ABAS
ENELOPE WILHERN tem tudo o que uma garota pode querer: uma família rica e da alta sociedade, um quarto adorável e muitas roupas de estilistas famosos. Mas nem tudo é perfeito e ela tem um problema... Nasceu em uma família amaldiçoada. Tudo começou com seu tataravô, Ralph Wilhern. Depois de apaixonar-se por uma empregada e engravidá-la, recusou-se a casar por determinação da família. Desolada, a pobrezinha jogou-se em um poço, despertando a ira de sua mãe bruxa, que prontamente declarou vingança: a próxima menina nascida na família teria cara de porco e a maldição só seria desfeita quando alguém de sua mesma classe, alguém de sangue azul de verdade, a aceitasse como ela era... Penelope, é claro, é a primeira mulher da família em gerações. Isolada do mundo, ela agora se vê sujeita a uma seqüência de pretendentes esnobes, na tentativa desesperada de encontrar um marido para acabar com a maldição. Apesar de desejar muito mais da vida, o que uma garota pode fazer quando precisa enfrentar a mãe determinada e sua assecla casamenteira? A solução para Penelope é fugir de casa em busca de aventuras. Disfarçando sua identidade com um cachecol, ela descobre um mundo maravilhoso, onde a liberdade se desvela diante de seus olhos, abrindo possibilidades que ela nem sabia existir. Fazendo novas amizades em seu percurso, ela descobre a felicidade nos lugares mais inesperados. MARILYN KAYE mora em Paris. Deu aula de literatura infantil e infanto-juvenil na St. John's University, em Nova York, e já escreveu mais de cem livros para jovens leitores.
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CONTRA-CAPA
PENELOPE WILHERN tem tudo o que uma garota pode querer: uma família rica e da alta sociedade, um quarto adorável e muitas roupas de estilistas famosos. Mas nem tudo é perfeito e ela tem um problema... foi amaldiçoada com um nariz de porco, e a maldição só será quebrada quando alguém de sua mesma classe social aceitá-la como ela é.
Isolada do mundo pela família envergonhada, Penelope precisa entrevistar uma fila de solteiros esnobes na tentativa desesperada de encontrar um marido e acabar com a maldição. Mas ela deseja muito mais da vida e, depois que os planos de sua mãe e de uma casamenteira profissional desandam, ela resolve fugir e cair no mundo em busca de liberdade.
Penelope é um conto de fadas moderno, encantador e divertido, que ganhou as telas de cinema em uma produção de Reese Whiterspoon, estrelada por Christina Ricci.
MARILYN KAYE
Adaptado do reteiro de Leslie Caveny
Tradução de ANA BAN
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Kaye, Marilyn K31p
Penelope / Marilyn Kaye; tradução Ana Ban. - Rio de Janeiro: Galera Record, 2008. Tradução de: Penelope ISBN 978-85-01-08009-7 1. Magia - Literatura juvenil. 2. Literatura juvenil. 3. Novela juvenil americana. I. Ban, Ana. II. Título. CDD - 028.5
07-3408
CDU - 087.5
Título original norte-americano: PENELOPE
Copyright © 2007 by Penelope Productions, LLC. Copyright da introdução © 2007 by Reese Whiterspoon.
Design de capa: Izabel Barreto/Mabuya Fotografia de capa: Photonica
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380-Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
ISBN 978-85-01-08009-7
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Para a equipe: Thomas Clerc, Emilie Grimaud, Augustin Clerc, Marion Grimaud, e os co-capitĂŁes, Isabelle e HervĂŠ
Introdução
Eu adorava ler contos de fadas quando era criança — ou, melhor ainda, que lessem para mim —, e agora a minha filha também adora! As aventuras de princesas em perigo, quase sempre as mais jovens, mais lindas e menos reconhecidas, eram mágicas. Os contos de fadas nos explicam quem somos e como devemos viver. É por isso que são tão poderosos. Não é sempre que um conto novinho em folha aparece no mundo. Então, imagine qual não foi minha surpresa e alegria ao descobrir... Penelope! Nascida do cérebro brilhante e cheio de originalidade de Leslie Caveny, Penelope apareceu na minha mesa em um belo dia de primavera. Eu adorei a história desde o momento em que a li, e Penelope ganhou vida na minha imaginação muito antes de chegar às telas. Há tantas coisas que amo em Penelope: o enredo fantástico, os personagens maravilhosos, um mundo lindo. Mais do que tudo, porém, eu adoro a mensagem. Penelope é a história inspiradora de uma menina que ouve o tempo todo, das pessoas mais próximas, que não vale nada. Nascida com cara de porco, devido a uma antiga maldição que não tem nada a ver com ela, Penelope vive escondida na casa dos pais e aprende a esperar — esperar até que seu príncipe apareça para salvá-la, esperar até que esteja bonita o suficiente para sair para o mundo, esperar que sua vida comece. No fim, Penelope se cansa de esperar e toma as rédeas de sua vida. Liberta-se da família e sai para o mundo, para experimentar a vida de acordo com suas próprias vontades, e encontra amizade, aventura e diversão ao longo do caminho. Penelope acaba aprendendo que é bem bacana do jeito que é, e essa segurança e auto-aceitação acabam por transformar sua vida. Já viajei pelo mundo todo e já conheci muita gente, e descobri que cada um de nós tem suas próprias inseguranças. Jovens ou velhos, baixinhos ou altos, todos temos alguma coisa que gostaríamos de mudar em nós mesmos. Às vezes, permitimos que essas inseguranças definam quem somos e atrapalhem todas as coisas maravilhosas que poderíamos conquistar. Penelope nos ensina a vencer nossos medos, aceitar de coração aberto as coisas que nos tornam únicos e dar valor à nossa individualidade. Ela encara o mundo sem medo e sempre maravilhada. Espero que esta história inspire você a tentar ser um pouco mais como Penelope e a aprender a amar tudo aquilo que é realmente único em você.
Divirta-se com o livro!
- Reese Witherspoon
Capítulo Um
Jake sempre sabia onde me encontrar. Ele trabalha com a minha família desde, bom, desde sempre, e conhece a nossa rotina. Também conhecia nossos hábitos, nossos gostos, nossos pontos fracos e nossos problemas; na verdade, provavelmente conhecia os Wilhern melhor do que nós mesmos nos conhecíamos. Aliás, isso não era nada tão espetacular, tendo em vista que só havia três Wilhern na casa (minha mãe, meu pai e eu) e nenhum de nós era assim tão complicado. De todo modo, ele conhecia bem minha agenda semanal (que não mudava muito em relação à minha rotina do fim de semana). Café da manhã às 8h30. Das 9h às 10h, ouço fitas de francês e estudo a conjugação dos verbos. Aquele subjuntivo mais-que-perfeito é de matar. Das 10h às 10h45, faço bicicleta ou esteira ou uso algum outro tipo de instrumento aeróbico de resistência/tortura. Não sou exatamente do tipo esportivo, mas acredito que o exercício seja algo importante, principalmente para uma pessoa que não sai muito. Depois da ginástica, tomo uma chuveirada e troco de roupa; às 11h, assisto à minha novela de TV preferida, em que os personagens têm uma vida bem mais interessante do que a minha. E ao meio-dia eu leio o jornal, cheio de histórias de gente cuja vida é muito pior do que a minha (não que eu goste de saber que a vida dessas pessoas era triste, mas pelo menos assim eu não fico sentindo pena de mim mesma). O almoço é às 12h45. Antes das 14h30, todo dia, eu já estava no solário/estufa, onde Jake foi me buscar. Quando ele chegou, eu estava no meio de um procedimento delicado, preparando uma muda de minha ave-do-paraíso para fazer um transplante. Isso exigia concentração (eu tinha de separar as raízes e me esforçar muito para não quebrá-las), então não fiquei muito satisfeita quando Jake apareceu à porta e deu seu recado. — Senhorita Penelope, a pessoa marcada para as 15 horas chegou. — Já? — exclamei, desconsolada. — Bom, são 15 horas — observou o mordomo. Deu uma olhada pelo solário. — Suas plantas estão lindas, senhorita Penelope. — Obrigada, Jake. — É mesmo uma pena que ninguém tenha o prazer de vê-las. — Hmm. — Com relutância, coloquei o pé de ave-do-paraíso de lado e tirei as luvas
de plástico. Eu não estava nem um pouco a fim do que aconteceria logo mais, mas também sabia que não adiantava nada tentar adiar. — Ah, e sua mãe gostaria de falar com a senhorita antes do encontro — Jake completou. Isso não era novidade nenhuma. A minha mãe sempre queria falar comigo antes dos encontros para me fazer um resumo do candidato e ver se me animava um pouco. Minha mãe, Jessica Wilhern, estava em seu lugar de sempre à mesa de jantar, que estava abarrotada de pastas, fotos e currículos. Com ela estava Wanda, que tinha sido contratada sete anos antes como consultora residente para trabalhar com ela nesse projeto tão importante. — Querida — minha mãe pipilou com aquela voz meio sem fôlego que usava para incentivar atitude otimista e positiva. — Acho que temos uma perspectiva interessante aqui. Wanda, diga a ela. Wanda assentiu. Com sua eficiência de sempre, já estava com todas as informações. — Muito interessante. Palmer Metcalf, 25 anos. Tem a sua idade, Penelope. Respondi entre dentes. — É, Wanda, eu sei quantos anos tenho. Wanda ignorou minha leve tentativa de ser sarcástica. — Ele tem credenciais excelentes. Escola de ensino médio particular de Livingstone, em Darthmouth. Sócio júnior da empresa de investimentos Mitchell e Swinson. Sócio do Clearwater Town and Country Club. Casa de veraneio em Woodbridge. E, aliás, estes são os Metcalf de Providence, não os de Boston. Os de Boston só chegaram muito depois do Mayflower, pelo menos dez anos. E os boatos dizem que chegaram a este país como turistas. Fiz um pequeno esforço para parecer um pouco impressionada. — Darthmouth. Isso fica em New Hampshire, não é? — O pai dele faz parte da diretoria! — completou minha mãe, toda animada. — Ele tem conexões. Os filhos de vocês vão poder estudar em universidades de primeira linha! — Palmer passou um ano estudando na Sorbonne, em Paris — prosseguiu Wanda. Minha mãe agora estava animadérrima. — Ele morou na França, Penelope! Na França! Vocês dois podem conversar em francês!
— Penelope Metcalf — Wanda disse para ver como ficava. — Soa bem. Fingir entusiasmo estava ficando cada vez mais difícil. Eu estava mesmo ficando enjoada de tudo aquilo. E eu realmente queria voltar para aquelas raízes de ave-doparaíso. — Tá, tudo bem, ele é perfeito. Está na sala de música? — Claro, querida, onde mais estaria? Olhe! Dei uma olhada no outro lado da sala de jantar, onde um sofazinho duplo e uma mesinha de centro pequena esperavam por mim, atrás de um espelho falso. Por esta vitrine, eu podia enxergar a sala de música, mas as pessoas que estivessem na sala de música só veriam um espelho. Passei direto pela mobília e fui até a porta que levava para a sala de música. Wanda engoliu em seco e minha mãe soltou um berro estridente. — Penelope, o que está fazendo? Ignorei as duas e abri a porta. Um rapaz bonito, bem arrumadinho com um paletó de tweed, que presumivelmente seria Palmer Metcalf, imediatamente se levantou do sofá e virou-se para mim. — Bonjour — eu disse. A boca do rapaz se abriu, mas nenhuma palavra saiu dali. A cara dele já dizia tudo. Isso não me surpreendeu, eu já tinha visto aquela expressão antes, com leves variações. Podia ir da descrença ao choque completo, do desgosto ao nojo. Às vezes eu via medo, ou até um pavor total. — Je m'appelle Penelope. Ele já estava se dirigindo para a porta. — Comment allez-vous? Conseguiu se recuperar o suficiente para gaguejar: — Eu, hmm... não posso... tenho um compromisso. — Au revoir — eu disse. Ele tinha chegado ao corredor, onde Jake apresentou uma papelada para que ele assinasse. Voltei para a sala de jantar para enfrentar a ira de Jessica Wilhern e companhia. Wanda sacudia a cabeça, desconsolada, enquanto minha mãe expressava seu dissabor de maneira mais audível. — Penelope, qual é o seu problema? — berrou, histérica. — Por que você fez isso? Sabe muito bem que não pode simplesmente aparecer desse jeito! Não pode simplesmente surpreender um rapaz dessa maneira! Não pode culpá-lo por ter ficado
chocado! — Isto é totalmente inaceitável, Jessica — Wanda parecia soltar fumaça pelas ventas. — Como espera que eu faça meu trabalho se Penelope não coopera? Ouviu-se outra voz. — Ah, não sejam tão rigorosas com ela, senhoras! Eu nem tinha percebido que o meu pai estava na sala. Franklin Wilhern era capaz de fazer isso: aparecer e desaparecer sem que ninguém notasse. Mas apreciei sua expressão suave e preocupada, e sorri. Jessica e Wanda ignoraram o comentário dele e prosseguiram com a ladainha. — Penelope, você tem que deixar que os rapazes a conheçam antes de se revelar — suplicou minha mãe. — Acha que eu deixei o seu pai ver a minha pinta antes de nos casarmos? Não, é claro que não, ele teve que me amar primeiro, para depois aceitar o fato de que eu tinha defeitos. Não é verdade, Franklin? Ele assentiu. — Você tem defeitos, Jessica. Jessica prosseguiu. — Você precisa revelar o que tem por dentro, sua linda personalidade. O homem precisa perceber que você é uma moça agradável, cativante e inteligente antes que veja... antes que ele saiba... Ela estava com dificuldade para dizer, então ajudei e terminei a frase para ela. — Que eu tenho cara de porco? — Ah, Penelope! — ela choramingou. — Desculpe, pessoal, tenho uma ave-do-paraíso à minha espera. Preciso ir. Quando saí da sala de jantar, deu para ouvir que continuaram a falar sem a minha presença. Wanda ameaçava largar o emprego de casamenteira. Minha mãe me acusava de estragar minha própria vida (e a dela, por tabela). E, por baixo da voz das duas mulheres, aparecia a voz do coitado de meu pai, tão querido, argumentando com elas, como sempre. — Não é culpa dela. Não culpem a Penelope. A culpa é minha, a culpa é toda minha.
Capítulo Dois
Seria de se pensar que eu já estaria acostumada com isso a esta altura. Não tinha me acostumado, e duvido que algum dia me acostumaria. Sempre era doloroso e desmoralizante. Normalmente, em um momento como este, eu voltaria para a paz e o sossego do solário. As plantas eram a minha paixão e a minha vida, e me reconfortavam quando eu estava tensa, deprimida ou brava. Mas, naquele momento, eu estava tensa e deprimida e brava, e nem mesmo minhas amadas plantas eram capazes de aliviar isto. Na verdade, eu estava preocupada que o meu péssimo humor fosse causar danos irreparáveis às plantinhas inocentes. Então, fui para o meu quarto, que não era um lugar ruim para eu me esconder e me consolar. Tinha tudo o que se podia querer de um quarto. Mobília refinada, inclusive uma cama com dossel, daquelas de princesa. Flores viçosas por todos os lados, obras de arte magníficas nas paredes. Closets enormes, cheios de roupas que eu tinha encontrado em catálogos e em lojas da Internet. Prateleiras e mais prateleiras de bolsas e sapatos. Gavetas cheias de jóias e bijuterias. Eu gostava de moda: desenvolvera meu próprio estilo e, a cada estação, minhas roupas passavam por uma revisão completa. Eu nunca precisava me preocupar com o fato de os outros me verem usando os modelos mais novos, principalmente porque ninguém me via. E eu estava rodeada de todo tipo de entretenimento possível. TV de plasma, o melhor sistema de som do mundo, milhares de CDs e DVDs, videogames. Isso sem falar da minha alcova de exercícios, que tinha esteira, bicicleta ergométrica, simulador de remo e parede de escalada. A parede de escalada era a minha preferida. Eu tinha que vestir equipamento especial, organizar as cordas, depois me esticar e fazer força para passar o apoio de um pé ao outro; demorava muito para chegar ao topo, onde eu alcançava... nada. Depois disso, a única coisa que restava fazer era descer. Aquilo parecia uma metáfora da minha vida: eu continuava avançando, mas não chegava a lugar algum. A única coisa que um desconhecido podia achar que faltava no quarto era um espelho. Mas a minha mãe sempre achou que seria depressivo demais para mim ver meu reflexo todos os dias.
Mas eu tinha sim um espelho, sem que ela soubesse. Era de um estojinho de pó compacto que eu roubara da bolsa dela anos antes. Era muito pequeno, mas eu não precisava de um espelho de corpo inteiro para me lembrar do motivo para que eu não tivesse uma vida normal. Não que eu precisasse de algum tipo de lembrete. Quando a gente tem cara de porco, nunca esquece. Não fazia diferença se eu mudasse o ângulo do espelho, ou se tombasse a cabeça para o lado, ou se me olhasse de perfil. Mesmo que eu abaixasse as pálpebras para deixar a imagem fora de foco, não tinha como deixar passar a característica que fizera de mim prisioneira a vida toda, a característica que deixou Palmer Metcalf (entre tantos outros) assustado: o enorme e carnudo focinho proeminente que me marcara desde o nascimento. Claro que havia outras partes do meu rosto: o focinho não era a única coisa, apesar de certamente ser o que mais chamava a atenção. Eu tinha olhos, e preciso reconhecer que não eram nada ruins. Eram grandes, de um tom marrom-chocolate, enfeitados com cílios bem compridos. No quesito da boca eu também estava muito bem. Os lábios tinham um belo formato, não muito cheios, não muito finos e, quando separados, revelavam dentes perfeitamente retos e brancos. Também tive sorte com a minha pele. Era clara, sem ser pálida, apesar de eu estar sempre dentro de casa, e eu nem precisava recorrer a cremes de bronzeamento artificial. Eu nunca tive espinhas e minhas bochechas traziam um belo tom rosado. O meu corpo também era muito bom. Com todo o tempo disponível que eu tinha para me exercitar, era fácil manter a forma. E o meu cabelo era especialmente legal. O castanho escuro e forte era minha cor natural, e tinha ondas delicadas que acabavam em cachos e se espalhavam por meus ombros. Havia sim um pequeno problema com as minhas orelhas, que lembravam as de um porco em certos aspectos. Felizmente, porém, meu cabelo as escondia. Mas nada era capaz de esconder o focinho, e independente do número de características físicas adoráveis que eu pudesse ter, todas eram ofuscadas Por esta protuberância. E, por mais que eu tentasse não ter pena de mim mesma, em momentos como este eu me sentia no direito de me sentir injustiçada. Sempre que eu ficava desse jeito, tinha uma rotina especial a seguir. Da minha estante, tirei o caderno de recortes dos Wilhern, acomodei-me confortavelmente em uma cadeira de balanço e o abri.
Virei até uma página específica e fiquei olhando uma antiga imagem em tom sépia, um retrato de família. Integrantes da família Wilhern com o rosto sisudo posavam rígidos, com roupas escuras e sérias, em estilo vitoriano. Esta foto específica provavelmente foi tirada por volta de 1860. Havia cinco rapazes na foto, mas minha atenção se concentrava em um deles: meu tataravô, Ralph Wilhern. Eu o culpava.
Capítulo Três
Ralph não era o irmão Wilhern mais novo, nem o mais velho: estava bem no meio, com dois irmãos mais velhos e dois mais novos. Entre os cinco rapazes, ele não era o mais inteligente. Também não era o Wilhern mais bonito. Nem o mais atlético, nem o mais criativo, nem o mais ambicioso. Ninguém jamais o teria classificado como obstinado: tinha tendência à indolência, era facilmente intimidado e influenciado pelos pais e irmãos, até mesmo pelos dois mais novos. No quesito charme e personalidade, ele não se destacava. Tinha consciência de seus defeitos, porque os pais e os irmãos viviam lembrando-o deles. Hoje em dia, um psiquiatra diria que ele tinha um certo complexo de inferioridade. Mas, naquele tempo, as neuroses ainda não tinham sido inventadas (pelo menos essa idéia não tinha chegado ao mundo dos Wilhern), de modo que Ralph teve que lidar com sua falta de adequação da única maneira que conhecia. Tornou-se um romântico. Lia poesia romântica e literatura romântica e envolvia-se muitas fantasias românticas. O romance real não tinha muito destaque em seu mundo. Ele sabia o que se esperava dele: que terminasse os estudos, que começasse a trabalhar com a família (cuja ocupação tinha algo a ver com usar dinheiro para fazer mais dinheiro), que não fizesse nada que pudesse afetar de algum modo a reputação respeitável da família, que se casasse com uma boa mulher de uma boa família e que perpetuasse o nome dos Wilhern. Ele conseguiu dar conta da maior parte dessas responsabilidades, mas uma representou um certo problema a Ralph: arranjar esposa. Ele não tinha problema em conhecer candidatas ao posto. Desde os 18 anos de idade, freqüentava bailes de debutantes e outras ocasiões especiais, criadas com o intuito único de apresentar rapazes e moças de uma certa classe. As mulheres vinham em diferentes formatos, tamanhos e aparências, mas eram todas cheias de moral e direitas, bem arrumadas e educadas. O problema de Ralph era que elas não agradavam à sua natureza romântica. Ele as considerava tediosas. Se fosse um pouco mais ambicioso, ou se tivesse a menor fagulha que fosse de imaginação, poderia ter saído de casa para viajar e fugir do pequeno círculo da aristocracia local. Mas Ralph nunca chegou a considerar a possibilidade de que poderia haver outras opções na vida. A única coisa capaz de fazer era fantasiar e desejar que o romance viesse lhe bater à porta.
Quando os irmãos mais velhos e até os mais novos já estavam casados ou comprometidos, o patriarca e a matriarca dos Wilhern começaram a se preocupar e por isso mais esforços ainda foram concentrados na agenda social de Ralph. Ele se viu como acompanhante de Sibyl, Caroline, Elizabeth e cada uma das outras mulheres que atendiam aos critérios básicos de família e classe. Obediente, ele se encontrava com todas elas, mas nenhuma daquelas mulheres correspondia à sua fantasia de romance. E, então, ele conheceu Clara. Como os Wilhern eram uma família grande e abastada, empregavam um número substancial de criados. A maioria deles vivia em quartos pequenos no sótão da mansão, apesar de alguns se deslocarem de sítios locais diariamente. Assim como seus irmãos, Ralph não prestava muita atenção neles, e nunca pensava a seu respeito. Quando vestia uma camisa limpa e bem passada toda manhã, pode até ser que experimentasse um breve momento de satisfação com a sensação de bem-estar que aquilo proporcionava, mas nunca lhe ocorrera que de fato algum ser humano tivesse lavado e passado a peça. Ele podia fazer uma observação sobre o sabor delicioso do frango assado de domingo sem pensar por um momento que alguém de fato o tivesse preparado. Assim como a maior parte das pessoas de sua classe, tinha uma vida confortável sem pensar em por que ou como era assim tão confortável. E não sabia diferenciar Mary que lavava a roupa de Sally que varria o chão e de Martha que fazia as camas. Ou de Clara, que picava os legumes para as refeições que a cozinheira produzia. Mas, em uma tarde de domingo, Clara virou o mundo confortável de Ralph de cabeça para baixo. A família tinha acabado de terminar o longo almoço de domingo. Apesar de a comida ser excelente e em grande quantidade, Ralph sentia-se um tanto vazio. Na igreja, naquela manha, ele se sentara com Sibyl Harrington. Os pais dele então Passaram a refeição toda exaltando as virtudes de Sibyl e implorando a Ralph que pedisse ao pai de Sibyl sua mão em casamento. Ralph não tinha problema nenhum com Sibyl. Ela não era em nada diferente de Caroline ou de Elizabeth ou de qualquer uma das outras noivas em potencial. Aliás, ele começara a pensar na possibilidade de atender ao desejo dos pais. Pensava que talvez fosse tolice ficar esperando por romance e alegria, pelas paixões que eram descritas em seus livros preferidos. Talvez sentimentos como aqueles estivessem reservados apenas à poesia e não existissem no mundo real.
Inquieto e deprimido, ele resolveu sair para dar um passeio, algo que teria perturbado a família se alguém ficasse sabendo, porque os passeios de domingo não faziam parte da rotina deles. O passeio semanal era sempre feito no Great Park, no final das tardes de sábado, quando todas as outras pessoas da mesma classe davam seus passeios. Caminhar em qualquer outro horário sugeria que a pessoa não tinha dinheiro para uma carruagem. Felizmente para Ralph, ninguém sabia que ele estava prestes a dar um passeio de domingo, já que o ritual para depois do almoço era tirar uma longa soneca. Todos os outros membros da família estavam dormindo quando ele se esgueirou para fora da casa. E, para que não fosse avistado por ninguém que pudesse passar por ele de carruagem e depois relatar seu comportamento peculiar aos pais, resolveu fazer uma coisa verdadeiramente bizarra: dar um passeio no bosque. Ele já tinha estado no bosque, quando garoto, em uma caminhada pela mata liderada pelo professor primário local, que era capaz de fornecer nomes em latim para a vegetação e identificar cogumelos venenosos. Por isso, ele sabia que havia uma trilha e que não havia animais selvagens. O que ele não sabia era que uma certa criada da cozinha de sua própria residência geralmente passava os domingos colhendo flores silvestres ali. Ela também procurava ervas para a mãe, uma famosa bruxa local (mas não era famosa para Ralph, já que, assim como todos os Wilhern, ele só conhecia pessoas de sua própria classe). Enquanto Ralph perambulava pela trilha estreita através do bosque, seus sentidos (que não eram lá muito aguçados) perceberam um som que não era produzido por passarinhos. Demorou mais de um minuto até ele perceber que o que ouvia era alguém cantando, atividade considerada inadequada para um domingo (à exceção dos hinos da igreja) e que nunca era vista no lar dos Wilhern, de qualquer modo. Cheio de curiosidade (atitude nada comum para Ralph), ele seguiu o som da voz e acabou descobrindo sua origem. A certa distância da trilha, viu uma moça em uma pequena clareira. As mulheres do círculo social dos Wilhern compartilhavam alguns elementos comuns da aparência. O cabelo era penteado no estilo esculpido de muito sucesso conhecido como pompadour, em que cada cacho era preso com uma espécie de alfinete que o mantinha no lugar. Talvez o penteado fosse solto à noite, quando as mulheres iam dormir, mas Ralph não saberia dizer. Os rostos eram mantidos longe do sol e por isso eram pálidos; os cosméticos só eram usados por mulheres de má reputação. Todas as mulheres com quem a família mantinha relações sociais também pareciam ter o mesmo tipo de corpo: gordas ou magras, usavam corpetes rígidos de arame que forçavam o corpo a assumir um
formato similar. Todos os itens de vestuário eram em cores escuras e feitos para cobrir cada centímetro de pele. Assim, só dá para imaginar o choque de Ralph quando viu Clara no bosque. Ela não usava o uniforme preto das criadas da casa dos Wilhern, nem estava com o cabelo preso no exigido coque apertado. Por isso, Ralph não a reconheceu como criada (principalmente porque nunca tinha se dado ao trabalho de olhar no rosto de qualquer criada), mas sem dúvida estava ciente de que ela não era da classe dele. Clara era uma moça esbelta e frágil com membros delicados e cinturinha fina. Não era de grande beleza, mas o rosto tinha uma doçura delicada. Os olhos eram azuis e o cabelo claro e comprido, caindo praticamente sem restrições até quase a cintura. Aos olhos de Ralph, ela parecia uma ninfa, uma fada, o tipo de criatura fantástica indomada que se encontrava na poesia. Os pés de Clara estavam descalços e ela não usava chapéu nem luvas. Estava vestida com uma saia e blusa de algum material muito fino, praticamente transparente, e o calor do sol fizera com que arregaçasse as mangas. Mostrava muito mais pele feminina do que normalmente se via em público, mas não era nem um pouco provocativo. A palavra que veio imediatamente à mente de Ralph como maneira de descrevê-la foi romântica. Uma palavra que ele nunca achou possível aplicar a alguma coisa viva e real. Parecia que ela estava concentrada em colher flores silvestres e, enquanto as colhia, cantava. — Permita-me que me demore no vale com meu próprio amor verdadeiro, permita-nos dançar ao luar sob o céu estrelado lá no alto... Ele se aventurou para fora da trilha e pisou em um galho, que estalou alto. O som fez a moça se sobressaltar e ela se virou na direção dele. Apesar de Ralph não ser o Wilhern mais bonito, como já foi observado antes, sua aparência não era repulsiva. Ele era alto e esbelto, com cabelo escuro ondulado, olhos de pálpebras pesadas e, de modo geral, tinha traços aristocráticos, apesar de um grande bigode caído esconder o queixo fraco. Ele se vestia bem, de acordo com a moda da época, e era bem asseado, não andava armado (à exceção de uma bengala) e representava para Clara uma figura nada ameaçadora. E, no entanto, ela ficou assustada e derrubou as flores. — Senhor! — Ela engoliu em seco. — Ah, meu senhor, sinto muitíssimo, por favor, me perdoe. Ele achou a subserviência dela estranhamente encantadora. — Você sente muito por quê?
— Porque... eu atrapalhei o seu passeio, senhor. — Bobagem — Ralph respondeu. — Fui eu quem atrapalhou a sua colheita de flores. E por que me chama de senhor?
— Porque o senhor é o meu patrão. Ele gostou bastante daquela idéia. — Está falando em contexto romântico, senhorita? — Não, senhor. Eu trabalho para a sua família. Sou Clara, a criada da cozinha. Eu auxilio a cozinheira. Ralph fez um bico. Criada da cozinha com toda a certeza não tinha sabor nada romântico. — Eu pico os legumes — completou Clara. Ele ergueu as sobrancelhas, cheio de esperança. — É você quem faz aquelas florezinhas com os rabanetes? — Sim, senhor. Isso o deixou mais animado. Sempre pensara que aqueles rabanetes pareciam botões de rosa, e botões de rosa eram com certeza românticos. — Então, o seu nome é Clara — ele disse. Deixou o nome rolar por sua boca. — Cl-aa-ra. — Bom, não era Dulcinéia nem Desdêmona, mas pelo menos não era Gertrudes. — E você sabe qual é o meu nome? — Sim, senhor. Senhor Wilhern. — Há cinco senhores Wilhern em casa, seis, se contarmos papai. Você sabe qual senhor Wilhern eu sou? Ela hesitou e ele achou que sabia por quê. Ele jamais gostara de seu prenome. Existiam nomes românticos para homens, como Edmund ou Jonathan. Mas Ralph... Em 1860 ele não tinha como saber que a palavra se transformaria em gíria para vômito, mas talvez tenha sido presciente, porque sentia uma conotação desagradável. — Não seria apropriado para mim, uma criada, usar o seu primeiro nome, senhor. — Então eu lhe darei um nome especial para me chamar, Clara. Eu sou... — Repassou na mente os nomes dos heróis de suas mais recentes leituras. — Pode me chamar de Roderigo. — Roderigo, senhor? — Só Roderigo, não Roderigo senhor. Se você me chamar de senhor, não poderemos
ter uma relação adequada. — Relação, senhor? Quer dizer, Roderigo. — Sim, minha cara. Acredito que você seja a mulher por quem eu passei a vida inteira esperando. — Ele tomou a mão dela e a beijou. Clara era muito jovem, mal tinha 16 anos, e tinha pouca experiência com homens. A mãe cuidava bem desse aspecto, mantendo-a sempre por perto do casebre que as duas compartilhavam no bosque, permitindo apenas que saísse para trabalhar na mansão e para colher as ervas e catar os pedaços de restos de animais necessários para seus encantos. Tentou ensinar a Clara os truques de seu ofício, mas chegou à conclusão de que Clara demonstrava pouco talento natural para bruxaria e resolveu que o rostinho bonito e a índole doce da filha seriam seu bilhete de entrada para uma vida boa. Naquele momento específico, ela estava de olho em um ferreiro local, que representaria um grande avanço em relação à situação da família. Quando Clara chegou em casa falando de Roderigo, seu apelido para um dos herdeiros dos Wilhern, a bruxa ficou surpresa e maravilhada. Nunca poderia esperar que sua filha meio lerda, que tinha propensão a alergias, pudesse subir tão alto na escala social. Imediatamente pôs-se a preparar diversas poções e encantamentos para manter as chamas do amor acesas. Mas parece que não havia necessidade real do uso da magia. Antes mesmo que tivesse a oportunidade de administrar qualquer poção ou lançar qualquer feitiço, Roderigo/Ralph e Clara se uniram e se tornaram inseparáveis (à exceção, é claro, de quando ela estava picando seus legumes; Ralph não sabia onde a cozinha se localizava na mansão dos Wilhern e, de todo modo, pareceria estranho aparecer naquele aposento). Encontravam-se à noite, quando os outros integrantes da família Já haviam se retirado para seus quartos de dormir. Ralph esgueirava-se para fora de casa e a encontrava na clareira, onde ela cantava aquela musiquinha de que gostava, e os dois seguiam as instruções da letra, dançando ao luar, sob o céu estrelado. E os dois deitavamse sobre o capim, abraçados, e ele recitava poemas que ela não compreendia (mas, bom, ele também não entendia nada). Ele tinha encontrado o que faltava em sua vida. As Sibyls e Carolines do mundo, aquelas mulheres adequadas, de corpete, nunca cantariam canções de amor, nem dançariam, nem correriam descalças pelo bosque, nem se envolveriam em outras atividades de que Ralph e Clara gostavam imensamente. Ele pensava nela de maneira
incessante, e isso o fazia sorrir e suscitava perguntas constantes de sua mãe a respeito de sua digestão. Com o tempo, ela pediu para apresentá-lo à mãe, e ele ficou encantado com a idéia. Por nunca ter conhecido uma bruxa de verdade, imaginava uma pessoa fantástica. Tinha lido seus contos de fada infantis, por isso sabia que ela não seria especialmente bonita, mas ainda assim era um ser mágico, e isso era uma coisa romântica. Mas ele não estava preparado, no entanto, para a feiúra extrema da mãe de Clara. Saindo do casebre de madeira em ruínas, ele avistou uma mulher velha, toda encurvada, com nariz batatudo, queixo protuberante, cabelo grisalho comprido e todo despenteado, debruçada em uma bengala retorcida. Ficou muito aliviado ao saber que a aparência decorria de suas atividades, que cada feitiço lançado deixava uma marca na feiticeira, e este era o motivo por que as bruxas sempre tivessem aquela aparência. Ela assegurou a Ralph que Clara não tinha absolutamente nenhuma inclinação para se tornar bruxa, e que portanto nunca ficaria com a aparência da mãe. Mãe e filha pareciam ter uma relação agradável, apesar da bruxa insistir em dizer a Clara que ela estava ficando gorda. Na medida em que as semanas se passavam, a barriga de Clara continuava a crescer. No final, todos descobriram por quê, e Ralph pediu a mão de Clara à bruxa. A bruxa lhe disse que poderia ficar com todas as partes do corpo da filha e Ralph rapidamente foi transmitir a gloriosa notícia aos pais e irmãos. Os Wilhern se reuniram na biblioteca para o anúncio e Ralph depois de apenas algumas curvas erradas, conseguiu encontrar a cozinha para pegar Clara. Clara, no entanto, estava amassando batatas para um purê e se encontrava em um ponto fundamental do processo, de modo que disse a ele que se reuniria a todos assim que tivesse terminado. Ralph foi ao encontro da família na biblioteca sozinho. — Mamãe, papai, caros irmãos, espero que compartilhem da minha alegria quando eu lhes disser que resolvi me casar. Os irmãos começaram a comemorar ruidosamente e a mãe suspirou. — Finalmente. O pai assentiu com a cabeça em sinal de aprovação e disse: — Muito bem, meu rapaz, Sibyl será uma ótima esposa. — Ah, eu não vou me casar com Sibyl — respondeu Ralph. Um dos irmãos perguntou: — Nós conhecemos esta mulher? Ralph saboreava o
suspense. — A minha futura noiva não é estranha a esta casa. Os caroços do purê de batatas naquele dia estavam especialmente persistentes, de modo que Clara não conseguiu ir à biblioteca. Talvez tenha sido melhor assim, porque ela certamente não teria apreciado a reação da família. Vou me casar com Clara. — Clara? — repetiu o pai. — Clara? — Virou-se para a mulher. — Conhecemos alguma Clara? — Clara de quê? — perguntou a mãe a Ralph. Ralph se deu conta de que não sabia o sobrenome de Clara. — Clara! A criada, aquela que trabalha na cozinha com a cozinheira. Aquela que pica os legumes. Mamãe, a senhora sempre diz como aprecia aquelas rosinhas de rabanete. Clara me garantiu que, mesmo quando passar a ser a senhora Ralph Wilhern, vai continuar a fazer aquelas rosinhas. Só para ocasiões especiais, é claro. Nenhum Wilhern, principalmente Ralph, era conhecido por seu ótimo senso de humor, o que pode servir para explicar por que o repentino arroubo de gargalhadas não fez o menor sentido para ele. — Fico satisfeito em ver que a notícia os deixa felizes — disse ele, cheio de incerteza. — Muito engraçado, meu rapaz, muito engraçado — exclamou o pai. — Que bela piada. — Enormemente divertida — a mãe concordou. — Esta aqui é a minha cunhada, a criada da cozinha — caçoou o irmão mais velho. — Preciso me lembrar de contar esta no clube. — É, eu estava pensando em talvez fazer a recepção do casamento lá — Ralph disse, e isso deu lugar a mais uma rodada de gargalhadas histéricas. Demorou um pouco até Ralph entender qual era a graça. No final, ficou por conta do pai explicar que um Wilhern não se casaria, nunca, jamais, com uma criada. Era algo que não se fazia. As regras da sociedade não o permitiriam. Um século ou mais depois, até seria possível que um duque se casasse com uma babá, um milionário poderia se casar com a secretária, mas naquela época a simples idéia de um Wilhern de sangue azul trocando votos de compromisso com uma integrante da classe baixa era impensável. Ralph ficou surpreso. Achava que conhecia os códigos de conduta, mas aparentemente alguns deles não tinham sido apreendidos. E apesar de Clara ter tocado seu lado romântico, ele realmente não era um rebelde. Não era do tipo que desafiava as
convenções de maneira assim tão pública. Talvez o pai ameaçasse deserdá-lo e deixá-lo sem nenhum tostão, não tenho certeza. Mas isso não fazia a menor diferença: Ralph Wilhern concordou em adotar a posição da família e, em vez de Clara, pediu a mão de Sibyl em casamento. (Ela o dispensou, mas Caroline, que teria se casado com o Corcunda de Notre Dame para deixar a casa da família, aceitou a proposta.) E a pobre, coitada e grávida Clara se jogou em um poço. Este foi o fim de Clara, mas não o final da história. Nem é preciso dizer que, quando a bruxa ficou sabendo do suicídio da filha, ficou arrasada; e quando soube o motivo, ficou furiosa com a família Wilhern. E em uma noite escura e sem lua mancou até a mansão dos Wilhern com uma mistura especial de ervas, temperos e um rabo de porco bem raladinho. Recurvada por cima de sua bengala retorcida, recitou um feitiço que ela mesma inventara, salpicou sua marinada cheia de maldade ao redor da casa e declarou a vingança contra a família. Seria de se pensar, com toda a justiça, que ela concentraria sua maldição em Ralph, que abandonara a filha dela. Ou que simplesmente estenderia o feitiço aos pais que proibiram casamento e aos irmãos que riram dele. Mas a maldição que ela lançou sobre a família teve repercussões de longo alcance, especificamente para mim. Porque a coisa que realmente enojava a bruxa era a história de classe social, a idéia da aristocracia empertigada que considerava os outros, como as criadas e as bruxas, seres muito inferiores. Então ela os amaldiçoou com algo que afetaria um integrante ao acaso daquela dinastia de sangue azul. A bruxa declarou que a próxima menina nascida na família Wilhern teria cara de porco. E que a maldição só poderia ser desfeita quando alguém de sua mesma classe, um rapaz de sangue azul de verdade, declarasse que ficaria a seu lado até que a morte os separasse. O feitiço só se desfaria quando um aristocrata aceitasse a menina-porca do jeito que ela era. Foi um feitiço bem maldoso, mas levando em conta o que lhe acontecera com a filha, realmente não dava para culpá-la. Levando em conta que tudo isso aconteceu há mais de cento e cinqüenta anos, seria de se pensar que a maldição já teria se manifestado muito antes do meu nascimento. Infelizmente (para mim, pelo menos), os homens Wilhern pareciam ter uma abundância de cromossomos Y ou sei lá o quê. Durante cem anos, só geraram descendentes homens. Então, há cerca de cinqüenta anos, meu tio-avô Leonard Wilhern e sua esposa, Ella, tiveram uma menina chamada Isabel. Bom, isto aconteceu antes de existirem testes para determinar o sexo dos bebês antes de nascerem, então todos os Wilhern sempre ficavam nervosos antes de um nascimento,
apesar de o nível de ansiedade ter diminuído um pouco com os anos, já que as pessoas acreditavam cada vez menos em bruxas e em bruxaria. Ainda assim, não era possível que os Wilhern gerassem meninos para sempre, e tio Leonard em especial ficou apreensivo. É bem interessante o fato de tia Ella não ter nunca parecido nem um pouco preocupada com a maldição, de acordo com meu pai, que na época era criança. Ela ria da lenda e fazia piada a respeito de dar à luz uma ninhada de porquinhos. Os integrantes mais supersticiosos da família temiam que ela de fato estivesse convidando o olho gordo a entrar em sua casa. Então, todo mundo ficou aliviado quando a pequena Isabel nasceu uma menininha perfeita, e a maldição da bruxa foi desprezada como tolice. O que poucos sabiam era que, de fato, Isabel nunca esteve em risco: titia Ella estava tendo um caso com o chofer. Não havia uma única gota de sangue dos Wilhern naquela criança linda. Então, ficou a cargo da geração seguinte cumprir a promessa da bruxa. Nunca tive certeza se a minha mãe sabia ou não da maldição quando se casou com o meu pai. Vai ver que, àquela altura, todo mundo já havia se esquecido completamente do assunto. Surpresa!
Capítulo Quatro
Quando tio Leonard ficou sabendo do meu nascimento, e do meu focinho, finalmente percebeu que a amada esposa Ella o traíra havia tantos anos. Desconsolado, ele se jogou de uma janela do apartamento de cobertura da família. Minha mãe sempre disse que foi um golpe de sorte: o escândalo do suicídio dele desviou parte da atenção sobre as histórias e os boatos a meu respeito. Havia muitas fotografias dos meus pais de antes de eu nascer. Os Wilhern ocupavam posição de destaque na sociedade, e Jessica e Franklin Wilhern eram um casal famoso, eram convidados a todos os lugares, a toda ocasião importante. Em praticamente todas as fotos, minha mãe usava um vestido glamouroso de grife, com jóias, peles, todas essas coisas. Meu pai tinha um ar bem cortês, com ternos de corte impecável, às vezes smokings. Havia fotos deles em bailes, em corridas de cavalos, em vernissages, em recepções para membros da realeza, em todo o tipo de evento elegante. Apareciam segurando taças de martíni, flütes de champanhe, longas cigarreiras incrustadas. Às vezes estavam dançando, rodeados por outras pessoas. Só havia uma foto minha no álbum. Eu estava nos braços de uma Jessica de aparência tensa e um Franklin com cara de enterro parado atrás dela. Meu cobertorzinho tinha sido arranjado com destreza para cobrir meu rosto. Meu nascimento foi arrasador para ambos, mas principalmente para a minha mãe. Ela estava tendo um parto normal mas no minuto que eu apareci e ela viu o meu rosto, fez-se necessário o uso de medicamentos fortes. Nem é preciso dizer que, quando minha mãe se recuperou da histeria, a primeira atitude a tomar era me transformar em uma pessoa normal. Meus pais examinaram todos os remédios possíveis para meu problema. Mas aquela bruxa velha não era nem um pouco boba: deve ter previsto os avanços na cirurgia cosmética e fez seu feitiço para anular a possibilidade de uma operação plástica. Os cirurgiões disseram aos meus pais que a artéria carótida passava bem no meio do focinho, er, nariz, e que qualquer tentativa de modificação resultaria na minha morte. Sempre me pergunto se minha mãe se sentiu tentada. E interessante notar que o outro único item do álbum que fazia referência a mim era o meu obituário, recortado de um jornal local.
Jessica e Franklin Wilhern anunciam, com profundo pesar, a morte prematura de sua filha ainda bebê, Penelope... Claro que havia uma explicação perfeitamente adequada para isso. Minha mãe decidiu manter minha existência em segredo, mas gente demais estivera presente durante o meu nascimento e éramos uma família de destaque. Os boatos sobre o nascimento de uma menina-porca começaram a circular, e jornalistas de publicações sensacionalistas começaram a nos rodear. Foram detidos por meus pais e Jake, e no final a maioria acabou perdendo o interesse quando surgiram boatos a respeito de um menino-peixe com barbatanas em um país vizinho. Mas havia um jornalista especialmente insistente, um homem chamado Lemon, que trabalhava para o mais sórdido dos tablóides sórdidos. De algum modo, esse fulano conseguiu entrar na nossa casa e de fato encontrou minha mãe na cozinha, comigo em seus braços. Ele a deve ter pego de humor especialmente azedo. Jessica teve um ataque desenfreado e o agrediu no rosto com um utensílio de cozinha. Ninguém acha que uma concha de sopa possa fazer muito estrago, mas posteriormente ela soube que ele perdera um olho como resultado do ataque. Acredito que este tenha sido um dos poucos momentos de alegria que ela viveu desde o meu nascimento. Mas como minha existência tinha sido (quase) confirmada (Lemon não conseguira uma boa imagem minha), ela sabia que ele voltaria, e que mais repórteres o seguiriam. Só conseguiu pensar em uma maneira de afastá-los. Então minha morte foi simulada, um caixão vazio foi enterrado, ou cremado, eu nunca soube muito bem. Meu pai disse que foi péssimo para ele. Não sabia representar muito bem e, apesar de estar sempre com uma leve cara de enterro, as pessoas acharam que ele pareceu muito menos do que arrasado de pesar pela perda da única filha. Minha mãe assegurou a todo mundo que isso se devia à maneira esnobe com que fora criado na família Wilhern e tentou compensar urrando como uma condenada. Então, não havia outras fotos minhas no álbum, nem muitas outras dos meus pais. Eles tinham parado de receber visitas, porque não ousavam deixar que ninguém entrasse na casa por medo de depararem comigo. E não saíam, porque não podiam confiar em babás que pudessem espalhar boatos. Podiam simplesmente me deixar em casa com Jake, mas mesmo assim, raramente saíam. Minha mãe sempre tinha medo de que o meu pai
tomasse um ou dois drinques, cometesse um deslize e mencionasse a minha existência. Além do mais, se aceitassem convites, isso significaria que depois precisariam retribuir. Assim, cresci em uma jaula folheada a ouro, a mansão dos Wilhern. Escondida do mundo, não tinha ninguém com quem brincar. Não diria que tenha sido carente: eu tinha todas as coisas materiais, além de governantas e tutores para me fazer companhia. Qualquer pessoa que me conhecia tinha que assinar um contrato de sigilo e eu vivia me perguntando se meus pais recorriam a propina ou a ameaças para fazer com que fosse cumprido. Ou vai ver que simplesmente mandavam assassinar cada um desses tutores quando deixavam o emprego. Minhas primeiras lembranças eram de minha mãe dizendo: — Não se preocupe, querida, não é você. Você não é o seu nariz. Este não é o seu rosto verdadeiro, é o rosto do seu tataravô. Você é outra pessoa por dentro. E, um dia, verá a Penelope de verdade. Sempre que ela encontrava a pequena Penelope olhando embasbacada para o próprio reflexo, dava início a seu discursozinho. Aquilo se transformou em mantra: — O seu rosto não é o seu rosto. Eu ouvia a história da maldição de novo, que eu já sabia de cor, e daí ela me lembrava, pela zilionésima vez, que a criatura que eu via no reflexo não era a verdadeira eu. Era assim que eu vivia. Quando criança, eu era uma princesa, vestia roupas lindas toda manhã e era tratada por Jake com o tipo de respeito que nenhuma criança merece receber. Tinha minhas aulas com o tutor e, quando a lição terminava, ficava brincando no meu quarto. Meus pais não economizaram para me proporcionar um quarto de brincar completo: havia tanques de areia e piscininhas infantis, bonecas e brinquedos, um balanço pendurado no teto. Eu me sentava nele e voava pelo quarto, de um canto ao outro, e fingia estar no ar. Daí eu jantava, tomava banho e ia dormir. Eu tinha permissão para sair a público uma vez por ano, no Dia das Bruxas. A cada ano eu usava uma fantasia diferente, de fada, de vaqueira, de bailarina; as fantasias normais de Dia das Bruxas (mas nunca de bruxa, por razões óbvias). O principal requisito da fantasia era uma máscara que cobrisse meu rosto completamente. Jake me levava para pedir doces de porta em porta, mas eu nunca tinha permissão para me juntar aos grupos de crianças que iam de casa em casa. Qualquer atitude que pudesse levar a uma amizade
era rigidamente proibida. Nem é preciso dizer que o Dia das Bruxas se tornou, e continuou sendo, meu feriado preferido. Será que eu era solitária? Imagino que sim, mas talvez não tivesse essa percepção na época. Afinal de contas, eu não sabia que existia outro tipo de vida. Na hora de dormir, minha mãe recitava o mantra de "o seu rosto não é o seu rosto". Geralmente era seguido da canção "O sonho que eu sonhei", da versão da Disney para Branca de Neve e os Sete Anões, em que ela sonha com o príncipe encantado. Então o meu pai lia versões especiais de contos de fadas tradicionais que ele reescrevera só para mim. O meu preferido era O Bonitão e a Fera: "Era uma vez um homem que tinha três filhos. O mais novo era muito bonito, então se chamava Bonitão. Um dia, o homem ia viajar a negócios e perguntou aos filhos o que gostaria que lhes trouxesse da viagem. O primeiro filho pediu um iate. O segundo filho pediu uma Ferrari. Mas o terceiro filho, Bonitão, disse que só queria uma rosa perfeita. "Durante a viagem de negócios, o homem comprou o iate e a Ferrari e enviou para os dois filhos. Mas procurou em todas as floriculturas e não conseguiu encontrar a rosa perfeita em lugar nenhum. "Então, no último dia de viagem, ele passou por um lindo castelo. Lá, no jardim, viu belas rosas vermelhas. Procurou a mais perfeita de todas, encontrou e colheu para seu filho mais novo. "De repente, do castelo, saiu uma horrível fera. Ela agarrou o homem. "— Vai morrer por ter roubado a minha rosa! "O homem implorou: "— Ah, por favor, dona Fera, poupe minha vida. A rosa é um presente para o meu filho. "— Então pode ir, mas deve mandar para mim o seu filho mais novo em troca. E ele vai ter que se casar comigo. Se não fizer isso, irei atrás de você. "O homem ficou horrorizado, mas fez a promessa à dona Fera. Quando chegou em casa, contou aos filhos sobre sua aventura. Não queria que o filho mais novo fosse embora, mas Bonitão tinha medo de que a Fera fosse atrás do pai, então partiu em direção ao castelo. "Quando Bonitão viu a Fera pela primeira vez, ficou aparado. Mas, para a surpresa de Bonitão, a Fera se portou com muita simpatia para com ele. Não o obrigou a casar-se com ela imediatamente. Deu-lhe coisas boas de comer, travaram conversas interessantes, e
Bonitão passou a apreciar a companhia dela, apesar de ela ser muito feia e ele realmente não gostar de olhar para ela. "A Fera permitiu que ele viajasse para ver o pai mas, quando voltou, descobriu que a Fera estava doente de saudade dele. Percebeu que estava apaixonado por ela e disse que queria se casar com ela. E, de repente, ouviu-se música e fogos de artifício e, para sua grande surpresa, viu que Fera tinha se transformado em uma linda princesa! Ela vivia sob o feitiço de uma bruxa má, e só quando alguém de sua própria classe a amasse a maldição seria desfeita. "Então, Bonitão casou-se com a princesa e eles viveram felizes para sempre." Também ouvi a versão do meu pai para O Príncipe-sapo (A Princesa-porca) muitas vezes. Meus pais faziam o possível para me dar algum tipo de auto-estima. Costeletas de porco e bacon nunca eram servidos na casa dos Wilhern. E ninguém tinha permissão para brincar de "porquinho" com os meus dedos dos pés. Ouvi uma batida na porta. — Senhorita Penelope, seu compromisso das 16h chegou.
Capítulo Cinco
Minha mãe e Wanda estavam à minha espera na sala de jantar. Jessica parecia mais calma: obviamente, tinha resolvido mudar de abordagem. — Penelope, querida — ela entoou. — Sinto muito por ter falado de maneira tão ríspida com você antes. Mas só faço isso por você, pelo seu futuro, pela sua felicidade. Penelope! Você está ouvindo? Não estava, mas respondi: — Estou sim, mãe. — Penelope, você precisa fazer a sua parte. Diga uma coisa: está feliz neste momento? Pelo menos essa pergunta eu podia responder com honestidade. — Não estou, não, mãe. — Muito bem, então. E agora, está pronta? Este é um encontro importante, Edward Vanderman é o candidato mais Promissor que já tivemos. Pelo menos, não tive que ouvir Wanda recitar as credenciais do meu pretendente. Esta era a terceira visita de Edward e eu sabia tudo sobre ele. Não havia dúvidas: ele atendia a todos os requisitos para desfazer a maldição. Os Vanderman eram uma família de destaque, rica e mais importante, de sangue azul. Seus ancestrais podiam remontar a, sei lá, à Idade da Pedra ou algo assim, e eu às vezes ficava me perguntando se Edward talvez não fosse daquele tempo em que os cérebros eram muito menores. Certamente não tinha guardado nenhum dos maneirismos agressivos de seus ancestrais. Eu não conseguia imaginar Edward com um tacape na mão, arrastando a parceira escolhida pelo cabelo para dentro da caverna. Ele não teria coragem para isso. Não que eu jamais quisesse ser arrastada por aí desse jeito, por Edward ou por qualquer outro homem, mas me lembro de ter visto um filme em que um homem das cavernas muito sexy fazia exatamente isso. Através do espelho falso, enxerguei meu visitante largado na poltrona. Edward (e ele era o tipo de pessoa que devia sempre ser chamado de Edward, não de Ed ou Eddie ou de qualquer outro apelido que implicasse familiaridade, ternura e afeição), Edward era triste.
Tudo bem, talvez eu estivesse sendo um pouco indelicada. Fisicamente, ele não era pavoroso (e falando como alguém que era horrorosa, eu me sentia qualificada a fazer tal julgamento). Aliás, a maioria das pessoas diria que ele era um rapaz bem bonito. Ele era bem asseado e bem-vestido, seus traços eram normais e todos nos lugares certos. Era a personalidade que dava a Edward sua desvantagem. Eu tinha certeza de que, quando criança, os coleguinhas zombavam dele, talvez ele apanhasse, e eu não diria que ele merecia, mas posso imaginar o que levava as outras crianças a se voltar contra ele. Ele era uma vítima ambulante. Em sua opinião nada jamais dava certo para ele, coisas ruins aconteciam o tempo todo e a culpa nunca era dele. Lembro-me da primeira visita que ele me fez. Começou me dizendo que, normalmente, nunca responderia a um serviço de encontros, que não tinha problema nenhum para conhecer garotas e que a única razão por que tinha cedido ao convite de Wanda foi porque seus pais tinham os Wilhern em muita alta conta e insistiram para que conhecesse a filha misteriosa e amaldiçoada dos Wilhern. Respondi que agora que ele tinha atendido aos pedidos dos pais dele e dos meus e que com toda a certeza poderia arrumar namorada sozinho, poderia encerrar a visita naquele mesmo momento sem nenhum ressentimento. Ele desmoronou completamente. De repente, estava abrindo o coraçãozinho, dizendo que todas as moças que o perseguiam só se interessavam por ele devido à riqueza de sua família e de sua posição social, sua aparência e ao fato de o pai ser dono de uma indústria enorme que Edward acabaria por herdar. Disse que ninguém conhecia o verdadeiro Edward, que ele era prisioneiro de sua própria imagem e que nunca tinha se sentido próximo de ninguém na vida. Eu fiquei de fato comovida com a confissão dele e lhe fiz perguntas pessoais. — O que você gosta de fazer quando está sozinho, Edward? Ele respondeu: — Estou sempre sozinho, Penelope, mesmo quando estou no meio de uma multidão. — De que tipos de filme você gosta, Edward? — Os filmes são difíceis para mim. Filmes tristes me fazem pensar na minha própria vida. Filmes alegres me deixam ainda mais triste porque eu os comparo com a minha vida, e isso faz com que eu me sinta ainda pior. Independentemente do assunto em que eu tocasse, ele virava a coisa de modo que fosse a respeito dele. Perguntei qual era sua opinião a respeito do sistema de saúde
público e ele falava de alguma doença imaginária que tinha. Eu estava perdendo a paciência. Por outro lado, a maldição poderia ser desfeita se ele se casasse comigo. Quando me acomodei no meu sofazinho, minha mãe disse: — Talvez ele não seja o homem dos seus sonhos, Penelope, mas serve. — Realmente não está em posição de escolher — observou Wanda. Jessica olhou com raiva para ela, mas eu entendi o que Wanda estava dizendo. O significado nas entrelinhas era: "Não estrague esta oportunidade, Penelope. Pode ser a sua melhor chance." As duas tinham razão. Eu precisava de um homem para me salvar, para me libertar da minha maldição, para me dar uma vida. Era demais esperar que eu de fato pudesse me sentir atraída por ele. Liguei o microfone. — Olá, Edward. Não diria que o rosto dele se iluminou ao ouvir a minha voz, mas pelo menos tive o vislumbre de algum tipo de expressão. — Penelope! Como está? Como estou? Que tal deprimida, brava, farta da minha vida e de tanta injustiça... mas não era isso que Edward queria ouvir. — Tudo bem, Edward. E você? Edward obviamente não se sentiu na obrigação de dar a resposta educada que a maioria das pessoas sempre dava. Ele respondeu como sempre. — Ah, sabe como é. Não ando acertando muitas tacadas. A família de Edward era sócia de um clube de golfe, por isso ele com freqüência usava esse termo para dizer que não estava lá muito animado. Eu tinha começado a pensar em dizer a ele que a depressão talvez fosse a melhor tacada que ele podia dar. Mas não disse nada. Respondi da maneira simpática e carinhosa de sempre. — Sinto muito, Edward. Qual é o problema? — Nem sei por onde começar. Abafei um gemido; aqueles microfones capturavam tudinho. — Está tendo problemas no trabalho? O seu pai está dificultando as coisas de novo? — E qual é a novidade? — respondeu Edward, soturno. — Ele me ignora, nunca ouve os meus conselhos. Ah, Penelope, ele me trata como lixo! Ontem, deu a maior bronca porque não terminei um relatório idiota. Mas o que eu podia fazer? Já eram cinco horas e eu precisava ir embora.
— Por que você precisava ir embora? — perguntei. — Porque eram cinco horas! Já havia trabalhado as minhas oito horas. — Claro que sim. Você não quer se transformar em algum tipo de viciado em trabalho. — E você lembra que, da última vez, eu falei de um idiotinha maltrapilho que ele contratou? O estrangeiro com sotaque? Bom, promoveu o idiota! Para um cargo acima do meu! Tentei parecer solidária. — Ah, que coisa. Ele disse por quê? — Ah, falou uma bobajada sobre produtividade. Ele age como se o único motivo para me deixar trabalhar lá é por eu ser filho dele. E deve ser mesmo, pensei. — Como estão as coisas em casa, Edward? — Ah, lá também me tratam de uma maneira péssima. Minha mãe vive me enchendo para eu arrumar o meu quarto. Como se a gente não tivesse empregados! E, ontem, ela me deu bronca porque saí do trabalho e fui para casa no meio da tarde para tirar um cochilo. Disse que o meu pai não deixa outros funcionários tirarem cochilos. Bom, e daí? De que adianta ser um Vanderman se você não pode ter alguns privilégios? Mas ela sempre fica do lado do meu pai. Os dois vivem pegando no meu pé. As chorumelas dele estavam começando a me dar nos nervos, mas eu mantive a calma. — Tenho certeza de que eles só querem o melhor para você, Edward. — Rá! — ele soltou, cheio de amargura. — Eu nunca sou bom o suficiente para eles. Penelope, você não faz idéia do que é ser filho único. Nem me dei ao trabalho de lembrá-lo de que eu também era filha única. — Quem sabe você não devesse pensar em sair de casa, ir morar sozinho? — Eu poderia... — disse ele lentamente. — Se encontrasse alguém para morar comigo. Na verdade, ando pensando muito nisso ultimamente. Os meus pais disseram que comprariam uma casa para mim se eu me acertasse com uma menina bacana de uma boa família. Acho que eles querem netos. — Suspirou. — Típico. Só pensam em si mesmos. Engoli e respirei fundo. — Você... você conhece alguém assim, Edward? Alguém com quem queira se casar e se acertar?
__Na verdade, eu queria falar com você sobre este assunto. — Ah, é mesmo? — E não porque você é uma Wilhern. Claro, o fato de o seu sangue ser tão azul quanto o nosso deixaria os meus pais muito felizes. Mas é muito mais do que isso. Ah, Penelope... Você é a única amiga, a única pessoa que se preocupa comigo, a única que me escuta. Penelope... Acho que estou me apaixonando por você. Dava para sentir minha mãe e Wanda bafejando no meu pescoço. — Você compreende os meus sentimentos, vê além do meu nome, do meu dinheiro, do meu visual. Você sabe que eu sou mais do que um aristocrata rico e bonito. E eu sei que você deve ser mais do que a sua maldição. Você tem sensibilidade para quem eu sou de verdade, para permitir que eu mostre como sou sensível. Deixe-me conhecê-la, Penelope... A verdadeira você. Deixe-me enxergar além de sua maldição. Ainda não — sibilou Wanda no meu ouvido. Mas eu não tinha assim tanta certeza. A voz de Edward de fato tinha me comovido... O tom parecia mesmo de súplica. — Tenho a sensação, Penelope, de que você é a mulher certa para mim. Não, não, não é isso, é mais, muito mais do que uma simples sensação. Eu sei que você é a mulher certa para mim, e que é a única. Você nunca fica reclamando, como minha mãe. Você não se importaria se eu tirasse cochilos. Você me aceita exatamente como eu sou. Ele chegou mais perto da vitrine. — Penelope, será que existe alguma possibilidade de você se sentir da mesma maneira em relação a mim? — E... possível — respondi com cuidado. Senti o ímpeto repentino de colocar a mão no meu focinho para ver se estava crescendo. — Penelope, por favor. Estou implorando. Venha até mim. Saia de trás deste espelho. Ele parecia tão patético, parado ali na minha frente... Era um nada tão grande, um nerd chato sem personalidade, um pirralho mimado que vivia choramingando. Um pirralho mimado que podia desfazer a minha maldição. Eu fiz um movimento rápido, para que nem minha mãe nem Wanda pudessem me deter, para que eu mesma não pudesse me deter se pensasse melhor. Consegui chegar à porta antes mesmo que elas tivessem a oportunidade de gritar ou de reagir. — Edward... Ele se virou para mim. E lá estava... aquela cara. — Aimeudeus.
— Edward? — Dei um passo na direção dele. — Sou eu, Penelope. Ele deu um passo atrás. — Não. — Sou sim. — Nãããããããão! — ele uivou. Deu mais um passo para trás. — Não se aproxime! Fique longe! Não chegue perto de mim! — Olhou ao redor, histérico. — Alguém me ajude! Socorro! — Edward, pare com isso. Eu não vou machucar você — eu disse, mas, sem pensar, dei mais um passo na direção dele enquanto falava. Edward perdeu as estribeiras. Ainda fiquei escutando o eco dos berros dele muito tempo depois de ele deixar a sala.
Capítulo Seis
— Como vai, Lemon? — Nada mal — respondeu o repórter. Enquanto o único olho bom que ele tinha se ajustava à forte iluminação fluorescente da delegacia de polícia, brincava com o tapaolho que cobria o outro. Houve um tempo em que ele esperou que a perda desastrosa do olho levasse a algum apelido bacana de pirata: Capitão Gancho, Jack Sparrow, algo assim. Mas não aconteceria. Depois de 25 anos, ele já aceitara o fato de que sempre seria conhecido por seu sobrenome, o nome que herdara da família: Lemon. Como um carro usado que se revelasse inútil. Lemon, sinônimo de fracassado. O que fazia sentido, já que, depois de um quarto de século, continuava sendo um repórter zéninguém, batendo na mesma velha tecla. — Tem alguma novidade, Al? — perguntou ao sargento da recepção. — Nada demais. Um engavetamento de quatro carros na rodovia. Uma invasão na rua 84. Uma discussão atrás do Madison. Lemon se empertigou todo. O Madison era um hotel bem refinado. — Alguma celebridade envolvida? — Que nada. A porta da delegacia se abriu de supetão e um homem agitadíssimo irrompeu no recinto. — Socorro! Preciso de ajuda! — Olhou por cima do ombro, apavorado. — Ela está atrás de mim? — Há algo de errado, senhor? — perguntou o sargento. — Fui atacado! — Sim, senhor. Quem o atacou? — Não quem, o quê!Uma criatura, uma monstra! Vocês precisam ir atrás dela, detêla, prendê-la! Alguns policiais deram risadinhas abafadas e o policial atrás do balcão da recepção revirou os olhos. — Sim, senhor, um monstro o atacou, e isto é mesmo um horror. Ei, Joe, tem lugar na gaiola para ele descansar até passar? — Não estou bêbado! — declarou o homem, indignado.
— Acalme-se então, senhor. — Você sabe quem eu sou? — Não senhor, creio que não sei. Mas Lemon sabia. De repente, reconheceu o rosto das colunas sociais de seu jornal. — Você é o filho do Vanderman, não é? — Sou Edward Vanderman Junior, sim. E estou dizendo que uma monstra me atacou. O sargento soltou um lamento, mas pegou uma ficha e anotou o nome da vítima. — Será que dá para ser mais específico, sr. Vanderman? Que tipo de monstro era? — Não ouviu o que eu disse? — exclamou Edward. Não era um monstro, era uma monstra. — Ah, um monstro mulher. Quatro braços, oito pernas? Edward sacudiu a cabeça com vigor. — Não, não... — Cabeça de dragão? — Não, de dragão, não. De porco. — Ah, sei, acho que eu a conheço — disse um dos policiais — Parece a mocréia que o meu cunhado me apresentou na semana passada. O pessoal caiu na gargalhada, mas Lemon não se juntou a eles. Aquele não era apenas o filho de um magnata tendo um ataque de nervos. Ele pressentia que havia uma história maior por trás daquilo. Edward se jogou por cima do balcão do sargento. — Não permita que riam da minha cara! Eu sei o que eu vi! Unha cara de porco. Com presas! — Tudo bem, camarada, acalme-se. Respire fundo. — Pelo canto da boca, o sargento balbuciou: — Tragam algemas. Lemon deu um passo à frente. — Não vai ser necessário, Al. Ele está comigo. — Enlaçou o braço no de Vanderman. — Venha comigo, Edward. Quero saber tudo sobre essa moça-monstra.
Capítulo Sete
A histeria total e completa tinha tomado conta do lar dos Wilhern. Minha mãe se esvaía em lágrimas e berrava a plenos pulmões enquanto meu pai tentava confortá-la. Wanda berrava com Jake. — Como assim, você não conseguiu detê-lo? Jake, com seus modos perfeitos de mordomo, permaneceu calmo. — Sinto muitíssimo, madame, mas eu não esperava que ele tivesse uma reação tão exacerbada. E ele se movimentava com velocidade extraordinária. Corri o mais rápido que pude, mas quando alcancei os portões de entrada, ele já havia desaparecido. — Posso ligar para a polícia — propôs meu pai. — Assim, poderão divulgar um boletim de busca. — Franklin, ele não cometeu um crime! — minha mãe deu um grito histérico. — Não se pode mandar prender alguém que não assinou um termo de sigilo! — Ela andava de um lado para o outro na sala. — Estamos arruinados, arruinados! — Amanhã, todo mundo na cidade vai saber de tudo.Vamos ter que trocar de nome, que mudar para longe, para muito longe. — Parou para olhar com ódio para mim — E você, Penelope, por que, por que, por que foi se revelar daquela maneira? Foi prematuro demais! — Mãe, o que mais eu podia fazer? Ele estava implorando para me ver. — Você poderia ter enrolado. — Por quanto tempo? Ele já estava dizendo que me amava. Alguma hora, ele ia ter que me ver. Acho que enrolar não teria feito a menor diferença. — Bom, agora a gente nunca vai saber, não é mesmo? — Minha mãe soltava fumaça pelas ventas. — Acho que devemos aumentar o seu dote. Talvez, assim, Edward se sinta tentado a voltar. — Jessica, os Vanderman são ricos — observou meu pai. — Da mesma forma que todas as pessoas como nós. Um dote maior não os influenciaria. Eu não conseguia agüentar mais nem um segundo daquela loucura. — Se vocês me dão licença, vou para o solário — anunciei, e ninguém tentou me deter.
Mas não encontrei conforto no solário. Até minhas plantas pareciam tristes e desesperançadas. O sol estava se pondo, então acendi as luzes de sol falso. Infelizmente, assim pude vislumbrar o meu reflexo nas sombras sobre o vidro. Se existia algo mais feio do que uma menina-porca, era uma menina-porca chorando. Uma lembrança terrível me veio à mente. Eu não devia ter mais de seis ou sete anos e tinha entrado em um quarto de hóspedes por alguma razão. Da janela, avistei algo que nunca antes. Devia ser um pátio de escola: eu enxergava crianças brincando, correndo de um lado para o outro, jogando bola. Foi a primeira vez que vi crianças de verdade, da minha idade. Durante um tempo, só fiquei observando, maravilhada vidrada. De vez em quando, o eco de uma risada ou de um gritinho chegava aos meus ouvidos. Eu nunca tinha ficado com outras crianças, e quis brincar com elas. Corri para fora do quarto e desci a escada dos fundos da casa. Eu nem estava tentando me esconder, mas ninguém me viu quando corri por uma ala de quartos e saí por uma porta. Seguindo o som das vozes, dei a volta na casa. A mansão era rodeada de portões e cercas vivas, mas consegui determinar o lugar exato onde, a apenas alguns metros de distância e bloqueadas da minha visão, as crianças brincavam. Claro que não pude chegar até elas, nem mesmo enxergá-las através das barreiras. Mas então, milagre dos milagres, uma bola veio voando por cima do portão. Ouvi as crianças gritando e fiquei me perguntando se devia gritar resposta. Nem precisei. Parece que algumas delas eram boas em escalada. Duas cabeças apareceram por cima da cerca viva. — Ei, menina, você pode jogar a nossa bola de volta? — disse uma delas. Eu ergui a cabeça. Os gritos das duas crianças fizeram com que as outras subissem no portão para olhar para mim. Metade berrava, a outra metade ria. Os gritos atraíram minha mãe e Jake. Antes que eu me desse conta, já estava sendo recolhida por minha mãe enquanto Jake enxotava as crianças. Nunca soube se a bola delas foi devolvida. Naquele dia, eu chorei. — Por que eles riram de mim, mamãe? — perguntei. — Por que eles têm medo de mim? Foi o meu rosto? — Não é o seu rosto — minha mãe repetia sem parar. — É a maldição. Um dia, você vai ter o seu rosto verdadeiro e ninguém vai gritar quando a vir. Mas acabei por chegar à adolescência, e continuava sem o meu rosto verdadeiro, e foi aí que comecei a chorar praticamente o tempo todo.
Capítulo Oito
Livros. Eu tinha muitos livros. Eram os meus melhores amigos e os meus piores inimigos. Até eu chegar aos 12 ou 13 anos, ler era um prazer. Passei de contos de fada para fantasias, histórias com dragões e trolls, mitos, ficção científica, mundos alienígenas. Era tudo de mentirinha, o que me caía muito bem. Era melhor do que ter que confiar na minha própria imaginação o tempo todo para me divertir. Mas então descobri livros que tinham a ver com a vida real. Biografias, livros de viagem, memórias e diários. Ficção também: romances que não incluíam magia nem batalhas espaciais intergalácticas, mas que se passavam no mundo real, com personagens da minha idade que faziam coisas, que iam à escola e praticavam esportes, que tinham amigos, que se apaixonavam. Foi quando percebi tudo que estava perdendo. E foi quando fiquei brava de verdade. Se uma adolescente típica era capaz de achar que a vida era injusta porque tinha os peitos pequenos, imagine só como eu me sentia. Eu queria ir a shoppings, a festas, queria fazer testes para ser líder de torcida. Mas só podia ler a respeito da vida. Eu não podia viver. Tentei passatempos. Experimentei pintura, cerâmica, tricô. Tive aula de piano (um enorme golpe de sorte para os meus pais, que conseguiram arrumar uma professora de piano cega). Mas tive que fazer todas essas coisas sozinha e me entediei com elas. Eu jogava xadrez com o meu pai, algo de que realmente gostava, mas não o suficiente para jogar durante seis horas por dia. Eu não era nerd, pelo amor de Deus. Meu pai era antitelevisão, então eu não tinha assistido muito mesmo mas, quando cheguei aos 15 anos e reclamava demais de minha vida restrita, ele cedeu e colocou uma no meu quarto. Meu estado de espírito geral passou de mal a pior. As adolescentes da TV tinham tudo: eram bonitas, iam à praia, tinham casos de amor cheios de drama. Claro que, na época, eu não sabia que havia mais fantasia naquele mundo adolescente da TV do que nos meus contos de fada. Para mim, os programas de TV não eram só diversão; serviam para confirmar toda a injustiça do meu mundo e me davam ainda mais motivos para chorar. No final, acabei descobrindo os videogames, Nintendo e PlayStation, que me mantiveram interessada durante algum tempo. Daí vieram as salas de chat e os sites de
realidade virtual, onde eu podia me reinventar e ter algo que se assemelhasse de longe à comunicação com outras pessoas. Comecei a escrever poemas sombrios péssimos em uma imitação fraca de Sylvia Plath e me tornei especialista em fazer as unhas sozinha. E assim, de algum modo, consegui chegar aos 18 anos. Foi quando minha mãe contratou Wanda, de uma agência de encontros, para ajudá-la na tarefa a que finalmente podia se dedicar: encontrar o Príncipe Encantado, que se apaixonaria por mim tão profundamente que seria capaz de aceitar o meu rosto e se casar comigo para que a maldição fosse desfeita. Para meus pais, não devia ser fácil conviver comigo. Não era fácil para nenhum de nós, vivendo em um conto de fadas sem final feliz à vista, sendo que lá fora havia, em algum lugar, um mundo de verdade em que não podíamos tocar. E aqui estava eu agora, aos 25 anos: as pessoas continuavam fugindo de mim e eu continuava chorando. Pare já com isso, ordenei a mim mesma. Não vale a pena chorar por Edward Vanderman. Você nem gostava dele! Mas talvez fosse por isso que eu estava chorando. Porque havia outro fato terrível que não podia ser negado: se uma criatura tão ridícula quanto Edward Vanderman, que estava desesperado para se casar, fugiu de mim apavorado... quem não fugiria? Fiquei imaginando se talvez não seria melhor desistir de tudo agora mesmo e... fazer o quê? Cometer suicídio? Não, isto deixaria o coitado do meu pai desconsolado e ele ficaria arrasado de tanta culpa. Além do mais, eu não queria morrer. Eu queria viver. Não deste jeito, escondida, completamente sozinha. Eu queria viver como as pessoas de verdade, como as pessoas normais. As pessoas a respeito de quem eu lia, os personagens que eu via na TV.. Tudo bem, talvez não eles, já que eu realmente não estava interessada em jogar vôlei de praia ou desenvolver um distúrbio alimentar. Eu só queria sair. — Penelope, minha filha. Enxuguei os olhos rápido, antes que meu pai pudesse ver as lágrimas. — Oi, pai. — Sinto muito, muito mesmo. — Não é sua culpa o Edward Vanderman ter fugido — eu disse. — Você não é o responsável. — Não, você sabe do que eu estou falando, querida. No fundo, a culpa é toda minha. Foi a minha família que fez você ter este... este problema. Voltei-me para o meu reflexo e coloquei a mão por cima do meu "problema". Engraçado, eu quase parecia humana. Então, captei um vislumbre do rosto do meu pai
atrás de mim. Ele estava tão magoado quanto eu, e fiquei ainda mais triste por causa dele do que por minha causa. Fui até onde ele estava e lhe dei um beijo no rosto. — Vai ficar tudo bem, pai — eu disse, tentando soar como se de fato acreditasse nisto. Então minha mãe e Wanda entraram correndo no solário, com Jake a reboque. As mulheres estavam berrando a respeito de alguma nova idéia brilhante e, em nome do meu pai, eu fingi interesse. — Não acredito que não pensei nisto antes! — exclamou minha mãe. — Qual é a sua idéia? — perguntei. Wanda voltou-se para o meu pai. — Esta maldição... não havia menção a respeito de nacionalidade, havia? Ele olhou para ela sem entender nada. — Hein? — O Príncipe Encantado, o homem que vai desfazer o feitiço. Eu sei que ele tem que ser da mesma classe que vocês mas isso simplesmente significa sangue azul, certo? Ele não precisa ser daqui, precisa? O cenho do meu pai se franziu. — Não, acho que não. Por quê? Minha mãe tomou a palavra. — Porque, durante todo este tempo, ficamos tentando achar um aristocrata entre o nosso próprio círculo! Por que não arrumar um estrangeiro? — Um aristocrata estrangeiro? — perguntou ele. — Por que ele seria diferente de um aristocrata americano? — Outras nacionalidades têm padrões diferentes de beleza — afirmou Wanda. — Ouvi falar de uma tribo na América do Sul em que quanto mais gorda a mulher é, mais é considerada bonita. — Penelope não é gorda! — declarou minha mãe, indignada. — É só um exemplo — disse Wanda. — Só estou dizendo que a beleza está nos olhos de quem vê, e algumas nacionalidades enxergam as pessoas de maneira diferente de outras. — Existe alguma nacionalidade que aprecia cara de porco? — perguntei, cheia de dúvida. — Não é disso que estou falando — respondeu Wanda, ríspida. — Só estou dizendo que precisamos ampliar nossos critérios de busca.
E também tem mais uma coisa — declarou minha mãe, ansiosa. — A Europa está cheia de aristocratas decadentes. Pessoas com títulos e castelos, mas sem dinheiro. Um dote de vulto poderia ser muito atraente para eles. — Ah, nossa. Isso significa que teremos de nos mudar para a Europa? — meu pai perguntou. — Não será necessário — garantiu Wanda. — Nunca ouviu falar de eurolixo? A cidade está cheia de europeus expatriados! Eles vêm para cá devido a empregos temporários mas depois resolvem ficar. Minha mãe deu prosseguimento à narrativa. — Mas não podem, porque precisam de passaportes ou de vistos, ou de green cards, ou algo assim. Wanda concluiu o raciocínio. — E qual é a maneira mais fácil de obter residência permanente? Casamento! Minha mãe esfregou as mãos, radiante. — Precisamos começar a trabalhar no nosso banco de dados. Existe um mundo inteiro de Príncipes Encantados estrangeiros por aí, e precisamos identificá-los. Venha conosco, Franklin. Precisamos de toda a ajuda possível e não temos tempo a perder! Lançando um último olhar de desculpas na minha direção, ele foi atrás delas. Só Jake não saiu. — Gostaria de tomar o seu chá aqui, srta. Penelope? — Tá, tudo bem, obrigada, Jake. Jake! Espere. — Pois não, senhorita? Olhei pensativa para o mordomo. — O que você achou daquela idéia? — Não estou em posição de dar opinião a respeito do assunto, srta. Penelope. Suspirei. — Bom, quer saber o que eu penso? Acho que não vai fazer a menor diferença o lugar de onde os sujeitos vêm. Vão continuar fugindo. Só que vão sair gritando em francês, em espanhol ou em italiano. Posso jurar que vi um lampejo de solidariedade por trás daqueles olhos reservados. Mas a única coisa que ele disse foi: — Eu não tenho como saber, senhorita. Cruzei os braços. — Eu vou cooperar, Jake. Vou conhecer os aristocratas
decadentes. Mas, Jake, por favor, fale comigo antes de marcar qualquer reunião. Eu quero organizar os encontros. — Como desejar, senhorita — ele respondeu e deixou o solário. Como eu desejar. Até parece.
Capítulo Nove
— E isto que eu não entendo, Edward — disse Lemon quando se sentaram no bar. Só havia algumas poucas pessoas no lugar e a TV estava ligada bem alto no noticiário local. Podiam conversar sem ninguém ouvir nem interromper. — Você estava ciente da maldição. Por que ficou tão chocado quando viu Penelope? — Quando soube que ela era uma moça-porca, achei que queria dizer que era meio cheinha — respondeu Edward. — Isso eu poderia engolir. Mas, vou dizer, ela é uma monstra! — Olhou para Lemon com curiosidade. — Como é que você acreditou em mim e os policiais não? — Está vendo este tapa-olho? — perguntou Lemon. — Ele indica a falta de um olho. Perdi o olho quando estava atrás de um boato a respeito de um bebê com cara de porco. Já estava na hora de eu receber algo em troca. Isso sem falar em me vingar daquela... daquela... — Ele teve um calafrio, incapaz de proferir a palavra. — Daquela moça-porca monstra? — Não. Da mãe dela. Ainda tenho pesadelos com aquela mulher me atacando com aquela concha de sopa. Tentaram fazer com que eu acreditasse que o bebê estava morto, mas eu sabia que era blefe. Faz 25 anos que espero para obter alguma prova da existência de Penelope. — Bom, estou dizendo agora mesmo que ela existe — declarou Edward. Então, de repente, o rosto dele ficou de um branco leitoso. Olhou para a tela da TV. — Mas que diabo... Lemon se virou para ver o que tinha chamado a atenção de Edward. Era o rosto do próprio Edward. Na televisão. — Fui atacado! Faça alguma coisa! Tem uma monstra à solta! A câmera passou para o rosto de um repórter em um estúdio de telejornal. — Este foi Edward Vanderman Junior, filho de Edward Vanderman, presidente das Indústrias Vanderman, que parece ter sofrido um ataque de nervos hoje. Mais detalhes no jornal das seis horas. Edward enterrou o rosto nas mãos.
— Aimeudeus, aimeudeus. De onde saiu isso? — Câmeras de segurança — disse Lemon. — Todas as delegacias são equipadas com elas. O celular de Edward tocou. Ele ficou olhando para ele cheio de medo, então atendeu. — Alô? É, pai. Eu sei, pai. Claro que não, pai! Vou voltar para o escritório agora. É mesmo? — Ele engoliu em seco, colocou a mão sobre o bocal do telefone e falou com Lemon. — O meu pai disse que o prédio está cercado de repórteres. Querem detalhes a respeito do meu ataque de nervos. — Voltou a falar no telefone. — Então, vou para casa. O quê? Tudo bem, pai. Tudo bem, vou tomar alguma providência! Adeus. Desligou o telefone. — Cercaram a nossa casa também! A minha mãe vai ter um ataque de nervos de verdade. O que eu faço? Ele parecia tão patético e indefeso que Lemon ficou com pena. — Você vai me ajudar a expor a verdade a respeito de Penelope. Vou até dar crédito para você na reportagem. Daí todo mundo vai saber que você estava dizendo a verdade, que não estava tendo alucinações nem algum ataque de nervos. Edward absorveu isso e se acalmou. — Muito bem. Tá legal, isto pode dar certo, pode salvar a minha reputação. Sou sua testemunha, eu a vi de fato. E espere só até o meu pai ficar sabendo o que eu descobri a respeito dos Wilhern. Pode ser que, assim, eu consiga impressioná-lo pelo menos uma vez na vida. — Preciso de mais do que uma testemunha para a reportagem, Edward — Lemon disse. — Preciso de uma foto. Edward ficou absolutamente imóvel. — Uma foto? — Uma imagem de Penelope. Uma prova verdadeira e tangível que possa publicar na minha reportagem. Você acha que consegue entrar de novo na mansão do Wilhern? Edward ficou tão pálido que Lemon achou que ele desmaiaria ali mesmo no bar. Você não está falando a sério — choramingou. — Quer que eu tire uma foto dela? De jeito nenhum que eu vou voltar àquela casa — A voz dele se elevava. — Nunca mais quero ver aquele rosto. Não vou conseguir! Não vou conseguir! Caramba, mas que imbecil. Lemon mal conseguiu se segurar Para não dar um tapa nele.
— Acalme-se, acalme-se. — Aquele cara era um covarde e tanto, mas era a única conexão de Lemon. — Vamos arrumar outra pessoa para ir lá se encontrar com ela. Meu jornal pode pagar, talvez uns cinco mil. — Você vai precisar de mais do que dinheiro para encontrar alguém que a agência de encontros aprove - disse Edward. —Não se esqueça de que qualquer homem que deseje se encontrar com ela tem que ser aristocrata, com sangue azul de verdade. Não conheço ninguém de sangue azul que esteja desesperado por dinheiro. Ele tinha razão. Lemon refletiu sobre o dilema. Então, lembrou-se de uma coisa: uma notinha que tinha saído recentemente na coluna de fofocas de seu jornal. Sorriu. — Espere um pouco. Acho que eu conheço.
Capítulo Dez
Penelope Paralela: Uma Fantasia da Vida Real por Penelope Wilhern
Quando Jessica Wilhern estava dando à luz seu bebê, ela e o marido, Franklin Wilhern, estavam um pouco nervosos. Dizia a lenda que uma maldição tinha sido lançada por uma bruxa sobre a família Wilhern 150 anos antes, quando Ralph Wilhern se recusara a casar com a filha da bruxa e a moça cometeu suicídio. A bruxa declarou que a próxima menina nascida na família Wilhern teria cara de porco. Jessica de fato deu à luz uma menina. Mas, como aquela história toda de maldição não passava de bobagem e como coisas como bruxas não existiam mesmo, a criança era absolutamente perfeita e não trazia semelhança alguma com um Porco. E ela recebeu o nome de Penelope. A família encheu-se de alegria. A pequena Penelope mostrou-se adorável desde o dia que nasceu, e nunca deu aos pais um momento de preocupação. Os Wilhern, uma família abastada e de destaque na sociedade, proporcionaram à menina uma vida privilegiada. Estudou em escolas particulares teve festas de aniversário extravagantes e, sempre que saía de férias, viajava com os pais a lugares exóticos como o Egito a Índia e a China, onde conheceu pessoas fascinantes e viveu experiências emocionantes. A mãe e o pai gostavam de exibi-la às pessoas porque se orgulhavam muito dela. A medida que crescia, ela ia ficando cada vez mais bonita e aos 16 anos era lindíssima. Também era muito simpática e muito inteligente, e transformou-se na menina mais popular do Ensino Médio. Era a líder das animadoras de torcida, jogava no time de basquete, representou Julieta na produção da escola para Romeu e... No último ano de escola, foi eleita presidente do corpo estudantil e rainha do baile de formatura. Tinha 15 grandes amigas, centenas de amigos e um namorado diferente a cada mês. Seu passatempo era patinação artística e ela só patinava para se divertir, mas era tão boa que foi convidada a integrar a equipe olímpica, sua performance foi impecável e ela conquistou a medalha de ouro.
Debutou em um baile grandioso e todos os jornais disseram que ela era a debutante do ano. Sua foto apareceu em todas as revistas e ela ganhou notoriedade por seu porte, seu charme e, é claro, sua beleza. Obviamente, os melhores homens do mundo queriam se casar com ela. Homens famosos, homens brilhantes, homens tão bonitos que a deixavam sem fôlego imploravam para sair com ela. Ela saía com eles e às vezes permitia que a beijassem, e todos pediam sua mão em casamento. Mas ela sempre dizia não, muito obrigada. Penelope estava esperando por alguém muito, mas muito especial. Alguém que não fosse apenas bonito, que não fosse apenas inteligente, rico e famoso. Tinha que ser especial de um jeito especial. Um dia, alguém bateu a sua porta. Lá estava um homem, não era um homem qualquer. Havia alguma coisa muito especial nele. Ele tinha orelhas de coelho. Duas enormes orelhas de coelho cor-de-rosa em vez de orelhas normais. Penelope riu dele e fez graça, e algumas pessoas tinham medo dele porque ele tinha uma aparência tão diferente. Mas Penelope era mais esperta do que a maioria das pessoas. Ela conseguiu enxergar no fundo da alma do homem-coelho e percebeu que ele era o homem perfeito para ela. O homem-coelho pediu a mão dela em casamento e Penelope disse sim. Todas as amigas acharam que estava louca, porque poderia ficar com qualquer homem do mundo. Mas Penelope queria o homem-coelho porque sabia que ele era o melhor homem do mundo. O casamento foi grandioso e maravilhoso. E, quando foram declarados marido e mulher, ela o beijou, e uma coisa surpreendente aconteceu. Ele se transformou no Príncipe Encantado. Ele contou a ela que uma bruxa má tinha lançado um feitiço contra ele, e que só poderia ser desfeito quando uma moça se apaixonasse por ele como era. O Príncipe Encantado levou Penelope para o seu castelo dourado. Tiveram muitos filhos e o maior jardim do universo. gora, você provavelmente deve estar pensando que a próxima frase será "e viveram felizes para sempre". Mas este não é o fim da história. Porque Penelope fez uma descoberta fantástica. Havia muitas meninas no mundo que não eram tão lindas quanto ela, e algumas eram mesmo feias. Ela conheceu moças com orelhas de burro e com boca de peixe e com olhos de sapo, e até mesmo moças que tinham um focinho de porco no lugar do nariz.
Penelope queria ajudar essas pobres meninas que não tinham tanta sorte. Então, resolveu tornar-se médica e dedicar sua vida a consertar meninas com partes de animais. Todas as meninas feias ficaram bonitas, todas acharam namorados bonitos e todo mundo viveu feliz para sempre.
Fim
Tudo bem, eu só tinha dez anos quando escrevi isto. Mas pelo menos serve para provar que eu não era uma pessoa egoísta.
Capítulo Onze
— Já ouviu falar de Max Campion? — perguntou Lemon ao entrarem no bar Cloverdilly. — Os Campion dos imóveis? Conheço o nome. Max Campion. Não, nunca fui apresentado. — Nunca fui apresentado ao sujeito, mas já ouvi muito falar dele — disse Lemon. — O pai dele era Clarence Campion, o magnata dos imóveis. Morreu há uns anos e deixou a fortuna para Max. E Max torrou tudo no jogo. — E você acha que ele vai poder nos ajudar? — O cara tem tudo — disse Lemon a ele. — Registro social, família antiga, toda essa bobajada. Mas está completamente falido. Segundo boatos, anda passando cheques sem fundo. Meu contato diz que podemos encontrá-lo no Cloverdilly. Ele é cliente assíduo do salão de jogo dos fundos. O Cloverdilly estava começando a encher com a turma de fim de expediente. Atrás do bar, o barman colocava copos de chope na frente dos clientes e a jukebox tocava alto canções antigas de rhythm & blues. Lemon, com Edward ao lado, atravessou o salão até uma porta que levava a outro, menor. Um homem com ar truculento saltou de uma banqueta e os deteve. — Que que cês querem? — Estamos procurando Max Campion — disse Lemon Os olhos do homem se estreitaram. — Por quê? — Tenho uma propostazinha para fazer a ele. O segurança, ou sabe lá o que ele era, examinou-os de cima a baixo, e deve ter chegado à conclusão de que não pareciam ser policiais nem gângsteres. Fez um movimento com o queixo na direção de uma mesa, onde um fulano corpulento, uma senhora com cabelo azulado, um velho e um mais jovem jogavam cartas. — É ele. O sujeito mais jovem com cabelo desgrenhado estava se levantando.
— Estou fora — balbuciou e jogou as cartas em cima da mesa. Com as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta de couro surrada e a cabeça abaixada, passou por Lemon e Edward. Os dois o seguiram através do bar e até a rua. — Ei, Campion — chamou Lemon. O cara não parou. — Vamos lá, camarada, espere aí! O rapaz olhou por cima do ombro. — O que você quer? — Olhe, Campion, tenho uma proposta a fazer a você. Campion desdenhou. — Está falando com o cara errado. — Você não ouviu a proposta — disse Lemon. — Está interessado em ganhar cinco mil bem fácil? Campion parou literalmente. Agora que Lemon pôde dar uma boa olhada nele, percebeu que o sujeito era mais jovem ele achava que seria. Mas parecia exausto, como alguém que passara a noite toda jogando. Muitas noites. E só perdera. Lançou um sorriso cansado e torto para eles. — Quem eu preciso matar? — Não é nada desse tipo, cara, Você só precisa fingir interesse em Penelope Wilhern, tirar uma foto dela e dar para mim. — Não tenho câmera fotográfica. — Eu empresto uma câmera. — Por que você não contrata um paparazzo? — Porque o paparazzo não iria conseguir entrar na casa dos Wilhern — Edward disse a ele. — Os únicos homens que podem se encontrar com Penelope são pessoas como nós. Não como ele. — Apontou para Lemon. — Como você e eu. — Você e eu — repetiu Campion. — O que nós temos em comum? — Eu sou um Vanderman. Você é um Campion. — E daí? — Somos aristocratas. Campion começou a rir. — Ah, é? Bom, devo ser o primeiro e único aristocrata que está completamente duro. — Exatamente! — disse Lemon. — É por isso que achamos que você aceitaria o trabalho. Você tem as credenciais necessárias e precisa de dinheiro. Campion refletiu sobre a questão. — E quem é essa tal Penelope Wilhern? Outra aristocrata?
— Você nunca ouviu falar da menina-porca? — perguntou Edward. — As pessoas dizem que ela é um mito, mas estou dizendo, ela é de verdade mesmo. E vou avisar, ela pode ser perigosa. Esteja preparado. Os lábios de Campion se repuxaram. — Acho que eu consigo me virar com uma garota. Mesmo que seja uma meninaporca. — Excelente! — declarou Lemon, todo alegre. — Vamos conversar.
Capítulo Doze
— Estou gostando da cara deste aqui — disse minha mãe. — Dietrich von Strudelhoffer. Dê uma olhada na foto dele, Penelope. Dou uma olhadela rápida no gostosão muito loiro de peito nu na foto. — Sei lá. Acho que parece bacana. Tem cara de quem faz musculação. — Ele é o barão Dietrich von Strudelhoffer — observou Wanda. — É um título muito antigo, da Idade Média ou algo assim. Você seria baronesa, Penelope. Também tem um duque aqui em algum lugar. Estávamos acomodadas ao redor da mesa de jantar, repassando os homens com que eu me encontraria hoje. — Tem alguém da França? — perguntei. Wanda remexeu algumas pastas e abriu uma delas. — Henri de Villeneuve. Não tem título nenhum, mas o "de" significa que é aristocrata. Dei uma olhada na foto. — É meio velho. — Não tem nada na maldição a respeito da idade do se Príncipe Encantado. E ele tem um castelo, Penelope. Precisa de algumas reformas, mas... Minha mãe bateu palmas. — Aah, reformas a fazer! Que divertido! — Ficou olhando radiante para mim. — Você não adoraria decorar um castelo, querida? — Claro — respondi. — Adoraria. — Estou tão feliz de você estar indo nesta nova direção Penelope. Não está animada para conhecer tantos estrangeiros? — Totalmente — respondi. Minha mãe estava claramente satisfeita por eu não estar respondendo com o meu sarcasmo habitual, e não parecia nem um pouco surpresa com meu ânimo renovado. Wanda, no entanto, olhava para mim com uma desconfiança óbvia. Na verdade, eu estava mesmo um pouco animada, ou talvez fosse só nervosismo. Eu nunca tinha feito nada parecido com isso. Estava determinada a fazer com que nada desse errado hoje. — Vou dar uma olhada no seu pai, querida. E você devia se preparar. A que horas chega o seu primeiro visitante? — Às dez — respondi. — Pierre, acho. Ou talvez seja Enrique. Não lembro.
— Ainda não entendi por que você insistiu em marcar tudo pessoalmente — minha mãe disse. — Wanda ganha para fazer isso. Dei de ombros. — Eu simplesmente queria me envolver mais na coisa toda. Minha mãe ficou tão feliz por ouvir isso que eu quase me senti culpada. — Catorze entrevistas! Vai ser um dia muito longo para você, Penelope. — Eu consigo — respondi. Minha mãe saiu da sala e Wanda olhou para mim como quem não estava entendendo nada. Senti que ela estava a ponto de me interrogar a respeito do interesse repentino que eu demonstrara, mas aí o telefone dela tocou. — Sim, aqui é Wanda. — Ela franziu a testa. — Não, hoje só vamos receber estrangeiros. E já temos 14 entrevistas marcadas. — A testa ficou ainda mais franzida. — A agência acaba de saber de um americano que deseja ser recebido hoje. Você consegue encaixá-lo? Sei que já está com a agenda cheia. — Claro — eu disse. — Ele pode vir às dez. — Achei que você tinha acabado de dizer que ia receber alguém às dez. — Eu quis dizer dez e meia. Os olhos dela se apertaram, mas retornou a sua ligação. — Certo, ele pode vir às dez. Qual é o nome dele? — Ela desligou o telefone. — É Maxwell Campion. — Tudo bem. — Você não quer anotar? — Vou me lembrar — respondi. Ela olhou para mim cheia de cautela. Wanda conseguia ser bem mais astuta em relação a mim do que a minha mãe, que só enxergava o que queria enxergar. Eu precisava acalmar as preocupações de Wanda a respeito do meu novo envolvimento. Como foi que você começou a trabalhar neste ramo, Wanda — perguntei. — Quer dizer, é um campo de trabalho interessante, promover encontros entre pessoas. Como é que se aprende a fazer isto? Wanda retrucou com outra pergunta. — O que é este seu interesse repentino? — perguntou — Eu trabalho aqui há sete anos e você nunca me fez nenhuma pergunta pessoal. — Só estou curiosa — disse, como quem não quer nada — Quem sabe, quando eu conseguir o meu rosto de verdade pode ser que eu queira seguir algum tipo de carreira.
— Não será promoção de encontros — disse Wanda com frieza. — É preciso ter jeito para a coisa. — Você quer dizer, como ser freira? — É. Você precisa ter uma crença muito forte mesmo. — Em quê? — perguntei. —No amor? No casamento? — É preciso acreditar que existe alguém para cada pessoa. Que cada pessoa no mundo tem uma alma gêmea com quem está destinada a ficar. — Eu não preciso de alma gêmea — afirmei. — Só de alguém que não fuja correndo ao me ver. — Você é o maior desafio que eu já enfrentei — admitiu Wanda. — Mas você está concentrada e decidida a conseguir, não é? — Estou tentando, Penelope — ela respondeu. — Só tem uma coisa que eu não entendo — observei. — Se eu tenho uma alma gêmea por aí, por que você fica tentando me empurrar para casar com qualquer um que possa desfazer a maldição? Ela sorriu, com um pouco de tristeza. — Só porque ele está por aí, Penelope, isso não quer dizer que você um dia o encontrará. Através da vitrine que dava para a sala de música, vi Jake, liguei o sistema de microfone. — Vou estar pronta às dez, Jake. — Muito bem, srta. Penelope. Então fui para o quarto, para trocar de roupa e pentear o cabelo. Minha mãe gostava que eu fizesse isso antes das entrevistas. Apesar do fato de eu não ser vista, ela achava que eu soaria mais atraente se estivesse o mais bonita possível. Hoje, pela primeira vez, não discutiria com ela. Quando voltei para a sala de jantar logo antes das dez, ela já estava lá com Wanda, dizendo a Jake que trouxesse alguns sanduíches na hora do almoço para que nós não precisássemos fazer intervalo nas entrevistas. Jake olhou para mim com as sobrancelhas erguidas. Eu só dei de ombros. — Está pronta, srta. Penelope? — Estou, Jake. — Ele saiu da sala de jantar. Um instante depois, entrou na sala de música e ficou parado ao lado da porta aberta. Entrou um homem de meia-idade, com ar elegante, cabelo grisalho e terno azul refinado.
Atrás de mim, minha mãe e Wanda estavam paradas, uma ao lado de cada um dos meus ombros. — Aah, ele é distinto — disse Jessica. — Não é muito alto, mas tem postura excelente. Este é o francês do castelo? — Não, acho que este é o banqueiro suíço. — Bom, acho que ele parece bacana — observou minha mãe. E — concordou Wanda. E, então, disse: — Ele também. Outro homem entrou na sala: o alemão alto e louro com corpo musculoso. Foi seguido por um moreno de bigode com uma roupa preta italiana; depois entrou um sujeito muito bronzeado, com a camisa aberta para revelar uma infinidade de correntes. — Penelope! — exclamou minha mãe. — Não estou entendendo. O que está acontecendo? Coloquei a mão por cima do microfone. — Vou entrevistar todos juntos, mãe. — Mas isto é ridículo, Penelope! Por que diabos você resolveu fazer isso? — Porque eu quero que acabe logo. Wanda jogou as mãos para o alto, desesperada, enquanto minha mãe soltava berros histéricos. — Franklin! Venha aqui agora mesmo e veja se faz a sua filha recuperar o juízo! Calmamente, voltei-me para a vitrine. A sala agora estava se enchendo e eu examinei a expressão dos candidatos. Alguns pareciam confiantes, até mesmo arrogantes, outros estavam obviamente pouco à vontade e alguns pareciam bem nervosos. Ouvi diversas línguas e imaginei se estavam falando sobre mim. E o que sabiam sobre mim. Não que fizesse diferença. A maioria deles provavelmente nem queria esposa; queria um green card. De acordo com as minhas instruções, Jake ofereceu bandejas de café e bagels. O evento estava tomando ares de brunch e resolvi que estava na hora de dar início ao show. Meu pai entrou na sala de jantar e minha mãe, desesperada, começou a explicar o que eu tinha feito. Coloquei o indicador sobre os lábios e ela revirou os olhos. Mas parou de falar quando liguei o microfone.
Eu estava prestes a começar a falar quando o retardatário chegou. Eu não sabia bem por que ele tinha chamado minha atenção: talvez porque, ao contrário dos outros, não parecia arrogante nem nervoso. Ele parecia... cansado. O cabelo desgrenhado estava precisando de um corte e ele estava todo amarrotado, daquele jeito de quando a gente acaba de acordar. Havia olheiras escuras e profundas. Ao passo que os outros estavam de terno, ele usava jeans. Pelo menos, tia um paletó com gravata com os jeans, mas o paletó era grande demais para ele e a gravata não combinava com a camisa. Os outros homens eram bem diferentes um do outro, mas todos estavam bem arrumados. Este cara parecia todo relaxado. Mas era fofo. Muito fofo. Tão fofo que eu não conseguia tirar os olhos dele. Ninguém mais prestava atenção nele enquanto se movimentava pela sala. Daí, fez outra coisa estranha: enquanto todos os outros permaneciam em pé, ele se sentou em uma poltrona confortável e fechou os olhos. Sem dúvida estava relaxado, pensei. Estava na hora de começar. Então, de repente, por alguma razão que eu não fui capaz de identificar, tomei uma nova decisão. Desliguei o microfone e me levantei. — Mudei de idéia — anunciei a meus pais e Wanda. — Graças a Deus — disse minha mãe, e Wanda também pareceu aliviada. — Vou entrar ali e marcar reuniões individuais com cada um deles — disse ela, e encaminhou-se para a porta. Mas eu fui mais rápida, rápida demais para que alguém pudesse me deter, e ignorei o grito de protesto da minha mãe quando atravessei a sala e abri a porta para a sala de música. — Bom dia, cavalheiros, eu sou Penelope. Fui recebida bem da maneira como eu esperava, com um silêncio sepulcral. Havia expressões para todos os gostos, de choque a pavor. O tempo de resposta variava mas, em segundos, a outra porta ficou entupida, enquanto todos tentavam sair ao mesmo tempo. Dei meia-volta e retornei para o lugar de onde tinha saído. Minha mãe soluçava com o rosto enterrado nas mãos. Meu pai, como sempre, dava tapinhas no ombro dela. Wanda segurava a cabeça, massageando as têmporas, como se estivesse com uma enorme dor de cabeça. — Por que, Penelope? — minha mãe resmungava. — por que, por que, por quê? — Como eu disse, mãe, queria acabar logo com tudo. Qual era o objetivo de ficar arrastando a questão? Todos iam fugir mesmo, mais cedo ou mais tarde.
Wanda olhava através da vitrine. — Tem alguém que não fugiu. Juntei-me a ela ali. Claro que o carinha fofo e desarrumado continuava na poltrona, e agora olhava ao redor de si com curiosidade. Enquanto eu observava, ele se levantou e começou a explorar a sala. Primeiro, pegou uma estatueta de porcelana, examinou-a e devolveu ao lugar. Em seguida, um cinzeiro chamou sua atenção brevemente, então olhou para uma tigelinha de balas de prata, revirou-a nas mãos e pousou-a novamente. Deslocou-se até a estante de livros rebuscada e checou o conteúdo das prateleiras. Pareceu escolher um livro ao acaso e eu fiquei curiosa, porque era um livro que eu reconheci pela capa. Ele o abriu e virou algumas páginas. Olhou à esquerda) à direita, então guardou o livro dentro do bolso interno do paletó. Liguei o microfone. — Você se interessa pela obra de George Rockham? Ele não pareceu se sobressaltar com o som da minha voz. Aliás, olhou diretamente para mim; bom, não exatamente para mim, mas foi assim que eu me senti. Fiquei arrepiada, apesar de saber que ele estava olhando para o espelho que era o outro lado da vitrine. — Arrá! — disse ele. — Então é isso. Um espelho falso. Igual aos usados nas salas de acareação da delegacia. — E você conhece bem a sala de acareação da delegacia? — perguntei. Ele fez a cortesia de parecer envergonhado. — Não. Até que provem o contrário. — Você não respondeu à minha pergunta. Gosta de George Rockham? — Quem é George Rockham? — O autor do livro que você acabou de roubar — eu disse. — Olhe, eu sei que é uma primeira edição autografada, mas não vale tanto assim. Você podia ter pegado algo bem melhor. Ele tirou o livro do bolso interno do paletó e colocou na mesa. — Então, este aqui não é valioso. — Não exatamente. Se você está em busca de alguma coisa que vale um monte de dinheiro, tem uma primeira edição de Moby Dick na terceira prateleira. — Moby Dick, hein? Mas este aqui — fez um gesto na direção do volume que pegara antes —, este aqui é o seu preferido. Fiquei estupefata.
— Como é que você sabia? Ele apenas sorriu. Olhei para a lista de candidatos de Wanda. Como o sujeito não tinha nenhum sotaque estrangeiro, arrisquei um chute sobre a identidade dele. — Você deve ser Max Campion. — Devo ser. Ele continuava sorrindo. Gostei do sorriso dele. Depois bocejou. — Está cansado? — perguntei. — É, mais ou menos. Fiquei acordado até tarde. — Então você gosta de cair na balada. — Ah, sim, claro — disse ele de maneira a deixar bem claro que não gostava. — Bom... talvez você precise ir para casa dormir um pouco. Ele assentiu. — Parece uma boa idéia. E então, por impulso, perguntei: — Quer voltar amanhã? Ele deixou a cabeça cair para um lado e olhou para mim (para o espelho), pensativo. — Tá. Tudo bem. Então, foi embora. Eu tinha me esquecido de que havia outras pessoas comigo na sala de jantar até que ouvi minha mãe sussurrar, maravilhada: — Aimeudeus. — Por que ele não fugiu? — perguntei a mim mesma em voz alta. — Deve ter me visto quando entrei na sala de música. Wanda, ele não me viu? — Não sei — respondeu Wanda, e também havia dúvida voz dela. — Imagino que tenha visto. A não ser que seja cego. Levantei-me e fui até a sala de música. O livro que ele tinha largado em cima da mesa continuava lá, e eu o peguei. Meu pai entrou na sala. — O que é isso aí? — perguntou. — O livro que aquele sujeito tirou da estante. A magia interior, de George Rockham. A história da princesa invisível. Você me deu de presente quando eu tinha 12 anos, está lembrado? — Lembro sim — ele disse. — Você adorava esse livro. Leu várias vezes.
— Eu sentia que poderia ser aquela princesa — respondi —, porque ninguém era capaz de enxergar o eu verdadeiro dela. Eu carregava este livro de um lado para o outro. — E quando o abri, vi a confirmação disso. Na minha caligrafia de 12 anos, eu tinha escrito: "Propriedade de Penelope Wilhern. Este é o meu livro preferido". Sacudi a cabeça, pesarosa. — Então, é por isso que ele sabia. — Mas, mesmo assim — disse meu pai, gesticulando para a estante. — Entre tantos livros, ele escolheu esse específico. Talvez seja um presságio. — Eu não acredito em presságios — eu disse. Mas, no fundo do meu estômago, ou em algum outro lugar dentro de mim, senti uma coisa. Uma arrepiozinho estranho, um calafrio, uma coisa totalmente desconhecida e, no entanto... Achei que talvez soubesse o que aquilo significava.
Capítulo Treze
Lemon parou a van na mesma vaga que usara no dia anterior. Virou-se e ficou de frente para Max. — Está pronto? A câmera está funcionando? — Estou, está. — Mostre para mim. Max ergueu o braço esquerdo. Nada aconteceu. — Está embaixo do seu braço direito — Lemon o lembrou. — Ah, sim. Ergueu o braço direito e mal deu para ouvir um barulhinho de click. Edward falou, nervoso: Tem certeza de que vai se lembrar disso? Ainda não acredito que não tirou uma foto dela ontem. — Eu esqueci — balbuciou Max. — Você demorou bastante para não tirar uma foto — resmungou Lemon. — E — disse Edward. — Quando todos aqueles caras saíram correndo, achei que você estaria com eles. Como é que você conseguiu ficar na mesma sala que ela tanto tempo? Não ficou apavorado quando a viu pela primeira vez? — Estremeceu com sua própria lembrança. — Ela é grotesca. — Eu não me assusto com facilidade — disse Max.— Olhem, eu não ia ter como fazer uma boa foto dela ontem, de qualquer jeito. Tinha gente demais. Hoje, vamos ser só eu e ela Lemon franziu a testa. — Você não podia pelo menos ter feito a barba para a moça? — Entregou a Max a mesma gravata e paletó que tinha emprestado no dia anterior. — Você está péssimo — comentou. — Passou a noite toda em claro de novo? — Aposto que ele gastou todos os cinco mil no carteado — disse Edward. — Por que você se importa? — perguntou Max. — Não estou pior hoje do que estava ontem. E ela me convidou para voltar, não foi? — Claro que ela o convidou para voltar — disse Edward.
— Ela está desesperada. — Você não pode ficar muito tempo — Lemon o advertiu. — Estou preocupado que alguém da casa venha olhar aqui fora e me veja. — Sentiu um calafrio. — Não quero que aquela mãe me ataque de novo. Preciso do olho que me sobrou. Max assentiu. — Tá, tudo bem. — Além do mais — disse Lemon —, você também não precisa ficar enrolando a coitada para fazer com que ela pense que você se importa com ela. Não adianta magoála. Ela não machucou ninguém. — Ela tentou! — exclamou Edward. — Eu já disse, ela me atacou! — Sei, sei, tanto faz. Só consiga a foto, Campion, está bem? — Vou conseguir. Max saiu da van e ficou olhando o caminho que levava até a porta de entrada dos Wilhern.
Capítulo Catorze
Parecia que eu tinha passado a manhã toda sem respirar. Será que ele iria mesmo voltar? E se voltasse... Por quê? Talvez só estivesse sendo simpático. Talvez tivesse pena de mim. Hoje eu estava sozinha. Tinha expulsado meus pais e Wanda da sala de jantar, na esperança de que assim eu não ficasse tão nervosa por causa da esquisitice daquilo tudo. Jake entrou na sala de música e falou na minha direção. — Srta. Penelope, seu visitante chegou. Liguei o microfone. — Testando, testando, um, dois, três. Jake assentiu com a cabeça. — Está funcionando. Posso fazer o cavalheiro entrar? Sim, por favor. Obrigada, Jake. Jake saiu, e voltou um instante depois com Max. — O sr. Maxwell Campion, srta. Penelope. Ele saiu e Max olhou para o espelho. — Oi. Por alguma razão, eu não disse nada. — Sou boa com as minhas plantas — reconheci. — Ah é? Você tem um jardim grande? — É uma estufa — eu disse. — Fechada. Ele assentiu. — Acho que está frio demais para fazer jardinagem ao ar livre agora. Será que ele achava mesmo que era o clima que me fazia ficar dentro de casa? __Eu... eu não saio muito. — É mesmo? Que pena. — Por quê? — perguntei. Devia ser uma pergunta idiota, mas eu estava curiosa em relação ao que ele diria. — Tem um monte de coisas legais por aí. — Tipo o quê? — Bom... — Pensou durante um minuto. — Tem um parque bacana no centro da cidade. Passo muito tempo lá. — O que você faz lá? — Fico lá sentado. Olhando. Pensando.
— Pensando no quê? — Coisas. No que você pensa? — Ah, livros que eu li. Filmes. — Então, você vai ao cinema? — Não. Espero os filmes saírem em DVD para assistir em casa. — Ah. Certo. Eu devia estar parecendo a maior chata. — E penso sobre o que tem lá fora — disse rapidinho. — Aquilo que eu nunca vi. Fale mais sobre o parque. — É grande, tem uns quinhentos hectares, acho. Pega um pedação do centro. — Você está aí? — perguntou ele. Depois de alguns segundos, deu de ombros e se dirigiu até a estante, como fizera no dia anterior. — Então, vejamos, onde está aquela primeira edição de Moby Dick? — perguntou em voz alta. Eu continuei em silêncio. Depois de examinar as prateleiras por um tempo, foi até o piano. Ficou lá, olhando para ele por algum tempo antes de levantar a tampa e expor as teclas. Com uma das mãos, tocou algumas notas. — Você toca? — perguntei. Ele se virou na banqueta e sorriu. — Eu sabia que você estava aí o tempo todo. — Como? — perguntei. — Você escutou a minha respiração? — Não. Eu simplesmente... sabia. Aquela sensação de arrepio estava passando pelo meu corpo de novo. Será que ele tinha mais ou menos sentido a minha presença? Fiz muito esforço para reprimir qualquer resposta que soasse sentimental e falei com frieza. — Pode tocar alguma coisa, se quiser. Ele fechou a tampa. — Não, obrigado. — Mas você sabe tocar piano — eu disse. — Sabia. E você? Toca algum instrumento musical? — Meus pais me fizeram ter aula de piano quando eu era pequena — disse a ele. — Mas eu não tinha nenhum talento musical e me cansei. — Aposto que você tem algum tipo de talento — ele disse. — Sim — repeti.
— É a região central, onde fica o comércio. Arranhacéus. E hotéis, restaurantes, casas noturnas, lugares assim O parque é o único lugar realmente verde na área. E te muitas árvores. Um lago, uma casa de barcos, onde dá para alugar um bote. — Você já fez isso? — Não. Mas não acharia ruim. Eu gosto de olhar os botes. Meu banco preferido fica perto do lago. Tem um parquinho infantil em uma ponta, com um carrossel. Eu adorava andar nele quando era criancinha. Meu pai costumava me levar lá domingo à tarde. Imaginei meu pai levando uma versão mais nova de mim ao parque. As pessoas apontando, encarando, dando risada... Eu teria assustado garotos como Max. — Na primavera — disse Max —, tem um monte de flores ladeando os caminhos. — Que tipo de flores? — perguntei. — Tulipas, acho. Prendi a respiração. — Eu adoro tulipas, principalmente as amarelas. — É mesmo? Vou ter que me lembrar disto. Será que ele estava sugerindo que poderia me trazer ura buquê uma hora destas? Aquele arrepio eletrizante me remexia toda por dentro de novo. A cem quilômetros por hora. — O parque também é bem legal à noite. — Não é perigoso? — Que nada, tem iluminação, e as pessoas passeiam por lá. É meio romântico. Tem também uma fonte enorme, com estátua de anjo. As pessoas jogam moedas na água para te. E tem uma barraquinha onde dá para comprar o melhor cachorro-quente da cidade. — Eu nunca comi cachorro-quente — disse a ele. — Está de brincadeira. Nossa. Já tomou cerveja? — Claro que já tomei cerveja. — Um chope especial do Cloverdilly? — Não, acho que não. — Então você nunca tomou cerveja. E só dá para tomar um chope especial do Cloverdilly no bar Cloverdilly, na rua Orchard. — É um lugar legal? — Não é refinado, se é isso que você está pensando. É só um bar antiquado, cheio de freqüentadores assíduos. Tem um clima bom. Houve um momento de silêncio. Tentei pensar em outro assunto. — Você tem irmãos e irmãs? Ele hesitou, quase como se não tivesse certeza. Então, respondeu:
— Não, e você? — Não. Esta é uma coisa que temos em comum. Não é fácil ser filho único, não é mesmo? São muitas expectativas. Ele parecia pouco à vontade. — É isso aí. Meu coração se apertou. Dava para ver que ele queria ir embora. Mas, bem quando eu estava pronta para dizer a ele que o tempo tinha acabado e lhe dar uma desculpa para cair fora, ele perguntou: — Você joga xadrez? — Estava olhando para o tabuleiro enfeitado e as peças de marfim esculpido em cima da mesinha de centro. — Jogo. Ele examinou o tabuleiro. — Está tudo aqui prontinho. Quer jogar? — Tudo bem... mas eu jogo daqui. Você vai ter que mexer as peças para mim. — Acho que eu consigo fazer isto. Qual é o seu primeiro movimento? — Hmm, avance com o peão na frente do rei. Observei enquanto ele deslocava o peão branco na frente do meu rei duas casas. Então, moveu seu peão preto à frente do meu uma casa. — Avance com o peão na frente do primeiro bispo. Ele obedeceu e pensou um minuto antes de mover o peão na frente de um de seus bispos duas casas para a frente. Ele era bom, pensei. Eu era melhor. Mas, no fim, quando eu tomei o rei dele, ele não se importou. — Tudo bem, estou devendo para você um chope especial do Cloverdilly — declarou ele. — Quer sair para tomar um? A pergunta me surpreendeu. Ele estava de brincadeira? — Agora? — Por que não? — Hmm... não, obrigada. Outra hora, está bem? — Quando? — perguntou ele. — Não tenho certeza — respondi com cuidado. Ele olhou o relógio e se levantou. — É melhor eu ir andando. Falei rápido, antes que tivesse tempo para refletir sobre a pergunta que eu faria.
— Você vai voltar? Quer dizer, você quer voltar? Ele olhou diretamente para o espelho e, mais uma vez, parecia que estava olhando bem nos meus olhos. — Quero. Quero sim.
Capítulo Quinze
Lemon não ficou feliz. — Que diabos você estava fazendo lá? Faz duas horas que você saiu! — Eu estava preocupado — Edward se juntou ao coro. — Achamos que ela engoliu você! Lemon sacudiu a cabeça. — Você é quem pensou isso, Vanderman, não eu. O que aconteceu, Max? — A gente simplesmente começou a conversar e... Edward de algum modo conseguiu parecer horrorizado e sacana ao mesmo tempo. — E...? Max lançou um olhar ameaçador para ele. — Nós conversamos. Edward revirou os olhos. — O tempo voa quando a gente está se divertindo, hein? — E nós jogamos uma partida de xadrez — completou Max. — Não ligo se vocês brincaram de esconde-esconde resmungou Lemon. — Eu só quero saber o seguinte: conseguiu a foto? — A foto? — repetiu Max. — A foto, Max! Com a câmera! Você tirou a foto de Penelope? — Na verdade... não. Lemon bateu o punho fechado no volante e urrou de dor. Quando se recuperou, fixou o olho bom em Max, cheio de irritação. — Por que não? — Eu sei por que não — disse Edward, repentinamente. — Ele está fazendo jogo duplo com a gente! — Como é que ele pode estar fazendo isso? — perguntou Lemon. Edward estava ficando visivelmente ansioso. — Ele quer mais dinheiro! Não é, Campion? Você já perdeu os cinco mil que nós demos e agora acha que pode tirar mais de nós! Max ficou olhando com ódio, de maneira ameaçadora para ele.
— Não quero mais nem um tostão de vocês. Edward arregalou os olhos, horrorizado. — Espere, agora estou entendendo. Você vai pedi-la em casamento! Vai se casar com aquela menina-porca para receber o dote dela! — Sacudiu a cabeça, descrente. — Que coisa nojenta, o que as pessoas são capazes de fazer por dinheiro. O cenho de Lemon franziu. — É verdade, Max? Você quer se casar com Penelope? — Não façam perguntas idiotas — balbuciou Max, mas Lemon não pôde deixar de notar que ele desviou os olhos ao falar. — Isto é ridículo — Edward se irritou. — Não me importa quais são os seus motivos. — Ele se voltou para Max. — Se você não vai tirar a foto, devolva o dinheiro e nós vamos procurar outra pessoa para fazer isso. Eu tenho uma reputação a salvar. Lemon ficou encarando Max. O mais jovem abriu a boca, depois a fechou. Seus olhos pareciam focados em um ponto muito além de qualquer pessoa que estivesse na van. Obviamente, alguma coisa estava se passando em sua cabeça, e então Lemon reconheceu a expressão. Ele já havia passado por aquilo, quando estava incumbido de uma pauta especialmente desagradável. Campion lutava com seus demônios interiores. Lemon sentiu uma necessidade repentina de facilitar as coisas para ele. — Olhe, Max, se você não vai conseguir tirar... Max piscou, depois se voltou para Lemon. — Não, eu consigo — disse com um sorriso de determinação. — Amanhã.
Capítulo Dezesseis
Max deslizou seu bispo remanescente na diagonal pelo tabuleiro. — Xeque. — Tem certeza de que quer fazer isto? — perguntei. — Acho que sim — ele respondeu. — Por quê? — Meu bispo toma a sua rainha. Xeque-mate. Max resmungou. — Agora já estou devendo três cervejas para você. Se é que algum dia vou conseguir tirar você daqui para irmos ao Cloverdilly, para que eu possa pagar. Dei risada. — Você não precisa me pagar em cerveja, sabe? — Como, então? — Que tal tocar alguma coisa no piano para mim? Ele ficou em silêncio. — Vamos lá — supliquei a ele. — Você disse que sabe tocar. — Sabia — ele a corrigiu. — Ah, aposto que é como andar de bicicleta — eu disse. — Mesmo que faça séculos que você não sobe em uma, logo retoma o jeito. — Você já andou de bicicleta? — perguntou ele. — Não — confessei. — Mas li isso em algum lugar. Ele me lançou um sorriso torto. — Não pode acreditar em tudo que lê. Mais um momento de silêncio. — Por que você parou de tocar? — perguntei. — É uma longa história — ele respondeu. Algo me disse que estava na hora de mudar de assunto. Na verdade, ele estava agindo de maneira um tanto estranha naquele dia. Simpático, como sempre, e engraçado, mas diferente. Era quase como se estivesse nervoso. Ou talvez fosse só eu, porque eu também estava me sentindo nervosa. Esta era a terceira visita de Max. Quanto mais tempo a relação poderia durar deste jeito? E levando em conta as circunstâncias... Será que eu tinha o direito de chamar aquilo de relação? A única coisa que eu sabia com certeza é que nunca me sentira assim antes.
De repente, Max se levantou. Ele se virou, caminhou ate o piano e se sentou na banqueta, de costas para mim. Observei quando ele flexionou as mãos e me encolhi toda quando estalou os dedos. Ergueu a tampa e suas mãos pairaram por cima do teclado. Fiquei esperando com ansiedade. Quem sabe um pouco de jazz? Ou alguma coisa clássica, até mesmo romântica? Tchaikovsky, Rachmaninoff... Os dedos dele se abateram por sobre as teclas e ele começou a martelar "O Bife". Dei risada de alegria. — Genial — exclamei. Não dava para ver o rosto dele, mas fez uma apresentação e tanto, com floreios rebuscados das mãos e jogando a cabeça para trás. — Bravo! — gritei quando ele terminou. — Bis, bis! — Acho que não consigo superar esta — ele disse.— Não, espere. Já sei. — Cheio de dramaticidade, ergueu as mãos de novo. O que saiu desta vez foi outra melodia conhecida, uma introdução que reconheci imediatamente. Uma lembrança tomou conta de mim: sentada na banqueta ao lado de meu pai. Ele tocava os acordes enquanto eu fazia a melodia. Mas Max estava sozinho ao piano, então não tinha como fazer a melodia. Terminou a introdução e começou a tocá-la novamente. Ficava errado daquele jeito, estava incompleto. Faltava alguma coisa. Os acordes se tornaram ímãs musicais, me puxando, me arrastando contra a minha vontade. Ou talvez tenha sido a minha vontade que me tirou do meu lugar e me empurrou pela porta. E então eu estava me aproximando por trás dele, cada vez mais perto, e pude alcançar as teclas. Será que ele sabia que eu estava lá, praticamente ao lado dele? Começou a introdução de novo, e no momento certo comecei a dedilhar a melodia. Não cantei junto, mas as palavras corriam pela minha mente a cada nota que eu tocava. "Heart and soul, I fell in love with you..." Eu olhava para as teclas, mas ele olhava para mim, dava para sentir. Com o coração batendo forte, eu me preparei para uma daquelas velhas expressões que eu tanto conhecia e, lentamente, fui me virando para ele. Eu não conseguia decifrar o rosto dele de jeito nenhum Não vi choque, nem pavor, nem medo... Era outra coisa, uma expressão que eu não conseguia identificar. Nós dois paramos de tocar e o silêncio na sala era tão completo que era quase surreal.
Mas não por muito tempo. Minha mãe irrompeu na sala com Wanda logo atrás dela. — Você! — berrou ela para Max. — Saia desta casa! — Mãe! — exclamei. Nunca a tinha visto assim tão histérica. — Você não sabe o que está acontecendo, Penelope! — Ela apontou um dedo trêmulo para Max. — É uma armação! Aquele... aquele canalha... ele está trabalhando com Lemon! A ficha não caiu imediatamente. — Com quem? — Aquele jornalista vigarista, aquele salafrário nojento que não nos deixa em paz! — O dedo trêmulo dela mudou de direção para apontar a frente da casa. — Eu o vi! Ele está lá fora neste momento, esperando em uma van. Estou certa, não estou, sr. Campion? Isto é uma armação! Olhei para Max; ele estava lívido. — É verdade, Max? — perguntei a ele. — Isto é armação? — Saia da minha casa — minha mãe berrou. Wanda se intrometeu. — Todo mundo, espere aí. Quem se importa se é armação ou não? Olhem só o que está acontecendo aqui! Ele a viu, e não fugiu! E daí que seja um canalha? Ele se encaixa nos pré-requisitos, tem sangue azul, pode desfazer o feitiço! Ele não precisa ser sincero, nem precisa ser legal. Só precisa se casar com ela! Afinal, ela conseguira silenciar a minha mãe. Olhei para Max. Eu gostava dele. Eu gostava dele de verdade. E ele não tinha fugido de mim. Se houvesse uma chance verdadeira de eu ficar com um cara de quem gostava realmente, ia ter que correr o risco de deixar os meus sentimentos transparecerem. — Ela tem razão, Max. Os olhos dele não desgrudavam do meu rosto e a expressão dele não tinha mudado. — Você vai fazer isso, Max? — perguntei. — Pode se casar comigo e desfazer o feitiço. Talvez eu não seja a garota dos seus sonhos neste momento, mas uma vez que o feitiço for desfeito, vou ser normal. Quer se casar comigo? De repente, mesmo antes de ele falar, consegui identificar a expressão estranha e misteriosa no rosto dele e fiquei surpresa por não a ter reconhecido antes. Era uma emoção que eu conhecia bem: tristeza. — E se eu me casar com você, Penelope, e o feitiço não se desfizer?
Então era por isso que ele parecia em pânico. Estava com medo de ficar preso à menina-porca para sempre. Daí eu me mato — respondi. — Mesmo, eu prometo, é que eu vou fazer. Você vai ficar livre. Agora havia ainda mais do que tristeza nos olhos dele. Era desespero. Não posso, Penelope, sinto muito... mas não posso. — De maneira abrupta, levantou-se e saiu da sala. — Jake! — minha mãe berrou, histérica. — Jake? — Saiu correndo da sala de música. — Jake, cadê você? Precisa pegar um contrato de sigilo e correr atrás dele! Meu pai entrou. — Está tudo bem, querida? — Está — respondi. — Mesmo? — Estou bem, pai. Era estranho, mas era a verdade. Eu estava bem. Bem de uma maneira que era muito nova para mim. Porque alguma coisa dentro de mim tinha mudado. — Com licença, pai. Acho que vou me deitar um pouco. Ele assentiu, compreensivo. — Vou dizer à sua mãe que não a incomode. No caminho do meu quarto, parei em um armário onde minha mãe guardava coisas que não usava muito. Lá dentro, encontrei uma mala pequena e a levei para o meu quarto. Coloquei a mala em cima da cama, abri e fui até a cômoda, onde peguei roupa de baixo, jeans, suéteres. Do banheiro, peguei escova de dente e pasta. Apesar de eu nunca sair, tinha um casaco de inverno, muito bonito e muito caro, que eu tinha comprado como preparação para minha libertação do feitiço da bruxa. Estava no meu armário havia sete anos e provavelmente já havia saído de moda, mas daria conta do recado. Também havia um cachecol comprido que combinava com o casaco. Com cuidado, amarrei-o no meu rosto, na altura certa para esconder o meu nariz. Daí chegou a parte mais difícil. Eu não era criminosa por natureza, mas uma ação drástica exigia medidas drásticas, até o quarto dos meus pais.
A bolsa de minha mãe estava no lugar de sempre, sobre o criado-mudo. Remexi até encontrar a carteira dela. Então, peguei um cartão de crédito. Coloquei no bolso, desci a escada e entrei na cozinha. Estava com medo que a minha mãe estivesse na frente de arrancando o outro olho do jornalista. Então, escapuli pelos fundos.
Capítulo Dezessete
Não foi difícil para Lemon e Edward encontrarem Max. Estava de volta a seu velho lugar de sempre, na mesa do salão dos fundos do Cloverdilly, com seus parceiros de jogo habituais: o sujeito corpulento, a senhora com cabelo azulado e o velho. Quando viu Lemon e Edward entrarem, colocou as cartas viradas para baixo na mesa e se levantou. — Olhem, eu sei o que estão pensando — disse a eles. — Mas eu vou devolver os cinco mil assim que conseguir ganhar esta quantia. — E, vai sim, sem dúvida — Edward resmungou. — Não vou ficar esperando sentado. — Calma aí, Vanderman — balbuciou Lemon. Ele nem teve coragem de voltar para a van! — reclamou Edward. — Eu não estava a fim — disse Max. Lemon sacudiu a cabeça, cansado. — Qual foi o problema? A câmera funcionou? — Não sei. Nem tentei usar. — Colocou a mão no bolso o da jaqueta, pegou a câmera e devolveu. Depois, tirou o paletó e a gravata e entregou a Lemon. — Você também vai receber o dinheiro. Pessoalmente, Lemon achou que o sujeito realmente parecia péssimo, pior do que nunca. Os olhos dele não estavam apenas cansados, estavam vazios. Ocos. O velho da mesa de jogo disse para Max: — Garoto, você está dentro? Max tirou um cacho de cabelo do olho. Ficou olhando para a mesa de carteado durante o que pareceu ser um longo tempo. Finalmente, sacudiu a cabeça. — Não. Passou por Edward e entrou no salão principal do bar. Enquanto Lemon observava, pegou um copo de papel vazio de trás do balcão, foi até o piano e colocou em cima do tampo. Então, sentou-se na banqueta. O barman o viu e saiu de trás do balcão. — Pare aí mesmo — ordenou. — Não encoste nessas teclas. Desculpe, cara, mas você sabe que não é mais nosso pianista. Está lembrado? Eu o demiti por um motivo. Max respondeu com um tom inflexível.
— Talvez eu tenha tomado jeito. — Acho que não, camarada — disse o barman. — Você sabe que não consegue ficar longe da mesa de jogo. Foi por isso que eu tive que dispensá-lo. Você era um pianista bem decente, mas nunca estava tocando quando deveria. Lentamente, Max assentiu. — Tudo bem, mas o caso é que eu preciso de um emprego. — Apontou com a cabeça na direção de Lemon. — Devo uma grana para aquele cara. O barman parecia estar refletindo sobre o assunto. Foi até um armário e pegou uma vassoura. Estendeu-a na direção de Max. Lemon mordeu o lábio inferior. Toda a cena era patética demais. — Olhe, colega, esqueça — disse de repente. — Não se preocupe com o dinheiro. — O quê? — exclamou Edward. Lemon o ignorou e continuou falando com Max. — O dinheiro era do jornal, não meu. Pode acreditar, não vai fazer tanta falta assim. Mas Max já havia se levantado da banqueta do piano e pegado a vassoura da mão do barman. — Obrigado. Tem um avental que eu possa usar? Lemon virou-se para sair. — Vamos, Vanderman. — Maravilha. — Vanderman fazia bico quando saíram do Cloverdilly. — Ele vai varrer o chão. Sabe quanto tempo vai demorar para ganhar cinco mil dólares? — Por que está preocupado? O dinheiro não é seu — disse Lemon. — Deixe-o em paz. Simplesmente... esqueça. — Esquecer? Está de brincadeira? Todo mundo ainda acha que eu tive um ataque de nervos! O meu pai não fala comigo. Minha mãe quer me mandar para um sanatório. O pessoal do escritório fica dando risadinhas quando eu passo. Não vou desistir. Vamos conseguir uma foto. Lemon sacudiu a cabeça. — Eu não vou mais conseguir dinheiro com o jornal. — Não vai precisar — disse Vanderman. — Eu pago a propina. — E como é que você vai arrumar alguém para aceitar? Vanderman sacudiu a cabeça, desanimado. — Você é jornalista, não é? Nunca ouviu falar do poder da imprensa? Aliás, quanto custa meia página de anúncio?
Capítulo Dezoito
Eu tinha lido sobre o mundo lá fora em livros e tinha visto na TV. Mas nada, nada podia ter me preparado para a realidade. Gente! Tanta gente, indo e vindo, subindo em ônibus e descendo deles, saindo de prédios. Gente se esbarrando e esbarrando em mim também. Pessoas com casacos grossos, todas encolhidas para se proteger do frio, com cachecóis enrolados no rosto... Igualzinho a mim! Pelo que eu podia ver do rosto delas, todas poderiam ter nariz de porco. E o barulho! Carros buzinando, sirenes tocando. Uma cacofonia de vozes. Era assustador. Era desnorteante. Era magnífico. Eu não fazia a menor idéia de onde eu estava, mas as ruas eram cheias de prédios altos, então cheguei à conclusão de que aquilo devia ser o centro de que Max tinha falado. Do outro lado da rua, a calçada parecia um pouco menos lotada, então resolvi atravessar. Ouvi pneus cantando quando um carro desviou de mim, e alguém agarrou o meu braço. — Moça, você é louca? O sinal está aberto! Agarrei o cachecol para que não caísse. Sinais vermelhos, sinais verdes, claro. Tinha ouvido falar dessas coisas. A gente atravessava no verde e esperava no vermelho... ou será que era ao contrário? Quando cheguei ao outro lado, percebi que, com toda emoção, eu tinha ignorado outra sensação que se manifestava. Eu estava com fome. Entrei em uma loja e peguei chocolates, batatinhas fritas alguns refrigerantes. Imaginando que eu tinha pegado um pouco de tudo, paguei com o cartão de crédito de minha mãe e voltei para a rua. A questão agora era a seguinte: onde eu podia comer minhas guloseimas? Eu não podia colocá-las na boca sem tirar o cachecol, e isso estava fora de questão. Precisava encontrar um lugar para ficar. Não foi difícil. Dobrei uma esquina e vi a palavra HOTEL em alguns prédios. Escolhi o maior e me aproximei. Parado à entrada, um homem fez uma mesura para mim e abriu a porta. Aquilo foi legal e simpático, pensei. E o interior também era bacana: muitos sofás e poltronas arranjados em grupinhos para as pessoas se sentarem e
conversarem. Havia gente sentada em alguns deles, conversando. Aquele parecia ser um lugar simpático. Fiquei lá parada, imaginando o que eu deveria fazer. Então, de trás de um balcão comprido, uma mulher falou comigo. — Posso ajudar? — Sim — respondi, feliz. Houve um silêncio, e então ela perguntou: — Como eu posso ajudar você? — Não sei muito bem. — Desculpe, mas não consigo ouvir. O cachecol estava abafando a minha voz. Cheguei mais perto do balcão. — Quer um quarto? — perguntou a mulher. — Quero! É isso mesmo. Quero um quarto para me hospedar. — Fez reserva? — Hmm, não sei. Acho que não. O que é reserva? Ela olhou para mim de um jeito esquisito, e eu não sabia se ela não tinha escutado ou se não havia entendido. Mas os olhos dela percorreram meu casaco caro e isso pareceu tranqüilizá-la. — Temos um quarto disponível. Trezentos e doze. — Trezentos e doze — repeti. — Tudo bem, obrigada. — Virei-me para ir até o elevador. — Senhorita! Virei para ela de novo. — Pois não? — Quer fazer a ficha? — Ela fez um sinal com o indicador, mostrando que era para eu me aproximar. — Seu nome? — Penelope Wilhern. — Desculpe, mas não estou ouvindo. Enfiei a mão no bolso e tirei o cartão de crédito da minha mãe. A mulher o pegou da minha mão. — Jessica Wilhern. — Deve ter reconhecido o nome, Porque pareceu impressionada. — Muito bem, senhorita. E vai usar este cartão para pagar pelo quarto? Assenti com a cabeça. — Muito bem, senhorita — disse de novo. Ela fez alguma coisa com o cartão e me entregou um papel para assinar.
Assinei o nome da minha mãe, então um homem apareceu do meu lado e pegou minha mala. Tentei puxá-la de volta. — Pare, ladrão! — gritei. Mesmo com o cachecol cobrindo a minha boca, ninguém teve dificuldade em ouvir aquelas palavras. Metade das pessoas do lugar se virou para olhar n mim. — Ele é o carregador, srta. Wilhern — disse a mulher do balcão. — Prefere levar a mala para o quarto sozinha? Assenti, e o homem a devolveu para mim. E a mulher me entregou uma chave. — Trezentos e doze — ela me lembrou. Quando eu me virei, ouvi-a cochichar para o carregador: — Você sabe como esses aristocratas conseguem ser excêntricos. Depois disso, tudo ficou fácil. Encontrei o quarto, a chave abriu a porta e, uma vez lá dentro, pude tirar o cachecol e respirar normalmente. A esta altura, eu estava faminta. Tirei o casaco, abri minha sacola de comida e comi. Só depois de me empanturrar é que vi o cardápio ao lado da cama. Serviço de quarto. Eles entregavam comida direto no quarto aqui! Eu precisaria me lembrar disto para a próxima vez. O quarto era ótimo: eu poderia ficar ali para sempre, pensei. A cama era enorme. E havia lugar de sobra na cômoda e no guarda-roupa para as poucas coisas da minha mala. No banheiro, havia uma banheira de hidromassagem, e tinha até um telefone na parede ao lado dela. Não que eu tivesse alguém para ligar. Fui até a janela e abri as cortinas. O sol estava se pondo as luzes iam se acendendo por toda a cidade. Era tudo tão no e estranho, parecia que eu estava em outro planeta. Um planeta muito, muito lindo... 124 Minutos antes, eu me sentira absoluta e completamente Agora, estava animadíssima. Precisava sair e ir... aonde? A resposta me chegou bem rápido. O parque. O parque de Max. Ele disse que era maravilhoso à noite. Só pensar no nome dele me deu uma pontada, mas eu lutei contra ela. Eu não podia me deixar abater. Havia coisas demais a fazer e a ver, tempo perdido demais para recuperar. Havia um mapa no quarto, e eu o examinei. Bem como Max dissera, o parque ocupava um pedaço grande do centro, e não parecia ficar longe. Eu me agasalhei de novo, ajeitei meu cachecol e saí do quarto.
As ruas agora já não estavam tão cheias. Passei por restaurantes lotados de gente comendo, cinemas com gente fazendo fila na porta para comprar entradas. E lojas... lojas fantásticas! Apertei meu nariz contra as vitrines e olhei boquiaberta as roupas, os sapatos e as bolsas lindas. Percebi que poderia usar o cartão de crédito da minha mãe para comprar essas coisas. Amanhã seria uma aventura de compras. Eu me forcei a me afastar das vitrines e continuei andando. Alguns minutos depois, cheguei ao parque de Max. Eu sabia que o parque era de todo mundo, não só de Max, mas era assim que eu pensava nele. Caminhei por lá até achar que tinha encontrado o banco preferido dele, perto do lago. Luzes suaves iluminavam o terreno. Não havia tulipas, é claro: ainda era inverno. Mas era lindo mesmo assim. Calmo, silencioso e lindo. Eu estava mesmo, de verdade, do lado de fora, no mundo. De vez em quando passava alguém, mas ninguém prestava a mínima atenção em mim. Também pareciam não estar prestando a mínima atenção ao lugar onde estavam. Como é que conseguiam não ficar olhando para tudo maravilhados? Isto aqui era um lugar fantástico, era mágico. Durante todo esse tempo, eu achava que vivia em um conto de fadas. Estava errada. Isto... este parque, este mundo... isso sim era um conto de fadas. E era de verdade. Um homem e uma mulher passaram, sem falar, apenas de mãos dadas. Lágrimas começaram a arder nos meus olhos. Esta era a pior coisa de estar parada sem fazer nada: não dava para impedir que os pensamentos enchessem a cabeça da gente. Por que eu tinha achado que Max seria diferente de todos os outros? Porque ele não gritou quando viu o meu rosto? Ele só tinha mais autocontrole do que a maior parte dos homens, nada mais. Eu não precisava de Max. Eu não precisava de homem nenhum. Com meu cachecol em volta do rosto, escondendo meu nariz, eu podia ir a qualquer lugar, fazer qualquer coisa, igualzinho às pessoas normais. Talvez o feitiço da bruxa nunca fosse se desfazer. E daí? Enquanto eu tivesse meu cachecol, tudo estaria bem. Mas, depois de um tempo, comecei a ficar com fome de novo e comecei a pensar naquele cardápio do serviço de quarto. Voltei pelo mesmo caminho que tinha vindo e pensei em me acomodar confortavelmente naquela cama enorme, ligar a TV, assistir o que eu quisesse.
Dobrei uma esquina e o hotel avultou à minha frente. Estou em casa, pensei feliz enquanto saltitava escada acima e cumprimentava com a cabeça o homem de uniforme que abria porta para mim. — Boa noite, srta. Wilhern — ele disse. Ele sabia o meu nome! O hotel estava mesmo começando a parecer a minha casa. Tanto que, quando entrei no saguão, minha imaginação começou a me pregar peças. Quase podia ouvir a voz da minha mãe. — Exijo saber em que quarto ela está! É o meu cartão de crédito que está pagando a conta! Não era imaginação. Lá estavam eles, no balcão da recepção falando com a mulher que tinha feito o meu check-in antes. A mulher ergueu os olhos e me viu. Não esperei que meus pais se virassem para trás e fizessem a mesma coisa. Correndo porta afora, disparei pela rua. Dobrei à direita, depois à esquerda. As pessoas olhavam para mim quando eu passava a toda por elas. Deviam pensar que eu fosse uma ladra de banco, fugindo do local de um crime que eu acabara de cometer. Estavam praticamente certas: eu tinha roubado um cartão de crédito e estava pagando o preço. O crime não compensa. Eu sabia que não podia ir a outro hotel. Minha mãe já devia ter suspendido o cartão, as pessoas do hotel ligariam para a polícia e alguém viria me buscar. Eu não tinha dinheiro, não tinha lugar para ficar, estava com fome e, mesmo toda encasacada, estava com frio. Então, voltei para o parque, onde não estava mais quente, mas achei que podia encontrar o banco de Max de novo e parar para pensar. Quando cheguei lá, vi que alguém deixara um jornal aberto. Eu o teria jogado na lata de lixo mais próxima, mas uma coisa nele chamou a minha atenção. Era um desenho, bem tosco, como um esboço. Uma menina, não, estava mais para uma monstra, com presas no lugar dos dentes. E um nariz igual ao de um porco. Palavras por cima da imagem gritavam: "Você viu esta mulher?" Li o que estava escrito. Estavam oferecendo uma recompensa de cinco mil dólares a qualquer pessoa que pudesse fornecer ao jornal uma foto verdadeira da menina-porca. Havia um número de telefone e um nome que reconheci: Lemon. Pensei muito e longamente. Então peguei a página, dobrei com cuidado e coloquei no bolso.
Max tinha dito alguma coisa a respeito de uma fonte onde as pessoas jogavam moedas para ter sorte. Tive que caminhar um pouco, mas finalmente encontrei. Não havia muitas moedas: alguém devia limpar a fonte todo dia. Mas consegui pegar algumas moedas de vinte e cinco centavos e torci para que fossem suficientes. Lembrei de ter passado por uma cabine de fotos na entrada de uma estação de metrô e voltei até o local. Entrei, fechei a cortininha e tirei o cachecol. Então coloquei as moedas na abertura. Quatro vezes, uma luz forte piscou. Não precisei esperar muito pelo resultado. Ainda tinha moedas sobrando para usar um telefone público, e disquei o número do jornal. — Posso falar com o senhor Lemon, por favor? Tenho uma coisa que pode interessar a ele.
Capítulo Dezenove
Às nove da manhã, o bar Cloverdilly estava bem vazio: só havia alguns bebedores radicais no balcão. Lemon achou que o salão de jogo dos fundos estaria mais cheio. Mas não precisou ir até lá para encontrar Max. Avistou o sujeito de cabelo desgrenhado do outro lado do salão. Usava um avental e varria o chão. Lemon estava feliz por ter conseguido se livrar de Edward naquela manhã. Só podia imaginar o filho da mãe tirando sarro da cara de Max por causa de seu novo uniforme de trabalho. Na verdade, Lemon não sabia muito bem o que ele próprio estava fazendo ali. Havia um recado na mesa dele naquela manhã, de Max, pedindo que ele o encontrasse no Cloverdilly. Só podia pensar que o sujeito talvez tivesse ganhado algum dinheiro no jogo e queria devolver os cinco mil. Examinou detalhadamente o rapaz, que ainda não o tinha visto. Realmente parecia um sujeito bem comum. Alguma coisa naquela experiência toda não fazia sentido. Enquanto observava, o barman se aproximou de Max. — Vá limpar os banheiros em seguida. Estão a maior bagunça. Max assentiu, ergueu o balde de água e se arrastou dentro do banheiro. Lemon sentiu uma pontada de pena ignorou à força. Por que deveria se importar com o fato de um aristocrata empobrecido ter sido reduzido a limpador de banheiro? Max nascera com uma colher de prata na boca, desperdiçara a fortuna dos Campion, fizera sua própria cama. Não valia a pena sentir pena dele. E, ainda assim, Lemon não podia deixar de sentir que havia alguma coisa, alguma coisa de decente em Max. Então sacudiu a cabeça com a ironia da idéia. O que ele, Lemon, sabia de decência? Passara toda a vida adulta neste emprego, explorando os infelizes, exagerando boatos, manipulando escândalos. Integridade não era exatamente seu apelido. Foi até o balcão, pediu um café e abriu um jornal que estava lá jogado. O jornal de Lemon tinha dado o furo de reportagem naquela manhã, mas a esta altura todos os outros jornais da cidade o acompanharam. As manchetes variavam: ELA EXISTE MESMO. O PORCO QUE ANDA E FALA, A MENINA-PORCA EXISTE! Mas todos os artigos traziam as fotos que Lemon conseguira na noite anterior.
Ele ainda não conseguia acreditar como tudo aquilo tinha acontecido. Quando recebeu a ligação no jornal, achou que era piada e estava quase desligando o telefone na cara daquela voz abafada... e então achou que tinha ouvido algum tonzinho de súplica na voz, e continuou escutando. — Aqui é Penelope Wilhern. Tenho umas fotos para você. Fotos de mim. Ele ficou estupefato. — Por que você quer me dar fotos de si mesma? — Não vou dar para você. Vou vender. Quero os cinco mil dólares. Ele ficou surpreso quando ela explicou para que precisava do dinheiro mas, quanto mais pensava no assunto, mais sentido fazia. Era como se, pela primeira vez na vida, ele percebesse ela não era apenas um objeto bizarro de interesse, escondido de todo mundo. Quando ele chegou ao lugar marcado, à meia-noite no parque, Penelope tornou-se ainda mais real. Não que ele a tivesse visto direito. Ela lhe dissera que a encontrasse embaixo de uma determinada ponte, mas ela não estava exatamente ali. — Lemon? — chamou uma voz. — É sim — respondeu ele. Ergueu os olhos e viu que ela estava em cima da ponte. Pelo menos, deduziu que era ela. A silhueta em cima da ponte no escuro estava com um casaco pesado e toda coberta. Segurava o que parecia ser um balde. Lentamente, abaixou-o com uma corda. Lá dentro, havia uma tira de fotos. Ele pegou as imagens, colocou um envelope contendo cinco mil dólares e deu um puxão. O balde foi içado novamente. Lemon olhou as imagens granuladas da máquina de fotos vagabunda durante muito tempo. Não era exatamente o que ele esperava ver. Estava olhando para uma pessoa, não para um monstro, não para uma aberração, não para uma criatura grotesca da lagoa negra. Viu uma menina, uma moça com cabelo encaracolado e bonito, grandes olhos castanhos, um sorriso melancólico. O famoso focinho estava lá, é claro, mas ele não foi tomado pelo pavor ao enxergá-lo, só ficou um pouco deprimido. Ergueu os olhos das fotos. Penelope tinha desaparecido. Agora, sentado no bar, olhando a versão ampliada das fotos no jornal, tentou animar-se pensando na mãe da menina, aquela megera do mal que lhe tirara o olho. Ela sem dúvida estaria sofrendo agora, com o rosto de sua filha-porca em todos os jornais,
exposta ao mundo. Mas era engraçado: a imagem -lhe dava o tipo de recompensa que ele achava que daria — Está feliz agora? Lemon ergueu os olhos e viu Max parado ao lado de sua banqueta de bar. O rosto do rapaz estava sombrio. — Como vão as coisas, Campion? Max não respondeu à pergunta. — Você não pôde deixá-la em paz, não é mesmo? Tinha de se vingar. Nada o faria se afastar da sua maldita revelação. Tinha que segui-la, tinha que conseguir essa foto, tinha que envergonhá-la publicamente. Eu sei que você odeia a mãe, eu sei que ela ferrou com a sua vida, mas por que tinha que descontar em Penelope? O que ela fez contra você? Lemon tentou interromper o arroubo. — Opa, espere um pouco aí... Mas Max não tinha terminado. — Você me revira o estômago, você e Vanderman. Tudo bem, Vanderman é um idiota, mas você... você é ainda pior. Você nem conhece a menina. Por que quer tanto magoá-la. Lemon não podia deixar isso passar em branco. — Por que eu queria magoá-la? E você? Você não é melhor do que eu nem do que Vanderman. Acho que é melhor descer do seu pedestal moral, garoto. Max ficou olhando fixamente para ele. — O que quer dizer com isso, Lemon? — Você poderia ter ajudado, poderia ter mudado a vida dela. Poderia ter se casado com ela para desfazer esse feitiço idiota. Tinha os meios de fazer Penelope Wilhern feliz, mas não fez. E eu sei por quê. Uma incerteza se instalou nos olhos de Max. — Sabe? — Você não é melhor do que Vanderman. Você ficou com nojo do rosto dela. Max desviou o olhar e Lemon continuou insistindo na mesma tecla. — Na verdade, pensando bem, você é pior do que Vanderman. Porque acha que gosta da menina. Talvez até a ame. Mas não consegue engolir o focinho. Você é tão superficial quanto aqueles outros caras que fugiram. Será que ele estava conseguindo sensibilizar Max? Não havia expressão alguma no rosto do rapaz e ele não fez nenhuma tentativa de se defender.
— E vou dizer mais uma coisa, também — Lemon apontou para a foto. — Foi a própria Penelope que me deu estas fotos. Isso sim despertou uma reação. O queixo de Max caiu. — O quê? — Ela me ligou ontem à noite e as ofereceu. Max estreitou os olhos. — Não entendo. Por que ela faria isso? — Ela queria o dinheiro. Não, era mais do que isso. Ela Precisava do dinheiro. — Isso é loucura. Não faz o menor sentido. Ela é uma Wilhern... Eles são cheios da grana. Lemon jogou seu trunfo.
Capítulo Vinte
Controle. Era uma sensação completamente nova, algo que eu nunca sentira antes. Eu, não minha mãe, meu pai, Wanda ou Jake, estava no controle da minha vida. Eu, Penelope Wilhern, estava tomando as decisões, determinando meus passos. Era assustador, era estonteante... era maravilhoso. Claro que o quarto em que eu acordei naquela manhã não dava para comparar ao quarto daquele hotel chique, nem ao meu quarto na mansão dos Wilhern. Depois de pegar o dinheiro com Lemon, caminhei pelas ruas do centro e acabei encontrando um prediozinho meio detonado com uma placa de QUARTOS PARA ALUGAR na janela. A cama era encaroçada, o papel de parede estava desbotado e descolando, não tinha TV, nem telefone, nem uma vista fabulosa pela janela minúscula, mas eu pude pagar um mês inteiro adiantado e ainda sobrou bastante dinheiro. Nunca viriam me procurar aqui. Algumas pessoas poderiam olhar para este mundo e dizer: ela se deu mal. Mas não eu. Eu diria que ela deu seu primeiro passo para entrar no mundo, que ela se deu bem. — Parece que a nossa Penelope fez uma mudança de estilo de vida. Ela saiu de casa. Parecia que Max ficara mudo. Demorou vários segundos até que conseguiu proferir, bem fraquinho: — Está de brincadeira. — Ela está por aí neste exato momento, Campion. Não sei onde nem fazendo o quê, mas ela se libertou. Penelope Wilhern está sozinha. Declarou sua independência. Houve mais um momento de silêncio. — Hmm. Mas que coisa. — Então, um sorriso se espalhou lentamente pelo rosto de Max. — Que bom para ela. O barman foi até o lugar onde eles estavam no balcão. — Terminou o serviço? — Terminei — respondeu Max. O barman abriu a caixa registradora e contou algumas notas. — Aqui está. Obrigado. Foi bem aí que um homem apareceu à porta que levava ao salão dos fundos. Lemon o reconheceu como um dos parceiros de jogo de Max. — Ei, temos uma cadeira vazia aqui. Max sacudiu a cabeça.
— Não, obrigado, cara. — Esticou o braço e entregou o dinheiro para Lemon. — Uma parcela da minha dívida. Lemon não queria aceitar. Mas ficou com a impressão de que seria um insulto a Max se não aceitasse. — Obrigado. Enfiou as notas no bolso enquanto Max guardava a vassoura no armário, tirava o avental e saía do bar, caminhando tranqüilo. Eu me troquei bem rápido, enrolei o cachecol no rosto e saí do quarto. Lá fora, misturei-me à multidão nas ruas início à minha exploração. Olhar vitrines era muito div do. Sem o cartão de crédito de minha mãe, eu sabia que teria que prestar atenção ao orçamento, mas tomei anotações m tais de certas lojas que exibiam roupas lindíssimas. Por outro lado, quando passei por um grupo de mulher com xadores e véu cobrindo o rosto, fiquei me perguntando se aquilo não funcionaria para mim. Eu provavelmente teria de me tornar muçulmana, e usar preto o tempo todo não tinha como ser muito emocionante, mas resolveria as questões relativas à exposição do meu rosto. Era outra opção, e era isso que eu achava tão eletrizante: todas as possibilidades que tinha pela frente. Também fiquei curiosa com os salões de beleza na frente dos quais passei, e pensei na perspectiva de cortar o meu cabelo comprido. Eu também podia fazer as unhas... as possibilidades eram infinitas! O que mais eu poderia fazer com o meu dinheiro? Podia comprar uma TV para o meu quartinho, mas resolvi que não. Meus dias de assistir à vida em uma tela tinham chegado ao fim. Mas de fato investi em um rádio-relógio. Esperava que meu novo futuro brilhante me trouxesse coisas para as quais eu tivesse hora para acordar; além do mais, eu queria musica, uma trilha sonora para a minha nova vida. Quando senti que estava ficando com fome, descobri lanchonetes. O conceito era incrível: a gente podia entrar um lugar desses, pegar hambúrgueres e batatas fritas e embora para comer onde quisesse! Eu não estava exatamente a fim de voltar para o meu quarto, então fui para o parque, sentei-me em um banco e bolei uma maneira de comer. Puxei o cachecol para a frente com a mão e usei a outra para enfiar batatas fritas por baixo. Alguns passantes ficaram olhando para mim de um jeito esquisito, mas ninguém viu nada verdadeiramente repugnante.
Depois do almoço, retomei a exploração e a caminhada a esmo. A certa altura, percebi que estava na rua Orchard. O nome me lembrava de algo, e nem precisei me esforçar muito para recordar onde tinha ouvido aquilo. O bar preferido de Max, o Cloverdilly, ficava na Orchard. E, depois de caminhar por ali por alguns minutos, vi a placa logo à frente. Hesitei. Fiquei com vontade de dar uma olhada, mas e se Max estivesse ali? Não achei que estava pronta para encontrá-lo, não ainda. Talvez nunca fosse estar. Espiei pela porta para ver o que tinha lá dentro. Ele não estava no balcão. Me sentia aliviada ou decepcionada? Não sei dizer. Mas quando entrei e me sentei em uma banqueta do balcão, o barman me abriu um sorriso simpático. — Oi, o que você quer? Eu me lembrei da recomendação de Max. — Um chope especial do Cloverdilly, por favor. — Já está saindo. Observei enquanto ele colocava uma enorme caneca embaixo de uma torneirinha e apertava uma alavanca para baixo. Um chope dourado e espumoso encheu a caneca. Depois ele a colocou no balcão e empurrou. Ela foi deslizando, pegando velocidade na superfície lisa até passar por mim, cair pela beirada e se espatifar no chão. — Você devia ter pegado — disse o barman. Eu me senti a maior idiota. — Desculpe. Acho que já faz muito tempo que eu não tomo um chope. Ele sorriu. — Não tem problema. Você vai se lembrar de como se faz. — É igual a andar de bicicleta? — Exatamente. Ele me serviu outro chope e mandou deslizando pelo balcão. Desta vez eu peguei. Mas agora estava diante de outro obstáculo. Beber com a boca coberta representava um problema ainda mais grave do que comer. Fiz uma tentativa inútil de colocar a beira da caneca por baixo do cachecol. O barman ficou me observando, cheio de curiosidade. — Será que isto ajuda? — perguntou ele. Entregou um canudo para mim. — Obrigada — eu disse, agradecida. Enfiei o canudo no chope, coloquei a outra ponta por baixo do cachecol e suguei a cerveja mais gostosa que eu já tomei na vida. Enquanto eu bebia, meus olhos se dirigiram a um jornal aberto em cima do balcão e eu quase engasguei. Lá estava eu, em toda a minha glória radiante. Mas ninguém no bar
estava me relacionando com a aberração da fotografia; então, por que me importar? Tomei mais um longo e delicioso gole. A porta do Cloverdilly se abriu, e uma mulher loira e bonita, segurando um capacete em uma das mãos e uma caixa na outra, entrou caminhando despreocupada. — Diga lá, Annie, querida. — O barman se inclinou por cima do balcão para dar um beijo no rosto dela. — Tem alguma coisa para mim? — Minha última entrega do dia — respondeu ela, e largou o pacote em cima do balcão. — E estou louca por uma cerveja. — Não precisa enlouquecer — respondeu o barman. Abriu uma garrafa e entregou para ela. — Por conta da casa. — Eu amo você, cara. — Ela pegou uma banqueta ao lado minha, deu uma olhada na minha direção, levantou a garrafa e disse: — Saúde. — Saúde — murmurei. Ela tomou um gole longo e sedento, pousou a garrafa no balcão e olhou para mim de novo. — Operou o nariz? — O quê? — Estou aqui imaginando que você deve ter acabado de operar o nariz. Qual é mesmo o termo médico para isso... rinoplastia? Sempre achei engraçado. Quer dizer, parece que todos os pacientes tinham nariz de rinoceronte antes da operação. É quase isso, pensei. Mas eu só assenti. Annie prosseguiu. — Uma amiga minha, ela operou o nariz e usou um cachecol igual ao seu durante três semanas. No começo, ela saía com as ataduras aparecendo, mas todo mundo ficava perguntando se tinha sofrido um acidente e ficava com pena dela. Ela começou a se sentir culpada por as pessoas ficarem tão comovidas, apesar de só ter feito aquilo em nome da vaidade. Assenti de novo. — Não que haja algo de errado com a vaidade — Annie continuou falando. Puxou uma mecha de cabelo. — Quando vejo a menor raiz branca aparecendo, vou direto para o salão do Ronaldo. Ergui as sobrancelhas. — Você não conhece o Ronaldo? É o melhor cabeleireiro da cidade. Custa uma fortuna, mas vale a pena. — Ela tombou a cabeça para o lado e analisou o meu cabelo. — O seu corte é bem simples, então imagino que não precise ir àquele tipo de salão.
Praticamente qualquer um consegue cortar em linha reta, certo? Você deve economizar bastante dinheiro com um corte assim. Reuni toda a minha coragem para falar. — Economiza mesmo. Minha mãe é que corta para mim — Caramba, eu parecia um bebê. Não queria afastar aquela moça de mim. — E dói? — Quando a minha mãe corta o meu cabelo? Ela deu risada. — Não, estou falando da plástica no nariz de novo. Desculpe, eu sou mesmo muito dispersiva. — Ah, tudo bem — eu disse, rapidinho. — Não, não dói. — É mesmo? — ela parecia incrédula. — Nem um pouco? Será que uma plástica de nariz deveria doer? — Quer dizer, não muito. — É que eu mesma estou pensando em fazer uma. — Por quê? O seu nariz é ótimo. Ela deu uma olhada no jornal aberto. — Bom, eu não sou nenhuma Penelope, isto é certo. O meu é só um pouco torto. Mas na verdade estou falando das minhas orelhas. — Você quer fazer uma plástica de nariz nas orelhas. — Assim que as palavras saíram da minha boca, percebi como soavam idiotas, e fiquei com vontade de dar um chute em mim mesma. Mas Annie riu, deliciada, como se eu tivesse dito alguma coisa incrivelmente engraçada. — Sempre achei minhas orelhas meio protuberantes — Annie me disse. — Mas acho que cirurgia estética é meio uma bobagem. Quem pode dizer o que são orelhas bonitas ou nariz bonito? Quer dizer, quem fez as regras? — Não fui eu — eu disse. — Nem eu. — Ela ergueu a garrafa e a bateu na minha caneca. — Ei, Sam! — chamou barman. — Que tal mais duas, uma para mim e outra para a minha nova amiga aqui? Talvez eu estivesse bebendo a cerveja um pouco rápido demais, mas um arrepio percorreu o meu corpo. Ninguém nunca tinha me chamado de amiga. Bom, tirando Edward Vanderman. Mas eu não podia levar a sério nada que ele tivesse dito para mim. Fizemos um brinde com as cervejas novas, e então Annie disse: — Você não é daqui, não é mesmo, Cachecolzinho?
— Não — respondi. — Eu sou... da França. Bonjour. — Eu quero viajar — Annie disse. — Sabe qual é a minha fantasia? Quero pegar a minha Vespa e viajar pelo país todo. — A sua Vespa? — eu perguntei. — Você sabe o que é uma Vespa? Acanhada, sacudi a cabeça de novo. Mas Annie parecia aceitar a minha ignorância apenas como mais um aspecto de eu ser estrangeira. Terminou a cerveja e olhou desconsolada Para a garrafa vazia. Eu bem que podia beber mais uma, mas daí não vou Poder dirigir. E está muito lindo lá fora. — O sol está brilhando — observei. — É, ainda está bem frio, mas a primavera já está chegando. Vi algumas tulipas no parque hoje de manhã. — É mesmo? As tulipas são as minhas flores preferidas. — Tenho uma idéia — Annie disse. Bateu a garrafa contra o balcão. — Já terminei minhas entregas de hoje. Quer passear pela cidade comigo? Podemos dar uma olhada naquelas tulipas. E seria muito mais saudável do que ficar aqui o dia inteiro enchendo a cara. Está a fim? Gostaria que Annie pudesse ver meu enorme sorriso. — Estou. Lá fora, descobri o que era uma Vespa. Por nunca ter andado em nenhum tipo de motocicleta, fiquei um pouco apreensiva, mas tentei agir com frieza enquanto Annie me ajudava a colocar o capacete sobressalente. Subi na garupa e partimos. Que sensação! Mais uma experiência novinha em folha. Parecia que eu estava voando. Era uma sensação eletrizante e divertidíssima. Eu queria que aquilo durasse para sempre e, quando Annie começou a reduzir a velocidade, gritei: — Não pare! Annie jogou a cabeça para trás e deu risada. — Preciso parar, o sinal está vermelho! Não se preocupe, vamos andar de novo. Quando retomamos o movimento, ela começou a me apresentar a cidade. — Está vendo aquela igreja? É a construção mais antiga da cidade. Ali à direita é a prefeitura. Estive ali várias vezes. — Você conhece o prefeito? — perguntei.
— Não, mas sou camarada do pessoal do Departamento de Trânsito. — Ela deu risada e eu não entendi a piada, mas também ri. Tinha alguma coisa em Annie que simplesmente me dava vontade de rir. — Aquela é a minha escultura preferida — ela disse, apontando para um monte de mármore esquisito e empelotado. — É esquisito — eu disse. — É mas coisas esquisitas podem ser bonitas, sabe como é? Eu não tinha muita certeza disso. — O que é aquele prédio ali? — perguntei. — O Museu de História Natural. Tem uns esqueletos de dinossauro bem bacanas. As crianças adoram. Você tem filhos? — Não — respondi. — Eu também não. Quero ter algum dia. Mas, primeiro, gostaria de encontrar um marido. Sou antiquada neste sentido. Mas não é fácil encontrar o tipo de cara certo, sabe do que eu estou falando? — Ah, sei sim — eu respondi, com muita convicção. Estávamos saindo do centro e nos dirigindo para a área residencial agora, e fiquei preocupada quando Annie entrou na minha antiga rua. Eu estava com o cachecol e o capacete, mas, mesmo assim, virei o rosto para o caso de a minha mãe estar olhando pela janela. — Esta é a parte mais refinada da cidade — explicou Annie. — Tem uns casebres legais, hein? — Arrã. Ela parou bem na frente da mansão do Wilhern. — Nem posso imaginar como deve ser morar em uma casa dessas. Acho que a gente se sente como uma princesa. Essas Pessoas devem ser incrivelmente ricas. — É. — Mas você não acha que elas são felizes? — Não sei — respondi. A única coisa que eu sabia era que, naquele exato minuto, eu era mais feliz do que jamais fora morando naquela casa.
Capítulo Vinte e Um
"Boooooom dia para todos vocês, gente boa!", berrou o locutor. "Tirem a bunda da cama e saiam para a rua, porque tem alguma coisa esperando por vocês lá fora hoje, e vai ser uma enorme surpresa! Da noite para o dia, sem qualquer aviso, a primavera chegou!" Eu me virei na cama de modo a enxergar o rádio-relógio. Então, saltei para fora da cama. Tinha que me encontrar com Annie em dez minutos. Hoje nós iríamos visitar o jardim botânico, e eu não queria me atrasar. Era impressionante: aqui estava eu, uma amante das plantas, e nem sabia que um lugar desses existia na cidade. Annie estava abrindo os meus olhos para um mundo lindo e enorme que eu nem sabia existir. Apressei-me para tomar banho e trocar de roupa. Talvez eu nunca tivesse tido uma amiga de verdade, mas de uma coisa eu sabia: não se deixa uma amiga esperando. Amarrei meu cachecol com cuidado, bem firme em volta do rosto, e estava Pronta para sair. Eu caminhava rápido, pensando no dia à minha frente, então talvez tenha sido por isso que demorei alguns minutos até perceber que havia algo de diferente. Enquanto avançava apressada, percebi que vários passantes olhavam para mim com curiosidade. Coloquei a mão no cachecol para me assegurar de que não tinha saído do lugar e de que eu não estava me expondo. Mas não era para o meu focinho que as pessoa olhavam: era para o próprio cachecol. Não havia motivo para usá-lo hoje. Nem aquele casaco grande e pesado. Não havia frio no ar, nem vento cortante. As palavras do locutor do rádio me voltaram: alguma coisa sobre "a primavera chegou". Enquanto gotas de suor se formavam na minha testa, finalmente compreendi o que ele estava dizendo. O clima tinha mudado. Mesmo que eu ainda não tivesse me sentido desconfortável de calor, dava para ver provas da mudança de clima nas pessoas com quem eu cruzava na rua. Os casacos de pele, os gorros de lã e os casacos acolchoados tinham desaparecido. Vi capas impermeáveis e suéteres, e algumas pessoas não usavam nenhum tipo de casaco. E ninguém estava de cachecol. Eu não era burra. E, apesar de sempre ter vivido dentro de casa, conhecia as estações do ano. Eu deveria ter me dado conta de que, afinal, um cachecol de lã enrolado no meu
rosto não serviria para o ano todo. Mas eu tinha bloqueado o raciocínio, ou me recusado a pensar no assunto, ou qualquer coisa assim. E, agora, precisava encarar a realidade. Então, bem quando eu estava me debatendo sobre a magnitude deste dilema novinho em folha, outro problema apareceu. Na verdade, o problema se fez ouvir antes de se fazer enxergar. A voz perfurou todo o meu ser e me atingiu bem nas entranhas. — Franklin! Franklin! Olhe! É ela! É Penelope! Penelope! Nem precisa dizer que eu não tive que me virar para identificar a origem da voz que berrava histérica. Minha reação foi automática: simplesmente saí correndo. É surpreendente como a adrenalina tomou conta do meu corpo. Eu nem sabia que era capaz de correr tão rápido. Parecia que as minhas pernas eram motorizadas. Eles não iam conseguir me alcançar, mas mesmo assim eu sabia que estavam atrás de mim. Os gritos de minha mãe foram ficando mais fracos, mas eu ainda os escutava, e isso não era bom sinal. Meu coração batia furiosamente e o suor empapava minhas roupas. O cachecol no meu rosto estava úmido e pegajoso, grudando em mim como uma esponja molhada. Senti ondas de náusea. Avistei a placa do Cloverdilly, só a um quarteirão de distância. A esta altura eu já estava me sentindo enjoada de verdade. Tremia enquanto corria e minhas pernas tinham se transformado em gelatina. De algum jeito, não sei como, tonta e fraca e aos tropeções, consegui entrar no bar. — Aí está você, Cachecolzinho! — exclamou Annie. E então, em um tom diferente, disse: — Qual é o problema? Eu tinha parado de correr, mas o lugar estava rodando cada vez mais rápido, e eu me senti leve. Gritos abafados me rodearam. — Ela está desmaiando! — Chamem uma ambulância! — Liguem para a emergência! No minuto seguinte, eu não sabia muito bem se tinha caiou se o chão tinha se erguido para vir ao meu encontro. que o salão estava ficando escuro ou meus olhos tinham se fechado? — Afastem-se, deixem que ela respire! — reconheci a voz de Annie. Então senti uma mão no meu rosto, e percebi que estava soltando o meu cachecol. Eu queria gritar, "não, não", mas não conseguia falar. Mas então ouvi aquele berro conhecido, e estava gritando o que eu pensava.
— Não, não! Pare, não faça isto! Eu estava perdendo os sentidos. Minha última sensacão foi uma rajada de ar no rosto nu. E a última voz que eu ouvi foi a exclamação surpresa de Annie: — Penelope!
Capítulo Vinte e Dois
Abri os olhos. — Onde estou? Uma voz agradável, mas desconhecida, respondeu: — Está no hospital, srta. Wilhern. Então, não se preocupe, parece que não há nada muito sério com você. Mas, como desmaiou, os médicos querem fazer um exame mais detalhado antes de a liberarem. Eu estava imóvel, deitada de costas, olhando para o teto branco. Todos os acontecimentos me voltavam, com uma clareza excessiva. O calor, fugir dos meus pais, o Cloverdilly, a náusea. O cachecol... eu nem precisava colocar a mão no rosto para saber que ele não estava mais lá. As conseqüências, as implicações e as repercussões do que tinha acontecido desabaram em cima de mim. Fechei os olhos. — Senhorita Wilhern, está se sentindo bem? Vou chamar o médico. Forcei meus olhos a se abrirem novamente. — Não, está tudo bem. Então me esforcei para me sentar ereta e me virei para a parede, para que a coitada da enfermeira não precisasse olhar para o meu rosto. Infelizmente, a parede revelou-se uma janela. A boca dos repórteres se movia. Clarões de luz espocavam enquanto os fotógrafos à espera registravam a cena e um repórter conseguiu gritar alto o suficiente para que eu o ouvisse através do vidro. — Penelope! É verdade que você ficou presa em um porão durante 25 anos? — Penelope, você tem rabinho enrolado? Apressada, a enfermeira foi até a janela e fechou as cortinas. — Sinto muito por isto. As coisas estão uma loucura por aqui. O hospital está todo cercado de repórteres e fotógrafos desde que você chegou. Eu me afundei no travesseiro. Então, estava tudo acabado. Era o fim da linha para mim. O pior de tudo tinha ficado ainda pior. Além de saberem que eu existia, agora eles também sabiam onde eu estava. Eu mal notei quando a enfermeira tirou a minha temperatura e conferiu o meu pulso e a minha pressão sangüínea. Minha mente estava vazia. Eu não fazia a menor idéia do
que poderia acontecer a seguir. Estava tão confusa e atordoada que foi quase... quase um alívio quando a minha mãe entrou no quarto, seguida por meu pai. Pelo menos o ambiente hospitalar fizera com que Jessica abaixasse o tom de voz. — Ah, querida, coitadinha — murmurou ela, apressando-se para perto da minha cama. — Coitadinha da minha filha. O que eu podia dizer? Não é o fim do mundo? Achei que seria uma escolha bem segura partir do princípio de que eu não seria capaz de convencê-la. — Como está se sentindo, amorzinho? — perguntou meu pai, ansioso. — Estou bem — respondi. — Podemos ir embora? Eu quero sair daqui. Minha mãe olhou para a janela, cheia de medo. Os repórteres gritavam "Penelope, Penelope!" — Bom, não vai dar para sair neste momento, querida. Pedi à administração do hospital que nos acompanhasse por uma porta de serviço nos fundos. Suspirei. — Ah, mãe, para que tanto trabalho? Já é tarde demais para tudo isto. — Ora, ora, não se preocupe, Penelope, não se desespere. Tudo vai ficar bem — ela me reconfortou. — O papai vai comprar uma ilha deserta para nós em algum lugar no meio do nada. Ouviu-se uma batida na porta. — Franklin, tranque a porta! — gritou ela. Mas a porta se abriu antes que o meu pai pudesse alcançá-la, e um homem de branco entrou. — Saia daqui! — ela berrou. O homem ficou olhando fixamente para ela. — Eu sou o médico. É você que não devia estar neste quarto. Saia! Pelo menos minha mãe se deu conta de que este era um lugar em que ela não podia mandar. Ela e meu pai saíram. — Bom, srta. Wilhern — disse o médico. — Está tudo bem com os seus exames. Aliás, a sua saúde é excelente. Você é completamente normal. — Normal? — perguntei bem cínica e coloquei a mão n focinho. Só para o caso de ele não ter reparado. — Bom, tem isso aí, é claro. É uma anomalia muito interessante. Mas, tirando o fato de a sua artéria carótida atravessá-lo, seu focinho não tem absolutamente nenhum impacto sobre a sua saúde física de modo geral. Você só ficou com calor demais, e foi isso que a fez desmaiar. Não há razão para que permaneça no hospital.
— Obrigada, doutor. — Quer que a sua família retorne? — Não, obrigada, doutor. Por ter passado alguns segundos na companhia de Jessica Wilhern, ele sorriu em sinal de total compreensão e saiu. Tirei o jaleco do hospital e vesti as roupas que estava usando naquela manhã, com uma exceção. Nada de cachecol. De que adiantava, a esta altura? Ouvi outra batida na porta. Não fiquei surpresa: tinha certeza de que minha mãe daria um jeito de voltar para cá assim que o médico tivesse saído do corredor. — Entre, mãe — eu disse, resignada. Só que não era a minha mãe. Um homem de capa impermeável se esgueirou para dentro e tirou um bloquinho do bolso. — Penelope, só algumas perguntas, por favor. Eu resmunguei: ele obviamente era repórter. — Ah, será que vocês não podem simplesmente me deixar em paz? — comecei, e então fiz uma pausa. Havia algo muito estranho na maneira como ele olhava para mim. Não estava chocado, apavorado, horrorizado, amedrontado, enojado... Nem mesmo tinha pena de mim. Estava interessado. Mais do que interessado: estava fascinado por mim. 152 I — O que quer saber? — perguntei com cautela. — Como você se sente? — Eu me sinto muito bem. — Não, estou falando do seu... do seu focinho... desculpe quer dizer, o seu nariz... seja lá como isso se chame. Como você se sente com ele? — Ele também está ótimo. — Mas, mas... como é ter isso? O que ele faz? Como você cheira? Dei uma cheirada no meu pulso para experimentar. — Tem cheiro de Chanel n° 5. O repórter sorriu e fez uma anotação. — Com licença — eu disse, passando por ele e saindo pela porta. Meus pais vieram correndo pelo corredor na minha direção. Minha mãe segurava um enorme lenço de seda que devia ter acabado de comprar na loja de lembrancinhas do hospital.
— Por aqui, querida, vamos sair pelo portão de entregas. Começou a ajeitar o lenço ao redor do meu rosto, mas eu empurrei a mão dela para longe. — Não, acho que vou sair pela porta principal, como qualquer pessoa normal. Como está o meu cabelo? Pela primeira vez na vida, eu tinha deixado Jessica Wilhern sem palavras. Aproveitei-me do fato. Mãe, pai, preciso dizer uma coisa. Uma coisa muito importante. Meu pai pareceu assustado e minha mãe colocou a mão no Pescoço. — O que é, Penelope? — Não quero morar em uma ilha. 153
Enquanto eles absorviam a informação, eu passei por eles e saí pela porta principal. Câmeras bateram fotos e gritos saíram do grupo de repórteres que se aglomerou no pé da escada. — Penelope, como você conseguiu ficar em segredo durante 25 anos? — Você vivia acorrentada em um sótão ou em um porão? — O que vai fazer agora? A esta altura, meus pais já tinham se recuperado da minha declaração e estavam ao meu lado. — Vocês não podem deixá-la em paz? — suplicou minha mãe. — Tudo bem, mãe — eu respondi. — Pode deixar que eu dou conta. — Penelope, você tem alguma coisa a dizer para o mundo? Pensei por um minuto. — Oi. Foi aí que eu avistei Annie, em sua Vespa, esperando na frente do prédio. Acenou com o capacete sobressalente para mim. Desci a escada. — Até mais tarde, pessoal, tá? Os repórteres de fato se abriram como o mar Vermelho para mim, dando espaço para que eu chegasse até a rua e até Annie. Vesti o capacete e subi na garupa da Vespa. Achei que estava tudo acabado para mim. Estava errada. Isto era só o começo.
Capítulo Vinte e Três
Annie tinha me dado de presente um álbum de recortes e as primeiras páginas já estavam cheias de coisas que eu tinha colado. Diferentemente do antigo álbum dos Wilhern, este aqui era todo sobre mim. Havia fotos, cartas de fãs, uma caricaturazinha fofa feita por um desenhista. Fazia quase uma semana que eu tinha saído do hospital e tinha voltado para o meu quartinho alugado, e o zelador do prédio começara a jogar a correspondência que eu recebia na frente da minha porta, porque a caixinha de correio no térreo era muito pequena. Sentada na cama, espalhei os recortes e outras coisas que Precisava colocar no álbum. PENELOPE DIZ "OI", declarava a manchete que acompanhava a foto que me mostrava saindo do hospital. Havia reportagens no mesmo jornal: PENELOPE NEGA BOATOS DE MAUS-TRATOS ("Eu não culpo os meus pais, eles fizeram o que julgaram melhor para mim"), VENDAS DE CHANEL NÚMERO CINCO NAS ALTURAS ("Este é o cheiro de Penelope!"), NOVA TULIPA HÍBRIDA EM FORMA DE FOCINHO BATIZADA DE PENELOPE. Na página de fofocas e entretenimento, 155
havia uma foto minha com os braços cheios de sacolas de compras (ESTE PORQUINHO FOI ÀS COMPRAS). Quando terminei de colar as fotos e os recortes, comecei a abrir a pilha de cartas. Havia convites: um de um evento beneficente promovido pela Sociedade da Prevenção da Crueldade com Animais, outro era para um evento beneficente em favor dos direitos dos gays ("Penelope saiu do armário, você também pode") e um pedido para usar o meu nome para uma boneca Penelope meio menina, meio porca. Ouvi batidas rápidas na minha porta, seguidas por um: — Sou eu! — Pode entrar, Annie — eu disse bem alto. Ela estava fabulosa: o cabelo preso no alto da cabeça, um minivestido dourado, saltos altíssimos. Iríamos a uma boate, mais uma novidade para mim. E não era qualquer boate: iríamos tentar entrar no clube mais exclusivo de todos, onde as modelos e os playboys se divertiam. — Está pronta? — perguntou ela. — Quase. — Pulei da cama e conferi meu reflexo no espelho. Minha roupa também era bem legal, vermelha e agarradinha no corpo, bem curtinha. — Você viu isto? — Annie abriu uma revista que segurava. Sob a chamada "Central das Celebridades", lá estava eu, na mesma página da realeza e dos atores de cinema. — Obrigada. — Coloquei na minha pilha de recortes e saímos do quarto. Como sempre, na frente do prédio havia algumas pré-adolescentes pedindo autógrafos. Depois que assinei e elas foram embora, Annie disse: — Você vai ter que começar a se disfarçar, como as atrizes de cinema fazem com óculos escuros. Talvez você devesse inventar óculos para nariz. 156 Eu fiquei meio acanhada. — Sei lá, Annie. Às vezes eu me sinto uma fraude. — Como assim? — Estão fazendo todo este estardalhaço pra cima de mim, e é só por causa do meu nariz. Annie deu de ombros, despreocupada. — E daí? O seu nariz faz parte de quem você é. — Mas é exatamente este o problema — eu disse. — Ele não é parte de quem eu sou. Este não é o meu rosto. É a maldição.
A esta altura, ela ouvira toda a história, é claro. Sabia tudo sobre o tataravô Ralph e Clara e a bruxa, como eu tinha ficado escondida durante 25 anos, como precisava de um homem "da mesma classe" para se casar comigo e desfazer a maldição. — Às vezes parece que eu simplesmente vou passar a vida toda esperando que apareça alguém para quebrar o feitiço. Annie riu. — Ei, não o despreze. O seu nariz vai fazer a gente entrar no clube mais legal da cidade. E deve ter um monte de caras bacanas lá. — Mas como é que eu vou saber se algum deles tem sangue azul? — perguntei, preocupada. — Amiga, porque você simplesmente não tenta relaxar, se diverte um pouco e não se preocupa em arrumar marido hoje à noite? — sugeriu Annie. — Isso se a gente conseguir entrar — lembrei a ela. — Você é tão linda que pode entrar em um lugar chique, mas eu... — Tá brincando? — Annie riu. — Penelope, você é uma estrela. Eu vou entrar lá hoje à noite porque estou com você! 157
159 É claro que o segurança da porta logo ergueu a corda de veludo e fez um sinal para que nós entrássemos. As pessoas que esperavam na fila deram vivas e aplaudiram. Talvez Annie tivesse certa razão. Aquilo não era eu: mas pelo menos ninguém estava fugindo de quem quer que eu fosse. Lá dentro, o clube era espetacular, enorme, todo roxo e prateado, com luzes piscantes. A música era muito alta e, por todo lado, havia pessoas lindíssimas, dançando, bebendo e rindo. Reconheci vários rostos do cinema e da TV, e tenho certeza de que estava com cara de boba enquanto olhava ao meu redor, assombrada. — Acho que eu devia agir como se estivesse mais à vontade — gritei no ouvido de Annie. — Eu sei que não é considerado bacana ficar olhando para pessoas famosas. — Por que não? — gritou Annie em resposta. — Elas estão olhando para você. Anne tinha razão. A medida que os meus olhos iam se adaptando à iluminação maluca do clube, dava para ver que muita gente, até mesmo algumas celebridades, olhava diretamente para mim. E com aquela mesma expressão cheia de assombro que, eu tinha certeza, estava estampada no meu rosto. Fomos até o bar, onde pedimos nossas bebidas. O barman se recusou a aceitar o nosso dinheiro. — É uma honra tê-la aqui, Penelope — disse ele. Para alguém que vivia solitária havia 25 anos, era difícil digerir tanta atenção. Annie compreendeu isso, e atravessamos a pista de dança até uma mesa de canto, onde eu ficaria menos exposta. Mas reparei em alguns caras muito gatos olhando na nossa direção. Annie também os viu. — Nada mal, hein? Assenti. — Acho que estão olhando para você. — Como é que você sabe que não estão olhando para você? — retrucou Annie. Foi gentil da parte dela dizer isso, mas aqueles caras não pareciam do tipo que se interessa por uma porca, nem mesmo uma porca-celebridade. Um deles tinha cara de surfista, louro, bronzeado e esguio. O outro tinha cabelo escuro comprido, usava um brinco de diamante em uma orelha e parecia um astro do rock. Achei que eu tinha morrido e ido para o paraíso dos gatos.
— Eles estão vindo para cá — declarou Annie alegremente. — Espero que você esteja a fim de paquerar. — Não sei o que dizer a eles — eu falei, nervosa. — Não tenho nenhuma experiência em paquera. — Bom, eu sei que isso parece brega, e parece algo que uma mãe diria, mas simplesmente seja você mesma. Eu tive vontade de rir. — Annie, minha mãe nunca diria isso para mim. Como é que posso ser eu mesma se não sou eu mesma? — Desculpe, isso aí é um pouco existencialista demais para mim — disse Annie. — Olá, rapazes. Sentem-se aqui. Eles puxaram cadeiras e se juntaram a nós à mesa. — E aí, como vão as coisas? — perguntou o surfista. — Está tudo ótimo — respondeu Annie. Ela me lançou um olhar que dizia: fale alguma coisa. — É, comigo também está tudo ótimo. O astro do rock falou. — Eu sou o Steve. Este aqui é o Mike. — Olhou diretamente para mim. — E você é Penelope.
Desesperadamente, tentei pensar em alguma coisa inteligente para dizer do que "sou". — Oinc — respondi. Foi bem baixinho e Annie revirou os olhos para mim, mas os caras riram como se eu fosse hilária e espirituosa. Depois de mais alguns minutos de conversa, percebi por quê. Os dois eram absolutamente tediosos, sem senso de humor nenhum com sérios problemas de conversa. Annie tomou uma atitude. — Ei, Penelope, olhe só essas meninas que acabaram de entrar. Elas parecem tão conhecidas... Tem alguma convenção de top models na cidade? Os rapazes levantaram-se de um salto e saíram. Examinei a multidão na direção que Annie estava olhando. — Não estou vendo top model nenhuma. — É porque elas não estão aí. Eu só estava tentando me livrar deles. — Por quê? — perguntei. — Você não achou que eram burros? — Bom, claro — respondi. — Mas o de cabelo escuro, acho que ele meio que gostou de mim. Annie olhou para mim, pensativa. — Você gostou dele? — Não exatamente, mas... — Eu me lembrei do que Wanda tinha dito certa vez. — Na verdade não estou em condições de escolher. E porcas não podem ser seletivas. — Você está em condições de escolher, sim. E não e um porca. — Para você é fácil falar — eu respondi. — Você é linda. Annie nem tentou negar. — Eu sou bonitinha — ela disse. — Você é única. 160 — Porque eu tenho cara de porco. E isso não tem nada a ver com quem eu sou na verdade. Annie soltou um resmungo. — Tudo bem, quem você é, Penelope? E não me venha com aquela história do seu tataravô e a bruxa de novo. Estou perguntando quem você é lá no fundo, onde conta. — Como é que eu vou saber? Eu já disse, só vou saber quem eu sou quando eu me casar e me transformar em mim mesma. Annie ficou examinando sua cerveja. — Eu quase me casei uma vez.
— É mesmo? Ela assentiu. — Eu estava noiva. Joe era um cara bacana. Inteligente, bonitão. Tinha um bom emprego, não era alcoólatra, nem drogado, nem nada do tipo. E eu queria me casar. Sabe por quê? — Porque você tinha cara de porco? — brinquei. Ela não riu. — E, de certo modo. Eu achava que não era ninguém e que precisava me casar para ser alguém. Sabe como é, senhora fulana de tal. Então, um cara tinha que me querer. — O que aconteceu? — perguntei. — Eu fiquei esperta, bem a tempo — ela respondeu. — Olhei as amigas que tinham se casado e percebi que continuavam sendo as mesmas pessoas que eram quando estavam solteiras. E percebi outra coisa. — Ela sorriu. — Eu já era alguém, sempre tinha sido alguém. E eu não estava apaixonada por Joe, e isso significa que eu o estaria usando se me casasse com ele só para ser outra pessoa. O que não aconteceria mesmo, porque eu não precisava mudar. Isso faz sentido? 161
— É um pouco metafísico — eu disse a ela. — Vou ter de pensar. — O negócio é o seguinte — ela disse. — Você tem que parar de pensar no que vai ser, e simplesmente ser. — Agora você está me confundindo toda — eu disse. — Por que não tomamos mais uma cerveja e conversamos sobre algo fácil? 162
Capítulo Vinte e Quatro Este não era o tipo de reportagem de que Lemon mais gostava. Finanças não eram para ele, e cobrir o anúncio de uma fusão não parecia muito divertido. Mas esta era considerada uma pauta de prestígio no jornal em que ele trabalhava, e ultimamente o editor o andava presenteando com supostos tesouros como este. Descobrir Penelope finalmente tinha lhe dado um nome de destaque no meio jornalístico. Era inacreditável. No decorrer de uma semana, a menina tinha passado de segredo bem guardado a celebridade. Penelope estava em todo lugar. Paparazzi a seguiam, e qualquer fotógrafo que tivesse a sorte de conseguir uma imagem dela estava recebendo fortunas. Tudo que ela pensava sobre a moda ou política era procurado e relatado. Naquela manhã mesmo, Lemon tinha visto uma revista de boa forma e saúde com Penelope na capa e uma chamada dizendo: ELA NÁO COME COM0 UMA PORCA! O SEGREDO DE PENELOPE PARA MANTER A FORMA. Ele se juntou aos colegas de outros jornais que já estavam reunidos para a entrevista coletiva nas Indústrias Vanderman. Cumprimentaram-no calorosamente, com um respeito que ele nunca vira; mais uma coisa que tinha de agradecer a Penelope. Se é que algum dia voltaria a vê-la. A essa altura, ela já estava sendo cortejada por jornais importantes e revista alta circulação, e os boatos davam que os renomados programas de entrevistas da televisão 60 Minutes, Dateline e 20/20 disputavam para ver com quem ela falaria primeiro. Penelope agora estava fora de seu alcance. Só torcia para que ela estivesse feliz. — Boa tarde, senhoras e senhores da imprensa. Sou Edward Vanderman Sênior. Lemon sorriu. Não era muito comum um homem usar a palavra "sênior" no nome, a menos que estivesse se esforçando muito para se distinguir de seu "júnior". Claro que o Vanderman mais novo estava sentado no palco com outros homens de terno. O pai prosseguiu. — Eu os chamei aqui hoje para anunciar a fusão das Indústrias Vanderman com as Empresas Clifton, que a partir de agora se chamará Empresas Vanderman. Estamos esperando a aprovação dos órgãos federais, mas é claro que, como empresa de capital aberto, nossa principal preocupação é a reação dos nossos acionistas. Blablablá, chatice, chatice, chatice, pensava Lemon. Ele realmente lembrava com saudade da época em que trabalhava com notícias de gente que afirmava ter visto Elvis, de ir atrás de uma imagem da Virgem Maria em um forno de microondas.
— De acordo com os analistas de Wall Street, o impacto desta fusão na bolsa de valores... Lemon se desligou. Estava mais interessado em olhar para Vanderman Junior e contemplar o que podia estar se passando, em sua cabeça. Não tiveram nenhum contato desde a publicação do anúncio pedindo as fotos de Penelope. Ficou imaginando como Edward estava se sentindo, agora que o mundo finalmente sabia que ele tinha mesmo visto uma garota com cara de porco e não tinha tido um ataque de nervos. Será que finalmente conquistara a aprovação e o respeito do pai? E como se sentia ao ver o rosto de Penelope em todo lugar? Lemon se lembrava de como Edward estava naquele dia em que se conheceram, na delegacia de polícia. O coitado tremia; estava em estado de choque. Como estariam as coisas para ele agora? Será que começava a tremer toda vez que passava na frente de uma banca de jornal? Ou será que tinha se habituado à aparência dela, como as outras pessoas? Lemon não podia dizer que gostava de Edward, mas tinha alguma coisa nele que despertava pena. Lemon estava se sentindo gentil e generoso naquele dia. Pensou que talvez pudesse oferecer ao pobre rapaz uma chance de impressionar o pai. Um leve som de aplausos nada entusiasmados lhe indicou que Papai Vanderman tinha terminado seu comunicado. Agora estava pedindo perguntas. A mão de Lemon se ergueu. — Tenho uma pergunta para Edward Vanderman Júnior. Vanderman pareceu surpreso, mas fez um sinal com a cabeça para o filho, que pulou da cadeira e se juntou ao pai ao microfone. — Pois não? — perguntou. Lemon deu uma piscadela sorrateira para ele. — Compreendo que você foi o responsável por colocar Penelope Wilhern sob a atenção da mídia e do público de maneira geral — ele fraseou com solenidade. — E há boatos de que você tenha tido um relacionamento com a dita menina-porca. Pode fazer comentários sobre a questão? — Sabe, fico feliz por você ter feito esta pergunta disse Edward. — Estou furioso, sinto-me ultrajado com atenção que a mídia está dando a esta... criatura. A mulher é uma aberração, é um monstro, o lugar dela é no zoológico! Colocá-la na primeira página... vocês estão assustando as criancinhas! — Ele estava ficando tão agitado que nem pareceu notar o burburinho hostil que se espalhava pela sala.
Lemon olhou ao redor, para seus colegas, e experimentou um certo tremor. Parecia que estavam levando as críticas de Edward para o lado pessoal. Não que jornalistas fossem assim tão sensíveis ou suscetíveis a sentimentos. Estavam reagindo aos comentários de Edward da maneira como pais agiriam se alguém insultasse seus filhos. Será que Edward não fazia idéia de como Penelope se tornara admirada? Será que ele não conseguia ver a reação que estava provocando? A qualquer minuto, os repórteres iriam começar a procurar coisas para jogar nele. Vanderman Sênior sentiu o drama e empurrou o filho para longe do microfone. — Senhores, senhoras, passo a palavra ao presidente das Empresas Clifton. Enquanto outro homem se levantava da cadeira, Vanderman pegou o braço de Edward com muita força arrastou para fora do palanque. Agora outro homem estava ao microfone e começava a falar, mas Lemon estava se afastando da multidão de repórteres. Saiu da sala e disparou pelo corredor. Colocou-se atrás do elevador para escutar cada uma das palavras trocadas entre os dois Vanderman que se aproximavam. Tirou o bloquinho do bolso e começou a anotar. — Você perdeu a cabeça? — o Vanderman mais velho explodiu. — Você não pode falar de Penelope assim! — Pai, eu já disse, ela é um porco. Ela é nojenta. Ela tem focinho! — Não ligo se ela tiver um rabicó enrolado e se gritar oinc, oinc. O caso é que as pessoas a adoram. Você tem idéia de como vão falar mal de nós por causa do que você disse? Somos uma empresa pública! Nós adoramos o que as pessoas adoram! — Mas, pai... Pobre coitado, pensou Lemon enquanto o Vanderman mais velho continuava a dar bronca quase aos berros no filho. Edward bem que podia aprender uma lição com Penelope. — Isso sem falar de que precisamos do apoio da mídia para esta fusão. Isto é pior do que ter um ataque de nervos em público! Você vai precisa se retratar, seu idiota. E vai ter de tomar alguma atitude bem rápido. Mas o que eu posso fazer? Lemon escrevia furiosamente. Mas, infelizmente para ele, aquele exato momento, as portas do elevador se abriram, os Vanderman entraram e ficou a cargo da imaginação de Lemon adivinhar o que Edward poderia fazer para compensar sua mais recente humilhação.
Capítulo Vinte e Cinco
O bar estava lotado naquela noite, então talvez tenha sido por isso que eu não o vi logo de cara. Eu estava jogando dardos com Annie e um grupo de novos amigos, todos freqüentadores do Cloverdilly. A vida era boa. Eu continuava fazendo mais ou menos as coisas que sempre fiz: estudando francês, fazendo exercícios, cuidando de plantas. Mas agora a minha rotina tinha algo a mais: estava estudando francês em uma escola, com outras pessoas, em uma turma de verdade. Fazia exercícios em uma academia. E trabalhava como voluntária toda tarde no jardim botânico, orientando os visitantes e falando sobre as plantas. Os cinco mil dólares que eu tinha recebido pelas minhas fotos estavam começando a acabar, mas eu tinha recebido um pouco mais por aparecer em uma campanha publicitária de doces. O mais novo produto eram trufas de chocolate, e como as trufas de verdade eram encontradas por porcos farejadores, acharam que seria fofo colocar uma menina-porca para posar com as trufas de chocolate deles. A qualquer momento, fotografias de mim com chocolate lambuzado no focinho começariam a aparecer nas revistas. Não achei que seriam muito lisonjeiras para com a minha imagem, mas assim eu não precisaria pedir dinheiro para os meus pais. Não que eu tivesse renegado a minha família. Continuava visitando a mansão com regularidade, para cuidar das minhas plantas lá, e achava que minha mãe estava superando o fato de que eu não me escondia mais. Eu tinha passado por lá de manhã e fiquei surpresa ao ver que a especialista em casamento continuava por lá. — O que Wanda está fazendo aqui? — perguntei à minha mãe. — Penelope, apesar do que você fez, eu não desisti — disse minha mãe. — Ela marcou com um pretendente aqui hoje à noite. Meu coração se apertou. — Hoje à noite? Minha mãe ficou me olhando com severidade. — Você não se esqueceu de que vem jantar aqui hoje à noite, não é mesmo? Ah, se tivesse esquecido. — Não, não esqueci, mas achei que seríamos só nós. — Você ainda quer se casar, não quer, Penelope?
— Bom, claro, algum dia. Mas já não estou mais com tanta pressa assim. Minha mãe ficou chocada. — Como assim, não está mais com tanta pressa? Você tem que se casar, Penelope. É a única maneira de desfazer o feitiço. Suspirei. — Mas, mãe, as coisas mudaram para mim. Agora eu sou feliz. Tenho vida própria. Tenho amigos. — Amigos! — minha mãe sacudiu a cabeça. — Você não amigos, Penelope, você tem fãs. Você é uma moda passageira. Você é o assunto da semana. Isto não é popularidade de verdade, do mesmo jeito que o seu rosto não é o seu rosto de verdade. Eu me senti insultada. — Mãe, como pode dizer uma coisa dessas? Já passou pela sua cabeça que eles talvez gostem de mim? — Como é que eles podem gostar de você? — ela retrucou. — Eles não a conhecem. Ninguém conhece você, conhecem uma porca falante. Toda esta fama e atenção... Sinto muito, querida, mas não vai durar. As pessoas vão enjoar de você com muita rapidez. Eu queria argumentar com ela, mas não sabia bem como. Tinha me sentido tão feliz nas últimas semanas que nem pensara muito no futuro. Estava meio que seguindo o conselho de Annie: não pensava muito em quem eu poderia vir a ser algum dia. Estava apenas sendo. Mas talvez eu estivesse errada, e talvez Annie não compreendesse. Minha mãe colocou as mãos nos meus ombros e me forçou a encará-la. — Penelope, você não quer que os seus amigos conheçam a verdadeira você? Daí saberia quem são seus amigos de verdade. Eu detestava ter que admitir, mas minha mãe tinha certa razão. E era nisso que eu estava pensando quando chegou a minha vez de lançar o dardo no Cloverdilly naquele fim de tarde. — É isso aí, Penelope! — um coro de vozes elogiou meu primeiro dardo na mosca. — É isso aí, garota! — Annie berrou. — Ei, onde foi que eu deixei a minha cerveja? — Eu pego — ofereci. Fui até a mesa onde tínhamos deixado as nossas bebidas. — Oi, Penelope. Fazia algum tempo que eu não escutava aquela voz m ainda tinha o poder de me dar calafrios por todo o corpo. Virei-me para encarar Max e os calafrios se transformaram
choques elétricos. Eu tinha me esquecido de como ele era fofo. Não, isso não era verdade, eu não tinha esquecido mesmo: só estava me esforçando muito para não pensar no assunto. — Oi, Max. Tudo bem com você? — Tudo ótimo. Acho que nem preciso perguntar se está tudo bem com você. Dá para ver como está feliz. Parabéns. — Por quê? — Por ter se libertado. Por ter saído de casa. Para isso, é preciso ter coragem. Quem foi o responsável? — Eu queria me libertar — respondi. Não havia dúvidas de que os olhos dele brilhavam de admiração. — Bom, agora você está livre. E não é só livre, é também famosa. Como é isto? Eu ri, acanhada, e fiquei examinando o chão. — É um pouco esquisito, acho. Mas é legal. — Eu a admiro — ele disse com simplicidade. Ergui os olhos. — Admira mesmo, Max? Então, agora que eu sou famosa, será que você mudou de idéia? Quer se casar comigo agora? A minha intenção era fazer com que a observação parecesse uma coisa espirituosa, tipo uma piadinha entre nós. Mas não saiu assim. Enquanto as palavras saíam da minha boca, eu escutava como soavam. Era um pedido real, e eu quis desesperadamente poder retirá-lo. Será que dava para eu ser mais ridícula? Por acaso eu não tinha nenhum orgulho? Pelo menos Max fez a gentileza de parecer acanhado com a minha escorregadela. Ele nem desviou os olhos. — Desculpe, Penelope. Continuo sem poder. — Eu só estava brincando — garanti a ele, apressada. — Preciso ir andando. Legal ver você. Corri de volta para onde Annie estava com a cerveja dela e percebi que ela estivera me observando. — Então é ele. Fingi inocência. — Ele quem? — O cara. O amor da sua vida. O homem sem o qual você não pode viver. Forçando um sorriso, sacudi a cabeça. — Não, mas espero que esse cara aí esteja na casa dos meus pais hoje à noite.
— Outro encontro às escuras? Assenti. Annie suspirou. — A sua mãe nunca desiste, não é mesmo? — Ela não pode desistir — respondi. — E se eu algum dia quiser ser eu mesma, também não posso desistir.
As palavras continuavam ressoando nos meus ouvidos ando entrei em casa um pouco mais tarde. — Oi, Jake. Como estão as coisas? — Exatamente como sempre, srta. Penelope. Nada nunca muda. — Ah, fale sério, não é verdade, Jake! — exclamei — As coisas mudam. Olhe só para mim! — Você continua a mesma, senhorita. Aquela era uma coisa estranhamente pessoal para ele dizer, e eu fiquei incomodada. Aquilo não era verdade mesmo! Eu tinha saído de casa. Estava construindo uma vida para mim Eu era famosa. Eu era Penelope Porca! — O jovem ainda não chegou, senhorita. Então percebi o que ele quis dizer com a frase: "Nada muda." Eu continuava enfeitiçada. — Cadê a minha mãe? — perguntei a ele. — Está à sua espera na sala de jantar com a srta. Wanda — respondeu Jake. As duas estavam juntinhas, cochichando, quando eu entrei, e pararam no segundo em que me viram. Olhei para elas desconfiada. — O que está acontecendo? — perguntei. — Nada — minha mãe respondeu rápido. — Só estávamos falando do visitante que vem conhecer você hoje à noite. — E exatamente quem é este visitante? — perguntei. — Achei que, a esta altura, vocês já tinham esgotado todos os homens de sangue azul. Wanda mordeu o lábio. — Bom, é alguém que já... bom, digamos que ele tenha pensado melhor. E ele vai voltar para vê-la. Meu coração estava na garganta. Por um minuto louco e selvagem. Pensei que ela poderia estar falando de Max.
— Ele... vai voltar? Minha mãe se levantou. — E aqui está ele! Virei-me para a vitrine que mostrava a sala de música. E o meu coração, que estava na garganta, afundou para a boca do estômago. — Edward. — Bom, não o julgue pela maneira como reagiu antes — suplicou minha mãe. — Dê-lhe a chance de se explicar. — Explicar o quê? Por que ele fugiu de mim? — Exatamente! — ela respondeu, toda animada. — Agora, vá lá e ouça o que ele tem a dizer. Resmunguei. — Será que não posso simplesmente ouvir a desculpa dele através do vidro? Realmente não estou a fim de ouvir os gritos dele. Nem vê-lo desmaiar, ou vomitar, ou... morrer. Aliás, talvez isso não fosse assim tão ruim. — Penelope! Mas que coisa horrível de se dizer! — É, tem razão — admiti. Olhei pelo vidro para Edward. Ele andava de um lado para o outro, nervoso. Realmente estava com cara de quem podia vomitar a qualquer minuto. Eu quase fiquei com pena dele. — Tudo bem, mãe. Entrei na sala de música pela porta que a ligava à sala de jantar. — Oi, Edward. Ele se virou para mim e tive que admirar seu autocontrole. rosto dele estava pálido, mas ele não gritou, e seus lábios formaram um sorriso débil. — Oi, Penelope. — Quer se sentar? — perguntei. — Não exatamente. E, para minha surpresa, ele se abaixou, apoiado em um joelho só. — Edward, o que está fazendo? — Ah, Penelope, eu fui tão tolo. Quando fugi da última vez, não estava fugindo de você. Estava fugindo dos meus sentimentos. Dos meus sentimentos em relação a você. Olhei para ele sem entender nada. — Ah,é?
— Eu estava com medo: com medo do futuro, com medo do compromisso. Eu estava com medo de... de amar. Fiquei completamente atordoada. — De amar quem? — Você, Penelope! Eu sempre fui apaixonado por você, desde a nossa primeira conversa. Você arrebatou meu coração, você foi a única pessoa no mundo que me entendeu. Cocei a cabeça. — Acho que eu não estou entendendo você neste exato minuto, Edward. Parecia que ele não tinha me escutado. — Não consigo parar de pensar em você. Você fica na minha cabeça dia e noite. Eu sonho com você. Você é a única mulher no mundo para mim. Foi quando percebi que ele estava segurando uma caixinha. — Penelope... querida, maravilhosa Penelope... Ele abriu a caixinha. O diamante era grande o suficiente para iluminar a sala. — Quer se casar comigo?
Capítulo Vinte e Seis
Lemon tinha começado a perceber que subir na hierarquia do mundo do jornalismo deixava algo a desejar: especificamente, a emoção. Ele esperava que, a esta altura, estaria na prefeitura revelando políticos corruptos mas, em vez disso, tinha sido promovido a editor-assistente. Por isso, passava o dia inteiro sentado a uma mesa, editando textos a respeito de políticos corruptos. Estava começando a ficar com saudade do tempo em que entrevistava vítimas de abduções alienígenas. Então, quando o editor de reportagem apareceu à sua porta, ele ergueu os olhos, cheio de ansiedade. — Estou com falta de repórteres hoje — o editor lhe disse — Quer sair para fazer uma reportagem de interesse humano? — Mas é claro — respondeu Lemon. — Qualquer coisa, é só falar. — É uma entrevista. O título provisório é "do sangue azul para o xadrez". — Quem é? — Um sujeito chamado Maxwell Campion. Ele está cadeia do condado. Lemon ficou estupefato. — Está brincando. O que aconteceu? Ele passou um cheque voador? O editor sacudiu a cabeça. — Assalto a mão armada. Agora Lemon estava completamente chocado. Não conseguia acreditar. Max podia ter alguns problemas de atitude é claro, mas não dava para imaginar aquele rapaz recorrendo à violência. — Tem certeza? Você não se enganou de nome? O editor olhou o papel que tinha na mão. — Não. Estou com o boletim de ocorrência aqui mesmo. Então, que tal, quer a pauta? — Quero. Lemon gostava de pensar que, com o passar dos anos, tinha desenvolvido a objetividade que todos os bons jornalistas precisavam ter e que nunca permitiria os sentimentos pessoais interferirem em uma reportagem. Mas isto não seria fácil, entrevistar Max, ver um cara de quem ele... bom, de quem ele quase se orgulhava...
atrás das grades. Ele se lembrava de achar que Max parecia ser uma pessoa sensível, que demonstrava uma certa decência verdadeira na personalidade, principalmente ao ter se recusado a explorar Penelope tirando uma fotografia dela. Isto era realmente chocante. E Lemon ficou igualmente surpreso consigo mesmo. Depois de todos esses anos conhecendo todos os seres humanos bons, maus e estranhos que existiam, como é que poderia ter avaliado tão mal o caráter de alguém? O que poderia ter levado Max a fazer isso? Por um instante ele se sentiu culpado, imaginando se a necessidade de dinheiro de Max tinha alguma coisa a ver com a dívida que estava pagando a Lemon. Mas o mais provável era que tivesse retomado seus hábitos de jogo e tivesse ficado sem dinheiro para colocar na mesa. Lemon já tinha estado na cadeia, é claro, por causa do trabalho. Não era um de seus lugares preferidos. Quando fez a curva com a van e atravessou os portões altos, sentiu a depressão tomando conta de si. Passando por guardas em todo lugar. Mostrando sua identidade a cada três passos. Sentindo os olhos raivosos e amargurados dos prisioneiros de macacão branco e algemas. Por experiência, conhecia os procedimentos para interrogar um detento. Ficava esperando em uma área de recepção com esposas e namoradas de semblante triste, crianças de olhar confuso e um ou outro colega de aparência rota. Quando seu nome era chamado, era acompanhado até outra sala, cheia de mesinhas em baias separadas. Havia uma cadeira de cada lado da mesinha e as mesinhas eram divididas por uma parede de vidro. As divisórias de vidro tinham um telefone de cada lado. — Número quatro — o guarda lhe disse em tom entediado. Lemon foi até a cabine e viu um homem corpulento sentado, esperando do outro lado do vidro. Voltou ao guarda. — Não, o meu nome é Lemon, estou aqui para falar com Max Campion. — Número quatro — o guarda repetiu. Ele devia ter ido à cabine errada. Desta vez, Lemon olhou os números com muito cuidado. Mas a cabine designada "quatro" era a mesma que ele já tinha conferido, e o mesmo homem estava do outro lado. O prisioneiro pegou seu telefone e indicou a Lemon fizesse o mesmo. — Você é o cara do jornal? — S-sou, mas acho que houve um erro. Estou aqui para falar com Max Campion. — Sou eu, Max Campion. — Então... deve haver outro Max Campion.
— Que nada, eu era filho único. Este aqui é espertinho, Lemon pensou. — Não, quer dizer, outra pessoa com sobrenome Campion e primeiro nome Max. O homem estava com cara de quem não estava entendendo absolutamente nada. — Maxwell Campion — Lemon disse de novo. — Filho do falecido magnata dos imóveis Clarence Campion. — Ei, eu sei qual é o nome do meu pai. Do mesmo jeito que sei o meu. Você vai me entrevistar ou o quê? Lemon se deu conta de que havia algo de vagamente familiar naquele sujeito. Tentou enxergá-lo em uma camisa de estampa havaiana berrante. — Você joga no salão dos fundos do Cloverdilly? — Jogo sim, claro, o que tem? Era como se um relâmpago o tivesse atingido. Não... era mais como se fosse míope e acabasse de colocar óculos corretivos. De repente, tudo ficou claro. O acontecimento de tanto tempo atrás foi repassado em sua mente naquele instante. O bar Cloverdilly e o segurança truculento sentado em um banquinho. Lemon pedindo a ele que indicasse quem era Max Campion. O homem apontando para uma mesa onde um sujeito corpulento com uma camisa havaiana berrante, uma mulher de cabelo azulado, um velho e um rapaz mais novo jogavam cartas. — É aquele ali. O mais jovem estava se levantando, então Lemon achou que era a ele que o segurança se referia. Estava errado. Devia ter olhado para o sujeito de camisa havaiana. Aquilo tudo fazia sentido: a maneira como Max não respondeu quando Lemon chamou seu nome. Era como se estivesse escutando a conversa. "Olhe, Campion, tenho uma proposta a fazer a você." "Está falando com o cara errado." — Ei, seu repórter, tem perguntas a fazer para mim ou o quê? — É, tenho uma pergunta, sim — Lemon respondeu. — Quando você estava jogando no Cloverdilly, tinha um cara que freqüentava muito a sua mesa. Jovem, cabelo desgrenhado. Sabe o nome dele? Campion coçou a testa. — Sei sim, Marty. — Marty do quê? — Não, espera, Martin. — Certo, Martin do quê?
— Não, é "alguma coisa" Martin. — Hã? Campion estalou os dedos e pareceu imensamente orgulhoso de si mesmo. — Johnny! Johnny Martin! Lemon se levantou de um pulo. — Valeu, camarada. — É isso? Você não quer me perguntar mais nada? Mas Lemon já estava saindo da sala. Tinha outra entrevista a preparar.
Capítulo Vinte e Sete
Eu estava sozinha no provador, só de calcinha e sutiã, esperando a vendedora trazer coisas para eu experimentar. Todas as mulheres que trabalhavam na loja ficaram bem animadinhas quando eu entrei. Imagine que, naquele ramo, era costume dar sempre uma olhada nas colunas sociais, de modo que tinham visto o comunicado. Saíra em todos os jornais da cidade, e provavelmente em alguns de fora também. O sr. e sra. Franklin Wilhern têm o prazer de anunciar o noivado de sua filha, Penelope, com Edward Vanderman Júnior, filho do sr. e da sra. Edward Vanderman Sênior. A cerimônia se dará na propriedade dos Wilhern... Etc. etc. Eu fiquei surpresa em ver que a minha mãe escolhera a Palavra "prazer"... estava esperando algo como "estão em êxtase". — Então, o que acha deste, srta. Wilhern? — A mulher carregava o vestido estendido entre os dois braços, como se fosse um bebê branco e comprido. — É clássico, bem tradicional. Está a seu gosto? — Não sei — respondi. — Talvez. Eu sabia que a maioria das mulheres passava as semanas anteriores ao casamento pensando no vestido e examinando fotografias, e Annie tinha me trazido pilhas de revistas de noivas, mas a cada vez que eu olhava para elas, começava a rir. Não sei bem o motivo. Talvez porque a imagem de uma noiva-porca fosse engraçada. Ou talvez fosse para evitar que eu chorasse. Bem obediente, permiti que a mulher me ajudasse a entrar em toda aquela seda branca e fechasse o que pareciam ser mil ganchos. — Claro que vai precisar ser encurtado e ajustado na cintura, mas assim você pode ter uma idéia. Ela me virou na direção do espelho. Eu não ri: acho que era porque eu não parecia engraçada. O vestido era bonito, elegante e discreto. — Legal — eu disse. A mulher pareceu decepcionada. — Só legal? Ah, acho que compreendo. Acho que você quer algo mais moderno. Quer dizer, você não é exatamente o tipo de noiva clássica, não é mesmo?
— Não — respondi. — Não exatamente. Ela me ajudou a tirar o vestido, levou-o embora e voltou com mais uma trouxa de coisa branca. Agora era um tubinho longo e estreito, que se modelava a cada curva do meu corpo. — Você parece uma estátua grega! — a mulher exclamou, extasiada. — Tem alguma estátua grega de porco? — perguntei. Então a mulher soltou gargalhadas e mais gargalhadas. — Ah, você é tão fofa! Minha mãe tinha razão: eu era uma novidade, a porquinha falante fofa. Bom, não por muito mais tempo. — Talvez seja um pouco simples demais — disse a mulher. — Deixe-me trazer alguma coisa mais divertida. O vestido foi tirado, esperei, e outro vestido chegou. Este parecia ser feito de montes e montes de chantili. — Penelope? Cadê você? — Estou aqui, Annie. Annie se juntou a nós no provador. — Desculpe pelo atraso. Perdi alguma coisa maravilhosa? — Uma coisa clássica e uma coisa simples. O que acha deste aqui? Annie olhou as nuvens brancas infladas de cima a baixo. — Está parecendo alguma coisa de comer. Concordei. — Foi o que pensei. Merengue de porco. Que delícia. A vendedora teve um ataque de riso histérico de novo. — Ela é tão engraçada! — disse a Annie. Ela estava me irritando. Pedi que trouxesse vários vestidos, que a minha amiga me ajudaria a vestir e tirar. O seguinte era menos inflado, mas cintilante demais. — O que você acha? — perguntei a Annie. — Não tem nada a ver com você — ela respondeu. — Annie, eu não sou eu. — Ah, fala sério, Penelope, como pode dizer uma coisa dessas? — Porque é verdade! Este não é o meu rosto, é o rosto do meu tataravô. — Dei um sorriso tristonho. — É irônico, de certo modo. Só vou saber se estou com o vestido certo depois que eu disser "Aceito".
— Como está sendo morar de novo com os seus pais? Eu tinha acabado de me mudar naquela manhã. Com toda a confusão dos preparativos para o casamento, eu tinha me deixado convencer disso. — Não é tão ruim. Minha mãe está de ótimo humor, mas que surpresa. Annie sorriu, mas dava para ver que havia algo mais na cabeça dela. — Penelope... — O quê? — Você ama Edward? Experimentei o véu que acompanhava aquele vestido. — Será que eu devo usar isto aqui para cobrir o rosto durante a cerimônia? Depois, quando formos declarados marido e mulher, eu levanto e... voilà! Você acha que seria teatral demais? — Penelope, você não respondeu à minha pergunta. Você ama Edward Vanderman? — Edward Vanderman Junior — corrijo. — Sabe, Annie, acho que ele é basicamente uma pessoa decente. O problema é que ele é filho único e foi muito mimado pelos pais. Principalmente pela mãe; ela ainda o trata como se fosse bebê. Ele ainda precisa crescer. — Mas você o ama? — insistiu Annie. — A sua própria maneira, ele até que é meio adorável — eu disse a ela. — Só que é inseguro. E tem um ego enorme. Espere, será que isto é uma contradição em termos? — Penelope! Suspirei e tirei o véu. — Ele pode desfazer o feitiço, Annie, é o que importa. — Mas, e aquele cara do Cloverdilly? Do jeito que você estava olhando para ele, eu sei que você sente alguma coisa por ele. Será que ele não pode desfazer a maldição? Dei um sorriso triste. — Ele não quer. Annie, tente entender. A vida toda, tive este rosto que não é meu. Quero ser eu. Annie me deu um abraço rápido. — Eu sei, eu entendo. Tudo bem, talvez Edward não seja o homem dos seus sonhos. Mas, se você quer se casar com ele... bom, vou estar lá para festejar com você. — Obrigada — eu disse. — E quem sabe? Talvez eu possa aprender a amar Edward. Annie parecia em dúvida. — Acha mesmo?
Refleti sobre a possibilidade. — Bom... Posso aprender a tolerá-lo. — O que aconteceria se você se casasse com ele e depois se divorciasse? — Annie quis saber. — O seu focinho cresceria de novo? — Acho que eu não quero pagar para ver — respondi. — Tá legal, que tal este vestido? Finalmente concordamos em um modelo, e a vendedora entrou para me medir e colocar alfinetes no vestido para fazer as alterações. Depois, fomos à floricultura do outro lado da rua para escolher as flores do meu buquê. — Penelope, olhe! Tulipas amarelas, as suas preferidas! Eram lindas. Emiti oohs e aahs para os vasos cheios de flores amarelas enormes e reluzentes. Não havia nenhuma flor no mundo que pudesse me deixar mais feliz. — Ela vai se casar — disse Annie ao vendedor. — Quer um buquê de tulipas amarelas? — o homem perguntou. Mas, estranhamente, a idéia de segurar tulipas amarelas para casar com Edward não me encheu de alegria. Ou talvez não fossem só as flores que pareciam deslocadas. No minuto em que as luzes se apagaram na sala de concerto, as pálpebras de Edward baixaram. Só fiquei torcendo para que ele não roncasse. Ele não tinha ficado muito emocionado com o programa noturno em família, mas os dois pais e as duas mães tinham insistido muito. Era um concerto beneficente para arrecadar fundos para alguma causa refinada; eu nem sabia o que era. Mas as Indústrias ou Empresas Vanderman, sei lá qual era o nome, eram um dos patrocinadores, então a família de Edward tinha de estar lá. E como seria um evento de muita visibilidade, minha mãe também quis ir. E também não era só por causa da música. Ela e meu pai não tinham saído muito nos últimos 25 anos. Meu problema os transformara em eremitas também. Agora que todo mundo sabia da minha existência, eles podiam voltar a se socializar. De certo modo, minha fama libertara toda a família Minha mãe nem tentou fazer com que eu usasse meu chape vintage com um veuzinho. Era uma orquestra de jazz e eu gostei da música. Era a primeira vez que eu ouvia música como aquela ao vivo, e me envolvi com o som. Quando a mãe de Edward me passou seu pequeno binóculo, eu não queria muito usá-lo: era legal só ouvir, eu não precisava ver o rosto dos músicos. Mas como tinha oferecido, eu aceitei para ser educada. Segurei-o na frente Aos olhos e examinei o rosto dos músicos. Era bem
interessante ver cada expressão diferente. Alguns pareciam intensos, como se estivessem se concentrando; outros pareciam sonhadores, como se estivessem envolvidos pelos sons... E um deles se parecia com Max Campion. Inclinei-me para a frente, segurando o binóculo com força. Era Max, debruçado no teclado do piano, as mãos batendo nas teclas. Abri o programa e procurei por seu nome, mas não estava lá. Dizia que o pianista era "Johnny Martin". Max devia estar ali como substituto. Fiquei feliz por Edward estar dormindo. Devia estar na minha cara o modo como eu estava me sentindo. Edward provavelmente não seria capaz de reconhecer a expressão, mas, mesmo assim, eu não queria que ele visse. Ele poderia se lembrar da minha expressão e imaginar por que eu nunca olhava para ele daquele jeito. Quando o concerto terminou, houve uma festa para os patrocinadores e a banda. Pensei na possibilidade de ficar com uma enorme dor de cabeça, mas me vi arrastada junto com a família para o salão de recepção. Pelo menos era grande e estava lotado, de modo que havia uma boa chance de não esbarrar em Max. Então, por que eu fui procurá-lo? Usando a velha desculpa de ir ao banheiro, afasteime do grupinho familiar e saí caminhando pelo salão sozinha. Movimentando-me no meio da multidão, vi vários músicos, mas não aquele que eu desejava ver. Fiquei imaginando que Max talvez tivesse resolvido não comparecer à festa. Não achava que ele fosse do tipo que gosta de festas e, além do mais, ele era músico substituto, não era integrante regular da orquestra, então talvez tenha achado que não precisava ir. Consegui localizar um bufê com minibombas e peguei algumas com um guardanapo. Como eu não gostava de comer em público (sempre tinha que ficar atenta para piadinhas sobre comer como uma porca), peguei meu pequeno tesouro açucarado e levei para o que parecia ser uma espécie de sala de descanso. Nem consegui atravessar a porta. Já havia duas pessoas lá dentro, e reconheci a voz delas imediatamente. — Não faça isso, Vanderman, não é correto. Você não vai fazer isso por ela. Não vai nem fazer por você mesmo. Vai fazer só para deixar o seu velho feliz. — O meu pai vai me nomear vice-presidente. O que você acha disto? — Acho que você só está desesperado para ter o respeito dele. Vale a pena acabar com a vida de Penelope por isso? — Você teve a sua chance, Campion. Você não a quis. Isto não é da sua conta.
Nada que tinha sido dito era novidade para mim. Eu sabia por que Edward se casaria comigo. Eu sabia por que eu me casaria com Edward. Nós estávamos usando um ao outro para obter o que desejávamos. Mas houve um elemento que me surpreendeu. Com Edward conhecia Max? Talvez existissem clubes de sangue az para rapazes. — Tem mais uma coisa que eu não entendo, Campion. Por que você se importa se eu casar com Penelope? O que isso tem a ver com você? Isso me deixou intrigada. Fiquei tensa para ouvir a resposta de Max. — Eu me importo porque você não a ama, Vanderman. Você deixou isso bem claro. Do que mesmo você a chamou? De monstra? Você nem agüentava olhar para ela! Por que mudou de idéia? — Não mudei — explodiu Edward. — Mas você quer contar a ela que eu morro de nojo só de pensar em beijá-la? Quer deixar a porca de coração partido? Afastei-me para longe da porta e joguei minhas bombas em um cesto de lixo. Lentamente, voltei para o salão de recepção. Meu pai me avistou e se aproximou. — Tudo bem, Penelope? — Tudo, pai — respondi no automático. — Tem certeza? — Ele colocou o braço em meus ombros. — Você não parece feliz. É por causa... é por causa de Edward? Eu não disse nada. — Sabe, querida, apesar do que a sua mãe diz... Você não é obrigada a se casar com ele. Toquei no rosto que na verdade não era meu. — Sou sim, pai. Eu sou.
Capítulo Vinte e Oito
Armado com uma pasta cheia de páginas impressas da Internet, Lemon entrou no Cloverdilly na manhã seguinte. Ainda não havia clientes, só o rapaz da limpeza. — Como vai, Johnny Martin? O rapaz antes conhecido por Max continuou varrendo, mas ergueu os olhos só o suficiente para dar um sorriso acanhado. — Demorou bastante para você perceber, Lemon. Mas que belo jornalista investigativo, hein? — Ei, eu cobri aparições de discos voadores e jacarés de duas cabeças — Lemon respondeu. — A única investigação que fiz foi minha busca por Penelope Wilhern. E só demorou 25 anos. O rapaz fez uma careta. — Mas você chegou a ela no final. — É, e agora estou com a consciência pesada — disse Lemon. — Bom, talvez você tenha feito algo de bom para ela no longo prazo. Conseguiu fazer com que ela saísse daquela casa. Lemon assentiu. — É, e agora finalmente alguém está disposto a se casar com ela e desfazer a maldição. Infelizmente, esse alguém é Edward Vanderman Júnior. O que acha disso, sr. Martin? — Pode me chamar de Johnny, está bem? — Ele apoiou a vassoura na parede e se sentou na banqueta do piano. Com uma das mãos, tocou algumas notas. Lemon não entendia muito de música, mas por instinto percebeu que o sujeito tinha talento. Com a afinação certa ele seria capaz de mostrar como se sentia, o que achava do casamento vindouro de Penelope e Vanderman. — Você gosta dela, não gosta? — perguntou Lemon. Johnny continuou a tocar. Ele não respondeu à pergunta de Lemon, mas nem precisava. Estava tudo na música. Lemon interpretou o que ouvia. — Você a ama — disse na lata.
Johnny tirou as mãos do teclado e bateu a tampa com força. Ergueu-se, pegou a vassoura e começou a varrer furiosamente. — Eu pensei no assunto — prosseguiu Lemon. — Eu sabia que tinha alguma coisa rolando na primeira vez que você foi lá e não fez a foto. Primeiro achei que você só tinha pena dela, mas quanto mais a coisa durava, mais eu ia vendo que você sentia algo mais forte. Em silêncio, Johnny empurrou a sujeira do chão para uma pá e a esvaziou no cesto de lixo. Depois pegou um pano e começou a limpar o balcão. Lemon prosseguiu. — E comecei a pensar, isso não faz sentido. Se ele está apaixonado por ela, por que não quer se casar com ela e desfazer a maldição? Foi aí que eu entrei na Internet e pesquisei um pouco. Ele apontou para a pasta que trazia na mão. — Bom, eu não sou nenhum tarado por tecnologia e tudo isso é novidade para mim. Mas é impressionante o que a gente pode desencavar sobre as pessoas no Google. Johnny falou: — Até mesmo sobre zés-ninguém como eu? Lemon se sentou a uma mesa e abriu a pasta. — John Andrew Martin — leu. — Idade, 25 anos. Estudou piano, tocou com a banda de jazz New Age. Largou depois de quatro meses. Tocou com a banda de Lloyd Dirkson. Largou depois de seis semanas. Pianista do bar Cloverdilly. Johnny terminou seu próprio currículo. — Três semanas. Demitido. — Qual é o problema, você é péssimo pianista? — perguntou Lemon. — Não, eu sou bom, bom pra caramba — respondeu Johnny. — Mas tive um probleminha. — Fez uma pausa. — Um problemão. Lemon nem precisou adivinhar. — Jogo. O rosto de Johnny estava sombrio. — Eu não conseguia ficar longe das mesas de jogo. Dia e noite. Perdia muitos ensaios. Na metade do tempo, eu nem aparecia para as apresentações e, na outra, estava cansado demais para tocar bem. E estava completamente duro. Fui despejado do meu apartamento no mês passado. — As coisas estão melhorando para você?
Johnny assentiu com a cabeça. — Jogadores Anônimos. Faz três meses que não seguro uma carta. — Ele de fato sorriu. — E voltei a tocar, com uma banda de jazz nova. Quem sabe um dia destes eu vá ter dinheiro para morar em algum lugar... — Onde está dormindo agora? Johnny abriu uma porta. No chão do estoque havia um colchão. Lemon fez uma careta. — Ah, cara, que tristeza. — Então, por impulso, disse: — Tenho um quarto extra em casa, pode ficar com ele. — Ah, é? — Até se recuperar financeiramente. — Uau. — Johnny parecia eternamente grato. — Seria uma maravilha. Não seria para sempre, parece que vou começar a ganhar algum dinheiro. Acho que esta banda nova vai se dar bem. Demos um show ontem à noite na sala de concertos, um evento beneficente enorme de sociedade. — Então a expressão sombria voltou ao rosto dele. — Vi Penelope lá com os Vanderman. — Bateu o punho fechado no balcão. — Ei, cuidado! — exclamou Lemon. — Você ganha a vida com essas mãos. Não quero que fique morando na minha casa para sempre. — É, eu sei. Mas é que eu fico tão... bravo. Tentei conversar com Edward ontem à noite. Estava achando que talvez ele tivesse mudado. Mas ele não está nem aí para ela. Só e seguindo as ordens do papai. — Eu sei — disse Lemon. — Então, como é que você pôde deixar isso acontecer? Johnny olhou para ele bem de frente. — Se você fez sua pesquisa bem direitinho, já sabe por quê. Lemon assentiu e retornou a suas anotações. — Filho de Eric Martin — leu. Fez uma pausa e ergueu os olhos. — Encanador. — Ele é um encanador bom para caramba, aliás — Johnny disse. — Mas você conhece a maldição. Só uma pessoa da mesma classe que ela pode desfazer o feitiço. — E você não tem sangue azul. — Exatamente. Lemon o examinou da cabeça aos pés. — Mas você a ama. — E daí? Não ouviu o que eu disse? Não posso desfazer a maldição.
— Mas você a ama! — Lemon disse de novo. — Talvez isso seja mais importante para ela. — Mais importante do que ficar normal depois de 25 anos? — Johnny estava incrédulo. — Você enlouqueceu? — Como é que você sabe o que ela pensa? Já pensou em dizer a ela que a ama? — Não. E nunca vou pensar. — Mas por que não? Não acha que ela merece saber? — Acho que ela merece ter uma vida normal — Johnny explodiu. — Mas talvez ela prefira ter você! Acho que talvez ela o ame. O rosto de Johnny estava trespassado pela dor. — É disso que eu tenho medo. — Espere aí, só um minuto — disse Lemon. — Não estou entendendo nada. — Tenho medo de que ela abra mão de sua chance de normal por mim. — Mas você não acha que a escolha tem que ser dela? — perguntou Lemon. — Nem quero que ela sinta a tentação. Ela merece uma chance de ser feliz. A dor no rosto dele era quase insuportável de se ver, e Lemon desviou os olhos. — Eu não vou tirar esta oportunidade dela — disse Johnny baixinho. De volta a sua van, Lemon socou o volante de tanta frustração. Por que, por que, por que ele se deixara envolver desta maneira? Ele só queria uma foto e uma reportagem. Por que se importava com o que acontecesse com a menina-porca? Ou com Johnny, aliás? Sacudiu a cabeça, exausto. Talvez ele fosse um sujeito decente, no final das contas. E agora não podia voltar atrás. Com determinação taciturna, deu a partida na van e saiu. Seu antigo local de estacionamento na frente da mansão dos Wilhern estava disponível. Será que isso era um bom ou um mau presságio? De todo modo, ele sabia que não seria fácil. O mordomo abriu a porta. Deu uma olhada em Lemon e começou a fechar. Lemon colocou o pé entre o batente e a porta. — Ai! — gritou enquanto o mordomo continuava a empurrar a porta. — Espere, cara! É sobre Penelope. Você se importa com ela pelo menos um pouquinho? — Com sua licença, senhor. — Aposto que se importa, e eu também me importo. E trago aqui informações que podem mudar a vida dela.
O rosto do mordomo estava implacável, apesar de aparentemente haver alguma coisa acontecendo por trás dos olhos dele. No final, abriu a porta e deixou Lemon entrar. — Por favor, aguarde na sala de música. Vou ver se a srta. Penelope está disponível. Lemon tentou não pensar na última vez em que estivera naquela casa. Só tinha um olho bom sobrando e tinha a intenção de mantê-lo. Com um olho, examinou a sala a seu redor. Que lugarzinho bem chique esses Wilhern tinham. Foi até o espelho para conferir o reflexo e ter certeza de que estava apresentável. Mal teve um vislumbre de sua imagem quando ouviu o grito. Segundos depois, a porta da sala de música se abriu de supetão e Jessica Wilhern irrompeu no aposento. Lemon se encolheu contra a parede de medo. — O QUE ESTÁ FAZENDO NA MINHA CASA? Ele estava com o pressentimento de que agora ela destruiria um de seus ouvidos. E o berro dela trouxe apoio na forma de Franklin Wilhern e uma outra mulher. — Eu preciso falar com Penelope — Lemon conseguiu dizer com a voz esganiçada. — SÓ POR CIMA DO MEU CADÁVER. — Preciso falar a ela sobre Johnny Martin. — QUEM DIABOS É JOHNNY MARTIN? — Acho que ela o conhece como Max Campion. O berro que recebeu este anúncio causou sérios danos ao outro ouvido. — NÃO DIGA ESTE NOME NESTA CASA! — Acalme-se querida — implorou Franklin Wilhern. — Wanda, Max Campion não foi aquele rapaz que fez várias visitas? — Foi — respondeu a mulher.— Veio aqui três vezes. Ele se recusou a se casar com Penelope. — Mas ele tinha um motivo — disse Lemon. Explicou o que ficara sabendo a respeito de Johnny e mostrou o que tinha na pasta. Wanda suspirou. — Então, ele só estava fingindo ser Maxwell Campion. Ele não pode desfazer a maldição. Lemon assentiu com a cabeça. — Johnny Martin não tem sangue azul. Mas... — Respirou fundo. — Ele está apaixonado por ela. O silêncio na sala era paradisíaco. Não durou muito.
— E DAÍ? Mas Franklin Wilhern e Wanda de fato pareceram intrigados. — É mesmo? — perguntou Wanda. — Ele a ama? E os olhos de Franklin pareceram se encher de lágrimas. — Temos que chamar Penelope. Ela precisa saber disso. Lemon assentiu. — Foi o que eu pensei. Mas Jessica Wilhern não compartilhava da opinião deles. — NÃO! Franklin ficou claramente surpreso. — O que está dizendo, querida? Jessica Wilhern agora estava mais calma. Mas não menos determinada. — Não quero que Penelope saiba sobre esse tal de Max-Johnny, seja lá quem for. Se ele não pode desfazer a maldição, não pode se casar com ela. — Mas não acha que esta decisão tem de ser tomada por Penelope? — NÃO! ELE NÃO PODE DESFAZER A MALDIÇÃO! Jake! Jake! Cadê ele? Ah, não faz mal. Eu o expulso pessoalmente. Agora era a vez de Lemon gritar e correr. E conseguiu deixar a sala antes mesmo que ela se aproximasse do olho bom dele.
Capítulo Vinte e Nove
Abri a janela do meu quarto e coloquei a cabeça para fora. 0 dia estava lindo, um dos primeiros do verão. Não havia nuvens no céu azulzinho e maravilhoso. O sol brilhava e aquecia, mas não estava fazendo calor demais ao ar livre. Eu tinha lido sobre dias assim em livros. Os escritores conseguiam ser bem poéticos quando descreviam dias assim. Com as palavras certas, conseguiam fazer com que a gente ouvisse passarinhos cantando, sentisse o calor do sol, cheirasse a leve doçura das madressilvas e dos gramados recém-aparados. Eu costumava pensar se algum dia viveria um dia assim na realidade. E aqui estava ele, finalmente, um dia igualzinho à descrição dos escritores. Um dia que eu de fato podia apreciar, e ao vivo. Um dia perfeito para um casamento. Dei uma olhada na cena de outra janela. Esta dava vista direta para o local onde a cerimônia seria realizada. Eram só oito da manhã (a cerimônia só começaria às sete da noite), mas já havia gente trabalhando muito para organizar as coisas. Fileiras e mais fileiras de cadeiras brancas já estavam arranjadas. Minha mãe tinha convidado todo mundo que era importante. Mais os meus amigos. Annie, é claro, o barman e alguns dos freqüentadores do Cloverdilly. Esse foi o único pedido que eu fiz a respeito do casamento. Eu tinha praticamente deixado a coisa toda nas mãos d minha mãe, e nem precisava me sentir culpada por isso porque ela aproveitou cada minuto dos preparativos. De vez em quando pedia a minha opinião sobre alguma coisa, ou queria que eu fizesse alguma escolha: rosa, pêssego ou lavanda? Camarão ou caranguejo? Para fazer com que ela largasse do meu pé, eu escolhia um, sabendo muito bem que ela depois se decidiria pelo outro. Para mim, realmente não importava. Para mim, o grande evento importante do dia viria depois da cerimônia, e também não era na recepção que eu estava pensando. Peguei meu espelho secreto, do estojinho de pó compacto que eu roubara da bolsa da minha mãe há tanto tempo, e me olhei nele. Segurando-o com uma das mãos, coloquei a outra no focinho. É claro que eu já havia feito isso um zilhão de vezes, mas agora estava tentando realmente imaginar como eu ficaria em breve.
Eu me lembrei de quando Annie me falou da amiga que operou o nariz. Annie disse que, quando as ataduras foram retiradas, a garota estava completamente diferente, como se mais do que o nariz dela tivesse mudado. Será que o meu rosto ficaria completamente diferente? Para mim, realmente na importava. Seja lá como ficasse, pelo menos finalmente seria o meu rosto. Ouvi batidas na minha porta e, como sempre, minha mãe entrou antes que eu tivesse a oportunidade de dizer que entrasse — O que está fazendo? — ela perguntou. — Só estava aqui pensando se vou sentir falta do meu rosto antigo — respondi. Como sempre, ela não perdeu a oportunidade de recitar seu mantra. — Não é o seu rosto, nunca foi o seu rosto, é o rosto do seu tataravô. Hoje, minha querida, vamos todos finalmente ver seu rosto verdadeiro. Olhei para ela, pensativa. — E se for pior do que este aqui? — Não diga bobagem — ela explodiu. — Temos coisas demais a fazer hoje. A esteticista vem para arrumar o seu cabelo, fazer as suas unhas e a sua maquiagem. A costureira vai estar presente quando você colocar o vestido, só para o caso de precisar fazer algum ajuste de último minuto. Daí você vai se encontrar com o fotógrafo... Fiquei surpresa. — Antes da cerimônia? Achei que você ia querer esperar até eu estar com o meu rosto verdadeiro. — O seu rosto, quer dizer, o rosto do seu tataravô, vai estar coberto com o véu — ela me garantiu. — Aliás, eu disse que mandei colocar forro duplo na parte interna do véu? Fiquei com medo de que a renda fosse muito transparente. Revirei os olhos, exasperada. — Mãe! A minha foto saiu em revistas e jornais. Todo mundo já viu o meu... este... rosto mil vezes. Todo mundo sabe como eu sou. — A memória é curta — minha mãe disse com firmeza. — Quando as pessoas virem quem você é de verdade na recepção, vão esquecer completamente a meninaporca. Ela até que podia ter razão, supus. De repente me senti contente por ter guardado um álbum de recortes do meu tempo de celebridade. Por algum motivo, eu não queria esquecer.
O dia passou rápido, com todos os meus tratamentos d beleza e provas de vestido. Fui penteada e maquiada e vestida muito antes do necessário. Então, fiquei feliz por Annie ter chegado mais cedo e ter passado no meu quarto para falar comigo. Nós nos abraçamos e Annie admirou o meu vestido, o meu cabelo, as minha jóias... todos os detalhes, até o pedicure. — Você está fabulosa! — ela exclamou, e eu sabia que estava falando a sério. Mas dava para ver em sua expressão que queria dizer mais alguma coisa. — Fale — ordenei. — Porque a minha mãe vai chegar logo, e daí você não vai conseguir dizer nem uma palavra. Annie hesitou. Tentei ajudá-la. — Eu sei que você não gosta de Edward, mas talvez aprenda a gostar. Melhor ainda, talvez eu aprenda a gostar dele. Annie sorriu. — Olhe, eu sei por que você está se casando com ele. E sei o quanto isto significa para você, e não vou tentar fazer com que desista. Só tem uma coisa que eu queria dizer. — Parabéns? — Bom, isto também. Mas, Penelope... Você vai continuar sendo você, sabe como é. Olhei para ela, descrente. — Você acha que o casamento com Edward não vai desfazer a maldição? Ela deu de ombros, impaciente. — Tudo bem, talvez você deixe de ter um focinho. Mas não faz diferença se você raspar a cabeça ou decepar as orelhas ou se ganhar um terceiro olho. Você não precisa se casar, não com Edward nem com ninguém. Com ou sem focinho, você vai continuar sendo você. E, até onde eu sei, isto é muito bom. Eu não sabia o que dizer. Annie se aproximou e me deu um beijo no rosto. — Vou pegar um lugar — ela disse. — Quero estar em boa posição para ver o momento mágico. Nunca vi um nariz cair. Quando olhei de novo pela janela, todas as providências estavam tomadas. Por não ser capaz de escolher entre rosa, pêssego e lavanda, minha mãe optara pelo tema todo branco. As cadeiras brancas agora estavam enfeitadas com fitas brancas de cetim e drapeados de seda branca. No final de cada fileira havia um arranjo ornamental enorme com lírios brancos e organza branca, e o caminho por onde eu passaria estava forrado com pétalas de cem rosas brancas.
Os votos seriam trocados sob um caramanchão de renda branca por cima de pilares de alabastro branco. Edward usaria terno branco. Minha mãe pedira (quer dizer, exigira) que todos os convidados usassem preto, e eu não duvidaria se ela expulsasse qualquer um que aparecesse de azul-marinho. Tinha contratado uma empresa de relações públicas para convidar todo mundo de quem os Wilhern tinham se escondido por tanto tempo: o pessoal dos jornais, dos canais de televisão e das revistas. Ela queria compensar 25 anos de hibernação social. Entrou no meu quarto carregando um enorme embrulho nos braços. — Ah, Penelope, você está linda. Quer dizer, você vai ficar linda. Como alguém poderia responder a um elogio desses? Será que eu deveria dizer que agradeceria em breve, quando fosse verdade? — E olhe só o que eu trouxe para você. Ela apoiou o pacote na minha escrivaninha e rasgou o embrulho de papel pardo. Era um espelho. — Você pode vir direto para cá depois da cerimônia e dar uma boa olhada em si mesma antes da recepção. — Você se importa se eu me olhar agora? — perguntei. — Por que você ia querer fazer isso? — perguntou ela mas saiu da frente para me dar espaço. Fiz uma pose na frente do espelho e preciso confessar que não fiquei insatisfeita com o reflexo. De algum modo, apesar da minha falta de interesse, eu tinha conseguido escolher o vestido certo. As pérolas que eu usava faziam minha pele reluzir. Meu cabelo estava perfeito, com os cachos castanho-escuro brilhantes caindo em cascata por sobre os meus ombros. Desgrudei do espelho e fui até a janela. Minha mãe se juntou a mim ali, e olhamos para todo o cenário do casamento. — Não está glorioso? — disse ela, entusiasmada. — O seu casamento vai ser de princesa, querida. E, quando terminar, você também parecerá uma princesa! Gostaria que o entusiasmo dela fosse contagiante. Eu via os convidados chegando e tomando seus lugares. A maioria deles eram desconhecidos completos para mim, gente que os meus pais conheciam antes de eu nascer. Localizei Annie e o pessoal do Cloverdilly. Mas não Max. Eu tinha tirado um convite da pilha da minha mãe, procurei o endereço dele na lista telefônica e pedi a Jake que colocasse no correio. Não recebi resposta. Mesmo assim, eu não precisava perder a esperança...
Minha mãe finalmente saiu, para ocupar seu lugar na primeira fila, e meu pai apareceu à porta para me acompanhar até lá fora e me levar ao altar. — Espere só um segundo para eu colocar o meu véu — eu disse. Prendi o enfeite de cabeça todo forrado no cabelo e percebi que era tão espesso que não dava para enxergar através dele. — Isto é ridículo — eu me irritei. Peguei uma tesoura e fiz dois furinhos no tecido para os meus olhos. Só alguém que chegasse muito, mas muito perto de mim me confundiria com Gasparzinho, o Fantasma Camarada. Peguei o braço do meu pai e ele me guiou até o andar de baixo. — Penelope... — ele começou, mas parou. — O que foi, pai? — Só quero dizer que sinto muito, mas muito mesmo. — Por quê? — Pelo seu rosto! Pela maneira como você teve que ser criada, sozinha, escondida. Me desculpe. — Pai, não tem nada por que se desculpar. — Ah, sim, tenho sim — ele insistiu. — Por causa da minha família, a sua vida não foi normal. Foram os Wilhern que a fizeram sofrer. — Ah, pai, deixe para lá. Eu não estou mais sofrendo. E realmente não estava sofrendo. Agora estávamos quase chegando ao altar e eu tinha localizado os meus amigos. Percebi que já fazia um bom tempo que eu não sofria. Edward esperava embaixo do caramanchão. A expressão dele era conhecida: mais uma vez, parecia que ia vomitar. Provavelmente estava pensando no fato de que deveria me beijar depois de sermos declarados marido e mulher. Eu gostaria de dizer a ele que não seria mais agradável para mim do que para ele. No entanto, eu sabia que eu teria autocontrole suficiente para segurar o vômito. Quanto a ele, não tinha muita certeza Quando nos aproximamos do juiz de paz que celebraria o casamento, fiquei feliz por ter aquele véu ridiculamente grosso por cima do rosto. Não porque eu quisesse esconder o meu focinho. Estava mais preocupada em esconder a minha expressão. Eu estava com o pressentimento de que não estava exatamente com a cara que se espera de uma noiva no dia do casamento. Meu pai me deixou ao lado de Edward, e ficamos de frente para o juiz de paz. — Caros amigos, estamos aqui reunidos para unir este homem e esta mulher...
Pelo canto do olho, graças ao buraco no véu, obtive um vislumbre de minha mãe. Estava obviamente em êxtase e, pela primeira vez, realmente entendi por quê. Este dia era mais dela do que meu. Avistei então Annie. Ela também sorria, mas de um jeito diferente, como se estivesse se forçando a sorrir. A testa estava toda franzida, como se ao mesmo tempo estivesse preocupada. O juiz de paz tinha chegado àquela parte da cerimônia que geralmente proporcionava o momento mais dramático qualquer novela que eu já assisti. — Se há alguém aqui que tem alguma objeção a este casamento, que fale agora ou se cale para sempre. Vivi um breve momento de fantasia... Max erguendo-se do meio do público, gritando: "Eu tenho uma objeção!" Mas as palavras do juiz de paz foram recebidas com o silêncio contumaz. Esta era a vida real, não uma novela. Não era um conto de fadas. — Edward Vanderman Júnior, aceita esta mulher, Penelope Wilhern, como sua legítima esposa? Promete amá-la e respeitá-la, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, abrindo mão de todas as outras, até que a morte os separe? Eu não diria que a resposta dele foi loucamente entusiasmada, mas ele conseguiu falar, com a voz esganiçada, porém audível: — Aceito. — E você, Penelope Wilhern, aceita este homem, Edward Vanderman Júnior, como seu legítimo esposo? Promete amá-lo e respeitá-lo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, abrindo mão de todos os outros, até que a morte os separe? Eu sempre ouvira dizer que, logo antes de morrer, a vida toda da gente passa diante dos olhos. Eu não sabia que isso também acontecia quando a gente se casava. Mas eu vi tudo, passando perante os meus olhos, em ritmo rápido porém claro. A infância solitária. Algum dia seu príncipe encantado vai chegar. Este não é o seu rosto, Penelope. Andar pelo parque pela primeira vez à noite... e os acontecimentos mais recentes. Momentos bacanas, com os amigos, divertindo-me, conversando, rindo, compartilhando pensamentos e sentimentos. Agora eu tinha uma vida. E, de repente, percebi o que tinha de dizer. E tinha de dizer rápido, antes que pensasse melhor no assunto. — Não, não aceito.
Capítulo Trinta
Eu sabia que a minha mãe viria no meu encalço enquanto eu corria de volta para casa. No meio do caminho, o véu mudou de posição na minha cabeça e eu não consegui mais enxergar pelos buracos que eu tinha feito, então tirei a coisa e joguei longe. Foi quando percebi que ela estava perto: o berro pareceu tão alto quanto o que dera quando eu disse não. Não ia ter como evitar aquele confronto para sempre e eu realmente não queria lhe provocar um ataque cardíaco, então deixei que ela me alcançasse quando entrei em casa. Estava no degrau atrás de mim enquanto eu subia a escada. — Penelope! O que está fazendo? Volte para lá neste exato minuto! — Não, mãe. Eu não vou me casar com Edward. — Está louca! O que é isso? Uma crise de nervos de última hora? Tudo bem, não é tarde demais, as pessoas vão compreender. Eu explico para todo mundo. Claro que você vai ter de pedir desculpas a Edward. Ou eu posso me desculpar por você. Penelope! Está ouvindo? — Estou ouvindo, mãe. Mas nem mesmo assim vou casa com Edward. Eu não o amo, mãe. Eu nem gosto dele. — Nesse ponto eu já havia chegado ao meu quarto. — E eu gostaria de ficar um pouco sozinha. Fechei a porta do quarto, mas isso não impediu que ela ficasse parada do outro lado, falando através dela. — Penelope, isto é uma loucura! Esta é a sua chance a sua primeira e única chance. É isso que sempre esperamos é isso que sempre torcemos para que acontecesse! — Foi o que você sempre torceu para que acontecesse mãe. — O que está dizendo? Você não quer ser feliz? — Vá embora, mãe, por favor. — Você só precisa dizer "aceito", assim vai ter seu próprio rosto! Vai poder ser você mesma! Por que ela não conseguia entender? Talvez porque fosse só agora que eu estava começando a entender. — Eu sou eu mesma neste minuto, mãe! Não preciso de outro rosto para ser feliz, sou feliz agora, mesmo com este rosto. Eu gosto de mim do jeito que eu sou!
Eu queria prosseguir, tentar explicar, mas de repente não consegui mais falar. O que era aquela sensação que tomava conta do meu corpo? Eu estava formigando, pulsando e minha cabeça queimava. Eu estava rodando, o quarto estava rodando, meu mundo inteiro estava rodando. Então, caí com tudo no chão. — Penelope! Penelope! Que barulho foi esse? Está tudo bem? Estatelada no chão, eu não sabia o que dizer. Nada doía, mas havia algo de diferente. A porta do quarto se abriu e Jessica entrou. — Penelope? — Estou aqui, mãe. Ela abaixou os olhos e seu rosto ficou paralisado. E, pela primeira vez na história, o mesmo aconteceu com a boca de minha mãe. Estava aberta, mas não saía som nenhum. E daí eu percebi por que ela estava em silêncio. Eu não sabia como eu sabia, mas sabia. Coloquei a mão no rosto. Depois me levantei do chão e fui até o espelho que minha mãe tinha colocado no quarto antes. Eu sabia o que veria antes mesmo de ver. Eu, Penelope Wilhern, é claro. Com um vestido de noiva longo e branco. Com cachos castanho-escuros caindo em cascata por sobre os meus ombros, com grandes olhos castanhos. E com um nariz perfeitamente pequeno e normal.
Capítulo Trinta e Um
Minha mãe estava chorando de novo. Não aos berros, não aos gritos, não com seus contumazes ataques de desespero ou frustração. Só estava chorando. Fazia umas duas horas que tinha começado e não parava. Seria de se pensar que ela entraria em êxtase e não pararia de rir e de dançar de tanta alegria, em comemoração ao meu novo rosto. Eu continuava no andar de cima, no meu quarto, e ela estava no andar de baixo com meu pai, Wanda e Jake, mas seus uivos histéricos eram tão ruidosos quanto qualquer outro som que pudesse sair de sua boca, e eu até conseguia distinguir as palavras que ela dizia entre os soluços. — Eu não sabia, eu não sabia! Como eu poderia saber? "Alguém da nossa própria classe", era o que a maldição dizia. Alguém que a amasse. Achei que isso significasse um marido! Vocês não acharam? Não era o que vocês pensavam também? Não dava para ouvir a voz normal das pessoas ao redor dela, mas achei que estavam todos concordando com ela. Eu concordei com ela: também era o que eu pensava. Alguém tinha que me amar e me aceitar como eu era, com focinho e tudo. Como eu poderia saber que esse alguém podia ser eu? E será que teria feito alguma diferença se eu soubesse antes? Como é que eu poderia amar a mim mesma se fui criada para acreditar que eu não era eu mesma? Enquanto ela chorava, eu fazia as malas. Ainda tinha o meu quartinho mobiliado no centro, estava pago até o final do mês e eu voltaria para lá. Precisava ficar um tempo sozinha e sabia que aqui eu não conseguiria. Era irônico: eu tinha passado a maior parte da vida até então sozinha, escondida. Agora que não precisava mais me esconder, continuava querendo ficar sozinha. Não para sempre, é claro. Mas havia muita coisa em que pensar, coisas que eu precisava compreender sozinha. E não porque eu finalmente era eu mesma. Agora eu sabia que sempre tinha sido eu mesma. Fechei a mala e fui até a janela. A empresa de bufê ainda estava limpando tudo. Levando embora as cadeiras, desmontando a cobertura da área da recepção. Os convidados já tinham ido embora fazia muito tempo, até mesmo Edward e os pais dele. Eu estava muito desconfiada de que ele estava comemorando. Peguei a mala e a levei até o andar de baixo. Meus pais estavam sozinhos na sala de música.
— Aonde você vai? — berrou Jessica, histérica, quando me viu com a mala. — Só vou voltar para a minha casa — garanti a ela. Não fica longe. Eu venho visitar. Meu pai assentiu, compreensivo, mas minha mãe enterrou o rosto nas mãos e soltou mais uma fornada fresquinha de lágrimas e soluços. — Ah, querida, desculpe — ela chorou. — Você algum dia vai poder me perdoar? Eu sinto tanto, tanto, tanto... Eu estava acostumada a ouvir meu pai pedir desculpas, por ser um Wilhern e, portanto, responsável pela maldição. Nunca tinha ouvido minha mãe pedir desculpas por nada. — Sente muito por quê? — perguntei. Ela enxugou os olhos. — Se eu tivesse cumprido meu papel de mãe, se eu a tivesse amado exatamente do jeito que você era, como sangue do meu sangue, como qualquer mãe deveria amar, a maldição teria sido quebrada há muito tempo. O que eu podia dizer? Tudo bem, mãe, eu não a culpo por ser uma mulher fútil, superficial e esnobe que não suportava a idéia de alguém saber que tinha uma filha feia? De que adiantaria? Ela sabia quem era. Então eu larguei a mala e fui até ela. Abracei minha mãe e meu pai, e nós nos abraçamos todos juntos. Finalmente, minha mãe começou a se acalmar. Virou-se para mim, sorriu e examinou o meu rosto. — Sabe, querida, acabei de pensar uma coisa. — O que foi, mãe? — Estou achando que a artéria carótida não está mais no caminho. Você podia fazer alguma coisinha no seu nariz! Acho que ficaria linda com um narizinho arrebitado... e quem sabe possa erguer as bochechas... — Mãe! — eu me afastei e fiquei olhando estupefata para ela. O rosto dela era pura inocência. — Qual é o problema de querer que você fique o mais linda possível? Sacudi a cabeça, cansada. Assim como eu, ela também nunca mudaria. Eu me levantei e dei mais um abraço no meu pai. — Agora, vou andando. Os dois me seguiram para fora da sala e até o hall de entrada, perto da porta. Mas antes que eu pudesse abri-la e sair alguém mais apareceu de mala na mão.
— Não vai mais precisar dos meus serviços, sra. Wilhern — disse Wanda. — Penelope é perfeitamente capaz de arrumar marido sozinha. Isso se ela quiser um marido. — Para mim, ela disse. — Pessoalmente, se eu fosse você, iria me divertir um pouco primeiro. Você tem muito o que recuperar. Ela nos acenou uma despedida e saiu porta afora. — Tchau, mãe, pai. Eu ligo — Porém, mais uma vez, outra pessoa foi mais rápida do que eu para sair. — Jake! — minha mãe berrou. — O que você está fazendo? Ele também carregava uma mala em uma das mãos e uma bengala antiquada na outra. Sem dizer uma palavra, fez um sinal com a cabeça para a minha mãe, para o meu pai e para mim. Então, abriu a porta e se retirou. Jessica saiu correndo atrás dele. Meu pai e eu os seguimos. — Jake! — gritou minha mãe. — Aonde você acha que vai? Não pode se demitir! Volte aqui neste minuto! — Como ele continuava a caminhar na direção do portão, a voz dela se elevou a um tom mais do que estridente. — Está ouvindo? Eu mandei voltar aqui... Ela não pôde terminar a frase. Jake se virou, ergueu a bengala e apontou diretamente para ela. Minha mãe ficou completamente muda. Jake se virou de novo e foi para o portão. Meu pai e eu ficamos observando Jessica fascinados. Os lábios dela se moviam, mas nada saía. Ela continuava tentando, abria a boca cada vez mais, respirava fundo como se tentasse assoprar as palavras para fora. Estava muda. Olhei para o meu pai, achando que ele também estaria aborrecido. Mas a expressão dele era pensativa. E quando a abraçou para reconfortá-la, eu poderia jurar que vi um sorrisinho em seus lábios. Acenei para eles e caminhei até o portão. Quando cheguei à calçada, avistei Jake um pouco a frente. — Adeus, Jake — disse para ele. Ele se virou e ergueu a bengala em sinal de cumprimento. E então começou a se transformar. Bem na frente dos meus olhos, o corpo dele se metamorfoseou, e nosso velho mordomo não era mais ereto e alto. As costas se curvaram e ele ficou todo retorcido para a frente. O uniforme de mordomo formal pareceu se derreter e foi substituído por um vestido comprido. O cabelo ficou grisalho e cresceu, ficou comprido e desgrenhado até atingir a cintura. E o rosto dele... bom, certamente não era Jake. Ele era uma mulher, uma mulher feia, com
nariz batatudo e queixo protuberante. Até a bengala tinha se transformado. Estava mais comprida, mais tosca e retorcida, como algo que uma bruxa carregaria. Então eu percebi. Todo aquele tempo, todos aqueles anos, Jake ficara conosco para testemunhar sua vingança. Ele era a mãe da criada Clara. E tinha ajustado as contas com os Wilhern.
Capítulo Trinta e Dois
Cheguei à minha floricultura de manhã e parei do lado de fora para examinar o arranjo que eu tinha feito na vitrine. Não tinha sido fácil inventar alguma coisa criativa e chamativa para o Dia das Bruxas, apesar de ser a minha comemoração favorita. Este feriado realmente não tinha muita associação com flores, e eu sem dúvida não queria fazer os fantasmas e as teias de aranha de sempre, o que poderia indicar a efeméride, mas não tinha nada a ver com o que era vendido ali. Agora, olhando a vitrine, fiquei orgulhosa do que tinha conseguido inventar: morangas sem a polpa cheias de lírios e cestinhas pretas de rosas cor-de-laranja penduradas. Era festivo e estava de acordo com o feriado, e não era só uma decoração: os arranjos podiam ser comprados lá dentro, na Pétalas Penelope. Abri a porta, virei a plaquinha de FECHADO para ABERTO, tirei o casaco e guardei. Depois enchi um regador e reguei todas as plantas. Examinei a correspondência (só contas e catálogos) e dei uma olhada nos arranjos que precisava entregar naquele dia. Estava lendo um artigo interessante sobre gérberas quando o tilintar de um sino indicou que a porta da minha loja tinha sido aberta. Uma rajada de ar frio e cortante de outono entrou com a cliente. Reconheci a mulher imediatamente. — Senhora Duquesne! Que bom vê-la! Como foi a lua-de-mel? — Gloriosa — respondeu a mulher. — As Bermudas são lindas nesta época do ano. Quando for planejar sua lua-de-mel, deve ter as Bermudas em mente. Dei um sorriso. — Acho que ainda vai demorar para eu planejar a minha lua-de-mel. Acho que seria boa idéia arrumar um marido primeiro. — Bom, uma moça bonita como você deve ter uma centena de homens à disposição. Ou uma centena de mulheres, se esta for a sua inclinação. De todo modo, eu só queria dar uma passada para agradecer de novo pelo trabalho lindo que você fez no meu casamento. As pessoas até hoje estão falando dos arranjos de mesa. E, sabe, eu me recusei a jogar o buquê da maneira tradicional, era simplesmente magnífico demais. Mandei secar e enquadrar.
— Que bom que ficou feliz — eu disse. — E trouxe algumas fotos para você — a mulher prosseguiu. — Pode usar para fazer propaganda, se quiser. Ou pode colocar na floricultura. Aceitei as fotos com alegria. Só fazia um mês que a floricultura estava aberta e eu precisava de toda a divulgação possível. Além do mais, o casamento dos Duquesne tinha sido meu primeiro serviço de peso, e era legal ter alguma coisa para me lembrar dele. Depois que ela foi embora, peguei minha caixa onde guardava coisas que tinha a intenção de colocar no meu álbum de recortes em casa um dia destes. Então, como sempre, não pude deixar de examinar os outros itens da caixa. Havia o anúncio da abertura da minha floricultura e uma foto da fachada no dia da inauguração. Tinha a foto de um sofá que eu estava economizando para comprar para a sala do meu apartamento novo. E havia recortes de jornais de quatro meses atrás. Todos traziam manchetes como ONDE ESTÁ PENELOPE? E O QUE ACONTECEU COM A SENHORITA PORQUINHA? Era como se eu simplesmente tivesse desaparecido no ar, de acordo com os artigos. Eu não tinha mudado meu nome, não tinha mudado o corte de cabelo, nada estava diferente, a não ser o antigo focinho. De certo modo, minha mãe tinha razão: eu era uma moda passageira, o sabor do mês. Mas Annie também tinha razão. Eu continuava sendo a mesma pessoa. Outra coisa chamou a minha atenção, e eu peguei um programa refinado. Era da noite em que eu fora com Edward e nossos pais ao concerto beneficente. A última vez em que vira Max. O nome dele nem estava no programa, mas não fazia diferença. Era meu único suvenir. Eu me permiti um momento de melancolia com a lembrança. Mas guardei logo o programa, antes que lágrimas se acumulassem nos meus olhos automaticamente. Em vez disso, me obriguei a pensar em Edward. Eu não o via desde o nosso quasecasamento, e ficava imaginando por onde ele andava. Eu tinha devolvido a aliança de casamento, mas ele não mandara confirmação de recebimento. Imaginava que ele continuava morando com os pais, que eles o incomodavam o tempo todo e que continuava sentindo pena de si mesmo. Um dia eu falaria com ele de como se libertar e se livrar de tanta tristeza. Eu achava que podia me considerar autoridade no caso de auto-aprisionamento.
Eu não estava mais naquela situação. Tanta coisa mudou na minha vida nos últimos meses... A floricultura, é claro. Era o trabalho perfeito para mim. Com o meu amor e o meu conhecimento de plantas e flores, era capaz de criar coisas que iam além dos arranjos comuns. As pessoas iam à Pétalas Penelope em busca de arranjos diferentes, plantas exóticas e todas as informações de que precisavam para cuidar delas. Eu estava começando a ter uma reputação. Tinha saído do meu quartinho com mobília parca e encontrado um apartamentinho no centro, perto do de Annie. Visitava meus pais ocasionalmente, mas minha vida social era muito agitada para passar muito tempo com eles. Ainda tinha meus amigos do Cloverdilly, e tinha feito mais outros. Uma vez, perguntei ao barman do Cloverdilly o que tinha acontecido com o sujeito que limpava o lugar, e ele me disse que ele não trabalhava mais lá, que estava em turnê com uma banda. Fiquei feliz. Apesar de isso significar que eu não o veria mais por ali, pelo menos ele parecia estar bem. O sininho da porta tocou de novo e eu guardei a caixa na prateleira. — Oi!—cumprimentou Annie. — O que você está fazendo aqui a esta hora? — Estou trabalhando, e tenho entregas para você. Colocou uma pilha grande de cartas e caixas no meu balcão. — Como foi o jantar ontem à noite? Dei minha revirada de olhos de sempre ao me lembrar do jantar mensal com os Wilhern. — Silencioso. Ainda não consigo acreditar que dá para descrever uma noite com a minha mãe como quieta. Annie deu um sorriso. — Ela continua sem poder falar? — Ela consegue sussurrar um pouco, mas os médicos dizem que nunca vai ser capaz de fazer muito mais do que isso. — E ainda não sabem o que a fez perder a voz? — Você já tentou convencer um médico de que alguém foi amaldiçoado por uma bruxa? O sininho tocou e uma menininha carregando uma sacola entrou com um adulto. — Gostosuras ou travessuras! — entoou a criança. Eu estava preparada para isso: tinha uma enorme tigela de doces bem embaixo do balcão. Mas fiquei surpresa demais com a fantasia dela para pegar as guloseimas de imediato. Ela estava com uma máscara
de porco, e não era um porco animal. A máscara tinha bochechas rosadas, cílios compridos e cabelo castanho ondulado. E um focinho. — Feliz Dia das Bruxas — eu disse, alegre. — Quem você é? — Eu sou Penelope! Annie e eu trocamos olhares. — Mas que... gracinha — eu disse e coloquei alguns doces na sacola dela. — Dá para acreditar? — perguntei a Annie. Rindo, Annie assentiu. — Para falar a verdade, ela é a terceira Penelope que eu vejo hoje. Olha, tem planos para hoje à noite? — Não, mas não estamos um pouco velhas para sair pedindo doces de porta em porta? — Fomos convidadas para uma festa de Dia das Bruxas Foi um repórter de jornal que eu conheci. Esqueci o nome dele. Mas estou com o endereço. Ele mora em um daqueles condomínios de solteiro, e o prédio inteiro está dando a festa. Ele me disse especificamente para levar você. — É mesmo? — fiz uma careta. Conheci muitos repórteres durante o meu breve período de fama e não tinha de fato feito amizade com nenhum deles. Mas uma grande festa de Dia das Bruxas podia ser divertida. — Tudo bem, mas eu não tenho fantasia — eu disse a Annie. — Eu arrumo umas máscaras — disse ela. — A gente se vê mais tarde. Depois que ela saiu, recebi alguns clientes e mais crianças pedindo doces. Havia duendes e bruxas e homens-aranha, e mais Penelopes. Um grupo em especial chamou minha atenção: seis meninas juntas, sendo que cinco usavam máscaras de Penelope Porca. Entreguei os doces para o grupinho que ria sem parar, mas fiz uma pausa quando cheguei à que usava fantasia de Branca de Neve. Era a única que não parecia feliz. — Tem alguma coisa errada? — perguntei a ela. Ela fez bico. — Todo mundo é a Penelope, e eu sou só a boba da Branca de Neve. Dei doces extras a ela. — Bem, é bom ser diferente. O diferente pode ser bonito. E você vai se destacar na multidão. Elas se viraram para sair e eu a chamei. — Ei, Branca de Neve! Ela se virou e olhou para mim.
— Sabe aquela música que a Branca de Neve canta no filme, "O sonho que eu sonhei", que fala do príncipe encantado? Ela assentiu. — Não conte com isso. Foi só uma hora depois que pude examinar as coisas que Annie tinha trazido. Havia sementes que eu encomendara e alguns vasos, havia livros sobre arranjos florais; além de um envelope grosso que eu não estava esperando. Não havia endereço de remetente no envelope. Nem carimbo postal para mostrar de que cidade tinha vindo. Não tinha nem selo. Abri e tirei uma pasta de arquivo. A etiqueta dizia JOHNNY MARTIN. Johnny Martin. Eu já tinha visto aquele nome em algum lugar. Na minha mente, apareceu a imagem do programa do concerto de jazz. Fiz uma careta, tentando imaginar por quê. Depois abri a pasta e comecei a ler. E tudo começou a fazer sentido.
Trinta e Três
— Não acredito que você comprou estas máscaras — eu disse a Annie quando nos aproximamos do prédio de apartamentos. — Ah, fala sério, são engraçadas! — É que eu não tinha planejado voltar a ser assim. Mas tive que reconhecer que foi uma idéia ótima. Annie e eu estávamos usando máscaras de Penelope. E não éramos as únicas na festa com elas. Enquanto abríamos caminho entre a multidão do salão de festa lotado do prédio, avistei várias meninas-porcas. — Isto é esquisito — sussurrei para Annie. — Faz meses que não apareço no noticiário! As pessoas acham que eu desapareci. — Foi por isso que você virou lenda — respondeu Annie. — Como aquela aviadora, Amélia Earhart! A festa estava boa. Havia comida e enfeites, e um espaço tinha sido reservado como pista de dança. Eu estava com fome e queria ir ao bufê primeiro, mas Annie tinha outros planos. — Preciso fazer xixi — ela anunciou. — Os banheiros ficam por ali — disse a ela. — É, mas você está vendo a fila? Não vou conseguir segurar tanto tempo. Ei, lá está o cara que nos convidou. Espere aqui. Observei enquanto ela foi falar com um homem disfarçado de pirata, com tapa-olho. Conversaram por um instante depois ela voltou. — Ele disse que eu posso usar o banheiro do apartamento dele. O sujeito que divide apartamento com ele está lá. Venha comigo, está bem? Deixei minha fome na espera e saí do salão. Pegamos o elevador e fomos para o quarto andar. — É o número 4D — murmurou Annie. Chegamos à porta certa e ela tocou a campainha. Alguns minutos depois, a porta se abriu. Prendi a respiração. Eu não conseguia falar, não conseguia nem respirar. Max estava ali parado. — Pois não? Annie falou.
— O seu colega de apartamento disse que a minha amiga podia usar o banheiro de vocês. Ele deu de ombros. — Tá, tudo bem. Annie me empurrou porta adentro. — Até mais tarde, amiga. E foi embora. Eu fiquei lá, paralisada, sentindo que tinha acabado de entrar em algum universo paralelo. Max apontou. — O banheiro fica no final do corredor, à direita. — Obrigada — consegui dizer. De algum modo, fiz minhas pernas funcionarem e caminhei pelo corredor. Quando entrei no banheiro, fechei a porta, abaixei a tampa da privada e só fiquei lá sentada um minuto. Então me levantei, agarrei-me na pia e tentei reunir coragem. Respirei fundo e ergui os olhos para o espelho. Era a primeira vez que eu olhava para mim desde que colocara a máscara. Não dá nem para começar a descrever qual era a sensação de me ver daquele jeito, como eu costumava ser. A antiga eu. Que tinha sido a verdadeira eu. Que eu continuava sendo, com ou sem máscara. Eu não fazia idéia de quanto tempo fiquei ali, olhando para mim mesma, mas deve ter sido um bom tempinho, porque ouvi quando ele perguntou: — Tudo bem aí? Saí e voltei para a sala. Foi quando reparei na mala. — Você vai para algum lugar? — perguntei. — Vou me mudar. Meu coração se apertou. — Para longe? — Que nada, só para o meu apartamento, logo ali na esquina. Isto aqui era só temporário. Lemon me deixou morar com ele até eu me acertar. — E agora... você está bem acertado? Ele não olhava para mim enquanto eu falava. — Estou sim, tenho emprego. — Fazendo o quê? — perguntei. — Estou em uma banda. — O que você toca? — Piano. Olhe, não quero ser mal-educado, mas estou um pouco ocupado...
— Por que você não olha para mim? — não consegui me segurar. Ele finalmente se virou na minha direção. — Desculpe. É a máscara. Hoje eu vi esta máscara em todo lugar, e está me irritando. — Qual é o problema? É feia demais para você? Ele sacudiu a cabeça. — Não é isso. É só que... me faz lembrar de alguém que conheci. — Alguém... alguém de quem você gostava? Ele se ocupou dobrando uma camisa. — É. — Muito? Ele olhou para mim, aborrecido. — Muito. Despejei a pergunta seguinte. — Então, por que você não está com ela agora? Desta vez ele não desviou o olhar. Tive a sensação de que ele não conseguia desviar o olhar, como se os olhos dele estivessem colados ao meu rosto/máscara, como se ele pudesse enxergar através dela, como se estivesse procurando alguma coisa. De repente me lembrei da maneira como ele tinha olhado para o espelho da sala de música, como se pudesse enxergar através dele para o outro lado. Repeti minha pergunta, desta vez com mais suavidade. — Por que você não está com ela? — Porque... porque eu não era bom o bastante para ela. Ela merecia coisa melhor. Eu não podia lhe dar o que ela queria. Minha voz se transformou em sussurro. — O que ela queria? O olhar dele continuou fixado em mim, penetrante. — Ser livre. — Ela é livre agora, Max. Ele chegou mais perto, os olhos cheios de surpresa. — Penelope? Ele me abraçou e eu fiquei muito feliz por a máscara não cobrir os meus lábios. Se não, não poderia ter sentido o beijo dele. — Penelope — sussurrou ele, com a voz embargada. — Eu amo você. Sempre amei, desde o início, mas não posso desfazer a maldição.
— Tudo bem — eu disse. Dei um passo para trás e tirei a máscara. — Acontece que eu mesma a desfiz. Ele parecia estado de choque. — Sou eu mesma, Max. — O meu nome... não é Max. É Johnny. — Eu sei — respondi. — É que ainda não me acostumei. Sou eu, Johnny. — Penelope... — É, eu continuo sendo Penelope. Ele me tomou nos braços de novo. — Sempre fui — sussurrei no ouvido dele. — Sempre fui Penelope. Só que eu não sabia. — Eu sabia — disse ele. — Só achei que não bastasse para você. — Eu tive que aprender que bastava — eu disse a ele. — Foi isso que desfez a maldição, quando finalmente me aceitei. Eu costumava pensar que a vida era um conto de fadas e que eu só poderia ser feliz quando alguém aparecesse e me
transformasse
na
verdadeira
Penelope.
Mas
eu
sempre
fui
Penelope,
independentemente do rosto que tivesse. E sempre serei. Ele me abraçou forte e eu pude sentir a magia ao nosso redor. E soube naquele momento que serĂamos felizes para sempre.
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