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EDITORIAL
Derrotar o velho: A fazer brotar o novo F
ÍNDICE importância dos
Movimentos Sociais
Marina Barbosa, professora da UFJF e militante do ANDES-SN
O
MTST é um movimento popular que atua para organizar a imensa massa de trabalhadores das periferias brasileiras. Sim, somos um movimento de estratégia territorial em luta pela construção do poder popular! Apostamos na organização e luta para realizar as transformações necessárias em nossa sociedade e conseguirmos respirar o ar de um mundo novo. Uma das principais tarefas na construção do novo é derrotar o velho. E o velho é o capital. Por isso, fazemos ocupações que enfrentam a propriedade privada e nos solidarizamos com greves que paralisam a produção e manifestações que ameaçam a circulação de capital. Nosso empenho é prático na luta de classes. Mas entendemos que o desafio é enorme. Estamos nas ruas desde a Comuna de Paris, derrotamos o czar na Revolução Russa e fomos guerrilheiros na Revolução Cubana e Nicaraguense. Nossa luta é histórica e mundial, sabemos como ela é difícil... portanto, nossa vitória não pode ser por acidente e nem dependendo de favores das elites, que jamais hesitam em esmagar aqueles que as questionarem. Refletindo sobre essas e outras questões ao longo de nossa trajetória de luta que já chega perto da maioridade, chegamos à conclusão de que nossas trincheiras devem se ampliar. Mais do que isso: queremos encarar o desafio de unir prática e teoria, comumente separadas na luta anticapitalista. A Revista Territórios Transversais é parte desse esforço. Com ela, nosso objetivo é apresentar alguns de nossos acúmulos; debater temas pertinentes à questão urbana; abrir espaços para a produção teórica de apoiadores e aliados; produzir reportagens e entrevistas sobre acontecimentos relevantes; sempre numa perspectiva crítica. Enfim, ajudar a debater e entender os rumos do capitalismo contemporâneo e fazer ecoar o barulho das metrópoles e suas forças de resistência. Para isso, criamos este espaço que, a princípio, será semestral. Formulação crítica, expressão política e artística e jornalismo independente a serviço da luta social. Não foi fácil. Além das dificuldades financeiras, nossa equipe não conta com profissionais do ramo editorial. Fundamental: sem a solidariedade de mais de cem doadores, sejam indivíduos ou coletividades, essa empreitada não seria possível, por isso, nosso mais profundo agradecimento. Devemos agradecer também ao nosso extraordinário conselho editorial, formado por militantes, intelectuais e personalidades que nos apóiam e apostam em iniciativas como esta. Por fim, nenhum sentido haveria sem a existência e resistência das milhões de trabalhadoras e trabalhadores que vivem o massacre diário do desenvolvimento capitalista nas cidades brasileiras. É para esse povo que dedicamos o primeiro número da nossa revista. Conselho Executivo Territórios Transversais
avelização e o
Colapso Urbano
Maurilio Lima Botelho, professor da UFRRJ, co-autor de “Até o último homem”
A Disputa por trás do Plano Diretor de SP Guilherme Boulos, filósofo e psicanalista, da coordenação nacional do MTST
Os Legados dos Megaeventos Guilherme Simões, professor de sociologia, da coordenação nacional do MTST
Resenha:Um Mundo em Ruínas
André Villar, filósofo e doutor em Serviço Social, co-autor de “Até o último homem”
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Um final de semana na Ocupação Copa do Povo
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Ensaio: a MAIOR ocupação do Mundo
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Mirela VonZuben, jornalista; Felipe Melo, fotógrafo
Pablo Pascual e Amanda Perobelli, fotógraf@s
O Anticapitalismo do MTST
Débora Goulart, cientista social, professora na UNESP/Marília, militante da Conspiração Socialista
O Programa Mais Médicos Felipe Monte Cardoso, médico de família, militante do Fórum Popular de Saúde
As Contradições Urbanas da Capital Federal
Francisco Carneiro de Filippo, economista, militante do PSOL/DF Érika Lula de Medeiros, advogada, militante do PSOL/DF
Drama do Povo no Despejo da TELERJ Henrique Sater, médico, do setor de comunicação e da coordenação estadual do MTST/RJ
O Poeta CHE GUEVARA
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Jeff Vasques, poeta, militante do PCB
Conto: UM NEGÓCIO
Pedro Rocha, filósofo e professor da UNIRIO.
Ilustrações Batata
Capa
Chrysantho Figueiredo e Henrique Sater
Quadrinhos/Charges
João da Silva, Nico e Carlos Latuff
quem faz e ajuda a fazer Conselho Editorial: César Órtega • Débora Cristina Goulart • Eblin Joseph Farage • Elizete Menegat • Francisco Miraglia Neto • Maria Orlanda Pinassi • Marildo Menegat • Marina Barbosa Pinto • Marina Monteiro de Castro • Neil Larsen • Nilo Batista • Paulo Eduardo Arantes • Roberta Lobo • Valério Arcary • Terry Eagleton Conselho Executivo: Clarice Salles Chacon • Felipe Brito • Guilherme Simões• Henrique Sater • Pedro Rocha de Oliveira Tiragem: 1000 exemplares. Data de fechamento da edição: 29 de maio de 2014. Para assinar: www.mtst.org/territorios • facebook.com/mtstbrasil • territorios@mtst.org
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Movimentos sociais e estratégia de classe
Marina Barbosa Pinto
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onversar sobre os movimentos sociais na atualidade exige reconhecê-los como sujeitos sociais que ao mesmo tempo são produto e produzem a conjuntura na qual se manifestam. Para decifrá-los em sua integralidade há que identificar suas determinações estruturais e, assim, entender a correlação de forças entre estes atores do processo histórico e também os sujeitos destas ações. O sistema capitalista tem, nas duas últimas décadas, em resposta à sua crise, intensificado sua ofensiva sobre o trabalho e sobre os processos de reprodução social. Este cenário condensa as reações de diferentes segmentos sociais em diferentes formas organizativas, desde os setores mais clássicos dos trabalhadores em suas formas também clássicas (sindicatos e partidos), como diferentes experiências que inovam nas formas organizativas e de luta e agregam os trabalhadores, desempregados, juventude em torno do direito à vida expressos na luta pela saúde, educação, transporte, moradia, lazer, democracia. Em síntese: no direito à vida na cidade plenamente. Movimento social é manifestação política realizada por sujeitos sociais para enfrentar as contradições político-sociais resultantes do sistema organizado por oposição de classe, sua existência no cenário político é expressão do processo histórico e social, e não um acidente ou uma ação de grupos que têm por definição um comportamento vândalo. A resistência ocorre em âmbito internacional, com levantes por democracia, greves por direitos, enfrentamento ao desemprego, reações à ação do grande capital, defesa do meio ambiente, por políticas públicas universais, dentre outras bandeiras. Tratam-se de respostas massivas da classe trabalhadora aos cortes de direito em meio às políticas de “austeridade”. Mas este cenário de reação ainda não foi suficiente para inverter a correlação de
forças que determina a quadra defensiva da ação da classe em âmbito mundial, visto que prevalece a luta para manter conquistas básicas, para tentar perder menos de seus direitos já consolidados, uma vez que o avanço ideológico, político, militar das forças capitalistas em todo o território planetário se consolidou nas duas últimas décadas. A etapa atual da acumulação do capital se assenta no processo de superexploração da classe trabalhadora como uma expressão intrínseca à nova configuração capitalista. Podemos perceber isso de modo mais nítido e cruel na privação econômica, social, política e cultural a que está submetida a maioria da população, enquanto o desenvolvimento econômico, tecnológico e científico proporciona condições excelentes de bem-estar a poucos indivíduos. Trata-se de um momento de crise e, em tais momentos, as contradições constitutivas se agudizam, provocando uma reorganização das relações sociais e de produção. Na atualidade, tal reorganização ocorre no sentido da intensificação dos processos de mundialização do capital e reconversão produtiva, e do desdobramento dos pressupostos organizativos neoliberais nas relações de trabalho: a reestruturação das políticas sociais a partir de sua privatização e desconfiguração das mesmas como materialização de direitos sociais coletivos, as quais dão sequência às reações da classe dominante à crise de acumulação e expansão do capital e se traduzem para a classe trabalhadora com a precarização de suas vidas. Nesse contexto, é reservado à classe trabalhadora um recrudescimento da exploração por meio de novas configurações nas relações de compra e venda da sua força de trabalho, bem como uma destruição permanente do arcabouço jurídico e social de reconhecimento e efetivação de direitos concernentes à sua reprodução. Destacam-se nestas estratégias do capital: a) a violência institucional, ou a dominação mantida pela coerção mais extrema; b) a contenção da reação pela assistência; c) o investimento ideológico nas propostas de empreendedorismo, empregabilidade, inserção social, responsabilidade social, entre outras, na maior parte das vezes feito diretamente pelos grandes grupos capitalistas, através de fundações privadas, ONGs e entidades empresariais. Profundas mudanças ocorrem e desnudam o grau de exploração da força de trabalho: restrição de postos de trabalho, diversificação de atividades,
fim de atividades laborais, desemprego estrutural, precarização de contratos de trabalho, perda de direitos sociais e trabalhistas, redefinição do papel dos servidores públicos no âmbito dos estados nacionais a partir da reconfiguração do papel do Estado frente à questão social, redução das políticas sociais, medidas assistencialistas, entre outras. Cabe destacar que esse quadro, por não se circunscrever somente à economia e à política, invade a totalidade da vida social, acarretando a conformação de uma nova sociabilidade. Uma racionalidade de caráter pragmático e produtivista alça a competitividade, a eficácia e a rentabilidade ao patamar de únicos critérios válidos para orientar as análises e decisões sobre a vida em sociedade, contribuindo para acarretar forte dessolidarização, expressa no culto ao individualismo, no cultivo da concepção fragmentária do social, na desqualificação da coisa pública, na descrença no potencial emancipatório das classes trabalhadoras. Neste quadro de superexploração da classe trabalhadora e nova sociabilidade marcada pelo pragmatismo e pelo individualismo é que se põe em xeque a relação entre as lutas imediatas e o projeto estratégico de emancipação da classe. Este questionamento tem dois matizes: um que desqualifica os movimentos sociais e seu potencial para organizar a reação dos trabalhadores, porque questiona a classe como agente possível de organizar-se enquanto sujeito autônomo. Nessa concepção, o conflito é deslocado para o âmbito individual concentrando-se na ação solitária do individuo que será o responsável pelo seu fracasso ou vitória no contexto da disputa pelo espaço na sociedade e o máximo de espaço organizativo são as instituições de caráter não governamentais que cumprem papel associativo ou de solidariedade civil destituído do caráter de classe. O segundo matiz é a ressignificação destes movimentos que, em sua maioria, assumem o papel de atuar na perspectiva de organizar a classe para ajustá-la ao processo de acumulação em curso, destituindo o processo de ação do seu caráter conflituoso e marcando assim este espaços como um lugar de constituição de consenso entre patrões e empregados, Estado e população. De fato, o determinante deste processo, o que unifica os dois matizes e os classifica como iguais na diferença, é a perda da referência no projeto estratégico de ruptura com a ordem estabelecida, o que faz com que a ação dos movimentos tenda a se restringir às lutas presas em suas amarras re-
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formistas no enfrentamento com o capital. esse sentido, o processo de organização e politização da classe trabalhadora – e daqueles que se caracterizam como “sem-” terra, teto, etc.– acaba dissociado da experiência de enfrentamento, organização de base, desafio à patronal e ao aparato repressivo estatal, e da unidade com os demais trabalhadores. O que tai experiências exigem é justamente a ação para além do imediato, e na direção da contribuição estratégica para a organização da classe na luta pela sua emancipação. O capitalismo, neste marco, é assumido como única verdade possível para organizar a vida em sociedade, portanto, caberia aos sujeitos submeterem-se e tentar viver o “menos pior” no contexto da ordem. Nesse árido terreno de reorganização da classe, um conjunto de entidades sindicais e movimentos dos trabalhadores resistiram à avalanche que reordenou a ação dos movimentos sociais. Resistiram mantendo sua ação estruturada na perspectiva da organização dos trabalhadores a partir de seus locais de trabalho, pois isso é o que aglutina em torno das reivindicações relativas ao processo de venda de sua força de trabalho e, portanto, propicia a construção das mediações que viabilizam as lutas cotidianas para responder às necessidades destes sujeitos. Mas resistiram também nos espaços de luta pela vida, com destaque para o direito à vida na cidade. Nessa luta, ao definir sua táticas, seu local de ação direta, politizar os debates, as reivindicações e ações, o movimento procura o seu reconhecimento como sujeito, forçando sua presença na arena de negociação; e busca recuperar a condição e a identidade de trabalhador de seus participantes, superando ilusões em relação à democracia liberal. Neste processo de resistência, é possível identificar: a) que alguns movimentos sociais estão demonstrando novas formas de confronto com os interesses dominantes, expressando diferenças frente à trajetória organizativa e a cultura política de esquerda no Brasil; b) que não é possível as configurar como novas formas de representação coletiva da classe trabalhadora, tendo em vista sua metamorfose na atualidade; e c) que essas lutas e resistências se dão num quadro de ainda forte refluxo e num contexto de ausência do operariado da cena política, o que confere limites à intervenção. Mas podemos afirmar que há diversos pontos de unidade entre esses distintos movimentos organizativos de segmentos da classe, tanto os “clássicos”, quanto aqueles que trazem renovação de método de luta e organização. Ambos resistiram mantendo o princípio da independência de classe, o que é o principal ordenador da organização da classe para atuar em defesa de seus direitos: ter o discernimento político e prático de que o lado do trabalhador é um e o do patrão é outro, uma vez que seus interesses no processo organizativo das relações sociais são antagônicos, de modo que não é possível ter uma ação que tenha como horizonte
a unidade institucional e societária entre trabalhadores, patrões e estado. Por fim, resistiram tomando como referência para a construção deste processo a democracia, condição para o envolvimento dos trabalhadores nas suas entidades, nos seus caminhos de luta e no projeto para o qual a ação de sua organização corporativa irá se direcionar. Isso é o que permitirá a participação dos indivíduos na condição de sujeitos sociais coletivos que se unificam pela particularidade de serem vendedores de sua força de trabalho – único bem que os permite lutar pela sobrevivência na sociedade capitalista. A junção destes dois princípios – independência e autonomia – propiciará que os espaços organizativos e de ação de fato representem os interesses dos que vivem do seu trabalho e que escolheram esse lugar para atuar socialmente. Também dará vitalidade à capacidade de reação frente ao processo de ação da classe dominante, pois, com a democracia, o embate das ideias e propostas estará à disposição dos sujeitos e poderá assegurar a politização do processo. Com a independência mantemos a consciência de que os interesses e lugares das classes sociais são distintos, pois seus interesses são antagônicos, o que permite compreender mais profundamente o papel do Estado nesse embate. Mas a junção destes princípios não é suficiente, há que ter como base o projeto estratégico de ruptura com a ordem. Isso é o que permite a unidade, superando a fragmentação, para a luta da emancipação, partindo das necessidades objetivas e levando a luta para patamares mais amplos organizativos e programáticos. No Brasil, na atualidade, o que se verifica é que o processo organizativo da classe, em consonância com o processo internacional, tem confirmado o embate entre dois projetos: um que direciona essa organização para o consenso entre as classes, abandonando a perspectiva de ruptura com a ordem; e outro, minoritário, que mantém como horizonte a superação da organização das relações sociais pelo ordenamento do capital, refirmando a ruptura com a ordem societária capitalista. O governo Lula da Silva cumpriu um papel decisivo para esta configuração majoritária das forças dirigentes da classe, visto que seu governo combinou, por um lado: a) a conjuntura econômica mundial que desenhou um quadro de maior fragilidade dos direitos do trabalho, com aumento do desemprego e recrudescimento da reestruturação produtiva e alteração na relações de trabalho com a precarização e perda de direitos, gerando maior temor
e direcionamento de lutas e reivindicações para se manter os empregos e não por melhorias nas condições destes. Por outro lado, b) a ilusão de que aquele governo era o governo da classe, e portanto suas diretrizes estariam a favor de seus interesses, o que gerou um desarme político e uma “confusão” ideológica como se não houvesse mais distinção de classes, como se todos (trabalhadores e patrões) pertencessem ao “mesmo lado”. Podemos até afirmar que viemos da mesma matéria – as lutas da classe trabalhadora deste país. Porém, na mistura que forjou o seu produto, aquele governo desde seu inicio, era outra coisa, não era mais representante dos interesses dos trabalhadores. Isso fez com que os principais organismos da classe, em especial sua principal central sindical e seu maior partido, assim como os partidos aliados e representantes de segmentos importantes da classe, assumissem um papel de correia de transmissão do governo no movimento, destituindo-se de seu caráter de classe e de capacidade de enfrentamento e construção das lutas perante os ataques do Capital, até porque alguns dos representantes do patronato, também estavam no governo, juntamente com os representantes dos trabalhadores. Acreditamos que a base organizativa dos trabalhadores está no local onde estes exercem seu trabalho e buscam sua sobrevivência e que a autonomia frente a partidos, Estado e governos é condição para manter o princípio da independência de classe. Acreditamos também que a democracia é a condição para responder aos interesses dessa classe. Mantendo a firmeza nestes princípios e tendo a capacidade de ler a realidade e definir a unidade com os que querem lutar em favor dos interesses dos trabalhadores, sempre atuando a partir das reivindicações reais e concretas destes, seremos capazes de aglutinar forças para reverter a quadra defensiva da classe e manter o horizonte de ruptura da ordem como horizonte que dá sentido às lutas sociais. •
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favelização mundial
o colapso urbano da sociedade capitalista Maurilio Lima Botelho
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ivemos um momento crucial na história urbana: a partir de 2008, mais da metade da população mundial vive em cidades. A informação causa estranheza e choque. A vida urbana só agora se torna uma realidade para a maioria da humanidade e, no entanto, a sensação imediata, para a maior parte das pessoas, é que as cidades tornaram-se insustentáveis. Apenas essa constatação demonstra a intensidade dos problemas sociais a serem enfrentados: a margem para crescimento das cidades ainda é imensa, dado que um contingente de pessoas enorme ainda vive no campo; no entanto, o estado das cidades é extremamente crítico. Como as gigantescas aglomerações urbanas podem receber continuamente novos habitantes se os que aí vivem já estão, em boa parte, em estado de penúria e em habitações extremamente precárias? Essa tensão traz para o primeiro plano das reflexões sobre o futuro das cidades a relação entre urbanização e favelização. A evolução urbana mundial hoje é marcada por uma intensa favelização, o que bem poderia ser encarado como uma regressão social: a urbanização contemporânea é, marcadamente, uma involução urbana. Involução, não porque os novos habitantes das cidades, os milhões que chegam para se apertar entre ruelas, barracos, casebres e perseguir avidamente uma sub-remuneração, estejam provocando uma reversão na cultura urbana ou uma decadência nos modos de vida da sociedade. Na verdade, o próprio desenvolvimento capitalista, esgotado em sua dinâmica histórica, provocou um colapso urbano que pode ser visto em diversas manifestações pelo mundo, mas cuja face mais evidente é a exponencial favelização que se alastra por todo o planeta. As massas empobrecidas que engrossam ou expandem os terrenos das favelas por todo os cantos no glo-
bo não são, portanto, as responsáveis por essa regressão urbana mundial, são as suas principais vítimas. Segundo os dados oficiais do Programa das Nações Unidades para os Assentamentos Humanos (ONU -Habitat), somente em países da periferia do capitalismo existem mais de 800 milhões de pessoas vivendo em favelas, o que representa 32% da população dessas nações (em 2010). Mas esse número esconde realidades mais duras. Além de não englobar a favelização no centro do capitalismo (situação grave hoje, por exemplo, nos EUA, países do Sul e Leste Europeu), os dados são rebaixados por relatórios questionáveis fornecidos por países-membros que “solucionam” seus problemas habitacionais com maquiagens estatísticas ou com limitados programas de urbanização de favelas. Os próprios pesquisadores da ONU admitem essas dificuldades em função da maleável classificação utilizada por cada país para definir assentamentos precários, aglomerados subnormais ou favelas. Assim, os números oficiais da ONU apontam para a chegada de 58 milhões de pessoas nas cidades dos países periféricos, entre 2000 e 2010, sendo que, desse total, seis milhões foram morar em favelas. É um número assustador e ao mesmo tempo subavaliado.(1)
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m dos problemas da classificação – evidente quando se tenta reunir realidades nacionais ou regionais distintas sob um mesmo conjunto de dados – é o nível de generalização necessário para conseguir estabelecer identidade entre as formas de habitações apreendidas em diferentes contextos. A categoria utilizada pelo ONU-Habitat e aplicada em relatórios sobre as condições precárias de habitação é slum, um termo que surgiu em Londres, no início do século XIX, para denominar cômo-
dos de “baixa reputação”, utilizados por populações pobres e miseráveis, principalmente famílias de operários industriais que, recebendo baixíssimos salários, tinham que se apinhar em quartos alugados de casas ou edifícios insalubres. Associado a cortiços, casebres, barracos improvisados com diversos materiais etc., o termo, com o tempo, passou a ser utilizado na Inglaterra como uma definição técnica para “casa materialmente imprópria para habitação humana”.(2) Contudo, essa definição é por demais ampla, e as condições que fazem com que uma casa seja considerada imprópria variam de região para região, país para país e mesmo de cultura para cultura. O programa da ONU para a habitação segue, então, um critério pautado na ausência de pelo menos uma das seguintes características: a) moradia duradoura que ofereça proteção contra condições climáticas adversas (tempestades, chuvas etc.), b) espaço suficiente (máximo de três pessoas dividindo um cômodo), c) acesso suficiente e sem grande esforço à água tratada, d) acesso a instalações sanitárias adequadas (banheiro privado ou público dividido com poucas pessoas) e, por fim, e) segurança na posse do imóvel (propriedade regularizada, posse reconhecida ou proteção contra despejos forçados).(3) Embora o termo slum não tenha um correspondente fiel em língua portuguesa, é comum a sua tradução por favela, inclusive pelos próprios órgãos da ONU. (4) A origem da palavra “favela”, como se sabe, se deve ao Morro da Providência, no Rio de Janeiro, próximo à Central do Brasil e ao comando central do Exército, onde se instalaram soldados veteranos da Guerra de Canudos que não tinham para onde ir. Por trazerem uma determinada planta da região do conflito ou por causa de um morro existente no sertão nordestino, o aglomerado de habitações precárias e
improvisadas foi chamado de Morro da Favela. Sendo “favela” o nome de uma planta que apresenta sementes em cápsulas (fava, vagem). Assim, as primeiras décadas do século XX, o nome de uma comunidade específica tornou-se o substantivo genérico que designaria todos os aglomerados habitacionais miseráveis que se erguiam na cidade, principalmente nos morros. Através da imprensa, rádio e depois TV, e graças à condição de capital nacional e centro cultural do país, essa acepção do termo se expandiu do Rio para todo o país, muitas vezes deslocando expressões regionais, como vila, mocambo, etc. Embora utilizado por jornalistas, cientistas sociais, historiadores, geógrafos e arquitetos, os órgãos de pesquisa e estatística oficiais preferem expressões técnicas substitutas de favela, com a justificativa de que esse termo possui conotações locais, culturais e carregam juízos valorativos. Em âmbito nacional, por exemplo, o IBGE utiliza a categoria de “aglomerados subnormais”, definido como o conjunto com mais de 51 habitações carentes de serviços públicos essenciais, ocupando terrenos alheios (públicos ou privados) e estabelecidos de forma desordenada e densa. (5)
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m dos problemas das definições formais é que, como elas dependem da aplicabilidade da leitura realizada, partem de amostras que muitas vezes podem encobrir a realidade: no caso do IBGE, por exemplo, se um conjunto de habitações possuir todas as características estipuladas, mas apresentar menos de 51 casas, então esse aglomerado, essa pequena favela, não entra na contagem – e quantas pequenas favelas dessas existem nas cidades brasileiras? Também as diferentes definições utilizadas por órgãos diversos criam distorções quando se agrupam dados
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thomas leuthard
Com mais de 1 milhão de habitantes, Dharavi é uma “fervilhante colméia de fabriquetas de fundo de quintal e minúsculas moradias” gerais ou quando se avaliam políticas públicas. Por exemplo, enquanto o censo de 2010 indicava um quadro assustador de avanço da favelização no Brasil, um relatório da ONU sobre a situação das cidades, lançado aqui mesmo durante o Fórum Urbano Mundial de 2010, colocava o país entre os primeiros do mundo na “melhoria das favelas”, retirando 10,39 milhões de pessoas das “condições inadequadas de moradia” entre 2000 e 2010. (6) Contudo, o órgão oficial de estatística do governo brasileiro mostrava que, no mesmo período, as favelas tiveram um aumento populacional de 65%, uma ampliação de 4,2 milhões de moradores, somando um total de 10,7 milhões de pessoas vivendo nos chamados “aglomerados subnormais” em todo o país. Enquanto a economia brasileira cresceu, nesses dez anos, 42%, as favelas cresceram, em termos absolutos, 75%. Em algumas regiões metropolitanas, o percentual de moradores em favelas é alto, como em Belém, onde mais da metade dos habitantes estão em favelas (53,9%), ou Salvador, onde cerca de um quarto vive em comunidades (26,1%). Mas no geral, pela estatística oficial, a população moradora de favelas no Brasil é baixa, pois apenas 6% dos brasileiros vivem
nessas condições consideradas precárias. Por mais assustadores que sejam esses dados, entretanto, eles são subdimensionados, pois em Recife, enquanto o IBGE indica 109 “aglomerados subnormais”, a própria secretaria de habitação municipal aponta para “400 aglomerados de baixa renda”. (7) Em São Paulo, cidade com o segundo maior número de moradores de favelas (atrás apenas do Rio), as discrepâncias não são menores: em 2006, o jornal O Estado de São Paulo comparava os números do órgão nacional com os da prefeitura e indicava que, enquanto o IBGE tomava apenas 8,7% da população como residente em favelas (909 mil moradores), a administração municipal apontava para 31% da população paulistana vivendo em condições precárias (3,4 milhões). A grande diferença se deve à metodologia empregada na definição das condições de habitação, assim como a inclusão de cortiços e pequenos agrupamentos que são negligenciados na delimitação dos “aglomerados subnormais”. (8) De qualquer modo, embora possamos reduzir as distorções e as negligências praticadas através dos levantamentos estatísticos, os números são
mudos, descoloridos e incapazes de expressar com um mínimo de concretude as necessidades existentes nas favelas por todo o mundo. Necessidades que têm se ampliado e se aprofundado por todos os lados.
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haravi, na Índia, famosa por ter servido recentemente de cenário para filmes hollywoodianos, é conhecida por ser um grande organismo produtivo informal, uma “fervilhante colméia de fabriquetas de fundo de quintal e minúsculas moradias em que as famílias vivem, trabalham e se divertem quase literalmente uma em cima da outra”. (9) A favela, com uma população estimada de um milhão de moradores, desconhece a separação entre casa e trabalho, pois suas 15 mil residências funcionam como oficinas, a maioria muito pequenas: por exemplo, numa casa de 20 metros quadrados podem dormir 22 membros de uma mesma família. Mais de 2 bilhões de dólares por ano são produzidos em renda nessa favela, mas isso raramente se converte em remuneração para os próprios moradores.
“Em labirínticos corredores, tão estreitos e verticais que a luz do sol bate no chão apenas por minutos, moradias precárias escondem fabriquetas conectadas à economia mundial. Delas saem potes de barro, latões de alumínio, carteiras, sapatos, calças, bonés, roupas, tecidos ultracoloridos para exportação, celulares e toda sorte de eletroeletrônicos recauchutados. Um cemitério de quinquilharias que ressuscita em novos produtos. É como estar num lixão, no meio da sujeira e de odores que trazem à memória temidas doenças. O esgoto jorra na frente das casas e dos barracos. Pilhas de sacos plásticos e sucata descartada pela área mais nobre de Mumbai encontram abrigo e serventia nos quartos, salas e onde mais houver espaço.” (10) Dharavi é a maior favela indiana e a Índia é um dos países com mais grave quadro de favelização no mundo. A décadas de total negligência dos governos, mesclam-se os problemas habitacionais, crescimento econômico acelerado em determinados pólos e zonas econômicas especiais, mas geração de emprego insuficiente para a grande maioria das milhões de pessoas que buscam anualmente uma nova vida nas cidades. Mumbai (onde fica a favela de Dharavi), antes chamada
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Bombaim, é a vitrine de todos esses problemas: maior cidade do país, as favelas são inúmeras e infindáveis: “Qualquer pessoa que visite Bombaim se impressiona com as enormes favelas, que se estendem a perder de vista desde a extremidade do aeroporto – a barriga do avião chega quase roçando os tetos ondulados e enferrujados de um mar de choças empoeiradas antes de transpor o alambrado da extremidade da pista. À noite, os sem-tetos ocupam todos os trechos de pavimento livre. Calçadas, entradas de prédios, o espaço sob viadutos em construção são cobertos pelos vultos adormecidos dos pobres. Mães abrigam bebês e criancinhas no aconchego de seu corpo, sem outro meio para defendê-las. Os que têm sorte bastante para ter um charpai, uma cama simples de madeira e molas, se amontoam nela, a cabeça de um ao lado dos pés do outro. Há barracões, choças e moradores de ruas ao lado de clubes de campo, colados a prédios de apartamentos luxuosos.Apesar do vertiginoso crescimento da construção de moradias, 60% dos 18 milhões de pessoas que constituem a população de Bombaim vivem em favelas ou nas ruas. Isso significa 10,8 milhões de pessoas. Em Dharavi, a maior favela de Bombaim, há um banheiro para cada 1.500 pessoas. De acordo com o último recenseamento da Índia, feito em 2001, 40 milhões de habitantes das cidades indianas vivem em favelas, apenas “49,5% das famílias urbanas tinham água encanada em casa e somente 57,4% possuíam instalações sanitárias”. (11) Com uma tradição de tratamento violento do problema das ocupações irregulares (o caso mais famoso é a decretação do Estado de Emergência, em 1975, no governo de Indira Gandhi, para que favelas fossem destruídas), a Índia tenta hoje resolver o problema das aglomerações de habitações precárias por meio de parcerias público-privadas (PPPs), onde a força também comparece. Incorporadoras e construtoras são contratadas para eliminar favelas e explorar o espaço liberado, desde que forneça um teto para os antigos moradores em espigões com apartamento minúsculos. Dharavi está na mira dos tratores: uma das grandes PPPs em curso no país tem por objetivo construir um grande conjunto comercial e residencial no local da favela, assentando para isso os antigos moradores em conjuntos habitacionais. Como as residências do emaranhado são, no fundo, unidades produtivas, a maioria dos moradores é contra a remoção, pois o deslocamento para apartamentos deve liquidar com suas fontes de renda. Em muitos casos, os loteamentos irregulares, sejam sobre as áreas agrícolas ou desérticas, são feitos por terceiros que vendem os pequenos lotes sem possuir nenhum título ou garantia da propriedade. Uma das características que acompanham a expansão mundial das favelas é exatamente a formação de um vigoroso mercado imobiliário informal voltado para as
populações miseráveis – não bastando a miséria extrema, até mesmo o acesso a um pequeno terreno ou um barraco só se torna viável, na maioria das vezes, através da compra. O mercado é um corpo totalitário que se interpõe mesmo entre os mais miseráveis – o acesso não-mercantil à habitação, ue parecia uma característica das áreas favelizadas no passado, está agora se tornando raro. Talvez um dos maiores desafios para a questão urbana no mundo contemporâneo seja exatamente essa ampliação e consolidação de um mercado imobiliário informal irregular – e muitas vezes ilegal – em torno das favelas, que se expandem ou se multiplicam por todo o mundo. Segundo a ONU, em relatório divulgado em 1996, a maior parte dos acréscimos realizados nos estoques de moradia “na maioria das cidades do [hesmifério] Sul nos últimos 30 ou 40 anos” tem sido feita pelo mercado imobiliário ilegal ou informal. Mas o órgão alerta que, mesmo nos países do Norte, a participação desse mercado tem sido importante para a oferta de novas habitações a preços baixos. (12)
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egundo a ONU, até 2020, o número de habitantes das favelas em todo o mundo deve chegar a cerca de 900 milhões de habitantes. Metade de todo o crescimento das favelas se deve ao crescimento interno da população já presente nas comunidades, um quarto se deve ao êxodo de populações do campo para a cidade, que encontram nas favelas a única alternativa de moradia, e o outro quarto do crescimento se deve à incorporação de áreas rurais ao redor das cidades, engolfadas pela expansão urbana através das favelas. A urbanização da humanidade, uma realidade aparentemente óbvia, mas somente agora tornada real, é o resultado da aceleração da fuga para as cidades: milhões de pessoas são expulsas de suas terras por jagunços, seguranças privados, paramilitares empregados dos grandes proprietários de terra ou simplesmente porque não conseguem concorrer com a dinâmica destrutiva do agronegócio globalizado. Mas há algo novo na relação entre campo e cidade: a urbanização sem limites, estendendo-se pelo horizonte (chamada por especialistas de urban sprawl, ou urbanização “esparramada”), lança suas franjas por cima das terras antes destinadas à agricultura. Em muitos países da periferia do capitalismo, as favelas são a forma intermediária entre as cidades propriamente ditas e o campo, formando um continuum rural-urbano marcado pela pobreza. Como definiu com precisão o geógrafo norte-americano Mike
Davis, “em muitos casos, a população rural não precisa migrar para a cidade; a cidade migra até ela”. (13) Do mesmo modo que a relação entre campo e cidade parece ter mudado, há algo absolutamente novo na história da urbanização em nossos dias: a urbanização do fim do século XX e início do XXI torna-se independente da geração de empregos ou do crescimento econômico. Enquanto a saída do campo, no passado da sociedade capitalista industrial, estava associado à oferta de emprego nas cidades ou mesmo ao crescimento como um todo da economia nacional, a urbanização de hoje não apenas ocorre em velocidade muito superior ao crescimento econômico apresentado pelos mercados nacionais, como muitas vezes ocorre sem crescimento econômico. Assim, “a urbanização atual não está apoiada na expansão da indústria e do emprego (...). Trata-se, em geral, do paradoxo de uma ‘urbanização sem crescimento’ econômico, ou de uma urbanização da pobreza”. (14) Por isso, a favelização é uma marca indissociável da urbanização atual. No passado, o processo de urbanização acelerado puxava consigo a favelização, resultado da concentração de riquezas ou da desproporção entre oferta habitacional e demanda crescente nas cidades. Mas a crise econômica e a miséria generalizada têm invertido a relação: em muitos lugares a favelização é que tem puxado a urbanização ou, o que é mais preciso, ocorre uma favelização sem urbanização, já que a aglomeração de barracos e casebres por quilômetros sem saneamento, infraestrutura, vias de circulação ou equipamentos públicos, não poderia ser chamado de espaço urbano rigorosamente. É como se estivéssemos presenciando o nascimento de um mundo pós-urbano, uma urbanização sem a formação de cidades – os conceitos são de difícil aplicação porque a realidade, catastrófica e original, não se deixa definir. Em todos os casos, a urbanização quase se tornou um sinônimo de favelização e, no entanto, por mais crítica que seja a situação dessas cidades em crise, o florescimento do mercado imobiliário informal e/ou irregular é apontado por instituições e organismos econômicos internacionais como a alternativa para a carência de moradia. Organismos como o Banco Mundial ou mesmo o ONU-Habitat, principal órgão internacional preocupado com os descaminhos das formas de habitação no mundo, ressaltam em seus documentos oficiais e discursos o papel da transformação da terra, dos imóveis e das casas em
mercadorias, o que permitiria flexibilizar o seu acesso. A solução neoliberal para o problema habitacional é na verdade o reforço da interdição à habitação, ou seja, a consolidação da moradia como uma mercadoria que precisa ser obtida por meio de uma relação monetária. Os organismos internacionais e seus intelectuais estimulam, por exemplo, o reconhecimento, a regularização e mesmo a titularização das áreas ocupadas informalmente, dos assentamentos precários e das favelas, prioritariamente como forma de transormação em propriedade privada, portanto em conversão da posse da habitação numa mercadoria. Pretende-se combater a carência habitacional estimulando-se as suas causas, principalmente as condições que tornam possível a especulação imobiliária. Para aqueles que vivem em situações de extrema pobreza, precariedade e insegurança econômica e residencial, é evidente que o reconhecimento da posse de sua moradia, por mais precária que seja, torna-se um passo importante para garantir a estabilidade social. Mas o mero reconhecimento como parte de inclusão nos circuitos do mercado imobiliário é uma estratégia inconseqüente que poder levar à posterior expropriação indireta. A crítica radical dessa situação, em que mesmo na mais extrema pobreza o mercado acaba vencendo, deve começar pela reabilitação da esquecida proposta de revolução urbana. Nos marcos de uma sociedade capitalista em crise, cada vez mais excludente e destrutiva, a formulação imediata dos caminhos dessa revolução deve ser o acesso à moradia por fora do mercado, inclusive o informal.•
(1) Estado das Cidades do Mundo 2010/2011 – Unindo o Urbano Dividido – Resumo e Principais Constatações, (2) Slums of the World: The face of urban poverty in the new millennium, UN-Habitat (3) C.f. Slums of the World: The face of urban poverty in the new millennium, UN-Habitat, 2003. (4) e (6) Estado das Cidades do Mundo 2010/2011. (5)Censo Demográfico 2010: Aglomerados Subnormais – Primeiros Resultados, IBGE. (7) Em Pernambuco, 852 mil pessoas moram em “aglomerados subnormais”, O Globo, 22 de dezembro de 2011. (8) SP engana: um terço vive de forma precária, O Estado de São Paulo, 12 de fevereiro de 2006. (9) e (11) Kamdar, Mira. Planeta índia: a ascensão turbulenta de uma nova potência global. (10) Megacidades: Mumbai, O Estado de São Paulo, 3 de agosto de 2008. (12) An Urbanizing World: Global Report on Human Settlements, UN-Habitat, 1996, p. 239. (13) Davis, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006 (14) Arantes, Pedro Fiori. O lugar da arquitetura num “Planeta de favelas. ” In: Opúsculo 11, 2008, p. 4.
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Plano Diretor de São Paulo: o leão do dia Guilherme Boulos
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esde o fim de tão atualmente ocupadas 2013, o Plano pelo Movimento, alguDiretor Estratémas em regiões de alta gico de São Pauvalorização imobiliária, lo, a maior cidade do país, como a Ocupação Faixa entrou em debate de revisão de Gaza, no Morumbi. É um documento oficial que orienta a utilização do território de um município. Nele e aprovação. Foram dezenas Ainda em relação às estão sintetizados os objetivos de quem controla a cidade, por isso é um instrumento de de audiências oficiais e ouZEIS, conseguimos depoder e alvo de disputa entre setores opostos. No Plano Diretor define-se, por exemplo, tras tantas mobilizações não finir uma reserva para a quantidade, os tamanhos e onde serão as áreas para construção de moradias, -oficiais organizadas pelo os trabalhadores mais praças, aparelhos de saúde ou lazer, etc. Define-se também o mesmo sobre centros MTST e outros movimenpobres. O conceito de comerciais, empresariais e condomínios de luxo. Ou seja, quem exerce o poder ou tem tos populares para incidir no HIS é amplo, podendo mais influência no Estado, como é o caso do capital imobiliário, define a orientação do texto e torná-lo mais comabranger até mesmo faPlano Diretor e se favorece dele. É um campo de batalha entre as classes que vivem na patível com os interesses dos mílias com renda mensal cidade e o lado dos mais pobres que começam a reagir... trabalhadores urbanos. de 10 salários mínimos. Nesse processo, conseNo entanto, 70% do guimos um avanço inicial. déficit habitacional braO único interlocutor públisileiro é composto pela do Orçamento da União, principal- rão revertidos por um Plano Direco do Plano era – como de chamada Faixa 1, isto é, costume – o setor imobiliário. Com mente via PAC e MCMV. Podemos tor. A transformação dessa situação, famílias com renda mensal de 0 a 3 seu poder político alçado pelo fi- afirmar sem receio que foi o setor traduzida numa Reforma Urbana salários mínimos. O texto do Plananciamento maciço de campanhas econômico que mais obteve fun- Popular, não se fará por Projeto de no Diretor garantiu que no mínimo eleitorais, as empreiteiras e incorpo- dos públicos durante os governos Lei ou Decreto. Nenhum Plano Di- 60% das habitações construídas em radoras sempre moldaram os planos petistas. As grandes empreiteiras retor, na atual relação de forças, será ZEIS terão de ser destinadas à Faixa diretores e a legislação urbana por tornaram-se trustes, com ações em capaz de reverter a lógica do capital 1, o que representa uma vitória do seus interesses econômicos. Des- vários outros segmentos da econo- imobiliário. interesse popular contra o mercado. Mas pode ser parte de um prota vez, não foi diferente e fizeram mia, e se internacionalizaram alçaSegundo, conseguimos incluir pesados lobbies para a aprovação de das pela política externa de Lula. Se cesso de enfrentamento constante pontos relevantes nas diretrizes do já tinham hegemonia sobre o mo- e calcado nos movimentos popu- Plano: uma política de prevenção suas propostas. Porém, agora surgiu um ator delo de desenvolvimento urbano, lares. É nesse sentido que vemos o de despejos forçados; o estímulo à que não estava convidado. Os mo- passaram a ter controle completo. Plano Diretor como o leão do dia. construção de habitação popular vimentos populares fizeram intensa Definições das localizações de no- É preciso “matá-lo” incorporando por gestão direta das entidades pomobilização no último período, es- vos empreendimentos, de regiões de ao máximo propostas de contro- pulares; e ajudamos a defender um pecialmente em relação ao tema da crescimento e das políticas públicas le da especulação e de estímulo à ponto importante, que já constava moradia popular, e com isso nos fir- para o setor passam essencialmente apropriação social do território, seja do PL original do Prefeito, que é o mamos como interlocutores do pro- pelos agentes de mercado ligados ao para moradia popular seja para ser- estabelecimento da Cota de Solidaviços e espaços públicos. cesso. Foram forçados a nos ouvir e setor imobiliário. riedade – um dispositivo que obriga O resultado deste processo de Foi nessa direção que se pautou empreendimentos com mais de 20 incorporar algumas de nossas questões. Ao invés do domínio incon- privatização da política urbana é a intervenção do MTST nos deba- mil m² de área a doarem um percenteste do mercado, estabeleceu-se sabido. Valorização imobiliária bru- tes do Plano Diretor de São Paulo. tual de área para habitação popular. tal, colonização de regiões perifé- Já havíamos tido experiências de um conflito de forças mais aberto. Por último, contribuímos com Vereadores mais diretamente li- ricas pelo mercado e expulsão dos menor monta em municípios da as propostas desenvolvidas pelo Regados ao mercado e o próprio Se- mais pobres para periferias mais dis- RMSP, como Taboão da Serra e lator Nabil Bonduki no sentido de Embu. Nestes casos conseguimos buscar dar mais eficácia aos mecacretário de Desenvolvimento Ur- tantes. Os instrumentos do Estado para melhorar consideravelmente as di- nismos de combate à especulação bano (responsável pelo PL original) tiveram que ceder em pontos im- regular esse processo foram esvazia- retrizes dos Planos. imobiliária previstos no Estatuto portantes para nós. O MTST ela- dos ou não são exercidos. Regula- Em São Paulo, a maior e mais rica das Cidades, tais como o IPTU proborou uma proposta que, de forma ção urbana no Brasil não existe. E cidade do país, o jogo de interesses gressivo no tempo, a desapropriação geral, foi incorporada no PL Substi- isto tem a ver, dentre outras coisas, é mais pesado. Mas a mobilização de áreas ociosas com títulos da dívitutivo, relatado pelo vereador Nabil com o papel das construtoras e in- também o foi. Conseguimos mo- da pública e a dação em pagamento. corporadoras no financiamento das bilizar mais de 10 mil trabalhadores Bonduki (PT). Foi um avanço, considerando as Antes de pontuarmos estas con- campanhas eleitorais. Executivo e sem-teto nas audiências e em ma- relações de forças na sociedade e o quistas, vale uma consideração. O Legislativo estão, de modo geral, nifestações relacionadas ao Plano. peso do setor imobiliário na econopoder do mercado imobiliário e da capturados pelo mercado em todos Como resultado, várias propostas mia nacional. Mas temos a clareza construção civil e pesada no capita- os níveis. O Judiciário, por seu lado, indicadas pelo Movimento foram de que este foi apenas o leão do dia. lismo brasileiro é desproporcional. alinha-se por seu conservadorismo contempladas. Outros virão e exigirão muito mais Em primeiro lugar, aumenta- mobilização popular. Combater a Se já eram historicamente acostu- e elitismo inerentes. É nesse contexto que temos de mos a quantidade de áreas marcadas apropriação do espaço urbano pelo mados às benesses do Estado, estes setores da economia, nos últimos pensar o Plano Diretor de São Pau- como ZEIS (Zonas Especiais de In- capital exigirá um profundo acúmuanos, foram os maiores beneficia- lo e de qualquer outra metrópole do teresse Social), que são destinadas à lo de forças dos trabalhadores das dos pela generosidade do crédito do país. Os interesses econômicos em moradia popular. Conseguimos in- periferias. E as grandes batalhas não BNDES e por investimentos diretos jogo são muito poderosos e não se- clusive garantir várias áreas que es- serão vencidas com leis ou decretos.•
O que é o Plano Diretor?
10 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Megaeventos e capital imobiliário:
um caso de amor copa2014-danilo
Guilherme Simões
Estádio Mané Garrincha, no Distrito Federal, é o mais caro da Copa: desvios de verbas públicas estimados em mais de 430 milhões de reais.
E
m qualquer lugar de nossa sociedade capitalista global, a realização de um grande evento, seja esportivo ou não, mobiliza sempre muitas questões. O público-alvo, a movimentação de pessoas e mercadorias, a lucratividade, as condições para a realização do evento em si, o intercâmbio cultural e mercadológico e, finalmente, seus impactos e legados para a cidade que o recebe. Como se sabe, quanto mais industrializado um país, mais urbanizado ele será, em um aprofundamento da contradição entre capital e trabalho. Nas metrópoles, essa contradição é caracterizada por uma profunda segregação territorial levada a cabo pelo Estado através dos seus seguidos governos no sentido de garantir a lucratividade para as empresas. Nesse sentido, o Estado garantiu essa infraestrutura para a ampliação da indústria; gerou os bens de consumo coletivo estritamente necessários à reprodução da força de trabalho e, por fim, garantiu a ordem e o controle social com a contenção de movimentos reivindicatórios. Parceria fundamental entre Estado e iniciativa privada para a urbanização, ao mesmo tempo em que se empreendeu um profundo e devastador processo de espoliação urbana. Entretanto, com o rápido crescimento
da vida social na cidade, o local de moradia dos trabalhadores tornava-se cada vez mais parte da assim chamada questão social. As vilas operárias, característica da “solução” habitacional do período, já não podiam dar respostas à necessidade de moradias, tanto pela quantidade de operários atraídos pelo desenvolvimento econômico quanto pela valorização cada vez maior dos terrenos. Este movimento fica evidenciado com a configuração da cidade e o crescimento de sua periferia. A especulação imobiliária é, justamente por essas razões, uma atividade extremamente lucrativa, e não esteve e nem está isolada, sendo parte de um dos braços mais robustos do capitalismo brasileiro, justamente porque não depende de um alto grau de desenvolvimento de forças produtivas para efetivarse. Assim, o mercado imobiliário passa a determinar o crescimento da cidade, se apropriando de imensas áreas em volta do centro e “liberando” áreas periféricas para os mais pobres, o que também não é a esmo: sabe-se que, tendo onde morar (mesmo com imensa precariedade), o trabalhador não receberá parte de seu salário que seria investido em habitação, isto é, essa dinâmica também rebaixa os salários, aumenta a exploração do trabalho e, por conseguinte, os lucros.
Para supostamente diminuir o déficit habitacional, não é de hoje que o Estado apresenta “soluções habitacionais”, com objetivos para além de ajudar quem precisa de casa. O BNH (Banco Nacional de Habitação) durante o período militar chegou a construir mais de um milhão de moradias. Entretanto, o financiamento dessa “política habitacional” era quase exclusivamente (em 80% dos casos) para trabalhadores de renda média e alta, isto é, o foco não era habitacional, mas voltado para a indústria da construção civil. Já nos anos 2000, novamente auxiliada pelo Estado, dessa vez sob égide de um governo democrático-popular, a indústria da construção civil e, por consequência, a especulação imobiliária ganham grandes investimentos. Pacotes econômicos planejados pelo governo federal socorrem a construção civil em pleno período de crise das bolsas de valores. Em 2009, após o anúncio do Minha Casa Minha Vida, as ações de várias construtoras puxam a alta da Bovespa. O jornal “O Globo” não poderia ser mais claro: “O ano de 2009 se aproxima do fim e é hora de fazer as contas. Quem olha para trás e ignora o que aconteceu antes de janeiro nem acredita que vivemos “a pior crise desde 1929”, como tanto se afirmou. Faltando apenas seis pregões
para o investidor estourar o champanhe, o Índice Bovespa (Ibovespa), principal indicador da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), deve encerrar o ano com alta de cerca de 80% (...) o grande vencedor foi o setor da construção civil, cujas ações sobem, em média, 204%” Não somos especialistas em economia financeira, mas os dados são bastante convincentes... Ora, a escolha do Brasil como sede de megaeventos como a Copa do Mundo ou Olimpíadas não poderia se dar de maneira alheia a essa dinâmica. Sabe-se que os promotores desses eventos são empresas privadas de variados ramos (turismo, entretenimento, alimentos, etc.) que não visam nada menos que um evento lucrativo. Sabe-se também que para que isso se viabilize, são necessárias uma série de intervenções na cidade do ponto de vista da mobilidade urbana, etc., as quais não podem ocorrer sem gerar um grande impacto social, na medida que alteram o cotidiano da cidade e, por conseguinte, de toda a população urbana, especialmente os trabalhadores. Repõese de maneira mais intensa um conflito que não é inédito, mas antes é fundador da cidade: a avidez da multiplicação dos lucros contra as necessidades coletivas de uma imensa massa de pessoas que vivem e sobrevivem na cidade.
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N
o Brasil, todas as cidade sede sofreram e sofrerão importantes impactos por conta da realização da Copa do Mundo de 2014. Mais adiante traremos alguns exemplos. Por ora destacaremos Itaquera, bairro periférico da Zona Leste de São Paulo, que sediará seis jogos da Copa do Mundo 2014, entre eles, a concorrida abertura do torneio. Lá, está sendo concluída a obra da arena que abrigará os jogos. Além do fato de ser um empreendimento privado (uma parceria entre a gigante da construção civil e pesada Odebrecht e o Sport Club Corinthians Paulista) que está sendo quase integralmente financiado com dinheiro público, sendo R$ 400 milhões emprestados pelo BNDES e mais R$ 420 milhões em CIDs (Certificados de Incentivo ao Desenvolvimento) dos governos estadual e municipal de São Paulo, está em curso um rápido e atabalhoado processo de mudanças naquela região, algumas das quais veremos a seguir. Vale ressaltar que Itaquera é uma região periférica que vem recebendo “incentivos econômicos” e se tornando uma espécie de fronteira urbana. Ainda nos anos de 1970, o bairro tinha pouca infraestrutura urbana. Sua população era composta de operários e trabalhadores assalariados no comércio e no setor de serviços. Grande parte dessa população pagava a casa própria em parcelas a perder de vista. Terrenos vazios eram produtos da especulação imobiliária e conviviam com ruas de terra e muita precariedade. Seguindo a lógica de valorizar áreas centrais e expulsar os mais pobres para a periferia, o governo municipal inicia a construção das Cohabs (prédios populares) nos anos de 1980, causando grande explosão demográfica no bairro. Esse processo se agravou com a chegada do metrô, obra que gera grande valorização dos terrenos mais próximos e também exige moradores com maior poder de consumo. Para se ter uma ideia, a implantação do canteiro de obras do Metrô dobrou o preço dos terrenos, em média. Estavam dadas as bases para uma constante valorização fundiária que iria transformar definitivamente o bairro: de uma região periférica quase inútil para a especulação imobiliária e empreendimentos privados,
Itaquera passa a ser objeto de investimentos altamente lucrativos. Se bem que ainda preservava um inconveniente para essa lógica: um grande número de trabalhadores pobres e de moradias precárias. A escolha (forçada) de Itaquera como sede da Copa do Mundo abre um novo momento desse processo. Dezenas de obras de infraestrutura já foram feitas ou estão em andamento. Obras como a duplicação de um trecho da avenida Radial Leste e a construção de um dos chamados parques lineares prevêem o despejo de milhares de famílias. Segundo matéria do UOL de setembro de 2013, a Prefeitura de São Paulo recebeu “doação” de uma área da empresa Itaquera Desenvolvimento Imobiliário após pagar R$ 1,8 milhões pela desapropriação de outra área da empresa. Nessas áreas serão construídas um “Pólo Institucional” (complexo de construções comerciais e institucionais) e duas novas avenidas. O Complexo Viário Itaquera foi parcialmente entregue em abril de 2014, segundo previsão da Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S/A), responsável pelos serviços. Importante ressaltar que: a incorporadora Itaquera Desenvolvimento Imobiliário condicionou a doação da área à desapropriação de outra; o tamanho total das áreas adquiridas pela prefeitura é de quase sete por cento do total de áreas de propriedade da empresa; o acordo se deu pela notória e extrema valorização que essas outras áreas terão em um futuro muito breve. Enquanto isso a valorização dos terrenos no entorno é crescente. Segundo pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Corretores de Imóveis do Estado de São Paulo (Creci-SP) o preço de um imóvel usado no bairro da Copa teve aumento de mais de 50% em seis meses, entre janeiro e julho de 2012. Portanto mais de dois anos antes do evento, a construção do estádio que vai sediar jogos da Copa em 2014, em São Paulo, já teve impacto no mercado imobiliário do bairro de Itaquera, mesmo sem nenhuma obra em andamento. Durante esse período, para se ter uma ideia, o valor do metro quadrado de casas de dois dormitórios saltou de R$ 2.272,66 para R$ 3.508,06. Considerando todos os elementos da pesquisa, a valorização do
entorno chegava a cerca de 40%. O presidente do Creci-SP, José Augusto Viana Neto, em entrevista ao site monitormercantil em novembro de 2012, comemora: “As pessoas sabem que a região vai receber obras de infra-estrutura e melhorias urbanas e isso acaba provocando uma antecipação da valorização futura dos imóveis, cujos limites vão sendo testados à medida que essas melhorias vão se materializando”. A valorização em 6 anos de mais de 160% para compra de imóveis é bastante convincente, bem como a de quase 100% para aluguéis em menos de 4 anos. Novamente não é necessário ser expert em economia para entender que a alegria do setor imobiliário faz com que milhares de moradores daquele bairro saiam e procurem outras localidades com preços acessíveis à sua renda. Locais evidentemente mais longínquos e precários. Temos aí uma justificativa concreta para uma ação como a ocupação “Copa do Povo”, organizada pelo MTST em Itaquera.
S
abe-se que o Brasil forma junto com Rússia, Índia, China e África do Sul o grupo conhecido como BRICS, intitulado como as principais economias emergentes do mundo. Nada mais se trata do que aqueles países da periferia do capitalismo que não podem, por sua origem colonial e/ou de capitalismo tardio, desfrutar de uma industrialização plena, tampouco de uma exploração da força de trabalho completamente regulamentada. Nesses países, a exploração do trabalho reúne outras características como o menor valor da força de trabalho e a presença marcante do Estado como garantidor e mantenedor da economia de mercado. Em tempos de agudização da crise nos centros, nada como grandes eventos na periferia que tragam a recuperação para os primeiros e os gastos para os últimos. Seja uma guerra ou uma Copa do Mundo... Laura Capriglione, blogueira do site apublica visitou um alojamento de despejados por obras em Johannesburgo, a “próspera” e “emergente” capital sulafricana. Segue um trecho de seu artigo O “legado” da Copa na África do Sul: “entramos na escuridão do prédio, onde pelo menos duas mil pessoas acotovelavam-se no
chão, em um frio de zero grau. No lugar de colchões, papelão. O cheiro azedo de urina e suor, misturado a alguns restos de comida, criava uma atmosfera nauseante. Como faltasse espaço no chão, vários homens tinham de dormir nas escadarias do prédio. Mas os degraus estreitos não permitiam a acomodação na largura. O jeito era enrolar-se no cobertor fino e, como uma múmia, tentar se equilibrar –a cabeça em degraus mais altos, os pés nos mais baixos. Qualquer movimento em falso e o corpo escorregava; às vezes atropelando outro albergado no lugar. Cercados pela polícia, os sem-teto da Igreja Metodista eram os últimos remanescentes da “faxina” promovida pelo governo de modo a retirar da cidade-sede da Copa do Mundo, os milhares de sem-tetos que vivem nas ruas de Johannesburgo, principalmente no centro”. A professora Raquel Rolnik (FAU -USP) afirma que cerca de vinte mil famílias sulafricanas foram removidas por conta da realização da Copa do Mundo de 2010. Na Cidade do Cabo, outro importante centro urbano do país, por estar localizada numa região geopolítica e comercialmente estratégica, as obras, como não poderia deixar de ser, também deixaram seu legado. Moradores de rua do centro da cidade foram removidos para uma favela improvisada com contêineres de zinco, bem longe da vista dos aficionados por futebol. Conhecido como Cidade de Lata, esse bairro (que pode ser considerado como um verdadeiro campo de concentração) reuniu cerca de três mil pessoas, que tiveram a promessa de construção de moradias definitivas. Tal promessa ainda não se realizou, mesmo quatro anos depois do mundial. A Copa do Mundo foi a chance da cidade se ver livre dos pobres inconvenientes. Era para ser um abrigo provisório, enquanto se construíssem habitações dignas. Mas os pobres seguem no mesmo local, “morrendo de frio no inverno e assando no verão”, relata Capriglione. Vale dizer que a Cidade de Lata fica a cerca de 30 km do centro da Cidade do Cabo, onde foi construído o suntuoso estádio Green Point, com capacidade para 55 mil torcedores, ao custo de US$ 600 milhões. Naquela região ergueu-se também um refinado centro comercial, bastante avesso à pobreza... Já na China, de acordo com Ricar-
Indíce zap/FIPE
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Copa 2014 (Portal Transparência)
do Ricci Uvinha, articulista da revista Motrivivência, esse outro membro dos BRICS, por ocasião do Jogos Olímpicos em Pequim no ano de 2008, realizou dez mil obras de infraestrutura a partir de 2001. Nessa conta também estão estádios, hotéis, avenidas, restaurantes, entre outras edificações que criaram grande contraste com os templos e outras construções milenares daquele país. No transporte, o metrô recebeu mais de 87 quilômetros de vias, com seis novas linhas. Ao todo, estima-se que foram gastos em torno de US$ 42 bilhões de dólares para essa edição dos Jogos. Segundo a ONG Centre on Housing Rights and Evictions (COHRE), 1,5 milhão de pessoas foram despejadas e 300 mil casas foram demolidas em Pequim para a realização de obras como o Ninho do Pássaro e o Cubo d’Água. Novamente, os dados oficiais não são precisos, mas a valorização e o crescimento da especulação imobiliária nos territórios de Pequim foram notórios. Para se ter uma ideia, no distrito de Qianmen, um dos mais antigos de Pequim, mesmo depois de a Comissão Municipal de Planejamento decretar um plano de conservação para proteger suas 25 áreas históricas na Cidade Velha de Pequim, novos “habitantes” foram aparecendo após o anúncio dos jogos olímpicos. Rolex, Prada, Starbucks, Nike, Adidas, Apple, etc. conviviam com as antigas estruturas e também com moradores que, aos milhares, deram lugar à obras turísticas e de estrutura para o megaevento. Foi justamente de Qianmen que surgiram os principais protestos de moradores despejados pelas obras das olimpíadas mais caras da história. Apesar de fazer parte do ambicioso projeto modernizador do gigante asiático e, por isso, ter gasto com muito mais melhorias do que a média mundial, as Olimpí-
adas de Pequim também deixaram um legado de segregação social e territorial típicos da urbanização monopolista. Nunca é demais lembrar que Barcelona sofreu com aumento da especulação imobiliária; Seul despejou cerca de 15% de sua população; a Grécia faliu poucos anos após sediar as Olimpíadas; o Qatar já tem 1200 trabalhadores que morreram durante obras pra 2022 e o país utiliza trabalho escravo de imigrantes nas obras... No caso do Brasil e seu próximo megaevento (a Copa do mundo de futebol), um dos principais impactos/ legados da Copa do Mundo de 2014 são os gastos astronômicos com as obras ditas necessárias à realização do evento. Aeroportos, avenidas, trem, metrô, estádios, hotéis, portos, segurança pública, telecomunicações, etc. estão entre as demandas do mundial. Na tabela, podemos ver com certa clareza os gastos totais que chegam a quase R$ 26 bilhões, com boa parte financiada (empréstimo) do governo federal (mais ou menos R$ 8 bilhões, mas com a maior parte, cerca de R$ 14 bilhões garantidos como obras-legados (investimento direto) dos governos federal, distrital, estaduais ou municipais. A iniciativa privada gastará em torno de R$ 4 bilhões resumidos aeroportos (privatizados) e os estádios Arena da Baixada e Beira Rio (menos de R$ 1 bilhão). Se apenas com o futebol, o capital sugou tudo isso, o lema agora é: imagina nas Olimpíadas! Uma das principais características dos chamados legados dos megaeventos é o “embelezamento” urbano. Várias cidades que receberam esses eventos passaram a ser verdadeiros objetos de desejo de empresas dos mais variados ramos. Não há segredo. A resposta para essa atração é a possibilidade de lucrar mais (e recuperar taxas de lucro ameaçadas pela recessão mundial). E isso não se dá apenas pela vi-
sibilidade que ganham as cidades ao promover essas grandiosas festas mundiais. Além desse fato óbvio e insuficiente para o ímpeto de lucratividade está a absurda valorização dos territórios sede. Ao construir enormes redes de infraestrutura (metrôs, avenidas, portos, aeroportos, túneis, hotéis, etc.) as cidades promovem outra festa: a da especulação imobiliária. Os territórios em volta dessas construções são valorizados, o que significa dizer que, por exemplo, atividades imobiliárias como o aluguel serão mais lucrativas dali em diante, o que já demonstramos com o caso de Itaquera. Mas não é só isso. A outra faceta da especulação imobiliária é “criar” valor para outras atividades econômicas daquela região valorizada. O turismo, a gastronomia, o entretenimento e até o transporte ficam mais caros quanto mais próximos de regiões valorizadas. O que faz com que os mais pobres fiquem cada vez mais restritos também em sua mobilidade. E assim a cobra come o próprio rabo na perversa dinâmica urbana do capitalismo contemporâneo. Entre os nefastos resultados disso está o fortalecimento do capital imobiliário. No caso do Brasil, esse braço da economia vem se tornando cada vez mais importante, como já citado. Vejamos alguns dados de como isso tem se desdobrado. De acordo com o índice Zap/Fipe do mercado imobiliário, São Paulo registra registra alta de 195,2% no preço médio dos imóveis entre 2008 e 2013 - isto é, o preço praticamente triplicou em 5 anos. O aluguel variou 95,1% no mesmo período, quase duplicando. No Rio de Janeiro, o aumento no preço dos imóveis chegou a 234,2% e no caso dos aluguéis foi de 131,1%. No caso brasileiro, é evidente que o fortalecimento do setor imobiliário não se restringe aos megaeventos. As bilionárias linhas de crédito por meio do PAC e Minha Casa Minha Vida alçaram
a construção civil ao mais alto posto no capitalismo brasileiro. Isso pra não tocar no fato de que algumas delas se internacionalizaram nesse processo, casos da Odebrecht e OAS. É evidente, portanto, que o enfrentamento da questão habitacional passa pelo combate ao capital imobiliário e, consequentemente, ao regime da propriedade privada. As ocupações urbanas de luta por moradia estão entre os principais meios de ação reivindicatória do Brasil. Não apenas pelo poder potencial que carrega de mobilização de grandes massas espoliadas pelo desenvolvimento e a tragédia do capitalismo. Mas também porque esse fato carrega outro: esses trabalhadores marginalizados pelo processo social vivem na imensa “unidade produtiva” chamada cidade, concentrados nas periferias e, ao mesmo tempo, espalhados, significam uma constante ameaça à ordem, pois para sobreviverem devem subvertê-la. E apenas organizados podem dar consequência transformadora à sua existência. Nesse sentido, ainda que carregada de contradições, a ação reivindicatória pode tornar-se forma para um programa de transformação social. As ocupações podem configurar-se como instrumento da luta contra o capital, pois escancaram o privilégio da propriedade privada e seu regime de proteção (jurídico, burocrático, ideológico, etc.) de um lado, e de outro opõem a expressão da violenta contradição produzida por esse sistema: uma imensa massa de trabalhadores que não podem acessar os bens produzidos ou servidos por eles próprios. Apenas lutando e direcionando nossa potencialidade organizativa e política contra o sistema capitalista é que poderemos reivindicar a cidade para todos. Estamos, assim, diante de uma importante face da atualidade da luta de classes. Quem disse que ela não existe mais? •
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mundo em ru í n a s H RESENHA
André Villar
sob
á tempos que o capitalismo não cessa de chafurdar num interminável lodaçal de crise, num desabamento que só tende a se generalizar e recrudescer. Uma teoria crítica radical do capitalismo é mais necessária do que nunca. O último livro de Marildo Menegat, Estudos sobre ruínas, é uma importante contribuição para quem deseja compreender – e transformar! – nosso mundo em escombros. O livro consiste numa reunião de artigos e entrevistas produzidos ao longo dos últimos cinco anos sobre diversos temas: o conceito de barbárie na tradição crítica brasileira, as transformações do caráter da universidade, a dinâmica de crise e o colapso do capitalismo, a subjetividade fetichista no mundo da mercadoria, as prisões, a experiência com as drogas no século XX, e daí por diante. Não seria possível resumir o rico e diverso conteúdo da obra em algumas poucas linhas. Limito-me a destacar um argumento central e polêmico que se encontra no centro das suas reflexões do autor. Diferentemente do que acontece na maior parte das análises críticas do capitalismo, o livro assinala que esse sistema, após um longo curso de ascensão, atingiu os limites estruturais. A valorização do valor é a única finalidade da produção capitalista. A consecução desse objetivo absurdo depende da arregimentação de massas crescentes de trabalho vivo para o interior dos processos de produção de mercadorias. Mas é exatamente isso que já não é mais possível ser cumprido desde que entraram em cena, nas últimas décadas do século XX, os processos industriais baseados na microeletrônica. A partir de então, a força de trabalho humana passou a ser substituída em enormes quantidades pelos novos agregados tecnológicos, sem que haja qualquer possibilidade desse movimento ser compensado pela criação de novos produtos ou pela expansão territorial do capitalismo, já consumada. Nas palavras do autor: Em termos da estrutura do capital, há um deslocamento importante na sua composição orgânica, com um aumento significativo do capital constante e, em decorrência, uma redução bastante expressiva do capital variável, ou seja, da força de trabalho. Essa nova composição bate forte na razão de existência do capital, que é a sua permanente acumulação. Para a realização desse fim é determinante incorporar quantidades crescentes de trabalho humano, de onde se extrai o mais valor que movimenta a lógica do todo. Contudo, à medida que esse mesmo trabalho é substituído por complexos sistemas de produção automatizados, a criação de riqueza perde as suas antigas bases materiais, gerando ao mesmo tempo uma imensa crise social – que é constatável pelo desemprego estrutural – e um limite lógico para a continuidade da acumulação – que se deve à perda da sua substância viva: o trabalho. Menegat apresenta, então, uma formulação radical para a compreensão do estágio contemporâneo do capitalismo. Não estaríamos simplesmente atravessando mais uma das crises do capitalismo, diante da qual poderíamos nos posicionar como quem espera o retorno da normalidade depois de passada a tormenta. Pelo contrário. O horror social e ecológico de nossa época seria a manifestação do caráter miserável de uma forma social cuja correspondente forma de riqueza se tornou arcaica em função dos novos potenciais produtivos que ela própria contribuiu para criar: uma forma social que só pode ampliar seu prazo de validade através do recrudescimento inaudito de seus impulsos destrutivos. O autor utiliza o conceito de barbárie para designar os retrocessos que irrompem nesse contexto. A barbárie, segundo ele, é uma característica da lógica dessa civilização, no sentido de que pertence ao seu caráter. “É o determinismo da sociedade burguesa”. E quem são os bárbaros? “Os bárbaros não são estranhos a esta sociedade, sendo tão somente o produto de relações sociais estranhadas. Eles são a própria identidade desta forma social”. Os bárbaros são todos aqueles que, de um modo ou de outro, contribuem para perpetrar o horror cotidiano em que naufragamos e o mundo ainda mais sombrio que está por vir. Uma das manifestações da contradição do capitalismo é que, como num leito de Procusto, essa forma social amputa a substância social que sobra aos seus mesquinhos limites. E é nesse sentido que tem de ser compreendido o enorme surto de encarceramento que explode em todo o mundo. Esse vínculo estrutural está por detrás da política do medo e das campanhas de ódio e revanche que grassam em nossa época. “A sanha por mais prisões e por se prender todos os que parecem ameaçadores não tem limites. No mundo inteiro, dos Estados Unidos à China, e desta à Europa, passando pelo Brasil, estão encarcerando populações gigantescas. Essa tendência revela uma irracionalidade sem saída”. O descalabro se consuma através do extermínio físico da “humanidade supérflua”, com destaque para o Brasil, que é uma das vanguardas da desintegração capitalista. A quantidade de mortos por causas violentas no país é típica de uma situação de guerra civil, e obedece a um corte francamente genocida: tais causas atingem prioritariamente jovens negros. “Os vínculos entre vida material e fundamentação do poder, com as razões da punição, não podem mais ser escamoteados, sob o risco de sermos covardemente coniventes com os novos genocídios que a preservação da sociedade burguesa tardia exige”. Assim, o “pessimismo” que às vezes parece atravessar as análises de Marildo Menegat não é nada mais do que a tradução do péssimo mundo no qual vivemos, e está articulado com a utopia da criação de uma nova e melhor forma de organização social. “Utopia é pessimismo transformado em força vital”. De fato, o autor não vê grandes potencialidades no proletariado e suas antigas formas de organização. Os antigos coveiros do capitalismo parecem não ter mais impulso emancipatório: humilhados e derrotados as vagas das inovações tecnológicas, integrados ao modo de vida e consumo capitalista... Todavia, a contradição entre o que é e o que pode ser explode com toda força. Os enormes contingentes de seres humanos “sobrantes” podem ser a base de um amplo movimento social de emancipação. Mas tal movimento tem de ser criado conscientemente: não pode ser o resultado de qualquer determinismo objetivo inerente à desintegração capitalista. A transformação social passa pela criação de uma “contra-esfera pública” e de um “contra-poder” para a “autogestão das necessidades sociais de massas crescentes jogadas para fora da esfera de valorização do capital”. Os potenciais produtivos desenvolvidos pela humanidade, que não mais cabem no interior do invólucro da forma da mercadoria, devem servir à satisfação das necessidades básicas comuns e ao tempo livre, e não mais ao insano processo de valorização do valor. Há tempos que as universidades se tornaram um apêndice do processo global de produção de mercadorias, no qual o conhecimento é avaliado em função dos critérios de rentabilidade. “Se a relevância de todo o conhecimento é determinado por sua capacidade emancipatória, podemos dizer que algo de muito profundo se modificou nessa modalidade de universidade, reduzida à unidade de um ramo da produção. Nela não importa mais para que serve o conhecimento; o importante é que ele seja vendável”. Marildo Menegat resiste no interior dessa imensa fábrica produtora de mercadorias que se tornou a universidade brasileira.• Marildo Menegat Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.
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CAPA
COPA DO POVO: cadê
A ocupação Copa do Povo em Itaquera: se há dúvida que o poder popular exista, a comprovação está na
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ê o gol da moradia?
a voz do povo; a voz que habita.
felipe melo
Mirela Von Zuben
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as ondas falhas da sintonia de uma rádio qualquer de São Paulo, o som se anuncia desse jeito: “a taça do mundo é nossa! Quer uma promoção para ganhar quatro convites para assistir a Copa do Mundo? (...)”. Enquanto a propaganda denuncia a chegada de um dos eventos mais esperados e sonhados dos últimos tempos no país verde-amarelo, o “mundo real” há tempos desperta em frente aos olhos do brasileiro. O dono do rádio que toca o anúncio ajeita sua casa modesta – se é que podese chamar o amontoado de lonas pretas, seguradas firmemente por pontaletes e fitas de plástico, de casa, moradia, ou lar. O aparelho, que só funciona à base de pilhas, está colocado em cima de um carrinho de bebê tomado pela sujeira, bem em frente à entrada da barraca. Ao lado do homem, a esposa e o filho pequeno ajeitam algumas madeiras sob o sol forte e o ar gélido de meados de maio de 2014 na região de Itaquera, na capital paulista. Desde o dia dois daquele mês, 4,5 mil famílias – número aproximado – abrigam-se da mesma forma que eles. O local, denominado de Copa do Povo por aqueles que o formam, tem nome ousado, provocativo e sugestivo – e faz praticamente um grito para um dos maiores problemas do território brasileiro – a falta de moradia digna. Formada na periferia da Zona Leste da capital paulista, a ocupação enraizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) reivindica, além de um lar para cada uma destas famílias, também a melhoria nos sistemas de saúde, educação e mobilidade urbana, setores da sociedade que mais carecem de investimento no Brasil. O terreno escolhido por eles encontravase ocioso há anos e, usado como forma de especulação imobiliária, estava registrado como área rural – localizado ironicamente bem no coração de um centro urbano. De acordo com o que foi apurado pelos próprios militantes do Movimento, o proprietário desta área de cerca de 160 mil m² pagava “abusivos” R$ 57 de imposto por mês para manter o terreno tomado por mato e pés de eucalipto: um local improdutivo.
Desde o começo
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o início, em dois de maio de 2014, as famílias chegam ao local com enxadas, lonas e pontaletes, prontos para o esforço de terem de capinar todo o terreno. Ali, já no primeiro dia, uma garoa fina limpa a alma dos novos moradores e os prepara para extensos dias de sol e calor intenso, mesmo no outono. Quando o primeiro raio desponta na ocupação, já é possível ver a dimensão do local: uma imensidão de espaço, de esperança e de vidas. No entorno dali, ruas de asfalto e dois espaços primorosos – o Parque do Carmo, local que abriga uma extensa área verde e um planetário; e o SESC Itaquera, polo de atrações artísticas e culturais na cidade mais cinza do país. Já na Copa do Povo, logo na entrada, há um espaço dedicado ao encontro dos moradores. O chão, feito de cimento previamente à ocupação, é extenso e abriga em um dos cantos uma farmácia com ervas medicinais – uma horta com diversas plantas cultivadas pelos próprios moradores que as regam, inspecionam e colhem posteriormente. Pouco mais ao lado, virado ao centro daquela espécie de praça, há um palanque feito de madeirite, usado de palco para a militância durante as periódicas assembleias da ocupação.
Brigadas, “rango” e cozinha
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Copa do Povo é bem extensa. Por isso, foi dividida em oito brigadas – espécies de bairros dentro de uma cidade. Cada brigada, enumerada de G1 a G8, tem sua independência dentro da ocupação. Um “gê” contém banheiro e cozinha próprios, utilizados e mantidos em comunidade. Eles são construídos com pedaços de madeira que garantem a sustentação das paredes de madeirite e os fogões são fruto de doação dos próprios moradores. Nada dentro da Copa do Povo é pago. Tudo o que se tem ali é dado de forma voluntária. Por isso, os moradores sempre deixam o que podem na sua respectiva cozinha. Vale desde arroz, até carne, legumes e temperos; o importante é a participação ativa ali dentro. Cada um que deixa entregue a comida na cozinha, tem de assinar o nome para marcar ali a sua participação no que o MTST chama de “poder popular”. No dia 17 de maio de 2014, a cozinha co-
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munitária do G6 preparou feijoada. “A gente deu a ideia e todo mundo do grupo concordou. Cada um vai trazendo os ingredientes e nós cozinhamos tudo”, conta Andreia Barbosa da Silva, 30 anos, uma das voluntárias daquela cozinha junto a Marinalva Rosa dos Santos, 36, e Marli Tomás de Souza, 45. Unidas, as três preparam café da manhã, almoço, café da tarde e janta para os moradores da referida brigada. E funciona da mesma forma nas outras sete. Enquanto prepara a comida, Andreia relata uma das suas maiores dores na vida, afinal, cozinhar é uma arte e uma porta aberta para a contação de histórias, de desabafos e aumento no círculo de amizades. A mulher perdeu o marido em 2009 e, desde então, cuida dos cinco filhos sozinha. A vida de seu marido foi tirada injustamente, assim como acontece com muita gente no país. “Ele trabalhava duro todos os dias, fazia entregas em Suzano. Um dia, foi transportar uma carga de verduras de uma esquina para a outra e parte dela atingiu uma moto quando o caminhão passou por um buraco e acabou trepidando”, relata com lamentação. “O motoqueiro foi internado e ele era da “correria”, sabe?”, conta, fazendo alusão ao envolvimento do homem com o crime. Os amigos dele cobraram a culpa do marido de Andreia por meses, até que foi morto dentro de seu carro com tiros em 26 de novembro daquele ano, sem condições financeiras de sustentar o homem e sua chantagem. Já sedada pelo sofrimento que a vida lhe impôs, Andreia engole seco e respira fundo. Rapidamente volta a ajeitar os talheres e pega um pano para limpar o balcão enorme feito de madeira que é utilizado para a colocação das panelas e ingredientes. O café da manhã é servido às oito da manhã, o almoço às 13h30; o café da tarde e a janta vêm logo em seguida. Para avisar quando a comida está pronta, um jeito rústico: vai na base do grito mesmo. Há alguns ainda que usam apitos e trombones e passam pelas vielas de terra avisando sobre a abertura do “rango” de cada dia. Em menos de cinco minutos, a fila está formada. Alguns comem ali mesmo, na frente da cozinha, acomodados em cima de pallets ou de algum canto confortável, e outros preferem ir até suas barracas para fazerem a refeição. O único problema ali é a proximidade tão grande com as ruas de terra. Mesmo com a higiene em dia e o cuidado com os alimentos, a poeira sobe muito fácil e, inevitavelmente, acaba atingindo seus pratos. “É um tempero especial”, brinca Andreia, que conta que, por dia, são feitos ali na cozinha do G6 cerca de vinte quilos de arroz e quatro de feijão. E é comida da boa, viu? Tudo feito no capricho e com os temperos certeiros.
Você tem sede de quê?
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em a infraestrutura adequada, já que a Copa do Povo carece de energia elétrica, sistema de esgoto, distribuição de água e ligação de telefone, os moradores têm de trabalhar em equipe para que a ocupação toda seja abastecida de forma justa. Para isso, nas cozinhas existem pilhas de garrafas PET que armazenam o líquido que servirá para matar a sede e garantir o cozimento correto dos alimentos, além da limpeza deles, é claro. Com o auxílio também de pallets, os homens – principalmente – usam sua força para carregarem as panelas e utensílios de cozinha para a entrada da ocupação. Lá, tudo é lavado em água corrente por eles mesmos e há uma fila organizada entre os representantes das brigadas para garantir que tudo esteja limpo a tempo para a preparação das refeições. Já em sacolões, as garrafas são levadas até o mesmo local e, depois de cheias, são entregues de volta aos seus locais de origem. “A gente pede pros meninos pegarem água e deixamos tudo aqui (na cozinha). Sempre tem alguém que passa e pede, né”, afirma Andreia. O armário da cozinha de cada brigada, graças à união dos moradores, está sempre cheio: tem arroz, feijão, açúcar, sal, macarrão, farinha e outros itens básicos. A carne, os legumes e as verduras são entregues pouco antes do preparo, já que não existe energia elétrica para sustentar uma geladeira por ali. Mesmo assim, tem quem congele água em garrafas antes de levá-las para a ocupação, assim é possível manter o frescor em meio ao ar seco da área.
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A vista geral
ocupação do MTST tem uma vista um tanto quanto privilegiada da região de Itaquera. Localizada em um ponto alto do bairro, da região da cozinha do G5 é possível ver a maior antítese do povo instalado ali: a Arena Corinthians, ou Itaquerão, ou ainda Arena São Paulo. Orçado em R$ 820 milhões no início de sua construção, em maio de 2011, hoje seu gasto já atinge os R$ 1,17 bilhão. A abertura da Copa do Mundo da Fifa deve acontecer neste estádio no dia 12 de junho com o jogo do Brasil contra a Croácia. Enquanto ali as obras seguem naquele famoso “jeitinho brasileiro” de deixar tudo para a última hora, na Copa do Povo a população não hesita em construir, erguer barracas e deixar o local o mais próximo possível do ideal e adequado para eles. No dia 17 de maio, pouco antes do meiodia, um grupo do G5 se ajeita e começa as obras de finalização da cozinha comunitária. Com a força em equipe, levam tintas verme-
lhas – símbolo do Movimento, da ação popular e da voz do povo – e pedaços de madeira. Em menos de duas horas, tudo fica pronto. Ali, vale a ajuda da criançada na pintura, dos novos adultos no carregamento das partes pesadas da estrutura e dos mais velhos e das mulheres nos retoques finais. Ao lado de uma das paredes da mais nova cozinha, o grito, pintado de branco em uma faixa vermelha: “Dilma, estamos aqui! Queremos resposta, somos o seu G5 despertador!”.
As ladeiras do G3 e G4
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xceto pelos primeiros instantes de existência da Copa do Povo, em dois de maio, a população da ocupação não viu a cor da chuva em 15 dias. Seca para uns, sorte para outros. As ladeiras íngremes que abrigam o G3 e o G4 são perigosas; de vielas estreitas e tortuosas, seja a noite, seja durante o dia, são cercadas por diversos eucaliptos e mostram o temor iminente por um deslizamento de terra caso a chuva atinja o local de forma torrencial. No local, a própria população encarregou-se de construir escadas na terra, mas, mesmo assim, é preciso andar sempre com um olho no chão e outro no horizonte. Bem no meio da ladeira, quem desponta é Daniel José dos Santos, 42 anos, uma verdadeira máquina de construir barracas. Com problema de mobilidade, tem uma perna mais curta que a outra, mas isso não o impede de carregar o fardo de construtor: sozinho, já ergueu oito moradias – pelo menos até 18 de maio, quando foi encontrado por ali. “Quando a gente chegou, o pessoal do MTST passou as instruções de como construir”, conta, enquanto explica de que forma ergue o lar. “Dá pra montar uma barraca em duas horas. Primeiro, faço quatro buracos na terra. Coloco os pontaletes e nivelo o solo, já que aqui é descida. Tem também que colocar uma madeira em volta pra evitar que entre bicho, tipo cobra e rato. No espaço, tem que dar pra caber um colchonete e uma pessoa em pé. Depois, é só colocar a lona por cima e amarrar tudo com fita”. Depois de dadas as instruções, ele começa a construir o oitavo barraco desde que entrou na ocupação, já no primeiro dia. Com a enxada, “liga o motor” e nivela o solo, parando no meio para descansar – a respiração ofegante, quase nula devido a uma traqueostomia, não é suficiente para parar o homem que possui um terço amarrado na mão direita, mesmo membro que dá por falta de três dedos. “Tem que ter fé, né”, sorri, enquanto aponta o indicador da mesma mão para o céu. Tira o boné vermelho, seca o suor com a manga da blusa e retoma a jornada. Pega a enxada e continua a desempenhar sua primordial função por ali.
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Segurança garantida, ordem na vida para o G1, a equipe já se depara com uma a um gasto de R$ 550 por mês, fora o custo de uma
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ob a luz da chama laranja que forma uma fumaça rala no céu, a Lua vira lâmpada no teto de estrelas da Copa do Povo. A fogueira serve de aquecedor natural das madrugadas gélidas que tomam conta por ali. Uma pausa para um cigarro. Depois do quinto copo de café, o trabalho está apenas começando. Silas André dos Santos, 28 anos, o Alemão, ajeita o gorro enquanto descansa após a primeira subida pela ladeira do G5. Com cara de poucos amigos, seriedade e lanterna de pilha na mão, Alemão é o “chefe” da segurança da ocupação. Se o Brasil possuísse um quarto da organização que se vê durante as madrugadas através da colaboração dos próprios moradores, haveria déficit em índices criminais, em dores de cabeça para autoridades e população, e em choros desesperados de mães que perdem filhos para o crime a cada dia. Pontualmente às dez da noite, um grupo de uma média de 35 homens se reúne na praça principal da ocupação todos os dias. Ali, se dividem em equipes que farão a ronda noturna a partir das onze, até às seis da manhã, no que para eles é chamado de “trilha”. Alemão coordena tudo. Chegou na Copa do Povo no dia três de maio e desde então assumiu essa difícil missão. Os homens da segurança devem trabalhar de calça e sapato fechado, já que o risco de serem picados por cobras durante a noite é muito grande e a falta de visibilidade do chão aumenta as chances de alguém sair dali lesionado. O trabalho é árduo, mas garante o bem estar das 4,5 mil famílias que vivem ali. “Aqui vocês vão encontrar de tudo, desde bêbados, até brigas de casais e gente usando drogas. A noite é imprevisível”, diz Alemão, enquanto passa as instruções para os homens. Logo depois, já sai a primeira equipe que tem ponto de encontro em frente à cozinha do G5, local mais alto da ocupação. O coordenador da segurança explica como é feita a abordagem. “Se a gente se depara com um bêbado, por exemplo, temos de conduzir ele até a sua barraca, sem fazer barulho. Os moradores respeitam bastante, mas são diversas situações diferentes”. As noites de sexta-feira para sábado e de sábado para domingo são as que dão mais trabalho para a segurança da ocupação. “O pessoal sai do trabalho na sexta e já vai pro bar, né. Daí acaba chegando bêbado, é normal isso em qualquer lugar”, pontua Alemão. Na sua primeira saída na madrugada do dia 17 para 18 de maio – sábado para domingo – logo ao descer a escada que dá entrada
mulher bêbada. Conduzida por um amigo, a moradora trança as pernas enquanto afirma: “hoje é meu aniversário!”. Como um vulto, ela aparece em frente ao coordenador e, antes de um estalo nos dedos, desaparece entre as lonas do G1. Com os braços cruzados para trás, gola da blusa azul-marinho levantada, botas e lanterna na mão, Alemão parece uma raposa andando entre as barracas. Para em cada fogueira e procura por vestígios da ilegalidade. “Aqui dentro da ocupação é proibido bebida alcoólica e uso de drogas. Se a gente vê, pede pra guardar, pra apagar, senão é convidado a se retirar”, afirma. Em cerca de uma hora, toda a parte baixa da ocupação é percorrida por sua equipe. Sem grandes ocorrências naquele dia, só mesmo os bêbados deram um pouco de trabalho aos anjos dali. Eles param no G5 e, sob a luz do luar, retomam a jornada até que o sol desponte novamente.
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Mar de gente
a Copa do Povo, o que mais se vê são barracas com muita gente. É o caso da família de Maria Gomes Ferreira, 55 anos, que levou consigo mais 20 pessoas – entre filhos, genros, noras e netos – para a ocupação. É tanta gente que sua barraca parece mais um hotel. Com todo o cuidado do universo, o lar tem diversas divisórias para garantir a privacidade de cada um ali dentro. As paredes são feitas de lona preta e, no que poderia ser chamado de “sala” da barraca da família, todo mundo se reúne e ri o tempo inteiro. Maria veio do Piauí, mas os filhos deram o primeiro choro da vida em solo paulistano. “Quando eu era pequena lá no Nordeste, comi muito feijão com caldo verde. Não quero isso pros meus filhos”, afirma. Natanael Ferreira dos Santos, 32 anos, é o filho mais velho de oito que Dona Maria colocou no mundo – um deles já morreu. Ficaram sabendo da existência da ocupação por serem membros da Associação de Moradores do Jardim Helian, local de onde vêm, e que fica próximo dali. “Eles (o MTST) procuraram a associação pra divulgar a ocupação pros moradores, mas acompanhamos tudo e acabamos entrando nessa também”, conta Natanael. “Nosso país precisa de mais moradia, não de Copa do Mundo. Precisa de educação e de saúde, a gente não tem nem postinho lá no Jardim Helian”. A opinião de Natanael é a mesma compartilhada por milhares dos que vivem por ali. Entre os que têm o mesmo pensamento, está Marcone Vieira Pereira, de 28 anos, que chegou ali na ocupação junto à sua mulher Maria Elita Santos, 26, e à filha Stephanny, 6. Há três anos saíram do Maranhão e estacionaram suas vidas na capital paulista em busca de oportunidades. “Aqui a gente tem mais opções, mas pagamos um aluguel de R$ 400 e, com água e luz, chega
babá e perua pra Stephanny, que precisa ir pra escola”, conta Maria Elita, que trabalha de empregada doméstica. Ficaram sabendo da ocupação pela televisão, já que o foco atual da mídia fica dividido entre a Copa do Povo e a Copa do Mundo da Fifa. “Um amigo nosso também quis vir pra cá e chegamos já no primeiro dia”, conta Marcone. “A empresa que eu faço bico de pedreiro cedeu vários pontaletes pra gente e conseguimos assim erguer a barraca. O custo de vida em São Paulo é alto, mas ainda assim compensa mais ficar aqui do que voltar pro Maranhão”. Quando questionados se concordam com a realização da Copa do Mundo, as famílias nunca hesitam na resposta, que é sempre negativa. “Ao invés de fazer a Copa, não é mais justo primeiro dar saúde e educação pra quem tá dentro do país?”, questiona Maria Elita.
A voz do povo é a voz que habita
A
coordenação geral da ocupação anuncia e o povo responde. “M-T-S-T...” – “A luta é pra valer!”. É em tom de revolta, força e persistência que as assembleias da Copa do Povo tomam forma a cada nova reunião. Neste momento, são repassados todos os recados para o pessoal e a agenda de manifestações pela capital paulista. “Um, dois, três, o quatro não se conta, ou dá a nossa casa ou o sem-teto toma conta”. Para a manutenção da ordem ali, cada brigada possui seus próprios coordenadores, moradores que se voluntariam para a função. Eles são encarregados de manter uma lista com todas as famílias que permanecem vivendo no local e repassam as informações para a militância, porta-voz das 4,5 mil famílias e ponte entre os moradores e os governos municipal, estadual e federal. Na assembleia de 17 de maio, um mar de gente tomou conta da praça. Foi anunciado ali o 3º Ato “Copa sem povo, tô na rua de novo”, mobilização que, no dia 22 do mesmo mês, ganhou mais uma vez destaque nacional. Os holofotes estão no povo e a voz é da população também. Estima-se que, naquele dia, 20 mil pessoas tenham comparecido na manifestação que teve início às cinco da tarde no Largo da Batata, em São Paulo, capital. Ali, palavras de ordem ecoaram na cidade cinza e o trânsito parou. Somente com o caos na mobilidade urbana é que se consegue a atenção do governo. E foi o que aconteceu. No dia seguinte, foi dado um novo prazo para a permanência das famílias no espaço e ficou prometida uma visita da Caixa Econômica Federal na ocupação. Até o dia 16 de junho – quatro dias após o início da Copa do Mundo da Fifa – ela estará na Copa do Povo para verificar a viabilidade da construção de um empreendimento habitacional no local. Se há dúvida que o poder popular exista, a comprovação está na voz do povo; a voz que habita.•
NOVA PALESTINA ENSAIO
a maior ocupação do mundo Fotos por Pablo Pascual(1, 2 e 3) e Amanda Perobelli(4)
Desde novembro de 2013, oito mil famílias ocupam uma área com mais de 1 milhão de m² localizado na região do Jardim Ângela, periferia da zona sul de São Paulo. A ocupação Vila Nova Palestina, que homenageia a histórica luta de um povo por sua terra contra o sanguinário exército de Israel, é considerada a maior ocupação urbana de luta por moradia do mundo e está entre as dezenas de ocupações que foram feitas na maior cidade do país.
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MTST: avanços e obstáculos de uma luta anticapitalista
Débora Cristina Goulart
Ato organizado pelo MTST/Resistência Urbana no dia 22 de maio reuniu mais de vinte mil pessoas pela Campanha “Copa Sem Povo Tô Na Rua de Novo”.
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s notícias sobre as ações do MTST aparecem cada vez mais na grande imprensa, mostrando a força de mobilização deste movimento. Mas qual é sua importância na organização da classe trabalhadora brasileira, no campo da esquerda e das lutas populares? Diferente dos sindicatos e dos atuais partidos, a base social do MTST é o subproletariado. A expressão “trabalho informal”, utilizada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT, não é suficiente para explicar qual é a condição dessa parte da classe trabalhadora no Brasil. Milhares de pessoas que se encaixariam nesse tipo de trabalho estão submetidas a condições muito mais duras do que simplesmente “não terem carteira assinada”. Deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que este processo é uma tendência crescente vinculada às transformações no âmbito da produção capitalista, como a reestruturação produtiva e o desemprego estrutural. Ademais, precariza a materialidade da reprodução da força
de trabalho, transformando em subproletário todo trabalhador que depende da venda de sua força de trabalho de forma explícita, com o trabalho produtivo e a valorização do valor, ou de forma camuflada, com o trabalho improdutivo pela regulação do sistema de assalariamento, inseridos em condições precárias de trabalho e remuneração, instabilidade da atividade de trabalho, jornadas ampliadas e direitos do trabalho negados. Além disso, a competitidade entre os trabalhadores isolados, sem representação sindical e sem proteção trabalhista legal, leva a uma extrema individualização das ações que buscam diminuir a brutalização do trabalho diário. Por outro lado, a necessidade do aumento da renda pode levar a atividades ilícitas, não como atividade principal, mas secundária na vida desses trabalhadores. O avanço da subproletarização no Brasil se dá com a desindustrialização do final dos anos 1980, expressão da reestruturação produtiva que introduziu o toyotismo no interior das unidades
produtivas e o neoliberalismo como um conjunto de medidas de contrarreformas que visavam conter a queda da taxa de lucro, após a crise dos anos 1970, impactou diretamente na composição da classe trabalhadora no Brasil. O desenvolvimento de uma estrutura mais flexível de acumulação através da introdução de técnicas de gestão da força de trabalho, que desconcentra as unidades produtivas, intensificou a terceirização e recolocou o trabalho polivalente, multifuncional. Isto, somado à entrada em larga escala de tecnologia computadorizada na produção, gerou a diminuição do capital variável (força de trabalho) em relação ao capital fixo (maquinário), aumentando assim a produtividade. Daí, o desemprego estrutural se alimentar de dois mecanismos aparentemente contraditórios: a desproletarização do trabalho industrial com a redução dos trabalhadores nas fábricas e o aumento do subproletariado, principalmente no setor de serviços, com trabalho precário, parcial, mal remunerado, mais feminino,
que exclui os jovens e idosos, causando uma heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora. O resultado da implantação desta nova organização do trabalho tem como finalidade intensificar a exploração da força de trabalho, o que dificulta manter os direitos conquistados ao longo do tempo, por gerar uma crise nas organizações da classe trabalhadora ligadas aos setores produtivos. Esse processo se agravou nos anos 1990, com a aplicação do conjunto de contrarreformas neoliberais, legitimadas pelo voto popular que elegeu governos neoliberais. Assim, as mudanças no processo produtivo, aliadas às políticas neoliberais, destruíram as bases de sustentação de um sindicalismo de confronto construído ao longo da década de 1980, com a criação da CUT. Os alvos prioritários da política neoliberal são os sindicatos e centrais que vinham de uma história de oposição aos governos na década de 1980, e que construíram, com luta, as conquistas dos trabalhadores. Podemos chamar essas or-
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ganizações de “herdeiros do novo sindicalismo”. Diante da crise, a CUT reorientou suas ações na tentativa de não perder mais espaço entre os sindicalizados, apostando em uma análise conjuntural de que não era mais possível estar na ofensiva, com ações diretas e greves, pois a capacidade organizativa e mobilizatória tinha sido atingida pelo aumento do desemprego e queda da renda. Por outro lado, uma postura unicamente defensiva poderia desgastar as bases de confiança entre os trabalhadores e os dirigentes, aumentando uma insatisfação já crescente na base. A saída foi a combinação de um direcionamento para as questões corporativas (produtividade, participação nos lucros, abertura comercial, etc.) e a abertura para a intervenção em políticas públicas (questões de gênero, étnicas, trabalho infantil, etc.), mas tal concepção necessitava de espaços de negociação para que essa estratégia de ação se realizasse. Daí a aposta nos fóruns institucionais, como as câmaras setoriais, e a participação em espaços de “oposição democrática”, onde haveria “possíveis ganhos”. O que se construiu ao longo dos anos 1990 foi uma forma de ação sindical que aderiu ao neoliberalismo em seus princípios fundamentais e fez oposição corporativa, tal como o fez, desde seu surgimento, a Força Sindical. Entre os movimentos sociais também ocorreu uma reorientação das ações e seus instrumentos, sobretudo a partir da metade da década de 1980 e que se aprofunda nos anos 1990. Durante o período ditatorial a autonomia era o foco dos movimentos que se colocavam em oposição ao Estado autoritário. Com a abertura política, diversos movimentos passaram a forçar a participação política em instâncias do Estado, visto agora como possibilidade de aumento das práticas democráticas pela ampliação da cidadania. A consolidação da “redemocratização”, como resultado da promulgação da Constituição de 1988, das eleições diretas, em 1989, e da redefinição do quadro político-partidário, trouxe um contexto adequado para a aposta definitiva de um determinado campo político no projeto participativo democratizante. Esse campo formou-se com número significativo de intelectuais e professores universitários, que tiveram grande papel na divulgação desse projeto, sobretudo por sua vinculação a universidades Esses professores eram majoritariamente vinculados ao Partido dos Trabalhadores. Mas é preciso também destacar que muitos se tornaram dirigentes de ONGs e, após a eleição de Lula, ocuparam cargos nas secretarias dos Ministérios. Forma-se uma “frente” política que, articulada pelo Partido dos Trabalhadores, sobretudo, propõe focar as ações na construção da cidadania através da diminuição da exclusão econômica e do aumento da participação política da sociedade civil organizada, tanto nas esferas
do Estado quanto em diversos locais da sociedade. É formulado um método de democratização social que teria a capacidade de “incluir” grandes parcelas da população nas benesses materiais do capitalismo periférico. Porém, essa aposta na ampliação de conquistas pela via da cidadania já estava presente na visão dos movimentos sociais no fim dos anos 1970. Ao focalizar a ação na participação política que passa pelo Estado capitalista, não questiona sua origem e dinâmica de classe. Ainda nos anos 1990, Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, professor da PUC-SP, alerta para os possíveis entraves nas lutas que a ênfase na cidadania pode trazer. Por um lado, o Estado e as empresas capitalistas estão intrinsecamente ligados pela concentração e centralização do capital que fragiliza as políticas que poderiam ser implementadas pelo Estado. Por outro, a intensidade da dependência do trabalhador em relação à empresa e a presença dos “trabalhadores sem trabalho”, que dependem dos trabalhos precarizados e ilegais, mostra como a dinâmica da exploração do trabalho no final do século XX, foi favorecida por legislações aprovadas no âmbito do Estado, em favorecimento da acumulação do capital. Assim, embora o proletariado tenha crescido em número, ele está cada vez mais fragmentado, diversificado, desorganizado e perpassado pela ideologia da irreversibilidade da subordinação do trabalho ao capital. Porém, ao contrário da adaptação cidadã, há organizações da classe trabalhadora que têm buscado construir uma nova subjetividade que não admite a exploração e dominação de uma classe pela outra, e procura a frear a “participação” na democracia burguesa. São esses movimentos sociais que podem nos dar algumas indicações do caminho a seguir: a construção de uma subjetividade coletiva, de classe, que possa, de maneira autônoma e antagônica a esse estado de coisas, tentar a retomada da luta por transformações radicais da sociedade capitalista. Acreditamos que o MTST é uma dessas organizações de trabalhadores que têm buscado um caminho de enfrentamento, mesmo sendo arremetido ao centro das políticas regressivas de direitos.
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embrião da sua construção do MTST ocorre no interior do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra(MST), e se acentua durante a Marcha Popular Nacional de 1997, que passou por várias cidades, e cujo intuito era estabelecer vínculos mais organizativos entre os movimentos do campo e da cidade. No município de Campinas, no estado de São Paulo, militantes do MST, estreitaram laços com militantes, vindos de movimentos urbanos. Esta aproximação gerou um grupo que passou a investigar os problemas sociais urbanos, como
foco de ação diferente do campo: com outras motivações, organização e estratégias. Com a participação de alguns militantes do MST, ocorre uma ocupação de terreno em Campinas, conhecida como Parque Oziel. É aí que ocorre a primeira experiência de ocupação na cidade, ainda com traços da organização gestada pelo movimento rural. Os anos seguintes foram importantes para o amadurecimento das formas de luta urbanas e para a configuração de um movimento com características próprias, bastante diversas das estratégias já consolidadas no campo. A partir do ano 2000, o movimento já tinha uma base social clara: a população pobre das periferias das grandes e médias cidades, e um projeto político de transformação social, a partir da reivindicação por moradia e reforma urbana. Começa, também, a estabelecer contatos, ainda que incipientes, entre diferentes movimentos urbanos em algumas capitais do país, como Rio de Janeiro e Recife. Seu crescimento se dá aos poucos, combinando ocupações e formação política dos ativistas, do que surge um método de ocupação e resistência urbana. Mas o avanço não é linear e as experiências resultam em diferentes resultados. Em 2001, ergueu-se a ocupação Anita Garibaldi, em uma área de 250.000 m 2, localizada na periferia da cidade, no bairro Ponte Alta, próximo ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. Um terreno de propriedade particular, desocupado há mais de 50 anos, que vinha sendo utilizado ilegalmente para depósito de lixo e, segundo moradores do entorno, para “desova” de cadáveres. Essa ocupação foi significativa para o histórico do MTST, por ter sido a primeira grande ocupação (seja pelo tamanho do terreno, seja pelo número de pessoas agregadas, chegando a 12.000) e por ter se mantido sem ação de despejo, o que favoreceu o movimento a prosseguir em seus objetivos de crescimento na região metropolitana de São Paulo. A primeira ocupação ocorrida no Governo Lula foi em 19 de julho de 2003, quando um grupo de 300 pessoas ocupou uma área de 170 mil m² em São Bernardo do Campo em frente à fábrica da Volkswagen do Brasil Ltda., no km 23,5 da Via Anchieta. Tinha início a ocupação Santo Dias, que, em dias, atingiu quatro mil pessoas e confirmou a previsão dos militantes de uma boa adesão dos moradores das favelas e dos morros do bairro de Ferrazópolis, onde se situa o terreno ocupado. Não houve qualquer abertura para negociação e, em menos de um mês, houve o despejo. Depois desta ocupação o movimento procura aprofundar suas formas de atuação e intensifica a formação dos militantes para avançar em novas ocupações, o que ocorre apenas em 2005 com o acampamento João Cândido, em Itapecerica da Serra e Chico Mendes, em Taboão da Serra.
Essas duas ocupações, que duraram por volta de dois anos, representaram um novo patamar de organização e elaboração interna de suas ações e prioridades do MTST. Mudou o desenho da ocupação, a estrutura organizativa, as relações internas e a forma de negociação e pressão sobre os governos se aprimoraram. De outro lado, o Estado aprimorou o tipo de relação que estabeleceria com o movimento, passando da não aceitação das ações e da determinação do despejo para a negociação, o que, contudo, não significou conquistas de moradias.
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Encontro Estadual do MTST de 2007 decide pela ampliação da atuação do movimento, buscando consolidar um “cinturão” de lutas no estado de São Paulo, e realiza, concomitantemente, três novas ocupações em 2008, nos municípios de Embu das Artes, Mauá e Campinas. A esse processo, o movimento chamou de “estadualização do MTST”, Indo além das ocupações na região metropolitana de São Paulo, fora, feitas ocupações em cidades do interior e ações para interrupção de transportes de mercadorias nas principais rodovias do estado, conhecidas como “trancaço”. De todo modo, até 2008, o foco principal das atividades do movimento foram as ocupações na Região Metropolitana de São Paulo, aprofundando a organização interna dos acampamentos, uma vez que os “acampados” tem a tarefa de manutenção/proteção da área ocupada. A estadualização das ações de ocupação aprofundou a negociação com o governo do estado de São Paulo, e além do que já era realizado com as prefeituras das áreas, visto que as reivindicações passam pela parceria entre essas três instâncias para a viabilização das moradias. Este processo coloca o MTST no enfrentamento direto com o governo do Estado, quando suas manifestações podem gerar desgastes políticos ao executivo. Isso se dá porque o movimento opta por ações que chamem a atenção da população e da mídia para a instância de governo a que se quer atingir, o que em geral serve para forçar uma abertura de negociações. Essas ações são marchas, acorrentamentos a prédios públicos ou em áreas públicas e greves de fome em locais de grande circulação. Apenas um ano depois das ocupações em nível estadual, o movimento se lança ao objetivo de nacionalizar o movimento, formando grupos de atuação em estados diferentes, mas sob uma única organização e procurando unificar uma carta de princípios políticos e de atuação. A manifestação que inaugura essa nova fase é o acorrentamento de militantes aos portões do prédio de apartamentos em que o presidente Lula tem um imóvel, na cidade de São Bernardo do Campo em julho de 2009. Foram oito dias até a abertura das negociações com o Ministé-
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rio das Cidades. O resultado foi o compromisso do governo federal em incluir as famílias acampadas no programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. A escolha pela interpelação direta ao presidente Lula foi construída internamente no MTST, como forma de acelerar as negociações, mas também ocorre pela construção de uma rede de alianças com outras organizações de trabalhadores para a construção de uma resistência que possa avançar em conquistas tanto corporativas quanto da classe, questionando o papel do governo federal liderado pelo PT nestes avanços. Partindo de uma caracterização de crise da esquerda, identificada com a ruptura do PT e da CUT com os interesses da classe trabalhadora, e da dificuldade dos sindicatos de organizarem a parcela de trabalhadores fora do mercado formal de trabalho, o MTST se vê como a organização que pode realizar esse trabalho de formação política junto a uma parcela da classe trabalhadora. Para isso ressalta a necessidade da unidade entre as organizações que não abandonaram a perspectiva anticapitalista. Sendo assim, envolveu-se com a formação de uma nova central, em meados de 2004, conjuntamente com setores do sindicalismo e do movimento popular que buscavam reconfigurar as lutas dos trabalhadores no Brasil. Desse esforço nasceu a Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS) que, em 2010, passou a ser Central Sindical, intitulada Central Sindical e Popular (CSP Conlutas). Com o mesmo intuito, a formação da Frente de Resistência Urbana se inscreve na avaliação da necessidade de uma ação nacional unificada. Mais do que oposição ao governo do PT, os movimentos sociais urbanos que integram a Frente de Resistência Urbana, o fazem por partilharem da centralidade da luta direta como instrumento de ação coletiva e da proposta de uma Reforma Urbana anticapitalista. Nos termos da Frente de Resistência Urbana, as obras do PAC, o programa Minha Casa, Minha Vida, são parte de uma contrarreforma urbana, que evidencia a aliança perversa entre Estado e capital imobiliário, reproduzindo uma lógica excludente e repressiva de desenvolvimento urbano. Mas não nos esqueçamos que a história do MTST foi construída, quase que integralmente, nos governos do PT, revelando que seu crescimento tem relação direta com as condições de vida dos subproletários, em cuja luta por moradia se engajam. Tal engajamento é sinal de um acertado posicionamento crítico em relação às políticas federais. Lula, eleito com mais de 65% dos votos, confunde a esquerda, que tem caracterizações muito diferentes sobre seu governo. Para alguns, o PT já era neoliberal antes de chegar a ser governo, encerrando o ciclo de hegemonia do PT na esquerda brasileira. Para outros, a tese da “herança maldita” dos governos anteriores, colocava o governo sob “disputa” e
seria necessário fortalecer a parcela mais à esquerda dentro do governo. De nossa parte, concordamos com outros autores que afirmam que o governo do PT, porém, conseguiu agregar definitivamente o apoio da burguesia industrial e agrária, quando “iniciou sua política agressiva de exportação centrada no agronegócio, nos recursos naturais e nos produtos industrializados de baixa densidade tecnológica” cuja sustentação se dá pelo saldo positivo da balança comercial, do superávit primário e da superexploração do trabalhador. Se, por um lado, o governo do PT conseguiu ampliar as medidas neoliberais, favorecendo o conjunto da burguesia, entre os trabalhadores não perdeu apoio: ao contrário, apenas aumentou. Mas como, ao ampliar as medidas neoliberais, o governo Lula pôde agradar também os trabalhadores? Se de um lado o governo fez uso de políticas de desenvolvimento interno e distribuição de renda com a ampliação dos programas sociais (Bolsa Família, entre outros), de outro, a esquerda anticapitalista representados nos partidos, sindicatos, movimentos sociais, organizações, etc., se viu frontalmente afetada pelos governos do PT. Em primeiro lugar, porque parte dessa esquerda demorou a se desvencilhar da “história” do partido, sua representação popular, enfim, das expectativas no governo do PT. Em segundo lugar, porque aqueles que não viam possibilidades de mudança no eixo neoliberal já demonstrado pelo governo, não entendiam ainda a gravidade do problema para as organizações da classe trabalhadora. Em terceiro, porque aqueles que a entendiam, não sabiam ainda como agir neste novo contexto. O balanço desta “batalha de ideias” foi a desqualificação da esquerda, ainda “encarnada” no PT, que adotara as mesmas formas de agir dos governos anteriores. E mais, as alianças levaram antigas figuras da política conservadora e reacionária aos quadros do governo como sua base de apoio. Outra gravíssima conseqüência para a esquerda anticapitalista é a interpelação direta do governo com os trabalhadores pela via das políticas compensatórias através da figura pessoal do presidente Lula, que desorganiza a classe trabalhadora e desqualifica também suas organizações. Os vínculos historicamente construídos entre os movimentos sociais e o PT, se apoiou na construção de um “projeto de nação” que aos poucos, como vimos, se transforma em projeto de classe, da classe dominante, implementado pelo PT, recém convertido em partido da ordem. Neste cenário, o MTST defende que os movimentos populares urbanos devem traçar uma estratégia de ação, com vistaa objetivos abrangentes, formas de ação contundentes e organização autônoma, duradoura e qualitativamente superior ao que vem sendo realizado até então. Na Cartilha do Militante, os objetivos estratégicos traçados são a conquista
da moradia, a reforma urbana e a transformação social pela via da construção de uma identidade coletiva. Embora não haja um aprofundamento desses objetivos, fica claro que a única “saída” a ser considerada é a superação desse estado de coisas, através da formação de militantes qualificados para a ação responsável, e da construção de uma identidade coletiva que faça com que, como diz a Cartilha do Militante, “o povo explorado perceba que [...] eles são o time dos oprimidos e que o único time com quem eles devem brigar e competir é o time dos opressores”. Ao se apresentar como um movimento que não é de moradia, mas que se organiza a partir da moradia, o MTST afirma que a luta contra cada um dos problemas que desumaniza o trabalhador no capitalismo é uma “luta contra o conjunto”. Esse conjunto é o capitalismo, que aparece indiretamente em vários documentos, geralmente, pautado pela dominação e ausência de qualidade de vida dos trabalhadores. No Programa de Ação do MTST, a sociedade atual é apresentada como o “conjunto das relações e formas bárbaras de opressão que marcam a vida social contemporânea”. Em outro momento, como “uma sociedade que transforma tudo e todos em mercadoria (que) não vê problemas em atirar bilhões de trabalhadores ao lixo quando não são mais úteis ao seu consumo vampiresco”. Concluem, portanto, que este sistema social não serve aos trabalhadores e que a solução não é “aumentar o preço do ser humano, limitando-se a tornar a miséria mais suportável; queremos uma vida digna e livre”. É apenas no Relatório da Reunião Nacional do MTST de 2009 que o capitalismo é citado diretamente como de “natureza contraditória e opressora (que) impede um acesso da maioria ao poder e às riquezas sociais” e sua superação é nomeada como “construção de uma sociedade socialista”.
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debate sobre as limitações do capitalismo e da proposição do socialismo como horizonte do movimento aparece mais clara e profundamente nos documentos internos do movimento. Este fato não está relacionado à ocultação de suas posições políticas, mas à crítica ao que é chamado de “bandeiras vazias”, em várias passagens dos documentos. O MTST tem uma concepção de militância fincada na realização do trabalho de formação da base social como instrumento de transformação social, sem o qual qualquer bandeira política seria infértil e inconsistente. Com uma posição estratégica de superação do capitalismo e buscando a construção de uma base social autônoma e consciente, o MTST propõe bandeiras que articulem a ação do dia a dia e os os objetivos mais amplos. Essas bandeiras são: a reforma urbana e o poder popular.
O MTST faz uma crítica às propostas de reforma urbana que se limitam à melhoria da qualidade dos serviços urbanos e à conciliação com os interesses privados, que fariam concessões à pressão da população organizada por acesso a algum direito de forma pontual. Segundo o MTST, a reforma urbana proposta é um projeto “de classe, de enfrentamento à cidade do capital”, tendo, como contraposição, a apropriação coletiva do espaço, a partir dos seguintes eixos: “crítica à cidademercadoria, combate ao capital imobiliário em todas as suas formas, defesa das expropriações de terras, questionamento das políticas de cidadania participativa”. A proposta de construção do poder popular aparece de várias formas nos documentos do movimento, ora como objetivo, ora como bandeira e ainda como princípio organizativo. Isso porque nenhuma proposta pode ser efetivada plenamente sem que passe por uma construção coletiva realizada desde as relações cotidianas até as propostas de transformação mais abrangente. Ao mesmo tempo em que o poder popular deve estar presente na formação e dinâmica dos grupos nos acampamentos, deve também se efetivar no enfrentamento do caráter mercadológico do espaço nas cidades. O poder popular como prática política e organizativa é uma “experiência de discutir e fazer nós mesmos”, ou seja, a construção da “organização das massas em espaços de reflexão e decisão coletivos” capaz de expressar uma “crítica ao Estado capitalista e apontar para formas políticas realmente democráticas”. Mas as contradições que enfrentaram outros movimentos no passado, estão presentes também no MTST, como a tensão entre base e direção, o conflito entre a necessidade imediata, neste caso a moradia, e as conquistas mais amplas e a longo prazo, como a luta antineoliberal e anticapitalista, e a relação entre o movimento e outras organizações e partidos, incluindo aí o PT. O papel do petismo em algumas prefeituras tem se mostrado ambíguo. Ora como repressor das ocupações, ora como único canal de negociação que, inclusive, pode garantir a entrada do movimento em programas sociais, arrefecendo as enormes dificuldades de organização de uma base em extrema condição de pobreza. Pretendemos neste espaço de divulgação e debate mostrar uma parte de nosso trabalho de doutorado, como forma de contribuir na publicização de informações e diálogo com interlocutores na esquerda anticapitalista.• ALMEIDA, L. F. Corrosões da cidadania: contradições da ideologia nacional na atual fase de internacionalização do capitalismo. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 1 Xamã, 1996. Atas da reunião coord. nacional, cartilha do Militante e Programade ação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. BEHRING, E. R. Brasil e Contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. GOULART, D. C. Entre a denúncia e a renúncia: a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) frente às reformas na educação pública na gestão Mário Covas
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SAÚDE
a saúde além dos médicos para um debate sobre o Programa Mais Médicos
Felipe Monte Cardoso
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aminho com a agente comunitária de saúde (ACS) e com o residente de Medicina de Família e Comunidade em um bairro da periferia de Campinas (SP) numa cálida tarde de fevereiro último. Sob sol de 40 graus da mais crítica onda de calor dos últimos 50 anos, a vida segue: crianças tomam banho de caixa d’água, moradores se refugiam sob as escassas árvores, as jovens perambulam pelas ruas, mesmo após início do período letivo. A ACS fala sobre os personagens da comunidade, enumera os problemas de saúde mais comuns dali: a falta de saneamento básico, a dengue (o bairro foi epicentro de uma epidemia no ano passado), a poluição de uma fábrica de asfalto e os reflexos do crime organizado na vida das pessoas. Antes de ser ACS, trabalhou na produção de uma metalúrgica. Confidencia que, dentro da linha de montagem, jamais se imaginou lidando diretamente com o público. O generoso sorriso ao apresentar “sua área” denuncia o orgulho que sustenta seu trabalho. Há milhares de Roses nas quebradas e zonas rurais Brasil afora. A Estratégia de Saúde da Família, criada (com o nome de Programa de Saúde da Família) em 1994, é responsável por atender cerca de 110 milhões de brasileiros (1). Embora haja um batalhão de trabalhadores e trabalhadoras da chamada Atenção Primária à Saúde no Brasil, foi apenas com o polêmico Mais Médicos, resposta oficial às Jornadas de Junho, que este tema chegou ao centro do debate público em anos recentes. O mal estar com a saúde no Brasil é fenômeno antigo. Antes de existirem os modernos sistemas de saúde, a gente se virava: rituais místicos, ervas medicinais ou prescrições alimentares sempre fizeram parte de nossa chamada medicina popular. No entanto, desde o período colonial, as péssimas condições de vida impunham altas taxas de adoecimento e mortalidade (2). Não raro também o povo foi visto como empecilho para a produção de riqueza: a mesma sanha agroexportadora
que impôs a imunização obrigatória contra a varíola, estopim da rebelião popular de 1904 no Rio de Janeiro, também apadrinhou a prática secular de contágio proposital de populações indígenas com a mesma doença, “presenteando-as” com roupas contaminadas pelo vírus. No Brasil, paradoxalmente, a guerra biológica e seu antídoto foram armas descarregadas contra o povo. Este passado ainda está vivo hoje. Num país em que o carro é prioridade ante o direito coletivo à mobilidade, em que os empregos vão se esgotando cada vez mais, que o acesso a alimentos saudáveis é sacrificado em nome do agronegócio, em que a especulação imobiliária esmaga o direito à moradia, as condições de saúde são prejudicadas. Não é à toa que quase metade dos entrevistados apontam a saúde como sua maior preocupação (3). A relevante – porém insuficiente – redução dos níveis de desemprego consolidaram esse cenário a partir do segundo governo Lula. ão foi surpresa, portanto, a enorme popularidade dos lemas em defesa da saúde durante as Jornadas de Junho. O que surpreendeu muitos ativistas foi uma defesa generalizada do direito à saúde (sintetizada na palavra de ordem “põe os R$0,20 no SUS”). Durante a era dourada do lulismo, o crescimento econômico possibilitou a fantasia de que seria possível promover “inclusão social” através do consumo. Um dos símbolos da mal chamada “nova classe média”, junto com o carro próprio e as tralhas eletrônicas, era o acesso a planos de saúde. Historicamente, o uso de serviços privados de saúde serviu como índi-
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ce de segregação social entre as classes dominantes, os setores remediados e os segmentos mais pauperizados das classes trabalhadoras. O lulismo, fruto também dessa diferenciação social, soube trabalhar com essa questão, de um lado garantindo enormes lucros às operadoras de planos de saúde, de outro lado comprando o apoio popular (ou o “consentimento passivo”, segundo Ruy Braga) através da ampliação do acesso dos trabalhadores aos planos de saúde. Quando a vida se mostrou claramente insuportável para milhões, o edifício ideológico da “cidadania via consumo” desmoronou. Um de seus pilares era o consumismo de saúde, desmoralizado pelo protestos. O governo Dilma, após se refazer do choque e garantir que nada iria mudar substancialmente (ainda em junho, desistiu da reforma política e assegurou à banca internacional que continuaria a desfrutar das prioridades de sua política econômica), resolveu agir na saúde. Estava no fim das férias quando veio à tona o pacotaço denominado Mais Médicos, no sugestivo dia 09 de julho. Na semana anterior, havia acompanhado à distância as mobilizações de algumas entidades médicas, cuja pauta transitava de um corporativismo conservador à franca hostilidade xenofóbica e elitista, que assustaram setores expressivos da sociedade brasileira. Desde abril, o governo ameaçava finalmente enfrentar a carência de médicos no SUS, com a “importação” de estrangeiros para regiões de difícil fixação de profissionais brasileiros. Essa era a maior razão da enorme grita das entidades.
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s médicos, como demais trabalhadores da saúde, enfrentam piora das suas condições de trabalho. Sua jornada média aumentou consideravelmente entre 2002 e 2006 (estão entre as maiores, perdendo para caminhoneiros, motoristas e executivos de grandes empresas), frequentemente trabalham em mais de um emprego. No entanto, os médicos, comparados com as demais profissões da saúde, ainda gozam de um status melhor, com maiores salários (4) e condições de trabalho menos insalubres. Resumindo: a situação está piorando, mas não está tão ruim para os médicos, se comparado a outras categorias profissionais. Há vários motivos para isso: o prestígio de que desfrutam por seu papel frente ao sofrimento e a morte ou sua importância para as grandes empresas da doença. Mas gostaria de destacar dois elementos que considero fundamentais: a falta de profissionais e o tipo de profissionais formados. As enormes dificuldades de acesso da maior parte do povo à assistência à saúde esbarram, entre outros fatores, na falta de trabalhadores nos serviços públicos. O poder público, fiador da política de restrição dos gastos sociais ao mínimo, desde a criação do SUS (em 1988) não se compromete com a expansão de um mercado de trabalho estatal necessário à consolidação do direito à saúde. Some-se a isso a expansão desordenada do ensino superior, que criou um grande contingente de profissionais de saúde formados, levando ao enorme contrassenso que é ter carência de atendimento e elevada taxa de desemprego de determinadas categorias, como profissionais de enfermagem, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, entre outros. No caso dos médicos, cuja escassez frequentemente representa as dificuldades de acesso nas reclamações da população, a situação é um pouco diferente. Nos recentes estudos patrocinados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e coordenados pelo Prof. Mario Scheffer, da Faculdade de Medicina da USP, foi possível traçar um quadro mais exato dos problemas do mercado de trabalho dos médicos (5).
No ano de 2011, o Brasil tinha 1,9 médicos por 1000 habitantes, índice semelhante ao do Canadá, mas menor que EUA, Reino Unido, Espanha e Cuba (segundo dados do Banco Mundial). Fica evidente que a proporção não é ínfima, mas está longe de representar superpopulação de médicos, conforme querem setores das entidades da categoria. O estudo mostra ainda que durante a ditadura o ritmo de crescimento de profissionais graduados aumentou e se mantém até o presente. Chama a atenção o fato de que há menos de 10 anos predominam as mulheres entre os recém-formados.. Este estudo evidenciou grandes disparidades geográficas: a maior parte dos médicos se concentra nas capitais e nos estados mais ricos, em geral no Sul e Sudeste, além do Distrito Federal. Outra variável chave é a concentração de médicos no setor privado. Embora apenas 25% da população tenha planos de saúde privados, na disponibilidade de médicos essa estatística se inverte: há 4 vezes mais médicos na rede privada que no SUS. Está aí o cerne do problema. Suas origens remontam a ditadura de 1964. Nesse período, quando foi consolidada a separação entre público e privado na saúde – coisa que o período dito democrático não foi capaz de modificar – o mercado de trabalho na medicina precisou se adequar às necessidades dos negócios na saúde. Naquele momento, houve uma expansão no ritmo de formação de novos médicos, com abertura de novas faculdades. A medicina liberal perdeu o monopólio para novas formas de trabalho; mesmo assim, o assalariamento e a prestação de serviços ao setor público e ao privado não mudaram o prestígio (e as vantagens econômicas) da prática da medicina subordinada aos interesses empresariais. O negócio na saúde se expandiu através do modelo de atendimento baseado no hospital, nas tecnologias mais avançadas, no trabalho médico especializado e fragmentado. O Brasil começou a absorver a compra de máquinas modernas (como tomógrafos, aparelhos de ultrassom de última geração), medicamentos recém-lançados, etc. Copiar os padrões de medicina dos países ricos – uma ob-
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sessão até hoje – nos levou a privilegiar a incorporação tecnológica no lugar da resolução das grandes questões nacionais da saúde: baixo acesso das populações pobres aos serviços de saúde, os problemas da urbanização (como saneamento e moradia), as periódicas epidemias (que ainda nos atormentam, como a dengue e a tuberculose) ou o péssimo padrão de alimentação. Tanto no setor privado, como no setor público, a ideia fixa pela modernização orientou o mercado de trabalho e, mais grave ainda, as faculdades de medicina. Este modelo de saúde voltada aos negócios e à modernização passou a dominar os currículos dos cursos de medicina. Até hoje, as especialidades gerais (como a medicina de família e comunidade ou pediatria) representam a minoria dos médicos com especialização ou residência. Esta realidade não foi modificada pelas sucessivas tentativas de reformas das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de medicina e é agravada pela distribuição e preenchimento das vagas de Residência Médica, que termina por definir a posição do médico no mercado de trabalho.
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or essas razões, o Mais Médicos é aquele remédio que alivia a dor, mas não resolve o problema. Ele se inscreve no projeto lulista de combinar expansão dos grandes negócios e pequenas migalhas para apaziguar as enormes contradições sociais brasileiras. Basta lembrar da previsão do então ministro da saúde, Alexandre Padilha: a porcentagem da população usuária de planos de saúde iria passar dos atuais 25% para 40% em 2022 (7). É precisamente dentro do projeto de privatização do SUS que precisamos entender o programa. A pesquisa “Demografia Médica no Brasil” mostra que, entre 2005 e 2009, o ritmo de expansão das vagas de trabalho no setor privado cresceu muito mais que os médicos formados e que os postos de trabalho no SUS. Mais grave ainda: havia, em 2011, vagas no setor privado para ocupar praticamente todos os médicos brasileiros. Isso explica a agudeza da crise da escassez de médicos, com que sempre sofreu o SUS, mas que passou a afetar parte do setor privado em expansão. É nesse contexto que o governo vinha preparando, já antes de junho passado, um programa nos moldes do Mais Médicos, acelerado em virtude da pressão das ruas.
Em síntese, as mudanças que Dilma preparou foram: ampliação de vagas em cursos de medicina, especialmente em universidades privadas; criação de postos de trabalho na atenção primária à saúde com vínculos trabalhistas precários (sem direito a férias ou 13º salário, por exemplo), baseado principalmente na “importação” de profissionais estrangeiros, após a baixa adesão de profissionais nacionais; precarização da política de formação de médicos de família e comunidade, ao preferir as especializações em serviço no lugar da residência médica (8).
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ssas medidas se destinam a “inundar” (metáfora que ouvi de diversos colegas em postos de mando no Ministério da Saúde) o mercado de trabalho de médicos; reservar para os profissionais brasileiros os postos de trabalho no setor privado, em um primeiro momento, até que a expansão desordenada das vagas de medicina – pois não respondem às necessidades regionais e do SUS – seja capaz de gerar um abundância relativa. Isso tenderá a rebaixar os salários e aumentar o subemprego, como já ocorre com as demais categorias da saúde. É fundamental frisar que o Mais Médicos, sob o absurdo pretexto de pagar “bolsas” aos profissionais que aderiram ao programa, torna-se novo paradigma de precarização do serviço público. Outro aspecto que salta aos olhos é que o governo sequer dá a importância devida aos demais profissionais de saúde, cujas péssimas condições de formação e trabalho inviabilizam a melhora geral das condições de trabalho no SUS. O governo Dilma acaba por reforçar a fetichização da categoria médica como solução mágica para os graves problemas de saúde do povo brasileiro (9). Por fim, as mudanças propostas na formação nem apontam para a superação do paradigma especializado e medicalizador, pois a prioridade não é para especialidades gerais, nem vem combinadas com medidas que subvertam a lógica dos negócios. Mesmo depois de junho, o bloco lulista insiste com a “convivência harmônica” das grandes empresas da doença, que tem franco acesso aos salões do poder (10), e do SUS. Esse projeto, síntese do arranjo conservador da Constituição de 1988, mostrou claramente que não serve ao povo brasileiro. Na discussão sobre quantos e quais médicos o país precisa, a resposta deve passar por superar nossos grandes dilemas sociais. No
caso da saúde, devemos retomar a noção de que apenas mudanças profundas serão capazes de derrotar a indústria da doença, da modernização ao custo da pobreza da maioria, e de um sistema educacional típico de uma nação dependente. Isso certamente colocaria em cheque a mentalidade – e as práticas – senhoriais de parte da categoria médica, como ocorreu nas profundas reformas sanitárias do Reino Unido da década de 1940 e de Cuba nas décadas de 1960 e 1970. Nesses dois casos, os dilemas nacionais foram enfrentados, cada qual de acordo com suas possibilidades e limites históricos. Muito diferente do nosso cenário político atual, em que o grande esforço do governo é salvar a Copa do naufrágio iminente. Nesse sentido, o SUS, fruto da transição pelo alto (expressa pela “Nova República”), embora tenha proporcionado mudanças no atendimento à saúde, não foi capaz de subverter a lógica acima mencionada. Como na política urbana ou na questão da segurança pública, o Brasil ainda está amarrado aos termos gerais legados pelo regime ditatorial. Ainda hoje, a saúde no Brasil é uma combinação entre a prioridade na expansão dos grandes negócios e a mitigação das enormes tensões sociais. A ideia de direito à saúde segue embelezando a Carta Magna, a produção técnica e acadêmica brasileiras, mas definitivamente não contempla o sentimento popular, que só tem levado tiro, porrada e bomba, ao invés de saúde, educação, transporte e moradia.•
(1)(http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php) (2) CONRAD, RE Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil – São Paulo: Brasiliense, 1985 ( 3 ) h t t p : / / w w w 1. f o l h a . u o l . c o m . b r / s e m i n a r i o s fol h a / 2 014 / 0 3 / 14 3 247 8 - d at a fol h a - ap ont a - s aud e - c o mo-principal-problema-dos-brasileiros.shtml (4) Escassez de médicos, Neri, M (org.). Rio de Janeiro: CPS/FGV, 2008; O médico e seu trabalho: aspectos metodológicos e resultados do Brasil. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2004 (5) Demografia Médica no Brasil: Resultados gerais e descrições de desigualdades. Coordenação: Mário Scheffer; Aureliano Biancarelli Alex Cassenote. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e Conselho Federal de Medicina, 2011 (6)http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2014/04/setor-privado-e-perfil-das-faculdades-afasta-jovens-medicos-damedicina-de-familia-4148.html (7) Revista Carta Capital, edição 696, 09 de maio de 2012 (8) sobre o trabalho dos médicos estrangeiros, pode-se ler os interessantes relatos das dificuldades, críticas e reconhecimento dos méritos destes profissionais ao programa, nos seguintes links: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9440:manchete200314&catid=25:politica&Itemid=47; http://remediosdirce.blogspot.com. br/2014/02/os-estrangeiros-os-pacientes-e-os.html (9) O setorial de saúde do PSOL debateu este tema, conforme os textos a seguir: http://www.psolsaude.com.br/159; http:// www.psolsaude.com.br/52#comment-95 (10)http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/95986-uniao-quer-ampliar-acesso-a-planos-de-saude.shtml
28 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
Ensaio sobre a política habitacional no DF
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Distrito Federal, principalmente se considerarmos a população do entorno, é hoje a unidade da federação com a maior desigualdade social do Brasil. E certamente não se explica esta realidade sem compreender a política habitacional. A luta por moradia no Distrito Federal sempre esteve bastante vinculada aos principais projetos de poder estabelecidos, cada qual ao seu modo, seja durante os anos de gestão Roriz, com o domínio dos processos de grilagem, seja a versão mais moderna do capital imobiliário como protagonista da política fundiária a partir das gestões Arruda/Agnelo. De coincidente, os dois modelos traziam a tentativa do domínio dos movimentos de moradia, seja pela cooptação ou pela repressão. O recente protagonismo do MTST, colocando em xeque a política de moradia e garantindo a autonomia do movimento frente ao governo, é um marco na luta por moradia digna no Distrito Federal. Para tentar entender esse marco, faremos um breve resumo da política habitacional do Distrito Federal que, em conjunto com as demais políticas, são responsáveis pelas mazelas sociais em que vivemos e pelo altíssimo déficit habitacional que, hoje, é de praticamente 50% da população.
A construção de Brasília e a expulsão dos trabalhadores(as)
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omo diversos documentários, livros e relatos já mostraram, Brasília foi construída graças a uma forte migração de trabalhadores e trabalhadoras para o Planalto Central. Durante a construção, de acordo com o censo de 1960, a população chegara a 140 mil pessoas, e cresceria mais nos anos seguintes. É o primeiro dos três grandes fluxos populacionais ao DF. Num primeiro momento, a maior parte desses trabalhadores foram instalados nas cidades próximas a Brasília, notadamente a Candangolandia e o Núcleo Bandeirantes além das já existentes Planaltina e Brazlândia. Relatos mostram que a construção da Vila Taguatinga, ainda no final dos anos 50, já ocorrera a partir da pressão dos trabalhadores. Nos primeiros anos da década de 60, são construídas Gama e Sobradinho. Após a realização das construções, que permitiram realizar a inauguração do Distrito Federal, com a vinda da Administração Pública Federal e a série de novas oportunidades e propiciado pela grande processo migratório dos anos 70, o DF vê também saltos enormes no crescimento populacional. No espaço de vinte anos, entre 1960 e 1980, a população multiplica-se por 10, atingindo 1,2 milhões de pessoas. É nesse cenário, em meio à dita-
Francisco Carneiro de Filippo Érika Lula de Medeiros
dura militar, que ocorre a construção de mais uma série de cidades-satélite. Além das já citadas Gama e Sobradinho, também é projetado o Guará. Porém, a história da luta por moradia nesse período é marcada pela resistência e consolidação do Paranoá (vila de trabalhadores do início da construção que reage às tentativas de remoção) e pela Campanha de Erradicação de Invasões, série de remoções forçadas das ocupações da Vila IAPI; das Vilas Tenório, Esperança, Bernardo Sayão e Colombo; dos morros do Querosene e do Urubu; e Curral das Éguas e Placa das Mercedes, totalizando mais de oitenta mil moradores. Desse processo de remoção das ocupações nasceu a Ceilândia que, desde o início, foi marcada por uma série de conflitos.Em especial, no início, tais conflitos estouraram em resposta à negligência, por parte do Governo do Distrito Federal (GDF), em garantir a infraestrutura da cidade. Posteriormente, já nos anos 70, houve revolta quando o GDF tentou forçar os moradores a pagar o lote inicialmente calculado pelo valor de mercado daqueles anos, em descumprimento das próprias normas da fundação da cidade. Não à toa, é da Ceilândia que surgem muitos dos processos de resistência ao governo militar naquela época e, até hoje, é fonte de resistência e luta. No que tange à moradia em particular, nos anos 70-80 ganhou a Associação dos Incansáveis de Ceilândia conseguiu derrotar o governo militar. Hoje, nos anos 10 do século XXI, o MTST, que tem na Celândia sua maior base no DF, vai fazendo história e conquistando vitórias. Assim, desde o primeiro momento, a construção do DF já traz a marca da segregação geográfica como co-irmã da segregração social. O argumento de que Brasília seria uma cidade para todos fica para trás em menos de 20 anos de cidade.
A consolidação da segregação social e o domínio coronelista
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partir dos anos 80 surge no DF a figura de Joaquim Roriz, que, entre governador biônico e eleito, governou o DF por 15 anos. Esse período entre 1988 e 2006 concentra as principais transformações sociais na região. Primeiramente, constata-se que o fluxo migratório continuou intenso. A população dos anos 80, aumento em 50% em 1996, atingindo 1,8 milhões de habitantes. Em 1988, ano em que Roriz assume, o DF era a 13ª unidade da federação no ranking brasileiro de desigualdades. De lá pra cá, o índice não só piorou, como o DF assumiu a pior colocação do país. A política de moradia implantada por Joaquim
Roriz tem muita responsabilidade sobre isso. Ao se deparar com este enorme fluxo populacional associado às grandes extensões de terras públicas no DF, Roriz não titubeou em armar uma política habitacional que lhe garantisse o domínio político e econômico sobre o DF. A política habitacional permitia a ocupação das terras públicas por parte da população que chegava ao DF, mas colocava a maior parte das famílias numa relação de dependência econômica e política para com o grupo Rorizista: as ocupações não garantiram a titularidade do terreno. Construiu-se uma enorme demanda por regularização de lotes no DF, que até hoje não está resolvida; as famílias deveriam, via de regra, estar vinculada a alguma cooperativa; a maioria dessas cooperativas eram coordenadas por capangas de Roriz (Pedro Passos, José Edmar, Paulo Roriz, Roney Nemer, etc) que extorquiam política e economicamente as famílias; a desistência de algum cooperado implicava a retirada ou envio do nome para o final da lista da regularização. Esse processo de definição da ordem na fila para regularização, por razões óbvias, não era transparente, garantindo o domínio político. As ocupações ocorriam em regiões de pouca ou nenhuma infraestrutura urbana e também vieram acompanhadas do desemprego estrutural, gerando enorme demanda por outras políticas públicas. Quase toda conquista de direitos, todavia, ainda que fruto de um abaixo-assinado ou passeata, era, ao fim, associada a um favor de Roriz e/ou seus capangas para o povo. Infelizmente, a esquerda à época não soube identificar a melhor forma de combater esse processo. Ao denunciar tudo, passou também a criminalizar o único elemento positivo de todo o processo que era a justa ocupação das terras. Hoje, por exemplo, Agnelo se utiliza de termos pejorativos como “grileiros” para tentar associar o MTST às cooperativas do passado. No início dos anos 90, muitas destas ocupações tornaram-se novas cidades satélites: Samambaia (em 89), Santa Maria, Recanto das Emas, Riacho Fundo, São Sebastião, que havia sido fundada como Agrovila ainda no início da construção do DF. Ao longo dos anos, é verdade, parte da estrutura urbana (asfalto, saneamento, água e luz) chegou à maior parte destas regiões. Porém, a política de exclusão e segregação geográfica deixaria sua marca com o crescimento cada vez maior da desigualdade e do acesso ao conjunto de benefícios destinado ao Plano Piloto, Lagos e outras regiões de moradia da alta burguesia da cidade.
A hegemonia da especulação imobiliária
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m 2006, a dupla Arruda/Paulo Otávio assume o Governo do Distrito Federal. Inicia-se ali um novo processo de gestão de terras no DF, bastante vinculado ao ciclo imobiliário, que se consolidou nas últimas duas décadas como um dos setores mais dinâmicos do capitalismo brasileiro. A eleição de 2006 abriu as portas para esse setor desbravar o quadrado da capital. Bons elementos não faltavam para a expansão imobiliária. Fartas terras públicas, parcela relevante da população com alto poder aquisitivo, uma cidade já marcada pela segregação geográfica e social (não sendo necessárias grandes remoções), uma burguesia ávida por um novo projeto capaz de articular seu domínio e a ausência de um projeto de esquerda realmente alternativo. Assim, rapidamente a proposta de domínio da especulação imobiliária ganhou consenso com a classe média e com a burguesia do DF. Um jargão importante foi criado: “combater os grileiros, os invasores da terra pública”. A Agência de Fiscalização do Distrito Federal (AGEFIS) fortaleceu o poder de repressão. A Terracap (Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal) consolida-se como o grande balcão de negócio dos empreiteiros. Para consolidar o quadro, a aprovação do Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT), sob as marcas da caixa de Pandora, tirou os entraves legais que ainda restavam para a transformação do direito à moradia em mercadoria de alto valor. A transformação causada pelo projeto trazido por Arruda e paulo Otávio (um dos maiores especuladores do DF) foi forte e sobreviveu à crise política do governo. A fraudulenta construção do Noroeste é um símbolo mais visível do processo, mas que, atingiu em cheio também muitas das cidades-satélite (como Ceilândia, Taguatinga, Samambaia, Guará e Gama, pra não dizer todas). Diversos foram os grupos removidos de forma bruta, com o oferecimento da “passagem de volta pra casa”. Restringe-se e controla-se o território. Os centro das cidades são disputados pelos novos donos do DF. A lógica era muito simples. Do conjunto de terras públicas existente no DF, grande parte não será mais ocupada pelas famílias pobres. Elas serão vendidas nas licitações mensais da Terracap para os empreiteiros. Existe uma demanda constante por moradia na população mais rica do DF, e esse mercado está aí para ser ocupado. Outra parte das terras será destinada aos demais empresários aliados por meio do Pró-DF. As famílias pobres que necessitem de moradia popular, serão empurradas para o entorno, para onde também irá
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a repressão da Força Nacional. A eleição de Agnelo em 2010 dá continuidade a esse processo. Tentando se diferenciar, cria uma versão rebaixada do Minha Casa Minha Vida, o “Morar Bem” que, tal como o federal, atua como complementar a política especulativa, buscando os terrenos, a preço de mercado, onde possam ser alocadas as famílias. O primeiro cadastro do Morar Bem mostra a falência da política habitacional no DF, desde os tempos de Roriz. Cerca de 50% da população, 330 mil famílias, apresenta-se como demandante por moradia. O “Morar Bem”, nesses quatro anos, tornou-se uma falácia burocrática e peça de propaganda. Atendeu realmente apenas 2 mil famílias nos extratos sociais mais altos do programa, pois só estas têm condições de pagar a mensalidade do financiamento. A maioria dessas famílias foi para o Jardim Mangueiral que inclusive já sofre com a falta de infra-estrutura (transporte público, escolas, centros de saúde ou comércio, entre outros. Os moradores ficam, ainda, reféns da Odebrecht, gestora da Parceria Público-Privada, mostrando que o ciclo da história se repete. Para os demais que são chamados (o GDF já convocou quase 100 mil pessoas), encontram um processo caro e burocrático para conseguir todos os documentos e, quando se apresentam, lhe são oferecidas parcelas cujo prestação inicial fica acima do valor do aluguel tradicional. Se alguém não consegue todos os documentos ou não tem como pagar a prestação, é retirado do programa e o GDF diz assim estar “diminuindo a lista”. A todos, aprovados ou não, a fala de sempre: “esperem quietos que chegará a sua vez. Mas não se mobilizem, pois isto é coisa de grileiro e poderá ser punido”. De fato, o combate e a repressão estatal às ocupações durante a gestão Agnelo seguiu diretrizes semelhantes da política de Arruda.
E a Copa do Mundo com isto?
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urante sua campanha pra Governador do DF de 2010: Agnelo Queiroz prometeu entregar 100 mil moradias populares ao longo de seu mandato. Essa promessa seria refeita em 2011 e 2012. Até o início de 2014, o número de casas entregues não chegou a 5 mil. Também no início de seu mandato, Agnelo autorizou o crescimento da capacidade do Estádio Mané Garrincha de 42 mil para 70 mil pessoas. O objetivo era, mais uma vez, curvando-se à FIFA, entregar a ela o direito de escolher a cidade que faria a abertura da Copa do Mundo. O critério de escolha era a cidade que fizesse os melhores mimos para os reis. São Paulo foi escolhida e Brasília ficou chupando dedo. Menos mal: na época o custo estimado do Estádio era em torno de R$ 700 milhões. Bem abaixo dos dois bilhões de reais que a Terracap já desembolsou até o momento, conforme
demonstra a própria empresa. Mas o que o custo do Estádio tem a ver com a política de moradia no Distrito Federal? Muita coisa, e o centro da resposta encontra-se na mesma Terracap, empresa pública que é responsável pela gestão das terras no DF e pelo desembolso dos gastos do estádio: Entre 2011 e 2014 a Terracap realizou 35 editais de licitação de terrenos no Distrito Federal. Boa parte deles em áreas de habitação, que foram adquiridas por empresas do setor de construção. A média das licitações gira em torno de 60 lotes vendidos e R$100 milhões a receber ao longo de 180 meses. Desse monte de número, poderemos tirar duas conclusões importantes: I – A receita arrecada pela Terracap é muito menor que o volume de gastos com o estádio. Ou seja, a construção do estádio está falindo a empresa. Por isso, em alguns momentos, o GDF remanejou recursos de outras áreas sociais, como a saúde, para custear a construçãodo estádio: II – A cada mês, o número de áreas destinadas à moradia popular vai diminuindo, em virtude justamente da privatização das terras no DF. Como todo processo social, o fato do GDF priorizar construir estádio para a Copa e vender terrenos ao invés de garantir a moradia pública tem importantes consequências. Em primeiro lugar: a mentira do governo: existem mais de 330 mil pessoas cadastradas no programa Morar Bem do Distrito Federal. Com cerca de 5 (cinco) mil moradias no DF contempladas até o momento, fica claro que o programa não é prioridade. Mas o GDF fica insistindo que já chamou mais de oitenta mil pessoas pra entregar os documentos e tenta convencer de que isto basta. Em segundo lugar: a exclusão das pessoas. O programa, sem perspectiva de avançar, busca excluir as famílias pelas duas formas já citadas: primeiro pelo excesso de burocracia, exigindo muito tempo dedicado para as famílias conseguirem comprovar o cadastro. Segundo, pelo preço da parcela do financiamento. A uma família que ganha 6 (seis) salários, algo como R$ 4.400,00 por mês, é oferecido um apartamento de 2 quartos no Jardim Mangueiral cuja parcela é R$ 1 mil! As famílias que ganham até 3 salários mínimos, maior parte dos que demandam, pouco ou nada foram contempladas até agora justamente porque não conseguem garantir o pagamento das prestações. Por fim: expulsão para o entorno. Na falta de perspectivas, está ocorrendo hoje em nossa região uma saída grande de famílias para o entorno. Deveria ser obrigação do GDF ajudar as cidades próximas em suas políticas sociais. A política de saúde, de educação, de assistência social, de moradia e transporte deveriam ser unidas de forma. Pelo contrário, até mesmo por parte do Governo se vê o argumento de que a culpa dos problemas da saúde e educação são devidos à pressão do entorno e, na práti-
ca, unificada está apenas a política de repressão por parte da polícia do DF e GO e da Força Nacional. O que se vê, em suma, é a expulsão de famílias para longe do DF aliada ao crescimento desordenado da cidade, voltado apenas pra atender as grandes empreiteiras e com a ausência de políticas sociais. O DF terá o estádio mais caro do país e, ao mesmo tempo, a maior desigualdade social -- a maior distância entre ricos e pobres, entre aqueles que têm direito à cidade e às suas estruturas, e aqueles que que são cotidianamente excluídos dela. Enquanto isso, os leilões no grande balcão de negócios da Terracap seguem religiosamente todo mês. A luta popular como alternativa real: a experiência do MTST/DF MTST, desde 2008, vem trabalhando no DF com a perspectiva de se consolidar como um movimento social na luta por moradia a partir de princípios importantes: a independência de classe, frente aos governos e diversos grupos políticos; o respeito às famílias como protagonistas de forma a não criar a dependência econômica ou o assédio moral por parte da direção; a luta popular como método de conquista e avanço dos direitos; a solidariedade de classe aos diversos setores e segmentos que lutam. Com esses princípios, o MTST ganhou respeito e força. Hoje, é o principal movimento popularl no DF. Desde o início vem promovendo ocupações, de forma a denunciar a política habitacional pró-especulação, criando uma nova cultura nas famílias: ao invés de esperar a burocracia do governo ou das cooperativas, ocupar a terra e lutar por direitos. A cada nova ocupação, aumenta o núme-
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ro de participantes e aumenta a força do movimento. A partir da ocupação do Novo Pinheirinho na Ceilândia, em 2012, e em Taguatinga, em 2013, no centro do capital imobiliário, o MTST conseguiu mostrar pro GDF que a criminalização não iria interromper as lutas forçando o GDF a iniciar um processo de negociação. Conquistas vieram desde então, a melhoria do auxílio emergencial, a criação do auxílio aluguel, os cadastros das famílias, a promessa de regularização do Nova Planaltina. Nem com as primeiras vitórias, o Movimento parou de fazer luta. A cada entrave no cadastro era mais uma pressão no na Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codahb). Também se promoveram ocupações na própria Terracap. O MTST vai fazendo história. Desde os Incansáveis de Ceilândia e passando pela luta pela regularização, nos anos recentes, é o primeiro movimento de luta por moradia (e não só regularização) com força e comprometido com a luta dos trabalhadores. Seu exemplo é inspiração para sindicatos, movimentos estudantis, advogados populares, partidos de esquerda e artistas populares. Ainda falta muito por se conquistar no DF. A força da especulação imobiliária, e o discurso de que é necessário o uso da força para combater as ocupações urbanas ainda segue dominante. Porém, frente à máquina da morosidade e da falsa propaganda do Morar Bem, a experiência do MTST é aquela que conseguiu abrir brechas de lutas e criar a expectativa de que é possível reverter esta longa história de 54 anos de exclusão social a partir da moradia no Distrito Federal e entorno.•
30 • Territórios Transversais - resistência urbana em movimento
A ocupação e o despejo da “TELERJ” drama do povo na cidade dos megaeventos Henrique Sater
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onforme amplamente noticiado no dia onze de abril deste ano, na calada da madrugada, mais de 1600 policiais da Tropa de Choque e do Bope iniciaram a violenta reintegração de posse da ocupação da Telerj, no bairro do Engenho Novo, Zona Norte do Rio de Janeiro. Três dias antes, numa terça-feira, a juíza Maria Aparecida Abreu realizou uma audiência no Fórum Regional do Méier, com quase todos os envolvidos no processo: re-
presentantes da empresa OI (suposta proprietária do terreno) e da prefeitura e estado do Rio de Janeiro. A “lista de convidados” para conversar sobre a ocupação não era pequena: havia ali representantes das Secretarias de Habitação e de Direitos Humanos, do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro, das Secretarias Municipais de Habitação e de Desenvolvimento Social, Secretário de Governo e do Conselho Tutelar, além da Polícia Militar. A notícia da audiência chegou à impren-
sa, mas convite algum chegou à coordenação da ocupação. Uma comissão foi formada e, mesmo com muitos constrangimentos à normalidade daquela audiência, conseguiu acompanhar a discussão que poderia definir o futuro das famílias ocupantes. E começaram os preparativos: rapidamente se apontava quem levaria as munições e bombas em número suficiente, quem ia arcar com as despesas e quem cuidaria das crianças. A verdade é que não parecia ter havido muita organização para o que estava por vir na sex-
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ta, dia 11, e até o coronel Rogério Leitão, comandante do 1º Comando de Policiamento de Área, parecia hesitante em decidir datas, tamanho do operativo e complexidade da operação. Em alguns momentos, o desejo por um massacre transbordava pelo caráter formal de configurar aquela audiência como um mero momento técnico para operacionalizar o despejo com o “mínimo de danos possível”: “Vamos fechar as ruas em volta para impedir que novos oportunistas entrem!” “Que tal cortar água e luz para ver se eles desistem!” “Não é melhor tirar as crianças antes, para evitarmos tragédias?” “Se tivesse tido algum tipo de ação mais forte no início, as famílias não teriam tido coragem de entrar!” A transcrição exata da audiência revelaria muito das entranhas de um poder público que mal titubeia em escolher entre a “ordem” e a vida. Perla, 30 anos, uma das coordenadoras presentes na sala, sintetizou o cheiro nauseante da indiferença à vida dos mais pobres em uma única frase: “Eles falam da gente, das seis mil famílias, como se fôssemos animal pro abate.” A audiência terminou conforme esperado, com a reintegração de posse previamente autorizada, não houve nenhum indicativo nem de diálogo com as famílias, muito menos de um prazo exato para o dia do despejo. Havia, no entanto, um tom de urgência no pronunciamento da juíza e uma indefinição do que se daria nos próximos dias.
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m algum lugar, conjecturas a parte, (onde o poder se situa acima dos poderes e das forças sociais, onde é mais vontade do que inteligência ou racionalidade), foi decidido executar-se um despejo, a toque de caixa, inconsequente e irracional do ponto de vista dos que afirmam a vida digna como horizonte. E o que foi visto no dia onze, ainda que dificilmente inédito para as seis mil famílias que ocupavam o local, mais uma vez evidencia o estado de exceção permanente que o espaço urbano periférico vive diariamente. A Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo deputado Marcelo Freixo, apurou alguns dados do massacre com os hospitais que atenderam os feridos. Apenas como amostra da sexta-feira sangrenta no Engenho Novo, podemos citar duas vítimas: Maycon Gonçalves Melo, 25 anos, levou um tiro de bala de borracha no olho e perdeu a visão; Regina Teixeira Vieira, 55 anos, levou 6 pontos na mão ao tentar se proteger de uma bomba. Além disso, dezenas de feridos deram entrada na UPA Engenho Novo e no hospital Souza Aguiar. Entre eles, algu-
mas crianças que inalaram gás lacrimogênio em excesso. Muitos maus-tratos foram denunciados pelas famílias que moravam no complexo de prédios e terrenos ocupados havia 12 dias. O conflito não se restringiu à ocupação e a imprensa nacional e internacional narraram uma manhã extremamente tensa. Diversos veículos queimados, ações policiais truculentas nas comunidades vizinhas e descontrole completo da ação transformaram o Engenho Novo num palco de atrocidades e violência contra os trabalhadores mais pobres. A questão habitacional mais uma vez virava caso de polícia, confirmando o recado que o atual governador do Estado, Pezão, deu no dia seguinte ao povo carioca: “foi feito o que tinha que ser feito.” Numa rápida resposta ao massacre, as famílias decidiram na própria sexta-feira à tarde protestar em frente à prefeitura do Rio de Janeiro. Mesmo após uma manhã traumática, tiveram forças para chegar à Cidade Nova e pedir algum tipo de garantia digna às famílias afetadas. Nenhuma resposta foi dada, nenhum representante do poder público sequer as recebeu e a dramática situação não apontava para solução alguma. As famílias optaram por permanecer acampadas em frente à prefeitura e passaram um final de semana ao relento, pois a Guarda Municipal foi orientada a não permitir nenhum tipo de barraca ou proteção aos acampados. Um grande ato foi marcado para segunda-feira e, mesmo sob forte chuva, uma grande pressão contra a prefeitura foi respondida com repressão da Guarda Municipal e uma total ausência de propostas por parte do governo. À noite, as famílias foram impedidas de dormir na frente da prefeitura e ficaram acuadas. A movimentação policial era intensa.
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e parássemos a narrativa da ocupação da Telerj nesse ponto, talvez o que continuasse chamando a atenção é a violência do Estado contra os mais pobres. Nesse sentido, o descaso e cinismo personificados pelos poderosos, entrelaçados a um aparelho repressivo que atua absolutamente fora da lei (sob o pretexto de tentar garanti-la), aparecem como peças-chave para compreender o que ocorreu na manhã do dia onze de abril. O que não salta aos olhos, mas é central para compreendermos esse tipo de processo, é a lógica que o espaço urbano carrega enquanto produz-se e reproduz-se enquanto tal. Quando a capa do jornal O Globo anuncia exatamente uma semana antes da sextafeira, “Como nasce mais uma favela”, fica evidente a importância que tem para esta
lógica o surgimento de uma ocupação urbana espontânea e numa área muito próxima ao Maracanã. Trata-se da resposta mais concreta e extrema dada pelos trabalhadores frente a um modelo de cidade que joga os mais pobres para cada vez mais longe. A sequência dos fatos é pedagógica: tenta-se atribuir a iniciativa a criminosos; se não for possível, insiste-se na teoria conspiratória de que “forças ocultas” iniciaram a ocupação e incansavelmente nega-se que a responsável pela iniciativa é a necessidade real de moradia. Nesse meio tempo, apressa-se com todos os recursos necessários a aprovação jurídica do despejo e, como fosse alternativa, coloca-se como opção um abrigo sem dignidade alguma. O poder público conseguiu em grande parte o que queria: realizou um despejo rápido, não se comprometeu com nenhuma das famílias com solução digna e, de maneira sorrateira, confundiu a coordenação e as famílias, prometendo um cadastro no programa Minha Casa Minha Vida, que além de não representar garantia nenhuma, continha uma declaração assinada pela família que havia cometido uma invasão de propriedade. Além de tudo, impediu a participação do MTST (que apoiava a ocupação) nas negociações. O que era uma ocupação espontânea, que possuía uma coordenação e organização internas, num local abandonado há mais de 20 anos, tornou-se novamente um local vazio, cercado e vigiado sob o manto sagrado da propriedade privada. Após serem literalmente enxotadas do entorno do prédio da prefeitura, algumas dezenas de famílias ainda desabrigadas foram até a Catedral Metropolitana, no centro da cidade pedir ajuda humanitária da igreja, que fechou as portas para os mais necessitados. O calvário estava se completando. Mesmo tratando os mais pobres como coisas descartáveis, o Estado não pode e não conseguirá esconder o déficit habitacional do Rio de Janeiro e a violência da especulação imobiliária. A estimativa de 220 mil moradias necessárias apenas no município do Rio de Janeiro e os preços abusivos dos aluguéis por toda a cidade produzem uma panela de pressão, que às vezes dá sinais que vai estourar com ocupações como a da Telerj. Novamente, a questão da moradia está na ordem do dia no Rio de Janeiro. A insuficiência e as contradições do Minha Casa Minha Vida e a nova espoliação urbana ocorrida para sediar os megaeventos empurram a situação para o nível do insuportável. O legado da Copa pode ser de muitas lutas na cidade nada maravilhosa para o povo.•
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na garganta do futuro
Jeff Vasques
“En la lucha de classes / todas las armas son buenas / Piedras noches poemas” (Paulo Leminski)
P
ara para a lutadora e para o lutador, qual seria a utilidade da poesia que precisa, todo dia, a todo instante, lidar com situações urgentes, duras, tensas, concretas? De que servem essas palavras soltas, muitas vezes difíceis de entender ou descoladas de nossa realidade, abstratas? Por que perder o precioso tempo da luta com poesia? Quantas batalhas já foram ganhas com um verso? Parece que as imensas tarefas colocadas diante de nós simplesmente não combinam, não rimam, com poesia... Pois, imagine um lutador em meio a uma guerrilha na selva, faminto, exausto, com asma... tendo que dar conta, diariamente, de questões de vida-ou-morte... se nossa luta cotidiana parece não deixar espaço para poesia, muito menos essa, não? Pois esse guerrilheiro não só dedicava muito de seu escasso tempo à leitura de poesia, como escrevia em seus cadernos surrados poemas em meio à batalha. Esse guerrilheiro-poeta era Che Guevara. Che carregava consigo, ao ser aprisionado na Bolívia, três cadernos: um diário de guerra, um caderno de reflexões e um caderno verde em que tinha anotado, ao longo de anos, 69 poemas preferidos. Sua fama de grande leitor de literatura e poesia era muito bem conhecida por todas as companheiras e companheiros combatentes. Quando Che assumia o grupo de vanguarda, todo mundo já ficava tenso porque alguém teria que carregar suas pesadas mochilas cheias de livros. À noite, ao redor da fogueira, enquanto outros dormiam, durante os poucos descansos, era comum encontrar Che perdido entre páginas, lendo incansavelmente. Chana, amiga campesina, dizia que Che, nesses momentos, “ficava caladinho, meio ido, com a cara muito suavezinha e como se estivesse em outro mundo”. Em vários outros momentos, Che falava nas rodas aos soldados e camponeses de Victor Hugo, Rubén Dario, Tagore, Neruda. Um jovem de catorze anos, chamado Acevedo, se surpreendeu ao fuçar os livros na mochila de Che: “Não havia Mao, nem Stalin, e sim o que eu menos esperava, ‘Um ianque na corte do Rei Arthur’”, livro do escritor norte-americano Mark Twain. Che não leu só os escritores sociais ou mais politizados, mas também se apropriou da leitura dos clássicos.
M
Pra quê?
as qual seria o papel da poesia para as pessoas revolucionárias? Há, claro, uma função mais direta e mais reconhecida: instrumento de propaganda da luta e de denúncia da miséria capitalista. Mas há outra fun;ão, muito esquecida, e ainda mais importante: ser um instrumento para compreensão das contradições específicas que um militante revolucionário enfrenta, um instrumento para compreensão de si e do mundo, da luta que trava externa e internamente (pois, sim, o inimigo também é íntimo e pode colonizar nosso peito e coração). O militante que luta para superar o capitalismo e construir uma nova sociedade enfrenta situações extraordinárias, desafios únicos em seu momento histórico. Por isso mesmo, sofre de alegrias, tristezas e angústias igualmente únicas na busca por se fazer um novo homem e uma nova mulher. Vivenciamos,
ainda que de forma embrionária, novos valores, novos sentimentos, novos dilemas que demandam novas palavras, novos canais de expressão! Todo esse movimento subjetivo e singular precisa vir à tona, tornar-se palavra comum, imagem compartilhada, símbolo e questionamento coletivo, permitindo a construção da identidade do ser revolucionário.
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Cantar a vida e a luta!
or tudo que foi dito, é preciso fechar o punho, mas abrir o corpo: botar pra fora o que querem que apodreça aqui dentro como amargura e desgosto, como ânsia e medo, como vão heroísmo ou culpa católica. Por isso, é preciso dançar outros corpos, que não os das propagandas; entoar outras canções, que não as do esquecimento; pintar outros rostos; escrever nossa própria história e poesia, com nossas palavras, com nossos corpos marcados pela luta e com nosso novo espírito nascente. Precisamos criar juntos sentidos ao mundo. E a arte de luta, a poesia de luta, pode nos ajudar nisso! Que nos tornemos as e os “poetas do futuro” como foram Che e tantos outros, que superaram a terrível separação entre o sonho e a ação.•
(Che Guevara, tradução de Jeff Vasques) Velha Maria, vais morrer: quero falar contigo seriamente. Tua vida foi um rosário completo de agonias, não houve homem amado, nem saúde, nem dinheiro, apenas a fome para ser compartida. Quero falar de tua esperança, das três distintas esperanças que tua filha fabricou sem saber como.
Toma esta mão que parece de menino nas tuas, polidas pelo sabão amarelo. Abriga teus calos duros e os nós puros de teus dedos na suave vergonha de minhas mãos de médico. Escuta, avó proletária: crê no homem que chega, crê no futuro que nunca verás.
“Deixe-me dizer-lhes, mesmo correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. [...] Talvez seja este um dos grandes dramas do dirigente político. É preciso que ele alie, ao espírito apaixonado, uma inteligência fria, tomando decisões dolorosas, sem contrair um só de seus músculos [...] Nestas condições, é necessário ter muita humanidade, um grande sentido de justiça e de verdade, para não cair em um dogmatismo extremo, em uma fria escolástica, para não se isolar das massas.” Che Guevara
Nem rezes ao deus inclemente que a vida toda mentiu tua esperança; nem peças clemência à morte para ver crescer suas pardas carícias; os céus são surdos e o escuro manda em ti, terás uma vermelha vingança sobre tudo, te juro pela exata dimensão de meus ideais: todos os teus netos viverão a aurora. Morre em paz, velha lutadora. Vais morrer, velha Maria: trinta projetos de mortalha dirão adeus com o olhar num destes dias em que te vais. Vais morrer, velha Maria: ficarão mudas as paredes da sala quando a morte se conjugar com a asma e copularem seu amor na tua garganta. Essas três carícias construídas de bronze (a única luz que alivia a tua noite), esses três netos vestidos de fome, chorarão os nós dos dedos velhos onde sempre encontravam algum sorriso. Isso foi tudo, velha Maria. Tua vida foi um rosário de magras agonias, não houve homem amado, saúde, alegria apenas a fome para ser compartida. Tua vida foi triste, velha Maria. Quando o anúncio do descanso eterno turvar a dor de tuas pupilas, quando tuas mãos de eterna faxineira absorverem a última ingênua carícia, pensas neles… e choras, pobre velha Maria! Não, não o faças! Não ores ao deus indiferente que toda uma vida mentiu a tua esperança, nem peças clemência à morte, que tua vida foi horrivelmente vestida de fome, acaba vestida de asma. Mas quero anunciar-te, na voz baixa e viril das esperanças, a mais vermelha e viril das vinganças, quero jurá-lo pela exata dimensão de meus ideais. Toma esta mão de homem que parece de menino nas tuas mãos, polidas pelo sabão amarelo. Abriga teus calos duros e os nós puros de teus dedos na suave vergonha de minhas mãos de médico. Descansa em paz, velha Maria, descansa em paz, velha lutadora: todos os teus netos viverão a aurora. EU JURO! (Poema dedicado a uma velha mexicana a que uevara tentou ajudar na cidade do México em 1954)
Contra o vento e a maré (Che Guevara, tradução de Jeff Vasques)
Este poema (contra o vento e a maré) levará minha assinatura. Te dou seis sílabas sonoras, um olhar que sempre carrega (como um pássaro ferido) ternura, um anseio de água morna e profunda, um escritório escuro em que a única luz são desses versos meus, um dedal muito usado para suas noites de enfado, uma fotografia de nossos filhos. A mais linda bala desta pistola que sempre me acompanha, a memória inesquecível (sempre latente e profunda) das crianças que, um dia, você e eu concebemos. E o pedaço de vida que me resta, isto eu dou (convicto e feliz) à revolução. Nada que nos possa unir terá maior poder. (Poema dedicado à esposa Aleida)
Alberto Korda
Velha Maria, vais morrer
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recomendamos POR QUE OCUPAMOS?
ATÉ O ÚLTIMO HOMEM
Felipe Brito e Pedro Rocha (org.) o processo de “legitimação” das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em um quadro de colapso e dissolução da sociedade perante a ocupação militar das favelas cariocas. www.boitempo.com.br
Guilherme Boulos Militante do MTST introduz o que está em jogo na luta dos sem-teto. R$20,00 Para comprar, acesse: www.mtst.org/porqueocupamos
Brasil em Jogo
Coletânea O papel contraditório do esporte na sociedade brasileira entre a construção da identidade nacional, os impactos urbanísticos e as transformações dos megaeventos esportivos ao longo da história. Inclui texto do MTST. www.boitempo.com.br
um negócio
E
Pedro Rocha
ncolhida junto à mureta da bica, numa posição que, a nós, teria sido extremamente incômoda, havia uma esfarrapada que escondia o rosto com uma mão entrelaçada de cabelos. Tivemos a impressão de que ela fazia isso porque seus olhos não estavam dispostos em seu rosto de forma simétrica. Naturalmente, não queria que percebêssemos aquilo. Mas nada escapa ao nosso olhar que, por sua vez, é absolutamente reto e frontal. Saímos dali tão logo satisfizemos através da bica nossas necessidades. Mas, à noite, reencontramos a mulher. Sob a treva completa, suas imperfeições não seriam perceptíveis mesmo ao nosso olhar penetrante; mesmo assim, ela continuava escondendo o rosto. Aproximou-se e nos propôs um negócio. Os termos nos pareceram razoáveis, e concordamos, embora nos repugnasse contratar algo àquela noite, naquele lugar, com aquela criatura que sabíamos muito bem ser disforme. Ela estendeu uma das mãos para coletar seu pagamento que, conforme acordado, deveria ser efetuado imediatamente. Deixou, no entanto, a outra mão sobre o rosto. Quando as moedas e outros objetos começaram a transbordar a concha sulcada de sua palma, pensamos que ela retiraria a mão do rosto para apará-los, mas não o fez. Ao invés disso, esperou que terminássemos de despejar o que lhe era devido, enfiou o que pôde nos numerosos sacos de suas vestes, e depois se ajoelhou na terra úmida para recolher o que caíra. Foi-lhe difícil realizar tal coisa com apenas uma das mãos. Enfim, levantou-se, mas hesitou um instante. Dissemos-lhe, então: “Vamos, mulher, é tua vez de entregar tua parte.” Então, sem relutar, mas sem jamais deixar-nos a possibilidade de lhe entrever os olhos tortos, ela fez vir a ter em nosso meio, envolta em lenços e trapos, a máscara maravilhosa de um rosto perfeito de mulher.•