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Imagens da casa: antologia poĂŠtica
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JosĂŠ Morais Organizador
Imagens da casa: antologia poĂŠtica
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Copyright © 2019 by Os Autores
Criação da capa, editoração eletrônica e revisão José Morais
Morais, José (org.) Imagens da casa: antologia poética / organizado por José Morais. - Itabirito, MG: Nanaseiro Editorial, 2019. 198p. ISBN: xx-xxxx-xxx-x 1. Poesia. 2. Poesia em língua portuguesa. I. Título CDU xxx(xx)
Nanaseiro Editorial Rua Nicolau Silva, 329-A 35450-000 — Itabirito — MG https://issuu.com/nanaseiro nanaseiro@gmail.com [4]
Sumário Prefácio: arquitetura ideal — Alexandre Morais — 8 Domus — Adélia Prado — 12 As coisas como elas são — Ademário Payayá — 13 A casa — Águia Mendes — 15 Canto solidão — Airton Souza de Oliveira — 17 Casa — Al Berto — 21 Uma casa — Alberto Alexandre Martins — 23 Opção — Alberto Bresciani — 24 Casa vazia — Alberto da Cunha Melo — 25 A casa da rua Abílio — Alberto de Oliveira — 26 A revolucionária festa no céu dos bichos — Alexandre Morais — 27 Lapa — Alexei Bueno — 29 A enorme bola branca — Alice Sant’Anna — 30 Mariana — Alphonsus de Guimaraens Filho — 31 A casa — António Ramos Rosa — 32 Serão do menino pobre — Ascânio Lopes — 33 A fumaça — Bertolt Brecht — 34 A casa — Bruno Rosa — 35 Morte das casas de Ouro Preto — Carlos Drummond de Andrade — 36 Sou feliz — Carolina Maria de Jesus — 40 Constelação — Chantal Castelli — 41 Matéria — Cibely Zenari — 42 Domus aurea — Cruz e Sousa — 43 Canção da casa vazia — Dantas Mota — 44 A minha casa — Décio Bettencourt Mateus — 46 Canção sobre minha cabana destruída... — Du Fu — 49 O tigre — Eduardo Lizalde — 51 Território — Eduardo Sterzi — 53 Metamorfoses da casa — Eugénio de Andrade — 54 O foragido — Fagundes Varella — 55 Romance sonâmbulo — Federico García Lorca — 58 Ruídos da rua invadem a casa — Fernanda Morse — 62 A casa branca nau preta — Fernando Pessoa — 64 A nossa casa — Florbela Espanca — 69 Architectura — Francisco José Soares Feitosa — 70 Casa única da estrada — Geraldino Brasil — 71 Fantasmas — Gilberto Nable — 72 Casa de solteiro — Giovanni Venturini — 74 San Martino Del Carso — Giuseppe Ungaretti — 76 Elege para viver o retiro... — Gregório de Matos — 77 Minha casa — Heitor Ferraz Mello — 79 A colher na boca — Herberto Helder — 80 Loteamento — Heyk Pimenta — 84
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As casas — Horácio Dídimo — 86 Na casa do bisavô morto — Iara Maria Carvalho — 87 Ritual — Ivan Junqueira — 88 Jardim de lama e pedra — Jacqueline Lima Coelho Sampaio — 90 A mulher e a casa — João Cabral de Melo Neto — 92 Limite — João Gabriel Ascenso — 94 Tu ensinaste-me a fazer uma casa — Joaquim Pessoa — 96 Volta à casa paterna — Jorge de Lima — 97 A volta — Jorge Luis Borges — 98 No batente de pau do casarão... — José Antônio do Nascimento — 99 Casa amarela — José de Castro — 101 No passado, os negros construíram casas — José Godoi Garcia — 103 A casa — José Paulo Paes — 104 A casa onde às vezes regresso — José Tolentino Mendonça — 106 Diante da casa — Konstantinos Kaváfis — 107 A mecânica da casa — Leila Danziger — 108 A casa — Lenilde Freitas — 109 Na casa da senhora Xun — Li Bai — 110 Aos leitores — Lucian Blaga — 111 A casa rosa — Luciano José — 112 Desconstrução — Luiz Olavo Fontes — 113 Amor como em casa — Manuel António Pina — 114 Ideia para casa — Manuel Rui — 115 Minha casa e meu coração... — Marcos Ana — 116 Concreto a(r)mado — Marcos F. Carvalho — 117 Visita — Maria da Paz Ribeiro Dantas — 119 Interpretação das ruínas — Maria de Lourdes Hortas — 120 Casarão — Mariana Botelho — 123 IX — Mário de Andrade — 125 Casas — Mário Quintana — 126 Casas dos emigrantes — Matilde Rosa Araújo — 127 A casa — Mia Couto — 129 Âmbar — Micheliny Verunschk — 131 A casa dos Átridas — Murilo Mendes — 132 A casa — Myriam Fraga — 133 Dever de casa — Noélia Ribeiro — 136 Volta à casa paterna — Odorico Tavares — 137 O deserto é minha casa — Ondjaki — 139 Evolução — Orlando Mendes — 141 Casa de Tiradentes — Oswald de Andrade — 144 Amigo — Pablo Neruda — 145 Tragédia urbana — Paulo Ferraz — 147 Não sei porquê — Reinaldo Ferreira — 149 A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos — Rui Costa — 151 A casa da areia — Rui Knopfli — 152 Oh as casas as casas as casas — Ruy Belo — 153
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Notícia da casa — Ruy Espinheira Filho — 155 Apipucos, casa — Sérgio Bernardo — 156 O jardim e a casa — Sophia de Mello Breyner Andresen — 157 East Coker — T. S. Eliot — 158 Balada de Emily Brontë — Tasso da Silveira — 160 Quinta da paz — Teixeira de Pascoaes — 162 Deus vos salve a casa santa — Torquato Neto — 184 No beiral da casa — Vera Lúcia de Oliveira — 185 O operário em construção — Vinicius de Moraes — 186 Minha casa na montanha — Wang Wei — 194 A casa antiga — Ylo Barroso Fraga — 195 Volta de vulto — Yuri Bataglia Espósito — 196
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Prefácio: arquitetura ideal A fábrica do poema sonho o poema de arquitetura ideal cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras. acordo. e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. acordo. o prédio, pedra e cal, esvoaça como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido. acordo, e o poema-miragem se desfaz desconstruído como se nunca houvera sido. acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas e os ouvidos moucos, assim é que saio dos sucessivos sonos: vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-se os dedos estarrecidos. sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oximoros sumidos no sorvedouro. não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita no topo fantasma da torre de vigia. nem a simulação de se afundar no sono. nem dormir deveras. pois a questão-chave é:
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sob que máscara retornará o recalcado? (mas eu figuro meu vulto caminhando até a escrivaninha e abrindo o caderno de rascunho onde já se encontra escrito que a palavra “recalcado” é uma expressão por demais definida, de sintomatologia cerrada: assim numa operação de supressão mágica vou rasurá-la daqui do poema) pois a questão-chave é: sob que máscara retornará? [Waly Salomão]
Waly Salomão em seu poema acima revela-nos o trabalho arquitetônico minucioso da poesia em suas diversas composições, máscaras, matéria-prima e constituições humanas; na labuta de encaixar palavras e tijolos em uma poíesis árdua entre poesia e construção civil. Ora, esta obra, Imagens da casa: antologia poética, de José Morais, firmase como acabamento máximo, a síntese precisa e definitiva sobre o que o poeta citado idealizava. Espírito poético e matéria palpável unidos numa só construção. Este livro, produto de uma engenharia completa, que vai desde projeto, pesquisa, à escolha de materiais, da seleção da equipe de operários (divulgada no sumário) com suas singulares habilidades, o bater de laje, até seu [9]
acabamento, espantou-me muitíssimo pela proposta um tanto quanto única na história das antologias mundiais. Agora, vendo o resultado, contemplando a cidade erigida sob os chãosde-folha, contemplo a relação íntima entre poesia e casa; o fazer poético com o fazer fabril. Aqui temos reunido a fina flor da poesia de todos os recantos e de todos os tempos com a temática única: casa. Mas por que a casa? Por que esse foi e é um objeto que fascinou e fascina autores de diversas línguas e culturas do mundo a ponto de tornar-se retórica recorrente em obras literárias? Qual mensagem codificada há por detrás das metáforas? Onde é o limite entre a vida pública e a vida privada? Este livro apenas ergue os edifícios compactos e sólidos e nada responde ao leitor-pedestre que os vislumbra. Quando você, leitor-pedestre, adentrar a estas casas, passará para a condição de visita, aquele que se é afeiçoado, aquele ao qual sempre é deixada uma vassoura atrás da porta pelo prazer da companhia, perceberá pelos cômodos, corredores, quintais, fotografias, objetos envelhecidos, que estas são também a sua própria morada, o seu lugar comum de existência e logo tornar-se-á parte integrante dessa comunidade, desse cortiço administrado por José Morais, pois como exclamava Mário Quintana: “moro dentro de mim mesmo”. [10]
E cá chego eu ao ponto nevrálgico da antologia. Um morar em si mesmo, o habitar-se, o sentir a riqueza dos interiores humanos, olhar e ser olhado pelo próprio buraco da fechadura, dos quartos trancados e obscuros, a varanda com ar puro e os quintais com pomares e luzes, a angústia mnemônica da infância; do habitat comum a todos feito de alma, carne e ossos: o corpo; minha casa, sua casa. Para isso, chego até a sala e apanho Machado de Assis: [...] A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos. Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que... [ASSIS, Machado de. Dom Casmurro].
Meu caro leitor-Escobar, aceite o convite de José Morais: empurre, entre de corpo e alma neste livro e cá fique até que... Alexandre Morais 20.04.2019 Amadora, Portugal [11]
Domus Com seus olhos estáticos na cumeeira a casa olha o homem. A intervalos lhe estremecem os ouvidos, de paredes sensíveis, discernentes: agora é amor, agora é injúria, punhos contra a parede, pânico. Comove Deus a casa que o homem faz para morar, Deus que também tem olhos na cumeeira do mundo. Pede piedade a casa por seu dono e suas fantasias de felicidade. Sofre a que parece impassível. É viva a casa e fala. Adélia Prado. In: Oráculos de maio.
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As coisas como elas são Se aprende na escola Que casa de índio é oca (isso se for para os Tupi) e é que também cola se for para os Wayãpy. Aonde Yanomami se toca É bom não confundir: Ele chama de maloca Mas para os Xavante é ri Para os Pataxó é pãhãi É sethe para os Fulniô Para os Karajá é hetô Para os Munduruku é uka... E para os Yawalapi? E para os Txukahamãe? E para os Kiriri? E para os Krahô? E para os Maxakali? E para os Xakriabá? E para os Kaaeté? E para os Tuxá? E para os Kantaruré?... É bom não se confundir Não é um febeapá E não se fica em pé Quando seguro não está! [13]
Muito que se resgatar Para se prosseguir Muito que se reutilizar Para se garantir Muito que se reciclar Para se redistribuir Muito que se preservar Para se existir Para se existir As coisas como elas são É preciso reaprender Aprender a antiga e nova lição! Ademário Payayá. In: Antologia dos Morõgetás: olhares indígenas.
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A casa Há quatrocentos anos eu sonho uma casa no mundo varanda dos lados wc com luar ruas refulgentes poltronas & sofás. há quatrocentos anos eu sonho uma casa marítima alcova com beira-mar padarias & jardins vulva crepuscular casa que é bar vulgata vulgívaga retreta lunar. mercearia com pomares em órbita e sonoros pardais ou um negro coagido por uma confederação de poetas marginais há quatrocentos anos eu sonho uma casa em desvario [15]
sala de estar com sol poente zoológicos & rios. terraços com auroras boreais um porsche movido a sonho cocas & guaranás. casa que é mundo rolando em mar profundo casa que é casa com uma manhã cada manhã nascendo no ar na selva casa trágica onde habitam feras intramuros. há quatrocentos anos eu sonho Um home sweet home londres paris montanhas carnavais boulevards colibris. há quatrocentos anos eu sonho uma casa erigida sobre a areia do sonho. Águia Mendes. In: Antologia sonora — poesia paraibana contemporânea. [16]
Canto solidão Da janela, imota, revejo a tarde envidraçada, despejada em porção imatura além da tarde, pássaros apressados migram freneticamente a cantarolar iludivelmente canções insanas. Folhas da goiabeira não resistem ao tempo, caem a secar no chão enquanto a aranha em teimosia tece o lar frágil de uma imagética composição inexplicável está aí um segredo não contado. Os pés descalços sentem o frio de um chão antigo, mas sujo estremecem, parecem congelar a alma. De meu íntimo vem um som aceso, indecoroso como um pássaro sem as penas necessárias, em nudez inocente, penujoso. Dessa janela aberta em um quadrante ilusório o céu consola em cores buriladas nesse instante de mim paradouro formigas mantêm regras equilibradas aproveitando a penumbra de meu corpo [17]
trilham em trilha a vontade de viver. Pelas frestas da parede emadeirada onde fixa está a janela fragmentos de um sol tímido de um cair de tarde denunciam o momento de saudade. Pela ausência de flores no jarro posto à mesa conclui-se que nada está anormal prossegue a poesia, consolo é o melhor remédio. Vou aguardar na inquietude de sempre o cair da noite ser saudado pelo canto repudiante da rasga-mortalha que irrita em seu voo acelerado, alado a procurar um lar inocente, sem risco. A noite é imagem apenas porque os grilos repousam dissimulados e guardam seus cantos esconsos. No casebre, o telhado enlodado arremessa nas retinas o passado pequenas fissuras são portas de entrada do tempo entre tempos passando. Dessa vez nem mesmo rastros existem estão envelhecidas as gramas plantadas [18]
pelo velho Mundico ao longo de seus cabelos brancos com mãos enrugadas a recolher capim a capim, são as cenas que vêm repentinas em minha memória. Daquela parte da casa à qual Maria chamava cozinha, não sei por que segredo vinha o cheiro do café a perturbar as narinas, os sentidos, os sentimentos e domava minha alma por completo. Enquanto uma aranha estática repousava em seu lar depois do tear ao seu lado, uma outra também estática descansava em paz eterna, mórbida abandonando de vez, seca, a destecida teia. Lentamente a tarde dissolve o sol de forma a derreter esperanças. Há uma noite em mim onde formigas rendosas caminham apressadas migalhas aos montes em um corpo frágil são fados o caminhar silente das formigas. A porta trancafiada põe em mim um sentimento retrógado, fixo e sem solução. Da janela dou vazão aos sonhos [19]
querente a volta do passado para uma degustação. Miro outras casas, outras pessoas ao longe impacientes, apressadas a caminharem o mesmo caminho. O vento traz um cheiro triste da tarde recostado na janela, entre frestas invadidas sinto ausências reais do afago e dos olhares sou face de um passado remoto. Airton Souza de Oliveira. In: Antologia: poesia, crônicas e contos.
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casa durante a noite a casa geme agita-se aquece e arrefece no interior frio do olho da tua sombra sentada na cadeira aparentemente vazia esperas acordado sem sono que a temperatura da casa funda com a temperatura incerta do mundo depois escreves exactamente isto: o horror dos dias secou contra os dentes — e rouco dobrado para dentro do teu próprio pensamento ferido atravessas as sílabas diáfanas do poema levantas-te tarde atordoado para extinguires o lume ateado junto à memória da casa — respiras fundo para que o gelo derreta e afogue a vulgar noite do mundo olhas-te no espelho atribuis-te um nome um corpo um gesto dormes com a árvore de saliva das ilhas — com o vento [21]
que arrasta contigo esta chuva de fósforo e estes presságios de tranquilos ossos Al Berto. In: Horto de incêndio.
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Uma casa São espessas as paredes espessa a massa a areia o cimento espessa toda a matéria com que se constrói uma casa: vigas de afeto, alimento as várias espécies de sustento pra tudo o que circula sob o vão das telhas: pêlos do corpo, amor bebedeira, esquecimento espessos os alicerces de silêncio em que repousa a casa Alberto Alexandre Martins. In: Poemas.
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Opção Arquitetos adotam a transparência como regra e matéria-prima cobrem as cidades com casas de vidro quase tudo se sabe de lado a lado é livre a visão do peito rasgado da luz que se apaga dois gatos à espera papilas que exultam (o verbo esconder resseca as coordenadas abertas) há até quem prefira vender suas vestes e assim exposto no ventre da urbana vitrine apenas estar em linha reta outros rezam pelo final das tempestades ou pelo tiro na testa Alberto Bresciani. In: Sem passagem para Barcelona.
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Casa vazia Poema nenhum, nunca mais, será um acontecimento: escrevemos cada vez mais para um mundo cada vez menos, para esse público dos ermos composto apenas de nós mesmos, uns joões batistas a pregar para as dobras de suas túnicas seu deserto particular, ou cães latindo, noite e dia, dentro de uma casa vazia. Alberto da Cunha Melo. In: Dois caminhos e uma oração.
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A casa da rua Abílio A casa que foi minha, hoje é casa de Deus. Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus, Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus. Sai de lá uma prece, elevando-se aos Céus; São as freiras rezando. Entre os ferros da grade, Espreitando o interior, olha a minha saudade. Um sussurro também, como esse, em sons dispersos, Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos. De alguns talvez ainda os ecos falarão, E em seu surto, a buscar o eternamente belo, Misturados à voz das monjas do Carmelo, Subirão até Deus nas asas da oração. Alberto de Oliveira. In: Poesias: 4ª série.
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A revolucionária festa no céu dos bichos Infiltradas paredes lodosas e rachaduras no teto vizinho lá fora escada-centopeica com arbustos (surgem trepadeiras que se engalfinham no estralar dos gritos que rompem do solo) sobem desavenças carnívoras à copa da árvore concreta e segue bateres de portas nos portais primitivos entre brigas pratos sapatos sexo amor e silêncio E susto-me moribundo; com óculos esta coruja-das-neves hepática camuflada, que mira os ratos nas trilhas mais sujas e sinto goteiras de sódio na espinha frígida e do escuro ouço gritos-híbridos (miadoscaninos) espessos-nus que descascam falas agudas e graves no horizonte quadrado da mata densa. Animalescos grunhidos copulares acasalados no instinto-búfalo que escuto o bufar nas narinas dilatadas e o timbre da ave que se alivia em atrito as gorduras e leite de cabra rasgam a cerca de palha e madeira [27]
da cama feroz. Desce o cheiro formicida do sangue explosivo e alimário. Sebo do livro nos meus dedos curiosos desconcentra-me a leitura a vista capta, mas a cabeça não entende e engulo noz sem amêndoa (olho de Marina) sem nós também na selvageria do amor fabular. Traidora tubulação que ronca à minha vontade ao meu instinto preso na casa da árvore eu sobrado da dança dos arranhados com castanhola de ostra esganada que ilumina sua joia rosada e instrumental na relva despovoada de almas. Alexandre Morais. In: A mão que carpe o dia.
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Lapa Nesta casa antiga, Sob estas volutas, Como ri com as putas Entre uma e outra briga. Como virei copos E extingui charutos, Discuti com brutos, Vaiei misantropos. Urinei nas pias, Vomitei nas portas, Com passadas tortas Vi nascer os dias. Velha, velha casa, Como ainda és a mesma. (Não tens dentro a lesma Que nos funda e abrasa.) Alexei Bueno. In: 450 anos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
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A enorme bola branca entrou manchando toda a sala de branco de luz do inverno que não esquenta, mas se não sentíssemos nada não usaríamos casacos pois a luz já convenceria do calor aqui nesta casa a luz entra por trás de bambus bambus amarelos, alguns pendem e as folhas pairam no ar, às vezes mexem para provar que não são fotografia tem dias que a arrumadeira por descuido deixa a porta do banheiro aberta quando vai tratar de outra coisa em outro canto, a porta aberta permite que eu entre no banheiro antigo a que os visitantes não têm acesso pois a porta fica sempre fechada por um minuto posso ver secretamente a banheira com a torneira dourada em forma de ave e o espelho com ferrugem no entorno tudo isso me dá um imenso prazer a casa à noite, ninguém a habita caminho sozinha entre paredes de vidro Alice Sant’Anna. In: Rabo de baleia.
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Mariana É como um grande soluço: Mariana. São velhas casas pedindo um pouco de amanhecer. São velhas casas sonhando... São velhas casas sonhando... Parece que vão morrer. É como um grande soluço: Mariana. Navegas por entre luzes que te recordam, na sombra dos teus olhos, um passado dolorido, um passado que não viste e que entretanto é bem teu. Carregas na carne aflita uma carne que morreu. E é como um grande soluço de mil torres, de paisagens exaustas, um soluço sufocado: Mariana. Alphonsus de Guimaraens Filho. In: Nostalgia dos anjos.
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A casa A tua voz é vegetal e eleva-se com o vento. Quero demorá-la, fazer dela uma casa ou um tronco. Que seja a minha noite com um ardor de eternidade. E a sabedoria de estar entre plantas tranquilas. Tudo estará comigo perto de uma nascente e eu mover-me-ei entre nocturnas veias e sobre as pedras lisas. Vejo os barcos da sombra entre as constelações e estou perto, estou perto. A minha casa é aqui. António Ramos Rosa. In: O não e o sim.
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Serão do menino pobre Na sala pobre da casa da roça papai lia os jornais atrasados. Mamãe cerzia minhas meias rasgadas. A luz frouxa do lampião iluminava a mesa e deixava nas paredes um bordado de sombras. Eu ficava a ler um livro de histórias impossíveis — desde criança fascinou-me o maravilhoso. Às vezes, Mamãe parava de costurar — a vista estava cansada, a luz era fraca, e passava de leve a mão pelos meus cabelos, numa carícia muda e silenciosa. Quando Mamãe morreu o serão ficou triste, a sala vazia. Papai já não lia os jornais e ficava a olhar-nos silencioso. A luz do lampião ficou mais fraca e havia muito mais sombra pelas paredes... E, dentro em nós, uma sombra infinitamente maior. Ascânio Lopes. In: Ascânio Lopes — todos os possíveis caminhos.
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A fumaça A pequena casa entre árvores no lago. Do telhado sobe fumaça Sem ela Quão tristes seriam Casa, árvores e lago. Bertolt Brecht. In: Antologia poética.
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A casa No quarto, era de manhĂŁ, NĂŁo dormi, estava contigo A casa respondia Os gritos e sussurros nossos O latido, o chiar O estalido, o passar O rangido, o miar O sussurrado, o esticar Fora os odores Os amores Os tambores A casa, ela sim, Viva e iluminada. Bruno Rosa. In: Antologia poĂŠtica, volume 1.
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Morte das casas de Ouro Preto Sobre o tempo, sobre a taipa, a chuva escorre. As paredes que viram, morrer os homens, que viram fugir o ouro, que viram finar-se o reino, que viram, reviram, viram, já não veem. Também morrem. Assim plantadas no outeiro, menos rudes que orgulhosas na sua pobreza branca, azul e rosa e zarcão. ai, pareciam eternas! Não eram. E cai a chuva sobre rótula e portão. Vai-se a rótula crivando como a renda consumida de um vestido funerário. E ruindo se vai a porta. Só a chuva monorrítmica sobre a noite, sobre a história goteja. Morrem as casas. Morrem, severas. É tempo de fatigar-se a matéria por muito servir ao homem, e de o barro dissolver-se. [36]
Nem parecia, na serra, que as coisas sempre cambiam de si, em si. Hoje, vão-se. O chão começa a chamar as formas estruturadas faz tanto tempo. Convoca-as a serem terra outra vez. Que se incorporem as árvores hoje vigas! Volte o pó a ser pó pelas estradas! A chuva desce, às canadas. Como chove, como pinga no país das remembranças! Como bate, como fere, como traspassa a medula, como punge, como lanha o fino dardo da chuva mineira, sobre as colinas! Minhas casas fustigadas, minhas paredes zurzidas, minhas esteiras de forro, meus cachorros de beiral, meus paços de telha-vã estão úmidos e humildes. Lá vão, enxurrada abaixo, as velhas casas honradas [37]
em que se amou e pariu, em que se guardou moeda e no frio se bebeu. Vão no vento, na caliça, no morcego, vão na geada, enquanto se espalham outras empolvorentas partículas, sem as vermos fenecer. Ai, como morrem as casas! Como se deixam morrer! E descascadas e secas, ei-las sumindo-se no ar. Sobre a cidade concentro o olhar experimentado, esse agudo olhar afiado de quem é douto no assunto. (Quantos perdi me ensinaram.) Vejo a coisa pegajosa, vai circunvoando na calma. Não basta ver morte de homem para conhecê-la bem. Mil outras brotam em nós, à nossa roda, no chão. A morte baixou dos ermos, gavião molhado. Seu bico vai lavrando o paredão
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e dissolvendo a cidade. Sobre a ponte, sobre a pedra, sobre a cambraia de Nize, uma colcha de neblina (já não é a chuva forte) me conta por que mistério o amor se banha na morte. Carlos Drummond de Andrade. In: Fazendeiro do ar & Poesia até agora.
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Sou feliz No topo de uma colina Construí uma cabana De manhã surge a neblina Que a natureza promana. Quem reside nesta casinha Que é um verdadeiro primor Eu e minha mãezinha A quem dedico o meu amor. Quando o sol deixa o poente Tudo encanta na colina Surge a noite lentamente Tudo é belo, e me fascina. Minha mãe sempre cantando É amável e carinhosa Passa os dias cuidando Dos seus canteiros de rosas. Como é lindo o meu viver! Nesta cabana que fiz Creio que... eu posso dizer: Graças a Deus, sou feliz! Carolina Maria de Jesus. In: Antologia pessoal.
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Constelação Tento recompor as paredes de louça, a porta da rua apodrecendo, os tijolos aparentes no muro onde dois registros — água e luz — saltavam, dois olhos de vidro opaco. Contemplo-os agora na janela da memória — ou serão também espelho, reflexo de mim mesmo? A tarde parecia eterna nos pés do menino junto à horta, na caixa d’água que era berço e túmulo, na coleção de cacos e suas flores mínimas, resumo de conversas na cozinha, tinidos, subentendidos... Tento recompor a memória prévia, o tempo duplo, a casa em chiaroscuro, no papel que (mesmo querendo) não posso rasgar. Chantal Castelli. Memória prévia.
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matéria paredes da casa são feitas de glúten paredes das dores, de tijolos, resistentes as do útero trepidam 364 dias por ano no 365º dia elas sangram se atenuam os dramas incrustados na grama cama tem pés de vidro pernas se afundaram em lama entranhas atrás dos orifícios dos olhos são grávidas vivem parindo engodo e fantasma barriga do pão sem grão sótão forrado da fuligem de chão tecidos adiposos sobre móveis imóveis os que observam absorvem a poeira das palavras ao menos elas chovem: as palavras eu-toda equilibrada numa palafita alagada firme e fraca Cibely Zenari. In: Guadalupy e 12 contrações.
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Domus aurea De bom amor e de bom fogo claro Uma casa feliz se acaricia... Basta-lhe luz e basta-lhe harmonia Para ela não ficar ao desamparo. O Sentimento, quando é nobre e raro, Veste tudo de cândida poesia... Um bem celestial dele irradia, Um doce bem, que não é parco e avaro. Um doce bem que se derrama em tudo, Um segredo imortal, risonho e mudo, Que nos leva debaixo da sua asa. E os nossos olhos ficam rasos d’água Quando, rebentos de uma oculta mágoa, São nossos filhos todo o céu da casa. Cruz e Sousa. In: Últimos sonetos.
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Canção da casa vazia I O tempo parou e frio, lá fora, é o sol das almas. Verdadeiramente falando, este não é um tempo de... preparação. Antes, de quaresma e envelhecimento. Exemplos: da cal nas paredes, da moldura nos retratos, das cadeiras nas salas, do verniz nos móveis, das construções nos prazos antigos, da chuva nas calhas, até mesmo da dor no corpo morrendo Março MarçoMarço: Pai, olha, lá fora, como o vento do outono brinca com as roupas nos varais! II O sol ainda não esquentou de vez, Pai, Porém, se o sol se esquentar de vez, As quaresmas lá fora se salientarão tanto, Que a gente sentirá a tristeza da agonia, A despedida da Terra. Principalmente, Pai, [44]
Se as cigarras derem de cantar. Dantas Mota. In: Esparsos.
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A minha casa A minha casa É fácil de localizar É fácil de encontrar Basta ires sempre em frente Para além da linha do horizonte É fácil com certeza Primeiro encontras lixo Lixo e pessoas em convivência E em harmonia, Lixo na parte de baixo E na parte de cima Lixo e pessoas em convivência íntima Mais adiante E com o mau cheiro crescente Encontras uma lagoa E nela, crianças a banharem Crianças a brincarem Na maior, numa boa Mais à frente Entras em becos estreitos Becos pequenos e apertaditos É fácil, é só teres isto em mente Becos e suas enxurradas Becos e suas águas estagnadas
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Sempre em frente Para além da linha do horizonte Lá onde a água corrente Lá onde a água potável Passa muito distante E da cor do invisível! Sempre em frente Para além da linha do horizonte Lá onde a luz eléctrica Connosco brinca Qual nuvem passageira Que ora vai, ora vem zombateira! Sempre em frente Para além da linha do horizonte Cheiro de kaporroto no ar Cheiro de kimbombo a vibrar Nossas bebidas do dia-a-dia Nossas bebidas nossa companhia E no quintal da minha casa Há jovens a falar alto, bêbados Jovens cansados, frustrados e arrebentados São os meus kambas Kambas das bebedeiras e das minhas malambas É fácil de localizar com certeza, Sempre em frente [47]
Para além do horizonte! Décio Bettencourt Mateus. In: Antologia poética.
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Canção sobre minha cabana destruída pelo vento de outono No céu claro de outono, o vento a soprar violento arranca três camadas de palha do teto de minha cabana. As palhas se espalham, chegam à margem oposta do rio, penduram-se nos galhos mais altos das árvores quando sopra o vento, ou então, em redemoinhos, acumulam-se no brejo. Os moleques da aldeia, vendo-me fraco, atrevem-se a roubá-las bem diante dos meus olhos. Afastam-se com elas às braçadas, à luz do dia, para as touceiras de bambu. Grito em vão, com os lábios queimados, a boca seca: nada acontece. Volto, apoiado em minha bengala, e suspiro. O vento a seguir se acalma, mas as nuvens tornam-se mais escuras. O céu de outono, pouco a pouco, mergulha na obscuridade. Minhas colchas, de tão usadas, são frias que nem ferro. São meus filhos desnaturados, [49]
no meio dos pesadelos, que as rasgam com os pés. Por cima da cama o teto goteja, molhando tudo, enquanto a chuva prossegue forte, ininterrupta. Desde a rebelião de An Lushan tenho dormido pouco. Quando essa longa e úmida noite chegará ao fim? Eu queria uma casa vermelha com cem mil quartos, para abrigar coitados que passam frio sob esse céu, e fazer com que seus semblantes fiquem de novo alegres: todos nós, calmos que nem montanha, no meio da chuva e da tempestade. Que essa grande casa surja diante de meus olhos. Aí, sim, morrerei de frio na minha cabana, mas feliz. Du Fu. In: Poemas clássicos chineses.
[50]
O tigre Há um tigre em casa que dilacera por dentro aquele que o olha. E somente tem garras para aquele que o espia, e somente pode ferir por dentro, e é enorme: maior e mais pesado que outros gatos gordos e carniceiros pestíferos de sua espécie, e perde a cabeça com facilidade, fareja o sangue mesmo através do vidro, percebe o medo até da cozinha e apesar das portas mais robustas. Costuma crescer de noite: coloca sua cabeça de tiranossauro em uma cama e o focinho fica pendurado para lá das colchas. Seu dorso, então, se aperta no corredor de uma parede à outra, e somente alcanço o banheiro rastejando, contra o teto, como que através de um túnel de lodo e mel. Não olho nunca a colmeia solar, os negros favos do crime [51]
de seus olhos, os crisรณis da saliva envenenada de suas presas. Nem sequer o cheiro, para que nรฃo me mate. Mas sei claramente que hรก um imenso tigre encerrado em tudo isso. Eduardo Lizalde. In: O tigre em casa e a caรงa do tigre.
[52]
Território Mesmo o pó dorme, a esta hora, desprezado pelo sol. Podes vagar tranquilo pelo território inimigo: tua casa. Nenhum perigo que as coisas te assaltem ou te abracem. Os braços das cadeiras, como de praxe, calados. Mal percebes (êxtase ou cansaço) a oclusa cerimônia de coisas a que não foste convidado e que, intruso, profanas. Eduardo Sterzi. In: Aleijão.
[53]
Metamorfoses da casa Ergue-se aérea pedra a pedra a casa que só tenho no poema. A casa dorme, sonha no vento a delícia súbita de ser mastro. Como estremece um torso delicado, assim a casa, assim um barco. Uma gaivota passa e outra e outra, a casa não resiste: também voa. Ah, um dia a casa será bosque, à sua sombra encontrarei a fonte onde um rumor de água é só silêncio. Eugénio de Andrade. In: Poemas de Eugénio de Andrade.
[54]
O foragido Minha casa é deserta; na frente Brotam plantas bravias do chão, Nas paredes limosas o cardo Ergue a fronte silente ao tufão. Minha casa é deserta. O que é feito Desses templos benditos doutrora, Quando em torno cresciam roseiras, Onde as auras brincavam na aurora? Hoje a tribo das aves errantes Dos telhados se acampa no vão, A lagarta percorre as muralhas, Canta o grilo pousado ao fogão. Das janelas no canto, as aranhas Leves tremem nos fios dourados, As avencas pululam viçosas Na umidade dos muros gretados. Tudo é tredo, meu Deus! o que é feito Dessas eras de paz que lá vão, Quando junto do fogo eu ouvia As legendas sem fim do serão? No curral esbanjado, entre espinhos, Já não bala ansioso o cordeiro, Nem desperta-se ao toque do sino, [55]
Nem ao canto do galo ao poleiro. Junto à cruz que se eleva na estrada Seco e triste se embala o chorão, Não há mais o esfumar das acácias, Nem do crente a sentida oração. Não há mais uma voz nestes ermos, Um gorjeio das aves no vale; Só a fúria do vento retroa Alta noite agitando o ervaçal. Ruge, oh! vento gelado do norte, Torce as plantas que brotam do chão, Nunca mais eu terei as venturas Desses tempos de paz que lá vão! Nunca mais desses dias passados Uma luz surgirá dentre as brumas! As montanhas se embuçam nas trevas, As torrentes se vendam de espumas! Corre, pois, vendaval das tormentas, Hoje é tua esta morna solidão! Nada tenho, que um céu lutulento E uma cama de espinhos no chão! Ruge, voa, que importa! sacode Em lufadas as crinas da serra; Alma nua de crença e esperanças, [56]
Nada tenho a perder sobre a terra! Vem, meu pobre e fiel companheiro, Vamos, vamos depressa, meu cĂŁo, Quero ao longo perder-me das selvas Onde passa rugindo o tufĂŁo! Fagundes Varella. In: Poemas.
[57]
Romance sonâmbulo Verde que te quero verde. Verde vento. Verdes ramas. O barco livre no mar e o cavalo na montanha. Com sombra pela cintura ela sonha na varanda, verde carne, tranças verdes, os olhos de fria prata. Verde que te quero verde. À luz da lua gitana as coisas a estão mirando e ela não pode mirá-las. * Verde que te quero verde. Estrelas de orvalho, claras, seguem o peixe de sombra que abre a rota da alvorada. A figueira arranha o vento com sua lixa de ramas e o monte, gato gatuno, eriça as piteiras ásperas. Mas, quem virá? E por onde? Ela segue na varanda, verde carne, tranças verdes, sonhando no amargo mar. * [58]
— Compadre, quero trocar meu potro por sua casa, meus arreios, pelo espelho, a faca por sua manta. Compadre, venho sangrando desde os penhascos de Cabra. — Ai, se eu pudesse, rapaz, este trato se fechava, mas, eu já não sou eu mesmo nem mais é minha esta casa. — Compadre, quero morrer com decência, em minha cama de ferro, se puder ser, sobre lençóis de cambraia. Não vês que a minha ferida sobe do peito à garganta? — Trezentas rosas morenas tens sobre a camisa branca. Teu sangue ressuma e cheira ao redor da tua faixa, mas eu já não sou eu mesmo, nem mais é minha esta casa. — Deixai-me subir ao menos até às varandas altas. Deixai-me subir, deixai-me até às verdes varandas, altas varandas da lua por onde retumba a água. * [59]
Já sobem os dois compadres para as varandas mais altas, deixando um rastro de sangue, deixando um rastro de lágrimas. Tremeluziam nas telhas gotas de luz cor de lata. Mil pandeiros de cristal feriam a madrugada. * Verde que te quero verde. Verde vento. Verdes ramas. Os dois compadres subiram. O longo vento deixava um raro gosto na boca de fel, de menta e alfavaca. — Compadre, dize onde está, onde, tua filha amarga? — Quantas vezes te esperou! quantas vezes te esperara, cara fresca, negras tranças, aqui na verde varanda! * Sobre a face da cisterna a gitana se embalava, verde carne, tranças verdes, os olhos de fria prata. Um fino feixe de lua a sustém boiando na água. [60]
A noite se fez tão íntima como uma pequena praça. Bêbados guardas civis chamam na porta a pancadas. Verde que te quero verde. Verde vento. Verdes ramas. O barco livre no mar. E o cavalo na montanha. Federico García Lorca. In: Ensaio de interpretação do Romancero gitano de García Lorca.
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Ruídos da rua invadem a casa — você conhece a caixa de Pandora? (palavras) uma pedra (palavras) rompe o vidro e à janela o vento dança um corpo de cortinas — corta — o golpe de ar alavanca como um voo lento o golpe do tempo erigido ao som de palavras: — você conhece a caixa de Pandora? veja aquele homem apenas isso pergunta ao telefone trôpego — travelling — torto num movimento de armas — move seus braços — quase uma bandeira no tempo — muda — sem pátria ele rui incisivo — um réptil grunhindo — cedendo pela fúria em suas palavras elas que pesam uma existência congeladas na mesma questão: — você conhece a caixa de Pandora? o vento arranca o vidro está quebrado a janela está aberta [62]
o homem arranca e passa desertando a rua — uma presa — na selva da mesma questão: — você conhece a caixa de Pandora? Fernanda Morse. In: Kraft.
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A casa branca nau preta Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se... Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro... Não existe manhã para o meu torpor nesta hora... Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim... Há uma interrupção lateral na minha consciência... Continuam encostadas as portas da janela desta tarde Apesar de as janelas estarem abertas de par em par... Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo, E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma... Quem dera que houvesse Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois... Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem... A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir... [64]
As naus seguiram, Seguiram viagem não sei em que dia escondido, E a rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos, Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho... Árvores paradas da quinta, vistas através da janela, Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las, Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer, Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá, E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão... Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde? Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim, E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta, [65]
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta, E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida... Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores? Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer? Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele, Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir... Não há substância de pensamento na matéria de alma com que penso... Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz, E o quintal cheio de luz sem luz agora aindaagora, e eu. Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar... E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
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São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta, E eu, parado, mole, adormecido, Tenho o mar embalando-me e sofro... Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva. As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga. Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa. Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando. Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá? Húmida sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói. Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos, Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos, [67]
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa, E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas... A casa branca nau preta... Felicidade na Austrália... Fernando Pessoa. In: Poesias de Álvaro de Campos.
[68]
A nossa casa A nossa casa, Amor, a nossa casa! Onde está ela, Amor, que não a vejo? Na minha doida fantasia em brasa Constrói-a, num instante, o meu desejo! Onde está ela, Amor, a nossa casa, O bem que neste mundo mais invejo? O bando ninho aonde o nosso beijo Será mais puro e doce que uma asa? Sonho… que eu e tu, dois pobrezinhos, Andamos de mãos dadas, nos caminhos Duma terra de rosas, num jardim, Num país de ilusão que nunca vi… E que eu moro — tão bom! — dentro de ti E tu, ó meu Amor, dentro de mim… Florbela Espanca. In: Antologia poética de Florbela Espanca.
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Architectura Um dia, Ela desenhará em chãos longínquos a casa só nossa, que eu farei com estas mãos. Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés. Às telhas — hei de aprontar o barro mais macio, e as formas serão por mim, uma a uma, completas; Ela as alisará longamente — seus dedos molhados de um profundo silêncio: só os pássaros. Francisco José Soares Feitosa. In: Da maldição das estantes.
[70]
Casa única da estrada A casa única da remota estrada há de ser iluminada. Não há outra a que ir o caminhoneiro que não pode seguir. Já da estrada, para o que vem, para o que vai, há um caminho que na sua porta sai. O próprio cavalo suado relincha alegre de a ver porque sabe que ali há sempre a bondade da tina d’água de beber. E casa do acolhimento, com grandeza no coração. Não pode morar nela o homem da “Casa do Não”. Geraldino Brasil. In: Antologia poética.
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Fantasmas Bobagem esperar outra coisa, pois tudo deu no que deu. Não sobrou uma migalha na mesa quando o último convidado sumiu. Mas esqueceram a lâmpada acesa, algumas portas e janelas abertas. Desfecho apressado de festa, em casa, agora, abandonada. Então, os fantasmas pularam das molduras e cada qual reassumiu seu posto. Vovó Marieta traz o pudim de leite. Tia Celeste se espichou no terreiro, e jaz, transfigurada pela luz da lua. Vovô Nagib ameaça com a bengala, atazanado com tamanha bizarria. Donana e o eterno bordado cheio de flores azuis e andorinhas. Tio Vicenzo atravessa as paredes, e bêbado, no terno lastimável, aponta, rindo, para minha mãe, dançando acima dos telhados, com uma rosa negra na boca. E dança de pés descalços, [72]
como se ainda fosse criança. Os mortos são malcomportados. Bando de funâmbulos em fúria, refazem o que foi minha família, fadada ao desastre e à insânia. Porque insano sempre fui. E por não saber mendigar, me reduziram à indigência das palavras, onde me recolho com meus fantasmas. Gilberto Nable. In: Percurso da ausência.
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Casa de solteiro um copo qualquer prato pequeno panela de pressão imprecisa cheio de xícara em cacos e poucos pires intactos panos de pratos rotos e furados não tenho toalhas de mesa de banho e de rosto tampouco tapauer tá vazio de sobremesa não tenho cadeira nem banco o criado-mudo mudou-se para longe e não volta tão cedo energia elétrica esqueceu de acender mas do escuro não tenho medo lençol limpo é lenda fronha é folgada pro meu travesso travesseiro que na verdade é almofada o colchão tá furado o estrado estragado dvd duvido um dia eu ter não vejo, nunca vi nem tenho tv só falta um banheiro [74]
com pia chuveiro privada ou bidê do computador só tenho metade tá faltando “com puta” pois com a idade a “dor” sobra em todas as juntas Giovanni Venturini. In: Anão ser.
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San Martino Del Carso Valloncello dell’Albero Isolato, 27 de agosto de1916
Destas casas nada sobrou senão alguns pedaços de muro De quantos me foram próximos nada sobrou nem tanto No coração porém nenhuma cruz me falta É o meu coração a região mais destroçada Giuseppe Ungaretti. In: A alegria.
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Elege para viver o retiro de uma chácara, que comprou nas margens do dique, e ali conta, o que passava retirado Canção Por bem afortunado Me tenho nestes dias, Em que habito este monte a par do Dique, Vizinho tão chegado Das taraíras frias, A quem a gula quer, que eu me dedique: Aqui vem o alfenique Das pretas carregadas Com roupas de que formam as barrelas: Não serão as mais belas, Mas hão de ser por força as mais lavadas; E eu namorado desta, e daqueloutra De uma o lavar me rende o torcer de outra. Os que amigos meus eram, Vem aqui visitar-me: Amigos, digo, de uma e outra casta, Oh nunca aqui vieram! Porque vem agastar-me, E nunca deixam coisa, que se gasta. Outros vêm quando basta Fazer nesta varanda Chacotas e risadas: Coisas bem escusadas, [77]
Porque o riso não corre na quitanda: Corre de cunho a prata, E amizade sem cunho é patarata. A casa espaçosa, Coberta e retelhada Com telha antiga do primeiro mundo: Palha seca e frondosa Um tanto refolhada Da que sendo erva-santa é vício imundo; O torrão é fecundo Para a tal erva-santa, Porque esta negra terra Nas produções, que erra, Cria venenos mais que boa planta: Comigo a prova ordeno, Que me criou para mortal veneno. Gregório de Matos. In: Poemas escolhidos.
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Minha casa Minha casa é um refúgio De noite quando o sono não chega vou até o portão para fumar um cigarro O homem protegido sob uma pequena marquise de uma garagem fala sozinho igual ao meu filho quando brinca O homem imita conversas e revolve uma sacola de supermercado Afasto-me do poema que os olhos espiões poderiam indicar Refugio-me entre artigos da casa Aquele homem sob a marquise permanece inabordável Heitor Ferraz Mello. In: Coisas imediatas [19962004].
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A colher na boca Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve no tempo mais antigo. Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, sorrindo com ironia e doçura no fundo de um alto segredo que os restitui à lama. De doces mãos irreprimíveis. — Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas, as casas encontram seu inocente jeito de durar contra a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras. Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta do gosto, o entusiasmo do mundo. Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio admirável das fontes — pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste como fogo exemplar. Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
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um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores tenebrosas, e temos memória e absorvente melancolia e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos. Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos, espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos que não viram as torrentes infindáveis das rosas, ou as águas permanentes, ou um sinal de eternidade espalhado nos corações rápidos. — Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam pelos muitos sentidos dos meses, dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra, para que se faça uma ordem, uma duração, uma beleza contra a força divina? Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha. Alguém viera do mar. Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó. Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações. [81]
— Estas casas serão destruídas. Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente no seu casamento solar, assim se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo, vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos da terra onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos múltiplas, as caras ardendo nas velozes iluminações. Falemos de casas. É verão, outono, nome profuso entre as paisagens inclinadas. Traziam o sal, os construtores da alma, comportavam em si restituidores deslumbramentos em presença da suspensão de animais e estrelas, imaginavam bem a pureza com homens e mulheres ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente, tocando uns nos outros — comovidos, difíceis, dadivosos, ardendo devagar. Só um instante em cada primavera se encontravam [82]
com o junquilho original, arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres da inspiração. — E as casas levantavam-se sobre as águas ao comprido do céu. Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne doce e obsessiva — tudo isso está longe da canção que era preciso escrever. — E de tudo os espelhos são a invenção mais impura. Falemos de casas, da morte. Casas são rosas para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança nos abandona para sempre. Casas são rios diuturnos, nocturnos rios celestes que fulguram lentamente até uma baía fria — que talvez não exista, como uma secreta eternidade. Falemos de casas como quem fala da sua alma, entre um incêndio, junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza. Herberto Helder. In: Poesia toda. [83]
loteamento a casa perde as esperanças levaram-lhe as janelas amigo a quem no reencontro falta um olho ou que enlouquece e vive de bombons num pano e quer se desculpar por isso casa ferro em maço sonho e trincheira das crianças já não há casamento ou dinheiro agora sabe carniça desmontam você à noite perdeu as carenagens sozinha onde outros tantos montes de areia avisavam de outras casas [84]
que não vieram apressada e pioneira levaram com marreta as esquadrias irmã manca que escondem só queria ter mãos para cobrir o rosto Heyk Pimenta. In: A serpentina nunca se desenrola até o fim.
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As casas após longa espera nada aconteceu as casas continuaram baixas tão baixas que muitos de seus habitantes rastejavam enquanto outros desistiam de antigas reivindicações Horácio Dídimo. In: A palavra e a palavra.
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Na casa do bisavô morto Potes de barro, forno a lenha, vapores senis dos fantasmas libertos, um alguidar esquecido na despensa. Ao som de portas moventes, cristaleiras emitindo madeirices e flores antigas. Uma máquina de costura que cerziu tantas saias de tantas tias tontas ao léu: umas mortas, outras virgens. No seu quarto, a cama com felpuda colcha de linha de trem partido há décadas de ausência lendária ensinando rezas e poesias com os olhos verdes verdes. Tanto tempo vivido e os açudes sangram pra dentro do seu chapéu vazio. Iara Maria Carvalho. In: Milagreira.
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Ritual Fecho as janelas desta casa (seus corredores, seus fantasmas sua aérea arquitetura de pássaro) fecho a insônia que inundava meu quarto debruçado sobre o nada fecho as cortinas onde a larva do tempo tece agora sua praga fecho a clara algazarra plácida das vozes sanguíneas da alvorada fecho o trecho taciturno da tocata a chuva percutindo as teclas do telhado as sombras navegando pelo pátio e o bambuzal Fecho as torneiras da memória Fecho também a tumultuosa torrente de vida que poderia ter rompido o cerco das paredes e feito explodir a argamassa de calcário e solidão Fecho ainda as lentas pálpebras da amada o mofo acumulado entre seus lábios o limo que vestiu sua carne desolada Fecho tudo e depois me fecho Estou cansado [88]
estou triste estou sรณ Ivan Junqueira. In: Os mortos.
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Jardim de lama e pedra Por algum motivo sonhei com a casa da minha avó Não qualquer casa, mas AQUELA casa Cheirava a mato, chuva de fim de tarde e alegria A farofa de ovo no fogão e o café servido no copo barato Crianças correndo, endiabradas Televisão velha O quarto da prima mais velha que ninguém poderia entrar Armadores de rede Desejos no chão feitos com pedaços de tijolos Desejei uma casa, uma árvore e pessoas ao redor Jardim de lama e pedra E insetos barulhentos Minha avó vestida numa bata gasta e sandália nos pés Feliz! Feliz! Feliz! Que toque Roberta Miranda e assem a carne para as visitas! O sol caindo e tudo sendo engolido pela mais perfeita escuridão Luzes amarelas iluminando precariamente o aposento mais importante Luz que queima e o escuro a nos assustar Tudo acaba [90]
Ainda lembro-me do choro infantil dela ao perder AQUELA casa Como uma criança ao perder o precioso brinquedo Triste senhora de olhar cansado, ai dela! Pereceu rapidamente Corpo minguando pelo cansaço da idade Eu lembro... Foram lá os momentos mais belos de uma infância simples Minha infância E para lá a sua alma foi, certamente Ou talvez este seja apenas o desejo sincero daqueles que permanecem aqui Aqueles que não partiram Não ainda. Jacqueline Lima Coelho Sampaio. In: Antologia: poesia, crônicas e contos.
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A mulher e a casa Tua sedução é menos de mulher do que de casa: pois vem de como é por dentro ou por detrás da fachada. Mesmo quando ela possui tua plácida elegância, esse teu reboco claro, riso franco de varandas, uma casa não é nunca só para ser contemplada; melhor: somente por dentro é possível contemplá-la. Seduz pelo que é dentro, ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda; pelos espaços de dentro: seus recintos, suas áreas, organizando-se dentro [92]
em corredores e salas, os quais sugerindo ao homem estâncias aconchegadas, paredes bem revestidas ou recessos bons de cavas, exercem sobre esse homem efeito igual ao que causas: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la. João Cabral de Melo Neto. In: Quaderna.
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Limite As paredes mudas mudavam a possibilidade da casa Tudo rijo como as formigas que silenciassem nas tocas a chance da folha, ou da picada Os rodapés que ansiassem para além dos fios pelo canto exposto ou a rota exposta do rato Ou os fungos, filamentos milenares que lembrassem o suco derramado, o carpete esquecido a cachorra morta Entre a lâmpada e o rejunte a fina lâmina de mariposa múmia do tempo da poeira e dos fótons Na área, a latinha de Coca implorando escancarada pela dança das abelhas nas bordas Nas teias, na sujeira nos livros [94]
no estofamento de espuma apenas os planos geométricos da conspiração dos ácaros E as folhas da cheflera enorme em sustento estéril ao ninho nunca acabado dos sebinhos bicadores Arquitetura sóbria onde o rumor, não mais que indício (no formigueiro do jardim no brilho esquivo do rato na pachorra do bolor ancestral nos fótons, nas bordas, nos ácaros) espera Do alto das vigas o anúncio do tremor que viria no próximo espirro (não veio) Ou a espada sempre pendendo no fio de cabelo sobre a cabeceira da mesa João Gabriel Ascenso. In: Kraft.
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Tu ensinaste-me a fazer uma casa Tu ensinaste-me a fazer uma casa: com as mãos e os beijos. Eu morei em ti e em ti meus versos procuraram voz e abrigo. E em ti guardei meu fogo e meu desejo. Construía minha casa. Porém não sei já das tuas mãos. Os teus lábios perderam-se entre palavras duras e precisas que tornaram a tua boca fria e a minha boca triste como um cemitério de beijos. Mas recordo a sede unindo as nossas bocas mordendo o fruto das manhãs proibidas quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo para saudar o vento. E vejo teu corpo perfumando a erva e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros que agora se recolhem, quando a noite se move, nesta casa de versos onde guardo o teu nome. Joaquim Pessoa. In: Os olhos de Isa.
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Volta à casa paterna É tarde e eu quero entrar em casa, que a noite vem aí, cheia dos seus espantos. A luz foi intensa, o dia foi cálido, o ritmo das horas é monótono e irreal. As danças do pátio, as paisagens de fora, os caminhantes são falsos. Os caminhos são errados. Os ritmos são errados. Os poemas são outros. A noite aí vem cheia dos seus espantos. Há uma rede aqui dentro que me embalou. Há na parede da sala uma estampa sagrada que por mim chorou. Há um raio de lua no corredor. Será a alma de meu pai que Deus mandou? Casa, doce casa sem elevador, cadê o Ford que me levou? Há sombras que passam, fantasmas que vão, que vêm, que choram, que riem, que me beijam... Há um livro aberto na minha mesa: Padre Nosso que estás no céu, santificado, vem a nós... assim na terra... Jorge de Lima. In: Novos poemas; Poemas escolhidos; Poemas negros.
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A volta No fim dos anos de desterro voltei à casa de minha infância e seu espaço ainda me é estranho. Minhas mãos tocaram as árvores como quem faz carinho em alguém que dorme e repeti antigos caminhos como se resgatasse um verso esquecido e vi ao derramar-se a tarde a frágil lua nova que se apoiou no amparo sombrio da palmeira de folhas altas, como em seu ninho o pássaro. Que caterva de céus conterá entre seus muros o pátio, quanto poente heroico militará nas profundezas da rua e quanta lua nova quebradiça infundirá ao jardim sua ternura, antes que a casa volte a reconhecer-me e novamente seja um hábito! Jorge Luis Borges. In: Primeira poesia.
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No batente de pau do casarão (Tema de Dedé Monteiro) De braúna foi feito este batente, Bem sentado no chão por um pedreiro, Cada marca no corpo é um janeiro Que lhe deixa por um lado assim pendente, Mesmo assim rijo, forte e resistente, Se escalda nos dias do sertão, E o passado lhe traz recordação, Dos trinados de esporas e dos chocalhos, Que fizeram com o tempo estes mil talhos, No batente de pau do casarão. No batente da casa da fazenda, Tropecei quando ainda era bem moço, Esperei mãe trazer o meu almoço, Vi Maria sentada fazer renda, Muita gente deixava encomenda, Um menino batia seu pinhão, Pra ficar bem macio em sua mão, Dava cortes profundos na madeira, Tem até um buraco de pingueira, No batente de pau do casarão. Eu conheço a história de um batente Que por mais de cem anos foi pisado Quando a casa caiu foi retirado Pro uma sobra que havia assim na frente E de assento servia a muita gente [99]
Esperar com a família o caminhão Quantos anos ficou ali no chão Esperando no chão com paciência Acho até que existe consciência No batente de pau do casarão José Antônio do Nascimento. In: Pernambuco, terra da poesia.
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Casa amarela Casa amarela sem porta, sem janela. Como saber o que há dentro dela? Gato no telhado olhou pela fresta, arrepiou-se todo, ora esta! Depois, sumiu. Ninguém sabe até hoje o que foi que ele viu. Casa amarela, sem porta sem janela... Será que esconde fantasma banguela. vampiro vesgo. olho gordo, remela? Casa amarela, tão feia, tão bela. Quem souber o mistério, que o pinte em aquarela. E depois, se não se importa, coloque uma porta na casa amarela, [101]
e, no meio da porta, uma taramela. Mas, quando entrar, acenda uma vela! JosĂŠ de Castro. In:Um livro, um castelo.
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No passado, os negros construíram casas No passado, os negros construíram casas e muros de pedra em torno das cidades; os negros plantavam, colhiam e edificavam engenhos e plantações de cana; no passado, em vários lugares e numa extensão fabulosa da terra brasileira os negros furavam a terra, bateavam ouro de lavras, para os brancos, construíram edificações, igrejas, colégios, servidões seculares que resistem ao tempo e são hoje tombadas pela cultura universal. Por que razões que nas ruas das grandes e médias cidades do país os meninos e meninas negras estão pedindo um trocado pedindo uma sobra de comida? José Godoi Garcia. In: O flautista e o mundo sol verde vermelho.
[103]
A casa Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas. Na livraria, há um avô que faz cartões de boasfestas com corações de purpurina. Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo. Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos. No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha. Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão. Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família. Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo. No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha. E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos. Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
[104]
Antes que ele acorde e se descubra também morto. José Paulo Paes. In: Os melhores poemas de José Paulo Paes.
[105]
A casa onde às vezes regresso A casa onde às vezes regresso é tão distante da que deixei pela manhã no mundo a água tomou o lugar de tudo reúno baldes, estes vasos guardados mas chove sem parar há muitos anos Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai uma viagem que se deu entre as mãos e o furor uma viagem que se deu: a noite abate-se fechada sobre o corpo Tivesse ainda tempo e entregava-te o coração José Tolentino Mendonça. In: A noite abre meus olhos.
[106]
Diante da casa Ontem, andando por um bairro longe do centro, passei diante da casa onde eu entrava quando muito jovem. Ali se apoderara do meu corpo Amor com sua força maravilhosa. E ontem, enquanto eu percorria o caminho de outrora, eis que se revestiram do encanto do amor as lojas, as calçadas, cada pedra, e os muros, e as janelas, e os balcões; nada, nada de mau ali ficara. Konstantinos Kaváfis. In: Poemas.
[107]
A mecânica da casa Não apago a lembrança da pedra no vidro. O buraco enquadra: caixa d’água, vaso suspenso, nuvens — eis um jardim. Em certas paredes, a umidade é intensa e surgem diagramas sedimentos marcas de difíceis negociações entre o dentro e o fora. A luz só é permitida no quarto da frente (até às 10 horas) e na área de serviço (até que se esvaneça). Pela janela dos fundos, à noite, sempre chove. Leila Danziger. In: Três ensaios de fala.
[108]
A casa Da porta principal à derradeira, um corredor. Só o piso de madeira. As portas laterais, trancadas. Todas elas. Pelas janelas, fogem os fantasmas gerados na cumeeira. Que mais? Que mais? Ah, sim: uma goteira, sangrando... sangrando... sujando a casa inteira. Lenilde Freitas. In: Espaço neutro.
[109]
Na casa da senhora Xun Hospedo-me ao pé da montanha dos Cinco Pinheiros Profunda solidão e nada para me alegrar... Rude é o trabalho dos camponeses no outono. Ouço a mulher da fazenda vizinha socar o trigo, na noite fria. A mulher que me hospeda se ajoelha para me oferecer uma tigela de arroz. Os grãos brilham como pérolas sob a lua. Perturbado, eu me lembro daquela lavadeira que ofereceu ao seu visitante uma tigela de arroz Agradeço uma, duas, três vezes, não, obrigado, não posso aceitar. Li Bai. In: Poemas clássicos chineses.
[110]
Aos leitores Aqui é minha casa. Ali ficam o sol e o jardim com colmeias. Vocês vêm pela trilha, olham da porta por entre as grades e esperam que eu fale. Por onde começar? Creiam em mim, creiam em mim, sobre seja o que for pode-se falar quanto se queira: sobre o destino e sobre a serpente do bem, sobre os arcanjos que lavram com o arado os jardins do homem, sobre o céu para onde crescemos, sobre o ódio e a queda, tristezas e crucifixões e acima de tudo sobre a grande travessia. Mas as palavras são as lágrimas de quem teria desejado tanto chorar e não pôde. São tão amargas as palavras todas, por isso... deixem-me passar mudo por entre vocês, sair à rua de olhos fechados. Lucian Blaga. In: A grande travessia.
[111]
A casa rosa Na altura da serra, encerra angústia, abandono, desolação. Canção de ninar tardia. Refúgio de ave de arribação. Luciano José. In: Horrores.
[112]
Desconstrução nas paredes da casa resistem fotofrangalhos de tempo a memória se estafa no living o futuro espera no hall as janelas todas cerradas encobrindo as vozes do sol à procura de um silêncio escuto enquanto meu olhar foge pela porta dos fundos Luiz Olavo Fontes. In: 26 poetas hoje: antologia.
[113]
Amor como em casa Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que não é nada comigo. Distraído percorro o caminho familiar da saudade, pequeninas coisas me prendem, uma tarde num café, um livro. Devagar te amo e às vezes depressa, meu amor, e às vezes faço coisas que não devo, regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no amor como em casa. Manuel António Pina. In: Poesia reunida.
[114]
Ideia para casa A casa é sempre ideia de fazê-la a terra é o lugar a pedra serve existe para estar e desfazer-se. Mas antes de desfeita a pedra é casa o sonho habita nela é ele quem a desfaz pelo cansaço Casa nesta ideia é sem telhado mesmo depois das estrelas entra por ela o mar Só com janelas esta construção se faz. E se define a pedra é uma ilusão sem fechaduras. Manuel Rui. In: Antologia poética.
[115]
Minha casa e meu coração (Sonho de liberdade) Se saio um dia à vida minha casa não terá chaves: sempre aberta, como o mar, e o sol e o ar. Que entrem a noite e o dia, e a chuva azul, a tarde, o rubro pão da aurora; A lua, minha doce amante. Que a amizade não detenha seus passos em meus umbrais, nem as andorinhas em seu voo, nem o amor seus lábios. Ninguém. Minha casa e meu coração nunca fechados: que entrem os pássaros, os amigos, o sol e o ar. Marcos Ana. In: Poemas do cárcere.
[116]
Concreto a(r)mado Um desenho se monta Em suas bases flexíveis, sólidas de solidão, Retas e vigas enviesadas de palavras De poesia concreta. Tudo cinza e, simplesmente, Se transforma em casa, Casamentos, arquivos secretos, Alianças, palavras doces e gritos. Tudo se levanta em paredes, portas E limites Onde um dia houve fundações, códigos secretos, Topos e superfícies, arestas E palavras-chaves que abriam os domingos. Nas caixas de correspondência As metáforas impróprias, as propriedades Privadas e intimações Por um momento a mais de ocupação daquele território. O que era projeto, urbano, Vagaroso e planificado nos melhores planos Submerge nas lágrimas das janelas Que lavam os peitoris E ocultam as faces e sentidos Do que se chamou de “o encantamento que se faz amor”. Parecia um livro, um diário de bordo, [117]
A cartográfica leitura de uma vida Em escala de um para um, O porto do lirismo Uma quimera, como pedra fundamental. Tudo era desenho, vigas, Angústias, antecipação, Parte do suposto alicerce que excedia a grossura do muro, Tudo que alui com o tempo, Estrutura, sem cálculo, Engenho do bem que se quis, Tudo que se desmantela em vida. Marcos F. Carvalho. In: Mundo: Antologia poética.
[118]
Visita Os habitantes perderam-se longínquos num parque de águas. No meio da noite a casa corrói-se em insônia: espera. Ausente a menina brinca de esconde-esconde atrás do banquinho. (a máquina de brincar fotografa a infância impregnada nos móveis). A casa sozinha no meio da noite corrói-se em insônia: espera. Maria da Paz Ribeiro Dantas. In: Pernambuco, terra da poesia.
[119]
Interpretação das ruínas Houve passos nas pedras Dentro da madrugada Alvoroço de pássaros Tropel de cavalgada. Houve um cordão de estrelas Nas janelas das casas As luzes das candeias Leve fremir de asas. Houve salas e quartos Cozinhas e latrinas Houve átrios, cisternas Oficinas, tabernas Pátios, fontes, piscinas. Houve cítaras e harpas Beijos, dança Fogueiras. Houve medo, esperança Flores, ritos, festins Houve guerras e trégua Tempo de sol ou névoa Na relva Dos jardins. Houve mantos e túnicas Seda, algodão e linho. Houve sombras mirando [120]
As sombras do caminho. Entre verões acesos E ardentes temporais Houve núpcias secretas Rosas de lume abertas No leito clandestino Do feno ou dos trigais. Alguém pintou murais Alguém fez os mosaicos Alguém na olaria Riscou flores e falos Sobre a face Dos pratos. Alguém armou os jogos De água Nos repuxos. Alguém se sentiu deus. Alguém se julgou bruxo. Alguém bebendo vinho. Outros comendo pão. Alguns dizendo sim. Outros dizendo não. Longe uma voz chamando. Outra que respondia. Houve noite. Houve dia. [121]
Infâncias, solidões Amores e traições Chegadas e partidas: existências cumpridas. Antes de haver ruínas Houve os jogos da vida. Maria de Lourdes Hortas. In: Pernambuco, terra da poesia.
[122]
casarĂŁo no corredor o vai vem das saias onde eu me agarrei no quintal o fantasma da mangueira no canto da sala a cadeira da minha avĂł onde um dia a dor me esperarĂĄ andar pela casa sem os rastros da demora apenas com os olhos violentar o horizonte aprender diariamente a dor da paciĂŞncia a casa nunca esteve em ordem eu abro [123]
a janela deixo entrar o pó e agarro-me à culpa de manter todas as torneiras abertas sem pressa alguma janeiro me esperava troquei as estrelas vivas do verão no meu quarto a crina branca das montanhas no inverno da varanda por um janeiro próximo que agora eu espero enquanto maio me pronuncia Mariana Botelho. In: O silêncio tange o sino.
[124]
IX Careço de marchar cabeça levantada Olhar altivo pra frente... Mas eu queria olhar à esquerda... Bonita casa colonial Cheinha mesmo de paisagem! “— Olhar altivo pra frente!” O meu tenente Não aprecia as casas coloniais. Porém o meu olhar blefa o tenente. Olhou altivo pra frente E batendo no quepe do soldado da frente Fez esquerda-volver E meigamente espiou a casa colonial. Mário de Andrade. In: Poesias completas, volume 1.
[125]
Casas A casa de Herédia, com grandes sonetos dependurados como panóplias E escadarias de terceiro ato, A casa de Rimbaud, com portas súbitas e enganosos corredores, casa-diligência-navio-aeronavepano, onde só não se perdem os sonâmbulos e os copos de dados, A casa de Apollinaire, cheia de reis de França e valetes e damas dos quatro naipes e onde a gente quebra admiráveis vasos barrocos correndo atrás de pastorinhas do século XVIII, A casa de William Blake, onde é perigoso a gente entrar, porque pode nunca mais sair de lá, A casa de Cecília, que fica sempre noutra parte… E a casa de João-José, que fica no fundo de um poço, e que não é propriamente casa, mas uma sala de espera no fundo do poço. Mário Quintana. In:Melhores poemas. [126]
Casas dos emigrantes São feias as casas dos emigrantes Estilhaços na paisagem verde e granito velho Agora azulejos de banheiras frias telhados tombados À espera da neve estrangeira que não vai chegar Persianas de alumínio varandas onde ninguém se debruça Escadas a fugirem da porta São feias mas eu amo-as com a ternura impotente do só amar Vejo ontem os pobres a pedir em fila de lamúria Humilhante e humilhada ao longo da estrada As crianças de barrigas grandes e cabeças feridas A purulenta húmida miséria de outrora E agora nem talvez tão pouco mudassem Neste mês de Agosto vêm como as aves Mas em estação completa para fazerem o ninho E de ano a ano constroem casas novas gritos De um ter sem alegria ter escorraçado que amarga E casam-se antes do ninho em festa de gritos Buzinas uivos de animais mecânicos Tules brancos nos carros na cabeça espelho rico da noiva [127]
No próprio vinho Cabeça espelho de miséria antiga espelho errante E não quebrado Na corrida para França algumas aves morrem Morrem pelo caminho atordoadas E a paisagem ferida com azulejos telhados alumínios Policrómicos ninhos que não encontram raiz para nascer Agulhas espetadas nas almofadas dos montes Espetadas por mágicos dedos dos que vivem sem pátria. Matilde Rosa Araújo. In: Antologia da poesia portuguesa.
[128]
A casa Sei dos filhos pelo modo como ocupam a casa: uns buscam os recantos, outros existem à janela. A uns satisfaz uma sombra, a outros nem o mundo basta. Uns batem com a porta, outros hesitam como se não houvesse saída. Raras vezes, sou pai. Sou sempre todos os meus filhos, sou a mão indecisa no fecho, sou a noite passada entre relógio e escuro. Em mim ecoa a voz que, à entrada, se anuncia: cheguei! E eu sorrio, de resposta: chegou? Mas se nunca ninguém partiu... E tanto em mim demoraram as esperas que me fui trocando por soalho e me converti em sonholenta janela. Agora, eu mesmo sou a casa, essa infatigável casa a que meus filhos [129]
eternamente regressam. Mia Couto. In: Tradutor de chuvas.
[130]
Âmbar Um tijolo sabe a casa e toda sua mágica linguagem de portas, janelas, outros tijolos e espaços vazios. Sabe a linhagem e o alinhavo de seus mortos, as panteras fosforescentes de seus vivos. Um tijolo sabe a casa mesmo que falem apenas as ruínas e mesmo que se calem, um tijolo sempre sabe. Micheliny Verunschk. In: Poesia Sempre. Revista semestral de poesia.
[131]
A casa dos Átridas Levem-me da casa dos Átridas, levem-me desta varanda De onde vejo rir o mar limitado e cruel. Levem-me desta casa de prazer e de angústia Onde os filhos se levantam contra os pais Onde os irmãos ardem em febre pelas irmãs E os pais suicidam-se por causa das filhas. Levem-me destas salas coloniais, espaçosas e brancas, Onde os espíritos do mal confabulam atrás das cortinas, Senão me despencarei das cortinas, me enforcarei como meu tio Arrastando na minha queda a nostalgia dos poetas. Até quando deverei opor a minha nudez Ao mistério da tua insaciabilidade? Nada tenho para te oferecer, senão os crimes de outrem. Ah! Dinamitem a casa dos Átridas, para que se dissolva A espessura das gerações anteriores. Murilo Mendes. In: Melhores poemas.
[132]
A casa Pedra sobre pedra Construí esta casa: Tijolo, sonho e argila. Custaram-me os alicerces A metade da asa Direita, A outra metade, Serviu de escora Às traves que a sustentaram. A asa esquerda perdeu-se Na argamassa. Esta casa, para fazer, Levou-me anos De solidão e fomes Aplacadas. Uma casa tão clara, Aberta aos ventos, E a cada dia sempre Renovada. Aqui plantei minha vida, Nos esquadros E soleira das portas. [133]
Ancoradouro e barco, Minha casa. Daqui se ouvia o mar E o canto das sereias, Se nostálgico das janelas O olhar se alongava. Mas o perfume do incenso Rolava nos altares, deuses lares, E eu ficava e fui sempre A guardiã da casa. Pássaro do abismo, Mensageiro da desgraça, Meus olhos marinheiros Pressentiram o desastre. Ventos do sul sopraram Sobre a casa. Marés de março Enormes, com suas vagas, Submergiram e arrasaram Da soleira aos telhados. Olho de furacão, Espiral de sargaços, Conheci o sumidouro, A fúria da voragem. Sobrevivente do escarcéu [134]
Hoje, nรกufraga, na casa, Sei que as paredes permanecem Intactas, com suas marcas, E novamente, aos poucos, Com meus dedos quebrados, Vou recompondo lentamente A cumeeira arrasada. Myriam Fraga. In: Femina.
[135]
Dever de casa A porta de minha casa separa vontades e deveres. Estes cumpro fielmente enquanto o pensamento voa demente. À porta de casa, ainda hesito. Guardo as asas e inicio o rito. NoÊlia Ribeiro. In: Atarantada.
[136]
Volta à casa paterna Limpem o espelho. Se quiserem, não mexam na mobília. Mas limpem o espelho: Vai haver a volta à casa paterna. Verdade é que não sei se tudo pode ficar como dantes: se os sapatos ainda me caberão, se as roupas apertadas ficarão, se nos livros as antigas leituras estarão. Mas limpem o espelho. O rio pode muito bem ter desviado o seu curso, e não encontrarei mais o local dos banhos à tardinha. As pedras das ruas possivelmente não terão mais as marcas dos meus pés. E nenhum indivíduo me indicará os caminhos conhecidos. As árvores mesmo, se não são outras, mostrarão velhos troncos irreconhecíveis Perguntarei inutilmente pelos companheiros: Antônio? Frederico? Baltazar? Oh! vozes que não me respondem! Amigos que jamais verei!
[137]
Decerto terei pelo menos as vozes dos pais ressoando de leve pelas paredes. Por isso, limpem o espelho, porque, apesar de todos os disfarces, a imagem da criança que se foi há muito tempo e hoje voltou se refletirá nítida e forte com a pureza e o encanto dos seus primeiros sorrisos. Odorico Tavares. In: Meus poemas aos meus pintores.
[138]
O deserto é minha casa o deserto é minha casa com os olhos consumo o labirinto tenho ventos e areias arrumadas em demasia tenho luas em mim um céu negro sem poesia negro e sem poesia. passa o pássaro ―que seja uma andorinha invoco o seu alvoroço libertino a fluidez do seu canto a humidade morosa no seu bico o pássaro incessante desmanchando o meu deserto em fuga errante
[139]
no seu rumo todas as margens todos os murmĂşrios do mar. Ondjaki. In: Dentro de mim faz sul.
[140]
Evolução Ali, no mesmo lugar, Onde era a palhota só de caniço, A cinzenta casa de madeira e zinco Mostra à vizinhança O triunfo da família da mulata velha. Já há moleques no quintal Por conta da mulata senhora... E o terreno, imenso, cheio de capim, Que vestia a palhota só de caniço, Foi desflorado e emprenhado... E, hoje, é a machamba de dona mulata Que já tem casa de madeira e zinco, Moleques por sua conta... E comprou, no bazar do monhé Ibrahimo, Capulanas arco-íris para si, E vestidos e missangas para a mulatinha Que senhô Alfredo lhe filhou. Acabaram-se os batuques! (Fora, molecada! Aqui no quintal, não há gente sem vergonha!) Lá dentro... à luz magra do petróleo, Na sala grande, Com artistas de cinema nas paredes, A grafonola de senhô Alfredo arrasta modinhas brasileiras... [141]
— Mênina Josefa! Não suba no cajueiro! Tenha juízo! Papámolungo vai zangar, E seu noivo, aquele caixeirinho impaludado, Patrício de papá, Quer a mulatinha senhora Para ir casar na igreja da Missão Com bênção do senhô padre! A tarde vai caindo... O sol põe manchas de sangue no horizonte de capim... O preto velho, com cicatrizes nas costas negras, Vai buscar água nas latas velhas... Lá longe, a molecada ensaia um batuque para a noite toda. (Raio de vício! Negro selvagem, mesmo! Grita a mulata velha da casa de madeira e zinco) A fogueira da capinada vai juntar o clarão vermelho Ao ensanguentado do sol poente... A mulatinha está encostada na varanda Da casa da mulata-mãe e de senhô Alfredo... São horas! O caixeiro da cantina vai fechar as portas E vem logo dizer palavras doces na curva do seu ouvido, [142]
E cheirar o perfume barato do seu pescoço moreno... E a mulatinha pensa nele... E pensará, toda a noite, No negro forte e lustroso Que ensina meninos na escola da Missão. Um dia o caixeiro impaludado, Virá... Virá, como sempre, na tabela horária. E não encontrará mais a mulatinha das carnes quentes... E lá no mato onde só há capim, E palhotas só de caniço, O negro forte e a mulatinha Dançarão o batuque, Cantarão o amor primitivo dos antepassados, E hão-de rir da mulata-mãe, Da prosápia de senhô Alfredo, Do modernismo da casa de madeira e zinco, E do amor lacrimoso do caixeiro da cantina… Orlando Mendes. In: Antologias de poesia da Casa de Estudantes do Império.
[143]
casa de tiradentes A InconfidĂŞncia No Brasil do ouro A histĂłria morta Sem sentido Vazia como a casa imensa Maravilhas coloniais nos tetos A igreja abandonada E o sol sobre muros de laranja Na paz do capim Oswald de Andrade. In: Poesias reunidas.
[144]
Amigo 1. Amigo, toma para ti o que quiseres, passeia o teu olhar pelos meus recantos, e se assim o desejas, dou-te a alma inteira, com suas brancas avenidas e canções. 2. Amigo — faz com que na tarde se desvaneça este inútil e velho desejo de vencer. Bebe do meu cântaro se tens sede. Amigo — faz com que na tarde se desvaneça este desejo de que todas as roseiras me pertençam. Amigo, se tens fome come do meu pão. 3. Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto que sem olhares verás na minha casa vazia: tudo isto que sobe pelo muros direitos — como o meu coração — sempre buscando altura. Sorris-te — amigo. Que importa! Ninguém sabe entregar nas mãos o que se esconde dentro, [145]
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares, e toda eu ta dou… Menos aquela lembrança… … Que na minha herdade vazia aquele amor perdido é uma rosa branca que se abre em silêncio… Pablo Neruda. In: Crepusculário.
[146]
Tragédia urbana A maquete fora elogiadíssima na Bienal de Veneza, — Meu objetivo é retratar a suspensão do tempo, o fim da história, como se usa dizer. Por isso, serão utilizados materiais reciclados, comprados em demolições, ou fabricados por artesãos especializados em imitações: na fachada haverá frisos compostos de entulhos de velhos Ramos de Azevedo; os balanços serão de casas neocoloniais no lobby serão erguidas paredes de adobe; haverá ferrarias da Sorocabana Railway; as portas, janelas e maçanetas virão de cidades históricas de Minas. Haverá, mas escondido, um pedaço de Niemeyer, um pequeno enigma para meus pares. Não, nada aqui será anacrônico, pois o presente e o passado estão os dois no futuro, não é assim que disse aquele poeta inglês? Pound, não é? seja quem for, é o futuro sendo extraído das ruínas do tempo.
tanto que resolveram construí-la — marco aistórico —, após um grande estudo sociológico, na zona cerealista da cidade.
[147]
Ninguém notou que era um marco, até que um pivete resolveu pichar o nome da namorada numa das torres. Quem hoje passa por lá ainda lê o nome pela metade e ainda vê o corpo caindo. Paulo Ferraz. In: Evidências pedestres.
[148]
Não sei porquê Não sei porquê, Sabê-lo, era saber o meu caminho, Sabê-lo, era deixar de ser ceguinho! O meu olhar, se sonha, pára e vê, Não sei porquê, Uma casa de alvíssima fachada, Prontinha mas cerrada, Esperando não sei quê Debalde o meu olhar, Batendo à porta, Se faz mais pequenino para entrar Naquela casa morta. Naquela casa morta, não Naquela casa à espera Dum peregrino, alguém Que já demora Naquela casa à espera Dum outro não sei quem, Por quem a casa chora Oh! moradia hermética dum Outro! Oh! casa dos telhados sonhadores Fitando amargurada a estrada nua Deixa-me encher o teu jardim de flores! Não fiques tola e triste, assim na lua, À espera desse alguém Que nunca vem! Oh! casa do portão sempre cerrado, Se não me deixas ser eu o Desejado, [149]
Que o tempo arrebatou e já não vem, Recolhe o meu olhar à tua esperança, Que eu prometo ficar muito calado À espera desse alguém Reinaldo Ferreira. In: Poemas.
[150]
A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos A casa mexia-se sozinha ao redor das mãos. Era fria, de malas vazias a remendar a base e dissemos pedra sobre pedra sobre pedra. morreram: os meus amigos vinham jantar com a terra. E não havia nada para lhes dar a não ser a máquina de erguer janelas rente aos ombros. Aquecia-se água, descia junto à pele o lume: apertando os ossos, imaginando o respirar mais fino. As colheres eram pequenas fantasias do sono, animais que abriam muito os olhos junto à fome. Os antigos comunicavam sentimentos — o método da penumbra que escapara à melancolia aberta por fora. Mas por fora já não havia nada: e nós amamos a casa como um osso no interior da pedra. Rui Costa. In: O pequeno almoço de Carla Bruni.
[151]
A casa da areia Face ao mar, orgulhosa no topo do areal, só madeira e zinco sobre pilares de cimento ao sabor dos quatro ventos. O quintal das traseiras sempre uma festa, frango no churrasco, alegria nos copos. Depois a Isilda casaria com o Freitas, a Ermelinda ia ficar para tia e o Horácio dava em droga. O Neca, o Tino e o Mando foram à vida, cada qual para seu lado. Na velha casa virada à baía, além do ranger da madeira batida pelo vento e a areia apenas ficaram a avó Carminda e a velha cadela “Deixa-Falar”. Rui Knopfli. In: O monhé das cobras.
[152]
Oh as casas as casas as casas Oh as casas as casas as casas as casas nascem vivem e morrem Enquanto vivas distinguem-se umas das outras distinguem-se designadamente pelo cheiro variam até de sala pra sala As casas que eu fazia em pequeno onde estarei eu hoje em pequeno? Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco? Terei eu casa onde reter tudo isto ou serei sempre somente esta instabilidade? As casas essas parecem estáveis mas são tão frágeis as pobres casas Oh as casas as casas as casas mudas testemunhas da vida elas morrem não só ao ser demolidas Elas morrem com a morte das pessoas As casas de fora olham-nos pelas janelas Não sabem nada de casas os construtores os senhorios os procuradores Os ricos vivem nos seus palácios mas a casa dos pobres é todo o mundo os pobres sim têm o conhecimento das casas os pobres esses conhecem tudo Eu amei as casas os recantos das casas Visitei casas apalpei casas Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade [153]
Sem casas não haveria ruas as ruas onde passamos pelos outros mas passamos principalmente por nós Na casa nasci e hei-de morrer na casa sofri convivi amei na casa atravessei as estações Respirei — ó vida simples problema de respiração Oh as casas as casas as casas Ruy Belo. In: Todos os poemas.
[154]
Notícia da casa A casa não se descreve: sente-se. Aqui permanecem todos: dos que não vieram àqueles que já partiram. Na casa jamais se apaga a luz com que me fitaste (porém em ti, não: em ti era só vidro, quebrou-se). A casa se arquiteta a si mesma, cada vez mais habitada, enquanto sangro paredes e espaços. E cresce. Até não deixar sinal no meu peito imóvel. Ruy Espinheira Filho. In: Julgado do vento.
[155]
Apipucos, casa Talvez existam olhos que ainda guardam os passeios matinais entre perfumes de corais e imponentes bastões-do-imperador Do primeiro andar o ouro refletido nas vidraças pelos cachos do flamboyant E quem foi girassol de quase um século não viu seu floral lembrando grandes desertos Assim, foi a floricultura de Dolores Salgado. Sérgio Bernardo. In: Pernambuco, terra da poesia.
[156]
O jardim e a casa Não se perdeu nenhuma coisa em mim. Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim, Continuam as vozes diferentes Que intactas no meu ser estão suspensas. Trago o terror e trago a claridade, E através de todas as presenças Caminho para a única unidade. Sophia de Mello Breyner Andresen. In: Obra poética.
[157]
East Coker (trecho inicial da parte I) Em meu princípio está meu fim. Umas após as outras As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas, Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar Irrompe um campo aberto, uma usina, um atalho. Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas, Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas, Terra agora feita carne, pele e fezes, Ossos de homens e bestas, trigais e folhas. As casas vivem e morrem: há um tempo para construir E um tempo para viver e conceber E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a silente legenda. Em meu princípio está meu fim. Agora a luz declina
[158]
Sobre o campo aberto, abandonando a recôndita vereda Cerrada pelos ramos, sombra na tarde, Ali, onde te encolher junto ao barranco enquanto passa um caminhão, E a recôndita vereda insiste Rumo à aldeia, ao aquecimento elétrico Hipnotizada. Na tépida neblina, a luz abafada É absorvida, irrefratada, pela rocha grisalha. As dálias dormem no silêncio vazio. Aguarda a coruja prematura. T. S. Eliot. In: Obra completa — Volume I — Poesia.
[159]
Balada de Emily Brontë No morro do Vento Uivante o vento passa uivando, uivando... No morro do Vento Uivante há um velho casarão sombrio cheio de salas vazias e corredores vazios... A noite toda uma porta geme agoniadamente. Pelas vidraças partidas silvam longos assovios, no ar de abandono e de medo passam bruscos arrepios... No morro do Vento Uivante o vento passa... Emily Brontë não pares a história... Conta! conta, conta, conta, conta! Dá-me outra vez aquele medo que encheu minha infância morta de sonhos e de arrepios... No Morro do Vento Uivante... Depois que os anos passaram como ficaram meus dias [160]
vazios... vazios... Tasso da Silveira. In: Antologia da moderna poesia brasileira.
[161]
Quinta da paz Ó casa de meus pais! Velhinho pardieiro, Na encosta de um outeiro, Onde, ao sol encoberto da lembrança, Divaga o meu fantasma de criança: O anjo que sobrevive à criatura E lhe vela, depois da morte, a sepultura; E em seu nome aparece a Deus, mais inocente Do que fora, Antes de ter vivido a vida pecadora E penitente... Antiga casa já trilhada Do andar do tempo... ó salas que o luar, Através da janela, inunda... Que tristeza Remota e congelada... Silêncio! Ei-la baixando, a murmurar. Aos meus olhos que são cisternas de água acesa. Numa hóstia de luz, assim comungo a morte; A Deusa escura que se veste Em branco fulgor celeste. Quando sopra, à noitinha, o vento norte. E a luz do luar, enchendo a antiga sala De palidez — sorriso que ficou Gelado numa boca de caveira —, Dá novo colorido e quase vida e fala A velhinhos retratos de família, Onde pousou A asa do tempo aberta em sombra e poeira... [162]
Alguns traduzem ainda velhas dores Despertas, em vigília... Tristezas, aflições, enlevos da ternura. Orgulhos, risos de alma, ingenuidades... Vede Que trágica ironia! A vida eterna a cores! Vida póstuma a óleo na moldura Que enegrece, em quadrado, o branco da parede. Que pobrezinha a nossa eternidade, Neste mundo imperfeito. Em que tudo se extingue e se renova! Triste imagem de tinta que se apaga. No escuro e na humidade... E é como nódoa vaga. Como a cinza dum corpo, já desfeito. No fundo duma cova... E entra o frio luar, pela janela; E na vidraça, Cintilando, Brinca, doida de luz, remota estrela Que fendeu, de alto a baixo, a noite, procurando Meus olhos, que lhe deram nova graça. Lá fora, a sombra negra duma cruz Ergue-se, além dos céus. Cada mundo há-de ter o seu Calvário. Deus Vê correr, no Infinito, o sangue de Jesus... Calvários, cruzes, lágrimas sem conta! Tragédias, sobre as quais o sol desponta, Como um sangrento coração! [163]
A mesma voz desoladora O mesmo Deus implora, Na mesma sempiterna solidão! Percorro as grandes salas... Que alegria Velhinha, de outro tempo, aqui repousa... Sinto-a nesta penumbra interior Que, nos cantos, se esconde, ao ver a luz do dia, E minha face beija de amorosa! E em mágoas transcendentes, Se esvai a minha dor... Ermo e vago. Nestas salas fantásticas, divago... E, enquanto a minha imagem se dilui. Outras tomam, ao pé de mim, vulto perfeito. Meu ser humano a Deus, em sonhos, restitui A dor, a carne, o sangue, de que é feito. Espectros nublosos. Remotos ascendentes, Emergem na penumbra que flutua. Toda embebida em lua. E rodeiam-me, tristes, misteriosos. Neles me perco e me difundo... Sou eu, sou eu, errando, em outro mundo, Longe da minha idade... E tudo, para mim, é trágica saudade. O dia nasce e morre... Da janela, Vejo fumos subindo, na distância; Bois regressando à corte; Sombras do fim, antevisões da morte, [164]
O pôr do sol, primeira estrela. Sepulcro de oiro — olhai! — da minha infância. Paira, em tudo, um silêncio já nocturno, Que não resulta apenas de canções. Dos ruídos extintos, mas também Das cores que falecem, num soturno, Escuro tom. Há vozes de orações E lágrimas que saram Doridas mágoas que do céu nos vêm. Escorrem oiro vivo as pedras dos caminhos... Passam, por eles, os ermos pobrezinhos; Nem reparam... E, na minha janela debruçado. Vejo a noite abraçar, beijar as cousas. E, através do seu manto esfarrapado, Desvenda-nos, sorrindo, as formas luminosas. Oh, a nudez da noite! Que esplendor! Ai, quem te surpreendera a alma, a essência pura, Também surpreenderia, Na sua intimidade, a dor e o amor; O abismo de esperança e de alegria A que desce, depois da morte, a criatura, E deixo o antigo quarto solitário... E visito a lareira, escuro santuário, Onde há cinzas de avós, penates, velhos lares... Divindades tutelares. Fantasmas em vigília... A base, já no além, eterna, da família... [165]
O eterno fundamento espiritual; O velho tronco da árvore espectral. Enraizado na morte e sempre em flor. Família, alma da pátria consagrada Por Deus e pelo amor. A casa é um templo e a terra, em derredor, A sombra dos seus muros vinculada. E, na lareira, Eu ponho-me a evocar... E vejo arder quimérica fogueira... O fumo turva o ar. Velhinhas a fiar na roca, junto ao lume, Faúlas mortas, voando... Mochos piando, o vento e o seu queixume, Réstea de lua as telhas penetrando... Ouço contos de bruxedos; De alminhas a sofrer na solidão: O imaginar do povo, a luz do medo, Que, em mim, se fez nocturna inspiração... E vejo o antigo criado, o padre António Que falava das bruxas, do demónio, Dos franceses (terríveis pesadelos!) E connosco brincava. Que alegria! E, ao sol da nossa infância, até sorria A neve dos seus cabelos... E vejo as velhas criadas... Vejo a Inês Contar-me a sua história. Dizia e repetia: era uma vez... Puxava tanto já pela memória! E a Eusébia, a mais remota criatura [166]
De que me lembro... Imagem diluída Na distância, lá onde a minha vida É como noite escura... E vejo a tia Emília, no terreiro. Vinda de longe, nas andilhas, e o criado... Seus olhos de alegria, um ar trigueiro. Seu sofrimento de alma disfarçado! E vejo a Couta, que pedia esmola. Já quase centenária. Curvada sob os anos e a sacola, Passar, ao pôr do sol, na estrada solitária. E a Baroa, de luto. Era a tristeza, Um vulto de luar manchando a escuridão. Ainda hoje escuto Seus gemidos de agouro e de pobreza... De porta em porta, andava, ela que fora Rica e feliz, de boa educação. Trazia um breviário e um guarda-chuva. Nas magras mãos defuntas de viúva, E tinha ainda uns modos de senhora. E a Doida que ficou sozinha, neste mundo, Julgando ver, em todas as crianças, Os filhos que perdeu... E em nós fitando um negro olhar profundo, E numa voz turbada de lembranças Que o tempo emudeceu, Aflita murmurava: meus amores, Meus meninos! Minhas flores! E o Cipriano, o doido que falava, [167]
Além do entendimento... Às vezes, com furor, gesticulava. Cabelo desgrenhado e solto ao vento... E, falando, lá ia, a sós, pelos caminhos, Cheios de sol e de orações de pobrezinhos... Que medo me fazia! Medo... terror secreto, ignoto encanto. Se à nossa porta, ao cair da tarde, ele batia. Andrajoso, em cabelo, olhos de febre e espanto... E o Davim, alto e magro, taciturno, Ampla fronte imaginosa. Tão pálido, a cantar O medo antigo à noite misteriosa, Naquela voz de escuro som soturno Que punha sombras no ar: Já sob a meia noite Meia hora tinha dado. E o Nozes, pelo inverno, à chuva e ao frio, Com a alma abstracta e o hábito encharcado E a longa cabeleira gotejante. O seu húmido aspecto recordava O génio antigo e triste de algum rio, Longe da fábula, exilado e errante... Preso a um velho remorso, divagava, Pelos montes, pregando o seu pecado... E aquela que depois de morta aparecia. Ao luar, em ermo outeiro... Entre as moças da minha freguesia, Foi a eterna beleza em vulto passageiro... [168]
No dia em que morreu, Ao nascer da alvorada, anoiteceu. Transtornaram-se as cousas; E avezinhas voando, pesarosas, Nos ramos se escondiam; Os altos píncaros tremiam, As fontes davam ais; Tinham gestos de sombra e medo os pinheirais. Nocturno corredor, O vento em fúria Espalhava, no espaço, a trágica lamúria Da sua dor... E há quem veja também, na sua cova. Certas noites, pousar misteriosa estrela... É a sua formosura de donzela. Sempre nova, Alumiando o corpo em que fulgira. É o som a arder — olhai! — da minha lira, Aquecendo-lhe a eterna e fria cama. A dor sagrada de quem ama, Por milagre de Deus, Se no mundo se apaga, acende-se nos céus... É tudo eterno. A branca rosa murcha, pelo inverno, Renasce, em novas pétalas de luz, Na fronte de Jesus... Tudo é digno de amor e de carinho, Tudo amai! Homens, tende cuidado! Reparai... Talvez seja o senhor aquele pobrezinho... [169]
Quanta cousa divina se despreza! Cegos, vamos andando ao deus dará da sorte. Isso que nos parece inércia, sombra e morte Quem sabe lá se é vida, amor, beleza! E o jumentinho dos meus tempos de criança! Vejo-te ainda, em corpo de lembrança, Teimoso, orelhas longas a abanar... Olhos que tinham dentro a dor, pasmada, a olhar... E a tua voz de soluços que faz rir! E o gesto da tua cauda, aquele gesto heroico De sacudir! Eu vejo-te arrostar, sereno, estoico, As fúrias do meu génio, a crueldade Que é o riso, a flor da idade... Vejo-te ainda a trote, Por estradas, carreiros e caminhos, Sob os golpes ferozes do chicote! Pobre mártir, assim crucificado, Entre nuvens de glória E teorias místicas de anjinhos, Subiste ao reino etéreo e sublimado. E, à luz do sol nascente. Eu vejo-te pastar alegremente, Nos prados da memória. Vives na paz de Deus, vives sereno, ali... E, ao pé de ti, Meu ser primaveril, todo de terra em flor, Fez-se presença trágica de dor... Tornou-se humano e sério; [170]
E sobre ele desceu a noite do mistério. E, desde então, É vago espectro errante, à luz da lua... Uma voz na profunda solidão, Um zéfiro que os ramos estremece, Alma despida e nua Que aos defuntos e aos vivos aparece... A minha infância! Claridades misteriosas. Recordações saudosas, Tomam figura — vede! — na distância... Quem me espreita, mostrando etérea graça. Dentre as sombras das árvores velhinhas? Quem me fala no vento que perpassa? Quem me sorri no alvor das manhãzinhas? É ela, a doce imagem Concebida nas brumas da paisagem... Sonhos que a terra exala no infinito; Os meus sonhos de outrora Que são, na tarde pálida que chora, Diante de mim, fantasmas de granito! És tu, ó minha imagem primitiva! És tu, presença viva De ígneas cores... Meu ser original ressurge e se alumia E se veste de flores. Como a cruz, na manhã da aleluia! Aurora! infância! riso! Visão do Paraíso... Primeira idade! [171]
Minha saudade! Meu coração, em lágrimas, disperso. Na tua angústia, o corpo do Universo Anda a expiar talvez algum pecado; O pecado de ser, O pecado de amar e padecer; O crime imperdoado Da mísera e sublime criatura Que, sendo criadora, excede a Natureza, E tem, nos olhos, uma luz acesa Que te revela, Deus, teu próprio sofrimento, A tua humana e vil caricatura De morte e esquecimento. Ai do meu coração, Inquieto e débil, sob o peso De tremenda expiação! E, na noite profunda, grito e rezo... E febril, delirando, vejo enfim Que a minha prece é a mesma noite negra Que se enternece e alegra, E vejo — horror! — que nada sou em mim! E eu sou! E eu sou, Nesse instante em que vivo e já passou, Não apenas quem sofre, mas a dor, A dor de Deus, Sentindo-se fantasma, lá nos céus! Divina aspiração inatingida, Irrealizado amor. Baldado esforço trágico da vida! Infância, mês de Abril... O anjo que nos vela. [172]
Sob o riso longínquo duma estrela, O túmulo batido do nordeste, Cheio de terra e tudo quanto amamos. Onde escuro e sonâmbulo cipreste Faz desenhos de sombra, com os ramos... Ó minha infância. Que lembras, na fantástica distância, Uma alegria, além tempo, desmaiada. De repente, ficaste fulminada Por um estranho medo. Aparição divina, Que, num pálido gesto de segredo, A murmurar, De penumbras acesas se ilumina, Em mim, para eu cantar... Vejo o passado reviver, Porque em meu coração Tudo é ressurreição, Amanhecer... E vejo aquelas almas esperando. Doidas de luz, seu próprio nascimento... Nas nuvens já descubro as fontes marulhando E a brisa, para mim, é já tumulto e vento. Saio do velho lar escuro de abandono. Cá fora, o céu azul dá nova graça Às árvores despidas pelo outono, Ao passarinho, flor etérea que esvoaça... A visão ascendeu aos olhos exteriores; Incide sobre aspectos da paisagem; Deixou a transcendente e vaga imagem [173]
Pela forma gravada a sol, impressa a cores. E viva claridade Que, de alto, as cousas tristes alumia, Dissipa a névoa de alma que envolvia Meu ser, quase fantasma de saudade. E vejo a antiga fonte: os dois golfinhos E o nicho donde outrora Um santo contemplava os passarinhos Voando, à flor da aurora. E, nas frestas antigas da parede, A harmoniosa e límpida frescura Que nos desperta a sede. Pousava em alegrias de verdura... A velha fonte, A luz do Sol, cantava! Agora, que desgosto! É uma nuvem a erguer-se do horizonte, Quando, à noitinha, o frio vento acorda E nos magoa o rosto... Conheço-a; é ela, sim! O silêncio, em que paira, me recorda A sua voz que, dantes, marulhava. Nas sombras do jardim, E onde o luar — tão branco! — se molhava... E a fonte que morreu Lá vem, lá vem, na branda viração... E já se precipita em lágrimas, do céu, O peso que ela traz de escuridão. Vejo a nossa ramada, ao longo do quintal: Claustro de folhas mortas, a cair... Leva-as, no seu regaço, o zéfiro outonal; [174]
Nadam nos charcos de água... Vestem de oiro mortal a dura frágua; Outras, no azul, vão ser estrelas a sorrir... E vejo o monte do pinheiro manso, E, no oriente, a serra... E o Tâmega, lá em baixo, num remanso, É lágrima de Deus sulcando a terra... A qual, por milagroso e ignoto amor, Se fez, em mim, fantasma fugitivo; Triste corpo, humano e vivo, Que é a própria forma irónica da dor, E vejo o alto do Ladário, Ao sol de julho ardente... E o vale arborizado, o velho campanário; E, em volta dele — olhai! —, que multidão de gente! De linho fresco, alvejam as barracas, Cheias de pão de ló, rosquilhos e cavacas. Canecas a escorrer, de mão em mão, Guardam ainda, em líquido cheiroso, E rubro, a crepitar, todo espumoso, A alegria, o barulho, a bulha, a animação... Vede o Manel Enfeitando o chapéu com ramos de papel. Fincado no cacete... Vede a Maria a arder em vivas cores; Lenço amarelo, saia azul e, no corpete. Riem vermelhas flores... E, no meio do adro, Alteando o tom ruidoso deste quadro, [175]
Picada do calor, da mosca perseguida, A banda toca aos quatro ventos... E no cobre dos brutos instrumentos A luz do sol faísca, enraivecida! E depois, no Ladário, como é lindo O fogo em lágrimas, no ar! Lágrimas infernais gritando e refulgindo, Pela face da noite a deslizar... Agora mesmo, agora. Zunindo, um facho de oiro ascende, vai tão alto! E rebenta, a estoirar, numa explosão de estrelas Verdes, azuis, vermelhas e amarelas! Trespassa a noite repentina aurora. Luminoso sobressalto! É um drama feito em luz No cenário, pintado a sombra, do Infinito. Em negra cruz De dor, O fogo, antigo deus, morre num grito. Sangrando cor! Vejo a carvalha nova da Aveleda, O carreirinho que por ela passa, Riscando a branco o escuro matagal... E, em baixo, o alpendre, o eirado, a meda, O sol, um passarinho que esvoaça, Uma amplidão aberta sobre o val’... Vejo os grandes sobreiros, com ramagem De bronze, imóveis quase ao doido vento [176]
Que enche de vozes mortas a paisagem. E entre eles, num secreto isolamento. Junto a uma cruz de pedra, avisto a Capelinha, Quando, já indecisos da noitinha. Ermos vultos seguiam pela estrada, A sacola nas mãos e aos ombros uma enxada... E vejo o Crasto, Val’ d’lnfante, Outeiro, A casa das alminhas, a penar... Labaredas de tinta... Que braseiro! Que aflitas mãos erguidas A rezar! Silhuetas abraçadas e lambidas Pelas chamas do fogo expiador. Outras almas, extáticas, sorriam... À custa de orações, rezadas com fervor, Já não sofriam... Revelações escuras do Infinito, Ingénuos cultos primitivos do meu povo! Ah, como tu, eu creio e me comovo! Eu creio, sim, nas almas; acredito Na dor sobrevivendo e no pecado, Depois da vida, perdoado Em virtude das nossas orações, Quando, em nós, a esperança inabalável reza, Muito embora gelada de tristeza, Crucificada em negras aflições! Vejo Paredes e o seu grupo de pinheiros; Luzes, Boco, Argaviça e Rocião, outeiros, [177]
Tão sós, que o povo teme. Se, às horas do silêncio, o vento geme... Ali, nos aparece, à luz do luar, O que somos no além: o nosso imaginar, Que o frio medo Condensa e esculpe em formas de segredo... Grandes vultos de sombra misteriosos. Fantásticos, estranhos animais. Ermas luzes, nas trevas, flutuantes. Lobisomens trotando ao longo dos pinhais E dos caminhos temerosos... Bruxas, dançando e rindo, em volta do diabo, Com asas de morcego e pés de cabra e rabo E, na fronte cornuda, uns olhos lampejantes... Fantasmas de homens a cavar a terra: O drama do trabalho já espectral E sobrenatural... Antevisões do Fim, sinais de peste e guerra... Vozes de almas falando, na penumbra... — Toda essa vida ignota que se alumbra Na noite que Deus fez e Deus temeu... E logo se evapora, Quando as Trindades da manhã, radiando aurora. Espalham nódoas brancas pelo céu... Vejo a casa de Meios, Perto do rio, deslizando. Murmurando Fluidas cores: O claro verde tenro marginal, [178]
O azul, o verde-escuro do pinhal, O verde dos centeios, O oiro do sol em chamas de esplendores. E ao vê-la, na distância. Evoco seu passado de alegria, Quase desfeito em nuvens de incerteza E de melancolia... Tempo da minha infância, Perdido Paraíso! Criaturas que sois somente escuridão, À flor da qual emerge uma atitude acesa, Um gesto ainda vivo, uma palavra, um riso... Carmo, Jesus, Piedade, Conceição! À luz de antigas alvoradas, Tão doiradas nas brumas da lembrança, Vejo o meu vulto de criança... E vejo-vos bailar, alegres, descuidadas. Nem de leve suspeitando Que, na fria terra dura, A morte, ébria de sombra, a rir, cantando, À pressa, lhes cavava a sepultura! Que brinquedos! Canções, danças de roda... E a minh’alma, cercada de segredos, Já se entregava toda A um íntimo e confuso sobressalto... Inquieta, contemplava as cousas de mais alto, A uma luz de milagre e de mistério... E punha-se a cismar, alheada, absorta, Pressentindo o reino etéreo. [179]
Como se para os outros fosse morta! E vejo Tardinhade, a casa abandonada, No meio de pinhais... De lendas povoada E sombras outonais... Nocturnos pássaros de agouro, piando; Corujas de pupilas amarelas, Olhar profundo, Tocando com as asas nas janelas... Espectros, pelas salas, divagando; As almas que a saudade traz ao mundo... Figurações de corpos falecidos, Em poeira já perdidos, Que, em matéria de sombra, ressuscitam, Enquanto, nas ramagens do cipreste, Batidas do nordeste, Os mochos fúnebres crocitam... Existe ali o descendente, O culpado que doida herança fulminou; A vergôntea em delírio e trágica e demente Que ficou... Quase louca também, A pobre mãe, Entre as penumbras roxas da noitinha. Pelos montes, passeia, a rir, sozinha. Um riso desvairado e abrasador, Que nos permite ver A própria dor, alegre de ser dor, A exaltação da dor, sentindo-se viver! Anda sempre de luto. A sua mágoa, [180]
Eis o vestido eterno que ela usa; E tem, na face lívida e confusa, Negros olhos de febre, cheios de água... E, dentro deles, brilha Um círio alumiando E revelando A morte duma filha... Recordo-a... Estou a vê-la, Num dia de Natal... Olhos azuis — tão branca! —, os lábios a sorrir... Era a graça, o viçoso encanto — era a donzela, Bondade em flor, alma cristã, lírio do val’, Santa Isabel dos pobres de pedir... De repente, inclinou a fronte emurchecida, Feita de neve pura Que momento. Aquele era que seus pais, doidos de sofrimento, Baixaram, ainda em vida, À sepultura! Ó dramática aldeia de abandono! Famílias que se extinguem! Velhas casas. Onde o vento se queixa e pairam sombras de asas, Pelo outono... E, ao lado, o antigo parque... folhas de erva. Canteiros e passeios invadindo... A fonte, seco mármore, não chora. E, aqui e além, abrindo. Erma, saudosa flor que ainda conserva [181]
O aroma do passado, a cor de outrora. Pardieiros, ruínas num deserto... Mortas lamúrias de almas... Soledade... E um sonho antigo a reviver... Sonho encoberto. Fantasma de saudade... Anjo de bruma a voar. Com as asas toldando o azul dos céus... Anjo que vem do mar. Sonho encoberto... Deus... Ó sítios de alma, alumiados do meu canto! Sítios que eu amo tanto! Sois tão vivos da minha comoção. Que chego a imaginar que a vossa terra Já o meu corpo encerra E que já sou fantasma, a errar, na solidão... Ó berço do meu ser! Ó montes solitários, Legendários... Altares, para mim, com lágrimas a arder E a imagem do Senhor, no dia da Paixão. Ó lembranças! Memórias! Ó sombras ilusórias! Vultos de nevoeiro Que tão saudosamente povoais O vale, o ermo outeiro, Donde sobe, ao luar, a reza dos pinhais... Entendo-vos a fala Escura, que se exala. No céu, onde vivi, quando era pequenino... [182]
Um eco do outro mundo a percutir-se, além; Um canto de silêncio, já divino. Que só ouve quem ama, o poeta e mais ninguém! É ele que me inspira. Sentindo-o, logo vibra a minha lira Aos ventos do mistério. A infinita canção percorre o espaço etéreo! Deus, comovido, torna-se mais triste; O seu perfil, cheio de nuvens, relampeja, A sua voz, profunda e côncava, troveja E é feita a sua cruz de tudo quanto existe... A memória é também castigo. Recordar É ver a morte escura e o que ela nos roubou. E ouvir, queimado em sede, murmurar A fonte que secou... Teixeira de Pascoaes. In: Obras completas.
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Deus vos salve a casa santa um bom menino perdeu-se um dia entre a cozinha e o corredor o pai deu ordem a toda família que o procurasse e ninguém achou a mãe deu ordem a toda polícia que o perseguisse e ninguém achou ô deus vos salve esta casa santa onde a gente janta com nossos pais ô deus vos salve essa mesa farta feijão verdura ternura e paz no apartamento vizinho ao meu que fica em frente ao elevador mora uma gente que não se entende que não entende o que se passou maria amélia, filha da casa, passou da idade e não se casou ô deus vos salve esta casa santa um trem de ferro sobre o colchão a porta aberta na escuridão a luz mortiça ilumina a mesa e a brasa acesa queima o porão os pais conversam na sala e a moça olha em silêncio pro seu irmão ô deus vos salve esta casa santa Torquato Neto. In: Melhores poemas.
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No beiral da casa no beiral da casa faziam ninhos as andorinhas dali partiam rasantes num diz-que-diz-que de bicos a casa parece que levitava de pios e ninhos em atropelo tem dias que achava que o telhado ia levantar voo Vera LĂşcia de Oliveira. In: Minha lĂngua roça o mundo.
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O operário em construção Era ele que erguia casas Onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas Ele subia com as casas Que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia De sua grande missão: Não sabia, por exemplo Que a casa de um homem é um templo Um templo sem religião Como tampouco sabia Que a casa que ele fazia Sendo a sua liberdade Era a sua escravidão. De fato, como podia Um operário em construção Compreender por que um tijolo Valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava Com pá, cimento e esquadria Quanto ao pão, ele o comia... Mas fosse comer tijolo! E assim o operário ia Com suor e com cimento Erguendo uma casa aqui Adiante um apartamento Além uma igreja, à frente [186]
Um quartel e uma prisão: Prisão de que sofreria Não fosse, eventualmente Um operário em construção. Mas ele desconhecia Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa — Garrafa, prato, facão — Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Olhou em torno: gamela Banco, enxerga, caldeirão Vidro, parede, janela Casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão. Ah, homens de pensamento [187]
Não sabereis nunca o quanto Aquele humilde operário Soube naquele momento! Naquela casa vazia Que ele mesmo levantara Um mundo novo nascia De que sequer suspeitava. O operário emocionado Olhou sua própria mão Sua rude mão de operário De operário em construção E olhando bem para ela Teve um segundo a impressão De que não havia no mundo Coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia — Exercer a profissão — O operário adquiriu Uma nova dimensão: A dimensão da poesia.
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E um fato novo se viu Que a todos admirava: O que o operário dizia Outro operário escutava. E foi assim que o operário Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção: Notou que sua marmita Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que seu macacão de zuarte Era o terno do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão. E o operário disse: Não! E o operário fez-se forte Na sua resolução. [189]
Como era de se esperar As bocas da delação Começaram a dizer coisas Aos ouvidos do patrão. Mas o patrão não queria Nenhuma preocupação — “Convençam-no” do contrário — Disse ele sobre o operário E ao dizer isso sorria. Dia seguinte, o operário Ao sair da construção Viu-se súbito cercado Dos homens da delação E sofreu, por destinado Sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido Teve seu braço quebrado Mas quando foi perguntado O operário disse: Não! Em vão sofrera o operário Sua primeira agressão Muitas outras se seguiram Muitas outras seguirão. Porém, por imprescindível Ao edifício em construção Seu trabalho prosseguia E todo o seu sofrimento [190]
Misturava-se ao cimento Da construção que crescia. Sentindo que a violência Não dobraria o operário Um dia tentou o patrão Dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando Ao alto da construção E num momento de tempo Mostrou-lhe toda a região E apontando-a ao operário Fez-lhe esta declaração: — Dar-te-ei todo esse poder E a sua satisfação Porque a mim me foi entregue E dou-o a quem bem quiser. Dou-te tempo de lazer Dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês Será teu se me adorares E, ainda mais, se abandonares O que te faz dizer não. Disse, e fitou o operário Que olhava e que refletia Mas o que via o operário O patrão nunca veria. O operário via as casas E dentro das estruturas [191]
Via coisas, objetos Produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia O lucro do seu patrão E em cada coisa que via Misteriosamente havia A marca de sua mão. E o operário disse: Não! — Loucura! — gritou o patrão Não vês o que te dou eu? — Mentira! — disse o operário Não podes dar-me o que é meu. E um grande silêncio fez-se Dentro do seu coração Um silêncio de martírios Um silêncio de prisão. Um silêncio povoado De pedidos de perdão Um silêncio apavorado Com o medo em solidão. Um silêncio de torturas E gritos de maldição Um silêncio de fraturas A se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz De todos os seus irmãos Os seus irmãos que morreram [192]
Por outros que viverão. Uma esperança sincera Cresceu no seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção. Vinicius de Moraes. In: Novos poemas (II).
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Minha casa na montanha No meio da vida dediquei-me um pouco mais ao estudo da Verdadeira Sabedoria. E ao entardecer construí uma casa ao pé desta montanha. Quando tenho vontade, sempre sozinho, encontro algo belo que só eu sei. Ando até o olho d’água e, sentado entre as ervas, observo as nuvens em movimento. Se por acaso encontro um velho lenhador, ficamos de conversa e rimos, a ponto de nos esquecermos de voltar para casa. Wang Wei. In: Poemas clássicos chineses.
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A casa antiga a tarde, em meus olhos, visita a casa. à frente, do outro lado do que se passa — a rua, os homens — a honestidade da casa em branco contorno, nela o que ainda se move, nela o que ainda se vê erguido, mas a mente da casa é um fino regato e sua cólera nos engana. Ylo Barroso Fraga. In: Tris.
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volta de vulto uma casa só paredes corpo todo pele uma família só de tias cachorro só de pulgas escada de peixe árvore de abelha o porão cai em cima da telha ovo de barata rabo de lagartixa não tem teto nem chão só parede escada que não muda de andar janela que não entra fora porta que aberta separa recheio todo de casca terra oca casco vazio ilha sem oceano Yuri Bataglia Espósito. In: Gregório S. 23.
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