UCRONIA
ALÉM DA
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ALÉM DA UCRONIA
histórias não vividas do 25 de Abril Marta Leite . João Baía . Catarina Laranjeiro
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1| Museu de História Natural, Berlim. Foto: Marta Leite.
O MOMENTO ANTES DO GRITO
Marta Leite
O momento antes do grito é uma não-palavra, um som que expressa um sentimento, que comunica, uma recordação do início da linguagem. As palavras são reservatórios de emoções, às quais são dadas funções, sendo uma delas a de inscrever os factos que não queremos esquecer. As palavras compõem histórias que dão a possibilidade às pessoas do passado de comunicarem com as pessoas do futuro. Estas histórias permitem-nos viajar no tempo, os mortos falam-nos através delas, nós criamos ficções que os tornam vivos, habitando as nossas memórias. As histórias fazem a História, uma construção com os seus ciclos de ruína, decadência e reconstrução. A História, assim nos é contado, começa com a palavra, com a palavra escrita, a palavra que foi escultura, desenho. Tal como a escultura, a História é uma construção para anular a morte, talvez por isso seja através dela que os mortos comuniquem com os vivos. Por sua vez a memória é o lugar em que vivem os mortos. Nunca conseguimos aceitar a nossa condição finita, sempre esculpimos, pintamos, escrevemos, fotografamos, filmamos para não perdermos aquilo que passou. Para não sermos esquecidos. Por isso, mitos, lendas e cosmologia da antiguidade chegaram até nós. História, histórias, ficções? Que poder têm estas sobre nós? Porque há regimes políticos que as temem e proíbem? Quem decide o que se deve ou não esquecer?
Islândia, 21 de Abril de 1971, dois dos mais importantes manuscritos islandeses estão de volta. Flateyjarbók, o maior manuscrito em islandês, e Konungsbók (Codex Regius), o livro que contém Snorra-Edda (Edda Poética), a raiz da mitologia Nórdica1. Em imagens realizadas na época, pela televisão islandesa, vemos os livros a chegarem ao porto de Reiquiavique. Por segurança foram transportados num navio, desde a Dinamarca2, lugar onde foram guardados na biblioteca real de Copenhaga. A cerimónia começa no porto, com um discurso e muita gente. Gente pelas ruas, dentro e em cima dos carros, no topo dos telhados das casas.
Os livros voltaram ao lugar onde pertencem (se é que estas coisas pertencem a um lugar) e nestas imagens é possível ver o quão é importante para um país recém independente ter de volta a sua herança cultural. Seria bom ver o mesmo a acontecer com a Pedra de Roseta. Ou com o código de Hammurabi. Porque é que estes têm de permanecer em Londres e em Paris? A Islândia tem de volta o seu mais importante património cultural, que não é um edifício 1 2
Ambos os manuscritos datam do séc. XII.
A Islândia foi colónia da Dinamarca até 1944. A independência foi conseguida em consequência da invasão da Dinamarca pela Alemanha, em 1940, durante a II Guerra Mundial.
arquitectónico, ou uma paisagem, ou uma pedra com inscrições. 7 É poesia e prosa que preservou durante os tempos a História de determinadas pessoas, uma cosmologia, uma mitologia. O seu património tem a forma de livros, poesia, prosa, língua, palavras. Em 1971 Portugal era ainda uma ditadura, vivia uma guerra colonial (para os portugueses), uma guerra de libertação (para as ainda colónias portuguesas em África). Uma guerra que começou em 1961 e acabou em 1974, com a Revolução dos Cravos. Uma revolução feita por militares. Os militares. Os militares provocaram o golpe de estado de 1926, liderados pelo general Gomes da Costa, impondo um regime autoritário. Uma ditadura militar que duraria até 1933, mas a ditadura em si não terminaria então. O regime ditatorial e autoritário intitulado “Estado Novo” foi instalado, foi criado um único partido “União Nacional”, tal como uma polícia política, tudo sob o poder de um ditador, Salazar. A 11 de Abril desse mesmo ano sai o Decreto de Lei nº 22469 instaurando a censura prévia, onde podemos ler:
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Coincidência ou não, foi a 10 de Maio de 1933 que se deu a queima de livros na Operplatz, em Berlim, Alemanha. A Bücherverbrennung3 teve lugar em diversas cidades da Alemanha nesse mesmo ano. Hoje, temos como monumento mais recorrente, de luta contra o esquecimento deste acontecimento histórico, a frase profética da peça de teatro “Almansor“ de Heinrich-Hein, um dos escritores “queimados” durante este acto de propaganda nazi: Das war ein Vorspiel nur, dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen. Heinrich-Hein (1821)4 De volta, a Portugal. A ditadura duraria até 74, até à revolução organizada pelos militares que estavam fartos da guerra. Mas desta vez não foram generais que organizaram o golpe, mas capitães. 1926-1974, 48 anos de ditadura. Conseguem imaginar o grito que esteve preso na garganta das pessoas durante quase 50 anos? O peso das palavras que elas não podiam dizer? Qual é o nome desse som? Em 1934, um ano após a implantação do Estado Novo, Fernando Pessoa (1888-1935), publica o seu primeiro livro terminado, “Mensagem”. O livro conta em poemas as histórias das grandes “Descobertas Portuguesas”, ou melhor dizendo, o início da colonização portuguesa de África, Ásia e Brasil. A colonização que subsistiria até 1974. Conseguem imaginar o grito, o regozijo daqueles que ganharam independência depois de 500 anos de ocupação? Qual era o som que existia antes desse grito?
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Bücherverbrennung, significa em alemão — queima de livros — é o termo pelo qual recorrentemente é referido este acontecimento histórico.
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“Onde queimam livros, acabarão por queimar pessoas”.
O som que esteve lá, contido durante 500 anos, latente. Qual é o nome desse som? Talvez eles tenham uma palavra para isso. Se a colonização não destruiu uma das ferramentas mais poderosas de autodefinição (Ngugi wa Thiong’o, 1981), a linguagem. “Mensagem”, Pessoa glorifica as então chamadas “Descobertas dos Portugueses”, anuncia a chegada de um Encoberto que traz consigo a religião nacional, fundando um novo império, o quinto império. A necessidade de uma religião nacional, a criação de mitos nacionais, cosmologia, lendas, a elevação do idioma nacional. Pessoa fala-nos do quinto império, um império de cultura, de linguagem, da língua Portuguesa. Um imperialismo de Poetas. Ele escreveu: “É um imperialismo de poetas? Seja. (…) O Imperialismo de poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembra o poeta que os cante.”
Em 1969 Natália Correia escreve a peça de teatro “O En9 coberto”, sobre a qual podemos ler a seguinte nota no 5 relatório de proibição nº 8665 , redigido pela censura:
É uma peça sobre o “mito” do regresso de D. Sebastião, o “O Encoberto”. Trata-se do desenvolvimento em estilo de paródia de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas à maneira de Natália Correia, com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar.[...] Conclusão: Julgo ser de proibir, por inconveniência política e ser pornográfica. Será a história assunto tão sério que não se pode parodiá-la? Haverá tão grande diferença entre um historiador e um narrador de ficção? Natália Correia refere-se a este ponto, numa carta datada de 1969 dirigida a Marcello Caetano, em que pede a libertação da peça, da seguinte forma:
E quem é o encoberto? D. Sebastião? Ou Pessoa? Sebastianismo corresponde a um mito português, que teve ambiciosos seguidores e profetas que desejaram que este se tornasse a religião nacional. Segundo a lenda, D. Sebastião, Rei de Portugal, desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir (1578), (também conhecida como a batalha dos 3 reis), regressaria numa manhã de nevoeiro para salvar o país da ruína e da decadência. Desde então, D. Sebastião foi chamado de encoberto, aquele que voltaria sem ser notado. Hoje, cinco séculos depois, as pessoas ainda falam do seu regresso, uma figura que inspira uma atitude passiva e melancólica. De espera.
(…) Desejou vivamente o Teatro Experimental de Cascais, há cerca de um ano, levar à cena uma peça de minha autoria, intitulada “O Encoberto”, por enquanto inédita e cujo tema é sucintamente, um novo tratamento do mito sebástico, não só também de um saudosismo tipicamente português, mas também de um messianismo universal. Entendeu, no entanto, a Censura da época descortinar abusivamente, em certos pontos, menos veracidade histórica onde na realidade existia uma interpretação poética – e crítica – da História, dentro daquela liberdade de criação dramatúrgica sem a qual não admitiríamos, nomeadamente, o teatro de um Shakespeare. 6 (…) No ano anterior a que Natália Correia escreve esta peça de teatro (1968), Halldór Laxness7 publica o romance “Under the glaciar”, no qual se refere à história, fábulas e ficções deste modo:
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Excerto do relatório de Censura n.º 8665, de 3 de Fevereiro de 1970, imagem cedida pelo Prof. Pacheco Pereira (Biblioteca e Arquivo EPHEMERA).
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Excerto do documento AMC, cx. 23, doc. 1, imagem cedida pelo ANTT.
Escritor inslandês, ganha o prémio Nobel da Literatura em 1955. Proibido nos Estados Unidos devido aos seus ideais comunistas e ser simpatizante da ex União Soviética
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Pastor Jón: The difference between a novelist and a historian is this: that the former tells lies deliberately and for the fun of it, the historian tells lies in his simplicity and imagines he is telling the truth. Everything that is subject to the laws of fable is a fable.
Antemanhã, amanhecer, Morgengrauen, dogun, morgunsár8, revoluções, independências, dependências. É isto o despertar? O acordar? Um começo, um novo ciclo? Ou apenas repetição? São as palavras e seus sinónimos ditos em outras línguas uma e a mesma palavra? O que acontece ao pormos lado a lado a manhã cinzenta dos alemães, com o nevoeiro e o desejo da chegada de um rei dos portugueses, com a manhã sangrenta dos islandeses. O fado, o fatalismo português, o fatalismo inerente à mitologia nórdica, as sagas, o romantismo alemão e o sublime. Palavras que descrevem as mesmas coisas têm significados diferentes, sentimentos diferentes.
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Tradução de amanhecer respectivamente em alemão e islandês.
Quais? Por não poder pensar tudo isto sozinha, por não o sentir sequer justo, e por considerar que a linguagem escrita em si é reduzida para o fazer, pedi a várias pessoas para reflectirmos em conjunto. Através de vários meios, traduzindo as nossas percepções de uma mesma coisa, sem barreiras, métodos ou sistemas, e principalmente sem tentar convencer ninguém. Apenas várias reflexões todas juntas. Isto porque ninguém concorda ou discorda com a poesia. Com o poema não se concorda nem discorda. O poema ou é bom, ou é mau. É como o nascer do Sol, ou é belo, ou não se vê. Parafraseando Susan Sontag, não podemos cair no ridículo de dizer: “Este pôr do sol é interessante.” Por isso apresento com esta pesquisa, reflexões que não são mais do que apenas o serem isso mesmo, um imaginarium. Umas serão boas, outras não. Outras talvez sejam apenas belas.
MARTA LEITE (1983) Artista visual residente em Berlim. Licenciada pela Universidade das Artes de Berlim. Desenvolve projetos nas áreas do vídeo, desenho e instalação. O seu trabalho é conduzido por uma aceitação do movimento, da instabilidade e da efemeridade, que acredita serem inerentes a qualquer acontecimento e a qualquer coisa. Encara esta aceitação como uma luta contra hierarquias imposta por uma vontade de estabilidade e controle. Interessa-se precisamente por propor alternativas que abalem com estas estruturas estáveis e controladas, presentes nalguns meios sociais. A paisagem e a linguagem são alguns dos elementos onde apoia esta reflexão. Presentemente procura abordar questões relativas à linguagem e à carga histórica, política, cultural e emocional que esta transporta. Expõe individual e coletivamente desde 2006 em Lisboa, Barcelona e Berlim.
Memórias do Medo e da Esperança João Baía
As cabines que apresento pretendem constituir meios de memória que convidam as pessoas a entrar e a ouvir, em cada cabine, excertos de entrevistas realizadas em dois projectos sobre períodos distintos, sobre o período antes e depois do 25 de Abril, a que dei o título “Memórias do Medo e da Esperança”. Tendo terminado em 2007 uma investigação no âmbito da licenciatura de Sociologia sobre o movimento de moradores em Coimbra, nos anos 1974-1976, resolvi aprofundar esta investigação no mestrado em Antropologia. Ao longo da elaboração do estudo e da dissertação debrucei-me sobre as percepções e memórias dos moradores do bairro da Relvinha, situado na Freguesia de Eiras, no concelho e cidade de Coimbra, acerca da luta pelo direito a uma habitação condigna. Procurei perscrutar as memórias de um tempo longo, entre a década de cinquenta e a de oitenta, e perceber como rememoravam os moradores da Relvinha um momento marcante das suas vidas: o envolvimento num processo de autoconstrução, que adveio do contexto político pós-25 de Abril e da adesão ao programa SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local). O SAAL foi criado por um Despacho conjunto do Ministério da Administração Interna e do Ministério do Equipamento Social e do Ambiente, aprovado a 31 de Julho de 1974, três meses após o 25 de Abril, durante o I Governo Provisório. Este projecto governamental foi a face mais visível da intervenção do Estado durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), para tentar resolver as graves carências habitacionais de um largo número de famílias. Os técnicos (arquitectos, engenheiros, juristas, geógrafos, desenhadores, etc.) que integravam as Brigadas Técnicas do SAAL puseram o seu conhecimento ao serviço das populações mais carenciadas, que se auto-organizaram em comissões de moradores, em associações de moradores ou em Cooperativas de Habitação Económica. O SAAL viria a ser extinto, na prática, através de um despacho emitido pelo I Governo Constitucional, no dia 27 de Outubro de 1976, ao conferir às Câmaras Municipais o controlo e a definição das operações em curso, de onde tinham surgido os maiores obstáculos ao SAAL. Aquando da emissão deste despacho, estavam em atividade 169 operações em todo o País, que envolviam 41665 famílias de moradores pobres. Em construção estavam 2259 fogos e estava eminente o arranque de mais 5741 (Bandeirinha, 2007: 14). O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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A Operação SAAL da Relvinha permitiu aos moradores deixarem de viver em barracas de madeira, onde viveram durante 20 anos, após terem sido desalojados em 1954 da zona da Estação Velha, devido à construção da Avenida Fernão de Magalhães. Este período é recordado pelos moradores como um período de esperança, de aprendizagem mútua com grupos externos que apoiaram o bairro ao contrário da memória do período anterior à revolução dos cravos, período em que, segundo os moradores, reinava o medo e não se podia falar, mas por outro lado já havia uma forte união dos moradores e já se levavam a cabo formas de resistência quotidiana contra a pobreza e a estigmatização a que pareciam estar condenados. Mais tarde tive a oportunidade de trabalhar num projecto científico, durante três anos, sobre a emigração clandestina para França realizada entre 1957 e 1974, período, durante o qual, aproximadamente 900.000 portugueses emigraram para França, dos quais 350.000 clandestinamente. A partir de fotografias da raia transmontana e de sons de entrevistas realizadas em 2011 no âmbito desse projecto, intitulado “Além do fracasso e do maquiavelismo. A emigração irregular portuguesa para a França, 1957-1974 - PTDC/HIS-HIS/103810/2008”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, coordenado por Victor Pereira, que decorreu no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, idealizei esta instalação sonora que convida as pessoas a entrar em três cabines em que se pode ver uma fotografia em cada uma delas e ouvir três excertos de entrevistas sobre emigração clandestina. Cada fotografia retrata uma localização da raia transmontana e problemáticas diferentes sobre a raia. O processo avançado de deterioração dos postos da Guarda Fiscal retratado numa das três fotografias pode servir de imagem e metáfora para o desinvestimento e abandono a que esta região fronteiriça tem sido condenada, a vários níveis pelos poderes centrais, de um e do outro lado da fronteira. Estas cabines pretendem representar um período descrito por vários entrevistados como aquele em que “não se podia falar”, por isso chamei a este eixo temático “memórias do medo”.
Em frente a estas cabines estarão outras três que terão fotografias da Cooperativa “Semearrelvinhas” antes do 25 de Abril de 1974 e pós-revolução que retratam o processo de autoconstrução no âmbito do SAAL, em que os moradores do bairro se envolveram durante o PREC. Nessas três cabines poderão ouvir-se excertos de histórias de vida de moradores sobre o período anterior e posterior ao 25 de Abril. Aqui pretende-se retratar a Esperança, a partir da audição de excertos de entrevistas a moradores do Bairro da Relvinha em Coimbra, e da visualização de fotografias do período anterior ao 25 de Abril de 1974 e durante o PREC. Os moradores deste bairro participaram no projecto SAAL e aderiram à autoconstrução como forma de redução do custo final da obra, que pretendia realojar os moradores que desde 1957 viviam em condições precárias, em casas provisórias de madeira que se foram degradando até 1974, ano em que a Revolução de Abril abriu a janela de oportunidades que estes moradores não deixaram escapar. Este bairro ajudou outros bairros a organizarem-se e participou em diferentes lutas e acontecimentos que marcaram a cidade e o país. Estes dois períodos contêm uma densidade histórica tão profunda e tão intensa que poderemos encontrar o que Gaspar Mairal Buil descobriu numa comunidade desalojada, a “memória colectiva em acção”, ou seja, “uma memória tão intensa que a sua própria existência (dos informantes) parecia pura memória” (Buil, 1985: 65). A “memória colectiva em acção” é partilhada por pessoas que vivem acontecimentos “com um dramatismo especial”, que imaginam «as suas próprias vidas polarizadas intensamente pelo “antes” e pelo “depois”» (1985: 71). Mairal Buil considera que “a memória colectiva, que se alimenta de um tempo, necessita do espaço (onde esta decorreu) para evitar a sua caducidade” (1996:73). A importância do espaço “serve para pensar o tempo; cria uma duração própria em que o grupo se encontra semelhante a si próprio na constância material que o rodeia” (Godinho, 2001: 15). Certos grupos sociais, certos períodos da história, acontecimentos ou perspectivas sobre o passado têm sido condenados ao silêncio em Portugal. José Gil considera que tanto o período do salazarismo, como o período após o 25 de Abril, surgem às gerações que nasceram após 1974 como períodos “não-inscritos”, esquecidos. Para este autor, “a não-inscrição do passado salazarista teve efeitos de incorporação inconsciente do espaço traumático, não-inscrito nas gerações que se seguiram” (2004: 42-43). A memória tem uma natureza complexa e fragmentária. É necessário tentar ir para lá das palavras ditas, tentar perceber as falhas de memória, os silêncios, aquilo que não é dito e tentar perceber porque não é dito. O silêncio pode-se romper com a alteração de certas condições, dando a pos-
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sibilidade de se conhecerem recordações desconhecidas, mas, por vezes, existem recordações que nunca serão conhecidas, dando origem ao esquecimento. Paula Godinho chama a atenção para o facto de existirem acontecimentos de “efervescência colectiva” que estão selados com “um lacre de silêncio”, através de processos de “manipulação da memória” (2007: 67-68). Quando existem recordações que são guardadas por períodos longos de tempo e quando as condições que impunham o silêncio, se alteram podem vir a conhecer-se recordações que podem ser comunicadas de forma nova e mais rica, pois um longo silêncio imposto, pode levar uma pessoa a descrever acontecimentos de forma mais precisa e pormenorizada. Jacques Le Goff infere que “a memória colectiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objectivo de poder” (Le Goff, 1984: 46). Passerini relativamente à memória prefere utilizar o termo “memórias” no plural, pois sobre um mesmo acontecimento podem-se guardar múltiplas memórias diferentes. A memória “sob muitos aspectos é um campo de batalha” (2006: 28) entre a memória e o esquecimento. Os vários discursos em torno da memória, segundo Fernando Rosas, estão enredados num “processo social complexo de construção das legitimidades que sustentam as formas de estar, de transformar ou de conservar o mundo em que vivemos” (Rosas, 2009: 13). A memória, quando nos é transmitida, é sempre parcelar e subjectiva pois a forma de recordar períodos e de transmitir essas recordações depende de muitos factores, como nos lembra Passerini quando desenvolve a noção de intersubjectividade, dizendo que esta conduz a um outro olhar sobre a memória. A memória surge como uma “relação entre o presente e o passado, entre o silêncio e a palavra, entre o indivíduo e a colectividade” (Passerini, 2006: 17).
O processo de transmissão de um testemunho depende do interlocutor e da relação estabelecida com as pessoas entrevistadas, depende do período actual em que se recorda e do contexto pessoal, familiar e social do momento da recordação e transmissão. A posição social que ocupam em determinado momento e o papel social que desempenham, tanto do interlocutor como da pessoa que recorda, podem influenciar a forma como são transmitidas as memórias, a forma como se adulteram acontecimentos, se salienta certos aspectos, ou se ofusca, diminui ou oblitera outros. Nos 40 anos da revolução de 25 de Abril de 1974, há cada vez mais pessoas que não a vivenciaram, por isso é urgente estudar a década de sessenta e setenta de forma aprofundada, porque é um período complexo, controverso, recorrendo, se possível à história oral e aos arquivos que contêm documentação acerca deste período, analisando-os de forma crítica, usando várias escalas de análise (local, nacional, internacional) e tentando apresentar os resultados de diferentes formas para poderem ser conhecidos pela maior parte da população, contribuindo para aprofundar e alargar a discussão e reflexão crítica acerca do período anterior e posterior à revolução. Espero com estas cabines contribuir para suscitar a curiosidade acerca deste período a quem não o viveu e cruzar estas memórias com as pessoas que recordam e que vivenciaram experiências similares.
Referências bibliográficas: BAÍA, João (2012), SAAL e Autoconstrução em Coimbra - Memórias dos moradores do Bairro da Relvinha 1954-1976. Castro Verde: 100Luz. BANDEIRINHA, José António (2007), O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, Coimbra: Imprensa da Universidade. MAIRAL BUIL, Gaspar (1985), “Recordar para sobrevivir o la memoria colectiva en acción”, Revista de Antropología Social, nº 5, pp. 65-82. GODINHO, Paula (2001), Memórias da resistência rural no sul o caso do Couço (1958-1962), Oeiras: Colibri. GODINHO, Paula (2007), “Antropologia e questões de escala: os lugares no mundo”, Arquivos da Memória, nº 2, pp. 66-83. LE GOFF, Jacques (1984), “Memória”, Enciclopédia Einaudi-1. Memória-História, Lisboa, INCM, pp. 11-49. GIL, José (2004), Portugal, Hoje: O Medo de Existir. Lisboa, Relógio D´Água Editores. PASSERINI, Luísa (2006), Memoria y Utopia – La primacia de la intersubjectividad. València: Publicacions de la Universitat de València. ROSAS, Fernando (2009), “Seis teses sobre memória e hegemonia, ou o retorno da política”, Vírus, Janeiro/Fevereiro, pp. 13-14.
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O silêncio das imagens Catarina Laranjeiro
O meu trabalho propôs-se estudar a memória da guerra colonial/de libertação como trabalho de arqueologia, escavando repetidamente nos fragmentos do passado e colocando na mesma linha de montagem histórica as memórias de pessoas que na guerra de libertação/colonial participaram, quer no exército colonial, as chamadas tropas africanas, quer no movimento de libertação, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC). A importância para o estudo desta memória surge da necessidade de compreender e analisar porque é que a guerra colonial/ de libertação na Guiné-Bissau deixou de ser percepcionada como a guerra que conduziu ao golpe militar do 25 de Abril e à independência das restantes colónias. Enzo Traverso diz-nos:
A analogia mais impressionante é sem dúvida a do anticolonialismo, cuja memória pública conheceu um eclipse quase total. Uma gigantesca revolta dos povos colonizados contra o imperialismo foi esquecida, recobertas por outras representações do “Sul” do mundo, acumuladas durante três décadas: primeiro, a das valas comuns do Camboja e do Ruanda; depois, “as guerras humanitárias”; e por último, o terrorismo islâmico, cujos porta-vozes substituíram a imagem do guerrillero1. Neste contexto, a memória da luta de libertação do povo da Guiné-Bissau e de Cabo Verde foi também submetida a um processo de apagamento, destruição e dissolução que roça os limites da sua existência e ameaça o seu desaparecimento. Segundo Boaventura de Sousa Santos as lutas anticoloniais e os processos de independência nos quais os povos sujeitos à apropriação e violência reivindicaram participar na sua regulação e emancipação, provocaram um abalo tectónico na manutenção colonial2. Contudo, o silenciamento da memória desta luta revela que a manutenção colonial permaneceu e hoje os países do Norte encontram-se em condições de continuar a sua missão civilizadora. As fotografias constituíram o meio mais pertinente para a análise da memória desta luta e desta guerra, na medida em que, se é certo que as fotografias congelam um determinado passado, elas não o prendem; em vez disso, possibilitam ao leitor 1 2
Traverso, Enzo. (2012), O Passado, Modos de Usar. Edições Unipop. p.127.
Santos, Boaventura de Sousa. (2013). “Prefácio”. In Meneses, Maria Paula; Martins, Bruno Sena. As guerras de libertação e os sonhos coloniais: alianças secretas, mapas imaginados. Coimbra: Edições Almedina.
a imaginação de possíveis futuros para esse passado. Na sua famosa distinção entre o que chama de studium e punctum, Barthes descreve que o punctum “é uma espécie de fora-de-campo subtil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que dá a ver”3. Sugere-nos assim que a realidade não pode ser reduzida ao que já existe, insistindo na necessidade de reclamar uma versão mais ampla da História, capaz de incluir as realidades que foram silenciadas e marginalizadas. Neste contexto, poderão as imagens quebrar esta dialéctica asfixiada entre a História e a memória?
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Barthes, Roland (2010), A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70. p. 67
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2| Primeiro encontro entre as tropas coloniais e o movimento de libertação. Fotografia do espólio pessoal de Manecas dos Santos.
Assim, encarando a memória como um sistema cultural de atribuição de significado em permanente e constante atualização, a análise das fotografias da guerra de libertação/colonial permite ilustrar como são guardadas, transformadas, apagadas e validadas estas memórias no presente. Sendo que as imagens do passado, legitimam a ordem social presente, urge a pergunta sobre o porquê do desaparecimento de umas em detrimento de outras. É que não revelando a verdade sobre uma determinada época, a imagem é um documento capaz de manifestar “o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro”4, razão pela qual deve ser entendida como o resultado de uma montagem das diversas épocas sucessivas durante as quais continuou a existir e a ser manipulada. Assim, uma imagem que é preservada traz para o presente certas imagens do passado e não outras, enquanto que uma imagem que é silenciada incorpora em si as razões para o seu silenciamento. Esta guerra enquadra-se num período histórico que teve o seu início com o fim da II Guerra Mundial, que dividiu o mundo em dois blocos, num conflito latente, um confronto ideológico entre comunismo e capitalismo em que os Estados Unidos e a União Soviética dividiram o mundo em duas zonas de influência mas sem resvalar numa guerra generalizada entre os dois blocos. O conflito sino-soviético e o guevarismo abalaram este equilíbrio tenso entre as duas superpotências e vieram dar força aos movimentos de libertação que optaram pela luta armada e pela guerrilha, colocando em perigo o Pacto de Varsóvia. Hoje, conquistada a independência das ex-colónias, conquistada a democracia em Portugal, tendo este país entrado na União Europeia, e uma vez colapsado o campo socialista de que as ex-colónias dependiam, a memória desta guerra e desta luta transformou-se, apagou-se e reconfigurou-se para poder encaixar no tempo presente, sem o perturbar. A construção e representação simbólica deste passado corresponde assim, a uma versão partilhada produzida no presente com a intenção de ser projetada no futuro, sendo que a História enquanto produtora de significados que se pretendem universais, exclui precisamente a diversidade das etno-ontologias e as complexas formas de significação históricas e iden-
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Le Goff, Jacques. (1990), Documento/Monumento. In: História e memória. Campinas:Unicamp, p. 6
titárias5. Susan Sontag corrobora esta ideia ao defender que a memória colectiva não é uma lembrança, mas uma convenção que determina a História sobre o modo como aconteceu6. A construção deste processo, ocorre através de mecanismos simbólicos controlados por vários agentes (governo, media, povo, etc.) que possuem intenções e visões próprias, por vezes, contraditórias. Na Guiné-Bissau, a transição para a independência e construção da paz tem sido um processo difícil e traumático, sobre o qual persistem tabus, sendo que a representação deste passado revela a coexistência de versões conflituais que servem diferentes propósitos e interesses. Interpretar os percursos de vida dos antigos combatentes do PAIGC e dos antigos combatentes do exército colonial, significa então, procurar compreender como viveram estas rupturas e descontinuidades políticas e ideológicas e como se (re) posicionam face aos novos Estados africanos independentes. A grande vantagem das fotografias é que podem ser utilizadas como fontes que conectam os dados à história oral e à memória, o que ao invés de explicar a guerra em termos de trajetórias objetivas históricas e políticas, permitem problematizar as memórias subjetivas de quem a experienciou. Pretende-se assim, ilustrar a relação entre os processos de construção de memórias subjetivas e de memórias oficiais, sem esquecer a dimensão política associada à representação pública da memória enquanto suporte simbólico legitimador de relações de poder. As fotografias são, sem dúvida, objetos ucrónicos. Objetos que nos remetem não apenas para o que foi, mas para o que podia ter sido, porque como argumenta Barthes a fotografia possui o presente da captura do referente – “Vejo os olhos que viram”7. Desta forma, não vemos apenas o que vemos, com o conhecimento do que sabemos que aconteceu; mas vemos também o que não aconteceu e criamos a nossa narrativa do que poderia ter acontecido. Adicionalmente, as imagens despertam em nós, a necessidade perturbadora de um gesto de sobrevivente8. Porque elas são o que nos resta para voltar ao passado, questionando a linearidade do tempo, problematizando a distância que está entre “o que foi” e “o que é”. Tendo como ponto de partida, as heranças e consequências do passado colonial e imperial português, que permitem um novo modo de pensar o pós-colonial a partir do colonial, propus-me a identificar os desafios que este passado traumático e silenciado implica. Pressupondo que a fotografia se pode constituir como um meio para a análise
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Gomes, Catarina; Menezes, Maria Paula. (2012), História e Colonialismo: Por uma Interhistoricidade. Collections A traduire, Recueil Alexandries, p. 4
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Sontag, Susan. Olhando o Sofrimento dos Outros. Lisboa: Cavalo de Tróia.
7
Barthes, Roland (2010), A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, p. 67.
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Didi-Huberman, Georges (2012), Imagens Apesar de Tudo. KKYM, Lisboa. Portugal, p. 42.
das representações criadas no contexto 19 desta guerra e desta luta, defendo que a contextualização destas fotografias ao nível das suas implicações no que foram os diferentes projetos da Guerra Colonial e das Lutas de Libertação, possibilitam explorar e re-politizar o arquivo herdado e contrariar a tendência da História convencional de negligenciar o papel desta guerra e desta luta na manutenção da ordem colonial.
Bibliografia Barthes, Roland (2010), A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70. Gomes, Catarina e Menezes, Paula. (2011), História e Colonialismo: Por uma Interhistoricidade. Collections A traduire, Recueil Alexandries. Didi-Huberman, Georges (2012), Imagens Apesar de Tudo. Lisboa: KKYM. Santos, Boaventura de Sousa. (2013). Prefácio. In Meneses, Maria Paula; Martins, Bruno Sena. As guerras de libertação e os sonhos coloniais: alianças secretas, mapas imaginados. Coimbra: Edições Almedina. Sontag, Susan. (2004). Olhando o Sofrimento dos Outros. Lisboa: Cavalo de Tróia. Traverso, Enzo. (2012), O Passado, Modos de Usar. Lisboa: Edições Unipop.
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