Camundo - o Desenho e a Sombra

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Capítulo primeiro O ACIDENTE NA ESCADA

Quando Camundo resolveu fugir do Asilo dos Desvalidos numa noite fria em que o vento sibilava pelas frestas das janelas, todos acreditaram que daquela vez ficariam livres do menino. Talvez estivessem certos. Camundo preencheu a cama com travesseiros velhos, aguardou todos ferrarem no sono e desceu sorrateiramente a escadaria principal que levava ao saguão. Espreitou o momento exato da arrumadeira abrir a porta e, no instante em que isso aconteceu, deslizou em seu encalço, sem se fazer notar. Foi assim, seguindo a arrumadeira, à distância de um quarteirão inteiro, quando ela estacou na esquina da rua S. com a R., virou-se de chofre e perguntou: ― Aonde pensa que vai? Camundo levou um susto tamanho que não foi capaz de dizer coisa alguma. E mesmo que dissesse, como disfarçar a vergonha de se esconder atrás de um poste de


iluminação? ― Ir para a sua casa...? ― foi o que disse. O diretor do Asilo, ao abrir a porta, mostrou-se intimamente infeliz ao ver os dois de volta. ― Mas que diabos! ― Exclamou, enquanto dava passagem para a arrumadeira. ― Quando os meninos deram pela falta, tinha esperança de que o pirralho fosse mesmo embora! ― Deixe o menino comigo ― pediu a mulher, pendurando a capa no cabideiro. Camundo suspirou. A saguão estreito, que se abria para uma escada colada à parede à esquerda, e uma pequena porta para a cozinha à direita, parecia ainda mais sombrio e fedorento. Gotejava sobre o tapete puído e ali um rato cruzava ligeiro de um buraco a outro, à orla dos rodapés. Camundo sabia. No Asilo dos Desvalidos, um casarão destelhado ao número 11 da Rua do Fogo, toda a sorte de órfãos da gripe e enjeitados da velha Curitiba encontravam refúgio. Não apenas eles, mas todos os que tivessem boa disposição para o trabalho ou, simplesmente, mães que não dispusessem de tempo para cuidar de choros ou travessuras.


Camundo não tinha mãe, mas tinha a arrumadeira, e assim que ela pilhou-se sozinha com ele, ouviu-a dizer com a autoridade de uma mãe muito apreensiva: ― Meu grãozinho, não devia me seguir. Veja. Por enquanto tem de ficar aqui. ― Mas não quero. A arrumadeira suspirou: ―Sei que não. Mas veja bem, ― e então olhou para a parede, onde havia o gasto calendário que indicava o ano de 1922, ―amanhã virei mais cedo. Prometo. Fecharemos as cortinas e impediremos que aquilo aconteça… Agora, ouça, não me siga. Nunca mais. ― É que achei que sua casa fosse melhor que esta – atalhou Camundo, desapontado. ― Aqui tem tantas janelas… E você sabe o problema que tenho com elas. A arrumadeira, que se chamava Mariana, sustentou o olhar do menino por alguns instantes e franziu as sobrancelhas. Camundo tinha o rosto magro e macilento, os olhos bem acastanhados que cintilavam sobre um nariz adunco. ― Um dia elas não serão mais um perigo – prometeu ela.


― As janelas? Mariana sorriu. ― As janelas sempre existirão, meu grãozinho, enquanto houver quem queira olhar por através delas. O que quero dizer é que o seu problema com elas um dia terá um fim, fui clara? Camundo balançou a cabeça. Tinha certeza de que naquele casarão tudo continuaria sendo um problema sem fim. Pelo menos num sobrado feio e arruinado, no meio de um bairro triste e enevoado, propriedade de irmãos solteirões. A mulher nunca aparecia, Camundo tinha certeza disso; e o homem fazia valer seus interesses escravizando os meninos numa velha oficina de sapatos, cujo nome pendia sobre a verga da porta: “SOLA VE LHA NÃO TEM VEZ”. Além disso, Camundo não gostava da ideia de dividir o quarto com tantos meninos. Todos sabiam o problema que ele tinha com as janelas… Você até poderia perguntar por que Camundo se preocupava com inofensivas aberturas de alvenaria. O fato é que Camundo detestava janelas porque, sim eram simplesmente janelas.


Mas para ele eram perigosas como buracos para o inferno. O menino padecia de uma desconhecida alergia que o impossibilitava de sair em manhãs ensolaradas. Decerto se você já viu alguém padecer deste mal, sabe o quanto é ruim. E acredite. Não era só isso. Havia algo mais terrível que a alergia ao sol. Algo que faria qualquer enfermidade tornar-se mixuruca em comparação ao hábito pouco comum que o menino possuía. Camundo desenhava. Desenhos horríveis. Como nossa história diz coisas sobre desenhos, digo logo que os desenhos de Camundo não eram (definitivamente) do tipo que você conhece. Tão diferentes, que não seria exagero ouvir a arrumadeira dizer: ― Se não houver esconderijo para eles, esconda-os comigo. Mas, jamais, jamais, ouviu bem?, deixe que caia em mãos erradas. Bem, se querem mesmo saber, havia mesmo algo de realmente fantástico sobre eles.


Os desenhos “aconteciam”. Não. Não. Não como uma coincidência infeliz. Deixe-me explicar. Os desenhos de Camundo ganhavam vida no curto espaço de tempo que compreendia o traço e o futuro iminente. Assim, como é possível (e até onde pode se entender), tudo o que era desenhado EM-SEGUIDAACONTECIA. Os desenhos de Camundo, devo dizer, possuíam um grau de perigo tamanho, que a boa Mariana não se demorou a perceber isso. E foi assim. Certa noite, antes de dormir, Camundo desenhou uma mariposa. Até aí você, (ou qualquer um) diria: “mas, mariposa? Que mal tem?”. Mas quando o pequeno inseto, que não é só conhecido por ser uma criaturinha alada de corpo delgado e asas escuras (mas porque é sinal de mau agouro), esvoaçou dormitório adentro, exatamente como Camundo havia desenhado um dia antes, Mariana ficou assombrada. E não foi só isso. Quando viu o bichinho pousar sobre a caneca de Trava-língua, igualzinho à figura idealizada por Camundo,


não conseguiu dizer coisa alguma… Uma coisa tão suave, tão sincronizada com os traços de Camundo, que Mariana apenas sorriu, estupefata, como se estivesse diante de um milagre. Milagre que pouco durou é certo, pois o bicho acabou na goela de Trava-língua, e ele teve uma tremenda dor de barriga. Depois disso, as coisas só fizeram piorar: Camundo desenhou pinheiros tombados, explosões que fizeram pelos ares velhas carroças de praça, e, enfim, o tombo do diretor… ― Um horror! ― Diria você. O fato é que, enquanto os desenhos “acontecessem” (e enquanto o menino vivesse sob as sombras do Asilo), a arrumadeira faria sua parte: correria as cortinas sobre os caixilhos quebrados. Faria isso todos os dias, sem hesitar, porque tinha por missão protegê-lo deste inimigo que vinha do leste; e, se isso não bastasse, alojaria o pobrezinho num canto do quarto onde, em vez de janela, porta, ou buraco, houvesse a triste e silenciosa escuridão do dia, em cujas entranhas, Camundo já estava acostumado a viver.

***


Aconteceu que, na manhã seguinte, Camundo despertou assustado. Percebeu rapidamente que estava diante de uma luz ofuscante, que rasgava as janelas abertas e sem cortinas. Embora tivesse pouca intimidade com o inimigo, soube intimamente se tratar do… ― Sol! Ainda que estivesse confuso em se aperceber numa situação como aquela, não deixou de pensar em como aquilo poderia ter acontecido. Não era dia de lavarem as cortinas, e, mesmo que fosse, sempre existiriam cortinas para serem substituídas. Além do mais, se aquilo fosse mesmo possível, como não poderia ter previsto? Ora, Camundo não havia desenhado a si mesmo metido naquela tenebrosa situação, e temia que aquela ameaça seria sim o seu fim, quando atirou-se no espaço estreito entre duas camas, como um soldado em uma trincheira e passou a rezar. Onde estaria Mariana? Sem ela seria incapaz de evitar que aquele novo acidente acontecesse.


Sim, sim. O último desenho de Camundo. Daquela vez, o desenho trazia o diretor do Asilo, com os braços estirados, içando a perna fina no ar, prestes a despencar pela escada. Algo que poderia acontecer AGORA. Da trincheira improvisada, o menino podia escutar as chinelas do diretor arrastarem pelo assoalho do corredor; e ao fundo, uma voz de mulher, que interpolava fracamente as batidas na porta da rua: ― Seu Lineu! Seu Lineu! ABRA A PORTA! ABRA A PORTA! O menino não havia conseguido identificar a voz que vinha da rua, por isso preferiu concentrar-se nos movimentos do velho. Ele parecia impaciente, agitado e sonolento. Ouviu-o resmungar alguma praga e, então… Uma nuvem negra cobriu o dormitório. Tão repentinamente e providencial, que Camundo logrou-se a pular da trincheira improvisada em direção do corredor. Correu com todas as forças que pôde a ponto de alcançar o velho no exato instante em que ele erguia uma das pernas finas no ar.


Tentou chamá-lo… Gritar algo melhor que “NÃO! PARE ONDE ESTÁ!”, mas a súbita presença fez o velho levar um susto tamanho que ele não teve, mesmo que naquele espaço infinitesimal de alguns segundos, tempo de se equilibrar: virouse de chofre para o menino, ao mesmo tempo que torcia a perna que restava no chão, tentando em vão agarrar o colarinho da camisa de Camundo. Em seguida, perdeu completamente o equilíbrio e afundou o pé esquerdo em uma das tábuas soltas do degrau, despencando como um saco de batatas. BAM! Ao perceber que o pobre homem havia rolado pelos degraus terminando com o baque surdo no chão, Camundo teve a curiosa sensação de que tudo acontecera em míseros segundos de tempo. Tão rápido, e frustrante, que o estrondo emendou-se rapidamente às falsas exclamações de espanto dos meninos, que já estavam lá, à espera do espetáculo. ― M-morreu? – Perguntaram alguns. ― Morreu nada, a barriga ainda mexe! Terrificado, Camundo voltou ao dormitório e enfiou-se de volta na trincheira. Foi como se nunca tivesse


saído dali. Assim que tocou o peito no soalho, a luz do dia inundou novamente os cantos sombrios do aposento. Camundo não pôde calcular o tempo em que a luz finalmente se foi. Quando isso aconteceu, (o que lhe pareceu um momento rápido e insólito de um piscar de olhos), correu na cálida esperança de socorrer o diretor. Tinha o rosto pálido e suado quando surgiu no topo da escada – a mesma escada em que o velho havia despencado -, e então todos viraram-se para ele, como se ali houvesse surgido um selvagem. - FOI ELE! – Gritaram todos. E ao ouvir isso, Camundo achou que estivessem falando com alguém, que não fosse Mariana ou o diretor. – FOI ELE QUEM ARRANCOU A TÁBUA DO DEGRAU! Pela porta da rua, Camundo percebeu o diretor ser levado para o carro da Assistência Pública, que estava estacionado no pátio. Além dos meninos, dois ou três homens surgiram ali no tempo em que estivera preso na armadilha luminosa. Ora, quem mais poderiam ser? Um, em especial, chamou a atenção do menino. Era corpulento, altivo, com uma marca roxa de nascença na fronte,


em forma de foice. ― Ei, você! – gritou ele. Ao correr os olhos (que até então perdiam-se no pátio) deu com o sujeito de casaca pisando firme em sua direção. Camundo fitou os sapatos enlameados do sujeito, e não foi capaz de dizer coisa alguma (como aconteceria à você numa situação como esta), e só enfim se moveu quando, num estrépito, o sujeito pegou-lhe no braço e o sacudiu. Ora, era natural que o menino não reagisse, mantendo-se inerte como um boneco de pano. ― Escute aqui, piá ― esbravejou o brutamontes, enquanto metia a mão na casaca, ― saiba que não sou menos esperto que você. Veja isto, e diga: É SEU? Camundo, que àquela altura sentia-se muito infeliz, lançou o olhos miúdos para a mão do sujeito e para o que ele tirava do bolso. Um pedaço de papel. Seu estômago dobrou duas vezes. ― O desenho! ― Gritou. E então percebeu o coldre de um revólver guardado no colete do sujeito. O menino desconfiou que o homem fosse um policial.


― É seu então? ― Indagou o brutamontes. ― Sim. Mas como pode estar aí? ― Veja bem, se é seu, só me resta dizer que foi culpado pela ocorrência – replicou o policial, dissimulando a impaciência. E quase que sussurrando para o menino, conjecturou: ― logo vi se tratar de um delinquente. ― Não. Espere! É um engano! ― Protestou Camundo. O salão continuava apinhado de meninos que davam salvas e pulavam como macacos. E ainda mais agitados ficaram ao ver o menino ser arrastado para o gabinete do diretor.


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