaria deslocações de ida e volta de cerca de 6 e 12 horas. Neste grupo petrográfico existe alguma variabilidade, que se reflete sobretudo na maior ou menor dureza da rocha e na sua diferente resistência ao impacto e ao desgaste. No território de Alvalade é possível que o abastecimento em rochas duras fosse assegurado diretamente pelas comunidades locais, através de pequenos grupos que percorreriam preferencialmente um arco NW-SE, abrangendo Canal Caveira/Lousal–Aljustrel–Cercal. As primeiras fases de produção da utensilagem polida, de formatação dos lingotes e preparação de esboços deveriam ser realizadas maioritariamente junto dos afloramentos, com recurso a lascagem e desbaste, pois faltam evidências desta atividade nos espaços habitacionais; para o habitat e sua envolvente, de preferência junto aos cursos de água, ficariam reservadas as tarefas mais morosas de bujardagem fina/picotado e polimento. Na fase de modelação do corpo do instrumento, o lingote era atuado por golpes de percutor. O acabamento do artefacto, através da técnica do polimento, era a fase mais exigente em tempo e trabalho, e tinha subjacente a distinção entre instrumentos de trabalho e peças rituais ou de aparato, mas mesmo no acabamento de instrumentos de trabalho, sem visíveis preocupações estéticas, o polimento cuidado do gume era essencial para garantir a eficiência do artefacto, aumentando a sua ca-

Figura 15 – Distribuição geográfica das principais matérias-primas utilizadas no fabrico da utensilagem lítica do neolítico da Bacia de Alvalade. A maior parte da matéria-prima usada na manufactura de instrumentos polidos biselados (anfibolitos) encontra-se disponível regionalmente, a menos de 50km de Alvalade

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pacidade de penetração. As peças de caráter ritual requeriam um polimento abrangente e mais elaborado, ou mesmo um sobrepolimento. A tipologia das lâminas de pedra polida da coleção de Alvalade e algumas associações contextuais permitem considerá-las por agora do Neolítico, sobretudo do Neolítico antigo evolucionado e médio. Há clara predominância de lâminas polidas de grande formato adequadas a encabamento direto, e a adesão à enxó/sacho (18,6%) terá sido secundarizada face à utilização do machado (71,4%). Podemos concluir que o machado médio-longo (L>15 ≤20cm; peso entre 460-990gr) e o machado longo (L>20≤40cm; peso entre 890-3200gr), ambos de corpo finamente bujardado, com polimento mais ou menos extenso, de contorno fusiforme, secção transversal circular a oval, talão pontiagudo e gume convexo e reduzido, constituem os modelos mais característicos do machado de pedra polida da coleção estudada, atribuída ao território neolítico de Alvalade.

Instrumentos de trabalho A prática da agricultura de “sacho e queimada”, pelas primitivas sociedades camponesas, exigiria, certamente, apreciável número de instrumentos polidos biselados em rochas duras e resistentes, sobretudo na fase de arroteamento dos campos de cultivo a expensas do abate da floresta e da desmatação do sub-bosque, igualmente necessária à instalação de pastagens. Com um machado de pedra polida era possível abater um carvalho com o diâmetro de 9-10 cm em 10 minutos, e com o diâmetro de 17-30cm, em 1-2 horas (Pétrequin e Jeunesse, 1995, p. 11). A preparação inicial do campo de cultivo não dispensava trabalho subsequente de manutenção, mesmo em meio mediterrâneo onde a ação antrópica associada ao fogo dificultariam grandemente a regeneração da floresta. As atividades de construção do habitat, com cabanas, redis, vedações e outras estruturas em madeira e fibras vegetais exigiam muito trabalho de carpintaria, sobretudo em ambiente deficiente em materiais pétreos como o de Alvalade. O provável fabrico de pirogas monóxilas para a pesca fluvial e para a função de ligação entre as margens de espraiada rede fluvial, e a manufatura de ferramentas de madeira e osso seriam outras tarefas de aplicação da nova utensilagem lítica.

Instrumentos rituais Além do seu valor de uso como instrumentos de produção, os artefactos de pedra polida, face ao trabalho investido na respetiva manufatura podem ter sido transformados em equivalente geral de trocas durante o Neolítico. Esta “riqueza” podia ser acumulada e trocada em variadas circunstâncias: crises de subsistência; problemas de territorialidade; procedimentos sociais; rituais funerários e mágico-religiosos, como foi sugerido pelas observações de Patricia Phillips (1979) nas comunidades tradicionais da Nova Guiné e ilhas Salomão. Na coleção de Alvalade, existem machados médio-longos e longos de excelente polimento e com raros ou mesmo sem vestígios de uso, que podem ter desempenhado função ritual, provavelmente funerária. Um pequeno machado e uma enxó miniaturizada de fibrolite (silimanite fibrosa), cuja proveniência mais provável parece ser a Zona Centro-Ibérica (cadeia montanhosa de Guadalajara), a cerca de 600Km de Alvalade, foram certamente muito valorizados enquanto artefactos de prestígio. Finalmente, os instrumentos polidos de grande comprimento são claramente peças de aparato ou rituais, impondo-se mais pelas dimensões “agigantadas” que pelas matérias-primas (anfibolito ou mesmo grauvaque, rocha de baixa qualidade e relativamente acessível, pouco resistente ao impacto). A sua classificação como prováveis relhas de arado votivas (Gonçalves, 198384) aponta para uma cronologia do Neolítico final, período marcado pela segunda revolução neolítica ou revolução dos produtos secundários da criação de gado. Porém, até agora, não dispomos de nenhum achado bem contextualizado. O exemplar de Conqueiros, sítio neolítico provavelmente de larga diacronia, foi encontrado de forma ocasional sem registo das condições de jazida, nem mesmo de localização precisa. Este tipo de artefacto sugeriu-nos a hipótese de alguns dos machados longos, da classe dos 20 a 40cm de comprimento, com corpo fusiforme muito alongado/subcilíndrico, gume estreito, em cunha, poderem ter desempenhado efectivamente a função de relha de arado, questão a que a traceologia poderá vir a responder.

TERRITÓRIO NEOLÍTICO DE ALVALADE Para a maior parte das peças da coleção estudada (74 efetivos, 56,9%) foi possível determinar o local de proveniência e associá-la a cerâmicas neolíticas, reconstituindo-se o caráter doméstico desses estabelecimentos. Alguns artefactos (12 exemplares, 9,2%), embora com indicação do local do achado, correspondem, por agora, a achados isolados, chamando a atenção para 47


áreas a merecerem particular consideração sempre que haja intervenções no solo/subsolo. Parte significativa da colecção conta apenas com a referência locativa de Alvalade (44 exemplares, 33,8%). Embora com fortes limitações impostas pelas fontes disponíveis, mapeámos desta forma a ocupação neolítica de Alvalade (Figura 16), complementada por informação prévia (Soares, 2015; Soares e Tavares da Silva, 2015) e por alguns dos registos obtidos através da prospecção sobre o terreno realizada pela empresa Palimpsesto (Porfírio e Ferreira, 2018).

Espaços domésticos Em síntese, e perante a escassa informação atualmente disponível, o povoamento neolítico da Bacia de Alvalade parece ter sido precedido por ocupação, quiçá sazonal, de pequenos grupos, durante o Mesolítico final, quando a jusante, entre a foz do Xarrama e Alcácer do Sal se consolidava um relativamente denso território mesolítico (Soares, 2013a, 2016a), e a poente, na Costa Sudoeste, de Melides a Sagres, se desenvolvia um outro. A neolitização da Bacia de Alvalade poderá ter-se afirmado apenas no Neolítico antigo evolucionado, entre aproximadamente 5200/5000 e 4500 cal BC. O povoamento neolítico revela a ocorrência de acentuado crescimento demográfico, como foi observado na generalidade do território hoje português; organiza-se claramente em função da rede hidrográfica, com destaque para o Sado e ribeiras de Campilhas e Rôxo (a prospecção das margens da ribeira de S. Domingos trará provavelmente a confirmação do prolongamento deste território neolítico para oeste, como é sugerido pelo achado do vaso do Pego da Mangra). Outro fator locativo importante parece ter sido a natureza do substrato geológico: areias, solos ligeiros e bem drenados, de morfologia aplanada, não distantes de recursos aquíferos. De um modo geral, é este o padrão locativo mais comum para a instalação de sítios de habitat durante o Neolítico antigo e antigo evolucionado.

Espaços funerários

Figura 16 – Localização de vestígios de ocupação do Neolítico (círculos e números a negro) da Bacia de Alvalade: 1- Vale da Eira/Monte Novo; 2 - Herdade do Monte do Lousal; 3 - Porto do Batel; 4 - Herdade do Cartaxo (Ermidas do Sado) 5 - Monte Branco da Serra; 6 - Mal Assentada; 7 - Carregueira da Relva; 8 - Várzea da Carregueira da Relva; 9 - Faial(?); 10 - Bica Velha; 11 - Monte da Amieira; 12 - Vinha de Conqueiros; 13 - Figueira da Metade (Herdade de Conqueiros); 14 - Azinhal - Vale de Zebro; 15 - Monte da Vinha; 16 - Herdade da Carunchola; 17 - Herdade da Boavista; 18 - Corredoura; 19 - Gaspeia; 20 - Monte da Retorta; 21 - Várzea do Monte da Retorta; 22 - Defesa (Charneca). Localização de vestígios de ocupação de grupos de caçadores recolectores holocénicos (quadrados e números a vermelho): 1 - Monte Novo(?); 2 - Bica Velha 3(?); 3 - Gaspeia. Base Cartográfica: Folhas 1:50 000 dos Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, I.P. e Serviços Geológicos de Portugal, nºs 42-B, 42-C e 42-D

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Os espaços funerários, durante o Neolítico antigo evolucionado, localizavam-se no interior dos povoados. As sepulturas, individuais e em fossa, recebiam os inumados em posição fetal. Em povoados sobre areias, onde a conservação da matéria orgânica é muito deficiente, torna-se difícil identificar as sepulturas. Em Vale Marim II-Sines (Tavares da Silva, Soares, Coelho-Soares, 2010), identificámos uma provável fossa funerária, coberta por pequeno tumulus pétreo, com elementos de mó dormentes; ocorrências similares, também com tumuli de blocos pétreos e alguns elementos de mó, haviam sido identificadas em Vale Pincel I (Soares e Tavares da Silva, 2003). Porém, em ambos os sítios não se conservaram restos osteológicos nem oferendas funerárias. Mais recentemente, foram identificadas, em espaço de habitat, duas sepulturas do Neolítico antigo evolucionado, na área urbana de Lisboa, nas quais os mortos eram acompanhados por vasos tipo garrafa com pequenas asas, decorados por impressões e incisões (Cardoso et al.,


2018; Simões et al., 2020). Alguns vasos deste tipo, completos, vinham sendo encontrados acidentalmente, o que indiciava a sua pertença a contextos funerários (Guilaine e Ferreira, 1970; Pessoa, 1983). Os achados da Lisboa neolítica confirmam aquela função, a qual, no

entanto, poderia não ser exclusiva. Na Bacia de Alvalade, registam-se dois vasos dessa tipologia, que poderão ter pertencido a sepulturas dos sítios neolíticos de Monte da Vinha e Pego da Mangra, ainda por prospectar (Figuras 17-18).

0

5 cm

Figura 17 – Monte da Vinha. Recipiente cerâmico completo de corpo ovoide e colo desenvolvido sub-cilíndrico, de lábio ligeiramente extrovertido. Pasta negra com fino engobe castanho amarelado médio em ambas as superfícies (impermeabilizante?). Superfície externa bem alisada, com três pequenas asas verticais, em fita, e equidistantes, na transição da pança para o colo. A decoração é constituída por dois alinhamentos de impressões subcirculares, aproximadamente paralelos à boca do vaso, marcando o arranque do bordo, e por quatro linhas de impressões a boquique que partem, em grinalda, da parte superior das asas do recipiente. Medidas: 22,9cm (altura); 9,4cm (diâmetro do bordo); 16,7cm (diâmetro máximo)

Figura 18 – Vasos cerâmicos de tipo garrafa do Neolítico antigo evolucionado, com decoração impressa e incisa e providos de pequenas asas. Os nºs 2 e 4 são indiscutivelmente funerários. 1 – Monte da Vinha (Alvalade); 2 – Armazéns Sommer (Lisboa), seg. Cardoso et al., 2018; 3 – Pego da Mangra (São Domingos); 4 – Palácio Ludoviice (Lisboa), seg. Simões et al., 2020

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MEGALITISMO, SEGUNDA REVOLUÇÃO NEOLÍTICA E PALEOMETALURGIA Durante os inícios do Neolítico médio (finais do 5º, primeiro quartel do 4º milénios cal BC), o espaço funerário dissocia-se dos espaços residenciais. E se numa primeira fase se manteve o ritual de enterramento individual, em pequena sepultura pétrea, proto-megalítica, a breve trecho será substituído por ritual de enterramento coletivo e por monumentos de câmara e corredor, os quais atingem o seu máximo desenvolvimento no Neolítico final, nos dois últimos séculos do 4º milénio cal BC. A partir do 3º milénio cal BC (Calcolítico), perdurando embora o ritual de enterramento coletivo, surgem novas arquiteturas funerárias de menor escala e de estrutura mais ligeira (monumentos de falsa cúpula) de tipo tholos. Na Bacia de Alvalade, as sepulturas proto-megalíticas e megalíticas concentram-se a norte, na área de Ermidas-Lousal, e já no concelho de Grândola (necrópoles de Lousal, Boiças, Monte Branco) (Leisner e Leisner, 1959). Alguns dos instrumentos de pedra polida da coleção estudada podem ter sido exumados de sepulturas. Nos inícios da década de 70, o pároco de Ermidas escavou várias sepulturas proto-megalíticas na sua freguesia, cujo registo e espólio, pelo menos aparentementemente, se perderam. À dispersão do povoamento e crescimento demográfico neolíticos parece ter sucedido uma fase depressiva, talvez por esgotamento de recursos críticos (solos agrícolas) face à baixa capacidade tecnológica instalada. Parece ter ocorrido redução da densidade demográfica e mesmo parcial despovoamento do território anteriormente neolítico. No entanto, a alteração do padrão de povoamento, que durante o Neolítico final e particularmente durante o Calcolítico se torna concentrado, privilegiando sítios de altura, pode estar a criar uma imagem distorcida, reflexo do estado atual da investigação. Além do sítio, provavelmente, do Neolítico final, de Mal Assentada, identificado pela empresa Palimpsesto, importaria conhecer melhor o sítio da Várzea Grande, também identificado por aquela empresa, no limite norte da freguesia de Ermidas, onde surgiram materiais préhistóricos pouco característicos, mas cuja geomorfologia parece propícia à instalação de um povoado do Neolítico final ou Calcolítico. Na numerosa coleção de instrumentos de pedra polida, existe um grupo constituído por machados longos ou relhas de arado e um ainda mais notável grupo de instrumentos polidos de grandes dimensões, prováveis relhas de arado votivas, que podem estar a indicar a prática da agricultura de arado puxado por gado bovino, que 50

abriu caminho à segunda revolução neolítica, também designada por Revolução dos Produtos Secundários da Criação de Gado, ocorrida no território português há cerca de 5000 anos. Por fim, refira-se o machado plano de cobre arsenical de Alvalade, cujo contexto arqueológico não foi possível recuperar. Pela sua tipologia e composição química (Cu98,7%; As -1,2%), determinada no Centro de Ciências e Tecnologias Nucleares, por Pedro Valério e Maria de Fátima Araújo, atribuímo-lo à segunda metade do 3º milénio cal BC. Este artefacto metálico ilustra o início da substituição dos instrumentos de pedra polida biselados e a emergência de um novo ciclo económico e sociocultural marcado pela consolidação de uma esfera de economia política associada ao controlo da metalurgia, na viragem para as sociedades verticalmente hierarquizadas da Idade do Bronze (Soares, 2013b, 2016b). Ao Calcolítico final/ Bronze inicial, cerca de 2200 cal BC, a que corresponde o colapso da organização social parental e tribal das antigas sociedades camponesas, pertence a taça campaniforme incisa, filiável no estilo Palmela tardio, proveniente de reutilização da sepultura megalítica de Enxacafres 1, também no concelho de Santiago (Evangelista, Lago e Miguel, 2016).

Referência

Artefacto

Cu (%)

As (%)

Pb (%)

MA-EA/3

Machado plano

98,7

1,2

n.d.

Fe (%) <0,05

Figura 19 – Machado plano de cobre, de Alvalade, e taça campaniforme com decoração incisa proveniente de reutilização, no Bronze Antigo, da Anta de Enxacafres 1 (escavações de Evangelista, Lago e Miguel 2016). Desenhos de Teresa Rita Pereira


Esta reutilização reforça o trajecto de difusão do grupo estilístico tardio de Palmela (Bronze antigo), ao longo do litoral sudoeste, já antes assinalado quer pelas sepulturas campaniformes individuais instaladas na câmara megalítica do monumento de Pedra Branca, em Melides (Ferreira et al., 1975), quer pelo povoado de Vale Vistoso, debruçado sobre o Oceano, na freguesia de Porto Covo, Sines (Tavares da Silva e Soares, 1981). Graças à colaboração da empresa Era-Arqueologia, a quem agradecemos, foi possível integrar aquela taça campaniforme no Museu de Alvalade, e com ela encerrar a breve narrativa sobre a ocupação pré-histórica da região (Figura 19).

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Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal. Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal. 3 Não é improvável que outros sítios do Neolítico antigo como Monte Branco da Serra, reconhecido por prospecção de superfície, uma vez escavado venha a revelar, como em Gaspeia, uma ocupação do Mesolítico. 4 Até ao segundo quartel do século XX, antes da intensificação da agricultura industrial e do programa de regadio com a construção de barragens e represas, os efeitos da maré faziam-se sentir até Santa Margarida do Sado, podendo aí (Moinho da Gamita) ser pescadas tainhas, enguias, pardelhas, carpas, barbos, bordalos, percas e mais raramente, lúcios. As margens do Sado eram também visitadas por abundante e variada fauna ornitológica (guarda-rios ou picapeixe, rouxinol da ribeira, rouxinol dos caniços, águias, gaviões ou peneireiros, gansos ou patos bravos, melros, abelharucos, flosas, papa-figos, galinhas de água, cegonhas, pardais, corvos, bicos de lacre, corujas, segundo entrevista realizada por José Matias em julho de 2017, a antigos profissionais do rio: Francisco Santos (pescador), José Leonor (Comandante dos Bombeiros de Alvalade), Florindo Sobral (Guarda-rios no Alto Sado). 5 Vale Pincel I - Sines (Tavares da Silva e Soares, 2015) é um dos melhores exemplos, dessa fase precoce do Neolítico antigo, a sua cerâmica possui decoração predominantemente impressa a punção, associada a elementos plásticos; a técnica da impressão com o bordo ondulado da concha do Cardium é rara e aplicada a motivos simples, como pequenos alinhamentos verticais. 6 O enquadramento administrativo de Alvalade tem sido bastante instável. Em 1510 recebeu foral manuelino, tendo duas freguesias: a de N. S.ª da Oliveira de Alvalade, a sul e a de N.S.ª do Roxo, a norte. Em 1836 perdeu a categoria de concelho e passou a freguesia do concelho de Messejana. Em 1855, foi integrado no concelho de Aljustrel. Em 1871, passou para o município de Santiago do Cacém. Em 1953, dividiu o seu território com a nova freguesia de Ermidas-Sado, a qual coincide em grande parte com a antiga freguesia de N. S.ª do Roxo. Em 1995, Alvalade readquiriu a categoria de vila, que entretanto tinha desaparecido dos documentos oficiais. Seg. Cesário, 2015. 2

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TAVARES DA SILVA, Carlos; SOARES, Joaquina e COELHO-SOARES, Antónia (2010) - Arqueologia de Chãos de Sines. Novos elementos sobre o povoamento pré-histórico. In Actas do 2º Encontro de História do Alentejo Litoral, 11-34. Sines: Centro Cultural Emmérico Nunes.

TAVARES DA SILVA, Carlos; SOARES, Joaquina (2007) – Osmose cultural e neolitização na Pré-história europeia. A propósito da transição Mesolítico-Neolítico no Sul de Portugal. Estudos Arqueológicos de Oeiras, 15, pp. 37-46. TAVARES DA SILVA, Carlos e SOARES, Joaquina (2015) – Neolitização da Costa Sudoeste Portuguesa. A cronologia de Vale Pincel I. In Gonçalves, V.; Diniz, M. e Sousa, A.C. (eds.), 5° Congresso do Neolítico

TERESO, João Pedro e QUEIROZ, Paula Fernanda (2020) – Estudos antracológicos no sítio arqueológico da Gaspeia (Alvalade do Sado). In Tavares da Silva, C. e Soares, J. (coords.), O sítio arqueológico da Gaspeia e a neolitização do bterritório de Alvalade-Sado (Setúbal Arqueológica, 19). Setúbal: MAEDS, pp. 103-108.

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ARTEFACTOS DE PEDRA LASCADA Desenhos de Fernanda Sousa | Ilustrações didáticas de Ana Castela

Lamela não retocada de sílex 21 x 7 x 3 mm (Inv.º Gasp.81.1078)

Lamela não retocada de sílex 24 x 6 x 3 mm (Inv.º Gasp.02.5197)

Cena de talhe lítico por percussão indireta

INSTRUMENTOS RETOCADOS RASPADOR

NÚCLEOS

Raspador sobre lasca de cherte 25 x 18 x 9 mm (Inv.º Gasp.05.2923) Núcleo prismático de cherte 27 x 25 x 20 mm (Inv.º Gasp.05.2905)

FURADOR Furador sobre lasca de quartzo 23 x 12 x 5 mm (Inv.º Gasp.81.1722)

Núcleo exausto de cristal de rocha 22 x 24 x 14 mm (Inv.º Gasp.81. 2615)

Furador sobre extremidade de lamela de cherte 16 x 8 x 2 mm (Inv.º Gasp.81.2246)

Flanco de núcleo prismático de lamelas, de sílex 22 x 16 x 11 mm (Inv.º Gasp.81.2624)

BURIS

PRODUTOS DE DEBITAGEM

Macro-lasca não retocada de jaspe 45 x 49 x 10 mm (Inv.º Gasp.81.2592)

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Buril simples de ângulo sobre fratura, de quartzo 20 x 17 x 7 mm (Inv.º Gasp.81.1727) Buril de ângulo sobre lasca de sílex 20 x 11 x 5 mm (Inv.º Gasp.81.3021)


PEÇAS DENTICULADAS

PEÇAS COM VESTÍGIOS DE USO

Lasca denticulada de sílex 21 x 14 x 6 mm (Inv.º Gasp.81.136)

Lamela não retocada, estilo Montbani, com vestígios de uso, de sílex 13x10x2mm (Inv.º Gasp.81.2643)

Lamela denticulada de cherte 14 x 10 x 4 mm (Inv.º Gasp.81.7)

Lamela não retocada com vestígios de uso, de sílex 15 x 5 x 1 mm (Inv.º Gasp.81.2274)

GEOMÉTRICOS

Elemento de projétil em forma de crescente de sílex 16 x 4 x 2 mm (Inv.º Gasp.81. 2284)

PEÇAS DE BORDO ABATIDO

Lâmina de bordo abatido de quartzito 41 x 18 x 9 mm (Inv.º Gasp.81. 2593)

Flecha transversal de quartzo leitoso 22 x 17 x 7 mm (Inv.º Gasp.81.2628)

DIVERSOS

Ponta atípica de quartzo leitoso 21 x 17 x 4 mm (Inv.º Gasp.81.3096)

Ponta atípica de sílex 23 x 15 x 5 mm (Inv.º Gasp.81.2271)

MULHER DO MESOLÍTICO

Ilustração de César Figueiredo Sítio da Gaspeia, 1981. Coleção do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal.

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CERÂMICA Desenhos arqueológicos de Teresa Rita Pereira | Fotografias de Rosa Nunes

DECORAÇÃO DE RECIPIENTES CERÂMICOS

Ilustração de César Figueiredo

VASO DECORADO Recipiente de cerâmica de forma ovoide, decorado por impressões, organizadas em cinco linhas paralelas, imediatamente abaixo do bordo, e por grupos de caneluras verticais e paralelas que partem de mamilo de perfuração vertical. Proveniência: Herdade da Gaspeia, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º Gasp.81/3112) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal

0

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5 cm


VASO DECORADO Recipiente cerâmico completo de corpo ovoide e colo desenvolvido subcilíndrico, do lábio ligeiramente extrovertido. Pasta negra com fino engobe castanho amarelado médio em ambas as superfícies (impermeabilizante?). Superfície externa bem alisada, com três pequenas asas verticais, em fita, e equidistantes, na transição da pança para o colo. A decoração é constituída por dois alinhamentos de impressões subcirculares, aproximadamente paralelos à boca do vaso, marcando o arranque do bordo e por quatro linhas de impressões a boquique que partem em grinalda da parte superior das asas do recipiente. Dimensões: 23,5 cm A.; 18,9 cm D. Proveniência: Herdade do Monte da Vinha, Alvalade (Santiago do Cacém) Réplica em exposição Coleção: Museu Nacional de Arqueologia

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5 cm

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ARTEFACTOS UTILIZADOS NA PRODUÇÃO DE INSTRUMENTOS LÍTICOS POLIDOS Desenhos arqueológicos de Teresa Rita Pereira | Fotografias de Rosa Nunes

PERCUTOR DUPLO OBLONGO DE QUARTZITO Dimensões: 114 x 64 x 56 mm Proveniência: Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - MR/6) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Inácia Silvério Rodrigues

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PERCUTOR SIMPLES SOBRE SEIXO ALONGADO DE ANFIBOLITO Dimensões: 75 x 34 x 27 mm Proveniência: Monte da Retorta, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CL/5) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Custódia Rato Rosa de Oliveira Lança

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5 cm

5 cm


PERCUTOR POLIÉDRICO ESFEROIDAL DE QUARTZO Dimensões: 69 x 71 x 68 mm Proveniência: Monte da Retorta, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CL/8) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Custódia Rato Rosa de Oliveira Lança

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5 cm

BIGORNA DE GRAUVAQUE Dimensões: 133 x 74 x 34 mm Proveniência: Monte da Vinha, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - JF/21) Coleção: Junta de Freguesia de Alvalade

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5 cm

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POLIMENTO DE MACHADO LONGO Ilustração de César Figueiredo

POLIDOR DORMENTE DUPLO DE MACHADOS QUARTZOVAQUE Dimensões: 360 x 165 x 48 mm Proveniência: Monte da Retorta, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CL/2) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Custódia Rato Rosa de Oliveira Lança

0

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5 cm


AFIADOR DE GUMES SOBRE FRAGMENTO DE INSTRUMENTO INDETERMINADO DE ANFIBOLITO Dimensões: 77 x 70 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA- AA/1) Coleção: particular

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5 cm

FORMÃO DE ANFIBOLITO Dimensões: 82x28x18mm Proveniência: Monte da Retorta, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CL/4) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Custódia Rato Rosa de Oliveira Lança

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5 cm

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INSTRUMENTOS DE TRABALHO Desenhos arqueológicos de Teresa Rita Pereira | Fotografias de Rosa Nunes

ABATE DE ÁRVORES COM MACHADO DE PEDRA POLIDA Ilustração de César Figueiredo

MACHADO MÉDIO DE ANFIBOLITO Dimensões: 124 x 51 x 37 mm Proveniência: Figueira de Ametade - Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º A - EA/73) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

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5 cm


ESBOÇO DE ANFIBOLITO GRANULAR Dimensões: 218 x 62 x 46 mm Proveniência: Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - MR/1) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Inácia Silvério Rodrigues

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5 cm

MACHADO LONGO DE ANFIBOLITO Dimensões: 267 x 78 x 71 mm Proveniência: Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/2) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

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5 cm

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CENA DE LAVOURA Ilustração de César Figueiredo

MACHADO MÉDIO-LONGO DE ANFIBOLITO/XISTO VERDE Dimensões: 185 x 52 x 44 mm Proveniência: Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - MR/3) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Inácia Silvério Rodrigues

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5 cm


MACHADO MÉDIO DE ANFIBOLITO GRANULAR Dimensões: 125 x 48 x 40 mm Proveniência: Várzea da Carregueira da Relva, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - JB/1) Coleção: Exmo. Sr. José Bento Nunes de Aboim Trancas

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5 cm

MACHADO MÉDIO DE ANFIBOLITO Dimensões: 118 x 52 x 37 mm Proveniência: Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - MR/2) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Inácia Silvério Rodrigues

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5 cm

MACHADO PEQUENO DE ANFIBOLITO Dimensões: 89 x 47 x 28 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1659/150) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

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5 cm

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UTILIZAÇAO DO SACHO NO AMANHO DA TERRA Ilustração de César Figueiredo

SACHO LONGO DE ANFIBOLITO Dimensões: 190 x 57 x 43 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/11) Coleção: particular

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5 cm

SACHO PEQUENO DE ANFIBOLITO Dimensões: 88 x 50 x 29 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/3) Coleção: particular

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5 cm


UTILIZAÇÃO DE ENXÓ NA MANUFATURA DE PIRÓGA Ilustração de César Figueiredo

ENXÓ LONGA DE ANFIBOLITO GRANULAR Dimensões: 167 x 55 x 29 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/6) Coleção: particular

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5 cm

ENXÓ MÉDIA DE PÓRFIRO FÉLSICO Dimensões: 135 x 45 x 14 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1662/153) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

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5 cm

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MOAGEM MANUAL

Ilustração de César Figueiredo

ELEMENTO DORMENTE DE MÓ DE GRAUVAQUE Dimensões: 625 x 264 x 92 mm Proveniência: Herdade da Defesa (Charneca), Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - JB/4) Coleção: Exmo. Sr. José Bento Nunes de Aboim Trancas

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5 cm


ELEMENTO DORMENTE DE MÓ DE GRAUVAQUE Dimensões: 480 x 310 x 60 mm Proveniência: Monte da Retorta, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CL/1) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Custódia Rato Rosa de Oliveira Lança

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5 cm

ELEMENTO DORMENTE DE MÓ DE GRAUVAQUE Dimensões: 535 x 250 x 55 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/25) Coleção: Casa de Povo de Alvalade

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5 cm

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ELEMENTO MOVENTE DE MÓ DE ANFIBOLITO GRANULAR Dimensões: 159 x 99 x 88 mm Proveniência: Carregueira (perto da Igreja de S. Roque), Alvalade | (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - FA/20) Coleção: Exmo. Sr. Fernando Manuel da Costa Agostinho

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5 cm

ELEMENTO MOVENTE DE MÓ DUPLO DE GRAUVAQUE Dimensões: 119 x 110 x 34 mm Proveniência: Carregueira (perto da Igreja de S. Roque), Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - FA/18) Coleção: Exmo. Sr. Fernando Manuel da Costa Agostinho

0

5 cm

ELEMENTO MOVENTE DE MÓ DUPLO DE PÓRFIRO Dimensões: 104 x 101 x 45 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/7) Coleção: Casa de Povo de Alvalade

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5 cm


INSTRUMENTOS RITUAIS MACHADO LONGO DE ANFIBOLITO Dimensões: 404 x 88 x 58 mm Proveniência: Herdade de Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA/1) | Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

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5 cm

MACHADO LONGO DE ANFIBOLITO Dimensões: 288 x 84 x 60 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CL/3) Coleção: Exm.ª Sr.ª Maria Custódia Rato Rosa de Oliveira Lança

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5 cm

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MACHADO LONGO DE PÓRFIRO Dimensões: 287 x 76 x 60 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1631/122) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

0

5 cm

MACHADO MÉDIO-LONGO DE PÓRFIRO FÉLSICO Dimensões: 184 x 56 x 45 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1645/136) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

0

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5 cm


MACHADO PEQUENO DE FIBROLITE Dimensões: 89 x 53 x 29 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1658/149) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

0

5 cm

ENXÓ MINIATURIZADA DE FIBROLITE Dimensões: 38 x 38 x 11 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1680/171) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

0

2 cm

INSTRUMENTO DE GRANDE COMPRIMENTO DE ANFIBOLITO Dimensões: 849 x 61 x 54 mm Proveniência: Herdade do Enxarafinho, Abela (Santiago do Cacém) (Inv.º MMSC - 1677/168) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

0

20 cm

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INSTRUMENTO DE GRANDE COMPRIMENTO DE QUARTZOVAQUE Fragmentado Dimensões: 590 x 81 x 44 mm Proveniência: Herdade dos Conqueiros, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/3) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

0

5 cm

CALCOLÍTICO FINAL BRONZE ANTIGO

MACHADO PLANO DE COBRE ARSENICAL Dimensões: 170 x 60 x 9 mm Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) | (Inv.º MA - EA/3) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

Análise química por micro espectrometria de fluorescência de raios X. Valores médios de três análises; n.d. – não detetado) Referência

Artefacto

Cu (%)

As (%)

Pb (%)

MA-EA/3

Machado plano

98,7

1,2

n.d.

Fe (%) <0,05 0

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5 cm


TAÇA CAMPANIFORME COM DECORAÇÃO INCISA Dimensões: 21 cm D. ; 7 cm A. Proveniência: Anta de Enxacafres 1, São Francisco (Santiago do Cacém) Reconstituição (Inv.º Anta de Enxacafres 20) Escavação de Evangelista, L.S.; Lago, M.; Miguel, L. (2016)

0

3 cm

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Página anterior: METALURGIA DO BRONZE: representação da produção de machados em bronze Ilustração de César Figueiredo

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“GUERREIROS DO BRONZE”:

a Idade do Bronze nas planuras do Sado MIGUEL SERRA1

1. NOTA PRELIMINAR A Idade do Bronze, genericamente compreendida entre 2000 a.C. e 750 a.C. no Sudoeste Peninsular, permanece um paradoxo no que diz respeito ao seu conhecimento no território do antigo concelho de Alvalade. Este é de facto um dos períodos para os quais possuímos menos dados, ao mesmo tempo que é desta época o achado arqueológico, provavelmente, mais icónico da região, a estela da Defesa (Vasconcellos, 1908, p. 300-302; Almagro, 1966, p. 57-58; Díaz-Guardamino, 2010, p. 777). Esta situação é extensível ao restante concelho de Santiago de Cacém, que regista menos de uma dezena de sítios arqueológicos atribuíveis a qualquer uma das fases em que se subdivide a Idade do Bronze. No entanto, podemos incluir, mais uma vez, algumas descobertas notáveis, como o caso de outra estela proveniente da Herdade das Pereiras, em São Bartolomeu da Serra (Almagro, 1966, p. 63-65; Heleno, 1933, p. 186-189; Díaz-Guardamino, 2010, p. 771). As ausências de vestígios da ocupação humana durante a Idade do Bronze tornam-se mais intrigantes se alargamos o nosso olhar até aos concelhos vizinhos. Nestes verifica-se a ocorrência de mais de uma centena de sítios da Idade do Bronze, no somatório dos concelhos limítrofes quer do litoral, quer do interior. Há ainda que referir que nestes últimos houve um significativo acréscimo de novos sítios arqueológicos nos últimos 15 anos, proporcionado, maioritariamente, pelas ações de arqueologia de salvamento no âmbito dos trabalhos do Plano de Rega do Projeto Alqueva (Serra e Porfírio, 2018, p. 34). Devemos também ter em consideração que recentemente foi efetuada a revisão da Carta Arqueológica do Antigo Concelho de Alvalade (Porfírio e Ferreira, 2018), que permitiu a identificação de um numeroso conjunto de novos sítios arqueológicos, totalizando 93 registos. Destes, apenas 4 serão atribuíveis à Idade do Bronze e só um deles de forma inequívoca. Referimo-nos mais uma vez à Estela da Defesa. Há ainda que acrescentar os sítios de Monte da Corredoura/Gaspeia 2 (CNS 5901)2 e Monte da Ameira 7 (CNS 37925)3, que já se encontravam

referenciados para outras cronologias mas que também terão conhecido fases de ocupação centradas respetivamente no Bronze Pleno e no Bronze Final. A situação de referência descrita não nos surge como a mais animadora para tentar de algum modo traçar a evolução da ocupação humana deste território durante a Idade do Bronze, nem as principais caraterísticas de que se revestiam estas comunidades do final da préhistória recente. No entanto, face ao conhecimento que temos destas realidades nas regiões envolventes e pelas diversas “pistas” que nos podem ser indicadas pelos parcos indícios do antigo concelho de Alvalade, julgamos que será possível propor, com as devidas cautelas, alguns cenários para definir como as comunidades da Idade do Bronze ocuparam e utilizaram o vasto e rico território à sua disposição. Deveremos também manter em linha de conta que só a realização de novos trabalhos arqueológicos e sobretudo a concretização de programas específicos de investigação centrados neste período poderá contribuir decisivamente para o aumento do nosso conhecimento sobre este passado ainda bastante nebuloso. Quando tal suceder, estamos seguros de que serão contrariadas ou confirmadas algumas das considerações que aqui fazemos com base nas informações atualmente disponíveis.

2. A “CONSTRUÇÃO” DA IDADE DO BRONZE DO SUDOESTE PENINSULAR A Idade do Bronze na vasta região do Sudoeste Peninsular pode dividir-se em dois grandes sub-períodos, com nítidas diferenças entre si. O primeiro momento, que também foi o mais longo, é designado por Bronze Pleno do Sudoeste e decorreu sensivelmente entre 2000 a.C. e 1200 a.C. A última etapa da Idade do Bronze é designada como Bronze Final do Sudoeste e encontrase balizado entre 1200 a.C. e 750 a.C. (Mataloto et al., 2013, p. 311). O Bronze do Sudoeste, que abrange sobretudo as regiões do Baixo Alentejo e Algarve, mas também o Alentejo 79


Litoral, parte do Alto Alentejo ou a Andaluzia Oriental e a Baixa Extremadura em Espanha, foi definido enquanto entidade cultural própria na década de 70 do século passado através do vasto labor de Hermanfrid Schubart. Este investigador sistematizou o conhecimento sobre a Idade do Bronze desta ampla região numa extensa obra monográfica onde traçaria os principais pressupostos da então designada Cultura da Idade do Bronze do Sudoeste da Península Ibérica. Assim o Bronze do Sudoeste, como ficou conhecido, foi individualizado e separado da esfera de influência de outras realidades vizinhas, como a “Cultura de El Argar”, centrada na região espanhola de Almeria e regiões limítrofes (Schubart, 1975; Parreira, 2014, p. 16; Serra e Porfírio, 2018, p. 36). Assim, o autor alemão definiu um primeiro momento de “formação”, que designou por “Horizonte Ferradeira”, contemporâneo do Campaniforme (Schubart, 1971), a que se sucederia uma divisão em dois períodos, o Bronze do Sudoeste I e II, a que outros autores haveriam de juntar uma etapa final, o Bronze do Sudoeste III, que correspondia ao Bronze Final, mas cuja designação nunca reuniu muita aceitação (Parreira, 1995, p. 132). Esta proposta cronológica com as respetivas subdivisões seria mais ou menos seguida por diversos investigadores, com alterações pontuais nas designações e nos limites cronológicos, durante largos anos, sendo alvo de profunda revisão em tempos mais recentes, através de uma proposta baseada num vasto conjunto de datações de radiocarbono e que definiu apenas dois grandes períodos dentro da Idade do Bronze, o Bronze Pleno do Sudoeste e o Bronze Final do Sudoeste (Mataloto et al., 2013). A caraterização de Schubart, essencialmente assente na análise de materiais provenientes de contextos funerários, seria exponencialmente enriquecida com a diversidade e quantidade de novas ocorrências registadas nos últimos anos, fruto de um vasto programa de trabalhos de arqueologia de salvamento centrados sobretudo no interior alentejano. Segundo Schubart as comunidades do II milénio a.C. centravam a sua organização social nos espaços funerários, nos quais investiam maior esforço coletivo para a sua construção, em detrimento dos espaços habitacionais, o que seria interpretado como sinal de um certo grau de itinerância por parte destas populações (Parreira, 1998, p. 269; Serra e Porfírio, 2018, p. 39). É apenas com a entrada no século XXI que surgem diversas novidades que permitem novas formas de interpretação para o Bronze do Sudoeste, com as importan80

tíssimas aportações proporcionadas pela arqueologia de salvamento, sobretudo no âmbito de ações de minimização decorrentes da implementação do Projeto Alqueva e de outros projetos de construção em menor grau. Estas ações permitiram, no interior do Alentejo, numa faixa compreendida genericamente entre os concelhos de Serpa, Beja e Ferreira do Alentejo, o aparecimento de novas expressões das formas de ocupação humana do território, destacando-se o aparecimento dos habitats, até aí praticamente ausentes do registo arqueológico, e que nos permitem compreender melhor as estratégias de povoamento destas comunidades. Também surgiram outras novidades que demonstram um grande polimorfismo nas arquiteturas e práticas funerárias, que se juntam ao mundo das necrópoles de cistas já conhecidas. Podemos assim ensaiar uma breve caracterização do Bronze do Sudoeste, período que marca uma rutura total com o período precedente, o Calcolítico ou Idade do Cobre. Com a transição para a Idade do Bronze assistimos ao abandono das grandes construções monumentais que moldavam a paisagem anterior e dos sepulcros coletivos que chegavam a albergar largas centenas de indivíduos (Serra e Porfírio, 2018, p. 39; Valera, 2014, p. 301). Numa primeira etapa da Idade do Bronze, o povoamento fragmenta-se em diversos habitats de natureza discreta, disseminados por orografias suaves e planas, sem assumirem qualquer preocupação de natureza defensiva, nos quais imperam construções simples com recurso a materiais perecíveis, indicadores da sua perenidade e fraco investimento coletivo (Antunes et al., 2012; Serra e Porfírio, 2017). Os enterramentos são de natureza maioritariamente individual, com os indivíduos a serem depositados em posição fetal em sepulturas agrupadas em necrópoles, quase sempre de pequena dimensão mas, com arquiteturas muito distintas. Conhecem-se construções em pedra, como as cistas – sepulturas em lajes de pedra formando uma espécie de “caixa” –, e outras mais discretas como os hipogeus – grutas artificiais escavadas na rocha branda – ou as fossas simples similares a outras utilizadas como silos para armazenagem de alimentos (Soares et al., 2009). É também nesta fase que surgem os primeiros artefactos em bronze, apesar do cobre continuar a ser mais frequente. Inicialmente os artefactos em bronze chegam até estes territórios vindos do Mediterrâneo Cen-


tral e Oriental, ou de outras regiões que com elas contactavam e posteriormente através de fabricos locais (Valério et al., 2014). As peças em bronze adquirem grande importância para os seus detentores, tornando-se autênticos bens de prestígio, como as armas (alabardas, punhais, espadas, machados) que podemos encontrar como oferendas em algumas sepulturas, em depósitos rituais ou representadas em estelas – como a da Defesa – e indiciam uma hierarquização crescente de uma sociedade onde alguns indivíduos sobressairiam e deteriam o controlo do acesso a estes bens e aos circuitos de trocas. A evolução da metalurgia do bronze, o caráter individual das sepulturas, a existência excecional de sepulturas ricas ou a presença de estelas decoradas permitem falar duma sociedade em processo de hierarquização que atingirá a sua maior expressão durante o Bronze Final (entre 1200 a.C. a 750 a.C.). Com a transição para o Bronze Final assiste-se a uma maior complexidade nas formas de povoamento, com a ocupação de todo o tipo de orografias, surgindo as primeiras evidências de povoados de altura (Soares, 2013, p. 275). Alguns destes povoados irão moldar claramente o território, rodeando-se de vastas e complexas muralhas, que podem abranger áreas significativas, por vezes superiores a 10 hectares (Soares, 2013, p. 2985; Serra e Porfírio, 2017, p. 228), não deixando no entanto de se notar uma certa manutenção das ocupações de planície, apesar de uma redução quantitativa deste tipo de sítios (Serra e Porfírio, 2017, p. 227). Estas transformações são reveladoras de uma mudança do paradigma social, em que o foco é colocado nos espaços dos vivos em detrimento do mundo funerário, que durante o Bronze Final se torna praticamente ausente do registo arqueológico (Serra, 2014a, p. 283).

3. DAS PRIMEIRAS MEMÓRIAS À ARQUEOLOGIA DE SALVAMENTO A primeira referência a sítios relacionados com a Idade do Bronze nesta região surge-nos, de forma indireta pela pena de Frei Manuel do Cenáculo, num itinerário onde não são referidos quaisquer achados relacionados com este período mas, que há luz de conhecimentos posteriores permite-nos estabelecer de algum modo a ligação de alguns dos locais mencionados com vestígios atribuíveis a esta época.

São conhecidas diversas viagens do distinto prelado pacense entre 1781 e 1801 nas suas deslocações entre Beja e Sines. Nos relatos destas viagens destacam-se no trajeto percorrido os nomes das localidades ou lugares de Abela, São João de Negrilhos, Ervidel e Santa Vitória (Deus et al., 2016, p. 31-32). Estes correspondem grosso modo aos locais de achado e concentração de várias necrópoles de cistas e estelas da Idade do Bronze. Poderá este ser porventura um caminho natural já utilizado pelas populações da Idade do Bronze e cuja frequência se manteve pelos séculos fora? Não deixa de ser evidente a coincidência entre o trajeto efetuado por Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, que também cruzava o território de Alvalade, e a localização de importantes locais sinalizados com estelas durante a Idade do Bronze, o que de se certa forma evidencia o seu carater intemporal. Convém ainda referir que este itinerário corresponde na atualidade à ligação rodoviária da Estrada N261. Mas seria pouco mais de um século depois deste episódio que nos chegariam as primeiras informações especificamente relativas a achados da Idade do Bronze. Em 1902 é relatado nas páginas do jornal “O Campo d' Ourique”4 a descoberta de cinco escopros em bronze, também referidos em publicação posterior que situa a sua recolha em 1908 (Oliveira, 1937, p. 1085), encontrados no Monte Novo de Gaspeia, situado um pouco a norte da Herdade da Defesa. Este conjunto foi depositado no então Museu Municipal de Beja, sem que deles haja qualquer menção nas coleções aí existentes atualmente. Apesar desta informação apenas se conhecem ocupações do Mesolítico e do Neolítico Antigo neste sítio (Soares, 2013, p. 14 e 17). É José Leite de Vasconcellos que nos transmite nas páginas da revista O Archeólogo Português, em 1908, o achado da Estela da Defesa, descoberta em janeiro desse mesmo ano na Herdade da Defesa. A descoberta de tão importante peça levaria Leite de Vasconcellos a deslocar-se ao local, conseguindo autorização para levar a estela para Lisboa e simultaneamente proceder à realização de escavações, que revelaram a existência de sepulturas de época histórica, tendo a estela sido reutilizada como tampa numa delas. Estes resultados espelhariam a frustração pelo insucesso em encontrar as sepulturas da Idade do Bronze associadas à estela ou outros achados coevos (Vasconcellos, 1908, pp. 300302). Mas sobre a Estela da Defesa dedicaremos maior atenção em capítulo próprio. 81


muitas dúvidas pela ausência de elementos suficientes para uma atribuição cronológica segura e corresponde a Ermidas Aldeia, onde os trabalhos arqueológicos aí realizados permitiram desvendar ocupações de épocas tão distintas como o Paleolítico e o período romano. Também há registo da recolha de informações junto do proprietário dos terrenos que mencionou o aparecimento de várias lajes de xisto, que tanto poderão relacionarse com possíveis cistas da Idade do Bronze como com as coberturas de sepulturas romanas (Matias e Simão, 2015).

Fruto de ações furtuitas, de contornos pouco claros, seriam também os próximos achados da Idade do Bronze, durante a década de 70 do século passado, com a referência a vários machados de bronze provenientes da Herdade da Defesa em 19705 (Porfírio e Ferreira, 2018) e mais alguns instrumentos do Neolítico e da Idade do Bronze recolhidos numa vinha em Conqueiros em 1978 (Pedras, 1986), que mais tarde são identificados como “vários machados de bronze (de tamanhos diferentes)” (Ramos, 2000, p. 5). A Herdade da Defesa, já referida pelo achado da estela, revela assim mais alguns elementos relacionáveis com a Idade do Bronze, que Leite de Vasconcellos em vão procurou, mas que acabaram por surgir 70 anos depois. No entanto nada mais se sabe sobre as condições destes achados ou sobre o seu paradeiro (Porfírio e Ferreira, 2018).

Também foram identificados materiais da Idade do Bronze nos sítios de Monte da Corredoura/Gaspeia 2 e do Monte da Ameira 7 (Correia, 2019), este último no decurso de ações de minimização arqueológicas nas obras do Sistema Público das Águas do Alentejo6. O Monte da Corredoura/Gaspeia 2 pode ser atribuído ao Bronze Pleno pelo aparecimento de uma taça de tipo “Atalaia” (Figura 1:1) e o Monte da Ameira 7 ao Bronze Final, face à recolha de uma taça carenada com decoração em “ornatos brunidos” (Figura 1:2 e 2), autêntico “fóssil diretor” para este período, para além de um vaso globular com pega (Figura 1:3) também enquadrável em cronologias dentro do Bronze Final.

O sítio de Conqueiros encontra-se classificado como uma villa romana (Amaro, 1979, p. 80), mas com pré-existências do Neolítico (Pedras, 1986), não se conhecendo mais detalhes sobre a ocupação da Idade do Bronze. Os últimos achados ou referências a sítios da Idade do Bronze surgiriam já no século XXI. O primeiro levanta-nos

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Figura 1 – Cerâmica da Idade do Bronze. 1: Taça tipo "Atalaia"; 2: taça carenada com decoração em ornatos brunidos e furo de suspensção; 3: vaso globular com pega e furo de suspensão. Desenhos de Manuela de Deus

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Em suma, os achados ou sítios da Idade do Bronze em Alvalade resumem-se a seis registos, com a ressalva gerada pelas muitas dúvidas e incógnitas que norteiam alguns deles, mas que podemos sumarizar da seguinte forma: a) para o Bronze Pleno do Sudoeste conhecemos uma estela, que poderá ter estado integrada ou não numa necrópole de cistas situada na Herdade da Defesa, de onde também serão provenientes alguns machados; outra possível necrópole de cistas localizada em Ermidas Aldeia; um eventual povoado aberto de planície ou outra necrópole em Monte da Corredoura/Gaspeia 2; b) para o Bronze Final podemos com alguma segurança atribuir outro possível povoado aberto de planície localizado no Monte da Ameira 7; c) enquanto que maiores dúvidas na correta adstrição cronológica se colocam para o conjunto de escopros que poderá prefigurar um eventual depósito votivo intencional no sítio de Gaspeia; e para os machados de bronze recolhidos em Conqueiros e que também poderão relacionar-se com um depósito.

Figura 2 – Taça carenada – pormenor da decoração em ornatos brunidos. Fotografia de Manuela de Deus

4. O BRONZE PLENO DO SUDOESTE: NECRÓPOLES E POVOADOS NA PLANÍCIE O cenário que poderemos tentar traçar para o território correspondente ao antigo concelho de Alvalade durante o Bronze Pleno será bastante idêntico ao que tem vindo a ser observado em áreas não muito distantes, sobretudo no interior alentejano, mesmo tendo em conta a insuficiência de dados atualmente disponível. Assim, teremos uma maior relevância do mundo funerário, pelo maior destaque arquitetónico e investimento coletivo colocado na construção das necrópoles, devidamente assinaladas pela presença de estelas, como a da Herdade da Defesa, e que prenunciam uma hierarquização progressiva da sociedade através da existência de bens de prestígio como a panóplia guerreira representada nas estelas, pela mudança para um ritual de inumação maioritariamente individual em relação ao período anterior, e pela clara diferenciação e riqueza de espólio

patente em algumas sepulturas, como no monumento II do Pessegueiro (Sines) (Silva e Soares, 2009). Esta hierarquização social mantém-se no entanto bastante discreta em termos da estratégia de povoamento, que era assente em povoados abertos de planície sem aparentes preocupações defensivas e sobretudo ligados à exploração dos recursos disponíveis. Também não nos parece de todo impossível, que com os avanços na investigação arqueológica, possam surgir indícios da presença de outras tradições sepulcrais, patentes nestes povoados abertos e materializadas em enterramentos em fossas ou hipogeus, tal como registado um pouco por toda a planície do Baixo Alentejo, em coexistência com as necrópoles de cistas. Os enterramentos individuais em cistas revelam-se bastante frequentes nestes territórios mais litorais, como evidenciado pelas necrópoles de Quitéria, Provença ou Pessegueiro, em Sines (Silva e Soares, 1981), Monte do Vale de Carvalho, em Alcácer do Sal (Arruda et al., 1980), Casas Velhas, em Grândola (Silva e Soares, 1981) ou Vale Feixe, em Odemira (Vilhena, 2014), para além de outras mais para o interior como Abelheira e Zambujeira 4, em Ferreira do Alentejo (Baptista et al., 2013, p. 2517; Parreira, 1982, p. 8-10; Serra e Porfírio, 2018, p. 38) ou a Herdade do Pomar e Ervidel, em Aljustrel (Gomes e Monteiro, 1977; Arnaud, 1992). Os povoados destas comunidades também já são conhecidos há muito no litoral alentejano, onde surgem associados a algumas das necrópoles mencionadas, como Quitéria, Pessegueiro e Provença em Sines (Silva e Soares, 1981), mas só recentemente começaram a ser documentados no interior onde evidenciam uma presença frequente de fossas de tipo silo, por vezes com utilização funerária, e sepulcros escavados na rocha como os hipogeus. No antigo concelho de Alvalade temos alguma dificuldade em propor a existência de uma necrópole de cistas dentro da Herdade da Defesa, que estivesse associada à estela, uma vez que esta será proveniente de outra localização, sendo para aí transportada para servir como tampa de sepultura em época posterior. Também a referência a outra necrópole em Ermidas Aldeia carece de mais indicadores. O Monte da Corredoura/Gaspeia 2 surge-nos como um possível povoado aberto de planície, talvez constituído por fossas escavadas na rocha, mas com muitas dúvidas levantadas por se desconhecer o contexto exato onde 83


foram recolhidos os materiais arqueológicos que associamos a uma ocupação do Bronze Pleno. A dúvida sobre a sua natureza é reforçada pela recolha de uma taça tipo “Atalaia”, muito associada a ambientes de deposição funerária, não sendo de descartar a eventual existência de um contexto funerário nas suas imediações, fosse em cista ou em sepultura escavada no substrato geológico.

5. A ESTELA DA DEFESA Especial menção merece-nos a já citada Estela da Defesa, pela sua importância e raridade no marco da Idade do Bronze do Sudoeste e também pelo seu simbolismo enquanto principal ícone da arqueologia no antigo concelho de Alvalade (Figura 4).

Ao ser informado da sua descoberta, José Leite de Vasconcellos, diretor do então Museu Etnológico Nacional, deslocou-se, logo em março do mesmo ano, ao local com o intuito de recolher a estela para as coleções do referido museu e simultaneamente proceder a escavações arqueológicas no local que lhe permitissem detetar a localização das eventuais cistas a que estaria associada. Após observar a estela verificou que o bordo direito se encontrava fragmentado, talvez na sequência dos trabalhos agrícolas que originaram o seu achado. As escavações arqueológicas empreendidas por José Leite de Vasconcellos na área revelaram outras sepulturas, também de época histórica, mas com tampas lisas. Foram realizadas pesquisas nas imediações para procurar sepulturas e outros vestígios da Idade do Bronze, mas sem sucesso, o que leva a crer que a estela terá vindo de outro local (Vasconcellos, 1908, p. 301). Conhecem-se outros casos de reutilização de estelas como tampas de sepulturas, mas a Estela da Defesa é a única em que o material de suporte em que foi realizada não tem correspondência com a geologia local. Foi elaborada em xisto, enquanto que a geologia predominante na envolvente é constituída por caliços, conglomerados e areniscos (Díaz-Guardamino, 2010, p. 298), o que reforça a hipótese de ter sido trazida de outro local. A Estela da Defesa pertence ao grupo designado por Estelas de Tipo Alentejano, que se concentram no Baixo Alentejo, onde se conhecem 21 exemplares, e no Algarve, onde foram identificadas 7. A área com maior número de estelas situa-se na região oeste de Beja, mas são igualmente conhecidas em territórios afastados deste núcleo, como o Alto Alentejo, Beira Baixa e as províncias espanholas de Cáceres e Córdoba, num total de 32 estelas identificadas até ao momento (Serra et al., 2014, p. 17).

Figura 4 – Estela da Herdade da Defesa (Museu Nacional de Arqueologia). Fotografia de Rosa Nunes, cedida pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal

Foi identificada em 1908 por José de Almeida Carvalhaes, coletor-preparador do antigo Museu Etnológico de Lisboa, numa ida ao Alentejo no início desse ano. A sua descoberta deu-se na Herdade da Defesa, propriedade de Francisco António da Cruz, durante a realização de trabalhos de lavra, em momento pouco anterior à visita de José de Almeida Carvalhaes (portanto, terá sido descoberta ainda em 1907). Encontrava-se reutilizada como tampa de uma sepultura de época histórica, talvez medieval ou moderna (Vasconcellos, 1908; AlmagroBasch, 1966). 84

Apresenta uma altura de 1,16 m por 65 cm de largura, estando afeiçoada no bordo esquerdo e fragmentada do lado oposto. As figuras representadas ocupam o centro e a parte superior da peça, deixando livre a zona inferior para permitir a sua fixação no solo (Díaz-Guardamino, 2010, p. 777). Conhecem-se cerca de uma dezena de estelas com a parte inferior sem decoração, aspeto que levou a considerá-las como estelas para serem fixadas no solo e não como tampas de sepulturas como muitas vezes foram interpretadas durante grande parte do século XX. Possivelmente seriam erigidas junto a determinadas sepulturas, como por exemplo a sepultura fundacional de uma necrópole, para as assinalarem através da visibilidade


que lhes conferiam, uma vez que as sepulturas em cista encontravam-se enterradas no solo com expressão arquitetónica residual (Gomes, 2006, p. 53). Na estela da Defesa foi utilizada a técnica decorativa em baixo-relevo, procedendo-se ao desbaste e rebaixamento da superfície plana em redor das figuras, provavelmente com recurso a cinzel metálico (Vasconcellos, 1908, p. 301). Ostenta ao centro uma figura conhecida como ancoriforme suspenso de duas correias e disposta obliquamente uma espada embainhada segura por duas bandas em ambos os lados que corresponderão ao cinturão (Díaz-Guardamino, 2010, p. 777). As estelas de tipo Alentejano dividem-se em diferentes formatos agrupados consoante o tipo de objetos nelas representados e a associação entre esses elementos (Gomes, 2006). Assim, considera-se que a Estela da Defesa integra o grupo mais expressivo, do qual se conhecem nove exemplares e que é constituído pela associação entre ancoriforme e espada (Gomes, 2006, p. 60; Díaz-Guardamino, 2010, p. 309). As espadas surgem por vezes associadas ao cinturão ou tahalí, o que sugere tratar-se de espadas embainhadas. Os detalhes com que são representadas as suas empunhaduras e o tamanho aparentemente real das suas figurações permitem relacioná-las com diversas espadas de metal, de que se conhecem alguns exemplares (Gomes, 2006, p. 51). O ancoriforme é o objeto mais expressivo nestas estelas, sendo conhecidos 21 exemplares, seguindo-se a espada que surge em 16 estelas. Outros elementos que figuram nas estelas de tipo Alentejano são menos frequentes e podem ir desde armas como os machados e as alabardas ou mesmo os arcos, para além de outros objetos de difícil interpretação. A importância da figuração dos ancoriformes e espadas também é demonstrada pelo facto de existirem outras estelas onde estes objetos surgem de modo isolado, ao contrário dos restantes elementos mencionados que surgem sempre em associação com outros objetos (Serra et al., 2014, p. 18). A figura do ancoriforme permanece como um mistério por não haver até à data qualquer correspondência com um artefacto arqueológico que se lhe associe. Este facto levou a que se considerasse que seria realizado em material perecível, justificando-se deste modo a sua ausência do registo arqueológico (Almagro Bash, 1966, p. 250; Gomes, 2006, p. 57). No entanto a sua forte representatividade e centralidade nas estelas de

tipo Alentejano levou a que fosse considerado como um objeto real que poderia corresponder a um símbolo de poder mágico-religioso ou de autoridade, que poderia ser realizado com diferentes materiais e sendo-lhe reservados usos distintos (Serra et al., 2014, p. 20). O ancoriforme representado na Estela da Defesa tem a particularidade de possuir duas correias de suspensão, à semelhança de outros sete casos identificados, o que também permite considerá-lo como um tipo de peitoral protector em couro ou outro tipo de material (Díaz-Guardamino, 2010, p. 300). A Estela da Defesa encontra-se atualmente depositada no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal por cedência do Museu Nacional de Arqueologia.

6. O BRONZE FINAL DO SUDOESTE: UMA HIERARQUIZAÇÃO OCULTA A última fase da Idade do Bronze em Alvalade permanece como uma grande incógnita pela ausência de vestígios claros que permitam integrar este território na lógica da estrutura de povoamento que se desenhou na viragem para o I milénio a.C.. De facto, não se conhece na região em estudo nenhum povoado de altura do Bronze Final, como os que surgem em diversos pontos do interior alentejano e também em alguns locais do litoral. O único sítio atribuído a estas cronologias localiza-se no Monte da Ameira 7, de onde apenas conhecemos alguns materiais arqueológicos cerâmicos recolhidos durante a abertura de valas em obra, mas sem que se conheça o seu verdadeiro contexto. Poderá tratar-se de um pequeno povoado de planície, muito semelhante aos documentados para o período anterior, mas nesta fase dos conhecimentos é precipitado tecer maiores considerações. Certo é que, em territórios mais estudados para o interior, assiste-se a uma aparente regressão do povoamento de planície durante o Bronze Final, devido ao fenómeno de concentração populacional nos grandes povoados de altura, onde as populações se sentiriam mais seguras rodeadas das vastas muralhas que então modelavam a paisagem (Serra, 2014b, p. 82). O território de Alvalade estaria situado na periferia da influência mais direta destes grandes povoados onde se agregavam as elites dominantes. A orografia da região 85


também é mais propícia a um povoamento de planície, discreto e concentrado na exploração dos recursos endógenos, na continuidade do modelo vigente desde o período anterior. Assim, os indicadores relativos ao processo de hierarquização e complexificação social que se reconhece para o Bronze Final não estão suficientemente presentes neste território para podermos compreender de que forma estaria relacionado com as restantes formações sociais documentadas nos territórios vizinhos. Alargando o nosso olhar para o restante concelho de Santiago do Cacém surgem-nos evidências, parcas mas suficientes, para integrar este território nas relações e dinâmicas sociais do Bronze Final. Constata-se a existência de pequenos povoados como Cerradinha, Capela 1, Olheiros e Casa Nova (Santo André), povoados de altura como Senhora do Livramento (São Francisco da Serra) ou Miróbriga (Santiago do Cacém) e também depósitos metálicos provenientes do já referido povoado de Senhora do Livramento e da Herdade do Sobral da Várzea (Santa Cruz) (Soares et al., 2016). No entanto, este conjunto de sítios, deveria integrar uma rede de povoamento coevo, de vocação litoral, enquanto que o território de Alvalade se situaria numa zona de charneira entre estes e as redes de povoamento do interior. Mais dúvidas ainda se colocam para os conjuntos metálicos referenciados para os sítios de Gaspeia e Conqueiros, pois, por se desconhecer qualquer imagem ou descrição pormenorizada das peças, bem como o seu paradeiro atual, torna-se praticamente impossível fazer a sua integração nesta mundividência do Bronze Final. Afigura-se-nos sugestiva a hipótese de associar estes achados às problemáticas dos depósitos de bronze, deposições de artefactos metálicos de diverso tipo e com carater claramente ritual (Vilaça, 2007, p. 7-9), uma vez que o caso dos cinco escopros de bronze de Gaspeia, poderá corresponder a um conjunto coerente e que terá sido intencionalmente depositado em determinado lugar no sítio de Gaspeia. No entanto, os escopros de bronze de Gaspeia prefiguram uma situação incomum, uma vez que este tipo de artefactos surge normalmente associado a outros tipos de peças nos depósitos conhecidos. Já a possibilidade dos machados de Conqueiros também poderem corresponder a uma deposição metálica não levanta tantos problemas, por se tratar do tipo de objeto mais frequente neste tipo de contextos (Vilaça, 2007, p. 11), sendo conhecidos outros exemplos próximos como já referido. 86

Por enquanto este é um assunto que ficará “congelado” até que mais informações clarificadoras surjam ou que haja a sorte de reaparecerem os artefactos referidos durante alguma arrumação de caixotes poeirentos num qualquer museu ou casa onde se encontrem.

7. UM FUTURO PARA O PASSADO O parco conhecimento que temos sobre as realidades da Idade do Bronze não são impeditivos de destacar a importância da região correspondente ao antigo concelho de Alvalade durante este período, como nos é sugerido por algumas descobertas de relevo e sobretudo pelos pequenos indícios sobre a ocupação do território que nos servem de garantia sobre o muito que ainda estará por desvendar. As atuais freguesias de Alvalade e Ermidas-Sado integram-se numa região que faz a ponte entre o litoral Atlântico e o vasto interior da planície do Baixo Alentejo, dois territórios onde a presença humana ao longo da Idade do Bronze está plenamente atestada quer através das necrópoles e povoados abertos do Bronze Pleno, quer pelos povoados de altura, residência de elites guerreiras, do Bronze Final. Os itinerários e contactos entre estas duas realidades geográficas, mas que pertencem ao mesmo mundo cultural, atravessavam seguramente o território de Alvalade e a presença da estela da Defesa a servir de marco referencial de um lugar de culto às gerações passadas atesta isso mesmo, apesar de, como justificámos ao longo do presente texto, este não ser o local original onde ela se ergueria, mas que certamente não seria muito longe. De momento possuímos um enorme conjunto de dúvidas e incertezas sobre a dimensão e as formas da ocupação humana na Idade do Bronze e dos seus processos evolutivos neste território, que assim continuará a guardar as suas histórias no arquivo da terra por mais algum tempo. Mas como a investigação noutros locais nos tem demonstrado, tudo isso pode mudar num instante…


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Arqueólogo. Divisão de Cultura e Património da Câmara Municipal de Serpa Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património – Univ. Coimbra. PAOC - Projecto Arqueológico do Outeiro do Circo (Beja) - PIPA 20192021. 2 http://arqueologia.patrimoniocultural.pt/index.php?sid=sitios&sub sid=51903 [consultado a 26.04.2020 às 16h08]. 3 http://arqueologia.patrimoniocultural.pt/index.php?sid=sitios&sub sid=3466432 [consultado a 26.04.2020 às 16h00]. 4 Informação recolhida por José Matias (CM Santiago do Cacém) no Jornal O CAMPO D´OURIQUE Nº 195, p. 3, 24 abril 1902. 5 Informação de Luís Pedro Ramos em: https://www.alvalade.info/ alvalade-na-idade-do-bronze/ [consultado a 28.04.2020 às 10h40]. 6 Os materiais foram cedidos, de imediato, ao Museu de Arqueologia de Alvalade pelo arqueólogo Francisco Correia, responsável pelo acompanhamento arqueológico da obra, para figurarem na exposição.

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CERÂMICA DA IDADE DO BRONZE Fotografias de Paulo Chaves e Rosa Nunes (a)

TAÇA DE TIPO “ATALAIA” Cerâmica manual Datação: Idade do Bronze Pleno do Sudoeste (2000 a.C. – 1200 a.C.) Dimensões:14,9 cm D.; 6,2 cm A. Proveniência: Monte da Corredoura/Gaspeia 2, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA-5) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

TAÇA CARENADA COM “ORNATOS BRUNIDOS” Taça carenada com decoração em “ornatos brunidos” e furo de suspensão. Cerâmica manual Datação: Idade do Bronze Final do Sudoeste (1200 a.C. – 750 a.C.) | Dimensões: 22 cm D.; 9,6 cm A. Proveniência: Monte da Ameira 7, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA-4) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

VASO GLOBULAR Vaso globular com pega com furo de suspensão. Cerâmica manual Datação: Idade do Bronze Final do Sudoeste (1200 a.C. – 750 a.C.) | Dimensões: 18,5 cm D.;17 cm A. Proveniência: Monte da Ameira 7, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA-3) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

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ESTELA DA HERDADE DA DEFESA

(a)

Estela em xisto com representação de espada com cinturão e “ancoriforme” suspenso por correias. Datação: Bronze do Sudoeste (2000 a.C. – 1200 a.C.) Dimensões: 120 cm A.; 65 cm L.; 5,5 cm E. Proveniência: Herdade da Defesa, Alvalade (Santiago do Cacém) Réplica em exposição Coleção: Museu Nacional de Arqueologia

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A REGIÃO DE ALVALADE DO SADO:

entre o Sul da Lusitania e o Mediterrâneo romano JOSÉ CARLOS QUARESMA1 E RODRIGO BANHA DA SILVA2

A ROMANIZAÇAO DE ALVALADE SADO, ENTRE MIROBRIGA, LUSITANIA E HISPANIA O Alentejo encontrava-se, no século V a.C., ocupado por comunidades de raiz céltica ou “celtizada”. Nas estratégias de povoamento desta Idade do Ferro, a paisagem era pontuada pelos assentamentos em altura, implantados em locais beneficiando de condições naturais de defesa, depois reforçadas com construções que acentuavam esta capacidade. Destes conhecemos bem o exemplo do Castelo Velho = Mirobriga, que não só controlava visualmente os territórios em seu redor, como correspondia também a uma certa encenação do poder que procura acentuar a sua proeminência paisagística. No caso específico de Mirobriga, a localização da parte ocupada na Idade do Ferro é especialmente visível para um amplo espaço paisagístico a nascente, desta forma se preterindo a zona de crista oposta, aquela que mantém o contacto visual com a área mais costeira, porque também mais exposta ao vento e menos insolarizada. Os dados da Idade do Ferro conhecidos para a região de que aqui nos ocupamos são, no momento, por demasiado escassos. Trata-se, neste período, de uma etapa de extrema fragmentação política, em que os povoados possuem esferas de domínio em seu redor bem mais limitadas do que as que irão ter aqueles que irão ser selecionados mais tarde, em Época Imperial Romana, para capital de circunscrição – neste caso, Mirobriga. Estes assentamentos representam uma hierarquia de povoamento, com outros polos mais pequenos e menos destacados da paisagem sob a sua alçada, de que é bom exemplo o sítio da Pedra da Atalaia, sobranceira à Ribeira da Abela, com os seus exíguos 70x50 m de área (Silva, 1978). Na área do futuro município romano assinalaram também Jorge Vilhena e Emílio Ambrona, em 1998/99, um outro povoado fortificado desta Segunda Idade do Ferro, o Castelo Velho de Corona, na freguesia da Abela, do qual infelizmente pouco se conhece (site do Portal do Arqueólogo). Não se estranhará, portanto, que no futuro mais um ou outro assentamento “maior” da Idade do Ferro venha a ser detectado, eventualmente na zona serrana, quiçá no aro da Serra da Caveira ou dos Algares. Recorde-se que aí se inicia o extremo noroeste da faixa

piritosa ibérica, e os atrativos afloramentos de minérios poderão ter então motivado pequenas explorações superficiais, considerando a presença de diversos metais interessantes e dada a pouca aptidão agrícola dos terrenos. Contudo, nas zonas mineiras assinaladas naquela serra, nenhum elemento está no momento disponível, o que não nos permite sequer sugerir os lugares da prática da mineração entre os séculos VII/VI e II a.C.. A região não se afigura como tendo sido uma zona que tenha colocado especiais dificuldades ao movimento expansionista romano. A despeito disto, o estatuto legal inicial de Mirobriga, em Época Romana, foi o menos favorável, o de oppidum stipendiarium (povoado sujeito ao pagamento de tributo), geralmente aplicado às comunidades que resistiram a Roma. Era, contudo, também imposto a outras comunidades somente submetidas no momento do avanço dos exércitos, porque simplesmente não se coligaram a Roma mediante tratado (foedus). O perfil céltico do substrato cultural regional está bem documentado em Mirobriga, não só através do povoado e restos das respetivas construções que o compunham, como também através das loiças e demais vasilhame, onde se assinala com particular destaque a presença de vasos decorados com motivos estampilhados, considerados pelos especialistas deste período como úteis “marcadores” de celticidade: ao permanecerem a uso ainda durante o período romano republicano (séculos II-I a.C.), demonstram, de outro modo, a franca vitalidade do elemento cultural céltico, para além do estrito horizonte histórico e político. A entrada em acção do exército romano na Península Ibérica, em 218 a.C., no contexto da Segunda Guerra Púnica, contra Cartago, marcou o início do estabelecimento de um domínio que só seria definitivamente completado dois séculos depois. No decurso deste período arrastado muito variaram as motivações, os objetivos e as formas de Roma lidar com as comunidades previamente estabelecidas nos territórios. Neste sentido, as transformações operadas relacionam-se de igual modo com o momento mais ou menos precoce em que o do93


mínio romano se estabeleceu, onde a componente militar foi, nas etapas iniciais, preponderante para o controlo e “pacificação”. Nos inícios do século II a.C. o domínio romano sugere ainda não ter ultrapassado o Guadiana, estando em torno dos meados do mesmo século já sob controlo militar a parte mais meridional alentejana, senão a quase totalidade da própria região: em data recente se estabeleceu a identificação do importante sítio arqueológico de Chibanes, na Serra da Arrábida (Palmela), com uma efetiva presença militar provavelmente relacionada com o governador provincial e comandante das forças romanas, Quinto Servílio Cipião, datada de 139 a.C. (Guerra, 2004; Soares et al., 2019); a partir dos anos seguintes, 138-137 a.C., o eixo do Tejo irá assumir-se em definitivo, e a partir daí, como a área-base para a movimentação de conquista e pacificação dos exércitos romanos em direção a Norte e ao Interior beirão (Fabião e Pimenta, 2014). Esta baliza cronológica de 139-137 a.C., portanto, marcará a data em que implicitamente as áreas a sul teriam que estar controladas por Roma, o que significa que a implementação do seu domínio no território de Alvalade do Sado se enquadra numa das etapas mais recuadas de um processo que se estendeu de forma bem mais alargada no tempo à totalidade do que é hoje Portugal. Esta incorporação sob a égide de Roma marca somente o início de um longo capítulo da História regional, que seguramente conheceu no seu interior etapas bem diversificadas e com bem distintos matizes e significados que, no momento, ainda desconhecemos. Comummente se designa o fenómeno desta assimilação por romanização, o que na realidade contrai de forma não totalmente apropriada e sob um único termo um tempo amplo e repleto de fenómenos complexos e variados, não partilhado de maneira igual por todos os personagens. É ao longo dele que terá ocorrido o progressivo ajustamento das comunidades locais pré-existentes à nova realidade política, como, e em contrapartida, a adaptabilidade do novo poder à forma de lidar com estas mesmas comunidades. É também ao longo deste tempo que, de forma intermitente, se terá verificado a chegada de pequenos contingentes populacionais de colonos de origem itálica ou vindos de zonas altamente romanizadas, como também terá ocorrido a estância mais ou menos permanente de pequenos contingentes militares romanos. Estes dois primeiros séculos de integração terão implicado arrastadas “negociações culturais”, quer coletivas quer individuais, compreendendo a variedade de todos os agentes e atores, aspetos no seu conjunto hoje difi94

ceis de percecionar em função dos parcos dados materiais disponíveis, que são em exclusivo de natureza arqueológica. Ainda assim, e com base nestes mesmos escassos elementos, o estado atual da investigação autoriza defender que a matriz cultural prévia autóctone, pré-romana (= Idade do Ferro), assumiu na região que aqui se trata uma longevidade assinalável: o que foi dado observar em Castelo Velho = Mirobriga permite não só constatar a manutenção de elementos da arquitetura, da construção e da urbanística indígena de bem mais remota origem na cidade do pleno século I d.C., como a durabilidade dos modelos domésticos pré-romanos se comprovou subsistir até datas um pouco mais avançadas que aquela (Quaresma, 2012). A este propósito, a mais completa das três inscrições funerárias romanas recolhidas na Herdade de Conqueiros constitui um dos documentos mais relevantes e evocativos acerca da extensa sobrevivência no tempo da componente cultural indígena pré-romana na região, dado que os nomes das duas personagens nela mencionadas, Brocina e seu pai, Arco, são claramente indígenas e comprovam o uso da antiga onomástica préromana ainda nos finais do século I d.C. (Encarnação, 1984, p. 234, nº 153), ou seja, quase 250 anos depois da data provável em que o território terá sido politicamente incorporado em Roma. A integração do território de Alvalade do Sado na romanidade, como a de toda a restante região próxima, equivale, como dissemos antes, a um tempo largo, com os ritmos a variarem de igual modo em função do status correspondente aos diferentes grupos sociais, resultado da dinâmica das resistências/escolhas respetivas. É possível entrever que, como em muitas outras zonas da Hispânia, nas etapas iniciais do estabelecimento do domínio romano os principais focos de atenção de Roma pudessem ter incidido sobretudo nos principais recursos disponíveis no aro de Alvalade, no caso as boas terras de cultivo situadas na Bacia do Sado. Contudo, e embora potencialmente atrativas para eventuais migrantes itálicos, a região ficou claramente à margem dos principais focos conhecidos deste tipo de fixação de gentes vindas de fora, entre os finais do séc. II a.C. e o século I a.C., para a metade meridional da Península Ibérica. O único indício seguramente datado destes momentos e oriundo de Alvalade do Sado equivale a uma moeda em bronze cunhada em Ilipla (Niebla, Huelva) no século II a.C., recolhida, entre outras, no Monte do Roxo, em finais do século XVIII, e doada pelo proprietário a Frei Manuel do Cenáculo, que a expunha no seu museu bejense (Abascal e Cebrián, 2009, p. 602 apud Deus, 2016, p. 167).


De igual modo, Jorge Feio assinalou, no relatório de 2004, sobre o sítio que designou por Monte da Corredoura/Gaspeia 2, a presença no mesmo local de vestígios protohistóricos e de um “casal agrícola romano” (site do Portal do Arqueólogo). Tratam-se, porém, de indícios para já ainda frágeis e inconclusivos da continuidade dos lugares, mesmo que de sugestivos neste sentido. Teremos de contrapor a esta ausência de dados o exemplo do assentamento da Pedra da Atalaia, estudado por Tavares da Silva há mais de quatro décadas: à ocupação da Idade do Ferro feita no cabeço, que se prolonga até sofrer as influências itálicas nos séculos II-I a.C., ali documentadas pela presença de loiça de mesa de “verniz negro” romana vinda da Etrúria e Campânia (Itália Central), sucede-se uma presença romana já datada do século I d.C., implantada na zona baixa do sopé (Silva, 1978, p. 125). O dado sugere uma transferência de local do assentamento, mas numa solução de continuidade. Situação aparentada com esta poderá ter ocorrido nalgum dos sítios rurais de Alvalade de que somente conhecemos no momento vestígios materiais de datas posteriores. Neste período romano republicano, que irá perdurar até 27 a.C., não se desenvolveu - ou sequer foi promovida - a organização de uma estrutura administrativa provincial burocratizada, e esse é aliás um dos traços característicos da orgânica romana aplicada aos espaços exteriores à Itália nesta época. O território de Alvalade do Sado estava compreendido na província da Hispania Ulterior (a “Hispânia mais distante”), uma geografia vasta que compreendia a quase totalidade da metade sul da Península Ibérica, com capital em Colonia Patricia Corduba (Córdova). Roma, enquanto “centro-mundo”, como que se bastava com o efetivo controlo “pacificador” antes mencionado, de que resultava o pagamento de tributos e impostos (tributum, vectigaliae, …), bem como com a exploração dos ricos recursos em metais preciosos (cuja propriedade era, por inerência, do Estado romano) e, por fim, com o estacionamento do seu representante na província, o Procônsul (governador provincial), acompanhado de um restrito corpo de altos-magistrados a ele subordinados que incluía um Pretor e um Questor, no comando de um força militar de, normalmente, duas a três legiões (cerca de 10.000-15.000 homens). A grande distância entre a sede do poder romano provincial da Hispania Ulterior e os focos de povoamento indígenas existentes na região em que Alvalade se integra deixou, portanto, uma larga margem para a sobre-

vivência das formas de vida tradicionais mais ancestrais a que já aludimos. Assumem-se então como principais agentes “mediadores” da integração romana os militares, colonos, comerciantes e publicanos (cobradores de impostos). Destes, os que seguramente têm que ter estado ativos na região e mais regularmente terão que ter interagido com os autóctones foram justamente os últimos, os publicanos, dado que o sistema fiscal provincial romano deste período estabelecia o arrendamento das cobranças fiscais devidas ao Estado a estes particulares que com ele contratualizavam a tarefa, obviamente respaldados pelo poder militar e judicial, estabelecido em Córdova. Porque demasiado difíceis de rastrear através das materialidades, são muito pouco referenciados na literatura arqueológica, quando não mesmo ignorados. Já o comércio com o mundo itálico ou altamente romanizado faz a sua aparição neste período, registando-se a ocorrência de cerâmicas de mesa romanas de “verniz negro” produzidas na Itália entre os séculos II e I a.C., conhecidas para Mirobriga (Delgado, 1971) e Pedra da Atalaia (Silva, 1978, Est.VI, nºs 70-71), como das ânforas vinárias romanas com a mesma cronologia, conhecidas para Mirobriga e oriundas quer da Itália, quer do Sul Hispânico já altamente romanizado (Quaresma, 2012). Poder-se-á inserir neste espectro, para Alvalade do Sado, para além da moeda de Ilipla antes citada, um exemplar anfórico produzido no Vale do Guadalquivir (Espanha), recolhido por Clementino Amaro e Manuel Rosivelt dos Santos Barreto nas suas escavações de 1979 no Monte dos Conqueiros (Amaro e Santos, 1982, p. 81). Tratase, contudo, de um dado inseguro, pois o tipo cerâmico foi produzido a partir de c. 60 a.C., mas perdura até c. 50 d.C.. Seja como for, os dados sugerem que a região paulatinamente se foi integrando numa intrincada rede comercial, desenvolvida no essencial a partir dos espaços dominados por Roma. As mudanças políticas operadas na própria Roma e na Bacia do Mediterrâneo ao longo do século I a.C. iriam produzir contundentes transformações à escala “global”, concluindo-se com a implantação de um regime que imprime ao Estado uma muito maior articulação à escala do Império Romano, o Principado. Em 27 a.C., no rescaldo da última das Guerras Civis que ao longo de todo um século assolaram a Republica Romana, Caio Júlio César Octaviano constituiu com o assentimento do Senado um novo regime, nas suas próprias palavras “o Estado são e salvo nos seus fundamentos (…), o melhor regime” (Res Gestae Divi Augusti). Sob uma roupagem que vestiu a 95


tradição republicana, esta “República restaurada” não foi, nem pretendeu ser, um regresso ao statuos quo anterior, mas antes um compromisso entre César Octaviano e o Senado. Único individuo investido de imperium (grosso modo equivalente ao comando militar supremo), o Senado ir-lhe-á atribuir o título de Augusto, um termo de contornos difíceis de definir associado à própria fundação de Roma, pois se relaciona quer com a esfera do sagrado a partir do vocábulo augere (augúrio, conformidade com a vontade divina), quer com a moral, a partir do termo auctoritas (suprema capacidade de influência, prestígio derivado dos méritos morais e políticos; autoridade, não poder). Esta transformação política acarretou consigo uma repartição de poderes entre os dois elementos do novo e bicéfalo regime. Desta partilha se salientou a divisão da responsabilidade sobre as provincias romanas: ao Imperator (Augusto), agora único, como supremo comandante militar, couberam as militarizadas, as restantes ao Senado. É neste quadro que se divide a província da Hispania Ulterior, criando-se as novas Baetica e Lusitania, cometidas respetivamente ao Senado e ao Imperador. Porventura mais significativa, e com não menores consequências, foi a delimitação das pequenas circunscrições autónomas, as ciuitates, que independentemente do estatuto jurídico que detiveram, por definição em boa medida se auto-governavam. A esta nova realidade corresponderá a criação e fixação formal dos limites administrativos do território da ciuitas de Mirobriga, e o momento da eleição do antigo povoado da Idade do Ferro de Castelo Velho = Mirobriga para sua indispensável capital, dado que na conceção romana não existe território sem cidade, como cidade sem território, sendo o espaço urba-no e rural ambos intrínsecos e implícitos um ao outro. Noutro sentido, a nova provincía da Lusitania, que leva o nome da entidade étnica que mais feroz resistência ofereceu a Roma nas Hispaniae, parece que numa primeira versão (27-25/24 a.C.?) não englobou o Sul de Portugal, que terá permanecido ligado à Baetica. Porém, por volta de 14-12 a.C., uma nova reorganização administrativa iria conferir à província o desenho dos limites pela qual ficou depois conhecida, mantendo a capital fixada na recém fundada colónia destinada aos veteranos militares, Emerita Augusta (Mérida, fundada em 2524 a.C.). Será naquela data de 14-12 a.C., portanto, que as regiões meridionais hoje portuguesas terão ficado incluídas na Lusitania, num momento em que outros desenvolvimentos se deram na organização das circunscrições, com a criação de um nível intermédio novo entre 96

as ciuitates e a província, o conuentus iuridicus: Alvalade do Sado, como a maior parte do atual Alentejo, coube dentro do conventus pacensis, com capital na cidade colonial romana de Pax Iulia (Beja). Porventura mais importante do que o papel jurídico e político destas novas definições romanas foram, todavia, as suas muito profundas consequências mentais a nível coletivo e individual. Antes do mais, e em primeiro lugar, porque a partir delas se constroem novas identidades. Fazendo uso de um traço deveras impressionista para descrever o fenómeno, a um primeiro nível se constrói o sentimento de pertença dos mirobrigenses e da sua coisa pública (res publica). A um segundo nivel, a identidade comunitária das ciuitates sob a alçada do conventus pacensis que partilha e decide sobre questões comuns ao nível regional alargado. A um nível superior, o reconhecimento da condição provincial, lusitana, acima da qual paira a sensação de participação em algo muito maior, “o ser romano”. Noutro sentido, e em segundo lugar, em resultado desta nova configuração institucional não apenas se despoleta o processo de alteração das identidades individuais e coletivas, como a própria mundovisão se transforma ela própria, significando a “passagem de um mundo indígena diversificado, de poderes repartidos e frágeis, para uma realidade provincial de um vasto Império, parcelas de um todo, crescentemente uniformizado nos seus traços mais característicos” (Fabião, 2001, p. 109). Imaginemos, a nível prático, o impacte real destas novas circunstâncias político-administrativas. Assim, uma delegação mirobrigense teria que viajar com alguma frequência à capital conventual, contactando com os congéneres representantes das restantes rei publicae para a decisão de questões comuns de natureza judicial e, pouco mais tarde, também religiosa. De forma similar, uma outra delegação da comunidade mirobrigense teria que se deslocar anualmente até à capital provincial, Mérida, para a reunião do concilium provincialis. Uma e outra reuniões implicaram que os delegados mirobrigenses contactassem com outros provinciais de bem distintas geografias partilhando as suas experiências, sobretudo no caso do concílio provincial, incluindo aqui os de bem mais longinquas paragens, como por exemplo os talabrigenses (zona de Aveiro) ou os salmanticenses (de Salamanca). Assim, se foi gerando nos seus espíritos uma ideia (por muito vaga que fosse) de geografia mental muito mais ampla que a precedente. Acresce a estas, a experiência das próprias viagens, pas-


sando por pontos e espaços não antes frequentados, ou raramente, pelo mais, como a visualiação da transformação e mudança da própria paisagem… Reforçando a ideia que vimos tentando transmitir, a própria estrutura vial (como a marítimo-fluvial, embora de outro modo) é incrementada, formaliza-se e desenvolvese a partir desta altura inicial do Império Romano. Por si só também ela concorre para construir esta nova mundovisão alargada do espaço geográfico. Fazendo uso da conceção abstrata e racionalizada que caracteriza o pensamento greco-romano, as estradas principais mostram agora os marcos miliários implantados à sua beira, e essas colunas cilíndricas indicam expressamente a distância expressa em milhas (milia passum = mil passos = 1481 metros) do viajante ao ponto de origem e, a partir do meio do caminho, em relação ao próximo ponto de chegada. Isto significa que, por exemplo, a noção de distância de Mirobriga a Salacia (Alcácer do Sal) ou a Vipasca (Aljustrel), antes algo de difuso e impreciso, se transformou no tempo de muito poucas gerações em algo de muito concreto, abstracto e mensurável, que para mais permitia estabelecer relações métricas de comparação com as distâncias a outros locais do mundo romano. Constrói-se deste modo, toda uma nova geografia mental, parcela importante de toda uma nova mundovisão fabricada a partir do início do período imperial e que abarca o espaço vasto do Mundo Antigo. A um outro nível, estas transformações, cuja operatividade se inicia de forma acentuada com Augusto, mas que de forma alguma se podem considerar concluídas no imediato, vão funcionar também por força de outros factores fortemente indutores, de que se destacam a paz instalada, o franco crescimento económico dela resultante, o consequente desenvolvimento verificado nos intercâmbios comerciais intra e extra-provinciais, a subida do nível e qualidade de vida dos indivíduos, entre muitos outros aspetos que aqui se poderiam citar. O elemento mais decisivo deste processo, ou se quisermos, do sucesso da integração romana que nesta altura se afirma de forma definitiva e poderosa, é, todavia, a um tempo individual e coletivo: a generalizada e induzida vontade de pertença a esse “mundo romano”. Por força desta integração, num processo que se acelera ao longo do século I d.C., os traços fundamentais das vivências dos locais modificam-se: o Latim dissemina-se e impõe-se em definitivo como a língua falada, caindo o antigo céltico no esquecimento; a apresentação pessoal, incluindo aqui a indumentária, o calçado, o penteado ou até o tratamento do aspeto facial dos indivíduos, pro-

cura aproximar-se e acompanhar as modas dos modelos romanos, como acontece com a forma de construir e habitar; os hábitos alimentares incorporam numerosos elementos de novidade, como a própria forma de tomar os alimentos se altera. Mudanças sociais e culturais profundas, elas resultam da referida vontade de pertença, muito mais do que de uma imposição vinda do exterior, que ainda assim se faz sentir: o direito pauta e acondiciona as regras de convivência social, a propriedade é um bem pessoal do qual derivam obrigações perante o Estado, que fixa a dimensão fiscal ou define as normas de conduta individual e coletiva. Nesta fase, que poderíamos situar dentro do século I d.C., pouco sentido fará já falar de indígenas, porque independemente do estatuto social de cada indivíduo, todos eles são já, e afinal, romanos… É nestes momentos do Alto Império (século I-III d.C.), que os vestígios romanos em Alvalade do Sado adquirem uma franca e ampla visibilidade: inscrições, remacescentes de muros de edifícios, sepulturas, restos de olaria de construção, de cerâmicas utilitárias ou de mesa, vidros e outros objetos povoam a paisagem do território, compondo um conjunto do maior interesse científico e patrimonial. Importa, portanto, perceber o porquê deste interesse tão manifesto por este segmento do Vale do Baixo Sado que se despoleta neste período, e que resultou numa hoje tão reconhecidamente intensa ocupação do espaço identificada pela arqueologia. Quando se olha a espacialidade geral do antigo ager mirobrigense (território da comunidade), desde logo assomam como elementos estruturantes gerais o Oceano (a Ocidente) e a Bacia do Sado (a Oriente). As estradas romanas, infraestruturas que agora formalmente articulam a região, porque adquirem expressão arquitetónica bem visível (pisos ou tabuleiros de circulação, bermas, marcos miliários, pontes, …), estabelecem a conexão entre o litoral, o Sado e o interior alentejano, tendo como nó a capital comunal, Mirobriga. São estes eixos terrestres que vertebram o espaço e as comunicações e conferem unidade às várias parcelas deste território, ligando o ager no seu todo aos outros espaços vizinhos, tendo-se usado para o seu desenho itinerários bem mais antigos e remotos, muitos dos quais em funcionamento mas não como vias unitárias, antes como troços e segmentos de caminhos articulados e que funcionavam decerto com muito menor intensidade. A paisagem deste segmento do Vale do Sado vê, nas imediações do local da vila atual de Alvalade, um dos pontos do atravessamento do rio por uma das duas prin97


cipais estradas romanas que, com origem em Mirobriga, se dirigia a Aljustrel-Vipasca (a outra, um pouco mais a Norte, faria o atravessamento por Ermidas em direção à zona de Ferreira do Alentejo; uma e outra dirigindo-se a Beja-Pax Iulia, a então capital conventual). Este aspeto constitui um elemento da maior importância para se perceber o porquê da alta intensidade da ocupação romana de Alvalade do Sado em período imperial romano… De facto, a exploração dos ricos recursos metalíferos Ibéricos constituiu um dos principais focos de interesse na Península por parte de Roma, desde as etapas iniciais da conquista. O Estado Romano, para além dos rendimentos resultantes da sujeição das comunidades locais ao fisco romano (vectigaliae, tributum, …), reservou para si a propriedade sobre os metais nobres, o que incluía o ouro, a prata, o cobre e o estanho (com os quais se compõe o bronze), deixando somente de fora desta exclusividade o ferro. Ora, a região alargada em que se insere Alvalade do Sado inscrevese, como é bem sabido, no extremo norte-ocidental da rica faixa piritosa Ibérica, e nas proximidades de Alvalade se situaram vários polos de exploração mineira ativos na Antiguidade, mais ou menos bem conhecidos. Mais próximo e ao Norte de Alvalade, na área das minas do Lousal, de há muito se identificou um assentamento de uma antiga povoação instalada sobre uma elevação sobranceira à Ribeira do Lousal, com ocupações humanas de bem diversa antiguidade, o Castelo Velho do Lousal. Hoje muito destruído, entre as recolhas efetuadas pelo grandolense Manuel Matheus cerca de 1895 pontuavam cerâmicas de inquestionável cronologia romana (Matheus, 1895, p. 240). Na área das minas hoje musealizadas, porém, os vestígios de mineração da Antiguidade são escassos e não conclusivos, nomeadamente um afloramento que se supõe ter sido também trabalhado em Época Romana, junto ao “Gossan da Massa Miguel”, para oeste (Matos e Oliveira, 2003, p. 121). Também foi atribuído ao Lousal um importante objeto romano, um simpulum em bronze (um objeto que pode assumir funções rituais com um formato similar às atuais conchas de servir). Belíssimo exemplar do período imperial romano, foi recolhido em condições desconhecidas pela companhia das explorações e oferecido por um Sr. Harris ao então Museu Etnológico (atual Museu Nacional de Arqueologia), por intermédio do amigo e companheiro de explorações de Leite de Vasconcelos já mencionado, Manuel Matheus (Fabião, 1999, p. 177). Acontece, porém, que o objeto é dado pelo próprio Leite de Vasconcelos como oriundo das Minas da Caveira e não do Lousal (conf. Vasconcelos, 1913, p. 486 e nota 1, p. 487, figura 258). 98

Na realidade, o achado referido é bem mais compatível com o que se conhece arqueologicamente para as Minas da Caveira, situadas bem mais ao Noroeste de Alvalade. Aqui, os vestígios das atividades mineiras romanas são não apenas categóricos, como contundentes: galerias subterrâneas (canalicia) de seção irregular, trapezoidal, ou de teto arredondado, canais de escoamento de águas para o exterior dos trabalhos, poços gémeos, poços de arejamento e/ou para permitir o avanço dos trabalhos em profundidade para outro nível, feitos com o objetivo de perseguir o filão até esgotálo, ou a rentabilidade não justificar o seu prosseguimento, deixaram no seu todo da Herdade da Caveira numerosos vestígios parietais. O achado de lucernas está também referido (Martins, 2008, p. 61), como o de um machado de talão datado da Idade do Bronze, que Carla Braz Martins põe em paralelo com uma situação de provável reutilização romana como cunha, semelhante à assinalada nas Minas de Jales (Martins, 2008, p. 118) e, deve acrescentar-se, a de um outro machado também de talão e ilustrado por Estácio da Veiga no século XIX e oriundo da Mina da Juliana (bem mais a Oriente de Alvalade), parte de um conjunto maior encontrado “no interior d’ella e em muita profundidade (…) [composto por] alguns machados e uns escopos de bronze” (Veiga, 1891, pp. 210-211 apud Murteira, 2014). Isto significa que, ao Norte do território de Alvalade se situaram na Antiguidade uma ou duas explorações mineiras, cujos reflexos nas dinâmicas dos sítios e na própria configuração dos espaços da Bacia do Sado se terão que ter feito sentir. A isso voltaremos um pouco mais adiante… Porventura mais impactante será a situação a sudoeste de Alvalade do Sado, e com ela intimamente conectada por uma estrada romana. Ali se situaram as importantes minas romanas de Aljustrel, onde as informações são ainda mais numerosas, e de uma exuberância praticamente sem paralelo no âmbito da Arqueologia Mineira em Portugal, objecto recorrente da atenção dos arqueólogos nacionais e internacionais desde os finais do séc. XIX. Dali se conhece o povoado mineiro chamado Vipasca (Aljustrel) e vários dos seus equipamentos urbanos; exumou-se uma extensa parte da necrópole da comunidade que ali laborava, escombreiras, poços, galerias, canais, equipamentos mineiros, objetos de trabalho (pilões, martelos, cestas de esparto, lucernas para iluminar,…), indumentária dos mineiros (gorro e sola de sapatilha em esparto), compondo uma parcela patrimonialmente verdadeiramente ímpar. Desta vasta panóplia tem, forçosamente, que se destacar o achado, verificado


em dois momentos (1876 e 1906), de duas tábuas de bronze contendo extensas inscrições, originalmente destinadas a estar afixadas em local público do povoado mineiro. O significado do conteúdo de ambas é crucial para se entender não só Vipasca, como os restantes casos de exploração mineira da região alentejana, que ora tratamos. A segunda tábua achada, denominada Vipasca II, contém parte importante de um texto maior que regia muitos dos aspetos da vida do distrito mineiro e seu povoado, com destaque para as matérias de natureza económica e fiscal mas, também, e de forma saborosa, do próprio dia a dia, como o regime de exploração e frequência das termas (arrendadas a um particular, um conductor, o texto indica os horários para homens e mulheres, os respetivos preços de ingresso, …), regula a prática da atividade de barbeiro, de professores (ludi magistri), entre outros, compondo uma ilustração do que era a vida quotidiana num pequeno povoado urbano romano nos séculos I-II d.C. (Encarnação, 2013). A primeira tábua, por seu turno denominada Vipasca I, equivale a parte de uma carta contendo as determinações gerais para a exploração do distrito mineiro de Metallum Vipascensis. Supõe-se que o texto completo original, datado do tempo do Imperador Adriano (121138 d.C.), estaria exposto em 3 tábuas (Lazzarini, 2001 apud Encarnação, 2013, p. 34). Inspirado nas reformas legislativas mineiras do seu tempo, que respeitavam à totalidade do Império, e dado que a atividade mineira no caso se fazia mediante o comissionamento à iniciativa privada, tutelada e administrada por um procurador do Imperador, o texto estabelece as normas do direito que regiam a exploração em termos das relações económicas e fiscais, por isso incluindo múltiplos aspetos técnicos da mineração. Ora, e se dúvidas houvesse, o texto de Vipasca I esclarece-nos de maneira explícita e clara acerca de dois aspectos que, com mais do que alta probabilidade, ocorreram de forma similar na Caveira e, por hipótese, também no Lousal: por um lado, estarmos perante regimes de exploração público-privados, tutelados de forma muito estreita por um representante local do Estado romano central; por outro, a natureza territorial dos locais das minas ser a de distrito mineiro, por isso mesmo exterior à tutela administrativa e fiscal das circunscrições políticas locais (municipais desde cerca de 74 d.C.), compondo nesta zona do atual Alentejo autênticas “ilhas” jurídicopolíticas sob a direta tutela do imperador romano (Alarcão, 1988).

Ora, estes coutos mineiros localizados ao redor de Alvalade pressupunham o escoamento dos lingotes metálicos. Estando as minas situadas no interior, e dado que os custos do transporte terrestre eram significativamente mais elevados, os trajetos aquáticos (marítimofluviais) eram preferencialmente os mais procurados. A questão põe-se em relação a qualquer uma das minas citadas, com Caveira e Lousal mais diretamente conectadas com a Bacia do Sado, mas também com Aljustrel, dado que encontra em Alvalade o ponto de encontro com o rio. Isto significa que em termos meramente potenciais, con jeturais, o Sado, a despeito de provavelmente não ser navegável no troço em causa, poderá em algum momento e de alguma forma ter contribuído como via de comunicação aquática para o escoamento metalífero e influenciado o delineamento dos trajectos. Faltam, contudo, dados empíricos que suportem a hipótese. Em alternativa, e o que se afigura no momento como mais provável, os metais extraídos, quer a Oriente (Aljustrel e Juliana), quer a Norte de Alvalade (Caveira e Lousal ?), terão feito parte do seu trajecto por via terrestre antes de atingir pontos na costa de maior entidade, que devemos procurar no Sado (Salacia=Alcácer e Caetobriga=Setúbal) e, sobretudo, em Sines (=Sinis ?), aglomerado secundário romano ligado por estrada a Mirobriga. A verificar-se esta perspetiva, as estradas romanas Alvalade do Sado-Mirobriga e Ermidas-Sado-Mirobriga terão conhecido um trânsito de algo relevante intensidade no período imperial romano. Conjugaram-se, por consequência, múltiplos fatores que contribuíram para uma densificação da ocupação do espaço que verificamos arqueologicamente entre Ermidas e o Vale do Sado pertencente a Alvalade, espaço atravessado por dois importantes eixos viários conetados com polos da mineração mas, também, com a capital de circunscrição e a partir daí com o porto romano de Sines, porque a zona apresenta elevado valor agrícola, propiciado pelos solos e pela disponibilidade hídrica abundante do rio e seus afluentes, com particular saliência para a Ribeira de Garvão. É à vitalidade dos fluxos verificados nos eixos de distribuição, sejam eles aquáticos, terrestres ou mistos, e nos quais a zona de Alvalade do Sado joga um papel importante, que se devem as ocorrências dos materiais arqueológicos significantes como as ânforas transportando produtos alimentares (produtos piscícolas e vinho da foz do Sado – e do Tejo? –, como de paragens mais distantes como azeite e vinho da Bética=Andaluzia, vinho da Gália=França e da Itália), das loiças de mesa «à romana» 99


(transportada desde a Bética=Andaluzia, Noroeste da Hispânia, Itália, Sul da Gália e Tunísia). No seu conjunto, estes objetos ilustram-nos a importante circulação de produtos oriundos de paragens mais ou menos distantes, que atinge Alvalade no período romano imperial. Como referimos antes, é nesse mesmo período imperial que se multiplicam os sítios rurais do aro de Alvalade, repertoriados no site do Portal do Arqueólogo, e resultantes dos estudos elaborados pelo Padre José Oliveira (manuscrito cotejado por Feio, 2004) e, sobretudo, Filomena Barata (2009) e, mais tarde, Jorge Feio (2004), entre outros investigadores. Num desses sítios, na Herdade de Conqueiros, conhecido desde a década de 1920 pelo Padre Oliveira (Feio, 2004), pela primeira vez em 1979, se executaram escavações arqueológicas de realidades do período romano no aro de Alvalade, conduzidas por Clementino Amaro e Manuel Rosivelt dos Santos Barreto, no caso, um salvamento. Na altura se puseram a descoberto interessantes elementos construtivos, pese embora insuficientes para se poder caracterizar com alguma confiança a natureza da exploração rural. Os materiais recolhidos naquela ocasião incluíram loiça fina de mesa importada, onde pontuavam uma taça marcada pelo oleiro Primus, que laborou na Península Itálica na primeira metade do século I d.C. (Etrúria?), um bordo de uma outra com a mesma origem mas ostentando decoração de espiral aplicada (tipo Goudineau 37 ou 38), o que a remete para datas de 25 d.C. ou décadas seguintes, uma porção de taça decorada oriunda de La Graufesenque, na Gália do Sul, encerrando uma cronologia de c. 65-100/120 d.C. (tipo Draggendorf 37), e, completando este conjunto mais antigo de objetos, um fragmento de ”taça de costelas” em vidro azul cobalto (tipo Isings 3 - eventualmente também italiano) e parte do bocal de uma ânfora vinária da Bética (tipo Haltern 70), um e outro também do século I d.C., mais provavelmente da sua primeira metade (Amaro, 1982, p. 81). Ora, este pequeno conjunto recolhido em 1979 é assaz significante: por um lado, ao demonstrar a vitalidade da Herdade dos Conqueiros em datas recuadas do Império Romano, demonstrando que pessoas do sítio rural possuíam a capacidade de adquirir produções exógenas de “luxuária” e produtos vínicos oriundos de paragens mais ou menos distantes do mundo romano; por outro, por evidenciar que o sítio, como a região da vila de Alvalade e algumas das suas “gentes”, estão nesta data já bem integrados numa rede ampla de intercâmbios de bens e da cultura que os objetos representam. Este perfil mostrado pelo arqueossítio perdurará nos séculos posteriores, como bem demonstra a recolha 100

de loiça de mesa oriunda da atual Tunísia, com destaque para uma taça datada de entre c.90 a 150 d.C. (Hayes 8A), a par de outra loiça com a mesma origem fabricada entre os séculos II ao final do IV d.C., ou uma fíbula (alfinete de prender o vestuário), cuja data remete para as mesmas cronologias, e uma pequena moeda do Imperador Constâncio II, cunhada em Arles, entre 320 e 361 d.C., na França atual (Amaro, 1982, p. 81), numisma que porém pode ter circulado até bem mais tarde. Das prospeções efetuadas no sítio que denominou Monte das Gáspeas / Monte da Gaspeia / Gaspeia 3, Jorge Feio assinalaria, em 2004, a existência de abundante espólio, infelizmente desconhecido (site do Portal do Arqueólogo). Também no quadro das suas prospeções o mesmo investigador identificou um peso de lagar de apreciável dimensão recentemente posto a descoberto no Cerrado de Maria Lança, hoje integrado no Museu de Arqueologia de Alvalade. Em 2018 se identificou uma estrutura romana construída com lateres (tijolo), em Monte da Ameira 6, na sequência de trabalhos arqueológicos reativos conduzidos por Francisco Correia e Andreia Silva (site do Portal do Arqueólogo). A lista de exemplos de achados e trabalhos arqueológicos sobre sítios romanos de Alvalade é mais extensa, e poderíamos aqui enunciar detalhadamente pouco mais de uma dezena de locais com comprovada presença num curto aro inferior a 10 km, dispostos ao longo de ambas as margens do Sado. Sendo certo que, pelo menos num caso (Monte Branco da Ameira), os locais correspondem a zonas de necrópole onde se praticaram sepultamentos datáveis dos séculos I-III/IV d.C. (?), implicando uma relação com algum assentamento agrícola próximo, todavia ainda por descobrir. A maioria dos restantes casos equivale a explorações rurais cujas características (dimensão das propriedades, organização dos espaços de trabalho, domésticos, residenciais e sepulcrais) desconhecemos por completo. Ainda assim os intervalos entre os vários locais, ao mostrar um ritmo aproximado de distanciamento em torno dos 1200 m, de alguma forma denuncia as dimensões e o tipo de propriedade agrária romana em Alvalade, como já o havia assinalado Jorge Feio (2004), implicando um fundus (área fundiária) maioritário em torno dos 50-120 Ha. A nomenclatura arqueológica designa os sítios como uillae, ou seja, grandes propriedades agrícolas orientadas, não apenas para o autoconsumo, mas também de-


claradamente para o comércio de bens alimentares e outros produtos. Não sendo aqui o local para debater o ajuste desta designação, convém esclarecer que estas explorações lusitanas dos séculos I-IV d.C. laboravam sobretudo com recurso a mão de obra livre e não escrava. Para tal contribuíam os ritmos de vida, incluindo os do trabalho, pois estavam diretamente relacionados com o regime climático e das estações do ano, e a sazonalidade das atividades era muito mais vulgar do que por vezes supomos, gerando uma disponibilidade de força de trabalho assalariada flutuante que se movia entre a agricultura, a ganadaria, as atividades piscatórias e de transformação do pescado e a mineração, qualquer delas presente no aro mirobrigense. Trata-se, aliás, de um aspeto muitas vezes subvalorizado nos estudos arqueológicos da economia da Antiguidade, isto é, a dimensão de complementaridade e interdependência entre as várias actividades, matriz do trabalho de há muito sugerida para a região por Jonathan Edmonson (1987). A dimensão produtiva destas unidades adotou técnicas, práticas e instrumental agrário romano, conferindo primordial interesse à produção vitivinícola (a mais rentável), o olival (rentável, embora num plano inferior) e cereal (a cultura menos rentável, em plano bem inferior aos anteriores), compondo a tríade alimentar mediterrânica (vinho, azeite e pão), já praticada aparentemente antes da chegada de Roma, mas não da mesma forma tão estruturada e racionalizada. De fato, a escala da produção atingida na região no período imperial romano não tem precedente, e representa uma clara intensificação na exploração dos recursos. Com as “villae” implantadas na Bacia do Sado no entorno de Alvalade, os excedentes da sua produção agropecuária eram destinados aos mercados. A capital municipal, Mirobriga, assoma como um destino óbvio para os bens, para mais vindo o projeto Tabmir (estudo das áreas comerciais de Miróbriga, dirigido por um de nós JCQ) a revelar novos dados sobre a importância comercial da cidade romana, com a identificação recém-produzida de um macellum (mercado) e um possível horreum (armazém/celeiro), edifícios que se vêm acrescentar à mais de uma dezena e meia de tabernae (lojas) já antes conhecidas. Por outro, as facilidades de trânsito de mercadorias facultadas pela estrada que se dirigia à povoação mineira de Vipasca (Aljustrel) proporcionavam ali um outro mercado para a comercialização dos bens agrícolas oriundos de Alvalade, tendo aqui que se acrescentar a possibilidade de o mesmo ter acontecido em relação às minas da Caveira e, eventualmente, Lousal. Em sentido diverso, a ter-se verificado o trânsito

por veículo de tração animal do minério pela estrada romana que servia Alvalade, esse fluxo terá favorecido a circulação dos produtos agropecuários nas viagens de retorno. À cabeça de cada uma das propriedades agrícolas encontrava-se o dono (dominus), normalmente um elemento das famílias mirobrigenses mais proeminentes, integrando o grupo estrito envolvido na dimensão política da sua res publica. Por esta razão, para além dos equipamentos agrários indispensáveis a qualquer exploração (armazém, celeiro, lagar, alojamentos dos trabalhadores, …) as propriedades são também dotadas de um espaço residencial “mais nobre”, arquitetonicamente bem mais elaborado (ostentando espaços de lazer, contendo pórticos, frescos com pinturas, pequenas termas privadas, …). Na realidade, as “villae” não são somente espaços produtivos, mas encerraram uma importante componente de espaço de representação social, contemplando-se nela cenografias de poder que procuravam refletir a dimensão dos seus proprietários. Sem que os dados de Alvalade sejam a esse respeito muito exuberantes ou sequer claros, pelo menos algumas das “villae” parece terem mantido alguma vitalidade até, pelo menos, o século IV d.C.. Decerto que também aqui de alguma forma se fez sentir o impacte dos problemas que a uma escala geral afetam o Império Romano a partir da segunda metade do século II d.C. e em especial no séc. III d.C. (a mineração decai de forma drástica em Aljustrel neste último momento; na cidade de Mirobriga são evidentes os problemas no funcionamento de alguns equipamentos urbanos, …). A escassez de elementos, todavia, não nos permite apreciar os ritmos desta conjuntura, e temos forçosamente que admitir que a situação deverá ter tido efeitos distintos de propriedade para propriedade, porventura algumas delas deixando de funcionar neste período. Faz-se então abater sobre a história do território de Alvalade um silêncio que traduz porventura outras formas de ocupação e uso do espaço, mas, e de sobremaneira, a ausência do conhecimento que advém das lacunas da investigação.

O COMÉRCIO DE CURTA, MÉDIA E LONGA-DISTÂNCIA, NA ÁREA DE ALVALADE De um modo muito genérico, ao qual temos sempre de contrapor fortes nuances espaciais (mesmo durante os séculos I, II, III e IV d.C., quando o Império tinha grosso modo a sua expensão máxima), podemos estabelecer algumas fases da História financeira do mundo romano (García Garrido, 2001, p. 18-19): 101


- Fase primitiva ou de formação: entre 350-319 e 150100 a.C.; que atinge levemente o território português, ainda numa fase inicial de conquista militar; - Fase de apogeu ou de expansão comercial: entre 150100 a.C. e 260-300 d.C., é a fase mais importante, com forte desenvolvimento comercial e bancário; - Fase tardia ou de decadência, entre 260-300 e 476 d.C. (no caso ocidental, com a queda de Roma; Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, só cairá em 1453 d.C.), em que não há fontes sobre a atividade financeira e bancária. Se compararmos esta proposta de evolução da História financeira romana com a evolução do consumo de terra sigillata em Mirobriga, a principal cidade e sede do território onde se incluía a região de Alvalade do Sado, vemos claras similitudes. Na civitas que liderava esta região administrativa, a aquisição desta cerâmica fina de mesa, ao longo de pouco mais de cinco séculos, foi ocorrendo, como acontecia nas cidades e villae da Lusitania, a partir de regiões produtoras distintas, em moldes, diríamos, pré-capitalistas, pela dimensão e complexidade do fenómeno de produção e comercialização: desde os fornecedores itálicos, depois sudgálicos e hispânicos, durante os séculos I e II d.C.; desde os fornecedores africanos (atual Tunísia), nos séculos II a inícios do VI d.C.; e finalmente, desde os fornecedores da Fócea (atual costa ocidental da Turquia), nas últimas décadas do século V e nas primeiras do VI d.C.. Na figura infra, podemos ver como evoluiu a importação dos 2476 exemplares (número mínimo de indivíduos) relativos a 6148 fragmentos. Na mencionada fase de apogeu da economia romana ocorre o maior consumo desta tipologia. Tal como noutras cidades lusitanas e peninsulares (Quaresma, 2012), na segunda metade do século I e primeiras décadas do século II d.C., o consumo de terra sigillata atinge níveis que não serão mais alcançados, apesar das recuperações comerciais de finais do século II e do século IV d.C.. É neste quadro cronológico, típico de muitas cidades e villae do Sul da Lusitania, que devemos balizar o conjunto de importações refletidas pelas cerâmicas recolhidas na área de Alvalade, e de cuja análise nos ocuparemos de seguida.

102

Figura 1 – Evolução do consumo de terra sigillata, em Miróbriga, Santiago do Cacém (Quaresma, 2012)

O conjunto de cerâmicas finas (terra sigillata, paredes finas, lucernas e terracotas) e de ânforas (contentores para o comércio alimentar de longa distância) da área de Alvalade foi constituído por recolhas na região, bem como por elementos anfóricos publicados, provenientes das escavações nas villae da Herdade dos Conqueiros (Amaro, 1979) e da Herdade da Defesa (ver artigo neste volume). Deste conjunto, sem dúvida o melhor representado e menos distorcido é o das ânforas, contentores de longa distância, adaptados para o transporte, fluvial e marítimo, de vinho, azeite ou preparados de peixe. Já as cerâmicas finas estão debilmente representadas, sobretudo a terra sigillata, pelo que as ausências de origens fornecedoras desta tipologia constituem uma mera insuficiência de investigação e sobretudo de publicação, que será, sem dúvida, fortemente ultrapassada com futuros estudos sobre os espólios registados nas escavações da villa da Herdade dos Conqueiros. No mapa infra, podemos constatar várias regiões abastecedoras. Com respeito às cerâmicas finas, um fragmento de forma indeterminável de terra sigillata africana C da área tunisina (mas seguramente os futuros estudos identificarão as normais importações itálicas, sudgálicas e hispânicas, africanas A e D, tal como possivelmente foceenses); acresce ainda uma terracota de possível origem oriental, mas fortemente interrogada, e paredes finas da capital lusitana, Augusta Emerita=Mérida. No diverso comércio alimentar, regista-se ânforas sobretudo dos baixos vales do Tejo e Sado (preparados de peixe e vinho), tanto na sua costa como no vale do Guadalquivir (azeite e defructum – vinho com conserva de azeitonas); e ainda da costa ocidental da Italia (vinho). A trilogia mediterrânica, com pão (cereais), azeite e vinho, estava assim assegurada por produção muito


?

Figura 2 – Regiões abastecedoras de cerâmicas de mesa/cozinha e de ânforas (comércio alimentar), detetadas na área de Alvalade – localização ampliada (mapa de base da autoria de César Figueiredo)

possivelmente local, mas também pela importação de itens de outras qualidades, para satisfação do paladar latinizado.

da de finais do século I ou inícios do II d.C. (Gijón Gabriel, 2004, p. 156, nº 206).

Finalmente, na cerâmica comum, para além de fabricos locais ou regionais indeterminados, temos a presença de fabricos em argila caulinítica, muito provavelmente da costa alentajana, onde abundam, por exemplo, em Mirobriga ou na Ilha do Pessegueiro (Silva e Soares, 1993). O nº 1 é uma terracota de possível origem oriental, pela natureza da sua pasta fina, vermelha. Com sinais evidentes de sobremoldagem (excesso de reutilizações do molde da peça), representa um busto feminino, com penteado de grande envergadura que ocupa grande parte da peça. Esse penteado é constituído por uma trança que circunscreve a cabeça e separando assim a face da longa popa, ritmada por arranjos circulares dos cabelos. A mulher olha em frente, com olhos levemente endoados.

1

1cm

A parte traseira da peça é lisa. Em Augusta Emerita=Mérida, uma terracota com algumas semelhanças está data-

Figura 3 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 1: figura feminina de terracota – coleção particular

103


O nº 2 é um vaso com asa de paredes finas, tipo Mayet 51, produzido em Augusta Emerita = Mérida, capital da provincia da Lusitania. A tipologia das paredes finas destinava-se essencialmente à produção de pequenos vasos /copos para o consumo de líquidos, nomeadamente o vinho, basicamente introduzido pela Romanização, nos hábitos alimentares peninsulares. O exemplar em questão possui decoração a roleta, com duas largas faixas horizontais, separadas por duas caneluras. A sua cronologia deverá rondar a segunda metade do século I d.C. (Mayet, 1975).

tamanho, revelam uma morfologia semelhante, de ombro e disco lisos. O perfil do nº 3 é contudo mais achatado e o seu furo de combustão de pequena dimensão, enquanto o nº 4 possui perfil mais alto e furo de combustão de grande dimensão e algo defeituoso. Aparentemente, a asa do nº 3 seria em fita, enquanto a do nº 4 é cega. Esta morfologia está datada por alguns autores a partir do século II, podendo atingir os séculos IV ou V d.C. (Morillo Cerdán, 1999; Bussière, 2000), embora os dados estratigráficos mais seguros, em Ostia (Carandini; Panella, 1973; Carandini; Panella, 1977), indiquem um início mais seguro a partir do segundo quartel ou de meados do século III d.C. (ver análise crítica em Quaresma, no prelo).

Os nºs 3 e 4 são lucernas do tipo Derivada de Disco, na versão grande e grácil, respetivamente. Com exceção do

2

4 3

5 6

7

0

10 cm

8

Figura 4 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 2: recipiente de paredes finas, produção da Lusitania, de Augusta Emerita, tipo Mayet; 51; 3: lucerna de produção local/regional, tipo derivada de disco, Herdade de Conqueiros; 4: lucerna de produção local/regional, tipo derivada de disco – coleção particular; 5-8: bordos de ânforas da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14C – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança

104


O conjunto anfórico é claramente dominado pelas ânforas de preparados de peixe e pelos centros do baixo-Tejo ou Sado. Há, contudo, alguma importação deste alimento, a partir da costa bética. O Tejo/Sado forneceu também vinho, através da Lusitana 3 (ver artigo, neste volume, sobre a Herdade da Defesa); tendo sido igualmente importado da Itália, na ânfora Dressel 2-4 (ver artigo, neste volume, sobre a Herdade da Defesa), ou do litoral da Baetica, através da Gauloise 4 (ver artigo, neste volume, sobre a Herdade da Defesa). Acresce ainda o chamado defructum (vinho com azeitonas em conserva) do vale do Guadalquivir (exemplar sem estampa. Ver igualmente Amaro, 1979, nº 4, sobre a herdade da Defesa). O azeite importado é oriundo desta última região, o vale do Guadalquivir, famoso pela sua produção, que se destinava, primeiro que tudo, aos abastecimentos estatais à plebe da cidade de Roma e aos contingentes militares das fronteiras britânicas e germânicas. Nesse devir comercial, uma parte dos produtos destinava-se igualmente a mercados privados, como os das áreas de Alvalade do Sado (Carreras Monfort, 2000).

O comércio alimentar discutido enquadra-se, grosso modo, nos séculos I e II, com possíveis extensões ao século III d.C.. O comércio alimentar tardio (séculos III e V d.C.), seguramente atestado, é originário, na sua totalidade, dos baixos vales do Tejo ou Sado e inclui apenas os preparados de peixe. Ao nível, tipológico, relativo ao Tejo/Sado, os nºs 5 a 14 e 16 a 19 pertencem à forma Dressel 14, na variante C, de bordo arredondado, típica ânfora de preparados de peixe dos séculos I e II d.C., que é substituída, no século III d.C., pela Almagro 50 (nº 20), à qual se junta, no século IV d.C., a Keay 78, seguramente do vale do Sado, já que o Tejo não a produziu. Este comércio de preparados de peixe dos séculos III a V d.C. é dominado, contudo, pela ânfora de menor dimensão, a Almagro 51c (nºs 22 a 29), que é acompanhada, em menor escala, pela Almagro 51a-b (nº 30), a partir do século IV d.C. (neste caso, tal como com a Keay 78, seguramente originária do vale do Sado) (Viegas, Raposo e Pinto, 2016; Pinto e Magalhães, 2016; Raposo e Almeida, 2016; Mayet e Silva, 1998; Mayet e Silva, 2002).

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0

11

10 cm

10 cm

0

9

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Figura 5 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 9: ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14C, Monte Espada; 10: ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14; 11: ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14 – coleção particular; 12: ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14 – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança

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Figura 6 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 13-14: asas de ânforas da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14; 15: asa de dollium, de cerâmica comum de produção local/regional – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança; 16: fundo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14 – coleção particular; 17-18: fundo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14; 19: fundo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Dressel 14; 20: fundo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Almagro 50; 21: ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Keay 78 – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança

Os nºs 31 e 32 respeitam ao comércio de azeite bético (vale do Guadalquivir), através do tipo Dressel 20, nos séculos I a III d.C.; mas a Baetica, na sua costa, produziu 106

também preparados de peixe vendidos em Alvalade do Sado, através da Beltrán II, nos séculos I e II d.C. (Berni Millet e García Vargas, 2016; García Vargas, 1998).


22 24

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0

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Figura 7 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 22: ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Almagro 51c, Herdade de Conqueiros – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança; 23: fundo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Almagro 51c – coleção particular; 24-27: fundos de ânforas da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Almagro 51C; 28: fundo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Almagro 51c; 29: bordo de ânfora da Lusitania, produção Tejo/Sado, tipo Almagro 51c; 30: fundo de ânfora da Lusitania, tipo Almagro 51a-b; 31: fragmento ânfora da Baetica, produção do Guadalquivir, tipo Dressel 20; 32: asa de ânfora da Baetica, produção do Guadalquivir, tipo Dressel 20 – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança; 33: asa de ânfora da Baetica, produção do litoral, tipo Beltrán II, Várzea do Brejo/Ameira – coleção particular

Por fim, a cerâmica comum é toda lusitana, de muito provável produção da própria área de consumo. Destaca-se a produção, em pastas cauliníticas do litoral alentejano,

do almofariz, nº 34, e do prato covo, nº 35. Esta produção foi bem diagnosticada com os trabalhos da Ilha do Pessegueiro (Silva e Soraes 1993). Se o prato covo é uma 107


forma simples e repetitiva, o nº 34 é, contudo, semelhante à variante I-A-6 consumida em São Cucufate, enquanto o nº 44, com engobe externo alaranjado, semelhante à variante I-A-2 deste sítio (Pinto, 2003).

tipo IV-B-1), embora a curvatura do nº 34 seja quase impercetível. Para além dos jarros e sua contenção de líquidos (nºs 41 e 42), o potinho, nº 39, poderá ter tido uma função próxima, a par do exemplar de parede finas emeritense de que já falámos.

Já o almofariz presente se enquadra no tipo de lábio desenvolvido, introvertido (Quaresma, 2006; Pinto, 2003,

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40 39

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Figura 8 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 34: almofariz com lábio reentrante, fabrico caulinítico do litoral alentejano; 35: cerâmica comum de produção local/regional, fabrico caulinítico do litoral alentejano – Porto Covo – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança; 36: pote de cerâmica comum de produção local/regional – coleção particular; 37: pote de cerâmica comum de produção local/ regional; 38: pote de cerâmica comum de produção local/regional; 39: potinho de cerâmica comum de produção local/regional; 40: pote/ panela de cerâmica comum de produção local/regional; 41-42: jarro de cerâmica comum de produção local/regional; 43: taça de cerâmica comum de produção local/regional; prato covo de cerâmica comum de produção local/regional com engobe externo alaranjado; 45-46: tachos de cerâmica comum de produção local/regional – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança

108


Os potes ou potes/panela são importantes no conjunto (nºs 36 a 38 e 40), variando uma funcionalidade entre a contenção de sólidos ou líquidos e a cozedura de alimentos. Em nenhum dos casos foi possível confirmar a sua função como panela, dada a inexistência de marcas de fogo junto ao bordo, o único segmento conservado. A armazenagem de alimentos, sólidos ou líquidos, mas em maior dimensão, está representada pelos dolia = talhas, nºs 15 e 47, este, com o típico bordo de secção em glande.

A panela tende a ganhar peso percentual nos equipamentos de cozinha em cerâmica comum, ao longo do período imperial, a partir do século III, em especial. Acontece assim na villa de São Cucufate (Vidigueira), ou no atelier da Quinta do Rouxinol, no estuário do Tejo (Pinto, 2003; Santos, 2012). A cozedura de alimentos e a aposta no gado vacum tende assim a tornar-se cada vez mais importante, competindo com a fritura e o ensopado de ovi-caprinos. Este último processo, de longa tradição mediterrânica, é fortemente implementado pela gastronomia romana e explica o surgimento de almofarizes, para a confeção de molhos, e de um papel cumulativo dos pratos covos como frigideiras (para panquecas, por exemplo). O recipiente mais importante para o ensopado de ovi-caprinos é o tacho, que vai perdendo peso percentual nas coleções de cerâmica comum, ao longo da Antiguidade Tardia, até possivelmente desaparecer na área atlântica, depois de meados do século VI d.C. (Quaresma; Silva, no prelo; Donnelly, 2016). Os nºs 45 e 46 são tachos de bordo espessado em fita, introvertido, e parede vertical.

47 0

10 cm

48 0

10 cm

Figura 9 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 47: bordo de dollium de produção local/regional; 48: pote de cerâmica comum de produção da Baetica – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança

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Figura 10 – Espólio recolhido na área de Alvalade do Sado. 49-50: fragmento de cerâmica de construção (tégula) de produção local e regional; 51: fragmento de cerâmica de construção (tégula) de produção local e regional, Ermidas (Ponta do Sado); 52-53: cerâmica de construção (tijolo de quadrante) de produção local/regional – coleção Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança

109


Por fim, o nº 48 representa a única importação de cerâmica comum: um pote de origem bética, que foi provavelmente comercializado em conjunto com as cargas de produtos alimentares envasados em ânforas que compunham os grandes fretes das embarcações (Morais e Pinto, 2007).

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10 cm

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Página anterior: PERSPETIVA DE UMA HIPOTÉTICA VILLA ROMANA Ilustração de César Figueiredo

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HERDADE DA DEFESA 3.

Um sítio romano em Alvalade do Sado CATARINA ALVES

1. ENQUADRAMENTO(S) E ESTADO DA ARTE O sítio arqueológico Herdade da Defesa 3 foi identificado, decorria o ano de 2002, no âmbito do Acompanhamento Arqueológico das obras de modernização e duplicação da Linha Ferroviária do Sul – lanço Ermidas / Funcheira, a cargo da REFER, sob responsabilidade científica de Michelle Santos e Jorge Feio (2003). Os trabalhos de escavação arqueológica para melhor caracterização dos vestígios que sugeriam, e vieram a confirmar-se, tratar-se de uma ocupação romana basearam-se na premissa da conservação pelo registo atendendo ao impacte irreversível da obra supra citada sobre o património arqueológico. A responsabilidade científica do registo desta ocupação antiga foi de Vanessa Sousa e Luís Carvalho (2003, 2006). Interpretado como villa romana este sítio arqueológico localiza-se na margem direita do rio Sado (Figuras 1 e 2), gozando de elevado índice de potencial hídrico, o que favorece a sua vitalidade agrícola. Orograficamente a paisagem caracteriza-se por uma suave ondulação (72m alt.), onde dominam, geologicamente, os terrenos de argilas silto-arenosas com seixos e calhaus rolados correspondentes à Bacia de Sedimentação do Sado. Estes são cobertos por depósitos superficiais recentes, de matriz argilosa, aráveis, típicos de aluvião, distando cerca de 2 a 3 metros do nível freático.

Até ao momento a Herdade da Defesa 3 foi publicado, ainda que sumariamente, a propósito do 1º Encontro de História do Alentejo Litoral, sendo apontada esta a proveniência de um capitel toscano, atualmente na pose de um alvadalense (Feio, 2009). Ao mesmo sítio, e apesar de não figurarem na presente análise, é atribuída a proveniência de alguns materiais recolhidos pelo Padre Jorge de Oliveira “um martelo encontrado sobre mosaico, uma anilha, fragmentos de mosaico, uma pequena “infusa” romana, testos (operculae?), um peso de barro [...] tampas de galhetas com cabeça ornamentada” (Ibidem: 59). Em nosso entender não é linear a associação destes materiais com as estruturas que adiante descreveremos, podendo o espólio ter sido recolhido noutra área útil desta “propriedade” romana. A mesma lógica se aplica à menção às recolhas e depósito no atual Museu Nacional de Arqueologia de mosaico romano atribuídas a Leite Vasconcelos (Ibidem: 48).

Figura 2 – Localização na CMP 1:25000, folha 528

2. OS TRABALHOS DE CAMPO1

Figura 1 – Localização na paisagem. Vista norte-sul

Na tentativa de interpretar, funcional e cronologicamente, a ocupação antiga, de que os materiais arqueológicos detectados durante a fase prévia de Acompanhamento Arqueológico davam mote, foram, então, feitas sondagens em três setores diferentes da encosta, voltada a Este (Figuras 1 e 3). 115


2.1 SECTOR I (OESTE) E III (NORTE)

maior precisão formal. Na cerâmica fina a terra sigillata africana está representada pelas produções de Bizacena e Cartago, três e um fragmento respetivamente. Em apenas um dos casos foi possível determinar a sua tipologia, a saber: Hayes 46, datado do último quartel século III ao 1º quartel do século IV d.C..

2.2 SECTOR II 2.2.1 COMPARTIMENTO 12

Figura 3 – Planta Esquemática da área de escavação - Adaptado do Relatório Final Trabalhos de Escavação. Defesa 3. Linha do Sul, Troço – Ermidas / Funcheira (Sousa e Carvalho, 2003)

A nascente do Sector I e a sul do III, foi identificado o Compartimento 1, de morfologia retangular e orientado sul-norte (Figuras 3 a 5).

Numa das áreas de detecção de maior concentração de materiais arqueológicos registada à superfície, ou seja, na parte mais elevada da encosta, foram implantadas 3 sondagens de diagnóstico (Sector I), cujos resultados revelaram uma total ausência de níveis arqueológicos conservados. A presença destes materiais conciliada com a inexistência de estruturas e/ou contextos preservados sugere a remobilização dos mesmos decorrente de ações, possivelmente, relacionadas com a prática agrícola. Na extremidade sondada mais a norte, designada por Sector III, foi definido um aglomerado de pedras e seixos de pequeno calibre, sobreposto diretamente ao substrato geológico e simultaneamente, cortado, no sentido sudoeste-nordeste, por uma interface negativa. O preenchimento desta vala consistia num sedimento com abundantes materiais de construção, algumas formas cerâmicas de vidrados, faianças, fragmentos de minério e metal, assim como um esqueleto de canídeo. Deste modo, neste segmento norte da zona sondada observaram-se apenas contextos de deposições naturais e perturbações antrópicas recentes. Os diferentes contextos supra descritos continham em si uma mescla de cerâmicas com cronologias muito díspares o que reforça a ideia de não se tratarem de níveis conservados. Assim, registaram-se fragmentos de faiança, enquadráveis no 1º quartel/meados do século XVII; raros elementos de cerâmica de construção romana e cerâmica comum (utilitária – maioritariamente: potes/ panelas) onde dominam produções locais/regionais, com apenas cinco casos de elementos importados (Baixo Vale do Guadalquivir). Os contentores anfóricos resumem-se a quatro fragmentos de bojos provenientes de Bética costeira e Vale do Guadalquivir, sem possibilidade de 116

Figura 4 – COMPARTIMENTO 1 – Adaptado do Relatório Final Trabalhos de Escavação. Defesa 3. Linha do Sul, Troço – Ermidas / Funcheira (Sousa e Carvalho, 2003)

Estratigraficamente e segundo a ordem natural de deposição dos estratos registou-se um piso, em opus caementicium, [08], sobreposto por um contexto doméstico de lixeira (sedimento esverdeado, compacto, com alguma cerâmica e fauna mamalógica, [07]) que anula em definitivo o uso do espaço na sua função original e a que se seguem 3 momentos de abandono concordantes com a degradação natural e continuada daquele espaço. Ou seja, uma sucessão de episódios de sedimentação natural, a derrocada da cobertura e por fim o colapso das paredes do compartimento. Da fase de abandono deste compartimento importa realçar, uma tampa de imitação de cerâmica de cozinha africana, da forma Hayes 182 (tipo Culinária B), datado de meados do século II ao IV d.C.


A Estrutura 5 corresponde a um degrau revestido a opus caementicium. De registar, ainda, uma subdivisão no interior do compartimento, mais concretamente na sua metade oeste apoiando-se (?) à Estrutura 1. Trata-se de uma espécie de pia (Estrutura 6) sobreposta diretamente ao piso, construída por fragmentos de latterae e revestida a opus caementicium e que está perfeitamente integrada com os restantes elementos do compartimento.

Figura 5 – Aspeto final após escavação arqueológica do COMPARTIMENTO 1 (Foto ex-IPA Castro Verde)

Este compartimento revela várias remodelações sintomáticas de funcionalidades distintas, ainda que de difícil interpretação. O aparelho construtivo das Estruturas 1 e 4 consiste na junção de grandes blocos de pedra, seixos de rio e blocos de minério, revestido pelo interior e exterior por opus caementicium. No topo conservado de ambas as estruturas registam-se, ainda, acrescentos de fiadas de fragmentos de latterae. Contudo, se no primeiro caso se trata apenas de uma fiada ao jeito de remate da construção da parede e como tal parte de um plano arquitetónico único, no segundo caso trata-se de uma remodelação óbvia. A Estrutura 2 é composta por blocos de pedra e minério. O topo conservado desta parede (construída por uma série de fiadas de latterae) está desalinhado com a base, o que se traduz num paramento exterior a prumo e um escalonamento pela face interior. A Sul registou-se um acrescento que se apoia pelo interior ao paramento original, mediante a utilização exclusiva de materiais de construção cerâmicos (opus testaceum). De referir, que neste caso assenta diretamente sobre o piso do compartimento. Ainda que no 1º caso parta de um plano arquitetónico original e no 2º resultado de uma remodelação, em ambas as situações o efeito é de um escalonamento, criando uma superfície tipo banco. Todos estes elementos estruturais, independentemente da fase em que se inserem, encontravam-se revestidos a estuque em ambas as faces, com a exceção do exterior do paramento Este. A Estrutura 3, composta por grandes lajes de xisto, assenta sobre o piso e nela se abre um canal estruturado. Este permite a comunicação do exterior com um rebaixamento no piso (canal), que assume uma configuração retangular e corre junto ao paramento este.

Ao que tudo indica este compartimento tem uma planta original remodelada/adaptada a uma nova funcionalidade. Numa primeira fase construtiva fariam parte as estruturas números 1, 2 e 4, sendo que desconhecemos a sua articulação a norte; numa fase seguinte é incorporado o muro interior apenso à parede 4 e é fechado o espaço a norte mediante a colocação das estruras 3 e 5. A não identificação de estruturações nos espaços exteriores contíguos a este compartimento, especialmente a norte e este, têm apenas que ver com a sua não conservação derivada, cremos, da espoliação natural a que este tipo de sítios, com pedra disponível, foram sujeitos ao longo dos tempo, ou de uma destruição de outro cariz antrópico, toldando de forma irreversível a perceção que podíamos ter hoje da originalidade dos contextos da ocupação romana. Genericamente, foram identificados estratos de aterro e restos de derrube diferenciados, mas nenhuma estruturação in situ, situação extensível a outras zonas sondadas. Assim, parece possível a existência de um compartimento original de maiores dimensões a norte que posteriormente terá sido reduzido mediante a construção, refira-se em abono desta teoria de remodelação, de dois troços de parede (3 e 5) que perfazem o paramento norte do compartimento. Nesta mesma fase é construído um degrau pelo interior da parede 5 que permite o acesso pelo topo ao interior do novo espaço. Desconhecemos, no entanto, a real funcionalidade do projeto inicial, mas parece-nos plausível que tenha funcionado mais tarde, após remodelação arquitetónica, como latrina. A favor desta proposta temos o canal junto à estrutura, sobre o qual sairia o tampo em material perecível, e que, portanto, não se conservou, que ocultava no seu interior a zona de escoamento, com abertura em 3. A pia também se adequa a esta funcionalidade. Por outro lado, da necessidade de impermeabilização ou limpeza recorrente do espaço decorre a opção por revestimento cerâmico compatível com a interpretação funcional apresentada. 117


2.2.2 NÚCLEO DE ESTRUTURAS A NORDESTE A Nordeste do Compartimento 1 foi identificada uma série de estruturas que formam um pequeno complexo de dois tanques e um compartimento (Figura 6). Arquitetonicamente os diferentes Ambientes parecem desenvolver-se a partir do designado Tanque 2. Deste Ambiente de maiores dimensões preservaram-se parte dos paramentos oeste (Estrutura C e CIII) e norte (Estrutura CI e CII). O Compartimento 2, retangular e de orientação sul-norte, localiza-se na extremidade sudoeste do anterior e é composto pelas Estruturas A e B, apostas e de orientação oeste-este. Sensivelmente a meio da Estrutura CIII apoia-se perpendicularmente o alinhamento B. A norte, também perpendicular, e apoiada à Estrutura CII constrói-se a Estrutura D, no sentido sul-norte que perfaz canto mais a norte com a D1 formando o Tanque 1.

ocupação foi registada uma sucessão de episódios de derrocada das respetivas paredes, [02], colmatadas com o nível de aterro, [01] que cobre todo o sítio. O mesmo fenómeno de sobreposição sedimentar e de pavimentos sucede pelo exterior a norte do Compartimento 2 e a oeste do Tanque 2. Ambas as estruturas (A e B) são construídas com recurso a pedra, terra e materiais de construção, são estucadas e no contacto com o piso possuem um rebordo em opus signinum, típico de uma estrutura do tipo tanque.

2.2.2.1 COMPARTIMENTO 2

Importa salientar, que pelo exterior sul-sudoeste do Compartimento 2 indícios como cerâmica queimada em abundância, sedimentos com cinza e uma possível estrutura em argamassa de contornos circulares sugerem a presença de uma estrutura tipo forno. Porém, não foram registados vestígios estruturais, apenas derrubes ou sedimentos resultantes, em hipótese, do seu uso.

Do nível mais antigo para o mais recente a sequência estratigráfica associada ao espaço confinado ao Compartimento 2 revelou um estrato de cinzas e carvões, [05= 09], ao qual se sobrepõe uma sucessão de dois pavimentos em opus caementicium, [15] e [11], remodelados por um mais recente em opus signinum, [12], e respectivo estrato de preparação, [14]. Sobre esta fase de construção/

Do material de cronologia Moderna realçamos as faianças de meados/finais do século XVI a meados do XVII, cuja proveniência maioritária se reporta ao território português com uma exceção espanhola. No que à cerâmica comum diz respeito o padrão mantêm-se cronológica e funcionalmente, tal como no que respeita às prove-

Figura 6 – COMPARTIMENTO 2, TANQUE 1 e 2 - Adaptado do Relatório Final Trabalhos de Escavação. Defesa 3. Linha do Sul, Troço – Ermidas / Funcheira (Sousa e Carvalho, 2003)

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niências. Dos materiais sem dúvida romanos destaque para um bordo de ânfora lusitana da forma Almagro 51C datada no intervalo de 200 a 499 d.C. (Figura 9); a par de dois fragmentos de TSafrC e um prato de A (Hayes 14A), datado entre finais do século II e inícios do III d.C.. O desmonte do pavimento [12] é o único estrato onde se detetaram exclusivamente materiais romanos, com destaque para uma produção itálica de ânfora Dressel 2/4 (?),(Figura 9), (2ª metade do século I a.C. a meados do II/III).

2.2.2.2 TANQUE 2 O Tanque 2, encontra-se destruído a sul e a este pelo que desconhecemos as suas exatas medidas e morfologia. Os aparelhos dos muros que o compõem (C=CIII e CI=CII) recorrem à utilização de pedra de pequeno e médio calibre, latterae, terra e telhas, e encontram-se revestidos em ambas as faces por estuque.

Este rebordo apoia-se e segue pelo interior, e na totalidade, o perímetro das estruturas que perfazem o Tanque 2. Possui uma espessura sensivelmente idêntica aos paramentos principais e altimetricamente apresenta um desnível descendente a partir do canto noroeste para sul e este. O pavimento, [16], dista do topo do referido rebordo cerca de 40 centímetros, é construído em opus caementicium e encontra-se sob as estruturas C, CI e CII, tendo continuação a norte e a oeste. Possui inclinação no sentido noroeste, colocando-se a hipótese de se prolongar em todo o redor daquilo que seria o Tanque 2, truncado aquando da construção apensa do Tanque 1 e Compartimento 2, uma vez que o seu desenho é linear, homogéneo e apenas inexistente nas zonas onde estes dois ambientes se observam. Interpretamos o piso em opus signinium [18] (ver Figura 6) como um remendo de [16], mantendo regra geral a cota deste e demarcando-se do mesmo por rebordos laterais que no limite Oeste já não estão sob a estrutura CIII mas parecem-nos apoiar-se a ela, reforçando a sua relação de posterioridade. Posto isto, estamos na presença de um tanque cujo rebordo em opus signinum dever-se-á comportar como uma parede/revestimento impermeabilizante das faces internas dos muros estruturantes que o definem, o que não se verificou no Compartimento 1. Os materiais recolhidos dos estratos de derrube combinam cerâmica comum romana de produção local/regional e cerâmica vidrada, com faiança datável dos séculos XVII-XVIII.

2.2.2.3 TANQUE 1

Figura 7 – Aspeto final do canto noroeste do TANQUE 2 (Foto ex-IPA Castro Verde)

Uma vez removidos os estratos de aterro, derrube e abandono (unidades estratigráficas [01], [02], [05] e [10]), resultantes do colapso/destruição e desativação do tanque, foi registado junto às estruturas um estrato de preparação, [07], e respetivo rebordo interior em opus signinum, [06].

O Tanque 1, de menores dimensões, aproveita parte da pré-existente parede norte do Tanque 2 como paramento Sul e desenvolve-se para norte segundo a parede D que faz canto com a D1, fechando o espaço. Desconhece-se a sua morfologia dado que a escavação não prosseguiu a Este. Os aparelhos das estruturas D e D1 são idênticos e traduzem-se na conjugação de blocos de pedra de pequeno e médio calibre, argamassa de cal e terra. O topo de D é estucado com recurso a argamassa de cal, sendo que D1 é revestida em ambas as faces por opus. Á semelhança do que se descreveu para o Tanque 2 neste e apoiando-se aos paramentos Oeste e Sul registou-se parede/rebordo, [06], em opus signinum. Uma vez que temos registo da extensão total da parede Oeste deste 119


tanque e parte das sul e norte é possível perceber que qualquer que fosse a funcionalidade da parede/rebordo [06] essa não exigia a sua presença no perímetro interno total do tanque. O troço sul-norte de [06] apenas se apoia a D1, não existindo continuação oeste-este apensa a este muro limítrofe. Neste espaço a dinâmica de colmatação e abandono é em tudo semelhante ao Tanque 2, sendo que apenas se detetou um pavimento, [08], no caso em opus caementicium, que cremos contemporâneo do piso [16]. Aqui, e ao contrário do que sucede no Tanque 2, não estamos perante uma construção simples, maciça e apensa aos paramentos exteriores, funcionando como paramento interior com funções impermeabilizantes. A construção inclui a colocação dupla e espaçada de uma combinação de dois latterae que formam um espaço oco entre si, triangular. Esta realidade parece tratar-se de um sistema de escoamento ou ventilação com o exterior (?). Esta é uma questão de difícil solução, já que desconhecemos a sua relação física com o muro D, bem como o desenvolvimento do ambiente a este, e não aplicável a norte.

Figura 8 – TANQUE 1 (Foto ex-IPA Castro Verde)

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Em associação com este tanque estaria uma fossa com orientação oeste-este. Esta interface negativa, [17], foi escavada no substrato geológico, possuía uma largura de cerca de 80 centímetros e terá sido preenchida por terras muito soltas e arenosas, nódulos de cinza, argamassa e estuque, além de material de construção cerâmico e espólio arqueológico metálico, faunístico e cerâmico. A estrutura desenvolvia-se paralelamente a CI=CII e estaria integrada na D em forma de arco. Contudo, e na verdade, a escassez de informação gráfica e fotográfica produzida impede-nos entender a sua real articulação com o dito tanque. As grandes e densas dispersões de derrubes de telha imediatamente a oeste deste conjunto obriga-nos a equacionar a hipótese da presença de outros ambientes na mesma lógica construtiva dos aqui referidos, ou seja, adossados entre si e que por razões várias não se tenham preservado. Por outro lado, a referência em sede de relatório de um pilar a oeste da estrutura C (Sousa e Carvalho, 2006: 37) coloca, igualmente, em hipótese a existência de espaços cobertos do tipo porticais.


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Figura 9 – Espólio recolhido: ânforas lusitanas: 1 a 3 Almagro 51c, 4 a 7 Dressel 14, itálica: 8 Dressel 2/4; terra sigillata sudgálica: 9 Drag. 27, africana A: 10 Hayes 9B, africana D: 11 Hayes 58B, africana C: 12 Hayes 48B; Cerâmica de cozinha africana: 13 Hayes 181c.

3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Sendo esta uma zona de relevos pouco acentuados e de depósitos arenosos resultantes da sedimentação da Bacia hidrográfica do Sado, que providencia solos superficiais típicos de aluvião, é natural que se traduza numa zona fértil e seja propícia à agricultura e como tal à ocupação humana na antiguidade.

A presença romana no Vale do Baixo Sado, e especificamente para o território de Alvalade do Sado, torna-se mais expressiva no Alto Império, e para esse fato concorrem questões relacionadas com a potencialidade dos solos, a proximidade aos grandes eixos viários que ligam o litoral, o Sado e o interior alentejano, a par, possivelmente, do papel da região mineira a norte de Alvalade. 121


Os vestígios da ocupação romana na envolvente mais próxima da Herdade da Defesa 3 remetem-nos para algumas considerações. Assim, cerca de 600 m a sul dos contextos aqui em análise e 8 quilómetros para sul da vila de Alvalade implanta-se, o sítio com topónimo Defesa 4, um local referenciado como casal tardo-romano ou visigótico (Feio, 2009: 60-61); a Nordeste deste, mas já na margem esquerda do Sado implanta-se uma nova realidade descrita como villa, referimo-nos à Defesa 5 (Feio, 2009: 58). Da sepultura romana conhecida pelo topónimo Herdade da Defesa 2 existe apenas menção a “um vaso de barro” (Alarcão, 1988). Mas é, efetivamente, o achado isolado com o topónimo Herdade da Defesa que mais diretamente se pode relacionar com o sítio da Herdade da Defesa 3. Referimo-nos a um contrapeso de lagar cilíndrico com cerca de 130 centímetros de altura por 100 centímetros de diâmetro, possui um encaixe ao centro no fundo e homólogo no topo de morfologia circular, a par de dois opostos igualmente no topo e de perfil trapezoidal. Estas características morfométricas permitem-nos enquadrá-lo no Tipo 53 associado a uma prensa de parafuso (Brun, 1986: Figuras 60A e B apud Cervantes, 2010: 55). Existe alguma discordância nas informações relativas à sua exata localização que implicam como veremos diferentes associações a eventuais diferentes contextos de ocupação. A primeira referência ao achado indica que terá sido retirado do leito do rio e colocado na margem direita em linha reta com a Herdade da Defesa 3 (Santos e Feio, 2003). Posteriormente, é mencionado como parte do espólio detetado à superfície aquando da identificação da villa da Defesa 5 (Feio, 2009: 58). Existem, ainda, relatos orais (Manuela de Deus) que situam o achado próximo da passagem a vau do Sado e como tal concordantes com a sua proximidade ao complexo de tanques, aqui tratado. As características das estruturas aqui apresentadas não se coadunam com a utilização deste tipo peças, o que não significa que a mesma não pertencesse a esta villa, pois a área destes processos de transformação poderia localizar-se noutra zona que não terá sido, até ao momento, sondada. Assim, o que conhecemos da Herdade da Defesa 3 resume-se à área de impacte direto da obra supra citada, e como reflexo temos um fragmento do que se conservou até aos dias de hoje. Sabemos, por exemplo, que no caminho de terra batida a Este e anexo ao sítio foram registados, na fase de Acompanhamento Arqueológico, dois pisos, em opus signinum e caementicium, adossados pelo lado norte a uma estrutura, igualmente em opus signinum. Entre os pisos e a referida estrutura positiva existiria uma depressão em meia cana que fazia a ligação (Santos e Feio, 2003: 13 e 16). Infelizmente o contexto já 122

se encontrou muito destruído e a sua reduzida dimensão impede outras considerações, exceptuando a de que terá necessariamente relação com as estruturas identificadas a oeste. Conhecem-se outras referências associadas, de forma empírica, a esta ocupação romana como, por exemplo, uma possível estrutura de combustão, com base em argila cozida e escórias de ferro nas imediações. Funcionalmente, e apesar de aparentemente isolado, o chamado Compartimento 1 é por nós interpretado como uma possível latrina romana, pese embora o seu aparente isolamento. Relativamente aos restantes ambientes (designados Compartimento 2, Tanque 1 e 2) não é estranho, nem inédito, considerar a presença de tanques de apoio à atividade agrícola. Analisado o espólio, seu contexto e volume, podemos apontar como baliza cronológica ocupacional para este sítio romano o século III e inícios do IV d.C.. Os materiais enquadráveis, exclusivamente, nos séculos I e II d.C. e finais do IV-V d.C. podem ser considerados residuais. Durante o século III d.C. os produtos de origem lusitana (ânforas) afirmam-se face aos importados da antiga província da Bética e neste sítio assiste-se em conformidade à maior expressão dos produtos de transporte de preparados piscícolas com essa origem, sobretudo de Almagro 51c. Por outro lado, a presença maioritária de cerâmica fina de mesa (TSafrC) reforça as relações comerciais no século III d.C. com a zona de Bizacena (Tunísia), e a escassez de TSafrD, que alcança maior importância a partir dos primeiros decénios do século IV d.C., na Herdade da Defesa 3 parece ser sintomática da sua decadência.

AGRADECIMENTOS Devemos, por consideração, agradecer, a disponibilidade da Dra. Manuela de Deus, bem como da equipa que constitui o mapa de pessoal do Centro Interpretativo de Miróbriga; tal como a um conjunto de investigadores a quem recorremos por forma a reforçar a validade do conteúdo aqui produzido no que à funcionalidade do sítio diz respeito: Drs.: Yolanda Cervantes, Pedro Abrunhosa Pereira, Amílcar Guerra e Inês Vaz Pinto.


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O presente texto tem por base informações estratigráficas e descritivas fornecidas no relatório dos trabalhos arqueológicos levados acabo no sítio (Sousa e Carvalho, 2006), procurando efetuar uma reavaliação crítica e reinterpretação através desses dados, a que soma o estudo do espólio. 2 Mantemos no texto as designações – Compartimento 1, 2 e Tanque 1, 2 dadas em sede de relatório.

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FERREIRA, Carlos Jorge; SILVA, Carlos Tavares da; LOURENÇO, Fernando Severino e SOUSA, Paula (1993) – Património Arqueológico do Distrito de Setúbal, subsídios para uma carta arqueológica. Associação de Municípios do Distrito de Setúbal, Setúbal. SANTOS, Michelle e FEIO, Jorge (2003) – Relatório Final dos Trabalhos de Acompanhamento Arqueológico da linha do Sul. Troço Ermidas do Sado / Funcheira. Policopiado. SOUSA, Vanessa e CARVALHO, Luís (2003) – Relatório Final Trabalhos de Escavação. Defesa 3. Linha do Sul, Troço – Ermidas / Funcheira. Policopiado. SOUSA, Vanessa e CARVALHO, Luís (2006) – Relatório Final de Escavação Arqueológica na Herdade da Defesa 3 (Reformulação de março de 2006). Policopiado.

FEIO, Jorge (2009) – A ocupação romana em torno de Alvalade: novos dados. Silva, I., Madeira, J. E Ferreira, S. (coords) Actas do 1º Encontro de História do Alentejo Litoral. Sines, pp. 47-71.

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ANÁLISE ZOOARQUEOLÓGICA DO MATERIAL FAUNÍSTICO DO SÍTIO ROMANO DA HERDADE DA DEFESA 3 1

PEDRO VALENTE FERNANDES2

INTRODUÇÃO Os restos aqui apresentados foram recolhidos na escavação arqueológica realizada na Herdade da Defesa 3, Alvalade, em 2002, dirigida por Vanessa Sousa e Luís Carvalho, ao serviço da empresa Geoarque. Esta escavação foi realizada no âmbito do projecto de minimização de impactes do projecto de modernização da Linha Ferroviária do Sul – Lanço Ermidas / Funcheira, a cargo da REFER. O sítio da Herdade da Defesa 3, localizado na margem direita do rio Sado, foi interpretado como villa romana (Feio, 2009). A área intervencionada em 2002 deverá corresponder a um sector deste sítio arqueológico e, pela análise do espólio, a sua ocupação é apontada para os séculos III e inícios do IV d.C. (Alves, no prelo). Para além destes materiais associados à ocupação romana, existem materiais de cronologia moderna/contemporânea que não estão associados a estruturas ou contextos preservados (Alves, no prelo).

não foi possível identificar o táxon, nomeámo-los como Indeterminados.

RESULTADOS E DISCUSSÃO No que diz respeito à representação taxonómica no período romano do sítio da Herdade da Defesa 3, foram identificados Oryctolagus cuniculus (coelho), Equus sp. (cavalo/burro/ mula), Sus sp. (porco e/ou javali), Cervus elaphus (veado), Bos taurus (boi/vaca), Ovis aries/Capra hircus (ovelha e/ou cabra; (Tabela 1). A presença das espécies destes táxones, assim como as alterações feitas por humanos nos restos faunísticos; (Tabela 2), mostra que houve exploração dos recursos animais para aproveitamento de produtos primários (carne, ossos, peles, etc.) e, possivelmente, secundários (dependendo das espécies: leite, queijo, pêlos/lã, tracção animal, transporte, auxílio em diversas actividades, etc.).

METODOLOGIA Para a análise dos restos de vertebrados aqui apresentados recorremos à colecção de comparação do Laboratório de Arqueologia e Restauro, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, assim como a obras gerais de Barone (2010), de France (2009), e de Schmid (1992), para além da base de dados não oficial compilada por Mary Stiner. Quando não conseguimos identificar o táxon de determinado resto, identificámos os restos como sendo de Animal de Pequeno Porte (APP), de Animal de Médio Porte (AMP), de Animal de MédioGrande Porte (AMGP), ou de Animal de Grande Porte (AGP), nos casos em foi possível perceber as dimensões. Quando nem isto foi possível, nomeámos os restos como Indeterminados. Para a análise dos restos de invertebrados, utilizámos a obra de Saldanha (1995). Nos casos dos restos em que

Tabela 1 – Número de Restos Determinados (NRD), Não Determinados (ND), Número Total de Restos (NTR), e respectivas percentagens dos restos de vertebrados provenientes de contextos romanos

Este grupo de espécies pode ser dividido em dois: as espécies de animais selvagens (16,92% do total de restos arqueofaunísticos provenientes de contextos romanos do sítio) e as de animais domésticos (64,62%). No primei127


ro grupo são incluídos o coelho (apesar da possibilidade de este ser intrusivo) e o veado. No segundo, o equídeo, o boi/vaca, e a ovelha e/ou cabra. De ambos os grupos são excluídos os suínos (14,78%), pelo facto de a análise não ter permitido a distinção entre a espécie doméstica (porco, Sus domesticus) e a selvagem (javali, Sus scrofa). Apesar de haver uma menor representação de restos das espécies de animais selvagens, as que estão presentes na Herdade da Defesa 3 (das quais, nesta afirmação, não excluímos o javali, pela possibilidade da sua presença) eram os mais comuns alvos de caça por parte dos romanos. Tanto o veado, como o javali, estavam distribuídos por todo o território do Império Romano (MacKinnon, 2014). Mesmo o coelho, que inicialmente estava confinado à Península Ibérica e ilhas próximas (idem, Harden, 2013), espalhou-se até ao restante território romano (MacKinnon, 2014). Todos eles seriam caçados, principalmente, por produtos primários, sendo a carne o principal. No caso do veado (e de outros cervídeos), um outro produto muitas vezes aproveitado para diversos fins eram as hastes, mesmo não sendo necessária a morte do animal para a sua recolha, uma vez que estas caem naturalmente todos os anos, no final da época de acasalamento. No entanto, na Herdade da Defesa 3, apesar da existência de restos de hastes, este não parece ser o caso, uma vez que não chegaram até nós indícios do seu processamento. A caça destes animais também poderia ser feita por recreação, algo muito comum entre as elites da sociedade romana (idem, Harden, 2013). A maior representação de restos de animais domésticos não será de estranhar neste sítio, uma vez que a sua

presença pode indicar não apenas o consumo da sua carne e outros produtos primários, como no caso das espécies selvagens, mas também a sua utilização, em vida, para a obtenção de produtos secundários, como já referido. Isto, aliado à fertilidade dos terrenos da Herdade da Defesa, assim como às estruturas presentes neste sítio (Alves, no prelo), sugere um investimento na actividade agro-pecuária e, consequentemente, um tipo de ocupação permanente. Os romanos tinham um alto aproveitamento de tudo o que os recursos animais pudessem proporcionar (até o estrume produzido por estes animais seria utilizado pelos agricultores na gestão dos terrenos agrícolas e de pastagem; Kron, 2014. Para além da carne, o gado bovino poderia ser utilizado para tracção animal (Cardoso, 1997; Howe 2014a). Apesar da possibilidade da utilização do seu leite, este não era tão relevante comercialmente no caso dos bovinos como no dos caprinos, que tinham um alto rendimento deste produto (Harden 2013; Howe, 2014b), que seria especialmente usado para a produção de queijo (Cardoso, 1997; Harden, 2013). A lã de ovelha da Hispania era muito popular por todo o Império (Cardoso, 1997; Harden, 2013). Do porco (possivelmente presente na Herdade da Defesa 3), no entanto, não é conhecida a sua utilização para nenhum produto secundário. Ainda assim, este seria um dos animais predilectos na cozinha romana, sendo que Apício apresenta 17 receitas que incluem a carne deste animal (Cardoso, 1997; Howe, 2014b). Obviamente, nem todas as espécies de animais domésticos representadas seriam utilizadas na alimentação, como é o caso do(s) equídeo(s) presente(s) nesta colecção. Os equídeos (cavalo; burro; mula) eram, geralmente,

Tabela 2 – Alterações registadas nos restos, por táxon e grupos de indeterminados: restos com marcas de dentes de carnívoros (roedelas ou dentadas, por exemplo); restos com marcas de oxidação; restos total ou parcialmente carbonizados; restos que apresentam fracturas antigas de origem antrópica (fracturas “em espiral”, por exemplo); restos com marcas de lâmina (pequenos cortes em estria, marcas de cutelo, etc.)

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utilizados em vários tipos de transporte (de pessoas; de mercadorias; como animais de tiro) e, casualmente, na agricultura (Harden, 2013, Howe, 2014a). Os cavalos, em particular, seriam utilizados na caça (Cardoso, 1997; Harden, 2013; Howe, 2014a; MacKinnon, 2014), e é referido por Vegécio que o consumo da sua carne era abjecto para os romanos (Cardoso, 1997). Para além da presença de espécies de animais vertebrados, registou-se a presença de espécies de invertebrados, nomeadamente de vários bivalves marinhos. A única espécie, no entanto, cujos restos arqueofaunísticos possibilitaram uma identificação precisa, foi a ostra (Ostrea edulis). Esta é uma espécie que ocorre em zona mediolitoral (ambientes de ria e de estuário; Saldanha, 1997), e, portanto, não existe naturalmente na área da Herdade da Defesa. Assim, há que considerar uma deslocação ao mar para a sua captura por parte dos habitantes deste sítio, ou colocar-se a hipótese de ter havido uma troca comercial para a sua obtenção (Fernandes e Correia, 2015). Face à presença, no sítio da Herdade da Defesa 3, de cerâmica associada a preparados piscícolas (Alves, no prelo), consideramos, com reservas, que a segunda hipótese poderá ser a mais provável.

Lista de taxa Ostrea edulis NRD Indeterminados ND NTR

Herdade da Defesa 3 NR 23 23 6 6 29

Lista de taxa Lepus sp. Canis familiaris Equus sp. Sus sp. Cervus elaphus Bos taurus Ovis aries/Capra hircus NRD APP AMP AGP Indeterminados ND NTR

Defesa 3 Moderno/Contemporânio NR ≈%NRD ≈%ND 1 2,38 24 57,14 1 2,38 4 9,52 3 7,14 3 7,14 6 14,29 42 100 4 3,81 51 48,57 19 18,1 31 29,52 105 100 147 -

Tabela 4 – Número de Restos Determinados (NRD), Não Determinados (ND), Número Total de Restos (NTR), e respectivas percentagens dos restos de vertebrados provenientes de contextos modernos/contemporâneos.

Destes restos, apenas destacamos a presença do cão (Canis familiaris), não tanto pelo maior número de restos (que, virtualmente, pertenceriam ao mesmo indivíduo, uma vez que nenhum dos elementos anatómicos se repete lateralmente), mas pela existência de um fragmento de maxilar, do lado esquerdo, que apresenta hiperdontia (número adicional de dentes; Figura 1).

Tabela 3 – Número de Restos Determinados (NRD), Não Determinados (ND), e Número Total de Restos (NTR) dos restos de invertebrados

Apesar de não apresentarmos um estudo em relação aos restos arqueofaunísticos provenientes de contextos modernos/contemporâneos (pelo menor número de restos e, principalmente, pela maior dificuldade de os contextualizar), estes restos foram alvo de análise, pelo que ainda apresentamos os dados resultantes. Estão representados taxonomicamente Lepus sp. (lebre), Canis familiaris (cão), Equus sp. (cavalo/burro/mula), Sus sp. (porco e/ou javali), Cervus elaphus (veado), Bos taurus (boi/vaca), Ovis aries/Capra hircus (ovelha e/ou cabra; (Tabela 4). Para além destes, havia ainda um resto de invertebrado: um bivalve (Bivalvia) não determinado.

Figura 1 – Fragmento de maxilar de cão (Canis familiaris), do lado direito, com hiperdontia (fotografia de Paulo Chaves)

Este fragmento estará em exposição no Museu de Arqueologia de Alvalade. Uma vez que houve um problema com a identificação da proveniência destes restos, estes foram inicialmente identificados como romanos. Por esse motivo, é essa a informação que consta no museu.

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CONCLUSÃO A maior quantidade de restos de espécies de animais domésticos parece sugerir um estabelecimento permanente no sítio da Herdade da Defesa 3, pela existência de actividade pecuária que estas parecem evidenciar. A existência de restos de espécies de mamíferos selvagens sugere a prática de actividade cinegética. A presença de restos de espécies de ambiente de ria/estuário (ostra) evidencia o contacto dos habitantes locais com produtos que não seriam da zona, algo possivelmente proporcionado através de actividade comercial.

AGRADECIMENTOS Manuela de Deus Professora Doutora Maria João Valente Catarina Alves Paulo Chaves

FERNANDES, Pedro Valente e CORREIA, Francisco Rosa (2015) – Análise Zooarqueológica do Material Proveniente da Sondagem 4 do Sítio da Alcaria das Choças (Castro Marim, Portugal) In – Actas do VII Encontro de Arqueologia do Sudoeste Penisular, (Aroche-Serpa, 2013). Aroche: Ayuntamiento de Aroche; pp. 921-931. FEIO, Jorge (2009) – A ocupação romana em torno de Alvalade: novos dados. In Silva, I., Madeira, J. e Ferreira, S. (coords). Actas do 1º Encontro de História do Alentejo Litoral. Sines; pp. 47-71. FRANCE, Diane (2009) – Human and Nonhuman Bone Identification: A Color Atlas. Boca Raton: Taylor e Francis Group. HARDEN, Alastair (2013) – Animals in the Classical Worlds: Ethical Perspectives from Greek and Roman texts. Houndmills: Palgrave Macmillan. HOWE, Timothy (2014a) – Domestication and Breeding of Livestock (Horses, Mules, Asses, Cattle, Sheep, Goats and Swine). In Campbell, G. L. (ed.) – The Oxford Hanbook of Animals in Classical thought and life. Oxford: Oxford University Press, pp. 91-97. HOWE, Timothy (2014b) – Value Economics (Animals, Wealth, and the Market). In Campbell, G. L. (ed.) – The Oxford Hanbook of Animals in Classical thought and life. Oxford: Oxford University Press, pp. 123138. KRON, Geoffrey (2008) – Animal Husbandry, Hunting, Fishing, and Fish Production. In Oleson, J. P. (ed.) – The Oxford Handbook of Engineering and Technology in the Classical World. Oxford: Oxford University Press, pp. 175-222.

1

Este trabalho respeita o Acordo Ortográfico de 1945 (Aprovado pelo Decreto n.º 35 228, de 8 de Dezembro de 1945). 2 Universidade do Algarve.

BIBLIOGRAFIA ALVES, Catarina (no prelo) – na presente publicação. BARONE, Robert (1976) – Anatomie Comparée des mammifères domestiques. Paris: Vigot Frères. CARDOSO, João Luís (1997) – Caça e criação de gado: seu papel na alimentação. In Alarcão, A. – Portugal Romano – A Exploração dos Recursos Naturais. Lisboa: Instituto Português de Museus, pp. 152153.

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KRON, Geoffrey (2014) – Animal Husbandry. In Campbell, G. L., ed. – The Oxford Hanbook of Animals in Classical thought and life. Oxford: Oxford University Press, pp. 98-122. MACKINNON, Michael (2014) – Hunting. In Campbell, G. L., ed. – The Oxford Hanbook of Animals in Classical thought and life. Oxford: Oxford University Press, pp. 179-189. SALDANHA, Luís (1995) – Fauna Submarina Atlântica. Mem Martins: Publicações Europa-América. SCHMID, Elisabeth (1992) – Atlas of Animal Bones. For Prehistorians, Archaeologists and Quaternary Geologists. Basileia: Elsevier Publishing Company.


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EPÍGRAFES ROMANAS DE ALVALADE-SADO JOSÉ D’ENCARNAÇÃO1

S

ob orientação de Manuel Rosivelt Santos Barreto e Clementino Amaro, foi realizada, em 1979, uma intervenção arqueológica na villa romana de Conqueiros, sita no termo da freguesia de Alvalade. Apresentaram os referidos arqueólogos, sobre essa atividade, a comunicação «A villa de Conqueiros e seu enquadramento arqueológico» ao IV Congresso Nacional de Arqueologia, realizado em Faro, no ano de 1980. Não foram publicadas as atas desse congresso e os autores da comunicação não tiveram hipótese de diligenciar no sentido de o seu texto vir a ser dado a conhecer. Contudo, em 2009, Jorge Feio retomou o processo e deu conta dos materiais achados na villa, que já se encontrara bastante destruída pelos trabalhos agrícolas; aliás, a intervenção de 1979 fora determinada por o terreno estar a ser preparado para o plantio de arroz. Logrou-se identificar a necrópole da villa, local para onde, seguramente, foram pensadas as únicas três epígrafes daí provenientes. Houve ensejo, em 1984, de apresentar o estudo epigráfico dos monumentos 1 e 3, com base nos dados fornecidos pelos referidos arqueólogos, a que se juntou o 2, de que na altura se tomou conhecimento. Não se teve, porém, hipótese de os observar de visu, por se desconhecer o seu paradeiro. Tendo-me deslocado a Santiago do Cacém a 9 de abril de 1992, a convite da Dra. Filomena Barata, observei no Clube de Património da Escola Básica Professor Arménio Lança dois dos monumentos (1 e 3), assim como o nº 2 na Casa do Povo de Alvalade. Foi, assim, possível corrigir as leituras feitas. Apenas uma das epígrafes (a nº 1) está completa – e a ela, portanto, se tem dado o merecido relevo; as outras duas, também elas seguramente funerárias, estão bastante danificadas, de modo que não permitem o que, para nós, seria deveras aliciante: saber de nossos antepassados! É esse, na verdade, o aliciante maior dos estudos epigráficos: a interpretação dos letreiros permite-nos conhecer nomes de alguns dos romanos que por aqui viveram, as crenças que tinham e, até, as preocupações do dia a dia! A inscrição, dado o seu caráter sintético (inclusive por

razões económicas e de espaço disponível), apresenta-se, em todos os tempos, como o resultado de uma reflexão: – Que vamos selecionar como palavras para melhor exprimirmos a ideia que queremos transmitir aos vindouros? – Importa que fique bem claro quem fomos, que estatuto tivemos. Apenas uma das epígrafes da villa de Conqueiros nos chegou em condições de nos oferecer respostas; das outras duas, uma letra aqui, outra acolá, o tempo acabou por destruir informações e… será que algo se poderá ainda lobrigar? É o que vamos ver.

1. A ESTELA DE BROCINA Dá-se o nome de estela a uma placa esguia, destinada a ser colocada na vertical, porventura à cabeceira do sepulcro. Neste caso, termina superiormente em triângulo. De xisto com pátina acinzentada, seguramente extraído de alguns dos filões xistosos próximos, tem as arestas laterais direitas e o espaço dianteiro, destinado a receber a inscrição, foi alisado e a relha do arado, ao passar, danificou-o um pouco. Mede 68,7 cm de altura, 44 cm de largura e apenas 8 cm de espessura. A inscrição é como segue: MV IA · BROCINA ARCONIS · F · A · XXXV H·S· ·S·T·T·L· Note-se que os pontos estão a meio das linhas; é importante verificar essa posição mediana, justamente porque se trata de bom indício para garantir que estamos perante uma inscrição autêntica, da época romana. Serviam para separar palavras. Há, na primeira linha, entre o V e o I, espaço para uma letra, que não se distingue já; importa pensar em propor a sua reconstituição. 133


Também na linha 2, a segunda e a quarta letras não estão completas; aí, contudo, a palavra é conhecida e não oferece dúvida o que lá foi gravado: do R temos a barra vertical e resíduos da curvatura superior; do O, mau grado o sulco da relha, resta a metade da direita. No final dessa 2ª linha, somos levados a pensar, de imediato, mesmo sem termos estudado, que XXXV nada mais pode ser do que um número: 35. E que quererá dizer esse número? Uma data? Difícil seria pensar nisso. Então que pode ser? Veja-se a letra que está atrás: A! A sigla da palavra latina que designa ‘anos’. Ou seja, a defunta tem 35 anos! E já vamos explicar porque se escreve «tem» e não «teve». Na linha 3, só siglas! Tal como hoje, se são usadas, é porque se conhece bem o seu significado. Daí igualmente a circunstância de nos ser possível, sem margem para erro, reconstituir a terceira sigla que falta, porque estamos perante uma fórmula funerária bem conhecida e deveras usual.

mais fundamento a essa opção. Não podemos, todavia, abandonar essa linha sem admirar a elegância do A, bem simétrico e aparentemente sem travessão; a firmeza com que se riscou a haste vertical do B, de pança inferior maior que a de cima; a delicadeza do R; o O oblongo; o C apertado e com mui graciosa serifa no vértice inferior; e a necessidade que o canteiro teve de apertar os caracteres para que a palavra ficasse toda nessa linha (ao A falta-lhe a metade superior, fugida no lascamento). No conjunto, essa primeira linha mostra – na regularidade do traçado dos caracteres, na perfeição dos pontos de distinção (não hesitou mesmo em pôr um no final, onde já não era preciso, mas para embelezar o conjunto) – um artífice assaz cuidadoso e experiente no seu ofício; apostaríamos que usou inclusive de prévias linhas auxiliares para fazer a inserção das letras, preferindo a utilização da metade superior da estela, a fim de permitir a leitura sensivelmente à altura dos olhos humanos! De resto, há um outro pormenor não despiciendo: as letras da linha 1 medem 5,5 cm, as da linha 2 entre 4.8 cm e 4,2 cm e as da linha 3 esses 4,2 cm, a denotar um invulgar cuidado em prevenir (porventura inconscientemente) os efeitos da perspetiva! Falta-nos analisar a 3ª linha: reconstituiu-se a letra E – totalmente delida por ação da relha – porque faz parte da fórmula final consagrada e, com atenção, consegue-se discernir, ténue, a barra horizontal inferior. Tempo é, por conseguinte, de apresentarmos a leitura reconstituída de que atrás se falava: MV[N]IA · BROCINA / ARCONIS · F(ilia) · A(nnorum) · XXXV (quinque et triginta) / H(ic) · S(ita) · [E(st)] · S(it)· T(ibi) · T(erra)· L(evis) · O que pode traduzir-se assim: Aqui jaz Múnia Brocina, filha de Arcão, de 35 anos. Que a terra te seja leve!

Antes, porém, de passarmos à leitura reconstituída – mediante o desdobramento de siglas – há que raciocinar: como vai completar-se a primeira palavra? De facto, apesar de parcialmente destruída pelo arado, a primeira letra – M – não oferece dúvidas, porque se vê a parte final da última perna; o V está completo e esguiamente gravado. A letra seguinte desapareceu por completo com o rasgo do arado ou charrua; ora, entre duas vogais – V e I – o normal é pensar-se numa consoante; e, olhando mesmo para essa linha, o N que se vê quase no final adequase bem ao espaço disponível; opta-se, então, pelo N e já vamos colher outros dados que nos habilitem a dar 134

Atentar-se-á, em primeiro lugar, no uso do presente: «aqui jaz». O defunto está ali e podemos falar com ele! Por isso, a saudação vem na 2ª pessoa: «te seja leve!». Um diálogo que acentua essa presença e que detém, por outro lado, uma função de esconjuro, diríamos! É que, desta sorte, mediante uma conversa amiga, se afastam receios de maus espíritos e tudo se torna normal! Depois, há outro pormenor: Brocina ‘tem’ 35 anos. Não se dá a entender que morreu «aos 35 anos», não! Ela está ali com essa idade, porque o tempo para ela parou e nós, os transeuntes, imaginamo-la assim. Teria mesmo 35 anos?


– poder-se-ia perguntar. Quiçá não, porque, nessa altura, não haveria registos precisos das datas de nascimento e cedo se introduziu o hábito de arredondar o número dos anos por lustros, eco, porventura, dos censos que se realizavam de cinco em cinco anos. Aliás, no nosso quotidiano, quando não sabemos a idade de uma pessoa não dizemos «aí dos seus 20 – 25 anos», por exemplo? Neste caso, Brocina ainda não atingira a idade da plenitude, os 40, mas andava perto… e sentimos pesar por haver falecido ainda relativamente jovem (segundo os nossos cânones atuais…). Em terceiro lugar, o aspeto, afinal, mais importante: quem foi Múnia Brocina? Para responder à questão, importa verificar como é que se identifica, porque – tal como na atualidade – o modo de identificação pode ser indício de estatuto e, até, de origem! Tem dois nomes: Munia é o nome de família, Brocina o seu nome – e acentuou-se o possessivo para salientar que esse constitui, na verdade, a sua identificação própria, no seio do agregado familiar. E, consultando os corpora de inscrições disponíveis (nomeadamente EDCS: http://www.manfredclauss.de/gb/), torna-se possível afirmar que esse nome latino, Munius (por vezes grafado com dois nn), tem bastantes testemunhos na África Proconsular, na Península Itálica e também em Roma, onde identifica libertos; quanto à Hispânia, não atinge a dezena o número de casos registados até ao momento. No que concerne a Brocina – nome que tem um significado concreto, «a de dentes salientes» – encontramo-lo a identificar uma Appuleia M(arci) f(ilia) Brocina em Zafra (na Baetica romana) e, mais perto de Alvalade, em Panóias de Ourique: Iulia Mermandi f(ilia) Brocina (IRCP 127); em Narona, na Dalmácia, uma sacerdotisa da divina Augusta vem identificada como Papia L(ucii) f(ilia) Brocchina, numa inscrição datável de meados do século I da nossa era (EDCS30600565). Aqui, em Alvalade, como em Panóias, o nome do pai (Arco) filia-se na onomástica pré-romana. Esse, o motivo porque se pôde afirmar estarmos em presença de uma das «primeiras indígenas romanizadas do ager Mirobrigensis». Uma estela notável – que bem merece, por conseguinte, o destaque que se lhe dá no museu.

2. IRCP 161 Estela de grauvaque e forma aproximadamente retangular, muito danificada porém, mede 82,2 x 43 x 10 cm, e o tamanho das letras oscila entre os 4,5 e os 5 cm. Se, na estela de Brocina, apenas se adivinhava a presença prévia de linhas de pauta, aqui essas linhas acabam por assumir também uma função decorativa, ainda que o lapicida somente se tenha guiado por elas, mas não lhes haja obedecido por completo, até para evitar que o traçado dos caracteres com elas se confundisse. Mas terá sido igualmente uma epígrafe cuidadosamente gravada, com pontuação circular; as letras denunciam, contudo, um desenho feito ‘à mão levantada’, como sói dizer-se, sem utilização de régua ou esquadro: vejam-se o V, o A de vértice arredondado, o H largo, o S levemente inclinado para diante… Consegue ler-se: COL LVCIL F · AN · X H S E· O F da linha 3 denuncia que está antes a identificação do pai do(a) defunto(a). De seguida, a idade, de que somente se vê X. Na última linha, a habitual fórmula H(ic) S(itus, -a) E(st), «aqui jaz». Aguçada, portanto, a curiosidade: como se poderia chamar o defunto? Recorrendo às listas de antropónimos possíveis e atendendo também ao facto de estarmos numa zona em que a estela foi utilizada logo nos primeiros tempos da permanência romana, a indiciar, como se disse, essa interpenetração cultural entre indígenas e romanos de nome latino, ousar-se-ia propor a identificação Columba Lucilli f(ília). Columba, na grafia com o (Colomba), registase em Terena, Alandroal (IRCP 455a). A circunstância de, tanto aí como na inscrição de Madrigalejo (HEpOL nº 1781), ser o cognome de uma Iulia, confirma o seu uso logo nos primórdios da época romana na Hispânia. Propor-se-ia, consequentemente, a seguinte interpretação: COL[VMBA?] / LVCIL[LI?] / F(ilia) · AN(norum) · X[…?] / H(ic) S(ita) E(st) · Aqui jaz Columba, filha de Lucilo, de … anos. 135


Não se estará, no entanto, mui longe da verdade se se conjecturar ter aí acontecido como nas demais cidades deste Sudoeste da Lusitânia: instalaram-se na cidade as famílias mais importantes, porventura os colonos ou os imediatos descendentes deles; pelo respetivo ager se viram nascer as villae, destinadas à produção agropecuária, onde os nativos depressa se mesclaram – digamos assim – com os urbanos, ainda que mantendo a natural proeminência resultante do facto de serem eles quem bem conhecia as virtualidades das terras e as suas específicas características climáticas. Tal aconteceu em Pax Iulia, em Liberalitas Iulia Ebora e, também, em Olisipo, a Felicitas Iulia. No nosso caso, Munia Brocina pode constituir um bom exemplo: filha de um indígena, adotou uma onomástica que reflete hábitos urbanos e contactos com população vinda doutras paragens, como o atesta a circunstância de o seu nome de família apontar para gente estranha à Hispânia.

3. IRCP 173 Muito mais deteriorada se encontra a terceira estela, de que apenas subsiste parte mínima do campo epigráfico, alisado e seguramente alvo de cuidadoso tratamento como as duas estelas anteriores. É de xisto grauváquico, com pátina acinzentada. Mede 73 x 36 x 14 cm. Na 2ª linha, depois de um ponto circular, lê-se F, de ducto ligeiramente inclinado para diante – seguramente a indicação de que estaria antes o nome do pai do(a) defunto(a). Na 3ª linha, V está seguida de duas cruzes ou sinais de mais e de um traço vertical. Não fora o V, essas cruzes poder-se-iam interpretar como XX, a indicar a idade (XXI?); mas a presença do V não admite essa hipótese. Na 4ª linha, L · (em módulo mais pequeno) sugere que teria havido a fórmula presente na estela de Brocina: H(ic) · S(ita) · E(st) · S(it)· T(ibi) · T(erra)· L(evis).

4. CONCLUSÃO Três epígrafes, das quais apenas uma completa e outra de possível reconstituição, não representam o mundo que, no tempo dos Romanos, envolveria a cidade de Mirobriga, o chamado ager Mirobrigensis. 136

Segunda conclusão se impõe, em consequência desta: três aparentemente simples estelas, duas das quais bastante estropiadas, permitiram adiantar esclarecimentos acerca dessas remotas eras. O apelo resulta natural: a atenção de todos os habitantes no sentido de se salvaguardarem todas as pedras com letras que surjam, mesmo com poucas, porque nelas poderá estar latente uma informação a que doutra forma se não logrará aceder! É a preservação da nossa memória que está em causa!


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guesia de Alvalade, Liga dos Amigos de Santo André, pp. 3-7. FEIO, Jorge (2009) — A romanização em torno de Alvalade do Sado: novos dados, in Actas do I Congresso de História do Alentejo Litoral, Sines: Centro Cultural Emmerico Nunes, pp 47-71.

EDCS = Epigraphik Daten-bank Claus / Slaby: http://www.manfredclauss.de/gb/

HEpOL = versão on line de Hispania Epigraphica: http://edabea.es/

ENCARNAÇÃO, José d’, (1996) — Problemas em aberto na epigrafia mirobrigense, Conimbriga, XXXV, pp. 129-146.

IRCP = ENCARNAÇÃO, José d’ (1984, 2013) — Inscrições Romanas do Conventus Pacensis — Subsídios para o Estudo da Romanização. Coimbra.

1

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

FEIO, Jorge (2004) — A romanização em torno de Alvalade, algumas descobertas arqueológicas, in Gentes e Culturas, Fre-

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Página anterior: PORMENOR DE VÍDEO "A CASA ROMANA" Realização de César Figueiredo

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PRÉ-ROMANO E ROMANO Desenho de Manuela de Deus (a), José Matias (b) e César Figueiredo | Fotografias de Paulo Chaves e José Matias (a)

VASO COM DECORAÇÃO ESTAMPILHADA Fragmento Dimensões: 10,5 cm C. Datação: II Idade do Ferro ou Romano Republicano (século V - IV a.C. a século I a.C.) Proveniência: Castelinho da Algêda, Ermidas-Sado (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 6) Desenho: Reconstituição hipotética Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

(a)

TEGULA (telhão plano) Fragmento Produção: local / regional Dimensões: 24,5 cm C.; 14,5 cm L. Datação: séculos I - V d.C Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 9) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade (a)

IMBREX (telha curva) Fragmento Produção: local / regional Dimensões: 20 cm C.; 19 cm L. Datação: séculos I - V d.C Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 10) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

TELHADO FEITO COM TELHÃO PLANO (tegula) E TELHA CURVA (imbrex) Produção: local/regional Dimensões: Tegula: 58 cm C.; 45,5 cm L. Imbrex: 65 cm C.; 29,5 cm L. Datação: séculos I - III d.C. (Inv.º MMSC 10814/ARQ.9305) (Inv.º MMSC 10754/ARQ.9249) Proveniência: Miróbriga (Santiago do Cacém) Coleção: Museu Municipal de Santiago do Cacém

OLARIA ROMANA – FABRICO DE TELHAS

(Tegula à esquerda e imbrex à direita) Ilustração de César Figueiredo

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FRAGMENTOS DE PINTURA MURAL (fresco) Produção: local Datação: séculos I - III d.C Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 7) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

PREGOS E CAVILHAS (ferro)

LATER (tijolo)

Produção: local Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 12 ) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: local / regional Datação: séculos I - V d.C. Dimensões: 45,5 cm C.; 29,7 cm L. Proveniência: Herdade da Defesa, 3 Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 11) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

FRAGMENTOS DE PAVIMENTO EM MOSAICO Produção: local / regional Datação: séculos I - III d.C Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 13) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

CONSTRUÇÃO DE PAVIMENTO EM MOSAICO

Ilustração de César Figueiredo

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LATER DE QUADRANTE (tijolo de coluna) Produção: local / regional Dimensões: 15 cm A.; 6 cm E. Datação: séculos I - V d.C Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 8) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

BASE DE COLUNA Mármore de S. Brissos Produção: local Dimensões: 19,8 cm A.; 33,8 cm x 33 cm B. Datação: séculos I - III d.C Proveniência: Herdade da Defesa, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - LM/1) Coleção: Exma. Sr.ª Lénia da Encarnação Silva Sobral Machado

(b)

RECONSTITUIÇÃO HIPOTÉTICA DE TIJOLO DE QUADRANTE NA CONSTRUÇÃO DE UMA COLUNA

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LUCERNA (tipo derivado de disco) Produção: regional Dimensões: 9,2 cm C.; 7 cm L.; 2 cm A. Datação: séculos III - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/35) Réplica em exposição Coleção: particular

LUCERNA (tipo derivado de disco) Produção: regional Dimensões: 7,2 cm C.; 5,1 cm L.; 3,2 cm A. Datação: séculos III - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/34) Réplica em exposição Coleção: particular

LUCERNA DE VOLUTAS DECORADA COM MÁSCARAS DE TEATRO (LOESCHKE IV) Produção: Itália Dimensões: 6,7 cm L.; 9,4 cm C. ; 0,25 cm A. Datação: séculos I - II d.C. Proveniência: Monte do Roxo, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º n.º 5028) Réplica em exposição Coleção: Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo - Évora

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ANZOL (liga de cobre) Produção: local/regional Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 14) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

PESO DE REDE DE PESCA Produção: local/regional Dimensões: 7 cm D.;. 2,6 cm E Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA / 6) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

PESO DE REDE DE PESCA Produção: local/regional Dimensões: 10,2 cm C. ; 5,8 cm L.; 4 cm E. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA / 5) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

FACA (ferro) Produção: local/regional Dimensões: 13,7 cm C.;2,7 cm L. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 16) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

PONTA DE PROJÉCTIL (ferro) Produção: local/regional Dimensões: 12,5 cm C.;3 cm L. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 17) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

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ALFINETES DE CABELO / ACUS CRINALIS (osso) Produção: local/regional Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 15) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

CABEÇA DE ESTATUETA COM SENHORA COM PENTEADO DE COLMENA FLAVIA (terracota) Produção: Mediterrâneo Oriental (?) Dimensões: 8 cm A; 5,5 cm L. Datação: séculos I - II d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA /42) Coleção: particular

As estatuetas em terracota representavam divindades ou pessoas da família imperial e destinavam-se ao culto privado. No caso, a personagem mostra o elaborado penteado conhecido como Colmena Flavia, vulgarizado pela única filha do Imperador Tito, Julia Flavia (64-91 d.C.). Estes objetos difundiam junto das elites locais as tendências da moda em vigor na própria Roma.

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TIGELA EM TERRA SIGILLATA HISPÂNICA (Draggendorf 27) Produção: NE da Península Ibérica Dimensões: 10,5 cm D.; 9 cm A. Datação: c. 70 - 120 d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 27) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

A terra sigillata equivale à baixela de mesa romana, muito democratizada. Nas produções mais antigas o oleiro estampava a sua marca no vaso, como é o caso, da peça n.º 1: OFVAPA significa «da oficina de Valerius Paternus», na região atual de La Rioja (Espanha).

TIGELA DECORADA EM TERRA SIGILLATA HISPÂNICA (Draggendorf 37) (fragmento) Produção: NE da Península Ibérica Dimensões: 4,3 cm A. ; 5,2 cm L. Datação: c. 70 - 100 d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - JF/9) Coleção: Junta de Freguesia de Alvalade

ASA DE DOLLIUM (talha) (fragmento) Produção: local / regional Dimensões: 16 cm C.; . 8 cm L.; 2,8 cm E. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA / 4) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

POTINHO EM CERÂMICA DE PAREDES FINAS (Mayet LI) Produção: Mérida Dimensões: 10,5 cm D.; 10,2 cm A. Datação: século I d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/38) Réplica em exposição Coleção: particular

(a)

(a)

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BORDO DE POTE/PANELA (fragmento) Produção: regional Dimensões: 10,5 cm C. Datação: séculos I - III d. C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 34) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

BORDO DE POTE (fragmento)

BORDO DE POTE (fragmento)

Produção: local / regional Dimensões: 10,3 cm C. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 30) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: regional (Litoral Alentejano) Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 32) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

FUNDO DE POTE (fragmento)

FUNDO DE POTE (fragmento)

Produção: Bética Litoral (Andaluzia) Dimensões: 8,1 cm C.; . 4 cm A. Datação: séculos I - II d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 33) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: local / regional Dimensões: 4,8 cm C.; . 4 cm A. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 31) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

PRATO EM TERRA SIGILLATA AFRICANA CLARA (Hayes 58B) Produção: Tunísia Dimensões: 23,8 cm D. Datação: século III d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 28) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

PRATO EM CERÂMICA AFRICANA DE COZINHA (Hayes 58B) Produção: Tunísia Dimensões: 24,2 cm D. Datação: século IV d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 29) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

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ÂNFORA TIPO DRESSEL 14

(a)

Produção: Lusitânia Dimensões: 1,07 cm C. ;31,5 cm D. Datação: séculos I - II d.C. Proveniência: Monte Espada, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/36)

Réplica em exposição Coleção: particular

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ÂNFORA TIPO DRESSEL 14 (preparados de peixe)

ÂNFORA TIPO KEAY 78 (preparados de peixe)

Produção: Lusitânia Datação: séculos I - II d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 37 ) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: Lusitânia Datação: séculos III - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA / 7) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

ÂNFORA TIPO DRESSEL 2-4 (vinho)

ÂNFORA TIPO KEAY 16 (preparados de peixe)

Produção: Itália Datação: séculos I - II d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 38) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: Bética Datação: séculos III - V d.C. Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA / 8) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

ÂNFORA TIPO DRESSEL 20 (azeite)

ÂNFORA TIPO GAULOISE 4 (vinho)

Produção: Bética Datação: séculos I - III d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 39) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: Tarraconense Datação: séculos I - III d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 40) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

ÂNFORA TIPO LUSITANA 3 (vinho)

ÂNFORA TIPO ALMAGRO 51 C (preparados de peixe)

Produção: Lusitânia Datação: séculos II - III d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 41) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

Produção: Lusitânia Datação: séculos III - V d.C Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 42) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade


MOVENTE DE MÓ MANUAL Produção: local/regional Dimensões: 32 cm D. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 35) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

MOVENTE DE MÓ MANUAL Produção: local/regional Dimensões: 47 cm D. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Ameira, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EA/12) Coleção: Agrupamento de Escolas Professor Arménio Lança, Alvalade

MOVENTE DE MÓ MANUAL Produção: local/regional Dimensões: 40 cm D. Datação: séculos I - V d.C. Proveniência: Herdade da Defesa, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 36) Doação: Fernando Guerreiro Magro

A PRODUÇÃO DA TRILOGIA MEDITERRÂNICA: MOAGEM DE CEREAIS

Ilustração de César Figueiredo

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1 - FOLLIS DE MAXÊNCIO Emissão de Aquileia (Itália) Dimensões: 26 mm D. 307 d.C. (Inv.º MA - 18)

2 - ANTONINIANUS DE CLÁUDIO II

3 - TESSERA (”ficha” monetiforme)

Emissão de Roma Dimensões: 21 mm D. 268 - 270 d.C. (Inv.º MA - 19)

Desconhecido Dimensões: 16 mm D. séculos I - V d.C. (Inv.º MA - 20)

4 - ANTONINIANUS DE GALIENO (?)

5 - ANTONINIANUS DE GALIENO (?)

6 - AE3 DE CONSTÂNCIO II

Emissão de Roma Dimensões: 16 mm D. 253 - 268 d.C. (Inv.º MA - 21)

Emissão de Roma Dimensões: 14 mm D 267 - 268 d.C. (Inv.º MA - 22)

Emissão de Constantinopla Dimensões: 17 mm D 351 - 363 d.C. (Inv.º MA - 23)

7 - AS DE TIBÉRIO

8 - FOLLIS DE LICÍNIO

Emissão de Roma Dimensões: 27 mm D 14 - 37 d.C. (Inv.º MA - 24)

Emissão de Ticino (Itália) Dimensões: 20 mm D c. 320 d.C. (Inv.º MA - 25)

9 - AS DE AUGUSTO COM CONTRAMARCA DE CABEÇA DE ÁGUIA

1O - SESTERCIUS DE ADRIANO

Emissão de Bilbilis (Espanha) Dimensões: 27 mm D 2 a.C. - 14 d.C. (Inv.º MA - 26)

Emissão de Roma Dimensões: 28 mm D 117 - 138 d.C. Proveniência: Ermidas Aldeia (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA/40) Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

(1-9): Moedas provenientes da Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) | Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

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EPÍGRAFE FUNERÁRIA

Estela de topo triangular, de xisto com pátina acinzentada. Arestas laterais direitas. Campo epigráfico alisado, não delimitado, deteriorado aqui e além pelos sulcos da relha do arado. Dimensões: 68,7 x 44 x 8 cm Datação: século I d.C. Proveniência: Herdade de Conqueiros (Figueira de A-Metade), Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP / 1) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

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Página anterior: REINOS BÁRBAROS DA PENÍNSULA IBÉRICA E SUL DE FRANÇA Ilustração de César Figueiredo

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A REGIÃO DE ALVALADE DO SADO NO PERÍODO VISIGÓTICO (entre 409 e 711 d.C.) JOSÉ CARLOS QUARESMA1 E RODRIGO BANHA DA SILVA2

E

screver sobre a Antiguidade tardia não é uma tarefa fácil, apesar dos avanços da investigação arqueológica ocorridos, sobretudo, ao longos das últimas duas décadas. Implica necessariamente uma metodologia de análise diferente da aplicada na investigação sobre o período romano imperial (séculos I a V d.C.). Tal advém da quebra acentuada da base empírica disponível, com o recuo do mundo urbano, as profundas alterações na organização do espaço rural e das quebras acentuadas das dinâmicas comerciais de longa distância, que proporcionam menos elementos datantes aos arqueólogos. Falamos, pois, de um mundo sob uma tónica premente de atomização, embora herdeiro da globalização construída durante o Império Romano. Centremos primeiro o conceito e as suas balizas cronológicas. O termo Antiguidade Tardia pressupõe em si algo de continuidade com o período precedente, ao qual se considera então tardio. Na verdade, é um conceito que engloba dois grandes períodos: a Época Romana Tardia e a Alta Idade Média. Logo aqui se pode perceber por que tem sido trabalhado tão recorrentemente com enfoques tão diversos, por vezes sem grandes contactos entre si: para uns, analisa-se eminentemente um avatar do Período Romano; para outros, analisa-se o prelúdio da Idade Média, na qual vão nascer os reinos europeus que marcam este continente até hoje, no essencial. O termo Antiguidade Tardia nasceu em 1971, quando Peter Brown escreveu a obra justamente intitulada O Mundo da Antiguidade Tardia (Brown, 1971), balizando esta época entre Marco Aurélio (imperador entre 161 e 180 d.C.) e as conquistas islâmicas a Oriente e a Ocidente. No caso peninsular que nos interessa, seria a data de 711 d.C., a da conquista pelas tropas árabes e berberes, que faria o ponto de ruptura; no caso francês, que permaneceu cristão, seria a formação do Período Carolíngio a ditar o nascimento da Idade Média plena. A data recuada - de século II d.C. - que Brown propõe para o início da Antiguidade Tardia evidencia uma outra questão: a do lento desagregar do mundo romano, na sua esfera política, social, económica, comercial, militar e ter-

ritorial, ainda antes das migrações bárbaras que marcam gradualmente o Império Ocidental, a partir do século III, essencialmente. Na verdade, do ponto de vista social, já a jurisprudência de Marco Aurélio nos informa de mudanças na estrutura social e os seus reflexos jurídicos. Se nos períodos Tardo-republicano e Alto-imperial, falamos de Patrícios e Plebeus, ou melhor ainda, de Nobres (que englobavam os Patrícios e os indivíduos da Alta Plebe) e de Plebe Média e Plebe Baixa ou Sórdida; a partir do século II d.C., o fosso social cresce claramente, passando a serem considerados dois grandes estractos sociais – Honestos e Humildes. Esta realidade vai acentuar-se nos séculos seguintes, com o crescimento de duas realidades sociais, motor e reflexo desta dicotomia social na sociedade rural tardo-romana: falamos do colonato e do patronato. Os colonos são importantes, numa economia em crescimento, durante o século II d.C., no território norte-africano. Representam um conjunto importante de trabalhadores agrícolas independentes que pagam uma renda ao latifundiário, dono das terras onde produzem. Este sistema produtivo mais livre vai perdendo fulgor com a desagregação social dos séculos III a V d.C., quando muitos destes trabalhadores independentes deixam de conseguir pagar os impostos e rendas, ficando ao alcance da lei ou da servidão. É neste ponto que cresce a figura do patronato, através do qual, grandes senhores, Nobres, ou até a Igreja Cristã, aceitam proteger indivíduos em dívida, sob o preço de os fixarem permanentemente à sua terra, sendo este vínculo herdado pelos filhos. É assim, que, sobretudo no século V d.C., vemos surgir amiúde o termo Servo da Terra. Falamos do prelúdio dos futuros Servos da Gleba do sistema feudal da Idade Média. A Antiguidade Tardia é então um processo, diríamos, romano e bárbaro, com, pautas cronológicas distintas a Oriente. Por isso, A. M. H. Jones, em 1964, no seu livro O Império Tardo-Romano, estabelece como balizas as datas dos dominados dos imperadores orientais Diocleciano, iniciado em 284 d.C., e Maurício, iniciado em 602 d.C. (Jones, 1964). 157


Algumas datas e factos políticos são fundamentais para delinearmos um esqueleto histórico. O Imperador Diocleciano, nos finais do século III d.C., havia dividido administrativamente o Império Romano em dois grandes conjuntos: o Império Romano do Ocidente, com sede em Roma; e o Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla. Cada um tinha o seu próprio imperador, coadjuvado por um segundo César. Esta dicotomia político-administrativa marca esta época até à queda de Roma, em 476 d.C., às mãos dos Ostrogodos, comandados pelo rei Odoacro. Cai assim o Império Romano do Ocidente e a sua cidade eterna, Roma, mas sobreviverá o Império Romano do Oriente até 1453 d.C., quando é conquistado pelo Império Turco-Otomano. Uma outra alteração ideológica havia marcado o Império, no século IV d.C. – o estabelecimento definitivo do Cristianismo e da Igreja, como estrutura religiosa, mas também cada vez mais social e política. Em 313 d.C., Constantino legaliza o Cristianismo; em 381 d.C., Teodósio estabelece-o como religião de estado. Com pequenas excepções, todos os imperadores são já eles próprios cristãos no século IV d.C.. O mundo tardoromano é assim marcado pelo cristianismo e pelas migrações dos diversos povos bárbaros, eles próprios também já cristianizados. Mas não devemos entender a data de 476 d.C., a da queda de Roma, como o fim de um tempo – por essa razão, a Antiguidade Tardia engloba o antes e o depois. Veja-se por exemplo, o caso paradigmático nas relações comerciais do Mediterrâneo ocidental e do Atlântico: a queda de Cartago, na actual Tunísia, grande fornecedora de cereais e azeite, provoca uma ruptura acentuada nas dinâmicas comerciais, com o reino vândalo a ocupar este território em 439 d.C., mas também as ilhas do Mediterrâneo ocidental, em 455 d.C.; mas já a queda de Roma, em 476 d.C., coincide com a recuperação económica e das redes comerciais de longa distância, que marcam o período grosso modo entre 475 e 550 d.C.. Ou seja, as dinâmicas económicas estruturadas em época romana, com claros traços pré-capitalistas, sobrevivem ao processo geo-político e funcionam por vezes independentemente dele. No espaço peninsular, a situação de ruptura é, contudo, mais grave, apesar de também aqui o registo arqueológico nos demonstrar que as importações se regem pelas pautas cronológicas que nos indica o Mediterrâneo. A importância do território lusitano, a partir do século IV d.C., é-nos entrevista pelo grande número de villae na 158

sua metade meridional. A maior concentração peninsular de villae luxuosas encontra-se aqui e pode ser um indicador de produção cerealífera para exportação. O primeiro bispo conhecido para Lisboa, Potâmio, nas décadas centrais do século IV d.C, era um homem importante no seu tempo, participando ativamente nos debates teológicos entre Católicos (que defendiam que Cristo tinha essência humana e divina) e Arianos (que defendiam que Cristo tinha apenas essência humana). Um facto importante nos revela a existência de Res Privata (terras pertencentes ao património pessoal do imperador) na província da Lusitania: sabemos que Potâmio morre a caminho da sua villa, onde iria realizar uma estância, e que esta villa havia sido oferecida pelo imperador. Não é assim por acaso que, em 408 d.C., quando o usurpador Constantino III de Arles, no sul da atual França, necessita de se impor ao imperador vigente, Honório, envia as suas tropas para a Hispania e em particular para a Lusitania, onde estão organizadas tropas de Honório, com participação popular (Arce, 2005). Todo este conjunto de factos demonstra o papel da Lusitania e ajuda a compreender a constância de ânforas de preparados de peixe, produzidas nesta provincia, no Mediterrâneo ocidental, até ao século V d.C.. A entrada e fixação de Suevos, Vândalos e Alanos, em 409 d.C., e dos Visigodos, em 411 d.C., no território peninsular, vai provocar naturalmente uma disrupção administrativa neste espaço, 67 anos antes da futura queda de Roma. A partir de inícios do século V d.C., a Hispania, com exceção da área actualmente catalã, fica fora do controlo romano e passa a conformar reinos bárbaros. A primeira fase, até sensivelmente 425 d.C., é-nos descrita pelo Bispo Idácio de Chaves, na sua Chronica, como de profundas razias perpetradas pelos Vândalos, enquanto os Alanos parecem diluir-se nas restantes tribos. Com a passagem dos Vândalos para o Norte de África, em 425 d.C. (conquistando Cartago em 439 d.C.), a Hispania fica basicamente entregue a Visigodos e Suevos (Leguay, 1993). A referida Chronica inventaria uma série de factos até 469 d.C.. Entre 439 e 441 d.C., os Suevos conquistam Emerita Augusta-Mérida e Myrtilis-Mértola, que permanecem nas suas mãos até 455 d.C., quando o rei Teodorico conduz as tropas visigodas a uma recuperação territorial de Sul para Norte, chegando mesmo a atacar violentamente Conimbriga e Bracara Augusta-Braga, no Noroeste. Duas outras fontes, sensivelmente de meados do século VI d.C., a Chronica de João Biclarense e o Paroquial Suevo, transmitem-nos a ideia de um reino suevo a Norte do Tejo (com excepção de Olisypona-Lisboa,


em mãos visigodas), ocupando grosso modo o quadrante noroeste peninsular, e de um reino visigodo ocupando a restante Hispania (Tranoy, 1974; João de Santarém – Biclarense, Crónica). O território de Alvalade do Sado foi, assim, romano, até 409 d.C., e visigodo, entre 409 e 711 d.C.. E a anexação definitiva do reino suevo, pelo rei visigodo Leovigildo, em 589 d.C., não tem, pois, qualquer consequência directa nas áreas a Sul do Tejo. Do ponto de vista religioso, o reino visigodo era cristão de rito católico, obedecendo ao bispado de Roma, que lentamente se convertia no Papado da Igreja Católica Apostólica Romana. Regressando aos problemas metodológicos relativos à análise dos dados arqueológicos para os séculos V, VI e VII d.C., deve-se então frisar que a ruptura de parte do fenómeno urbano e de parte do mundo rural é acompanhada pela ruptura de grande parte das redes comerciais de longa-distância. Estas são fundamentais para o nosso trabalho em Arqueologia, já que as datações dos níveis arqueológicos e dos sítios são feitas mediante, sobretudo, os chamados materiais finos, como as cerâmicas de mesa. No caso vertente, a quebra acentuada (e muitas vezes o fim) de importações de terra sigillata africana torna possíveis ocupações invisíveis para os Arqueólogos, muitas vezes incapazes de percepcionar continuidades de ocupação urbana, rural ou industrial. Se atentarmos no gráfico sobre a evolução das importações de terra sigillata em Mirobriga (ver texto neste volume), podemos constatar um quadro recorrente no território actualmente português: um comércio intenso até inícios do século V d.C. e um cenário muito débil que se pode estender até à primeira metade do século VI d.C.. Mas a referida recuperação comercial de c. 475 - c. 550 d.C. observa-se em cidades eminentemente litorais, portuárias, como Olisypona-Lisboa, ou de vocação administrativa e/ou religiosa, como, por exemplo, Bracara Augusta-Braga ou Myrtilis-Mértola (Quaresma; Silva, 2019; Delgado et Al., 2014; Fernandes, 2012). Temos assim um problema de invisibilidade do registo arqueológico, devido à ausência premente de materiais datantes directos, o que justifica as propostas de fim quase repentino de muitas villae (rurais) e civitates (urbanas), ou de vici industriais. Mas tal pode estar camuflado, apesar de sabermos que o pós - 409 d.C., no caso hispano, conduz a um aparente retorno de segmentos populacionais para sítios de maior elevação. Tal poderá ter acontecido com Mirobriga, cuja população pode ter-se transferido gradualmente para o cabeço bem defensivo onde pontuará o mais tarde castelo de Santiago do

Cacém, configurando uma nova topografia urbana e uma nova modalidade de ocupação dos territórios. Castella e Castra, mas também Pagi e Villulae são por esta ordem de razões difíceis de estudar. E no caso urbano, o facto de as cidades restantes serem agora eminentemente aquelas que permanecerão até aos nossos dias dificulta tremendamente a realização de escavações arqueológicas para seu estudo. Por outro lado, sabemos que muitas villae e villulae deram no mundo rural continuidade a futuras aldeias medievais, sobretudo quando dotadas de equipamento religioso que as conformassem como paróquias: a existência de basílica, para o culto; de baptistério, para a cerimónia de entrada como cristãos dos novos indivíduos, novos ou velhos; e de necrópole, para o devido enterramento, quando finda a vida passageira no mundo secular, e iniciada a aspirada vida eterna, como eloquentemente definia Santo Agostinho, em inícios do século V d.C., na sua obra A Cidade de Deus (por oposição a Roma, a antiga cidade eterna dos Romanos). No caso de Mirobriga, a investigação mais recente tem proporcionado a confirmação urbana de continuidades de ocupação, que já eram percetíveis no referido gráfico de importação de cerâmicas finas (infelizmente, sem contexto estratigráfico), até à primeira metade do século VI d.C.. Na área comercial da cidade detetou-se a primeira ocupação visigoda da cidade, configurando um povoado que muito provavelmente já não seria visto como uma cidade, ocupada apenas em pontos específicos (Quaresma et al., no prelo). Já em Sines, não havendo dados estratigráficos para os séculos V-VII d.C. (sabe-se apenas da existência de funções residenciais nas antigas cetariae de produção de preparados de peixe da Praça João de Deus: Silva; Soares, 1998), recolhas antigas permitiram formar a maior coleção, a par da de Pax Iulia-Beja, de materiais arquitetónicos visigodos, certamente ligados a uma ou várias estruturas eclesiásticas (Almeida, 1962). As intensas escavações antigas, sem metodologia de registo, delapidaram muita da informação estratigráfica para este período visigodo, em muitas cidades de raiz romana. Mas investigações, também elas mais recentes, permitiram, por exemplo, que a afirmação da destruição de Conimbriga, em 465-468 d.C., escrita na Chronica do Bispo Idácio de Chaves, fosse desmentida, com comprovação arqueológica de ocupações pontuais da cidade até ao século XIII d.C. (López Quiroga, 2013).

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São, contudo, dados muito esparsos e fluentes no tempo. Não por acaso, estudos intensivos de cariz territorial realizados no território alentejano, têm produzido manchas de ocupação muito mais heterogéneas quando comparadas com as manchas urbanas e rurais de época romana imperial (para a ocupação territorial do Nordeste alentejano, ver Carneiro, 2011; para a cristianização da região meridional da Lusitania, ver Wolfram, 2011).

O CASO DO MONTE DO ROXO Este sítio, no concelho de Alvalade do Sado, é uma antiga villa romana, fundada em torno ao século I d.C. e que continuou ocupada em época visigótica (séculos VI e VII), ou talvez mesmo até época moçárabe (século IX) e medieval cristã. Conhecida por recolhas do século XVIII, entregues ao Bispo de Beja, Frei Manuel do Cenáculo, eminente e primeiro arqueólogo com escavações em Mirobriga, foi recentemente alvo de prospecção de superfície e publicação de resultados da mesma por Jorge Feio (Feio, 2007). Remetemos assim para o trabalho deste autor uma análise mais detalhada do caso.

Segundo a informação recolhida, no século XVIII ainda seriam visíveis estruturas de produção de vinho, forradas a opus signinum, para além de epigrafia funerária, nomeadamente cuppae. Os trabalhos mais recentes detectaram materiais finos e de construção de época romana imperial, medieval islâmica e cristã. Estamos assim perante uma villa romana que terá permanecido em funções na Antiguidade Tardia, com processo de cristianização evidente, dando lugar, em época medieval plena, a uma unidade de povoamento com outras características (aldeia?). O trabalho de Jorge Feio permitiu o reconhecimento e caracterização de quatro elementos arquitectónicos de uma antiga basilica paleo-cristã (visigótica, com possível continuidade moçárabe, como antevisto supra): três cancelas e um mainel, “profusamente decorados”. Dois casos encontram-se imbricados no edifício actual da quinta agrícola; outros dois estão alocados na sede da Casa do Povo de Alvalade (nºs 1 e 2).

Figura 1 – Localização do Monte do Roxo na Carta Corográfica de Portugal. (Folque, 1877, folha nº 31. Escala 1:100 000. Cedência: Instituto Geográfico do Exército

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0

10 cm

2

Figura 2 – Cancela com octofólio na face e trifólio no topo, proveniente do Monte do Roxo, Alvalade – coleção Casa do Povo de Alvalade

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Figura 3 – Cancela visigótica localizada na entrada da capela de Nossa Senhora do Roxo, Monte do Roxo, Alvalade. Fotografia de José Matias

A cancela nº2 é um exemplar muito erodido, parcialmente conservado, com 46x34x8 cm. Apresenta, na face, decoração com octofólios (que irradiam de botão central) insertos em quadrados, com 30 cm de lado; no topo, decoração com trifólios ou folhas de acanto estilizadas. O mainel nº 1, com 39 cm de altura por 8,5 cm de diâmetro no fuste (mais largo em meio centímetro do que o capitel), também ele muito erodido, tem fuste liso, gola e capitel com folha de acanto estilizada ou trifólio.

Jorge feio discute uma hipótese cronológica moçárabe para estes elementos, por comparação regional, mas este parece ser mais um caso de cristianismo visigótico, com possível extensão (e remodelação?) moçárabe. Finalmente, é um exemplar de assentamento rural com cronologia posterior à conhecida para o abandono de Mirobriga, aparentemente no século VI, e paralela ao provável assentamento urbano coevo de Santiago do Cacém e Sines, que deverão suceder nesta função a Mirobriga.

Figura 5 – Monte do Roxo (1989). Fotografia de José Matias

1

Figura 4 – Mainel com folha de acanto estilizada ou trifólio proveniente do Monte do Roxo, Alvalade – coleção Casa do Povo de 0 10 cm Alvalade

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1

FCSH-Universidade Nova de Lisboa. CHAM (Centro de Humanidades). 2 FCSH-Universidade Nova de Lisboa. CHAM (Centro de Humanidades).

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VISIGÓTICO Fotografias de Paulo Chaves

FRAGMENTO DE CANCELA COM BAIXO-RELEVO (mármore de S. Brissos) Produção: regional Dimensões: 47,5 cm C. ; 35 cm A. Datação: século VI d.C. Proveniência: Monte do Roxo, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/18) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

CAPITEL (?) REUTILIZADO COMO ALMOFARIZ NA IDADE MÉDIA (? (mármore de S. Brissos) Produção: regional Dimensões: 15,4 cm C. ; 5,5 cm L. Datação: século VI - VII d.C. Proveniência: Monte do Roxo, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - EV/4) Coleção: Exma. Sr.ª Maria Emília Costa Deocleciano Soronha Velosa

MAINEL

(mármore de S.Brissos) Produção: regional Dimensões: 39,5 cm C. ; 9 cm D. Datação: século VI - VII d.C. Proveniência: Monte do Roxo, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/22) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

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(RE)CONQUISTAS: Alvalade entre as origens

medievais e as revoltas liberais (séculos XIII-XIX) MILTON PEDRO DIAS PACHECO1

No decurso do processo de formação do Reino de Portugal, o território correspondente à atual implantação de Alvalade terá sido ocupado pelos cristãos no período cronológico balizado entre a conquista definitiva de Alcácer do Sal, ocorrida em 1217 – data próxima da de Santiago do Cacém (Martins, 2014, p. 174) –, e a tomada de Aljustrel, em 1234 (Mattoso, 1994, pp. 117-118, 124; Vargas, 1999, p. 106). A participação nas campanhas bélicas e a colaboração na defesa das populações contra as investidas sarracenas – que no contexto da denominada Reconquista Cristã a Igreja apelidaria de Infiéis – motivaram a Coroa, a nova proprietária das terras recém-conquistadas, a entregar à Ordem Militar de Santiago a administração de amplos latifúndios nos plainos meridionais do Além Tejo pelos serviços bélicos prestados (Rau, 1982, pp. 28-29, 38-39). O estabelecimento da sede do mestrado da Ordem de Santiago em Alcácer do Sal, em 1218 (Vargas, 1999, pp.114-115), e a instituição de comendas em Santiago do Cacém, em 1224 (Foral de Santiago, 1510, fl. Xv), e em Aljustrel, em 1235 (Mata, 1991, p. 206), revelam uma certa pacificação dos territórios limítrofes do vale do Sado, no qual se inclui a área correspondente a Alvalade. Concluída a formação territorial do Reino, com a conquista de Faro, em 1249, e consolidada a demarcação fronteiriça entre Portugal e os reinos de Leão e Castela, com a assinatura do Tratado de Alcañices, em 1297 (Pizarro, 2005, pp. 108-115), os freires-cavaleiros espatários dedicar-se-iam à vigilância das fronteiras raianas e à gestão do património reunido nas suas áreas de influência (Mata, 1991, p. 206). Inevitavelmente, assistir-se-ia à “conversão das milícias em estruturas institucionais colaborantes do reforço do poder régio da monarquia. De guerreiros, os freires tornavam-se em ricos senhores” (Gomes, 1999, p. 45). Mas a antiguidade da presença humana nesta região alentejana é bem mais remota, como já evidenciou o padre Jorge de Oliveira [1865-1957] nos seus estudos compilados entre 1908 e 1946: “Alvalade não pode ser considerada um aglomerado populacional na época neolítica, romana, gótica ou árabe, porque não se encontraram vestígios ou provas que o documentem. Houve vilas,

casais ou montes dispersos pela área da actual freguesia” (Oliveira, 2013, I, n.º 1, p. 5). Registou-se, de facto, a existência de alguns elementos materiais, disseminados e isolados (Feio, 2009, pp. 50-51), mas que de modo algum permitem comprovar uma larga e contínua ocupação do território onde está hoje implantada a vila de Alvalade. As incertezas históricas em torno da possível procedência árabe do primitivo aglomerado populacional persistem ainda nos dias de hoje, apesar da indubitável origem toponímica da palavra Alvalade2, e intensificamse sempre que surgem tentativas de fazer coincidir a povoação alentejana com outros lugares existentes no território português mencionados na documentação anterior ao século XIII. Em muitos casos, as referências aludem ao Campo de Alvalade, no termo de Lisboa3 – igualmente conhecido pelas abundantes e extensas áreas agrícolas4 –, e não a vila de Alvalade integrada na antiga comarca do Campo de Ourique, como é identificada, regra geral, na documentação oficial (ANTT, RGM, OM, Liv. 5, “Cartas régias de mercê”, 1641-1700). Aliás, é muito provável que, ao longo dos séculos, se tenham organizado outras povoações e identificado algumas regiões com designações toponímicas idênticas e coincidentes com o nome de Alvalade5, ou porventura bastante próximas6, tendo umas perdurado no tempo e outras não7. A análise da documentação mais antiga, na qual por vezes surge menção a uma terra de Alvalade sem uma caracterização territorial específica, e a comprovada ausência de provas materiais de maior antiguidade, sobretudo de estruturas arquitetónicas, permite reforçar a hipótese de o povoamento de Alvalade ter sido organizado numa época mais recente. Apesar das fragilidades deste exercício histórico, pela notória ausência de fontes documentais coevas, mas tendo em conta a abundância de artefactos arqueológicos datados dos períodos do Neolítico, Romano e Visigótico disseminados numa vasta área geográfica no entorno de Alvalade e que acompanha, grosso modo, o percurso do rio Sado – nas herdades da Ameira, Brejo, Conqueiros, Corredoura, Defesa, Gaspeia, Monte Fava, 169


Retorta, Roxo, Sapa (Oliveira, 2013, I, n.º 1, pp. 4-6) –, importa questionar a possibilidade de os cavaleiros espatários terem procurado congregar e reunir num núcleo territorial não povoado, ou porventura um pequeno aglomerado comunitário preexistente, os habitantes a residir em casais e granjas, com seus terrenos agrícolas, os diretos descendentes dos povos que aqui se fixaram muito antes da entrada dos romanos e da chegada dos muçulmanos, mas que com eles conviveram, envolveram e cresceram. O local escolhido para iniciar a vida comunitária da povoação cristã de Alvalade foi no extremo setentrional de um planalto caracterizado pelo declive acentuado nos flancos nascente, norte e poente, delimitado pelo rio Sado, a nascente e a norte, e pela ribeira de Campilhas, a poente. A preferência pelo lugar obedeceu, de forma clara, a critérios de implantação geográfica e de posição estratégica num quadrante territorial duplamente mais defensável, não só das possíveis investidas militares das hostes sarracenas, como também das cíclicas inundações dos dois cursos fluviais durante as estações chuvosas. Era ainda uma terra igualmente sustentável, com abundantes recursos hídricos fluviais e extensos terrenos férteis que os contornavam e deles beneficiavam, e com bons acessos terrestres, e, claro está, fluviais, ambos com excepcional domínio visual circundante. Como diretos representantes da Coroa numa região ainda com as fronteiras voláteis, regularmente acossada por milícias inimigas mas protegida pela linha de fortificações de Santiago do Cacém, a oeste, Ferreira do Alentejo e Aljustrel, a nascente, e de Messejana a sul (Oliveira, 2014, p. 94), os freires espatários ao prestar proteção à população e ao conceder auxílio na administração do povoado garantiam, em troca, o aprovisionamento de víveres, o aquartelamento dos soldados e a recruta de homens com obrigações militares, factores indispensáveis ao reforço da linha da frente de batalha. Pela localização geográfica e condições naturais, a área de implantação de Alvalade assumiu assim uma posição estratégica complementar no âmbito do processo de consolidação do território do Reino, muito embora não fosse guarnecida de estruturas militares defensivas, conforme atesta o levantamento cadastral de 1527: a vila “não tem fortaleza allguã” (TBL, Cadastro, 1527-2532, fl. 12), ou vestígios materiais de que tenha existido alguma. Pacificada a região e reintegrados os habitantes dispersos pelos arredores, alguns deles decerto de origem muçulmana – os denominados mouros-forros, muitos deles 170

autorizados a manter a sua propriedade por concessão régia (Almeida, 1967, I, p. 2118) –, Alvalade foi crescendo paulatinamente nos séculos seguintes. A estabilidade da economia local, em franca ascensão e centrada essencialmente no cultivo de terras e na criação de animais, permitiu a Coroa arrecadar rendimentos para o erário régio mediante as receitas obtidas pela cobrança direta de impostos por parte dos freires espatários. No caderno de registos das colheitas régias cobradas nos domínios sob a jurisdição da Ordem de Santiago, compilado na chancelaria de D. Dinis [1261|1279-1325] entre 1304 e 1325 (ANTT, Gavetas, IX, mç. 10, doc. 27), surge direta menção ao privilégio do mestre espatário, D. Joham Escacho [?-1329], na isenção da cobrança de impostos por parte da Coroa em Alvalade, extensível também a Cabrela, em Montemor-o-Novo, e a Panoias, em Ourique (Gomes, 2013, pp. 15, 21-22). A missiva régia alusiva a Alvalade, datada de 10 de março de 1304, fornece, em nosso entender, uns dos fundamentos históricos mais antigos acerca da organização do núcleo populacional alvaladense, estabelecido em data anterior ao despacho da carta régia: “Don Denis pela graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem faço saber que Dom Joham Escaz mestre da ordim da cavalaria de Sanctiago, mi disse que Cabrela e Alvaladi e Panoyas sum lugares pobres e que quando eu y era que fundavam esses logares pobres desemparados per razom das colheytas que eu y tomava. E eu querendo lhy fazer graça e mercee quito lhy as colheytas dos dictos logares com seu termho des aqui adeante. En testemunho desto dey lhy esta mha carta” (Gomes, 2013, p. 24). A descrição de Alvalade como um lugar pobre e desamparado é inequívoca e sugere a presença de um pequeno núcleo populacional, com uma economia débil centrada na produção agrícola, cujo desenvolvimento parecia ser gravemente penalizado pelos impostos cobrados sobre as colheitas produzidas nos anos anteriores9. Por essa mesma razão decidiu o Rei aliviar os habitantes das obrigações tributárias. Mas o maior interesse do documento, lavrado pelo tabelião régio Affonsso Perez, reside no excerto alusivo à fundação da primitiva povoação de Alvalade, a par de outras duas, uma delas em grande proximidade geográfica: “Cabrela e Alvaladi e Panoyas sum lugares pobres e que quando eu y era que fundavam esses logares pobres” (Gomes, 2013, p. 24).


Com base no documento apresentado tudo aponta para a direta participação de D. Dinis no processo fundacional do aglomerado populacional medievo que deu origem a Alvalade, mediante a política de povoamento e ordenamento do território promovida pelo Rei na vasta província transtagana, contando, naturalmente, com o apoio da Ordem de Santiago através das comendas e dos padroados instituídos com o beneplácito régio (Mata, 1991, p. 206). Portanto, a atual vila de Alvalade pode ter sido instituída entre os finais do século XIII, após o ano de 1279, data do início do reinado dionisino, e os primeiríssimos anos do século XIV, até 1302, data em que surgem as referências documentais a um dos primeiros comendadores da comenda alvaladense, Rui Peres, em funções entre 1302 e 1308 (Mata, 1991, pp. 206-207; Fernandes, 2002, p. 98). Teria Alvalade recebido então, no momento fundacional, a carta de povoamento concedida por D. Dinis durante as suas múltiplas jornadas alentejanas10? O confronto do apontamento dos registos das colheitas régias com a carta de escambo assinada pelo Rei D. Dinis e o mestre da Ordem de Santiago, D. Joham Osoriz, confirmada no dia 1 de dezembro de 129711, permite ainda conjeturar a hipótese de Alvalade ter ficado sob a jurisdição da ordem espatária com a criação da comenda entre os anos de 1297 e de 1302. Apoiamo-nos não em dados documentais concretos, mas sim na sua ausência, uma vez que entre as testemunhas convocadas para confirmar o ato oficial, atrás mencionado, não constava o comendador de Alvalade ou o seu procurador12, encontrando-se presentes o mestre da Ordem e os comendadores de Santiago do Cacém, Mértola, Alcácer do Sal, Ferreira, Palmela, Sesimbra, Almada, Cabrela, Elvas, Algarve, Aljustrel, Panoias, Garvão e Segura, em Idanha-a-Nova (Marreiros, 2019, p. 85). Em 1327, quando Portugal deixou de ser comenda-mor e passou a mestrado da Ordem de Santiago, num claro sinal de autonomia face à casa-mãe espanhola (Barbosa, 1997, pp. 66-67), Alvalade fazia parte das trinta e uma comendas espatárias13 (Mata, 1991, pp. 206-207). A partir de 23 de maio de 1320, data da homologação da bula pontifícia, D. Dinis passou a auferir, por um período de três anos, da décima de todas as rendas eclesiásticas do Reino com o propósito de subsidiar as campanhas militares contra os sarracenos (Almeida, 1971, IV, p. 90). Logo no ano seguinte, em 22 de abril de 1321, principiaram os juízes executores da cidade de Évora a cobrança das ditas décimas por todo o território diocesano eborense. Nos meses seguintes alcançariam Alvalade, povoação integrada jurisdicionalmente na Co-

marca de Campo de Ourique e eclesiasticamente na Diocese de Évora, onde taxaram a freguesia paroquial em 225 libras portuguesas. Contudo, conforme a nota apensa à relação tributária, o comendador titular da comenda de Alvalade ficou isento, ao contrário do comendador de Cabrela que foi taxado em 40 libras (Almeida, 1971, IV, pp. 133, 136-137). Aparentemente, as benesses estipuladas no diploma exarado por D. Dinis, em 1304, só contemplariam, dezassete anos depois, a comenda de Alvalade14, o que sugere o fraco desenvolvimento da economia local. Ao cotejar os valores monetários cobrados por toda a comarca de Campo de Ourique – em Panoias a taxa foi de 240 libras, em Ourique 300, em Garvão 480, em Torrão 500, em Alcácer do Sal 780, em Ferreira 800 e em Santiago do Cacém 1000 libras – é possível confirmar que Alvalade era uma das três povoações com menos rendimentos. Somente as igrejas de Santa Maria do Monte – que supomos pertencer à aldeia de Vale de Guizo, em Alcácer do Sal – e a de Cabrela foram taxadas com um valor inferior, a primeira em 100 e a segunda em 60 libras (Almeida, 1971, IV, pp. 136-137). Já o priorado de Alvalade, a que estava ligado o pároco da igreja, foi taxado, no mesmo período, em 90 libras portuguesas, um valor igualmente aplicado a outros priorados e vigararias das comendas espatárias localizadas a sul do Tejo, nomeadamente as das igrejas paroquiais de Palmela, Mértola, Messejana, Aljustrel, Ourique, Alcácer do Sal e de Santiago do Cacém (Almeida, 1971, IV, pp. 129, 136-137). Nos finais do século XV, em 1495, ascendia ao trono, de forma inesperada, D. Manuel I [1469|1495-1521], quatro anos após a investidura do duque de Coimbra, D. Jorge de Lencastre [1481-1550], como mestre da Ordem de Santiago. Este, filho ilegítimo de D. João II [1455|14811495], foi o responsável pela implementação de importantes medidas reformadoras no aparelho institucional da Ordem mas que não resistiriam à política centralizadora de D. João III [1502|1521-1557]. Integrada na Mesa de Consciência e Ordens, em 1551, a Ordem de Santiago, tal como sucedeu com as de Avis e de Cristo, ficou totalmente subordinada à Coroa (Moreno, 1999, pp. 36-37). Empenhado na reforma administrativa do Reino que herdara, fundamental para a empresa dos Descobrimentos que colocaria Portugal entre os primeiros estados modernos do mundo, D. Manuel I implementou uma enérgica política de concessão e renovação dos instrumentos régios foralengos. Alvalade foi assim agraciada com a 171


carta de foral outorgada pela Coroa em 20 de setembro de 151015, no mesmo ano em que D. Jorge de Lencastre conduziu pessoalmente a visitação a Alvalade, em novembro seguinte, na companhia de D. João de Sousa [?1515], comendador de Alvalade entre os anos de 1496 e 1513 (Lino e Silveira, 1969, pp. 1-3; ANTT, D. Manuel I, “Mercês régias”, 1496, 1516). Com a entrega do diploma, Alvalade adquiriu assim o estatuto de concelho e os seus moradores passaram a auferir de privilégios municipais, direitos económicos e regalias comerciais, mas com os devidos tributos, foros e encargos tributários decretados em nome do Rei pelo comendador nomeado pela Ordem16. Contudo, o foral só foi publicamente apresentado à população cinco anos depois, em 26 de setembro de 1515, numa cerimónia realizada no edifício da Casa da Câmara presidida por Álvaro Fragoso, cavaleiro e contador da Coroa, na presença do comendador de Alvalade, Cristóvão Correia, dos juízes Pêro Calado e Álvaro Martins, do vereador Mem Daver – o fundador da Ermida de São Roque –, do procurador Andrade Rodrigues e do mordomo do primeiro, Joham de Milhana. Presentes estiveram ainda “outros muitos homens bons e do povo da dita vila”, como Pêro Eanes, João Estevens, Fernão Rodrigues, João da Veiga, Diogo, Tristam Memdez – o mordomo do hospital de Alvalade –, Afonso Anes Lopes e Martim Mendes (Foral, 1997, p. 25; “Visitação”, 1510, pp. 8-9). Alvalade foi assim dotada de novas estruturas administrativas concelhias requeridas para a gestão da porção de território confiado pela Coroa aos cavaleiros da Ordem de Santiago dois séculos antes, entre os anos de 1297 e de 1304, dispondo de um corpo de oficiais camarários, judiciais e fiscais com residência fixa, muitos deles já incorporados na vereação. Desde longa data, a “organização territorial e administrativa da área geográfica sob a direção dos espatários, baseava-se na comenda, isto é, uma unidade territorial determinada, confiada a um comendador”, cargo vitalício, embora pudesse ser destituído. O comendador ficava incumbido de intervir nos atos judiciais, participar nas obrigações militares e arrecadar as rendas (Mata, 1991, pp. 206-207). Nos séculos seguintes foi cumulada com mais alguns privilégios, conforme atesta o quadro geral administrativo de Alvalade levantado em 1747 feito com base no de 1708: “Tem huma Companhia da Ordenança. Governa-se por dous Juizes ordinários, tres Vereadores, hum Procurador do Concelho, Escrivão da Camera, Juiz dos Orfãos com seu Escrivaõ, dous Tabelliães, e hum Alcaide, cujos officios faz o Ouvidor da Comarca [do Campo de Ourique] 172

de tres em tres anos, e em cada anno sahe seu pelouro fechado, e nelle a Justiça nova para o governo da Villa, e seu Termo” (Cardoso, 1747, p. 381; Costa, 1708, pp. 501-502). Nos inícios do século XIX, em 1808, o quadro administrativo revelava um evidente enfraquecimento institucional, com a redução do número de oficiais contando apenas com um juiz, Jeronymo Gato, dois vereadores, Carlos José Serrão e Bernardo Joaquim Cordeiro de Matos, um procurador, João António Parreira, e um escrivão, José Dias (Silva, 2009, pp. 222-225). Recorrendo à documentação exarada das chancelarias da Coroa, das Ordens de Santiago e de Cristo e do Tribunal do Santo Ofício, assim como da própria carta de foral, entre os séculos XV e XVIII, é possível conhecer parte dos cargos e identificar alguns dos oficiais responsáveis pelo aparelho administrativo da vereação. Desempenharam o cargo de juízes do concelho Pêro Calado e Álvaro Martins, de vereador Mem (Gonçal) vez(?) e de procurador Andrade (?) Rodrigues (Foral, 1997, p. 25), de tabelião Alvaro Fernandes (Cunha, 1991, p. 177) e Gaspar da Cunha (Foral, 1997, p. 25) e de escrivães do judicial, almotaçaria, juízo dos órfãos e câmara serviram Belchior Pires de Rebelo, Diogo de Sousa Abreu (ANTT, RGM, OM, Liv. 12, “Carta régia de mercê”, 1653), Duarte Velez [Pacheco], Belchior Velez, filho de Velez Pacheco e cavaleiro professo da Ordem de Cristo (ANTT, RGM, OM, “Cartas régias de mercê”, 1662, 1681; Mercês D. Pedro II, 1681) e José Joaquim Cordeiro (ANTT, RGM, D. José I, “Carta régia de mercê”, 1776). Já Diogo Rodrigues foi porteiro da casa da câmara de Alvalade (TSO, TIL, Proc. 3662). Nas funções de juiz das sisas surgem os nomes de João Rodrigues, João Vasques, João Vaz, Vasco Rodrigues e João Fernandes Modarro (ANTT, D. Afonso V, “Cartas régias de mercê e privilégio”, 1463-1471; D. Manuel I, “Carta de privilégio”, 1515), como escrivães das sisas, e depois dos verdes e montados, Diogo Calado, João Calado, Fernão Rodrigues, Sebastião Dias e André Cruz (ANTT, D. Afonso V, “Cartas régias de mercê”, 1476; D. João II, 1482; D. Manuel I, 1503; RGM, TT, 1647, Mercês D. João V, 1711), como recebedor das sisas Fernão Vaz (ANTT, D. Manuel I, “Carta régia de mercê”, 1521), como contador, inquiridor e distribuidor Sebastião Dias (ANTT, RGM, OM, “Alvará”, 1650), e como escrivães da porta do celeiro o prior Salvador da Costa, Francisco Machado e Domingos Ribeiro de Lima (ANTT, RGM, MTT, OM, “Cartas régias de mercê”, 1645, 1664). Na carta de foral são ainda mencionados outros oficiais, como escrivães, almoxarifes, vintaneiros e quadrilheiros (Foral, 1997, pp. 16, 24).


Incumbidas de zelar pela segurança e velar pelo exercício da lei junto da população, as autoridades eram chamadas a intervir perante a denúncia de infrações e a ocorrência de transgressões. A própria carta de foral estabelecia os preceitos jurídicos e as normas judiciais a ter em conta num conjunto de hipotéticas situações que espelham, de certo modo, a realidade da época. Em caso de confronto físico, o fautor que empunhasse “espada ou qualquer outra arma [...] pau ou pedra” para desferir um qualquer golpe ficava sujeito ao pagamento de 200 reais e à apreensão da arma. Ficavam isentos do pagamento da coima estipulada, após a sentença, os homens que na posse das referidas armas apenas ameaçassem outrem, os moços “de doze anos para baixo, nem mulher de qualquer idade que seja” e todas as “outras pessoas que em defendimento de seu corpo ou por apartar e estremar outras pessoas em arruído tirarem armas posto que com elas tirem sangue, nem a pagará escravo que com pau ou pedra tirar sangue”. Porém, apesar da aparente equidade da lei, os preceitos eram injustos e discriminatórios porque tendencialmente favoráveis aos homens, já que estes não eram punidos ou multados quando “castigavam sua mulher e filhos e escravos e criados”, mesmo nas situações de derramamento de sangue (Foral, 1997, p. 16). Infelizmente, esta é ainda, passados quinhentos anos, uma dura realidade que assola a sociedade portuguesa e que urge abolir definitivamente. Os delitos reportados estão, maioritariamente, associados a casos extraconjugais entre os moradores residentes e/ou provenientes das povoações circunvizinhas. Assim ocorreu com Gonçalo Fernandes, lavrador de Alvalade, acusado, em 1499, de cometer adultério com a mulher de João Lourenço, lavrador de Panoias (ANTT, D. Manuel I, “Carta régia de perdão”, 1499), e com João Vogado, denunciado em 1501 por Vasco Rodrigues, sob a acusação de ter dormido carnalmente com sua mulher por intermédio de Afonso Miguens, que acabou igualmente preso na casa de cadeia (ANTT, D. Manuel I, “Cartas de denúncia”, 1501). Delitos mais graves diziam respeito ao derramamento de sangue. Em 12 de abril de 1453, o Rei D. Afonso V [1432|1446-1481] concedeu a Vasco Centeio e Aparício Vasques, seu filho, uma carta de perdão pelo ferimento que estes haviam causado a Estevão dos Canos – todos residentes em Alvalade –, aplicando, porém, a cada um dos ofensores a multa de 500 reais brancos para a Arca da Piedade17 (ANTT, D. Afonso V, “Carta régia de perdão”, 1453). Registam-se ainda alguns crimes leves, ocorridos já no século XIX, como o caso de contrabando de sabão que motivara a detenção de Diogo Poncis em 1824 (ANTT, CJAT, Processos-crime, “Auto de denúncia”, 1824).

Em diferentes momentos, a máquina de guerra também exigiu a prestação do serviço militar dos residentes de Alvalade, chamados a assumirem posições dentro e fora do Reino. Enquanto Diogo Calado, o seu irmão Pedro Eanes, escudeiro do conde de Ourém (ANTT, D. Afonso V, “Carta régia de mercê”, 1446), e João Vaz exerceram o ofício de coudel de Alvalade – quem sabe se o mesmo que assumira o cargo de juiz das sisas no mesmo ano – (ANTT, D. João II, “Carta régia”, 1482), Vasco Centeio desempenhou a função de oficial de lança e dardo (ANTT, D. Afonso V, “Carta de aposentação”, 1451), e João de Alvalade, João Álvares Centeio – provavelmente descendente de Vasco Centeio –, Salvador Pires Malveiro, Mateus Mendes e Álvaro Afonso serviram como besteiros do Reino (ANTT, D. João II, “Carta régia”, 1489; D. Manuel I, “Carta régia”, 1510, “Cartas régias”, 1513). Já Afonso Álvares Homem foi oficial espingardeiro (ANTT, D. Manuel I, “Carta régia”, 1512). Decerto muitos foram aqueles que ingressaram nos pelotões e nas embarcações das carreiras marítimas para as praças portuguesas da Índia, Brasil e África. Já nos finais do século XVII, entre 1687 e 1691, sabemos que o soldado da terra nova Noutel Seco, filho de Diogo Rodrigues – o porteiro da casa da câmara de Alvalade –, residia na cidade brasileira do Rio de Janeiro, onde foi detido pelos oficiais inquisitoriais (TSO, TIL, Proc. 3662). No campo eclesiástico serviram como párocos, auferindo da dignidade de prior concedida por nomeação da Ordem de Santiago, longas gerações de padres provenientes da Diocese de Évora, circunscrição eclesiástica a que pertenceu o território onde se insere Alvalade desde 1165 até ao ano de 1770, data do (re)estabelecimento da Diocese de Beja, ficando esta dependente da Arquidiocese de Évora criada em 1540 (Almeida, 1967, I, p. 91, 1970, III, pp. 8-9). Com a criação da paróquia, entre os finais do século XIII e os inícios do XIV, os párocos eram nomeados pela comenda espatária, e, a partir de 1550, pelos monarcas portugueses após consulta sujeita à apreciação da Mesa de Consciência e Ordens. Contudo, todas as despesas, incluindo as dos dois beneficiados, eram assumidas pela respetiva comenda (Cardoso, 1747, p. 381). Com o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, ocorrido em 1536 na cidade de Évora onde então se encontrava a Corte de D. João III, a vila de Alvalade ficou integrada no distrito inquisitorial do Tribunal da Inquisição de Évora. Apesar da distância do assento da judicatura inquisitorial e dos difíceis acessos terrestres entre Évora e Alvalade, os habitantes e residentes, civis e eclesiásticos, não escaparam aos inquisidores. 173


A atuação dos inquisidores em Alvalade ocorreu logo um ano após a criação do tribunal inquisitorial, quando, em 8 de março de 1537, se procedeu à detenção de Filipa Nunes, mulher de António Fernandes, cristão-novo – portanto descendente de família judaica –, acusada de guardar os sábados e de não assistir aos ofícios litúrgicos da Missa (Coelho, 1987, I, pp. 296-300). Tal como em muitas outras regiões do Reino, sobretudo nas povoações mais afastadas dos grandes centros urbanos, há registos da presença de judeus em Alvalade, como Moisés Saluto, aqui residente em 1459 (Tavares, 1984, p. 10). Alguns anos depois, em 16 de abril de 1547, foi detido o mancebo António Machado sob a acusação da prática de sodomia, tendo cumprido pena de prisão durante dois anos em Portugal e depois degredo no Brasil (TSO, TIL, Proc. 5883). Três décadas depois, em 31 de dezembro de 1577, foi processado o padre Manuel Nogueira, natural de Beja e pároco em Alvalade, por ter defendido proposições heréticas durante a liturgia. Contudo, perante a falta de provas, o pároco não foi condenado, acabando por assumir o cargo de capelão na nau Nossa Senhora da Fé integrada na carreira da Índia (TSO, TIL, Proc. 9238). Ainda no mesmo século, Luís Penedo de Abreu, natural e residente em Alvalade, foi detido por se apresentar publicamente como notário apostólico e familiar inquisitorial (TSO, TIE, Proc. 8825). Entretanto, em 1667, foram detidos pelo tribunal eborense, sob a acu-sação de heresia e apostosia, o cristão-novo Luís Raposo, natural de Aljustrel e escrivão dos órfãos em Alvalade (TSO, TIE, Proc. 443), e Isabel Raposa, moradora em Alvalade, acusada ainda de judaísmo (TSO, TIE, Proc. 3718). Concluídos os processos sairiam no auto da fé realizado em Évora em 16 de outubro do mesmo ano. Alcandorada numa pequena colina acidentada que a protegia das cíclicas investidas dos cursos fluviais, fundamentais para o enriquecimento dos solos circundantes, a vila terá continuando a crescer, ainda que paulatinamente, e, decerto, marcada por momentos de ruptura gerados durante as graves crises económicas, carestias alimentares e surtos pestíferos. Embora desconhecendo o real impacto da Peste Negra na região, o mortífero surto epidémico que atingiu a Península Ibérica a partir de 1348 (Rau, 1982, p. 78) terá condicionado também, muito provavelmente, o seu crescimento populacional. Através dos dados estatísticos recolhidos nos cadastros de recenseamento do Reino a partir da Época Moderna, ainda que escassos e parcelares, é possível calcular a evolução demográfica de Alvalade e termo envolvente 174

entre o primeiro terço do século XVI e a primeira metade do século XIX, muito embora os números apresentados careçam, efetivamente, uma leitura atenta e bastante crítica. Num quadro geral manifestamente incompleto, em virtude da fragilidade dos exercícios calculados com base nos registos cadastrais, quando as cifras de habitantes são contabilizadas em “vezinhos, fogos, ou cazaes” (ANTT, MP, Alvalade, 1758, p. 259) devem ser multiplicadas por quatro (Castro, 1997, p. 126), sempre que o número individual de moradores não seja referenciado. O primeiro recenseamento em Alvalade, realizado no final do primeiro terço do século XVI, em 1527, revelou um total de 133 “moradores da vyla e termo”, 80 a residir na vila e 53 disseminados pelo termo (TBL, Cadastro, 1527-1532, fl. 12), valores populacionais considerados fidedignos pela proximidade numérica aos das povoações vizinhas: Santiago do Cacém, com 218 habitantes; Messejana, com 194; Ferreira, com 143; Colos, com 135; ou Ourique, com 130 (Rodrigues, 1993, p. 203). Dois séculos mais tarde, os números demográficos são apresentados em vizinhos, o que impõe a referida multiplicação das cifras. Assim, com base nas obras impressas, em 1708, foram estimados 550 vizinhos, 250 a residir na vila, cerca de 1000 habitantes, e 300 no termo, cerca de 1200 (Costa, 1708, pp. 501-502). Entretanto, para 1747, os censos cadastrais reportam apenas 378 vizinhos (Cardoso, 1747, p. 380), número equivalente a 1512 moradores. Desconhecemos, contudo, se são valores totais ou parciais, pelo que devem assim ser entendidos com reserva. No âmbito do levantamento nacional realizado em 1758, destinado a apurar o nível dos estragos provocados pelo terramoto de 1755, foram contabilizados no concelho de Alvalade um total de 957 habitantes, dados que revelam uma perda de 555 residentes quando comparados com os números obtidos em 1747, portanto em menos de onze anos. O registo lavrado pelo padre Antonio de Almada Pereira de Suevara e Macedo, em 15 de maio de 1758, assevera a existência “na Villa, e sua freguezia Cento e outenta, e huu Vezinhos, fogos ou Cazaes”, tendo a “Aldeya das Ermidas” 26 vizinhos, a “Aldeya dos Modarros” (?) 8 e os “cazais de lavradores” dispersos 30. Num total de “seissentas, noventa e sete” pessoas aferidas, 441 habitantes residiam na vila e 256 disseminados pelo termo (ANTT, MP, Alvalade, 1758, p. 259; Roxo, 1758, p. 1029). Cerca de oitenta anos depois, em 1840, foram recenseados 433 vizinhos, 337 na vila e 96 no termo (Oliveira,


2013, II, n.º 1, p. 2), com um total de 1732 habitantes, aproximadamente, 1348 a residir em Alvalade e 384 nos arredores. Com base nos dados apresentados, sempre frágeis porque muito espaçados no tempo, a vila de Alvalade condensava um território de baixa densidade populacional no primeiro terço do século XVI, tendo, contudo, um crescimento exponencial nos dois séculos seguintes, passando de 80 moradores em 1527-1535 para 1000 em 1708. Entre 1747 e 1758 os números começariam a decair, quem sabe se em parte refletindo o impacto do terramoto de 1755, para somente começarem a ascender a partir de 1840. Apesar da esperança média de vida ser bastante baixa, com elevadas taxas de mortalidade, sobretudo na faixa etária infantil, os dados atestam a longevidade de alguns habitantes, que, em determinados momentos, ultrapassaram vicissitudes económicas, resistiram a conflitos bélicos e sobreviveram a surtos epidémicos. Em 1 de outubro de 1451, Vasco Centeio, militar de lança e dardo, recebia carta de privilégio por ter atingido os setenta anos de idade (ANTT, D. Afonso V, “Carta de aposentação”, 1451). Como se demonstrou anteriormente, muitos dos habitantes naturais de Alvalade desempenharam cargos ao serviço do Rei o que impôs a circulação dentro e fora do Reino. A abundante informação reunida nos processos de habilitação para as ordens militares de Santiago e de Cristo permite assim conhecer as complexas teias familiares estabelecidas entre os habitantes provenientes e/ou descendentes de naturais de Alvalade e os das povoações localizadas nas povoações limítrofes e regiões mais afastadas, onde muitas vezes fixaram residência. Natural de Alvalade era José Pedro Cordeiro da Lança, filho de Gaspar Nunes Cordeiro, natural de Alvalade, e de Maria Afonso Zarco, natural de São Marcos, em Mértola, neto paterno António Nunes Lança, de São Romão, em Alcácer do Sal, e de Leonarda Cordeiro, de Alvalade (MCO, HOS, J, “Diligência de habilitação”, 1762). Ligações a Alvalade tinha Dionísio Manuel de Macedo, natural de Coimbra e residente em Lisboa, filho de Baltazar João Rosado de Miranda, natural de Alvalade, e de Angélica Maria Josefa de Macedo, natural de Coimbra, neto paterno de Jerónimo Rosado, natural de Évora, e de sua mulher, Maria dos Santos, natural de Alvalade, sendo os avôs maternos de Coimbra (MCO, HOC, D, “Diligência de habilitação”, 1755). Outros apenas viriam a residir em Alvalade, certamente em exercício de funções oficiais,

como o capitão João Pacheco Nobre, natural de Colos e morador no Monte do Roxo, termo de Alvalade, filho de António Pacheco Nobre, de Colos, e de Isabel Gonçalves, da Abela, neto paterno de Marcos Rodrigues, de Colos, e de Maria da Luz Pacheco, de Monchique, e neto materno de Manuel Sobral e Maria de Loures, ambos naturais da Abela (MCO, HOC, I-J, “Diligência de habilitação de João Pacheco Nobre”, 1766). Conforme fica patente no diploma do foral, a Ordem de Santiago era detentora “na dita vila e termo de certos bens e terras próprias as quais dá ao comendador da dita vila pelos preços e condições que quer aos lavradores” e de “outras terras reguengueiras e foreiras das quais a propriedade é de pessoas particulares do dito concelho”, mediante o pagamento de dízimos e foros (Foral, 1997, p. 15). Através dos comendadores nomeados para Alvalade, a Coroa auferia da coleta de impostos sobre os produtos produzidos e transacionados na vila mediante os tributos de portagem, conforme ficara deliberado na carta de foral, mas numa prática de cobrança tributária instituída anteriormente, conforme atesta o caderno de registos das colheitas régias de 1304. Com base na documentação antiga e dada a caracterização do território é fácil identificar as principais fontes de subsistência da população: a produção agrícola e a exploração pastorícia. Contrariamente ao diploma régio dos inícios do século XIV, que menciona vagamente a cobrança de impostos sobre as colheitas (Gomes, 2013, p. 24), a carta de foral específica uma maior variedade de produtos a serem comercializados, a forma como seriam taxados e até os meios de transporte, numa conceção extensível e aplicável a outras regiões de Portugal: “pomos por lei geral em todos os forais de nossos Reinos que aquelas pessoas hão somente de pagar portagem em alguma vila ou lugar que não forem moradores e vizinhos dele” (Foral, 1997, pp. 16-17). Entre os produtos agrícolas transacionados, parte deles cultivados e consumidos em Alvalade como veremos, destacavam-se o trigo, cevada, centeio, milho, painço, aveia, a farinha que deles provinham, a linhaça, vinho, azeite, vinagre, sal e especiarias – pimenta e canela –, e os de origem animal, o “boi ou vaca [...] carneiro, cabra, bode ou ovelha, cervo, corço ou gamo [...] coelhos, lebres, perdizes, patos, adens [patos reais], pombos, galinhas e de todas as outras aves de caça” (Foral, 1997, pp. 1722). Na primeira metade do século XVIII, duzentos anos depois, a vila era conhecida por ter “bons montados”, terras com bastantes sobreiros e azinheiras, cujos frutos eram preferidos para a alimentação dos suínos (Bluteau, 175


1712, p. 305), por onde vagueava “muito gado de toda a casta, miudo, e grosso, de lãa, seda, e pelo”. Enquanto nos “muitos matos” que circundavam a povoação medravam coelhos, perdizes e galinholas e prosperavam as colmeias, os cursos de água forneciam o peixe miúdo, como barbos, bordalos, eirozes, pardelhas, picões e ruivacos. Neste mesmo período, as férteis várzeas eram cultivadas com trigo, feijão, melão, melancia e abóbora, e, em torno do Pego Verde, “hum olho de agua nativa [...] que causa prejuizo à saude dos moradores”, descobriam-se as hortas e os pomares (Cardoso, 1747, p. 381). Poucos anos depois, em 1758, a par das raposas e lobos que ameaçavam a população e os rebanhos, são identificados os “olivais, vinhas, e a mais terra inutil, por ser agreste pella parte do Sul” (ANTT, MP, Alvalade, 1758, pp. 261-262). Ao identificar os produtos isentos de taxas destinados aos habitantes da vila e seu termo, sobretudo nos bens de primeira necessidade porque destinados à alimentação, o foral permite assim conhecer parte dos alimentos mais consumidos nesta época na vasta província alentejana (Gomes, 2012, p. 29): pão, queijo, manteiga salgada, queijadas, biscoito, farelo, carne, ovos, leite, azeite, açúcar e mel, e as conservas destes três últimos alimentos, e, naturalmente, carne de criação e de caça, marisco e pescado, o de mar e o de água doce. Além dos cereais enunciados são ainda mencionadas as frutas frescas: como laranjas, cidras, peras, cerejas, uvas, figos e melões; os frutos secos: como castanhas, nozes, ameixas, figos, uvas, amêndoas, pinhões, avelãs, bolotas; e, claro está, os muitos legumes e hortaliças, ainda que só tenham sido mencionados o ruibarbo, favas secas, mostarda, lentilhas, alhos e cebolas (Foral, 1997, pp. 17, 20-21). No rol de produtos são ainda mencionados a cal, canas, vides, carqueja, tojo, palha, palma, esparto, vassouras, alcofas, esteiras, seirões, açafates, cordas, cera, sabão, alcatrão, peças em barro e barro vidrado, vidro e pedra, ferramentas e armas de metal – desde o aço, cobre e estanho ao chumbo, latão e arame –, tonéis, arcas, gamelas e louça de pau. Com um preço mais elevado de comercialização constavam os panos de seda, lã, algodão e linho, o “coiro de boi ou vaca ou de cada pele de cervo, corço, gamo, bode, cabras, carneiro ou ovelhas, curtidas ou por curtir” – tingidos e curtidos com a casca dos sobreiros e azinheiras (Rau, 1982, p. 109) –, assim como as peles de “cordeiras, raposos, martas” e ainda “todos os perfumes ou cheiros ou águas estiladas”. Contrariamente, o linho em cabelo, fiado ou por fiar, a lã em bruto, o feltro, o burel, as mantas da terra e “outros semelhantes panos baixos e grossos” tinham um valor de mercado inferior. Estas seriam as principais matérias-primas do vestuário, 176

após o devido tratamento com anil, brasil, sumagre e “casca para curtir" (Foral, 1997, pp. 17-22). A par da predominante atividade agrícola registava-se ainda, com certa segurança, alguma produção oficinal de cariz familiar, centrada na olaria, para o fabrico de utensílios destinados à alimentação e à conservação dos alimentos, na marcenaria, para a execução do parco mobiliário de uso comum, e na tecelagem de lãs e na curtição de peles, para a confecção do vestuário. Incrementou-se ainda, desde longa data, o pequeno comércio, centrado na venda e compra dos produtos existentes com excedente. Revelador de uma realidade mais cruel constava o comércio de escravos, pelo qual os seres humanos foram tratados como meras mercadorias, com a aplicação de taxas próximas das dos animais de carga: por cada escravo vendido cobrar-se-ia um real e cinco ceitis e “se se venderem com filhos de mama não pagarão senão pelas mães, e se se trocarem uns escravos por outros sem tornar dinheiro não pagarão e se se tornar dinheiro por cada uma das partes pagarão a dita portagem” (Foral, 1997, p. 21). Em Alvalade, entre os anos de 1749 e 1756, foram libertados, pelas cartas de alforria concedidas, os escravos de Bartolomeu José de Reboredo e Vasconcelos e os de D. Antónia Micaela Taveira (Oliveira, 2013, II, n.º 1, pp. 13, 30). Para o transporte dos bens transacionados recorria-se à “besta muar ou cavalar”, para as cargas de maior volume, e aos asnos, para as de menor fardo. Contudo, o documento menciona, ainda que forma de generalista, a possibilidade de transportar mercadorias por via fluvial, sendo plausível que o rio Sado – localmente conhecido como ribeira de São Romão – fosse ao tempo navegável e utilizado como meio de comunicação. Ficara ainda legalmente estipulado a atribuição da propriedade do denominado "gado de vento" – os animais perdidos que apareciam abandonados no termo da povoação sem serem reclamados – à Ordem de Santiago, pelo que todos os montarazes, oficiais e rendeiros do gado do montado ficavam impedidos de os capturar. Já as mercadorias apreendidas, resultantes do comércio ilegal, revertiam para a Coroa, mas não os animais que as transportavam (Foral, 1997, pp. 15-18). O diploma régio permite ainda conhecer alguns aspetos do quotidiano da povoação. Isentos de impostos de portagem ficavam as “pessoas eclesiásticas de todas as igrejas e mosteiros”, clérigos de ordens sacras e beneficiados de ordens menores, assim como os proprietários


FORAL DE ALVALADE PT/TT/CPLM/A/2/67 - imagem cedida pelo ANTT

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dos “panos e jóias que se emprestarem para bodas ou festas”, civis e religiosos, e os dos bens móveis próprios quando fixavam residência fora do termo do concelho, conceito identificado como “casa movida” (Foral, 1997, p. 18).

dades naturais e adversidades geradas pelos homens, estes mesmos edifícios e locais tornavam-se nos imediatos centros de solidariedade e hospitalidade para com os seus semelhantes.

Dentro dos condicionalismos de tempo e de espaço, em virtude da incúria do Homem e da intempestiva força da Natureza, ainda é possível cartografar o conjunto dos mais antigos monumentos de Alvalade, maioritariamente concentrados no centro histórico – no eixo urbano definido essencialmente entre o Largo da Igreja Matriz – Largo 25 de Abril – e a praça da antiga casa da câmara e da Igreja da Misericórdia – Praça D. Manuel I –, um espaço continuamente renovado nos últimos cinquenta anos, mas que ainda evidencia uma sucessão de propriedades habitacionais distribuídas em parcelas perpendicularmente dispostas às artérias que as delimitam.

Na principal praça pública da vila ficava o antigo edifício da Casa da Câmara, o assento do aparelho central da administração camarária, judicial e económica de Alvalade, a funcionar neste sector urbano, pelo menos, a partir dos inícios do século XVI, com a criação do concelho municipal. Localizado no quadrante norte da praça, o edifício estava destinado a acomodar os serviços camarários, de diligência da justiça e da aplicação de penas, ainda que o aparelho de registos documentais estivesse instalado na Igreja Matriz, onde os ministros eclesiásticos da paróquia procediam ao assentamento dos dados de baptismo, casamento e falecimento (ADS, PA, Registos de Baptismos, 1604-1911, Registos de Casamentos, 1604-1911, Registos de Óbitos, 1604-1911).

Apesar das alterações físicas e transformações materiais introduzidas no legado patrimonial existente, a arquitetura histórica erigida insere-se numa escala de produção local, de matriz regional alentejana, resultante do cruzamento evolutivo dos legados culturais romano, muçulmano e cristão maturados ao longo dos séculos. Naturalmente, os materiais requeridos para as construções provinham da região, da madeira ao adobe, do tijolo à telha, da pedra à cal, ainda que para os elementos mais nobres – como os portais das igrejas, os brasões e padrões de armas dos espatários, as lápides sepulcrais e o próprio Pelourinho –, fosse requerido o mármore de Trigaches, extraído das pedreiras da vila homónima e da de São Brissos, nos arredores de Beja. Em parte dos edifícios coletivos construídos em Alvalade, civis e religiosos, complementados pelos espaços públicos circundantes, decorriam as assembleias populares fundamentais para a administração da vila e para resolução de problemas da comunidade residente. Nestes mesmos espaços organizavam-se os muitos momentos de sociabilidade e convivialidade do quotidiano da população, marcados sempre pelos cíclicos trabalhos ligados à terra – da qual dependia o seu principal sustento –, e os escassos momentos de festividade e solenidade, definidos pontualmente pelas periódicas festas religiosas instituídas no Calendário Litúrgico da Igreja, quase sempre coincidentes com os finais das respetivas colheitas. E durante os eventos festivos, o sagrado e o profano interligavam-se e complementavam-se, revelando a assimilação de usos e costumes ancestrais perpetuados pelas suas gentes, mas que foram sendo cristianizados. De igual modo, perante eventuais calami178

A análise atenta dos registos fotográficos permite identificar alguns elementos arquitetónicos que sugerem que o edifício tenha sido reconstruído na segunda metade do século XVIII, após o terramoto de 1755. As contínuas campanhas de obras levadas a cabo foram responsáveis por encerrar algumas portas, abrir novas janelas, eliminar o pequeno oratório da fachada principal e destruir, já nas décadas de 1980-1990, um brasão de armas ornado com uma “coroa real e a simbologia da região” (Carvalho, 1994, p. 48). Sobreviveram, contudo, algumas estruturas originais da antiga casa de cadeia, instalada no piso térreo do edifício. No centro da atual Praça D. Manuel I ergue-se o Pelourinho, símbolo material da autonomia concelhia, dos privilégios concedidos pela Coroa e dos deveres exigidos aos moradores de Alvalade, ambos fiscalizados pelas autoridades municipais e magistrados judiciais instalados no edifício fronteiro, que não raras vezes a ele levaram os infratores e os transgressores. Tendo em conta as múltiplas vicissitudes por que passou, o Pelourinho, reintegrado no local original tantos séculos depois, preserva a sua estrutura original, mas não os elementos constitutivos que, muito provavelmente, ornamentavam o coroamento. Em grande proximidade, no início da Rua da Cruz, erguia-se o Hospital do Espírito Santo, estabelecimento com uma dupla função assistencial, o acolhimento dos habitantes, enfermos e indigentes a necessitar de cuidados e alimentos, e o alojamento dos viandantes, negociantes, oficiais e peregrinos à procura de abrigo durante as des-


locações. A mais antiga descrição, coeva do seu funcionamento institucional, é feita no relatório feito pelos espatários no seguimento da visitação realizada em novembro de 1510. Segundo os testemunhos do mordomo do hospital, Tristam Memdez, e dos anciãos, não havia memória da data da sua fundação, dado caracterizador da antiguidade da instituição. A sua administração dependia do concelho, responsável pela gestão do património do hospital, um conjunto de casas situadas na “rua djreita desta villa” – a atual Rua de Lisboa, correspondendo ao casario com os números de polícia 2 e 418 –, cujas receitas obtidas eram canalizadas para aplicar em “cousas necessarias” (“Visitação”, 1510, pp. 7-8, 14-15). Entretanto, com a instituição da Santa Casa da Misericórdia de Alvalade, por volta de 1570, a administração do hospital passa para a sua alçada, ficando assim responsável pela gestão das rendas dotadas, que, na década de 1740, pareciam estar completamente depauperadas, conforme atesta o testemunho deixado pelo padre Luis Cardoso: tem um hospital “muy pobre, e falto de rendas” (Cardoso, 1747, p. 381). Cerca de onze anos depois, as valências do hospital pareciam ter sido desativadas, mantendo-se apenas o alojamento dos indigentes, conforme assevera a memória paroquial de Alvalade de 15 de maio de 1758: “Naõ tem Hospital, e só huã Caza, que se hospedaõ os pobres administrada pella providencia da Mezericordia” (ANTT, MP, Alvalade, 1758, p. 260). De acordo com o registo lavrado em 1510, “a casa do dito ospritall, o quall tem tres casas huũa dianteira e duas camaras omde dormem os pobres”, com um total de quatro camas, “tres comuũas de pobres, e huũa lympa pera alguũ homem homrrado quando ao ditto ospritall vem” (“Visitação”, 1510, pp. 7-8). A par das limitações de espaespaço e da aparente escassez de bens móveis ficou bem evidente a inexistência de um oratório, com seu “alltar em que se diga missa”, destinado ao consolo espiritual dos doentes, tendo apenas na parede do alpendre três imagens em papel protegidas por cortinas de linho branco (“Visitação”, 1510, pp. 7-8). Três séculos e meio depois, o inventário de 1860 permite não só localizar com maior precisão a implantação do edifício assistencial no tecido urbano: “Uma morada de casas, na Rua da Cruz desta vila, que são três casas térreas, e servem de hospital”; como conhecer parte do espólio que detinha pelas funções assistenciais inerentes: “um colchão de lã, um enxergão velho, seis lençóis, um travesseiro velho, uma fronha velha, duas mantas de lã, um cobertor, duas cobertas de chita, um guarda-cama, dois pratos de estanho e uma tumba” (Oliveira, 2013, II, n.º 1, p. 32).

Em torno do eixo estabelecido entre as duas praças principais distribuíam-se as habitações residenciais de maior antiguidade, decerto de construção e dimensão modestas, que as alterações materiais posteriores deturparam na sua quase totalidade. No início da Rua de São Pedro – que, como o próprio nome indica, conduzia à primitiva ermida do apóstolo, e hoje ao cemitério – encontram-se as duas casas de habitação reservadas aos magistrados indigitados para a vila, conforme assevera a tradição local. Provavelmente reconstruídos também na segunda metade do século XVIII, os edifícios residenciais, independentes, revelam uma nítida conceção da arquitetura civil popular, organizados em dois pisos, os térreos dotados de porta de acesso e janela lateral e os superiores, decerto reservados às câmaras de descanso, por uma única janela, sendo a janela da primeira casa de sacada. Seguramente mais antigas seriam as casas que a Ordem de Santiago detinha em Alvalade, na dita Rua Direita – uma artéria que era direta entre dois pontos, a Praça do Concelho e a entrada principal da vila, orientada para Lisboa, nome que acabou por vingar –, e que deveriam estar arrendadas, pois a vereação fazia a manutenção do hospital com os rendimentos daí obtidos, como atrás referimos. A descrição feita por ocasião da visitação realizada a Alvalade, entre 22 e 27 de novembro de 1510, reúne informação histórica preciosa que permite analisar três pontos vitais para melhor compreender a povoação de Alvalade nos princípios do século XVI: a composição urbanística de um sector da vila (a artéria principal e a distribuição das casas, com as frentes orientadas para esta e os quintais virados para a várzea, toponímia que vingou até à atualidade na Rua Detrás dos Quintais), a organização arquitetónica dos edifícios residenciais civis (casas de um e dois pisos, com salas e câmaras, algumas dotadas de chaminés e outras com largas janelas); e a constituição material em que foram edificados (a telha e o tijolo predominam na descrição muito embora fossem de uso comum a madeira em travejamentos e soalhos, a pedra e o adobe nas estruturas parietais, a cal para as argamassas e para os revestimentos interiores e exteriores, e o mármore de Trigaches/São Brissos para acabamentos mais nobilitantes dos principais edifícios): “Tem a ordem na dita villa huũas casas sobradas na Rua Direita s. logea e sootão detras e em cima ssalla e camara com duas chamijnees e com huũ qujmtal detras As quaes partem ao Norte com rua ppublica ao Sull com outra rua e 179


ao Leuante partem com as casas da ordem e do Ponemte parte com as casas de Estevam Fortes As quaes casas sam cubertas de telha vã e a salla sobradada tem huũa jenella gramde de assento de tijolo e tem de Leuante a Ponente seis varas e mea e do Norte ao Sull tem noue varas e terca e o qujmtall tem de longo doze varas e de traves tres varas e terca. E outra casa terrea pegada com esta com sua camara e parte ao Norte com rua pubrica e ao Sull com outra rua e ao Leuante com seruidão do comcelho e ao ponemte com as sobreditas casas e tem do Norte ao Sull a casa diamteira cimquo varas e meya e de Leuante a Ponemte tres varas e cimquo sesmas e a camara tem do Norte ao Sull tres varas e mea e de Leuante a Ponemte quatro varas e mea segundo foram vistas e medidas pellos dictos ofeciaes pera jsso deputados per huũa vara marcada de cimquo palmos” (“Visitação”, 1510, pp. 14-15). . Funcionando em regime coletivo estariam os edifícios destinados ao armazenamento e transformação dos produtos agrícolas e animais, como os celeiros, lagares, adegas, açougues, fornos, moinhos e azenhas. Destas construções, raramente mencionadas, nada resta. Já nos arre-dores da vila, a poente, encontra-se a antiga ponte, de nítida configuração medieval, mas que poderá ter ocupado uma anterior de origem romana – apesar da inexistência dos mais rudimentares e arcaizantes vestígios clássicos –, que no passado permitia a passagem dos habitantes e viandantes mediante a cobrança de impostos por parte da comenda instituída, conforme sugere a pedra com o brasão de armas da Ordem de Santiago encontrada nas suas imediações há largos anos. Conforme atestam os inúmeros vestígios materiais e as muitas referências documentais, sobretudo os registos produzidos no âmbito das visitações realizadas pela Ordem de Santiago, Alvalade possuiu um numeroso conjunto de edificações religiosas que atesta, de forma inequívoca, o sentimento religioso das suas gentes – por isso tantas vezes escolhidas para a última morada terrena –, e o compromisso assumido pelo Ordem de Santiago na sua edificação, manutenção e conservação, encargo material partilhado com as muitas irmandades existentes, mas sempre de acordo com as orientações emanadas pela Arquidiocese de Évora e depois pela Diocese de Beja. Aliás, o primeiro bispo de Beja, D. frei Manuel do Cenáculo de Vilas Boas [1724|1770-1802|1814], foi um grande entusiasta da história antiga de Alvalade, que por aqui passou, em visitação, em maio de 1781 (Oliveira, 2013, II, n.º 2, p. 18). 180

Reveladores das mais sentidas e ancestrais devoções do povo, os oragos titulares das igrejas, capelas e ermidas existentes em Alvalade e no seu termo identificam os santos taumaturgos aos quais a população recorria nas horas de maior aflição, pedindo a sua intervenção para a cura de uma doença, a resolução de um problema ou a proteção das colheitas e animais. Enquanto São Sebastião e São Roque eram os principais defensores contra o flagelo da peste, São Marcos Evangelista e Santo Antão eram os especiais protetores dos rebanhos de animais. Aliás, na primeira metade do século XVIII, segundo o padre Luis Cardoso, eram célebres as festividades realizadas na igreja matriz em honra de São Marcos: “assistindo à funçaõ hum touro, e concorre a ver este prodigio muita gente dos Lugares circumvisinhos” (Cardoso, 1747, p. 381; Oliveira, 2013, I, n.º 1, p. 20). Havia ainda culto dedicado ao Espírito Santo, Arcanjo São Miguel, São João Baptista, Santa Ana, Apóstolo São Pedro, São Francisco de Assis, Santo António de Lisboa e Santa Catarina de Alexandria, mas, estranhamente, não há registos de manifestações devocionais consagradas a São Tiago Apóstolo, o protetor da ordem militar homónima responsável pela comenda alvaladense. Mas a proteção maior advinha de Cristo e de sua Santa Mãe, a Virgem Maria, venerada nas múltiplas invocações teológicas marianas: Nossa Senhora da Oliveira, desde as origens medievais, Nossa Senhora da Conceição, amplamente divulgada em Portugal a partir de 1640 com a defesa do princípio doutrinário da Imaculada Conceição na Universidade de Coimbra, duzentos e oito anos antes da definição dogmática defendida pela Santa Sé; Nossa Senhora com Cristo Menino, Nossa Senhora da Piedade, com Cristo morto no regaço, Nossa Senhora da Saudação, e ainda Nossa Senhora do Rosário (“Visitações”, 15101533, pp. 1-34; Cardoso, 1747, p. 381). As festividades religiosas de carácter público e coletivo com maior impacto na vila eram realizadas em honra de São Sebastião, em janeiro, as de São Marcos, em abril, as do Espírito Santo, celebradas no dia da Santíssima Trindade, no domingo seguinte ao Pentecostes, e que antecedia a do Corpo de Deus, também com elevada expressão local, e claro as da Semana Santa, na Páscoa, e São Roque em agosto, “com assistencia de munta gente” (ANTT, MP, Alvalade, 1758, p. 260). Nestas festividades participaram, ativamente, as irmandades com assento na igreja matriz: a de Nossa Senhora do Rosário, do Santíssimo Sacramento e a das Almas. Porém, ficaram célebres, pelo caráter de partilha cristã, as festas do Espírito Santo, introduzidas em Portugal no reinado de D. Dinis por intercessão de sua esposa, D. Isabel de Aragão [c.1270-1336],


que o povo venera hoje como Rainha Santa. Celebrados os ofícios litúrgicos seguia-se a distribuição do bodo – pão, carne e vinho –, bens alimentares fornecidos pelos abastados lavradores para remediar a fome dos mais necessitados naqueles dias (Oliveira, 2013, I, n.º 1, pp. 6, 20). O principal centro de veneração mariana fica, ainda hoje, situado na Igreja de Santa Maria, a igreja matriz da freguesia, edifício quinhentista, mas com origens que remontam ao primeiro quartel do século XIV ( Almeida, 1971, IV, pp. 136-137). Uma panorâmica bastante elucidativa acerca da composição física e construção material do edifício da igreja encontra-se nos registos procedentes da mais demorada e pormenorizada visitação ocorrida na vila, a de novembro de 1510, a partir dos quais se afere que apresentava já uma disposição e volumetria espaciais com dimensões próximas das atuais: “o corpo da jgreja, de planta basilical, he de huũa soo nave com tres arcos de tijolo”, medindo cerca de 16metros de comprimento e 7metros de largo, e capela-mor, com cerca de 8metros de profundidade e 5,5metros de largo (“Visitação”, 1510, p. 2; Oliveira, 2013, II, n.º 1, p. 35). Na capela principal erguia-se um altar “de pedra e caall”, onde se encontrava a “jmagem de Nossa Senhora com o Menjno Jhesu no collo a qual he de pao e estaa em retavollo piqueno” (“Visitação”, 1510, p. 2), que se encontrava em avançado estado de degradação, muito provavelmente, proveniente do primitivo edifício religioso. Contiguamente à capela-mor, no lado direito, fica a sacristia, dependência com cerca de 3,5metros de comprido por 2,20metros de largo, coberta por abóbada (“Visitação”, 1510, p. 3), destinada ao acondicionamento das alfaias, paramentos e livros indispensáveis para a celebração dos ritos litúrgicos e ofícios divinos. O mesmo relato de 1510 identifica já a existência de dois altares laterais, possivelmente um em cada flanco da nave, com duas imagens escultóricas e três representações pictóricas devocionais. Apesar das esculturas não serem identificadas, apenas descritas pelos visitadores como sendo de madeira e muito antigas, sabemos que na capela colateral do flanco direito existia uma pintura a fresco representando Santa Catarina – possivelmente a sábia de Alexandria, pois sabemos da existência remota de uma escultura desta mesma santa na matriz –, São Francisco de Assis e Santo Antão (“Visitação”, 1510, p. 2). A capela do Senhor Morto, no lado do Evangelho, terá sido construída já no século XVIII. Junto da porta principal fica o batistério, com sua “abobada em cruz” e dotado de uma “pia de bautizar”, obra de construção

resultante de uma campanha iniciada depois de 1510 e concluída antes de 1524 (“Visitações”, 1510, 1533, pp. 3, 16, 23-24). A entrada principal do templo foi dotada de um pórtico disposto em arco ogival, terminado em cogulho, elementos que revelam a continuidade dos modelos do gótico final português – o denominado estilo Manuelino – ainda no século XVI, que foi executado em pedra mármore de composição acinzentada, oriunda, decerto, das pedreiras de Trigaches/São Brissos, o mesmo material em que foi esculpido o brasão de armas da Ordem de Santiago disposto superiormente. A análise visual dos elementos arquitetónicos existentes e o cotejo das fontes documentais disponíveis permitem asseverar que o edifício da igreja matriz foi reformado entre os finais do século XV e os inícios do século XVI, muito provavelmente, no decurso da visitação efectuada na década de 1490, mas nunca antes da subida ao trono português de D. Manuel I. É assim possível concluir que o programa arquitetónico tenha sido executado dentro das balizas cronológicas de 1495 a 1510. No seu interior conserva-se ainda um importante acervo de imaginária devocional, escultórica e pictórica, executado maioritariamente entre os séculos XVI e XVIII, parte dele constituído por peças recolhidas nas capelas e ermidas devolutas por volta de 1755-1758 (ANTT, MP, Alvalade, 1758, p. 260). Na área da capela-mor ganha destaque a estrutura retabular em talha dourada, que enriquece o espaço e enobrece a pintura atribuída a Bento Coelho da Silveira [c. 1620-1708], e um conjunto de lápides sepulcrais dos beneméritos da igreja e patronos da vila, devidamente identificadas com os letreiros inscritos, num processo em todo idêntico ao da Igreja da Misericórdia, templo reservado à inumação dos benfeitores da instituição assistencial. Nas imediações da igreja, no extremo sul do adro, ficava, em 1510, a residência de habitação do prior (“Visitação”, 1510, p. 3). No flanco sul da praça principal, a do Pelourinho, erguese, com certa imponência, a Igreja da Misericórdia, provavelmente com orago de invocação dedicado a Nossa Senhora da Misericórdia. A sua construção, concluída em 1570, resulta do mecenato de um benemérito local que nela jaz sepultado, Fructuoso Pirez, e deve ser associada ao momento fundacional da instituição assistencial – conforme sugere o texto da lápide colocada na fachada principal inspirada na passagem bíblica de São Mateus (5, 7): “BeaTI. MISERICORDES Quoniam IPSIS Misericordiam COnSEQVETVR”20 –, a partir da dotação de rendas e doação de bens legados por via testamentária após a sua morte21. 181


A matriz arquitetónica original do edifício revela a presença de cânones estéticos do Maneirismo embora materializados segundo as condicionantes dos estaleiros regionais. Trata-se de uma igreja de nave única de plano longitudinal, coberta por abóbada – caída em 1929 –, ladeada, no flanco direito, por duas câmaras, a sacristia, com acesso imediato à capela-mor, e uma dependência de arrumos funerários (Oliveira, 2013, I, n.º 1, p. 11), mas que na sua origem fundacional poderá ter funcionado como Casa do Despacho dos irmãos da Misericórdia. Na área da capela-mor, a cúpula que a cobre foi ornamentada com um complexo programa de pintura a fresco descoberto em 2014, representando a Santíssima Trindade – Deus-Pai, Espírito Santo e Cristo-Salvador –, acompanhada por uma orquestra celestial, obra de beneficiação artística promovida após a campanha construtiva do edifício, talvez entre os finais do século XVI e os inícios do XVII. No seguimento da extinção da Misericórdia, em 4 de junho de 1861, a igreja foi despojada dos conjuntos de retabulária, mobiliário, alfaias litúrgicas e pintura e escultura devocionais – foram inventariados, em 1860, um Cristo Morto, um Santo Amaro e uma Nossa Senhora da Conceição –, tendo sido todos os bens entregues à Casa Pia de Beja. Com a secularização da igreja, ocorrida já no século XX, procedeu-se, em outubro de 1925, à trasladação da lápide sepulcral do fundador da área da capelamor para junto da entrada da igreja matriz (Oliveira, 2013, II, n.º 1, pp. 31, 33). Regressada à igreja da Misericórdia, a lápide foi colocada na parede nascente da nave e, muito recentemente, foi reintegrada no local original, na capela-mor, onde hoje se pode contemplar. Nas imediações da Igreja da Misericórdia e da Casa da Câmara erguia-se, no flanco nascente, a Capela do Espírito Santo, que supomos ter sido erigida em data posterior à visitação de 20 de outubro de 1533, uma vez que continua omissa nos relatos, muito embora na visitação anterior, a de 23 de novembro de 1510, os visitadores tivessem denunciado a falta de um oratório para consolo espiritual dos seus beneficiários. Nestas épocas de viva fé era tão importante cuidar do corpo como da alma. Com base na documentação e na toponímia da Travessa do Espírito Santo, aberta nas proximidades das primeiras habitações no início da Rua de Lisboa, é provável que esta capela, entregue à administração da própria Misericórdia (Cardoso, 1747, p. 381), tenha sido edificada nas “casas do mesmo ospritall na rua djreita” (“Visitação”, 1510, pp. 7-8), onde vieram a ser descobertas várias ossadas nos princípios da década de 1990 (Carvalho, 1994, pp. 46-47). 182

O edifício “aonde foi a igreja do Espírito Santo” (Oliveira, 2013, II, n.º 1, p. 32) parecia estar já devoluto em 1860, portanto, um ano antes da extinção da Misericórdia em 1861. Mas ao que tudo indica a capela ainda existia na primeira metade do século XX, sendo descrita como um “velho casarão, sem arte alguma, onde se erguia um pequeno altar” (Oliveira, 2013, I, n.º 1, p. 11), já despojado de todos os bens móveis. Alvalade reunia ainda um considerável número de ancestrais ermidas e capelas dispersas no espaço periurbano, como a Ermida de São Pedro, já inexistente no século XVIII, considerando que em 1758 já havia “muntos annos [que estava] demolida”, e a Ermida de São Sebastião “totalmente aruinada no dia do terremoto” de 1755 (ANTT, MP, Alvalade, 1758, p. 260). Mais afastadas do aglomerado da vila, para norte, ficavam as ermidas de Santa Maria, no Monte do Roxo, e a de São Roque, no Monte do Faial, edificada pelo vereador Mem Daver entre os finais do século XV e os inícios do XVI (“Visitação”, 1510, p. 11). Destes quatro edifícios religiosos restam apenas esparsas reminiscências memoriais, dispersas fontes documentais e diversos fragmentos materiais que teimam em subsistir no tempo. Alvo de sucessivas adversidades físicas ao longo dos séculos, sobretudo em virtude dos frágeis materiais de construção, como evidenciam as fontes históricas, o numeroso e antigo conjunto patrimonial edificado em Alvalade foi severamente atingido pelo grande terramoto de 1 de novembro de 1755, catástrofe natural que terá provocado ainda algumas mortes naquela data. Logo em 27 de novembro seguinte chegava a Alvalade a comitiva do visitador ordinário da Arquidiocese de Évora, o doutor Luiz Gomes Genões, que testemunhou os níveis de destruição registados. Acerca das igrejas da praça principal escreveu: “Vi a igreja da Misericórdia incapaz de se celebrarem nela os ofícios divinos, ameaçando uma grande e considerável ruína, pelo que mando aos administradores da mesma, que dentro de oito meses reparem a mesma igreja, e não menos a do Divino Espírito Santo, que tendo esta menos ruína, com menos custo pode ser reparada em menos tempo”. Profundos danos sofreu igualmente a Igreja Matriz: “Achei esta igreja muito arruinada, assim na sua capela-mor, como em todo o corpo da mesma, prometendo perigos e ameaçando indecências” (Oliveira, 2013, II, n.º 1, pp. 34, 38). Sepultados os mortos e amparados os vivos, Alvalade foi recuperando da catástrofe, mas um novo abalo sísmico, registado em 31 de março de 1761, voltaria a fazer mais estragos na vila, comprometendo assim os trabalhos de


recuperação que tardaram em começar, como evidenciam os registos das visitações diocesanas eborenses realizadas em 1757 (Oliveira, 2013, II, n.º 1, pp. 7, 38). As décadas seguintes parecem ter sido passadas dentro de alguma normalidade até ao dealbar de Oitocentos com a invasão do Reino pelos exércitos napoleónicos. Embora desconhecendo o número efetivo de militares residentes, decerto em número reduzido dada a dimensão da vila, a correspondência despachada de Alvalade para Santiago do Cacém e a Abela, entre junho e julho de 1808, atesta que a primeira dera início a preparativos para combater a “tropa francesa” que ameaçava vir a “estas nossas terras”. Na carta de 30 de junho, a vereação de Alvalade apelava ao sentimento de união, pois perante o “commum inimigo [...] devemos desde já armar e unirmo-nos para a defeza”. A resposta chegaria a 6 de julho, informando do envio de um destacamento do exército proveniente do Algarve, “que dizem vir em soccorro d’esta provincia”, mas deixando o alerta para os moradores “estarem prontos á primeira voz, podendo no emtanto cuidar no recolhimento das suas searas” (Silva, 2009, pp. 222, 225, 227). Apesar dos receios manifestados a região foi poupada às invasões, ocorridas maioritariamente no centro do país, mas não às incursões militares geradas pela guerra civil que avassalou o Reino entre 1832 e 1834. Após contínuas derrotas no campo de batalha, as tropas absolutistas acabaram por capitular perante os exércitos liberais. Assinado o diploma de rendição na Convenção de Évora Monte, em 26 de maio de 1834, a comitiva do monarca deposto, D. Miguel [1802|1828-1834|1866] – vinda de Alvito, onde pernoitara no dia 30 de maio, e com destino a Sines, onde deveria embarcar para o exílio no dia 1 de junho seguinte – alcançou a vila de Alvalade no dia 31, um sábado (ANTT, CEM, “Missiva”, 1834). A primeira paragem, para retemperar forças e matar a sede, foi “junto ao poço da Herdadinha, cercanias de Alvalade” (Lousada e Ferreira, 2006, p. 194). Enquanto D. Miguel, e provavelmente o alto comandante das tropas miguelistas, o marechal José António de Azevedo Lemos [1786-1870], parecem ter ficado hospedados na principal casa da vila, pertencente à família Lança Parreira – o edifício representado no flanco direito do painel azulejar dedicado à Igreja da Misericórdia –, onde lhes foi posta mesa farta, os restantes membros da sua comitiva terão ficado alojados nas habitações localizadas nas imediações. O monarca deposto abandonaria o Reino no primeiro dia de junho de 1834, vindo a embarcar na fragata britâ-

nica Stag ancorada no porto de Sines (Lousada e Ferreira, 2006, p. 178). Instaurado o novo governo liberal procedeu-se, como sempre acontece, ao acerto de contas com os apoiantes da fação vencida. As casas nobiliárquicas absolutistas foram perseguidas, as comunidades monásticas e conventuais colaborantes foram encerradas, e as vereações apoiantes – como foi o caso da de Alvalade – foram espoliadas dos seus privilégios. Encapotada na reforma administrativa para os municípios do Reino proposta por Manuel da Silva Passos [1805-1862], ministro dos Negócios do Reino, a política em curso determinou a extinção do concelho alvaladense em 6 de novembro de 1836, desaparecendo assim, em poucos anos, os direitos e as prerrogativas municipais conquistados ao longo de vários séculos. D. Miguel jamais voltaria ao Reino e todas as tentativas de reunir os apoios políticos para reclamar o trono português sairiam goradas. Mas, se porventura, a campanha encetada a partir do exílio tivesse tido êxito quem sabe se cumpriria a promessa deixada à população de Alvalade que o recebera com as devidas honras régias naqueles dias, aparentemente uma das poucas vilas alentejanas dispostas a cumprir o direito de hospedagem quando outras recusaram fazê-lo (Lousada e Ferreira, 2006, pp. 188-198): “Ferreira há de ser feita numa eira, Aljustrel há de ser arrasada a pata de corcel e Alvalade há de ser cidade”. Assim nos descreve este acontecimento, ocorrido em Alvalade há quase duzentos anos e transmitido de geração em geração, a nossa Avó Mariana Deolinda [1928], a quem dedicamos este ensaio histórico.

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Milton Pedro Dias PACHECO. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. CHAM - Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores / Centro Interdisciplinar de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra. Casa-Museu Elysio de Moura. miltondpacheco@yahoo.com.br miltonpacheco@fcsh.unl.pt 2 O padre Jorge de Oliveira, recorrendo a várias obras e deba-tendo com reputados académicos do seu tempo, como José Leite de Vasconcelos, questionou a origem do topónimo Alvalade: “Diz-se que Alvalade é palavra árabe que significa terreno murado, cercado”, decerto influenciado, como tantos outros autores, pela obra Vestigios da Lingua Arabica em Portugal, impressa em 1789, na qual o autor admite que Alvalade tem o significado de “lugar abitado, e murado” (Sousa, 1789, p. 53). O pároco alvaladense defendeu ainda que a

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doação da povoação com o nome de Alvalade, feita pelo Rei Ramiro II de Leão ao Mosteiro do Lorvão, em Penacova, no longínquo ano de 933, nunca poderia ser a vila alentejana, cujo território ainda se encontrava “em poder dos mouros” (Oliveira, 2013, I, n.º 1, pp. 7-8). 3 Entre a documentação mais antiga importa mencionar a carta de doação de alguns bens em Alvalade feita por João Gondesendes e Ximena, sua mulher, à Sé de Coimbra, em 26 de outubro de 1110 (ANTT, CSC, DP, “Carta de doação”, 1110); e a carta de doação da Herdade de Louro e da vinha de Alvalade feita por D. Sancho I a Mendo Gomes e sua esposa, e que mais tarde acabaria por ser incorporada no património imóvel do Mosteiro de Chelas de Lisboa (ANTT, MC, “Carta de doação”, s.d.). No século XIII há ainda referências a uma vinha existente em Alvalade (ANTT, OA, CSBA,“Carta de composição”, 1263), mas que deveria pertencer a “Alvalade Menor”, ou seja, ao campo pequeno de Alvalade, o local onde D. Afonso II fez idêntica doação à Ordem de Avis em 1218 (Cunha, 2009, p. 62). 4 Referenciada já na inquirição régia de 1220-1221 como pertença dos freires-espatários (Vargas, 1999, pp. 121, 127), a Alvaladi de Lisboa foi continuamente identificada como “rego de Alvalade”, “campo de Alvalade”, “Alvalade Grande” ou “Alvalade das Ameias”, onde mais tarde surgiu a “freguesia dos Reis de Alvalade”. Esta área era célebre pelos vastos campos agrícolas, abundantes em vinhas, pomares e olivais, como evidencia a documentação dos séculos XIII a XVI, pelo que importa questionar se o verdadeiro significado da palavra Alvalade não estará de facto relacionado com esta realidade de abundantes e extensos terrenos agrícolas. (ANTT, CSJA, “Carta de aforamento”, 1352; “Sentença”, 1441; “Carta de emprazamento”, séc. XV; MCO, HOC, 1618; IPMFF, “Inventário”, 1637-1644; CSCCL, “Carta de arrendamento”, 1299; Gavetas, Gaveta XXI, doc. 16 A; JPCML, “Ação de notificação”, 1772). 5 A “Carta per que el-Rey deu ao concelho d’Elvas os castellos de Campo Mayor e d’Alvaladi por termho”, datada de 31 de dezembro de 1296, menciona uma povoação com idêntico nome que a historiadora Rosa Marreiros localizou em Espanha (Marreiros, 2012, pp. 47, 515516). Muito embora não tenha sido possível localizar este antigo lugar naquela região raiana foram identificadas cinco povoações espanholas denominadas de Albalate, palavra bastante próxima do termo português Alvalade: Albalate del Arzobispo, província de Teruel; Albalate de Cinca, na de Huesca; Albalate de las Nogueras, na de Cuenca, Albalate de Tajuña e Albalate de Zorita, ambas na província de Guadalajara. Na breve pesquisa realizada verificámos que as povoações se encontram rodeadas por vastas e férteis planícies agrícolas o que reforça a nossa posição anterior. No século XVIII foram ainda identificadas a Ribeira de Alvalade, junto a Azinheira dos Barros, e a Serra de Alvalade, entre Lavre e Arraiolos (Cardoso, 1747, p. 380). 6 Além do “Campo ou Terras de Alvade”, junto a Eiras, em Coimbra (Silveira, 1922, p. 193) é possível identificar as aldeias de Alvalades, no concelho de Silves (Cardoso, 1747, p. 381), e de Alvaiade, no concelho de Vila Velha de Rodão. 7 Tendo em conta que a Alvalade lisboeta é já referenciada para os anos de 1220-1221 (Vargas, 1999, p. 121), como parte integrante dos domínios da Ordem de Santiago, há que questionar a possibilidade de a toponímia ter sido trazida pelos próprios freires espatários para esta região do Alentejo. 8 Pela ordem régia expressa no diploma de 4 de dezembro de 1298, D. Dinis determinava que aos “meus Mouros foros que am da pobrança da terra que moram en as vilas da Ordin” de Santiago não fossem cobrados os foros régios enquanto “morarem hi outrossi” (Marreiros, 2019, p. 108). 9 Fortunato de Almeida corroborou esta realidade ao tratar da

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reorganização da Diocese de Évora entre 1165 e 1230: “Este bispado devia ser por esse tempo o mais pobre do reino, porque os territórios que abrangia tinham sido devastados pela guerra durante alguns anos” (Almeida, 1967, I, pp. 91-92). 10 Conforme revelam os itinerários régios, traçados com base nos diplomas lavrados, dois meses após ter sido aclamado Rei de Portugal, D. Dinis encontrava-se já no Alentejo: na Marateca e em Évora em abril de 1279; no Crato e em Estremoz em junho; e depois de estar em Montemor-o-Novo, nos finais de outubro de 1280, passou por Estremoz, Elvas, Alandroal e Juromenha. Esteve em Beja em janeiro de 1281. Os primeiros seis meses de 1282 ficaram marcados por uma longa estada no Alentejo, entre Estremoz, Arronches, Beja, Évora, Fronteira e Crato. D. Dinis voltaria ao Alentejo entre janeiro e fevereiro de 1286, passando por Évora, Viana do Alentejo e Beja, e depois em 1291-1292 e em 1295-1296 (Pizarro, 2005, pp. 63-65; Marreiros, 2012, pp. 467-473). 11 A carta de escambo é referente à permuta das vilas de Almodôvar e Ourique, dos castelos de Marachique – a atual povoação de Castro de Cola – e de Aljezur, das igrejas dos respetivos lugares com seus padroados, e ainda da igreja de São Clemente de Loulé pela vila de Almada e o padroado da igreja de Santa Marinha do Outeiro, no concelho de Lisboa (Marreiros, 2019, pp. 84-86). O diploma régio permite ainda comprovar a incorporação de parte deste património nos bens da Coroa durante os reinados de D. Afonso III e do próprio D. Dinis: “dou-vos a mha villa d’Almodouvar e a vila d’Ourique e os castellos de Marachique e d’Aljazur con todos seus termos assi como os ora tragem e husam e segundo como os (am) pelas mnhas cartas e de meu padre” (Marreiros, 2019, p. 84), num processo decerto muito similar ao que esteve na origem de Alvalade. 12 Cerca de um século mais tarde, perante a impossibilidade de estar presente no capítulo reunido nos “paaços da Ordem de Santiago” em Alcácer do Sal, em 24 de janeiro de 1422, o comendador de Alvalade, Lourenço Martinz, enviou o tabelião alvaladense com sua procuração (Cunha, 1991, p. 177). 13 Em 1327, a comenda de Alvalade auferia ainda de rendimentos provenientes dos bens legados por Gonçalo Mendes em Tavira (Fernandes, 2002, pp. 80-84). 14 Muito embora o documento mencione a cobrança aplicada em Panoias, uma das duas povoações conjuntamente citadas com a de Alvalade no diploma régio de 1304, nada informa acerca da comenda. Contudo, o apontamento referente à comenda de Ourique pode explicar a isenção aplicada ao comendador alvaladense: “A comenda de ambas as ditas igrejas [de Santa Maria e a do Salvador], ou o temporal delas, não foi taxado em coisa alguma, por não ser bastante para as procurações do rei, infante e mestre”. Também os comendadores de Garvão e de Santiago do Cacém ficaram isentos nesta data (Almeida, 1971, IV, pp. 136-137). 15 No mesmo ano de 1510 receberam cartas de foral as vilas de Aljustrel, Casével, Castro Verde, Colos e Santiago do Cacém (ANTT, OSCP, Coleção de forais, 1510-1516). 16 Porém, tudo aponta para que a carta de foral tenha sido redigida com base no texto do diploma homólogo concedido a Santiago do Cacém, como já frisou o historiador medievalista José Mattoso (Mattoso, “Apresentação”, Foral, 1997, p. 5), muito provavelmente, supomos, com base na data da criação da comenda de Santiago do Cacém, em 1224, mencionada no referido documento. 17 A denominada Arca da Piedade destinava-se a reunir o dinheiro proveniente de coimas aplicadas por condenações de injúrias gravosas e crimes de sangue cometidos por fidalgos e cavaleiros que o ofendido recusava receber (Bluteau 1712, pp. 469-470).


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As informações sobre a localização do antigo hospital são vagas e confusas. O próprio autor, Domingos Carvalho, após localizar o edifício no início da Rua de Lisboa remete depois a Capela do Espírito Santo para a Rua da Cruz, correspondente ao edifício da antiga Padaria Rainha (Carvalho, 1994, pp. 46-47). Contudo, não temos a menor dúvida que o oratório do Espírito Santo funcionasse acoplado ao próprio hospital, no quadrante nascente da Praça de D. Manuel I, onde ficou conservada a memória toponímica deste estabelecimento, a Travessa do Espírito Santo. 19 Antigo padrão de medição com correspondência a 1,10metros. 20 “Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”. 21 A lápide sepulcral de Fructuoso Pirez comprova-o inquestionavelmente: “S[e]PulturA DE FRucTuosO PIrez/ Que TODA SVA FaZEn / DA DEV DESMO/ LA Com Que SE ORDE/NOV ESTA CASA”. (“Sepultura de Fructuoso Pirez que deu de esmola toda a sua fazenda com que se ordenou esta casa”.

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MEDIEVAL / MODERNO Fotografias de Paulo Chaves e José Matias (a)

MEDALHA DE SÃO VENÂNCIO Bronze Trabalho italiano Datação: século XVI Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - LR/2) Coleção: particular

Segundo a tradição hagiográfica, este santo nasceu em Camerino, na Úmbria, ao redor de 250, e recebeu o martírio apenas com quinze anos. A face principal da peça representa-o como um jovem guerreiro de armadura que ostenta numa mão a espada e na outra o estandarte. No anverso figura-se São Cristóvão.

CINCO REAIS D. Sebastião (1557 - 1578) Datação: século XVI Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA / 39) Coleção: particular

SINETE Datação: séculos XIV - XV Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AS/1) Réplica exposição Coleção: particular

Inscrição gravada na peça, S[IGIVLLUM] VIVALDI E[X] PA[N] DULFO ou seja, Vivaldo filho de Pandulfo. Dom Vivaldo Pandulfo é um mercador genovês de finais do século XIII. Segundo António Castro Henriques.

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PANELA Produção: regional ou da Foz do Sado / Tejo Dimensões: 11,5 cm A.;11,5 cm D. Datação: século XV - inícios do século XVI Proveniência: Herdade da Defesa 3, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - 43) Reconstituição Coleção: Museu de Arqueologia de Alvalade

PÚCARO Produção: regional Dimensões: 13 cm A.; 12,4 cm D. Datação: século XV - inícios do século XVII Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - AA / 44) Reconstituição Coleção: particular

HERDADE DA DEFESA Fotografia de JVZ Audiovisuais

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ERMIDA DE SAO SEBASTIÃO

Fotografia: Coleçao particular

PIA DE ÁGUA BENTA Produção: regional Dimensões: 40 cm C. ;11,5 cm D. Datação: séculos XVI - XVII Proveniência: Ermida de S. Sebastião, Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/20) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

CABECEIRA DE SEPULTURA / ESTELA DISCÓIDE Produção: regional Dimensões: 18,5 cm A.; 30,5 cm D. Datação: séculos XV - XVI Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - CP/19) Coleção: Casa do Povo de Alvalade

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MARCO DA ORDEM DE SANTIAGO

(a)

Grauvaque Dimensões: 80,3 cm A.; 39,8 cm L.; 26,2 cm Pr. Datação: século XVII Proveniência: Alvalade (Santiago do Cacém) (Inv.º MA - JF/4) Coleção: Junta de Freguesia de Alvalade

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Página anterior: Igreja da Misericórdia de Alvalade Fotografia de Paulo Chaves

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CUIDAR DO CORPO, CUIDAR DA ALMA:

Do “Complexo Assistencial” do Espírito Santo à Igreja da Misericórdia de Alvalade 1

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO2

Como em muitas outras pequenas terras, a confraria do Espírito Santo não adoptaria aqui, provavelmente, existência formal, sendo antes uma “mordomia”, irmandade sem estatutos, regulada pelo direito consuetudinário (Quaresma & Falcão, 2020, I, p. 72). A sua vida associativa tinha um ponto culminante na celebração da festa do Espírito Santo, incluindo o tradicional bodo. Este ágape ritual, oferecido não só a pobres, mas também a remediados, consistia, segundo um grande conhecedor do passado local, o Padre Jorge de Oliveira, em pão, carne e vinho, fornecidos pelos lavradores ([Oliveira], 1932, p. 1, B; Oliveira, [s.d.b], p. [1]).

Figura 1 – Igreja da Misericórdia. Campanário (fotografia de José Matias)

1. O HOSPITAL E A IGREJA DO ESPÍRITO SANTO A escassez de fontes fidedignas torna obscura a história de Alvalade e do seu concelho nos finais da Idade Média. Remontarão a este período, todavia, os inícios da organização da actividade assistencial na vila, com a fundação de uma das primeiras instituições locais, o hospital do Divino Espírito Santo que, à semelhança dos congéneres de outras sedes concelhias da região, terá surgido ainda durante o século XIV, quando se deu um grande surto do movimento confraternal e proliferaram os hospícios sob aquela invocação (Penteado, 2000, pp. 461, B-462, A; Falcão, 2012, p. 113).

Pertenceu à instituição um hospital localizado no início da Rua Quente, mais tarde conhecida por Rua da Cruz – visto o edifício ostentar uma cruz sobre a porta de entrada ([Oliveira], 1932, p. 1, A-B; Oliveira, [s.d.b], pp. [3-4]; Ramos, [2000], p. 16). Na realidade, era uma simples albergaria, destinada a acolher os peregrinos e outros viajantes. À semelhança do que ainda ocorre, a terra situava-se no cruzamento de importantes vias de comumunicação e por ela passava, além do mais, o Caminho de Santiago (Ramos, [2000], pp. 16-17; Falcão, 2012, p. 114). Por outro lado, nesses tempos em que os cuidados terapêuticos se aplicavam principalmente na casa de cada doente, também aí se acolhiam os enfermos pobres que não podiam ser tratados deste modo (Tavares, 2000, p. 137, A; Falcão, 2012, p. 113). As funções de hospital e hospício confundiam-se, acabando por preponderar as últimas. Não obstante a sua origem medieva, as mais antigas referências conhecidas sobre o estabelecimento assistencial datam da primeira metade do século XVI e constam das visitações da Ordem de Santiago, de que Alvalade era a cabeça de uma comenda. D. Jorge, duque de Coimbra, mestre das Ordens de Santiago e Avis, visitou a vila e o seu alfoz entre 22 e 27 de Novembro de 1510, na companhia de D. João de Braga e Francisco Barradas, respectivamente prior-mor e chanceler da milícia santiaguista (Pimenta, 2002, pp. 467 e 417, B-418, A), tendo por escrivão Pêro Coelho. O cargo de comendador recaía 195


Figura 2 – Ómega [Jorge de Oliveira], “A Misericordia de Alvalade”, em Nossa Terra, 3.ª Série, I, 16, Santiago do Cacém, 14 de Fevereiro de 1932, p. 1 (cedência de António Gonçalves Pereira)

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sobre o já idoso João de Sousa, que acumulava esta comenda com a de Ferreira do Alentejo; membro do Conselho do Rei e grande servidor da Coroa (Pimenta, 2002, pp. 472, B-473, A; Falcão, 2017, pp. 143-145 e 153-154), estava ausente na corte (Santos, 1969, pp. 7-15), algo habitual entre os comendadores (Quaresma e Falcão, 2020, I, p. 119). A visitação do “Ospritall do Samtisprito” ocorreu no dia 23 e os visitadores foram recebidos pelo seu mordomo, Tristão Mendes. De acordo com o uso habitual, perguntaram-lhe, assim como a homens antigos da terra, quem fundara a instituição, mas todos responderam que “nam avia hy memoria disso”, cabendo a administração ao concelho – através de um “mordomo” – e fazendo-se as reparações necessárias com as rendas das únicas propriedades que a mesma possuía, umas casas na Rua Direita, junto ao hospital (Santos, 1969, pp. 7-15). Aparentemente, a Câmara já chamara a si as funções da estrutura confraternal e nomeava o respectivo encarregado.

Quanto ao hospital, constava de três “casas” ou divisões, uma dianteira, com 4 varas e 1 terça (ca. 4,8 m) de comprimento e 3 varas e meia (ca. 3,9 m) de largura, e duas câmaras, ambas com 5 varas (ca. 5,5 m) de comprimento e 2 varas e meia (ca. 2,8 m) de largura (Marques, 1968, p. 370), onde dormiam os pobres. O imóvel possuía paredes de taipa e estava coberto de telha vã. Ao longo da fachada principal corria um alpendre, com o mesmo comprimento dela e 1 vara e meia (ca. 1,7 m) de largura, ou seja, de profundidade – elemento habitual em edifícios da presente tipologia, destinado a abrigar os transeuntes. Não existia altar em que se celebrasse missa, mas na parede do alpendre havia três imagens “em papel”, decerto três gravuras, sobre cortinas de pano de linho branco, evocando o carácter religioso do lugar. O acervo estava em consonância com o ambiente geral de sobriedade, aliás comum aos hospitais de outras vilas da região (Pita e Dias, 1995, pp. 38-39 e pp. 47-48): quatro camas, três “comuŨas” para os pobres, partilhadas por quem necessitasse de usá-las; e uma “lympa”, para algum homem

Figura 3 – Localização conjectural da igreja e do hospital do Espírito Santo, do celeiro da Misericórdia e da estalagem

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honrado que precisasse de ficar no edifício (Santos, 1969, pp. 7-8; cfr. Ramos [2000], p. 15). Passariam mais de duas décadas até à visitação seguinte, feita a mando de D. Jorge, entre 17 e 23 de Outubro de 1533, por duas personalidades de confiança da cúpula da Ordem de Santiago, Álvaro Mendes, cavaleiro e escudeiro do duque-mestre (Pimenta, 2002, p. 322), e Afonso Mendes, prior da igreja de São Pedro, de Palmela; assistiu-os João Dias da Costa, na qualidade de escrivão. À frente da comenda encontrava-se agora Francisco Correia (Santos, 1969, pp. 22-34), outra figura de peso entre os espatários – pertencia ao Conselho dos Treze, órgão máximo da Ordem –, também comendador de Colos (Pimenta, 2002, pp. 418, B-419, A). O hospital foi visitado no dia 20, limitando-se os visitadores a assinalar que tinha por mordomo Vasco Afonso Fortes e que o seu espólio contava com mais alguns equipamentos: um “almadraque nouo”, isto é, uma enxerga (Houaiss, 2002, I, p. 208, A, s.v. “Almadraque”); “dous lemcõees”; uma “manta de Aalemtejo noua”; e um “cabeçal”, ou seja, um travesseiro (Houaiss, 2002, II, p. 701, A, s.v. “Cabeçal”). Certamente, tudo destinado à referida “cama limpa” (Santos, 1969, p. 29). Discretas, mas significativas, estas beneficiações afiguram-se, à escala da instituição, um reflexo do surto de desenvolvimento que Alvalade então viveu (Ramos, [2000], pp. 15-17). A primeira metade do século XVI constituiu uma época áurea da terra, para o que terá também contribuído a atribuição da carta de “foral novo” pelo rei D. Manuel, dada em Santarém, a 20 de Setembro de 1510 (Foral de Alvalade, 1997, pp. 13-42).

Em data posterior, ainda no mesmo século, foi erguida, a pouca distância do hospital, a igreja (também dita, em documentos antigos, capela) do Espírito Santo, que ocupava um ângulo estratégico: o seu portal abria, em direcção a poente, deitando para a Travessa do Espírito Santo, uma das principais entradas em Alvalade, truncada, nos inícios do século XX, pela densificação da malha urbana; e o alçado lateral dava para a actual Rua de Lisboa, outro importante acesso à vila, que continua o enfiamento da Rua da Cruz ([Oliveira], 1932, p. 1, B; Oliveira, [s/d.b], pp. [1] e [3]). Integrava, portanto, a Praça, como assinalou, na Memória Paroquial de 1758, o prior da freguesia, Frei António de Almada Pereira de Guevara e Macelos (Dicionário Geográfico de Portugal, 1758, p. 260). Um celeiro destinado à arrecadação das receitas, em géneros, do Espírito Santo e, mais tarde, da Misericórdia, ocupou o espaço contíguo ao hospital, do lado poente, com a frente para a Rua da Estalagem – ou das Estalagens, quando passaram a ser mais do que uma –, actual Rua 31 de Maio de 1834 (Oliveira, [s.d.b], p. [4]). O Padre Luís Cardoso, ao ocupar-se da localidade no volume I do Diccionario Geografico, publicado em 1747, mencionou brevemente o hospital (Cardoso, 1747, p. 381, A, s.v. “Alvalade”): “Ha nesta Villa hum Hospital, porém muy pobre, e falto de rendas, e a Misericordia he que o administra, e socorre os pobres, e fundou-se esta no anno de 1570.”

Figura 4 – Praça D. Manuel I. Vista parcial em 1962. Observa-se, na Rua da Cruz, o prédio de habitação, com primeiro andar, que ocupa sensivelmente o espaço do antigo hospital do Divino Espírito Santo (fotografia de José Manuel Cortes)

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Já Frei António de Guevara e Macelos, em 1758, atendose a novos conceitos assistenciais, caracterizou a instituição como uma simples albergaria (Dicionário Geográfico de Portugal, 1758, p. 586): “Não tem Hospital, e só h�a Caza, [em] que se hospedão os pobres[,] ad/ministrada pella providencia da Mezericordia.” Durante a sua visitação às igrejas de Alvalade, em 1749, D. Frei Miguel de Távora, arcebispo de Évora, deixou o seguinte provimento sobre a "ermida" do Espírito Santo (Oliveira. [s.d.b], p. [5]): “Fômos informados de que o Provedor e mais irmãos da Misericordia d’esta vila, recebem os rendimentos da ermida do Espirito Santo, e, por este motivo, são obrigados a fabricar com eles a dita ermida, pelo que mandamos ao recebedor dos ditos rendimentos da ermida do Espirito Santo, que […].” Viria a seguir, muito provavelmente, a indicação de que essas verbas servissem para beneficiações de que a "ermida" carecia. O terramoto de 1 de Novembro de 1755 manifestou-se com intensidade na terra – segundo Francisco Pereira de Sousa, atingiu o grau VIII da escala de Mercalli –, causando significativos danos ao lugar de culto (Sousa, 1926, p. 809). Quando fez a sua visitação, logo a 27 do mesmo mês, o Doutor Luís Gomes Genuês, visitador ordinário em representação de D. Frei Miguel de Távora, assinalou que a destruição sofrida pela igreja do Espírito Santo era menor do que a da igreja da Misericórdia, determinando que o provedor e os irmãos da Santa Casa mandassem reparar esta no prazo de oito meses e procedessem de igual modo naquela, “que[,] tendo [...] menos ruina, com menos custo pode ser reparada em menos tempo” (Oliveira, [s.d.b], p. [5]). Guevara e Macelos salientou que as obras foram efectivamente realizadas, por iniciativa do provedor da Santa Casa da Misericórdia (Dicionário Geográfico de Portugal, 1758, p. 260; cfr. Sousa, 1926, p. 809). Não obstante tais reparações, menos de um século decorrido, o edifício caiu em ruína: um inventário de 1854 registou que estava “só com as paredes levantadas e portas fechadas e todo ele muito arruinado” (Ramos, [2020], p. [2]); e outro inventário, seis anos mais tarde, aludiu a “um casarão onde foi a igreja do Espírito Santo” (Auto de Inventario, 1860, fl. 31; cfr. Oliveira, [s.d.b], p. [4]).

Tempos depois, encontrando-se a igreja na posse da Junta de Paróquia, esta acabou por aforar o seu terreno para aí serem construídas as casas de habitação que pertenceram aos herdeiros de Joaquina Pereira Martins, a lavradora da Herdade dos Coitos ou Coutos (Oliveira, [s.d.b], pp. [1]-[2]). Idêntico destino teve, passadas algumas décadas, o hospital, também vendido a particulares e adaptado à função residencial. Em 2005, por acasião das obras de demolição de uma antiga parede de taipa existente no local, resquício daquele edifício, foram encontradas duas medalhas, uma das quais, do século XVI, consagrada a São Venâncio, protector dos viajantes (Falcão, 2006, p. 223, s.v. "Puzzle").

2. A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA E A SUA IGREJA Nos finais do século XV, a emergência de um conceito moderno de Estado levou, a par da evolução da Medicina, à introdução de amplas reformas na assistência. Uma das mais destacadas foi o surgimento de uma nova tipologia de irmandade que teve por arquétipo a Confraria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fundada em 1498 na capela de Nossa Senhora da Piedade, vulgo da Terra Solta, no claustro da Sé. Este modelo adoptou, como directriz, o exercício das catorze Obras de Misericórdia – oito espirituais, oito materiais – e caracterizou-se pela protecção régia, pela ligação ao escol local e pela omnipresença na prestação dos cuidados assistenciais, algo realmente inovador face à prática das confrarias medievas. Incentivado por D. Manuel I e pelos seus sucessores, o movimento alastrou sem demora e, analogamente ao ocorrido com as confrarias do Espírito Santo, cada cidade ou vila passou a dispor de uma irmandade da Misericórdia, que seguiu o compromisso da lisboeta, também datado de 1498, mas só impresso em 1516 (Sá, 2001, pp. 200, B-202, A). Não se conhece a data de erecção da Santa Casa de Alvalade, mas é provável que sobreviesse numa fase mais avançada do ciclo de fundações, ao longo do terceiro quartel do século XVI, período de “crescimento e consolidação” do movimento das Misericórdias que se fez sentir, com particular acuidade, em território alentejano (Xavier e Paiva, 2005, pp. 7-27; cfr. Sá, 2002, p. 24). Segundo a tradição, foi fundada pelo “povo” ([Oliveira], 1932, p. 1, A; Oliveira, [s.d.b], pp. [2]-[3]), isto é, pela comunidade, evidentemente sob o impulso das instâncias concelhias e com a forte participação dos notáveis da terra. 199


Figura 5 – Manuscrito de um estudo do Padre Jorge de Oliveira sobre Assistencia Publica em Alvalade (ca. 1930) [Alvalade, Arquivo dos Herdeiros do Padre Jorge de Oliveira] (cedência de D. Ângela de Atayde e Dr.ª Ana de Atayde)

Procurando tornar mais homogénea a prestação dos cuidados assistenciais e valorizar os recursos para isso disponíveis em cada concelho, a Coroa ditou a integração das pequenas confrarias e hospitais no património das Santas Casas, que assumiram os seus bens e encargos (Sá, 2001, p. 142, B). Assim aconteceu com a Misericórdia de Alvalade: um alvará de D. Sebastião, em 16 de Julho de 1571, determinou que lhe fosse anexado o hospital do Espírito Santo, até então administrado, como referimos, pelos oficiais da Câmara (Xavier e Paiva, 2005, pp. 149 e 305). 200

A Irmandade da Santa Casa levantara entretanto, o que era algo frequente, a sua própria igreja, um espaço privilegiado de representação social, no terreiro da vila, depois o rossio que esteve na origem da actual Praça – lugar a todos visível (Moreira, 2000, pp. 142, B-143, A) –, disputando a centralidade à igreja matriz e ao primitivo largo, quase contíguo a esta. Hoje ocupa, em posição de destaque, um dos topos de tão nobre espaço, aonde convergiam as principais ruas da terra e estavam situados as casas da Câmara e o pelourinho (Rossa, 1995, pp. 253-254 e 262-263).


gular, na qual se rasga o olhal em arco de volta perfeita, terminado por cornija simples. Das extremidades dos contrafortes brotam gárgulas com a forma de meia-cana, lavradas em mármore de Trigaches. Entre estes remates, corre uma platibanda vazada.

Figura 6 – Praça D. Manuel I. Vista aérea em 2020 (fotografia de JVZ Audiovisuais)

Este edifício, de planta longitudinal escalonada e orientada, era constituído, de início, pela nave rectangular e pela capela-mor, mais estreita, praticamente quadrangular, a que se adossam, do lado direito, a sacristia e outras dependências, por certo resultantes de acrescentos tardios. Tornando bem visível a articulação dos dois volumes iniciais e dos que lhe foram encostados, as coberturas são em telhado de duas águas na nave;em cúpula, sobrepujada por lanternim (cego praticamente desde os inícios da construção), na capela-mor; e em telhados de uma água, nos anexos, elementos adventícios, dispostos paralelamente ao eixo da igreja.

De verga recta, o portal é encimado por duas epígrafes, também lavradas em pedra de Trigaches. Uma ostenta a data de 1570, alusiva ao ano em que a construção terminada – ano seguramente distinto, ao contrário daquilo que se tem defendido a partir dos meados do século XVIII (Cardoso, 1747, p. 381, A) e foi reiterado pelo Padre Jorge de Oliveira ([Oliveira], 1932, p. 1, A; Oliveira, [s.d.b], pp. [2]-[3]), do da fundação da Santa Casa, algo anterior, como era mais usual –; e na outra, acima dela, lê-se: B[EA]TI MISERICOR/2DES Q[VONIA]M IPSI MI[SERICORDI]/3AM CO[N]SEQVE[N]TVR 1

Em português:

Felizes os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia

Particular atenção merece a frontaria: de um só pano, apresenta empena triangular e encontra-se delimitada por contrafortes em escorço, sobrepujados por dupla cornija e plintos ligeiramente recuados, com semiesferas nas culminações. Remata o conjunto, ao centro, um discreto campanário, também com a forma de empena trian-

Figura 8 – Igreja da Misericórdia. Lápides alusivas à construção do edifício e à missão da Santa Casa, encastradas no antigo vão do óculo (fotografia de José Matias)

Figura 7 – Igreja da Misericórdia. Planta (a cinzento, os anexos)

Os três panos dos alçados norte e sul (este antecedido pelas dependências a que aludimos) encontram-se igualmente definidos por contrafortes, agora perpendiculares, ao passo que os da capela-mor seguem o mesmo esquema da fachada principal. Na parede setentrional da capela-mor, rasga-se uma janela que, após o encerramento das aberturas do lanternim, oferece, com o portal, a única fonte de iluminação natural. Os muros deste alçado possuem maciços rampeados a unirem os contrafortes, outra adição destinada a protegê-los da chuva e, como observaremos, a resolver problemas estruturais causados pelo terramoto de 1755. 201


Quando se procedeu à remoção dos rebocos interiores e exteriores da igreja, em 2017, durante as obras de recuperação e adaptação para nela ser instalado o Museu de Arqueologia, vieram à luz do dia alguns elementos arquitectónicos. Na frontaria, surgiu um vão de grande dimensão, em cima do portal actual, que nele se encastra, inculcando a existência anterior de um acesso significativamente maior, fechado por um arco redondo. Sobre este, observam-se os contornos de um óculo; mais tarde preenchido, aqui foram aplicadas as duas lápides referidas, vindas de outros pontos do mesmo alçado. É provável que estas alterações tenham ocorrido na sequência do terramoto de 1755, com o propósito de reforçar a estabilidade do imóvel, bastante afectado pelo sismo.

Figura 9 – Igreja da Misericórdia. Sino quinhentista (fotografia de Luís Pedro Ramos)

Figura 12 – Igreja da Misericórdia. Alçado norte (fotografia de José Matias)

Figura 10 – Igreja da Misericórdia. Os trabalhos efectuados na década de 1990 puseram à vista os arcos que unem os contrafortes do lado sul (fotografia de José Carlos Vargas Pacheco)

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Figura 11 – Igreja da Misericórdia. Arco abatido que une dois contrafortes na parede do lado sul, descoberto por ocasião das obras na década de 1990 (fotografia de José Carlos Vargas Pacheco)

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Aquela intervenção deixou também à vista, imediatamente debaixo da cimalha, alguns fragmentos pontuais de uma decoração pictórica, aplicada sobre argamassa fina, que sugere um aparelho rusticado. Trata-se de uma solução característica da época maneirista, provavelmente aplicada ainda nos finais do século XVI – ou nos inícios do século XVII –, e que revestiria o exterior do edifício na íntegra. Mais tarde, quando começou a apresentar sinais de degradação, foi rebocada e caiada de branco por cima. Interiormente, a nave apresenta um tecto de madeira, com três panos, mas são ainda muito perceptíveis os vestígios do arranque, em alvenaria, da abóbada de berço, o que ajuda a explicar a robustez dos contrafortes. Aberta por um arco triunfal de volta perfeita e com molduras, assente em pilastras, a capela-mor ostenta uma cúpula que repousa sobre trompas. De início, apresentava, como única decoração, incisa e debruada a negro, no centro, um quadrifólio dentro de um círculo moldurado e que corresponde, sensivelmente, ao presumível vazio iluminado pelo lanternim.


Em fase ulterior, a cúpula foi totalmente revestida por uma pintura mural, inscrita numa fina camada de argamassa, o reboco que serve de intónaco, sucedendo o mesmo com a cornija que a delimita pela parte inferior – e, ao que tudo indica, com os alçados da ousia. Terá sido então que se cegou o lanternim, talvez por causa dos problemas derivados de eventuais infiltrações quando a chuva caía em abundância.

Figura 13 – Igreja da Misericórdia. A remoção dos rebocos, durante as obras de 2017, colocou a descoberto o óculo e o arco do primitivo portal da frontaria (fotografia de José Matias)

Figura 14 – Igreja da Misericórdia. Vestígios do revestimento pictórico imitando um aparelho rusticado, trazido à luz do dia pelas obras de 2017 (fotografia de José Matias)

Figura 16 – Igreja da Misericórdia. Lápide tumular de Frutuoso Pires no pavimento da capela-mor (fotografia de Paulo Chaves)

No pavimento da capela-mor, junto à parede do lado do Evangelho, diante do altar (desaparecido), um lugar de grande relevo, do ponto de vista da hierarquia espacial, encontra-se a lápide tumular de Frutuoso Pires, com a seguinte inscrição: S[E]P[VLTVR]A DE FR[VC]T[VOS]O P[IRE]Z / Q[VE] TODA SVA F[A]Z[EN]/ 3DA DEV D[E] ESMO/4LLA CO[M] Q[VE] SE OR/5DENOV ESTA / 6 CASA 1

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Que podemos actualizar desta forma: Figura 15 – Igreja da Misericórdia. Arranques da abóbada que soçobrou nos primórdios do século XX, evidenciados durante as obras realizadas entre 1993 e 1999 (fotografia de José Carlos Vargas Pacheco)

Sepultura de Frutuoso Pires, que toda [a] sua fazenda deu de esmola, com que se ordenou esta casa 203


Decerto um notável da vila, talvez um dos fundadores da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, Frutuoso Pires legou-lhe o seu património, na íntegra, para, com as verbas daí resultantes, se edificar a igreja da instituição. Em contrapartida, esta concedeu-lhe o privilégio de ser tumulado numa área ad sanctos, julgada outrora – por causa da proximidade em relação ao altar – como especialmente propícia à salvação da alma (Iogna-Prat, 2006, pp. 242-243 e 279). Os trabalhos arqueológicos levados a cabo, em 2009-2011, puseram a descoberto a sepultura de um homem idoso que foi entregue à terra, num covacho, envergando ricos atavios, sinal de elevada condição (Fragoso e Tereso, [2012], p. 27); tinha a cabeça orientada para este, ao invés do que é mais habitual no âmbito cristão (consoante se verificou em todas as outras inumações descobertas nas referidas escavações), o que reforça a preocupação de ficar perto do altar (Tereso, [2012], p. 9). Figura 18 – Igreja da Misericórdia. Inumações na capela-mor: do lado do Evangelho (esquerda), as ossadas de Frutuoso Pires; do lado da Epístola (direita), as do Doutor João Ribeiro de Lima (desenho de Sofia Tereso)

Figura 17 – Igreja da Misericórdia. Capela-mor (fotografia de José Matias)

O centro da capela-mor, geralmente destinado ao patrono da igreja (Iogna-Prat, 2006, p. 243), permaneceu livre. No lado oposto ao da sepultura de Frutuoso Pires, fica – também aberta num simples covacho – a de outra individualidade da terra, o Doutor João Ribeiro de Lima, cujo assento de óbito, lavrado pelo prior, Frei João Vaz Louzeiro, reza assim (Registos de Óbitos, 1693-1698, fl. 17v. [devemos esta e as demais informações extraídas dos registos paroquiais a Gentil José Cesário]): “Em vinte e oito de fevereiro de mil e Seis/Sentos e noventa e sete […] enterrado na Cappella mayor da Misericordia / o Doutor Joaõ Ribeiro de lyma e deixou de / esmola da sepultura des mil Reis / morreo com todos os sacramentos e ben testado por verdade fiz / este termo que asignei dia e Era supra.” 204

Até à aplicação da famigerada Lei de 21 de Setembro de 1835, que proibiu os enterramentos dentro e no adro das igrejas e impôs a criação dos cemitérios públicos (Sousa, 1994, pp. 311-312), foram muitas as inumações praticadas no solo da igreja da Misericórdia. Podemos supor que a maioria dos indivíduos aqui sepultados seriam irmãos, familiares deles ou colaboradores da Santa Casa, mas a verdade é que o seu campo-santo serviu amiúde como alternativa à igreja matriz – o lugar claramente privilegiado pela população da vila –, quando havia nela falta de covas disponíveis. Assim ocorreu, em 1681, com três moradores (Registos de Óbitos, 1667-1693, fls. 35v.-36). No espaço à volta da igreja da Misericórdia não existiam sepulturas, por se tratar de um espaço desprovido de muros e bastante devassado, em pleno coração da vila. Hoje reduzido praticamente à sua estrutura, este imóvel filia-se numa tipologia assaz difundida, ao longo de Quinhentos, no Sul de Portugal. Embora mais usual em pequenas igrejas paroquiais e, até, matrizes, como a de Nossa Senhora da Encarnação de Sobral, de Vimieiro (Arraiolos) (Espanca, 1975, I, pp. 43-46), e, sobretudo, em ermidas, designadamente a de São Brás, de Évora (Espanca, 1966, I, pp. 320, A-322, A), cabeça de toda uma genealogia de edifícios similares (Espanca, 1992, I, pp. 40, A, 112, A, e 365), não deixou de ser privilegiado também pelas irmandades da Misericórdia (Moreira, 2000, pp. 157, B-159, A; Pinho, 2013, pp. 282 e 331),


como sucede, por exemplo, nas respectivas igrejas em Aljustrel (Falcão e Pereira, 1996a), Ferreira do Alentejo (Espanca, 1992 [1993], I, pp. 328, B-332, B) e Colos (Quaresma e Falcão, 2000, II, pp. 179 e 186), para citarmos exemplares igualmente do segundo terço do século XVI.

Figura 19 – Igreja da Misericórdia (fotografia de José Matias)

O monumento alvaladense prosseguiu notoriamente alguns aspectos das linhagens construtivas do Tardo-Gótico e do Manuelino, bem patentes na organização espacial, com as suas formas simbólicas (rectângulo, quadrado, círculo) a manifestarem a ligação entre o Céu e a Terra, e na relação dinâmica que os poderosos contrafortes, em ângulo – como os da ermida de Santa Clara, antiga igreja matriz de Vidigueira (Espanca, 1992 [1993], I, pp. 363,

B-367, B) –, ou direitos, imprimem à mole primitiva (Falcão e Pereira, 1996b). Esse paradigma, há muito consagrado entre nós, liga-se, na igreja em apreço, a elementos resultantes de uma interpretatio, ao gosto da arquitectura vernacular alentejana, de protótipos eruditos do Maneirismo com assinalável pendor “experimental”: as platibandas vazadas, de inspiração clássica – as suas origens parecem remontar aos mútulos, característicos modilhões da ordem dórica e que a toscana prosseguiu (Pérouse de Montclos, 2004, pp. 235, A, e 380, est. XI, fig. 48; Wodon, 2008, p. 58, C) –, cuja grande referência, no Sul, é da igreja do mosteiro de Nossa Senhora da Graça, de Évora, terminada ca. 1540 (Espanca, 1966, I, pp. 164-171), conhecendo diversas adaptações em lugares de culto com escalas mais reduzidas, como a ermida de São Sebastião, de Alvito (Espanca, 1992 [1993], I, pp. 40, A-41, A); e o lanternim de pendor classicizante, também amplamente documentado em igrejas meridionais, que dialoga com o campanário no remate da frontaria. O compromisso resultante da aproximação entre a tradição e a vanguarda caracteriza-se pela elegância das proporções e pelo ritmo que dimana do jogo dos pilares adossados e das moldurações. Só dois vãos, o do portal e o do óculo (truncado), ambos limitados à máxima simplicidade, rasgam a fachada, solução que ocorre amiúde em igrejas quinhentistas das Misericórdias (Pinho, 2013, p. 310). De resto, no exterior

Figura 20 – Igreja da Misericórdia. Vista aérea em 2020 (fotografia de JVZ Audiovisuais)

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Figura 21 – Igreja da Misericórdia. Lanternim e platibanda na capela-mor (fotografia de José Matias)

Figura 22 – Igreja da Misericórdia. Antiga porta de ligação da sacristia ao “quintal”, depois Travessa da Misericórdia, posta a descoberto nas obras de 2017 (fotografia de José Matias)

não surge qualquer elemento heráldico ou, sequer, simbólico, alusivo à natureza do edifício, o que está em harmonia com a depuração dos seus traços, mas o texto da epígrafe superior, correspondente a um trecho das palavras de Cristo no “Sermão da Montanha” (Mt., 5,7), põe em evidência a missão da Santa Casa, algo comum nas igrejas e nos hospitais da mesma invocação (Pinho, 2013, p. 198).

Ao redor do imóvel existiu uma área livre bastante mais ampla do que a que vemos agora. Começou por ser um adro, sacrificado pela regularização da Praça e das ruas que nela desembocam, permanecendo na retaguarda o logradouro, que os arrolamentos dos bens da Santa Casa, nos meados do século XIX, denominaram “quintal”, com duas oliveiras (Ramos [2020], p. [2]; Auto de Inventario, 1860, fl. 30v.). O apertar da malha urbana

Figura 23 – Um trecho da Praça D. Manuel I e da Rua 31 de Maio de 1834 (pormenor), em finais da década de 1960 ou inícios da década de 1970. É visível o “redondo” entre os anexos da igreja da Misericórdia e a casa de habitação construída em 1903. Postal de Representações José Castella, Lagos (cedência de D. Luísa Capela)

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desta área da vila, nos finais do século XIX e, ainda com maior intensidade, nos alvores do século XX, furtou-lhe gradualmente terreno, em prol de construções particulares, à imagem do que sucedera à Travessa do Espírito Santo, pelo que o dito logradouro, depois “quintal”, acabou reduzido a uma pequena rua estreita, a Travessa da Misericórdia (Oliveira, 1932, p. 1, B), a qual viria, mais tarde, a ser ocupada por uma casa de habitação. Esta artéria era também conhecida como Travessa do Banco do Ferrador (Auto de Inventario, 1860, fl. 30v.), pois havia nela uma oficina siderotécnica, o que mostra a centralidade do local, quase ao lado das estalagens, perto da Câmara, de estabelecimentos comerciais e de casas abastadas. Nem sempre o processo de urbanização da zona se revelou pacífico. Em 1903, João António Monteiro solicitou a autorização da Câmara Municipal de Santiago do Cacém para construir uma casa junto à igreja da Misericórdia. A licença foi concedida e comunicada à Junta da Paróquia, para que esta pudesse verificar in situ os alinhamentos da construção. Tendo dúvidas sobre a melhor forma como proceder, a Junta deliberou pedir a opinião técnica do mestre-de-obras municipal, o qual considerou que o novo edifício deveria enfileirar com o da estalagem e, no canto junto à igreja, ser rematado por um “redondo” de alvenaria, para evitar o depósito de imundices. No dia 4 de Abril desse ano, o zelador municipal, a quem cabia a fiscalização do trabalho, deslocou-se ao local, mas o dono da obra, descontente com as indicações recebidas, acabou por agredi-lo (Fiscalização de Obras Particulares, 2010, p. 8). Ergueu-se, porém, o dito “redondo”, que ainda existe.

3. ASPECTOS DO PATRIMÓNIO E DO QUOTIDIANO DA

SANTA CASA A igreja da Misericórdia foi sede da Irmandade, ao longo de quase três séculos, até à extinção. Se não se torna fácil reconstituir, nos nossos dias, como terá sido o seu interior, entretanto esvaziado, importa vislumbrar, pelo menos, duas importantes peças de mobiliário litúrgico que dele fariam parte: o banco onde se sentavam os mesários, disposto na nave, por certo do lado da Epístola, ou seja, à direita de quem entrava na igreja, e com o lugar do provedor marcado de forma especial (era usual ter um espaldar mais alto e de maior aparato); e o altar da capela-mor, dotado do correspondente retábulo, talvez de talha dourada e policromada. Já se colocou a hipótese de que as actividades assistenciais da instituição pudessem decorrer nos modestos anexos do edifício, mas é mais provável que servisse para isto o vizinho hospital do

Espírito Santo, em funcionamento até ao ocaso da Santa Casa, pelo menos; um desses espaços destinou-se a sacristia – talvez acrescentada nos finais do século XVI, período em que passou a ser obrigatória nos locais de culto (Falcão e Quaresma, 2020, I, p. 50) – e outro a casa do despacho. Por ocasião da visitação à igreja, em 1749, D. Frei Miguel de Távora achou-a “muito falta de ornamentos, ainda que, no mais, suficientemente composta e asseada”, e, lembrando ao provedor e aos irmãos que “é também grande obra de Misericórdia” provê-la com alfaias decentes, ordenou-lhes que mandassem fazer esses ornamentos no prazo de um ano. Além disso, interditou que se celebrasse a missa aqui, e nas várias capelas, antes de ter sido celebrada na igreja matriz, com excepção das “missas de alva”, destinadas aos pastores, que saíam para os campos quando principiava a clarear o Sol; e determinou que, quando se fizesse a exposição do Santíssimo Sacramento na igreja da Misericórdia, o prior devia assegurar que tal se realizasse “com a decencia devida, e com os trinta lumes liturgicos” (Oliveira, [s.d.b], p. [5]). Como referimos, o terramoto de 1 de Novembro de 1755 provocou grande devastação no edifício, o que consta da provisão então ordenada pelo visitador ordinário, Doutor Luís Gomes Genuês (Oliveira, [s.d.b], ibid.): “Vi a igreja da Misericordia incapaz de se celebrarem nela os oficios divinos, ameaçando uma grande e consideravel ruina, pelo que mando aos administradores da mesma que dentro de oito meses reparem a mesma igreja [...].” Três anos depois, na Memória Paroquial, Frei António Macelos deixou um interessante depoimento acerca da Santa Casa (Dicionário Geográfico de Portugal, 1758, p. 586): “Tem Caza da Mizericordia, e se ignora a sua Origem por mais / deligencia que se fes; rende huns, ou outros annos sincoenta / mil reis, cuja renda he tãobem do Espirito Sancto, que coad/juva a Mizericordia Uniforme a socorrer a pobreza, e o mais / necessario, e não tem couza notavel, que se possa dar relação.” Dir-se-ia, a ajuizar por este testemunho, que a Santa Casa, embora sem opulência, dispunha de verbas suficientes para exercer com normalidade as suas funções, apesar das reconhecidas carências do hospital do Espírito Santo. A extinção do concelho de Alvalade, em 1836, no âmbito 207


da reforma administrativa imposta pelas novas autoridades liberais, que visou acabar com os municípios mais pequenos, dotados de menores recursos, e a anexação das suas duas freguesias ao concelho de Messejana foram vistas localmente como uma retaliação pelas simpatias miguelistas de boa parte da população alvaladense, mas não deixou de reflectir uma certa decadência da terra, que tal decisão mais veio acentuar. Outra reforma, em 1855, suprimiu o concelho de Messejana, cuja freguesia, assim como as de Alvalade, ficaram integradas no concelho de Aljustrel. A freguesia de Nossa Senhora do Roxo, também conhecida por Casais do Roxo, foi agregada, pouco tempo depois, à de Alvalade. No ano de 1871, após uma petição dos eleitores locais, o território alvaladense transitou para o concelho de Santiago do Cacém (Ramos, [2000], pp. 17-21; Colaço, 2001, pp. 66, B-68,B). Embora na posse de significativo património fundiário, a Irmandade da Misericórdia ressentiu-se da perda da autonomia concelhia e sofreu o forte embate das medidas de desamortização impostas a partir de meados do século XIX (Lopes, 2002, pp. 88-89). Acabou por ser extinta pelo Governo Civil de Beja, através de um alvará com data de 4 de Junho de 1861, que afectou as suas propriedades e rendimentos à Casa Pia da mesma cidade. Esta instituição fora criada poucos anos antes, em 1856, e as autoridades distritais procuravam dotá-la dos meios necessários para o exercício da sua missão. A respectiva administração tomou o encargo de entregar anualmente à Junta de Paróquia, a título de compensação para beneficência, a quantia de 24$000 réis (Oliveira, [s.d.b], p. [6]).

Com o fim da Santa Casa, dispersou-se o seu arquivo, parte do qual ficou na posse de privados, mormente Francisco Soares Victor, tabelião em Messejana (Oliveira, [s.d.b], p. [3]), pelo que, devido à escassez de documentos conhecidos, é muito pouco o que se sabe acerca da história da instituição. O Padre Jorge de Oliveira pôde consultar, entre outros parcos elementos, os registos alusivos às eleições, ao longo de três anos consecutivos, para a Mesa da Irmandade, em cujas listas se integravam algumas das figuras de maior destaque da terra. Na eleição do dia 23 de Julho de 1752, esse órgão administrativo ficou assim constituído: Gaspar Nunes Lança, provedor; o beneficiado da igreja matriz, Padre Inácio da Costa Godinho, escrivão; Manuel Fernandes, tesoureiro; Pedro Mestre, Manuelino [sic] Gonçalves, Florêncio Gonçalves, António Pinheiro, Pedro Lopes Pelaio e João Rodrigues, irmãos. Na eleição de 1754, saíram escolhidos António Parreira Correia, provedor; Timóteo Santiago de Matos, escrivão; João Rodrigues Boto, Miguel Martins, Sebastião Fernandes, Alexandre Gonçalves, Pedro Lopes, José António de Oliveira, Luís Gonçalves Cordeiro e Manuel Pereira, irmãos. Desconhece-se o nome do tesoureiro, certamente um destes mesários, mas, em contrapartida, sabe-se os nomes do pessoal ao serviço da Misericórdia: Francisco da Costa, cirurgião; Isidoro da Fonseca, boticário; e José António de Oliveira, barbeiro-sangrador, que era mesário. E, na eleição de 13 de Abril de 1755, permaneceram o provedor e o escrivão, assim como os irmãos Miguel Martins, Sebastião Fernandes, Alexandre Gonçalves e Manuel Pereira, entrando ainda os irmãos Miguel Pereira, Simão Rodrigues e António Lopes (Oliveira, [s.d.], p. [6]). Ainda que muito limitada e referente a um período já tardio na vida da Santa Casa, esta amostra permite, mesmo assim, entrever uma microparcela da respectiva composição social, que abarcava, consoante era habitual, irmãos de primeira e de segunda condição, ou seja, os nobres – ou a eles equiparados – e os demais, que viviam do trabalho das próprias mãos. Quem estiver familiarizado com a dinâmica da comunidade identificará aqui alguns dos seus maiores, a par de um certo carácter representativo das diversas classes e profissões, à semelhança das Misericórdias de outras vilas da região, v.g., Odemira e Colos (Quaresma e Falcão, 2000, I, pp. 138-145; II, pp. 186-187).

Figura 24 – Livro de Inventário da Santa Casa da Misericórdia de Alvalade, 1854-1860 (Beja, Arquivo Distrital, ADBJA/GCB/AC/ALV/0001)

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O inventário mais antigo do património da irmandade de que há notícia data de 1854, mencionando, entre os bens


de raiz, quatro prédios urbanos (Ramos, [2020], pp. [2] e [4]): • a ermida do Divino Espírito Santo, que se situava na Rua de Lisboa e confrontava em parte, pelo norte e poente, com casas e quintal de António Corrêa, pelo sul com a Rua de Lisboa e, pelo nascente, com a Travessa (do Espírito Santo); • a igreja da Misericórdia, que constava, além da igreja propriamente dita, de sacristia, casa do despacho e quintal com duas oliveiras, e confrontava pelo norte com a Rua da Cruz, pelo nascente com a Travessa do Banco do Ferrador – a Travessa da Misericórdia –, pelo sul com a Rua das Estalagens e pelo poente com a Praça; • o celeiro onde eram arrecadadas as “vendas a favor a generos” da irmandade, que se situava na Rua das Estalagens e, segundo apontámos, confrontava pelo norte com casas de Joaquim António, pelo nascente com casas de Dionísio José, pelo sul com a dita Rua das Estalagens e pelo poente com o hospital; • a "morada de casas térreas", em número de três, na Rua da Cruz, que serviam de hospital e confrontavam pelo norte com a dita rua, pelo nascente com casas de Francisco António, pelo sul com a Rua das Estalagens e pelo poente com as casas de Matias Vaz Ramires.

Figura 25 – Antiga casa do despacho da Irmandade da Santa Casa, anexa à igreja da Misericórdia, em 1932 (arquivo da família Lobo de Vasconcellos)

No tocante a pratas, mencionam-se um cálice, com patena e colher, e uma custódia. De “estanho e metal”, existiam dois castiçais, duas campainhas e um par de galhetas e respectivo prato, “tudo de estanho”. Imagens, as

do Senhor Morto, de Santo Amaro e de Nossa Senhora da Conceição, além de um Crucifixo. Evocam devoções assaz presentes na região desde tempos antigos. Sob a rubrica “móveis” estão agregadas, um pouco ao arbítrio do inventariante, alfaias desta e de outras tipologias: uma mesa e quatro bancos de pinho, novos; o túmulo, em “pau de rosa” (pau-rosa), que servia, durante a Semana Santa, nas funções do Enterro do Senhor, muito gasto; um caixão grande, com quatro gavetas, e dois armários, destinados à arrecadação dos paramentos, na sacristia; uma cruz pequena; quatro forquilhas, certamente usadas na elevação do andor; seis varas do pálio; quinze paus “que servem para tochas”; a tumba, com colchão, empregue na referida procissão do Enterro; quatro candeeiros “em mau uso”; umas matracas; e uma estante de missal. O rol dos têxteis é extenso: um pálio de damasco roxo, com seis cordões; um pano do mesmo, com renda dourada, destinado à cerimónia da Adoração da Cruz; um véu de “fumo” (isto, negro-de-fumo), com ramos também dourados, para tapar o túmulo do Senhor; um pano de cetim azul, empregue como colchão para o mesmo túmulo, e o respectivo travesseiro; três camisas de tafetá roxo; um pano de “mulher Verónica”, sudário com a Santa Face ou Vera Efígie de Cristo, levado pela jovem que representava a figura de Santa Verónica, a tradicional Padeirinha, na procissão do Enterro do Senhor, em Sexta-Feira Santa, e cantava o responsório O vos omnes (Giacometti e Lopes-Graça, 1981, pp. 243-244, fig. 5; Cutileiro, 2004, pp. 225-226); duas casulas, um manípulo, uma pasta de corporais e dois véus de cálice (velhos), de damasco branco e vermelho; duas estolas de damasco branco; quatro panos pequenos de tafetá preto; um frontal de damasco branco e vermelho, em meio uso; um frontal de damasco vermelho, guarnecido com galão amarelo, muito velho; um pano de estante de missal, de damasco vermelho, guarnecido com galão amarelo; um taleigo de cetim, novo; um pano de ganga da Índia, que servia para tapar a porta da igreja, na Semana Santa, muito velho; nove balandraus de lã pretos, também muito velhos, e oito de paninho, ou seja, panico-rei, um algodão fino (Houaiss, 2003, V, p. 2743, A, s.v. “Paninho”), estes novos. Quanto a “roupa branca”, havia uma alva e um par de corporais de pano de linho, em bom uso; três amitos e dois manutérgios do mesmo e um cordão de linho, usados; um sanguinho do mesmo, já muito gasto; uma toalha de altar, de paninho, muito velha; e duas toalhas de pano guarnecidas de renda, para o altar, novas. 209


Deveras interessante, a secção de “Livros e mais documentos” integrava, a par de um missal novo e outro velho, o conteúdo do antigo cartório da Santa Casa: dez livros de Contas, findos, alguns totalmente arruinados; três de Eleições, no mesmo estado; quatro de Lançamento das Décimas, referentes aos anos de 1766, 1792, 1808 e 1812; oito de Registo de Leis, Ordens e Provisões, antigos e em mau uso; um de Inventário, findo, e outro novo; um de Sessões, findo, e outro novo; um de Contas; um de Matrículas; um de Orçamentos; um Diário de Conta Corrente, novos; um de Arrematações, antigo, principiado em 1834, e outro em bom uso; um caderno que servia de inventário; uns autos de sentença civil de adjudicação das casas da Rua das Estalagens, que foram de João Pedro; um auto dos termos de arrematação de arrendamentos feitos pela Misericórdia na Herdade do Monte Branco; uma relação das propriedades determinada pelo Doutor Jacinto Paes Moreira de Mendonça, certamente o ouvidor e provedor da comarca do Campo de Ourique (Varella, 2011, p. 245); e instruções do Governo Civil, datadas de 31 de Agosto de 1853. Os “móveis” do hospital surgem descritos numa lista própria: um colchão de pano de linho, com enchimento de lã, em muito mau uso; um outro colchão, pequeno, em mau uso; uma coberta de chita branca, muito velha; um travesseiro de riscado, velho; quatro lençóis de pano cru, em mau uso, e cinco do mesmo pano, em bom uso; uma fronha de chita, velha; um guarda-cama, em meio uso; uma coberta de chita, também em meio uso; um cobertor de “dados” (?) pretos e brancos, em meio uso; uma arca de pinho, com fechadura, em mau estado; um caixão grande, também de pinho, em muito mau uso; duas esteiras de empreita, ou seja, esparto (Houaiss, 2003, III, p. 1462, C, s.v. “Empreita”), velhas; dois pratos pequenos de estanho, em bom uso; e um vaso, uma chocolateira e uma tigela de barro (Ramos, [2020], pp. [1-4]). É impressionante verificar como, decorridos tantos anos, os espaços e o espólio da instituição assistencial quase não se diferenciavam, em termos substanciais, dos que o mestre D. Jorge e os visitadores dos inícios do século XVI tinham fiscalizado. Tudo escasso, para não dizer no limiar da penúria. Nesses tempos marcados, dentro da sua longa duração, pela “economia de pobreza”, aquilo que os recursos locais facultavam não daria, aparentemente, para muito mais. Mutatis mutandis, o panorama era bastante similar em vilas de maior importância, v.g., Santiago do Cacém (Soares, 1987, pp. 87-101). Diversas alfaias referidas figuravam nas procissões da Semana Santa, em cuja organização a Irmandade da Miseri210

córdia tinha um papel de relevo, designadamente na mais solene, a de Quinta-Feira Santa, dita do Enterro do Senhor, em que saíam as imagens do Senhor Morto e de Nossa Senhora da Soledade. Nela se incorporavam os juízes, vereadores e oficiais da Câmara, com o escrivão e o tabelião, além de todos aqueles que desempenhavam cargos públicos. O cortejo era precedido pelo porteiro da Santa Casa, com a matraca, e, atrás dele, a bandeira desta irmandade e o guião das Almas, seguindo-se o esquife debaixo de um pálio roxo. Também os irmãos da Misericórdia iam em posição de destaque, vestidos com opas negras e empunhando cada um a sua tocha de cera. Entre as figuras alegóricas que desfilavam no préstito, destacava-se a personificação da Verónica (Oliveira, [s.d.b], [s.n.]), interpretada, como vimos, por uma jovem com talento vocal. Outro inventário dos bens, realizado em 1860, um ano antes da dissolução da irmandade, pelo comissário que o Governo Civil de Beja para isso nomeara, Joaquim Manuel Ferreira Lobo, na presença do prior de Alvalade, Padre Bernardo António de Sousa, de José Vilhena de Matos Pereira e de André Lança, respectivamente provedor, escrivão e tesoureiro da Mesa (Auto de Inventario, 1860, fls. 25-25v.; cfr. Oliveira, [s.d.b], p. [4]), não se diferencia muito, quanto aos “prédios”, mas oferece outras indicações dignas de nota, a começar pela descrição dos anexos da igreja da Misericórdia: além da sacristia e da casa de despacho, havia a “casa da Tumba” (Auto de Inventario, 1860, fl. 30v.), onde se guardava o esquife usado pela confraria nos enterros (Bucho, 2020, p. 32).

Figura 26 – "Auto de Inventario" dos bens da Santa Casa da Misericórdia de Alvalade em 1861 (Livro de Inventário da Santa Casa da Misericórdia de Alvalade, 1854-1860 (Beja, Arquivo Distrital, ADBJA/ /GCB/AC/ALV/0001, fls. 29v.-30)


Figura 27 – Carta Agricola de Portugal, folha 188 [pormenor], Lisboa, Direcção-Geral da Agricultura, 1892

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Foros, chegavam a 37, distribuídos pelas duas freguesias do concelho, o que evidencia a importância da Santa Casa enquanto senhoria, assim como o seu peso na economia local e regional (Auto de Inventario, 1860, fls. 35-69; Oliveira, [s.d.b], p. [4]). Se a maioria dos foreiros era do próprio concelho, alguns residiam em localidades dos termos vizinhos e, num caso, até do Algarve. Esta listagem de bens, além de permitir compreender a repartição da propriedade, rural e urbana, evidenciando a influência da Irmandade da Misericórdia na vida socioeconómica do território a que estava profundamente vinculada, proporciona dados muito úteis acerca das culturas (e outras actividades nele praticadas) e das diferentes modalidades de exploração: pequenas parcelas, os cercados e courelas, em torno da vila; e herdades e montes nas zonas mais afastadas. Constitui, pois, de modo antecipado, um valioso paralelo para o notável levantamento promovido pela Direcção-Geral de Agricultura em finais do mesmo século (Pery, 1894, pp. 629-773, especialmente pp. 682-687). Também revela grande interesse toponímico, sendo de assinalar, especialmente, duas designações conferidas na área ao rio Sado: Ribeira Grande e Ribeira de São Romão (informação de José Matias). O acervo artístico não sofreu alterações no que toca às imagens. Relativamente às alfaias em prata, assinala-se que o cálice, lavrado e dotado de patena e colher, “se arma em custódia”, sendo, pois, uma custódia-cálice (F[alcão], 2003, III, pp. 188-190, n.º 88), que pesava 12 onças e 7 oitavos, cerca de 370 g (Marques, 1968, p. 370); e faz-se menção de uma coroa antiga, lavrada, outrora dourada, que pesava 13 onças e 7 oitavos, aproximadamente 397 g (Auto de Inventario, 1860, fl. 26; cfr. Oliveira, [s.d.b], p. [5]).

os dos anos de 1733-1852, 1753-1781, 1782-1799, 1799-1821 (abrangendo também 1821-1822 e 1844-1851) e 1851-1860; e um outro, de Fazenda e Inventário, continha igualmente as contas de 1828 a 1831. Dignos de nota, ainda, um treslado do aforamento de um olival a São Sebastião, feito a José Joaquim Cordeiro, em 12 de Fevereiro de 1792; e uma certidão de inventário de Manuel Carvalho pela qual se infere que umas casas na Rua da Estalagem foram dadas à Santa Casa por conta do que o mesmo devia no valor de 724$000 réis (Auto de Inventario, 1860, fls. 26v.-27). No hospital existiam, agora, um colchão de lã, um enxergão velho, seis lençóis, um travesseiro velho, uma fronha velha, duas mantas de lã, duas cobertas de chita, um guarda-cama, dois pratos de estanho e uma tumba (Oliveira, [s.d.b], p. [4]). Várias fontes atestam que a manutenção da instituição assistencial e o acolhimento – e mesmo o tratamento – dos que eram aí recebidos corria a cargo de hospitaleiros, tanto homens como mulheres, nomeados pela Misericórdia. Conhecemos os nomes de alguns deles, por terem sido enterrados na igreja da Santa Casa: em 29 de Novembro de 1689, Henrique Raposo (Registos de Óbitos, 1693-1698, fl. 32); em 9 de Agosto de 1690, João Gomes (Registos de Óbitos, 1693-1698, fl. 80v.); e, em 22 de Janeiro de 1709, Maria Rodrigues (Registos de Óbitos, 1699-1732, fl. 53). Havia também, segundo referimos, colaboradores mais especializados, como o cirurgião, o barbeiro-sangrador e o boticário. A partir de certa altura, foi o cirurgião do partido concelhio, pago pela Câmara, quem se incumbiu dos doentes atendidos no hospital ([Oliveira], 1932, p. 1, A). Deve-se ao Padre Jorge de Oliveira o traçar de um quadro assaz objectivo sobre o estertor da Santa Casa em tempos adversos às vivências comunitárias de outrora (Oliveira, [s.d.a], pp. [3-4]):

Figura 28 – Praça D. Manuel I (pormenor). Painel azulejar de Gilberto Renda. 1931-1932. Santiago do Cacém, Estação dos Caminhos-de-Ferro (fotografia de José Matias)

Livros de Registo de Leis, Ordens e Provisões, havia sete, iniciados, respectivamente, em 1786, 1808 (2), 1814 (2), 1816 e 1817; de Contas, cinco antigos, em mau estado, e 212

“A Misericordia não possuia bens avultados e era modesta a assistencia que prestava. [...] Os proprietarios que até ao comêço do sec. 19.º, viviam nas suas propriedades, auxiliavam esta instituição beneficiente, com socorros em generos, e por isso os pobres tinham sempre ali bôa acolhida. As convulsões politicas da primeira metade do sec. 19.º afugentaram os proprietarios e tudo caiu numa extrema penúria. A Misericordia e irmandades, tudo foi extincto, por falta de recursos e de gente que se quisesse ocupar de zelar o pouco que restava.”


Com o desaparecimento da irmandade que sustentava o culto na igreja da Misericórdia, esta passou para a tutela da Junta de Paróquia, mas o seu uso religioso entrou rapidamente em declínio. Nacionalizada após o Decreto de Separação da Igreja e do Estado, em 1911, serviu di-

Figura 29 – Praça D. Manuel I. Inícios da década de 1940. São muito perceptíveis, na casa senhorial da família Lança Parreira, os danos causados pelo ciclone de 15 de Fevereiro de 1941 (cedência de D. Ângela de Atayde e Dr.ª Ana de Atayde)

versos fins, entre eles o de sede da Junta de Paróquia (a partir de 1916, Junta de Freguesia), posto de Registo Civil e Escola Feminina. Um painel de azulejos, do conjunto realizado pelo pintor Guilherme Renda, em 1931-1932, para a Estação dos Caminhos-de-Ferro de Santiago do Cacém – verdadeira panorâmica de paisagens e outros aspectos da vida rural e urbana do concelho –, alusivo à Praça D. Manuel I, mostra o edifício com a porta parcialmente coberta de editais. Nesta composição, rica em pormenores, vêem-se moldurações na verga do portal, ao centro e nos ângulos, e as duas lápides que o encimam aparecem sobrepostas uma à outra; são interpretações livres do artista, face à ignota fotografia que lhe serviu de referência. Os anexos receberam, além de moradores, uma oficina de sapateiro e, mais tarde, o Dispensário Anti-Sezonático, instalado em 1945, para combate à malária que fustigou esta zona – e conhecido localmente como o “Pica na Orelha” (informação de Luís Pedro Ramos, em 2020). Mais perto dos nossos dias, funcionaram no imóvel o Agrupamento de Escuteiros e a Comissão de Festas.

Figura 30 – Desfile das alunas da Escola Feminina, que funcionava na igreja da Misericórdia, durante uma cerimónia de comemoração do 25.º aniversário da entrada em funções de Oliveira Salazar no Governo (1953). Era usual, então, que o pessoal discente e docente se incorporasse nos actos oficiais (cedência de D. Arlete Messias)

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de origem espanhola, José de Escobar, que se estabelecera na Rua do Raimundo, em Évora, mas trabalhou um pouco, de forma itinerante, por toda a região, mantendo intensa actividade, bem documentada entre 1585 e 1622. Teve, para isto, o apoio de vários colaboradores, alguns seguramente da própria família, que prosseguiram – não sem deixarem de introduzir, por vezes, mudanças significativas – as opções compositivas e o estilo do operoso mestre.

Figura 31 – Igreja da Misericórdia. Aspecto da nave durante as obras de 2017. É bem visível a lápide tumular de Frutuoso Pires, com as letras avivadas a negro. Ocupava parcialmente o vão de uma porta lateral que dava para a Rua da Cruz, aberta em data indeterminada, talvez já nos inícios do século XX (fotografia de José Matias)

Quando se procedeu à reafectação da igreja aos seus novos destinos, ela evidenciava avançado estado de ruína, após muitos anos de abandono, pelo que a Junta de Freguesia realizou obras, em 1925. Sujeita, como outros sectores do edifício, aos severos efeitos do terramoto de 1755 – cujas consequências ainda hoje se evidenciam, designadamente nas paredes do lado norte –, a cúpula da nave soçobrara nos inícios do século XX e, já o referimos, deu lugar a uma estrutura de madeira. Procedeu-se à demolição do altar da capela-mor e as pinturas a fresco que guarneciam o recinto foram cobertas por grossas camadas de cal. Removida naquele ano de 1925 (Oliveira, [s.d.b], p. [3]) – ou em 1932 (Oliveira, [s.d.a], p. [3]) –, a lápide tumular de Frutuoso Pires acabou por ir parar, decerto a instâncias do Padre Jorge de Oliveira, à igreja matriz (Oliveira, [s.d.b], ibid.). Em 1953, voltando a Junta de Freguesia a intervir na antiga igreja da Misericórdia, o seu presidente, José Alves de Atayde, genro daquele pároco, fez regressar a inscrição ao edifício a que pertencia, onde ficou encastrada no meio da parede da nave, do lado do Evangelho (informação de Luís Pedro Ramos, 2019). Seria recolocada na implantação original em 2018.

4. UMA ANTEVISÃO DO CÉU Breves décadas após a construção da igreja da Misericórdia, os responsáveis desta instituição decidiram promover o enriquecimento da capela-mor com uma vasta composição mural, solução muito difundida no Alentejo durante a viragem do século XVI para o século XVII. A escolha recaiu sobre uma oficina epígona de um pintor 214

Escobar cultivou quer a pintura de cavalete, quer a parietal, além de obras menores, entre elas a ornamentação de móveis ou dos sambenitos com que saíam, nos autos-de-fé, os condenados pela Inquisição, mas notabilizou-se especialmente por realizar extensos ciclos fresquistas, cujos exemplos se contam às dezenas e fizeram escola entre nós. Tão abundante produção, em perfeita sintonia com a espiritualidade da Reforma Católica, caracteriza-se por reunir a eficiência catequética e o aparato cenográfico, ao mesmo tempo que valorizou um marcado pendor decorativo, suscitando o interesse de larga clientela. Contribuiu, assim, para popularizar modelos da arte maneirista (Serrão, 2000, pp. 146-148; Serrão, 2002, pp. 257, B-258, B). Alvalade fez parte das localidades do Baixo Alentejo que foram percorridas pelo artista e pelos seus companheiros. Esta parceria executou, em inícios do século XVII, o painel, a óleo sobre tela, de São Miguel e as Almas do Purgatório, para o retábulo do altar da Irmandade das Almas, outrora um dos mais relevantes da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição da Oliveira (Falcão, 2000, I, p. 134, fig. 199). Na igreja da Misericórdia da limítrofe vila de Messejana, conserva-se uma obra análoga, vinda da igreja matriz de Nossa Senhora dos Remédios. Também em Santiago do Cacém existem (ou existiram) trabalhos do mestre, com ênfase para a Adoração dos Pastores e a Adoração dos Reis Magos, tábuas pintadas a óleo que ornaram os laterais do retábulo do altar-mor da desaparecida igreja de Nossa Senhora do Monte – actualmente, no Museu de Arte Sacra local (Falcão e Pereira, 1988, pp. 155-186; Serrão, 2000, pp. 146-149;Falcão, 2013, pp. 49-51). O ciclo pictórico da igreja da Misericórdia afigura-se obra de continuadores ou émulos da produção escobariana. Efectivamente, revela afinidades com a sua maneira, em especial no partido compositivo, na modelação das figuras e no tratamento dos adereços e outros aspectos decorativos. Sem embargo, tanto a estrutura geral do conjunto e o cânone das proporções como a interpretação das anatomias e a paleta cromática denotam um estilo


distinto, já característico de uma fase mais avançada do século XVII, quando o influxo epimaneirista se tornava marcante no território meridional e artistas radicados em Beja, Moura, Serpa, etc., disputavam a primazia antes outorgada aos mestres eborenses. Podemos aproximá-lo do conjunto, um pouco mais antigo – data dos finais do século XVI –, que ornamentava a capela de Nossa Senhora do Rosário, na igreja paroquial de São Francisco da Serra (Santiago do Cacém); entre os elementos sobreviventes desta série, alusiva à Virgem, destacam-se uma truncada Árvore de Jessé, na parede fundeira, e os painéis com a Virgem Apocalíptica e Anjos Músicos, no enxalço. Quanto ao monumento que estudamos, a empreitada deve ter-se estendido à ornamentação de toda a capela-mor, mas, exceptuando alguns ténues vestígios esparsos pelas paredes desta ("picadas" quase na íntegra durante o terceiro quartel do século passado), apenas subsistiu, praticamente intacta, a grandiosa pintura a fresco da cúpula, figurando a Santíssima Trindade e Nossa Senhora. Se a cobertura hemisférica evoca, já por si, o Céu, a sua forma eloquente acolhe aqui uma antevisão da realidade celeste, centrada no mistério das Três Pessoas Divinas e na ligação destas à Virgem Maria, que, em obediência à vontade do Padre Eterno, concebeu por obra e graça do Espírito Santo e deu à luz Jesus Cristo, o Filho do Homem. Deus Pai surge como o “Ancião dos Dias”, um idoso barbudo; enverga manto imperial, tem a cabeça coroada pela tiara, abençoa com a mão direita e ampara sobre os joelhos, com a esquerda, o orbe – este é, tal como o manto imperial e a tiara, um símbolo da omnipotência de que goza –, ao passo que os sapatos que calça lembram os múleos usados pelos papas. Jesus Cristo está à Sua dextra e abençoa do mesmo modo, segurando, na mão esquerda, o estandarte da Ressurreição. Pai e Filho, assentes sobre arcos zodiacais, cruzam olhares. Entre ambos, mais acima, sobressai a pomba, de asas abertas, alusiva ao Espírito Santo. No mesmo eixo, mas em plano ligeiramente inferior, Nossa Senhora, com túnica vermelha e manto azul, que lhe servem de véu, em obediência à regra iconográfica (Trens, [1947], pp. 627-632), olha para o alto, com as mãos postas, a contemplar o mistério trinitário, em atitude orante e de humilde aceitação da vontade divina, segundo uma velha tradição das Sagradas Escrituras (Reynolds, 2019, p. 324). As quatro figuras encontram-se aureoladas por resplendores, mas avulta o do Padre Eterno, triangular, enquanto os demais são circulares. Em revoadas, pequenos anjos, cujos vultos se limitam às cabeças (maioritariamente com cabelos louros) e às asas

desfraldadas (simplificações das figuras de querubins e serafins), aparecem dispostos à roda do grupo divino, constituindo o seu préstito de honra. Uma teoria de anjos músicos fecha o conjunto e imprime ainda maior aparato a esta jubilosa exaltação da Santíssima Trindade

Figura 32 – Árvore de Jessé. Século XVI (finais). Capela de Nossa Senhora do Rosário, igreja paroquial de São Francisco da Serra (Santiago do Cacém) (fotografia de JVZ Audiovisuais)

Figura 33 – Virgem Apocalíptica. Século XVI (finais). Capela de Nossa Senhora do Rosário, igreja paroquial de São Francisco da Serra (Santiago do Cacém) (fotografia de JVZ Audiovisuais)

Figura 34 – Anjos Músicos. Século XVI (finais). Capela de Nossa Senhora do Rosário, igreja paroquial de São Francisco da Serra (Santiago do Cacém) (fotografia de JVZ Audiovisuais)

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Figura 35 – Santíssima Trindade e Nossa Senhora. Século XVII (inícios). Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (fotografia de Rita Neves)

e da Mãe de Deus. São jovens alados que envergam vestes litúrgicas e tangem instrumentos de corda (alaúde, harpa, rabel) e de sopro (charamela, corneta, órgão), pressupondo-se que outros anjos actuem na qualidade de cantores. Como determina a regra, ocorre aqui um certo equilíbrio entre instrumentos “altos” ou “fortes” e “baixos” ou “doces”, em obediência a velhos preceitos estéticos e técnicos que a iconografia musical enalteceu (Winternitz, 1979, pp. 137-149, especialmente p. 145). Uma esplêndida moldura de grinaldas reveste a cimalha, de modo a tornar evidente a separação entre o Céu e a Terra, o Alto e o Baixo, e a festiva visão de uma intimidade sobrenatural que a Glória angelical exalça. Isto corresponde, em pleno, à espiritualidade própria de uma época em que ecoavam ainda, com veemência, as 216

directrizes do Concílio de Trento (1546-1563), reafirmando os grandes princípios do Catolicismo, sobre a iconografia trinitária (Lapierre, 2014, p. 2488, B, s.v. “Trinité”). José de Escobar e os seus prosseguidores souberam glosá-los à perfeição, indo ao encontro das expectativas, em termos de fé e de gosto, de uma comunidade rural naturalmente predisposta à aceitação de tal maneira arcaizante, quase ingénua, em que preponderam os efeitos decorativos. Do ponto de vista iconológico, sobressai a absoluta fidelidade aos ensinamentos da Igreja, algo que se revestia da maior importância nesses tempos de afirmação da ortodoxia em que aquela temática era vigiada com especial interesse pelas autoridades religiosas, face às diferentes interpretações suscitadas quer pela fé popular, quer pelo Protestantismo (Gonçalves, 1962, pp. 10-11; Filoramo, 2008, pp. 245-246, s.v. “La Trinité”).


Figura 36 – Santíssima Trindade. Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (pormenor) (fotografia de Rita Neves)

Figura 38 – Anjo a tanger órgão, cujo fole é accionado por outro anjo. Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (pormenor) (fotografia de Rita Neves)

Figura 37 – Nossa Senhora. Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (pormenor) (fotografia de Rita Neves)

Figura 39 – Anjos a tangerem harpa e alaúde. Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (pormenor) (fotografia de Rita Neves)

Figura 40 – Anjos a tangerem charamelas e corneta. Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (pormenor) (fotografia de Rita Neves)

Figura 41 – Anjo a tanger rabel. Igreja da Misericórdia, cúpula da capela-mor (pormenor) (fotografia de Rita Neves)

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Mistério dos mistérios da fé cristã, de cuja identidade teológica é parte essencial, o dogma da Trindade afirma a existência de um Deus trinus et unus, ou seja, três pessoas diferentes, mas uma só natureza: o Pai, “criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”; o Filho, Jesus Cristo, “gerado e não criado” pelo Pai; e o Espírito Santo, que não foi gerado, mas procede do Pai e do Filho (Parente, 1954, pp. 529-541; Breuning, 1993 pp. 149-162; Gitton, 2010, pp. 570-573). Esta doutrina, sem dúvida extremamente complexa, guarda resquícios de tradições mais antigas, embora se inspire, de forma concreta, no mandato da “missão universal”, transmitido por Cristo aos apóstolos quando lhes apareceu, sobre um monte da Galileia, pela última vez, como narra o Evangelho de São Mateus (28,18-20): “Foi-me dado todo o poder no Céu e na Terra. Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.” Eis um imperativo ligado, evidentemente, à revelação trinitária que ocorreu a seguir ao baptismo de Jesus, por São João Baptista, no rio Jordão (Mt., 3,16-17;Mc., 1,911;Lc., 3,21-22; Io., 1,31-34): “Uma vez baptizado, Jesus saiu da água e eis que se rasgaram os céus, e viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre Ele. E uma voz vinda do Céu dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu agrado.»” O carácter intrincado do tema e a resistência da Igreja em mostrar, sob uma forma naturalista, Deus Pai, por ser invisível e, logo, incognoscível, explica a sua aparição tardia na arte religiosa. Durante a Antiguidade e grande parte da Idade Média, optou-se, em geral, pela representação eminentemente simbólica da Santíssima Trindadade, dada, sobretudo através de ideogramas, entre eles triângulos, trilóbulos ou círculos. Surgido no século X e aprimorado no século XII – etapa-chave da história da arte cristã ocidental –, o modelo de tríade viria a generalizar-se com a inspiração do Renascimento, humanizando o Divino. No século XV, após um demorado processo de diferenciação das três pessoas da Trindade, triunfou o modelo canónico do Pai Eterno como um velho de longas barbas, do Filho como um homem na força da vida e do Espírito Santo como uma pomba (Reynaldi, 1958, p. 1184, B; Réau, 1996, I, 2, pp. 47-50; cfr. Braunfels, 1990, pp. 525-536; Bœspflug, 2008, pp. 197-235;Bœspflug, 218

2008, pp. 940, B-942, A). Com o advento da arte do século XVI, em que abunda o requinte cenográfico, tornou-se corrente figurá-los numa nuvem (Wehr, 1954, p. 545), de modo a deixar patente o topos celeste. É este arquétipo, grato à imagética da Contra-Reforma, pela sua fidelidade a princípios doutrinais repetidos em Trento (Réau, 1996, I, 1, p. 47), que pauta a composição mural da igreja da Misericórdia, certamente não alheia a protótipos gravados, a que Escobar recorreu de modo bastante livre. Vemo-lo aqui interpretado segundo um esquema triangular que define, per se, como frisámos, uma forma eloquente do ponto de vista da afirmação do símbolo. As figuras de Deus Pai e de Deus Filho, situadas no mesmo plano, inclinam-se ao de leve para o centro. Um pouco acima, ressalta a imagem do Espírito Santo sub specie columbæ, de acordo com o modelo canónico. Está alinhada com a de Nossa Senhora, definindo um eixo reitor da composição, o que salienta a realidade da Encarnação: foi por obra e graça do Espírito Santo que Maria concebeu, sem pecado, Aquele que veio redimir a Humanidade, a cujo destino a Sua Mãe está estreitamente associada. Todos os atributos do Padre Eterno – resplendor em triângulo, percorrido por um tracejado que sugere as radiações projectadas a partir dele, tiara, orbe, manto – correspondem também à normativa iconográfica (Réau, 1996, I, 1, pp. 47-50), não faltando, sequer, o pormenor dos múleos que, a par daquela mitra, evocam a imagem dos sumos pontífices (Berthod, Favier e Hardouin-Fugier, 2015, p. 357, s.v. ”Mule”). Reconhece-se nisto a imagem de Deus como Imperador e Papa Celeste, grato à exaltação da Santa Sé nos tempos conturbados em que a autoridade pontifícia era posta em causa pelo Protestantismo, o que desencadeou a sua reafirmação pelas instâncias católicas (Mâle, 1985, pp. 81-84). Jesus Cristo surge à direita do Pai, no lugar de relevo designado por Este, em obediência ao preceito do Salmo 110 [109],1: “Disse o Senhor ao meu senhor: «Senta-te à Minha direita, e Eu farei dos teus inimigos um estrado para os teus pés.»”, Uma imagem que foi largamente glosada pela tradição do Novo Testamento (Mt., 22,44; 26,64; Mc., 12,36; 14, 62; 16,19; Lc., 20,42-43; 22,69; Act., 2,34; Rom., 8,34; I Cor., 15,25; Eph., 1,20; Col., 3,1; Heb., 1,3-13; 8,1; 10, 12-13; 12,2) e ganhou foros de regra na arte cristã (Réau,


1996, I, 1, p. 46). Já é menos habitual, porém, o facto de Esse mesmo Cristo ostentar, no caso do vertente tema, o estandarte, símbolo da Sua vitória sobre a morte, geralmente vinculado à iconografia da Ressurreição e da Descida ao Limbo (Hall, 1987, p. 57, B, s.v. “Bandera”; Réau, 1996 I, 2, p. 567), o que faz sobressair o carácter escatológico da cena. Mais surpreendente ainda se revela a presença de Maria, orante e contemplativa, algo usual nas figurações da Coroação de Nossa Senhora, mas bastante rara nas da Santíssima Trindade. Não obstante alguns investigadores terem sugerido uma identificação com aquele tema (Freitas, 2016, pp. 28, B-29, A), a imposição da coroa está omissa, sendo claramente substituída pela bênção. Esta mudança reforça o conceito de “Quaternidade Mariana” – para citarmos uma expressão difundida por Louis Réau – que se difundiu no século XV e constituiu um reflexo, aliás muito perceptível aos olhos dos teólogos coevos, do extraordinário incremento, em finais da Idade Média, do culto à Mãe de Deus (Réau, 1996, I, 1, p. 51; Bœspflug, 2008, pp. 277-279). A Virgem, progenitora do Rei Messiânico, não podia deixar de se encontrar intimamente unida ao processo de edificação do Reino de Deus, merecendo, pela fidelidade à vontade divina, ser glorificada no Céu, a par das Três Pessoas Divinas, entre a corte dos anjos (Falcão, 2004, p. 105, B, s.v. “Coroação”). Ela configura, assim, uma espécie de feminidade na estrutura trinitária (Alonso e Picaza, 1995, pp. 1242-1263), ideia que a cultura do Renascimento desenvolveu. Como cantou o marquês de Santillana, Íñigo López de Mendoza, nos meados do século XV, ao evocar uma das Doze Alegrias de Maria, a Anunciação (López de Mendoza, 1980, II, p. 574; cfr. Twomey, 2019, p. 375), “Gózate, gozosa Madre gozo de la humanidad, templo de la Trinidad, elegido por Dios Padre Virgen que por el oido Conçepisti [...].” Trata-se de exprimir a ideia, que remonta aos ensinamentos da Patrística, de uma “suprema dignidade” da Mãe de Deus (Price, 2019, p. 74), conceito patente na composição parietal em apreço. São Clemente, patriarca de Alexandria, por ocasião da homilia aos Padres do I Concílio de Éfeso, em 431, onde teve um papel da maior importância, enunciou os grandes princípios da associação, de natureza primordialmente contemplativa (Fas-

tiggi, 2019b, p. 464), entre a Santíssima Trindade e a Mãe de Deus, tecendo um extraordinário louvor a Esta (Cordeiro, 2015, p. 1178): “Nós Vos saudamos, ó mística e santa Trindade, que nos reunistes a todos nós nesta igreja de Santa Maria, Mãe de Deus. Nós Vos saudamos, ó Maria, Mãe de Deus, venerando tesouro de toda a terra, lâmpada inextinguível, coroa da virgindade, ceptro da doutrina verdadeira, templo indestrutível, morada d'Aquele que nenhum lugar pode conter, Mãe e Virgem, por meio da qual nos santos Evangelhos é chamado bendito O que vem em nome do Senhor. Nós Vos saudamos, ó Maria, que trouxestes no Vosso seio virginal Aquele que é imenso e infinito; por Vós, a santa Trindade é glorificada e adorada; por Vós, a cruz preciosa é adorada no mundo inteiro; por Vós, o Céu exulta; por Vós, alegram-se os Anjos e os Arcanjos; por Vós, são postos em fuga os demónios; por Vós, o diabo tentador foi precipitado do Céu; por Vós, a criatura decaída é elevada ao Céu; por Vós, todo o género humano, sujeito à insensatez da idolatria, chega ao conhecimento da verdade; por Vós, o santo Baptismo purifica os crentes; por Vós, nos vem o óleo da alegria; por Vós, são fundadas as Igrejas em toda a terra; por Vós, os povos são conduzidos à penitência. E que mais hei-de dizer? Por Vós, o Filho Unigénito de Deus iluminou aqueles que jaziam nas trevas e na sombra da morte; por Vós, os Profetas anunciaram as coisas futuras; por Vós, os Apóstolos pregaram aos povos a salvação; por Vós, os mortos são ressuscitados; por Vós, reinam os reis em nome da santa Trindade. Quem de entre os homens é capaz de celebrar dignamente os louvores de Maria? Ela é mãe e virgem: oh realidade admirável, oh surpreendente maravilha! Quem alguma vez ouviu dizer que o construtor fosse impedido de habitar no templo que ele próprio construiu? Quem poderá considerar ignomínia o facto de tomar a própria serva como sua mãe? Vede como tudo exulta de alegria; queira Deus que todos nós reverenciemos e adoremos a Unidade, que em santo temor veneremos a indivisível Trindade, ao celebrarmos os louvores da sempre Virgem Maria, templo santo de Deus, que é seu Filho e Esposo imaculado. A Ele a glória pelos séculos dos séculos.” 219


Salve Rainha (Trens, [1946], 255-256). Daí a soteriologia que, subtilmente, liga esta presença – e esta invocação – à glorificação da Nova Eva, alter ego da Igreja, opção bem ajustada à sede de uma confraria de feição assistencial e título mariano.

Figura 42 – Igreja da Misericórdia. Capela-mor. Cimalha da cúpula (pormenor) (fotografia de José Matias)

A pintura que consideramos, fiel à tradição, exprime com notável fidelidade esta obediente participação da Virgem, prefiguração da Igreja, na gloria et virtus das pessoas divinas (Scheeben, 1946, p. 223; Alcoy, 2003, pp. 232, A-233, B; Boss, 2019, p. 498). De facto, esta escolha de uma fórmula que agrega a Virgem à Trindade Celeste para presidir à capela-mor de uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Misericórdia não só vai ao encontro de devoções caras à piedade da época (Marques, 2000, pp. 625-634 e 661-662), como realça o Seu papel na Economia da Salvação (Bertola, 1995, p. 98, B, s.v. “Antropologia”). Sendo Maria um alter ego da Ecclesia, a dupla bênção do Deus Pai e de Jesus Cristo, sob o olhar atento do Espírito Santo, dirige-se tanto a Ela quanto à generalidade dos fiéis, especialmente os que oram neste lugar de culto – ou aí jazem sepultados. A Nova Eva constitui uma expressão viva do amor de Deus para com os homens, que O levou a enviar-lhes, por intermédio das Suas entranhas, o Filho único, de modo a libertá-los das faltas que cometeram e a reconduzi-los à condição sobrenatural (Fulton, 2002, pp. 312 e 356-357). Quando entoou o Magnificat, por ocasião da visita a Isabel, Nossa Senhora louvou esse Pai indulgente cuja “misericórdia se estende de geração em geração, sobre aqueles que o temem” (Lc., 1,50), um conceito declinado a partir dos Salmos (100 [99],5; 103 [102],17), e que “acolheu a Israel, seu servo, lembrado da Sua misericórdia” (Lc., 1,54), outro eco dos textos veterotestamentários (Gen., 8,1-19; Ex., 2,24; Ps., 98,3; Is., 41,8-9). Advogada dos homens junto do Esposo e do Filho e dispensadora do “tesouro dos dons da Santíssima Trindade”, segundo a expressão de Ubertino de Casale na Arbor Vitæ Crucifixæ Christi (1485) (Fastiggi, 2019a, p. 307), goza assim da qualidade de omnipotentia supplex, ou seja, “mediadora de todas as graças”: à Mãe da Misericórdia bradam os “degredados filhos de Eva”, rogando que volva para eles os “olhos misericordiosos”, consoante se reza na 220

1

Este trabalho respeita o Acordo Ortográfico de 1945 (aprovado pelo Decreto n.º 35 228, de 8 de Dezembro de 1945). 2

Coordenador do Centro UNESCO de Arquitectura e Arte.

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AGRADECIMENTOS Gentil José Cesário José Matias Luís Pedro Ramos Víctor Palma Vítor Serrão

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Página anterior: TRABALHOS ANTROPOLÓGICOS NA NAVE DA IGREJA DA MISERICÓRDIA DE ALVALADE Fotografia de José Matias

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A ASSISTÊNCIA NA ÚLTIMA MORADA:

Os enterramentos da Igreja da Misericórdia de Alvalade SOFIA TERESO1 E RUI FRAGOSO2

" E, assim, o miseravel, que não tinha o conchêgo da familia, sabia que, ao menos, no ultimo transe, tinha quem lhe ministrasse o derradeiro caldo, lhe resásse as orações dos mortos, as quatro taboas acolhedoras do esquife comúm, a bandeira, a cruz e o acompanhamento funebre dos irmãos, que só se afastavam, depois de, caridosamente, lhe terem depôsto o cadaver, no seio materno da terra, que se abria para o receber." 3 OMEGA

I. INTRODUÇÃO 1.1 A IGREJA DA MISERICÓRDIA DE ALVALADE A Casa da Misericórdia de Alvalade terá sido fundada com a generosa doação do benemérito Fructuoso Pires, testemunhada pela inscrição da lápide que se encontra no interior da Igreja. Como a generalidade das Casas de Misericórdia, foi constituída por vários espaços que caracterizam a unidade base do conjunto arquitetónico denominado “Casa da Misericórdia”: hospital, igreja e cemitério. O hospital do Espírito Santo, que funcionava como hospital e albergue desde o século XV, passou a ser diretamente administrado pela Misericórdia (Ramos, 2000: 16). A Igreja da Misericórdia, património arquitetónico do século XVI (1570), sita na Praça D. Manuel I, encontra-se dentro da ZEP do Pelourinho de Alvalade. Apresenta uma arquitetura de nave abobadada, da qual atualmente só existem os arranques, e uma capela-mor coberta por cúpula. A sua tipologia é de época manuelina, decorada pela estética maneirista, com contrafortes e introdução de platibanda vazada a acompanhar o frontão (pouco comum nas igrejas da misericórdia do Baixo Alentejo), remetendo para a igreja do Convento da Graça, em Évora, obra datada de cerca de 1540 (IPA.00009767)4. As igrejas da Santa Casa, devido à sua natureza e função destacavam-se dos outros espaços pela sua tipologia, simbologia e ornamentação (Pinho, 2012) e a Igreja da Misericórdia de Alvalade é um exemplo. As prospeções parietais na cúpula da capela-mor, executadas entre

2014 e 2016 colocaram a descoberto pinturas murais de tipologia maneirista e caráter regionalista, onde figura a Santíssima Trindade e Anjos Músicos, provavelmente executados entre 1600 e 1650 (IPA.00009767)5. No entanto, é de referir que no registo de visitações do Ordinário referentes à Misericórdia em 1749, pelo D. Frei Miguel de Távora, Arcebispo de Évora, lê-se o seguinte provimento: "Vimos a igreja da Misericórdia desta vila mui falta de ornamentos, ainda que no mais, suficientemente composta e asseada e como é também grande obra de misericórdia prover a sua igreja de ornamentos decentes, admoestamos o Provedor e mais irmãos da Misericórdia d’esta Vila, que dentro de um ano, façam, etc." 6. Se os ornamentos da cúpula da capela-mor estão datados dos inícios do século XVII, que ornamentos mais teria a Igreja e que agora não se observam?

1.2 A FUNÇÃO ASSISTENCIAL A principal função das Misericórdias era a atividade assistencial: acolhimento de pobres, peregrinos, enfermos, celebrações litúrgicas e enterramento dos mortos (Pinho, 2012). Na frontaria da Igreja da Misericórdia de Alvalade, sobre a verga do portal, encontra-se a inscrição que reflete e demonstra o espírito de solidariedade e partilha que originou a criação das misericórdias: «Beati misericordes quoniam ipsi misericordiam consequentur» ou «Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia»7. Também o Padre Jorge Oliveira, assinando com o pseudónimo OMEGA, escreve no jornal “Nossa Terra” de 1932, o verdadeiro sentido da Casa: "Além da Igreja de onde dimanavam os socorros espirituais, tinha um pequeno hospital e albergaria, aonde os necessitados iam buscar o remedio, o alimento e o agasalho" 8. A assistência aos mortos era uma das funções importantes da Misericórdia. À sua função de assistir aos pobres e aos enfermos, juntava-se a função de acompanhar os mortos à sepultura (Queiroz, 2002). No interior da igreja havia uma hierarquia na localização das sepul227


turas. O espaço da sepultura era comprado e só alguns indivíduos beneficiavam de espaço gratuito. A área próxima à capela-mor e a própria capela-mor eram designadas para comportar as sepulturas das dignidades da terra (Queiroz, 2002). No entanto, quando o cemitério da Igreja Matriz não podia receber mais defuntos, o da Misericórdia poderia abrir exceção, como se comprova pelo registo de óbito9 da Igreja Matriz de Alvalade:

na população cristã de proceder aos enterramentos dos seus entes queridos no espaço sagrado das igrejas fica ameaçada nas primeiras leis de saúde pública datadas de 1835. Os vivos estavam tão familiarizados com os mortos, como com a sua própria morte. A convivência entre ambos fazia parte do quotidiano e esta proximidade, levou a que estas leis não fossem acatadas pela maioria da população, sobretudo no mundo rural.

“Aos desaseis dias do mês de 9b.ro de mil e seiscentos,/ e oitenta e hum annos foi sepultada dentro da igre-/ ia [rasurado] misericordia maria Roiz molher de/ Niculao gomes, por naõ haver cova na igreia [matrix] morreu abintestada de q fis este termo dia, e era uts.ª. // O Prior Pedro Fialho” [f. 35v]

Esta convivência próxima com a decomposição dos corpos a poucos centímetros dos pés dos vivos começou a ser uma preocupação séria para os governantes. Em 26 de novembro de 1845 sai a denominada Lei da saúde, causando revolta e indignação (Ferreira, 2004). O mundo rural não quer acatar e em 1846 dá-se a revolta do Minho (Figura 1), mais conhecida por “Revolta da Maria da Fonte”. Fátima Ferreira (2004) ilustra este episódio da história de Portugal, com um dos textos da História de Portugal de Damião Peres (1935), onde é narrada uma sessão parlamentar, no dia 20 de abril de 1846 na Covilhã:

Quando existe uma doação de bens patrimoniais ou monetários para custear uma intervenção nos espaços das Misericórdias, há sempre uma contrapartida expressa que beneficia o patrono (e, em alguns casos, também os familiares), normalmente o de ser sepultado em local privilegiado (Pinho, 2012). Geralmente referem-se ao patrocínio de intervenções (construção ou remodelação) na capela-mor e, mais raramente, na totalidade da igreja (idem). Nos testamentos essas disposições ficavam bem explicitas, assim como doações para as celebrações de missa post mortem. Na Igreja da Misericórdia de Alvalade, esta preocupação com o patrocínio ficou bem explícita na lápide do fundador da Casa, Fructuoso Pires. A lápide encontrava-se na parede lateral norte da igreja e foi agora removida e colocada no chão da capela-mor do Museu, onde possivelmente seria o local original. O Padre Jorge de Oliveira, no seu artigo do jornal “Nossa Terra” de 1932, refere que a lápide estaria na capela da Misericórdia, mas não indica o local exato: "Quem, seria hoje, capaz de repetir o gesto lindo de Fructuoso Pires, cuja lápide sepulcral, na capela da Misericordia, na sua simplicidade diz tudo (…)"10. Na inscrição, executada em mármore cinzento, pode ler-se: “A sepultura de Fructuoso Pires que toda a sua fazenda deu de esmola com que se ordenou esta casa…”. Tendo sido ele o fundador da Casa da Misericórdia, faz todo o sentido que a sua sepultura estivesse no local mais sagrado da igreja: a capela-mor. Seria o indivíduo que se encontrava em posição de destaque na capela-mor? Mais adiante desenvolveremos este tema. No século XIX, com a implantação do Liberalismo, Portugal assistiu a transformações profundas nos diversos níveis económico, político e social. A tradição enraizada 228

"O cavador, por seu turno, preso à terra, aos costumes e usanças tradicionais, revolta-se contra a chamada lei da saúde de 26 de Novembro de 1845; para a sua credulidade, a proibição dos enterramentos nas Igrejas era uma profanação, e o cemitério, longe da igreja, jazida digna de cães".11

Figura 1 – “Revolta da Maria da Fonte” (1846)12

Em Alvalade não terá sido diferente. O cemitério público abriu portas em 1854, construído num terreno chamado "Cerrado de S. Pedro”, onde havia memória de ter existido a Ermida de S. Pedro, que desapareceu no final de século XVIII (OMEGA, 1932; Ramos, 2000). A obra do cemitério foi benzida pelo pároco da vila, o Padre Bernardo António de Sousa (OMEGA, 1932; Ramos, 2000). No dia 23 de novembro de 1854 foi sepultado o primeiro corpo no cemitério da Vila de Alvalade e, a partir daqui, já não se encontra nenhum


registo de enterramento dentro ou no adro das igrejas da freguesia13. Esta abertura tardia, deixa crer que a lei também não terá sido bem-vinda e terá existido resistência à sua aplicação. Nos registos de óbitos da Igreja da Misericórdia, verifica-se que ainda foram sepultados onze indivíduos (sete homens, duas mulheres e duas crianças) entre 1845 e 185414.

destruído quando terraplenaram a área para a construçãodo edifício. O interior da estrutura, vazio dos depósitos originais, foi colmatado com restos de material de construção, provavelmente na mesma altura que o cortaram (Figura 2). Por cima, encontravam-se sepulturas.

No século XIX, por Alvará do Governo Civil de Beja a 4 de junho de 1861 foram extintas as confrarias e a Santa Casa da Misericórdia de Alvalade (Oliveira, 1937: 1086; Ramos, 2000). Sabemos que o espaço da Igreja perdeu a sua função religiosa e de culto em 1861 (e certamente também a sua função cemiterial), servindo posteriormente de espaço para outras atividades (sapataria, residência familiar, sede partidária, escola primária, sede de escoteiros, sala de exposições e da comissão de festas) (IPA.00009767).

II. A INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA E ANTROPOLÓGICA NA IGREJA DA MISERICÓRDIA 2.1 ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA A realização da escavação arqueológica em área no interior da Igreja da Misericórdia de Alvalade (IMA) teve como principal objetivo recolher o maior número possível de dados relacionados com as diferentes fases de construção da igreja (evolução histórica) e subsequentemente sobre a ocupação humana da freguesia, permitindo preencher as lacunas de conhecimento existentes relativamente às origens do local. Deste modo, a investigação arqueológica e antropológica permitiram dar resposta a inúmeros aspetos como a análise estratigráfica (geológica da área escavada; a interpretação e caraterização da área do ponto de vista histórico / arqueológico / cronológico; a clarificação das várias fases de construção (origens do local, reaproveitamentos, reocupações, etc.) e a confirmação da existência de uma ocupação humana passada. O registo, estudo, salvaguarda e valorização dos diferentes vestígios e contextos identificados permitiu também conhecer e compreender os métodos, técnicas e materiais aplicados na construção da igreja. A estrutura mais antiga encontrada foi uma estrutura negativa circular, que parece tratar-se de parte de um silo escavado no substrato rochoso, localizado junto à entraentrada principal, e anterior à construção da igreja. Encontrava-se cortado quase até à base, provavelmente

Figura 2 – Estrutura negativa escavada no substrato rochoso da nave

Importa salientar que os trabalhos científicos desenvolvidos na nave, altar e sacristia da IMA, decorreram com toda a consideração que o espaço justifica, nomeadamente no que respeitou à exumação dos antigos enterramentos no interior da igreja. Este trabalho de investigação deu um contributo inestimável para o estudo e conhecimento da história não só do edifício, mas também da vila, permitindo recolher informação diversa que descrevemos mais adiante.

2.2 A ANTROPOLOGIA FUNERÁRIA: AS TRANSFORMAÇÕES, O ESPAÇO E OS RITUAIS CRISTÃOS DOS SEPULTADOS As sepulturas e os rituais a elas associados permitem-nos integrar uma comunidade num (ou vários) espaço temporal. Desde a pré-história até aos nossos dias, os rituais funerários foram-se alterando baseados nas crenças das épocas, fossem elas pagãs ou cristãs. Com o advento do Cristianismo na Península Ibérica e a sua generalização a partir do século V, verificam-se intensas e aceleradas transformações específicas entre a ordem social antiga e as emergentes (Vigil - Escalera Guirado, 2015). Estas transformações profundas trouxeram novos modos de viver, novas regras a seguir. O tratamento dos mortos não foi exceção. O lugar de sepultura é escolhido próximo das igrejas que guardavam as relíquias dos santos, originando o que seria a inumação ad 229


sanctos. Esta atitude foi rompendo com a tradição anterior de separação entre o mundo dos vivos e dos mortos, iniciando-se a ocupação do espaço urbano. . Apesar de alguma resistência inicial do enterramento no interior dos templos, esta prática começa a ser normal e sepulta-se dentro e fora dos edifícios. Normaliza-se a orientação destas O-E (a oeste a cabeça e a este os pés), segundo o ritual Cristão, que se baseia na crença na Ressurreição, destacando-se também a ausência do espólio que acompanhava o defunto além-morte. A individualização da sepultura é também uma outra característica que se perde a partir do século VII, observando-se nos períodos que se seguem a reutilização dos espaços sepulcrais, sobretudo em contextos urbanos onde o espaço era menor. À medida que vamos avançando no tempo, verifica-se que a Igreja acaba por se apropriar da gestão do cemitério (Vigil-Escalera Guirado, 2015) até meados do século XIX ou até às primeiras Leis de proibição dos enterramentos em igrejas.

2.3 O ESPAÇO SEPULCRAL DA IGREJA DA MISERICÓRDIA DE ALVALADE A necrópole da Igreja da Misericórdia de Alvalade foi um dos espaços sepulcrais de Alvalade, em conjunto com a Igreja Matriz. Datada do século XVI, recebeu no seu interior a sepultura de vários indivíduos da terra. Sabemos pelos registos de óbito que terá recebido não só os benfeitores da Misericórdia, mas também os hospitaleiros que trabalharam na Casa e sua família, gente da terra cuja profissão foi referida nos livros de óbito, pobres sem nome e também aqueles que não tinham lugar na Matriz, como nos mostram os seguintes exemplos: “Aos vinte e tres dias do mes de Janeiro de mil e sete centos e oitenta e no-/ ve anos na Igr.ª da St.ª Caza desta v.ª de Alvallade foy sepultado o/ corpo defunto de Mariana Thereza m.er de Manoel Gonçalves […?]/ […?] Espitaleyro e recebeo todos os sacram.tos de que fis este trº ut supra. // O P.r Donizio Corr.ª” [f. 108]15 “Aos vinte e tres de Dezbro.º de 182i an.s na Igr.a da Miz.ª/ desta v.ª foi sepultado, hum pobre, q morreu no Hospi-/ tal, q naõ se sabe o nome, Recebeu sacram.tos e p.ª cons-/ tar fis este tr.º. // O P.r Joaq.m da S.ª e Abreu” [f. 135v]16 “Aos quatorze dias do mes de Novembro de mil ouito/ centos vinte sete foi sepultado na Igr.ª da Mizericor-/ dia desta V.ª o corpo de 230

Antonio Joze [chocalheiro?], o qual/ recebeo todos sacramentos, e morreo com declaração,/ de que fiz este termo no dia, mes, e Era supra. // O P.r Encommd.º Jacinto da Roza” [f. 155v]17 O projeto permitiu a escavação quase total do espaço interior (exceção das salas anexas, construídas posteriormente à igreja), verificando-se que o espaço sepulcral se localizava apenas na nave e capela-mor, como era comum. Sem uma intervenção no adro, desconhecemos se este também terá sido utilizado para este fim. No espaço interno da Igreja da Misericórdia foram abertas trinta e uma sepulturas, vinte e quatro abertas no substrato rochoso e sete no solo que as cobria. Foram exumados um total de trinta e três indivíduos em posição primária (dois indivíduos representados apenas por uma parte do corpo, que ainda se encontrava em posição primária, e cujas sepulturas foram alargadas para a deposição de outro indivíduo) e um número mínimo de trinta e sete indivíduos, exumados em ossários e reduções.

2.3.1 A INTERVENÇÃO NA CAPELA-MOR Na capela-mor foram identificadas duas sepulturas, pertencentes a dois dignatários e/ou benfeitores da Misericórdia. Ambas foram abertas em tempos diferentes, sendo que a mais antiga se encontra junto à parede norte (Figura 3). O indivíduo nela sepultado, de sexo masculino, adulto e de idade à morte indeterminada, encontra-se numa posição contrária à regra cristã, com a cabeça para este e pés para oeste. Esta posição foi observada em enterramentos de párocos ou dignatários, que pela sua beneficência ou importância no seio da comunidade, foram destacados. Acreditamos que este possa ser o fundador da Misericórdia, Fructuoso Pires, não só pela antiguidade, mas também pela posição de destaque. Neste indivíduo foi identificada a base estrutural de uma gola, feita em cabedal, dobrada sobre uma armação em metal (Figura 4), típica do vestuário seiscentista (Arnold, 1985). Poderá tratar-se de uma gorjeira. Este elemento de vestuário não se conseguiu preservar, desintegrando-se quando se procedeu ao levantamento. Os ossos estavam em muito mau estado e fragmentaram-se quase por completo durante a exumação do indivíduo. Esta degradação deveu-se sobretudo ao calor emanado de uma salamandra que colocaram por cima da sepultura, quando a Igreja foi sede dos escoteiros. No entanto, ainda foi possível medir o comprimento máximo do fémur e chegar à sua estatura, que seria de 1.67m (+/- 6.90 cm) (Mendonça, 2000).


A escavação revelou também o que aparentemente seria a antiga base de apoio do altar, uma estrutura construída com tijoleira e argamassa, de forma retangular, central, encostada à parede Este da capela-mor (Figura 5).

Figura 5 – Estrutura que serviria de base de apoio ao altar

Figura 3 – Sepultura da capela-mor. Fructuoso Pires?

Figura 4 – Pormenor da armação em Metal coberta por cabedal, de uma possível gola

O segundo indivíduo sepultado na capela-mor, também ele de sexo masculino, encontra-se orientado na posição cristã e, segundo a estratigrafia, é o mais recente. Segundo os registos de óbitos da Igreja da Misericórdia18, surgidos como regra após o século XVII, um dos indivíduos sepultado na capela-mor, teria sido o Dr. João Ribeiro de Lyma em 1697: "Em vinte e oito de fevereiro de mil e Seis Sentos e noventa e sete […?] enterrado na1 Cappella mayor da Misericordia o D.tr João Ribeiro de lyma e deixou de esmola da sepultura des mil reis morreo com todos os sacramentos e ben testado (?) por ver.de fiz este termo q asignei dia E supra. O Prior João Vas Ribeyro". O bom estado de preservação deste indivíduo, permitiu-nos saber a sua estatura através do comprimento máximo do fémur (1,61 m; +/- 6,90 cm) (Mendonça, 2000) e também nos permitiu balizar a sua idade, que seria entre os 40 – 50 anos.

2.3.2 A NAVE A nave da Igreja era o espaço cemiterial principal. A sua reutilização ao longo dos séculos verifica-se na acumulação de restos ósseos na camada de terra que cobria as sepulturas (40 cm de espessura) e nos ossários encontrados dentro das sepulturas. Abaixo do chão de tijoleira colocado em 1953, encontrava-se de imediato esta camada que cobria as sepulturas. Mais espessa e compacta no início, percebeu-se que seria o primitivo “chão” de terra batida da Igreja da Misericórdia, comum no interior dos templos que exerceram esta função cemiterial. Desta forma, a abertura das sepulturas tornava-se rápida e prática. No subsolo da nave foram identificados, registados e exumados 31 indivíduos em posição primária, orientados no sentido oeste-este, como manda a regra cristã. Algumas sepulturas (covachos simples) foram cortadas pela abertura de outras (Figura 6). Apenas um indivíduo do sexo feminino foi enterrado dentro de um caixão (Figura 7), recuperando-se ainda alguns fragmentos de madeira e pregos no interior da sepultura. As sepulturas eram anónimas, onde se acumularam vários indivíduos ao longo dos tempos. Os defuntos seriam envoltos numa mortalha, fechada com alfinetes (que ainda se recuperaram) e colocada cal por cima do corpo. A cal servia para acelerar a decomposição dos tecidos moles. Os ossários, que se caracterizam por um conjunto de ossos de dois ou mais indivíduos, foram reduzidos dentro da sepultura ao longo de vários anos, para a deposição de um novo corpo. Geralmente, encontram-se aos pés, junto à cabeça ou por cima dos membros inferiores (Figura 6). 231


Figura 6 – Sobreposição das sepulturas abertas e ossário sobre os membros inferiores do indivíduo da direita

Os indivíduos exumados em contexto primário, os últimos que foram sepultados na Igreja da Misericórdia, encontravam-se na posição de decúbito dorsal, com os membros inferiores paralelos e as mãos entrelaçadas numa posição de reza ou sobre o abdómen. Dentro das mãos de alguns indivíduos foram encontradas contas de rosário.

Figura 8 – Botões de metal

Figura 7 – Enterramento em caixão

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Figura 9 – Contas de colar


Além dos rosários (Figura 11), o espólio recuperado associado aos indivíduos cingiu-se a botões (Figura 8), algumas contas de colar (Figura 9), fivelas de cinto (Figura 10) e a restos de solas de sapatos que ainda se preservaram (Figura 12).

Figura 10 – Fivela de cinto

III. A ANÁLISE EM LABORATÓRIO: DEMOGRAFIA, PERFIL BIOLÓGICO E PALEOPATOLOGIA 3.1 DEMOGRAFIA E PERFIL BIOLÓGICO DOS INDIVÍDUOS Durante esta intervenção recuperaram-se os restos osteológicos de um número mínimo total de 70 indivíduos (33 indivíduos em posição primária e 37 em ossários). No conjunto total, 57 indivíduos eram adultos e 13 eram crianças. Teriam sido sepultados mais, tendo em conta a quantidade de ossos amontoados na camada superior que cobria as sepulturas. Como se verifica, a maioria dos indivíduos eram adultos, com idades compreendidas entre os 30 e os 60 anos e maioritariamente de sexo masculino (foi possível determinar a idade em apenas nove indivíduos e o sexo em vinte sete da totalidade da amostra). Quanto às crianças, em menor número, conseguiu-se determinar a classe etária de sete, incluídas entre os 0 e os 14 anos de idade. A estatura dos indivíduos adultos exumados em contexto primário permitiu perceber que os homens teriam entre 1.61m e 1.75m e as mulheres entre 1.47m e 1.60m.

Figura 11 – Contas de rosário

Figura 12 – Sapato de um dos indivíduos sepultados

3.2 PALEOPATOLOGIA A paleopatologia estuda as doenças do passado. Muitas doenças ficaram gravadas nos ossos e dentes dos nossos antepassados e através da sua análise, podemos obter importantes informações sobre a vida dos indivíduos e sobre a comunidade onde estes se inserem. São muitas as patologias que podemos observar no registo ósseo, desde traumáticas, infeciosas, congénitas, metabólicas, articulares, etc. Através do vasto conjunto, podemos inferir, por exemplo, sobre a dieta (quando a dieta é abrasiva, o desgaste dos dentes é mais intenso) ou tipos de trabalhos mais duros e contínuos que os indivíduos terão tido em vida (hérnias discais, artroses, etc). Conseguimos também perceber se sofreram de doenças infeciosas, que por terem permanecido muito tempo no organismo deixaram marcas no esqueleto. Através das fontes documentais conseguimos obter informações preciosas sobre as doenças que uma comunidade podia sofrer. Nem sempre se dá um nome à doença, mas descrevem-se as aflições observadas por aqueles que os viam partir. Quando lemos os registos dos Livros de Óbitos de Alvalade, escritos pelas mãos dos párocos da freguesia, percebemos que nesta vila era frequente morrer do que chamavam “ataque apopletico” ou “molestia repentina”, que as deixava sem sentidos e que poderia ser, por exemplo, um ataque vascular cere233


bral (AVC). Quando a morte é causada por estes ataques agudos, não se encontram vestígios nos ossos: “Aos dezanove dias do mes de Novembro de mil e outo [sic] centos trinta, e/ nove annos na Mizericordia desta Villa de Alvallade dei Se-/ pultura Ecleziastica ao Corpo defunto de Maria Antonia/ molher q foi de Joaquim Gonçalves morador desta [sic] Villa a/ qual só recebeo só os Sacramentos da Sancta Unçaõ, e Penitencia/ sub conditione por ser atacada de hum ataque apopletico/ q lhe prohibio e fala e os mais sentidos, como he constante/ em todo este povo. E para constar fiz este termo dia, mez, e era/ ut Supra. No impedimento do Parrocho. O P.r Jacinto Ig-/ nacio Pinheiro” [f. 33]19 Para que as lesões sejam observáveis é necessário que os ossos e dentes estejam em bom estado de preservação, o que nem sempre acontece. O grau de degradação da superfície óssea dos indivíduos exumados na Misericórdia foi causado, sobretudo, pela humidade do solo. A fragmentação na exumação dos restos ósseos terá também ocultado outras patologias. Nos indivíduos da Misericórdia foram detetadas doenças comuns de identificar nos restos humanos antigos. Nos ossos, a patologia registada em mais indivíduos foi a degenerativa articular (osteoartrose e nódulos de schmorl (ou hérnias)) e a degenerativa não articular (entesopatias), no entanto ambas presentes num grau moderado. Atendendo ao estado de fragmentação ósseo, estas patologias poderão estar subvalorizadas. No entanto, são patologias comuns em tempos, cujo trabalho corporal/ braçal era utilizado em praticamente todas as atividades. O facto de se terem registado apenas lesões ligeiras a moderadas, poderá também ser mais uma evidência do estatuto social das pessoas que ali foram sepultadas. Também a presença reduzida de indicadores de stress fisiológico, denunciados pela hiperostose porótica, pela cribra orbitalia e a hipoplasia dentária encontradas num número ínfimo de indivíduos, poderá inferir, mais uma vez, sobre esse estatuto social (Figura 13). A hiperostose porótica e a cribra orbitalia são indicadores de stress que permitem avaliar o estado nutricional e de saúde dos indivíduos (Mays, 1998). A sua origem pode ser multifatorial, mas está normalmente relacionada com episódios de anemia, doenças metabólicas e/ou também com infeções nasofaringeais (Wapler et al., 2004). Foram também observadas em número reduzido as hipoplasias do esmalte dentário, que são indicadoras de stress não específico. Estas caracterizam-se por linhas transversais 234

e sulcos gravados na superfície da coroa dentária, que resultam de vários fatores que causam desequilíbrios, sejam metabólicos e/ou patológicos durante a infância (Figura 13) (Goodman e Armelagos, 1985; Silva, 2002).

Figura 13 – Hipoplasia do esmalte Dentário no Indivíduo [24]

Seis indivíduos apresentavam patologias traumáticas (fraturas antigas já remodeladas) e evidências de periostite, ambas observadas em ossos longos. De realçar um possível caso de uma patologia congénita denominada síndroma de Klippel-Feil (Figura 14). Esta patologia caracteriza-se pela fusão de duas ou mais vértebras cervicais, sendo a 2ª e a 3ª cervicais as mais afetadas, como o caso que encontrámos na Misericórdia (indivíduo [24], de sexo masculino, com mais de 50 anos). Barnes (1994), definiu vários tipos e este caso parece corresponder a um tipo II, que geralmente não produz nenhum sintoma em vida.

Figura 14 – Possível síndroma de KLIPPEL-FEIL (indivíduo [24])

No que concerne a patologia oral, temos a presença das afeções mais comuns da cavidade oral. As patologias que afetam a boca são um contributo valioso, revelando hábitos de higiene, qualidade da dieta, tipo de mastigação e permitem inferir sobre a economia de subsistência das populações humanas passadas (Silva, 2002). As doenças mais comuns em coleções arqueológicas são as cáries, a doença periodontal, os abcessos, a acumulação de tártaro, e a consequente perda dentária ante mortem (Silva, 2002). Nesta amostra da Misericórdia observá-


mos uma baixa incidência de cáries (Figura 15), alguma perda de dentes ante mortem, associada sobretudo à idade avançada e presença tártaro dentário de grau moderado, com exceção do indivíduo [80] que apresenta hipercimentose (desenvolvimento excessivo de tártaro) (Figura 16). O desgaste dentário foi considerado de grau médio a elevado, denunciando uma dieta bastante abrasiva. Um dos principais alimentos que pode estar na origem do desgaste dentário são os cereais, muito abrasivos durante o processo de mastigação e o principal alimento em muitas das épocas passadas. Apenas dois indivíduos apresentavam abcessos (Figura 15). O conjunto destas afeções podem traduzir-se numa fraca higiene oral e numa dieta alimentar pobre em hidratos de carbono, rica em proteína e algo abrasiva (Hillson, 2001).

Figura 15 – Abcesso ( ) e cáries ( ) nos dentes inferiores (indivíduo [24])

Figura 17 – Trabalhos de restauro, inventário e registo do espólio. Ateliers 2011

Figura 16 – Hipercimentose nos dentes molares do indivíduo [80]

IV. O ENVOLVIMENTO DA COMUNIDADE Desde início que um dos principais objetivos do projeto passava por envolver a população, com especial ênfase na comunidade local. Deste modo, realizaram-se ateliers de arqueologia para os jovens da freguesia, organizados pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém.

Figura 18 – Decalque do chão de tijoleira da Igreja

O objetivo passava por sensibilizar os Alvaladenses para a arqueologia, permitindo aos mesmos experienciar a vivência de uma escavação arqueológica e antropológica. Para o efeito, foram desenvolvidas atividades diversas, tais como desenho/decalque do piso da igreja, escavação por unidades estratigráficas, leitura de epigrafes, recolha de espólio, utilização de nível ótico, diferenciação de diferentes materiais, marcação, etiquetagem e preenchimento de fichas de registo (Figuras 17, 18 e 19). Paralelamente a esta iniciativa, durante os trabalhos de escavação a igreja esteve sempre de portas abertas à comunidade em geral e turistas. Para o efeito foram criados passadiços em madeira dentro da nave, que se montavam ou desmontavam consoante o evoluir das escavações, e que permitiram a todos os interessados um constante acompanhamento dos trabalhos desenvolvidos (Figura 20).

Figura 19 – Trabalhos de escavação. Ateliers de arqueologia 2011

Durante três anos consecutivos (2009 a 2011) no decorrer da Feira Medieval que se realiza no mês de setembro, a escavação da necrópole recebeu milhares de visitantes (Figuras 20 e 21). 235


proibição dos enterramentos dentro e fora das Igrejas. A Igreja da Misericórdia, erguida no século XVI, foi uma das necrópoles de Alvalade. O principal local de enterramento ou “cemitério público” seria na Igreja Matriz. Como parte integrante do conjunto de edifícios que compunham uma Casa da Misericórdia, no seu espaço sagrado, além das celebrações religiosas, cabia-lhe uma última função assistencial: a encomenda do corpo e o devolver à terra. No seu interior foram sepultados benfeitores e os hospitaleiros da Casa, a família destes e os pobres que lhe pediam assistência. Figura 20 – Visitas às escavações

O projeto permitiu a escavação integral do espaço interno, nomeadamente a nave, capela-mor e sacristia (as salas anexas, construídas posteriormente à igreja não foram intervencionadas arqueologicamente) e a consequente exumação dos indivíduos ali sepultados. Além da análise dos rituais funerários, levámos a cabo o estudo laboratorial dos restos ósseos. Apesar do estado de preservação dos ossos não ser o melhor, conseguimos recuperar alguma informação dos indivíduos ali sepultados. Este grupo de indivíduos, cuja maioria teria um estatuto social mais elevado dentro da comunidade, não deixa de ser um reflexo da vida e morte da população de Alvalade.

Figura 21 – Feira Medieval 2011

Também centenas de alunos das escolas da região visitaram as diferentes etapas das escavações e das exposições realizadas, em visitas guiadas pelos organizadores e arqueólogos responsáveis.

V. NOTAS FINAIS Ao longo dos tempos, a morte foi causa de sentimentos opostos. Tanto causa dor, revolta, sofrimento, luto, como estimula a curiosidade, o mistério e, por fim, a resignação perante a maior certeza da vida. As atitudes perante a morte foram-se modificando, rompendo as tradições anteriores. Com o advento do Cristianismo esboçam-se transformações profundas na sociedade e claro, na morte. São impostas novas regras de enterramento baseadas na crença Cristã. Apesar de no início se observar alguma resistência quanto ao ato de enterrar dentro dos edifícios religiosos, esta prática normaliza-se e passa-se a sepultar no espaço interior e exterior. Esta gestão dos espaços cemiteriais por parte da Igreja só acaba em meados do século XIX, com as Leis de 236

Cumulativamente com os resultados científicos obtidos, foi muito gratificante constatar que as diferentes iniciativas realizadas, inseridas nos ateliers de arqueologia, surtiram o efeito desejado que era sensibilizar a população para o projeto em particular (criação do futuro museu de arqueologia) e para a arqueologia na sua globalidade. O grande interesse que a população residente e os visitantes demonstraram pelo projeto no seu todo (museu, arqueologia e antropologia) resultou no acompanhamento, colaboração, apoio e incentivos diários ao longo dos três anos. Entendemos que é com estas e outras iniciativas que o projeto “ganha vida”, ou seja, torna-se dinâmico e envolve a população do concelho em torno da preservação e valorização do seu território.

1

CIAS-Centro de Investigaçao em Antropologia e Saúde / Universidade de Coimbra e IEM-Instituto de Estudos Medievais /FCSH-Universidade Nova de Lisboa.


2

Empresa Smile at Culture, Lda.. Esta frase integra o artigo intitulado “A Misericórdia de Alvalade”, publicado no jornal “Nossa Terra”, Ano I, Série III, Santiago do Cacém, 14 de janeiro de 1932, assinado por OMEGA, pseudónimo do Padre Jorge Oliveira. 4 in http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx? id=9767 (IPA.00009767). 5 in http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx? id=9767 (IPA.00009767). 6 Apontamentos do Padre Jorge Oliveira não publicados, cedidos por D. Ângela Atayde e Dra. Ana Paula Atayde. 7 Tradução para português da inscrição em latim da fachada da Igreja da Misericórdia de Alvalade: "Beati misericordes quoniam ipsi misericordiam consequentur" (versículo 7º do capítulo 5º, Evangelho de S. Mateus) – tradução do Reverendo Carlos Veríssimo de Figueiredo, antigo professor de latim da Universidade Católica – In Ramos, 2004, p.10). 8 in jornal “Nossa Terra”, Ano I, Série III, Santiago do Cacém, 14 de janeiro de 1932. 9 Livro nº 27 (Óbitos 02/01/1667 a 20/06/1693), Arquivo Distrital de Setúbal. Pesquisa de Gentil Cesário (CMSC). 10 in jornal “Nossa Terra”, Ano I, Série III, Santiago do Cacém, 14 de janeiro de 1932. 11 in Carvalho, J. 1935. Da restauração da Carta constitucional à “regeneração”. In Peres, D. (dir.) – História de Portugal. Portucalense Editora, Lda. Vol. VII. 12 Gravura, M. M. Bordalo Pinheiro, 1846, In A Ilustração, v. II, 1846, p. 71 -BN J. 616 M. 13 Investigação de Gentil Cesário 14 Livro nº 2 (Óbitos 20/12/1833 a 27/12/1859), Arquivo Distrital de Setúbal. Investigação de Gentil Cesário. 15 Livro nº 28 (Óbitos 12/10/1762 a 17/11/1793), Arquivo Distrital de Setúbal. Investigação de Gentil Cesário. 16 Livro nº 1 [sic] (Óbitos 04/01/1794 a 14/12/1833), Arquivo Distrital de Setúbal. Investigação de Gentil Cesário. 17 Idem 18 Livro nº 28 (Óbitos 17/07/1693 a 09/06/1698), Arquivo Distrital de Setúbal. Pesquisa de Gentil Cesário (CMSC). 19 Livro nº 28 (Óbitos 12/10/1762 a 17/11/1793), Arquivo Distrital de Setúbal. Investigação de Gentil Cesário.

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MUSEU DE ARQUEOLOGIA DE ALVALADE

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