PSICOLOGIA AMBIENTAL:
RECORTES DA VIDA URBANA E DIREITO À CIDADE
ÍNDICE 1
O MEIO URBANO
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OPORTUNIDADES X PROBLEMAS URBANOS
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Multiplicação da diversidade e contatos sociais em contrapatida com a concentração em si e a indiferença para com o outro
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Sociedade acelerada
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Estressores ambientais
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Anomalias urbanas
11 Comportamentos adaptativos e teorias sobre o meio urbano
13 PSICOLOGIA AMBIENTAL 14
Privacidade, Territorialidade e Espaço pessoal
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Densidade física e social
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Apropriação
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ANÁLISE DA PSICOLOGIA AMBIENTAL NO MEIO URBANO
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Diferenças de interação entre as pessoas considerando o “status”
23 Ocupações urbanas por direito à cidade 25 Bem estar e sociedade 25 Espaço pessoal e territorialidade no meio urbano
27 Pandemia e quarentena: mudanças nas relações urbanas
29 CONCLUSÕES 32 Referências
O MEIO URBANO A cidade ocidental, tal como a conhecemos hoje, tem suas origens, como destaca Henri Lefebvre, em seu livro Direito à Cidade, na Revolução Industrial do século XIX, momento no qual houve uma alteração significativa dos modos de viver, trabalhar, se locomover e habitar. As pequenas cidades camponesas foram rapidamente substituídas por grandes conglomerados de cidades industriais periféricas ao núcleo original ou então substituindo-o, passando assim por uma transição de uma sociedade capitalista comercial e artesanal, para uma sociedade capitalista concorrencial, baseada na produção industrial em larga escala. (Lefebvre, 1968) Como destaca Lefebvre, a industrialização e a urbanização consistem em um processo dialético, no qual o crescimento acelerado do tecido urbano e de sua produção econômica não necessariamente representa um crescimento
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qualitativo da urbanidade, das possibilidades que a vida social urbana dispõem, gerando uma urbanização desurbanizante, no qual a população citadina não possui acesso pleno à fruição do meio urbano. Ao longo do século XX e início do século XXI, essa disparidade quantitativa entre o campo e as cidades se acentuou ainda mais. De acordo com estudo desenvolvido pela ONU (Organização das Nações Unidas), 55% da população mundial vive em áreas urbanas, e até 2050, espera-se que esse número passe dos 70%. Esse número progride à medida que a cidade é vista como um mar de oportunidades profissionais, educacionais e de lazer, atraindo mais e mais pessoas para tais centros urbanos.
POPULAÇÃO MUNDIAL RURAL
URBANA
PORCENTAGEM %
70 45
55 30
2020
2050
Como destaca Frederica Gomes em sua dissertação acerca da Diversidade de grupos, características físico-espaciais e apropriação, sabemos que o espaço urbano é formado através de diversos fatores, políticos, econômicos e sociais. Dentre estes fatores, a migração, muito comum no território Brasileiro, influencia de forma significante o
crescimento e o desenvolvimento das cidade, para as quais muitas pessoas migram em busca oportunidades de emprego e de uma melhor qualidade de vida. Esse aspecto cosmopolita, que brilha aos olhos quando se pensa na vida citadina, e que influencia muitos à migrarem, contrasta com a hostilidade, criminalidade e inúmeros problemas advindos desses aglomerados urbanos. A demais, esse crescimento acelerado dos grandes centros urbanos resulta em um processo de formação das cidades na qual o indivíduo é forçado a se adequar ao meio em que está inserido, habitando locais acessíveis aos seus limites econômicos, muitas vezes distantes de seus locais de trabalho. Essa formação se dá de maneira informal e gradual, derivada da luta e do trabalho individual de cada um dos citadinos, e é essa construção diária que resulta nas divisões espaciais com as quais nos deparamos no meio urbano, seus distritos e seus bairros, assim como em seus sistemas sociais, econômicos e políticos. (Gomes, 2006) Diversos estudos realizados acerca do cotidiano nas cidades nas últimas décadas destacam aspectos provenientes dessa nova realidade, a qual, ao passo que permite uma liberdade nunca antes experimentada e um mar de possibilidades, submete o indivíduo à uma sociedade e à um modo de vida demasiado acelerado e preenchido de estressores ambientais, os quais serão tratados ao longo deste trabalho.
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OPORTUNIDADES X PROBLEMAS URBANOS
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MULTIPLICAÇÃO DA DIVERSIDADE E CONTATOS SOCIAIS EM CONTRAPARTIDA COM A CONCENTRAÇÃO EM SI E A INDIFERENÇA PARA COM O OUTRO
Tendo em vista as condições da sociedade urbana atual, percebe-se uma alteração das relações sociais ali vividas. Ao passo que em cidades pequenas o número de pessoas com quem interagimos é reduzido e normalmente consiste de pessoas conhecidas, nas cidades médias e grandes cruzamos e interagimos com uma quantidade muito grande de indivíduos, poucos deles familiares para nós. As consequências desse anonimato podem ser tanto positivas quanto negativas. Por um lado, ser apenas mais um em mar de anônimos permite aos indivíduos a liberdade de assumirem a personalidade que desejarem, sem a preocupação com os julgamentos alheios. Permite também o encontro com seu semelhante e a formação de grupos sociais baseados em características comuns. Como destaca Moser (1998), ao passo que nas cidades pequenas as relações são de longa duração - normalmente com familiares e amigos de infância - nos grandes centros urbanos, onde o número de interações e a possibilidade de escolha é maior, a tendência é que as relações sejam mais recentes e se dêem
mais por questões de afinidade e semelhanças. Possibilita ainda que os indivíduos possuam diferentes teias relacionais, derivadas dos diversos territórios que ocupa na cidade. Por outro lado, ser apenas mais um em um mar de anônimos condiciona o indivíduo à relações mais rasas e superficiais com os que o cercam. Esse fator dificulta a integração de novos moradores, uma vez que os citadinos se mostram abertos apenas com aqueles que conformam suas redes sociais, tratando os demais de forma fria e distante. Esse “distanciamento intencional” acaba muitas vezes por transformar os grandes conglomerados urbanos em ambientes hostis e pouco receptivos. (MOSER, 1998) Nota-se como consequência também a redução da sensação de responsabilidade coletiva, tanto com o ambiente quanto com os outros indivíduos ao seu redor, fato que será abordado mais a frente, fazendo com que o citadino tenha pouca solicitude no auxílio ao próximo e pouco envolvimento com questões políticas locais. (MOSER, 1998)
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OPORTUNIDADES X PROBLEMAS URBANOS
SOCIEDADE ACELERADA SOCIEDADE DOENTE ? Outro aspecto característico da vida contemporânea nos grandes centros urbanos é a alteração da percepção do tempo e a instauração de uma sociedade com estilo de vida acelerado. Vivemos absortos em um mundo no qual o tempo, o passar das horas e dos dias, é regido pela ânsia da produtividade. Tempo equivale à dinheiro, ao capital, à produção, ao ter e ao acumular. O ócio, o tempo “improdutivo”, equivale a ausência de uma ação intencionada e ao desperdício dos recursos acima citados. Estamos todos correndo uma corrida descompassada contra nós mesmos, com fins que muitas vezes nem sabemos quais são. Agir, produzir, consumir, descartar, recomeçar.
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A rotina nas grandes cidades é pautada pelos deslocamentos casatrabalho, trabalho-casa, em meios de transporte coletivo lotados, ou então em automóveis individuais trancafiados no trânsito. As pausas para as refeições são curtas pois precisa-se voltar à produzir. As noites, após longos dias de trabalho o indivíduo se vê cansado, procurando formas de lazer alienantes. Os momentos de lazer e a convivência com o próximo são esporádicos. Essa aceleração da rotina e as incalculáveis demandas nos colocam em um estado de tensão constante, todos os dias, todas as semanas, todos os meses e todos os anos. Sempre com a sensação de falta de tempo, o tempo passa sem que o indivíduo se dê conta, absorto que está no processo de produzir por produzir. Não apenas no âmbito profissional, mas em todos os demais aspectos da vida cotidiana o indivíduo se vê aprisionado ao movimento constante, a necessidade de eficiência em tudo que faz, sujeito à uma sociedade hiperativa que acelera o ritmo natural da vida (BRITO, 2000). A imersão nas novas tecnologias intensifica tal percepção da aceleração do tempo. Redes sociais que nos soterram com uma quantidade de informações nunca antes vista. Reportagens, notícia, cursos, tudo disponível com o movimento de nosso polegar. Inúmeros estilos de vida que podemos ter, de atividades que podemos fazer, lugares que podemos visitar, performances que devemos
executar. E o tempo passa sem que possamos acompanhar, submersos em um ideal do que devemos ser, fazer e ter. Estafa, ansiedade, estresse, síndrome de burnout se tornaram patologias corriqueiras, sintomas comuns de uma sociedade que não pára para viver o agora. Levantamentos realizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020 demonstram que cerca de 33% da população mundial sofrem de episódios de ansiedade, e que o Brasil representa o país com a maior taxa de ocorrência de transtornos de ansiedade, chegando a 9,3% da população do país. Quanto à depressão, 5,8% da população brasileira encontra-se afetada, representando o quinto país com a maior incidência da doença. Agrega-se ao estilo de vida acelerado das metrópoles brasileiras, diversos outros fatores de risco para o desenvolvimento dessas patologias, tais como a situação econômica do país, a alta taxa de desemprego, a desigualdade social e os altos níveis de pobreza. (BRITO, 2000). Apesar do tempo cronológico permanecer o mesmo, as altas demandas e os incessantes estímulos aos quais estamos sujeitos nas grandes cidades alterou nossa percepção do passar do mesmo. Somam-se à essa rotina incessante diversos aspectos físicos das grandes cidades que configuram estressores ambientais presentes na situação atual do cotidiano da população, os quais serão abordados a seguir.
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OPORTUNIDADES X PROBLEMAS URBANOS
ESTRESSORES AMBIENTAIS Entre as causas de estresse urbano, Moser (1998) aponta 4 fatores ambientais que colaboram para a criação de uma cidade desgastante, classificados pela sua constância e intensidade, são eles: o barulho, a temperatura, a poluição e a densidade.
BARULHO O incômodo causado pelo barulho depende do seu volume, previsibilidade e possibilidade de controle, sendo 40 db considerado tranquilo, até 70 db moderado e a partir do 90 db já caracterizado como um nível torturante ao ouvido humano. Existem diversos estudos que comprovam sua relação com a saúde mental, qualidade de vida, atenção e consequentemente desempenho intelectual. Um
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experimento conceituado de Bronzaft e McCarthy (1975 apud Moser 1998) utilizou a mesma escola e salas de aula expostas a níveis diferentes de ruídos para comprovar sua hipótese, o resultado foi que crianças na sala de aula voltada para o lado do trilho do trem tinham desempenho escolar e de leitura menor do que crianças com a sala voltada para uma área mais calma.
TEMPERATURA Já a temperatura apresenta certas variáveis. Estudos mostram que, mesmo a exposição prolongada trazendo riscos de doenças cardiovasculares, ansiedade e desidratação, esse perigo se dissolve em pessoas que vivem ou sempre viveram no clima em questão, trazendo o aspecto de adaptabilidade.
POLUIÇÃO O fator mais danoso apontado por Moser é a poluição, situação que pode causar danos fisiológicos e psicológicos.. Esse fator se mostra mais presente em grandes metrópoles, como Los Angeles, Paris, Xangai, Cairo e outras. Segundo estudo publicado pela revista The Lancet (2017), o Brasil ocupa a posição 148ª com maior proporção de mortes relacionadas à poluição, onde a maioria das mortes foi causada por doenças não infecciosas ligadas à poluição, como infarto, derrame e câncer de pulmão.
DENSIDADE Milgram (1972 apud Moser 1998) mostra que, nos ambientes urbanos superpovoados, as pessoas são indiferentes umas com as outras porque cada uma tende a isolar-se a fim de se proteger de estimulações ambientais excessivas. Trata-se de uma estratégia de “ajustamento à sobrecarga ambiental”. Em resumo, todos esses fatores associados tornam a cidade, além de estressante do ponto de vista do bemestar, um local muitas vezes perigoso, considerando os altos índices de poluição e problemas urbanos que colocam nossa saúde mental e integridade física constantemente em cheque. Soma-se a isso a reação, quase que primitiva, de tentarmos nos isolar para equilibrar e dissolver todos esses estímulos degradantes.
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OPORTUNIDADES X PROBLEMAS URBANOS
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ANOMALIAS URBANAS Outros fatores urbanos estressantes apontados por Moser (1998) são as anomalias urbanas, entre elas: a delinquência, o vandalismo, a marginalidade, as descortesias e a insegurança causada pelo meio urbano. Esses fenômenos se relacionam diretamente com a densidade, a desigualdade urbana, e a alta competitividade citadina. Moser acrescenta ainda outro fator primordial para a insegurança que vivemos nas cidades: a indiferença mútua e a falta de sensibilidade, causada justamente pela anestesia que os estímulos urbanos nos causam diariamente. A grande densidade e os fatores citados anteriormente são os responsáveis por essa indiferença perante ao outro e situações de injustiça. Moser fala sobre algumas descortesias relacionadas ao ambiente físico, como a degradação e pichações, que essas anomalias ocorrem justamente pelo indivíduo não se sentir pertencente e sentir necessidade de se apropriar ou exercer controle sobre aquele espaço de alguma forma, mesmo que ela se configure como degradante. Outro tópico interessante sobre o vandalismo é a relação de causalidade com o exemplo. Moser aponta que, sinais de negligência estimulam a falta de cuidado. Dá o exemplo das
pichações em muros, que, se não tratadas no primeiro momento, já fazem com que o muro passe uma imagem de abandono e logo se torne um espaço que atrai mais atitudes de vandalismo. Dentre todos os fatores, a violência é a mais preocupante e debatida no meio urbano e governamental. O Brasil, de acordo com relatório divulgado pelo ONU em 2019, é o segundo país mais violento da América do Sul, com uma média de 30,5 assassinatos por cada 100 mil habitantes. Uma das principais expressões de violência e desigualdade racial é a concentração de violência letal contra a população negra. Jovens negros aparecem como as principais vítimas de homicídios do país, com taxas crescentes, a medida que homicíos relacionados a pessoas brancas tem diminuído consideravelmente. A insegurança urbana se dá nos mais diversos níveis, em um cenário diretamente influenciado pelos privilégios econômicos, de raça e gênero.
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OPORTUNIDADES X PROBLEMAS URBANOS
COMPORTAMENTOS ADAPTATIVOS: TEORIAS SOBRE O URBANO Diante de todos os aspectos elencados acima acerca da realidade dos conglomerados urbanos, diversas teorias foram desenvolvidas para tentar explicar a relação entre o indivíduo e esse seu novo habitat, tão diferente e tão mais cheio de estímulos e estressores do que os que o precederam. Todas as teorias concordam que as condições da vida urbana provocam nas pessoas um comportamento adaptativo mais voltado para si mesmo e consequentemente menos civilizado, dando origem à um comportamento psicológico típico urbano. Apesar de concordarem quanto a necessidade psicológica do indivíduo de adaptarse à esse novo habitat, os diferentes modelos propostos discordam acerca da influência do indivíduo nesta relação. Quanto à esses modelos urbanos, Moser (1998) e
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Ramirez (2002) resumem alguns dos principais modelos, os quais serão abordados rapidamente aqui. O Modelo da Ecologia Urbana, desenvolvido por Fisher, é um dos modelos mais difundidos e encara a cidade como um sistema com recursos econômicos e sociais limitados, no qual as pessoas devem se adaptar para sobreviver. É uma visão anti urbana e vê o ambiente como determinista, tendo o indivíduo pouca influência sobre o processo. Dentro desse ambiente as normas morais são menos marcadas e as pessoas mais anônimas, o que, dependendo da personalidade da pessoa em questão, pode levar ao isolamento ou à numerosos encontros. Esses encontros, de pessoas que se deparam com outras com interesses comuns, formam subculturas urbanas, resultando em uma cidade formada de vários
mundos distintos uma estrutura social dentro de um espaço urbano limitado, no qual cada grupo ocupa um determinado espaço e carrega ele de significados, costumes, tradições, que se distinguem dos outros. O Modelo da sobrecarga ambiental, defendido por Milgram, diferente do citado acima, enxerga que o indivíduo se adapta ao meio, e destaca a forma como o indivíduo, ao estar sobrecarregado de informações, seleciona quais são as de maior prioridade, focando nessas e deixando de lado as outras. Defende que nas cidades os indivíduos distinguem claramente que são os amigos e quem são os estranhos, os quais consequentemente não necessitam atenção. O Modelo de Referência ao Mundo Estranho aponta que, enquanto no campo se cruza constantemente com conhecidos, na cidade se vive em um mundo de estranhos, encontrando eventualmente e de modo surpreendentemente algum conhecido. Vivemos em nossa rotina em meio à estranhos familiares. Essa vivência no meio de estranhos nos permite disseminar o anonimato, tanto nosso quanto do outro, e aprender a quando e como interagir com as pessoas, buscando relações de diferentes graus de intimidade. As abordagens no sentido de Behavior Setting, analisam as atividades das pessoas e as suas interações nos diversos contextos. Vê que as pessoas agem de forma distinta em locais subutilizados, em um ótimo estado de utilização ou
superlotados, e consequentemente também em relação às cidades. Com base nisso, locais e cidades superlotadas fazem com que as pessoas se engajem menos na manutenção dos locais, tendo um menor nível de responsabilidade pelo desempenho do todo. O Modelo da abordagem composicional se difere das análises anteriores, as quais consideram que a cidade molda os habitantes. Essa abordagem parte do pressuposto que são as pessoas que escolhem habitar nos centros urbanos, de modo que a cidade é um reflexo dos seus habitantes e não o oposto. Com base nisso, percebe-se que as áreas da psicologia ambiental que abordam o meio urbano diferem quanto a compreensão do grau de influência do ambiente no indivíduo e vice-versa. Considerando essa relação um processo bidirecional, no qual o citadino é um ser ativo em relação ao meio em que está inserido, constantemente o modificando, e no qual esse meio urbano transforma e molda diariamente as atitudes e percepções de mundo de seus usuários, percebemos que existem alguns elementos presentes na cidade que são capazes de alterar as formas como nos relacionamos e nos portamos em determinados lugares. Vamos a seguir elencar alguns dos conceitos básicos da psicologia ambiental que nos auxiliam na compreensão das formas como o sujeito apreende e compreende o ambiente e posteriormente age sobre/sob ele.
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PSICOLOGIA AMBIENTAL NOSSA RELAÇÃO COM O ESPAÇO É BILATERAL: DA MESMA FORMA QUE PROJETAMOS NOSSAS VONTADES NESSE ESPAÇO, ELE REFLETE SITUAÇÕES QUE MODIFICAM NOSSO COTIDIANO.
Tendo elucidado alguns dos fatores característicos da vida urbana atual, cabe agora trazer a definição de alguns conceitos chave da psicologia ambiental, possibilitando assim uma posterior análise a respeito das distintas formas de interação dos diferentes grupos sócio-culturais no âmbito da cidade e então uma reflexão acerca das características ambientais que influenciam na caracterização de um espaço urbano apropriante e gerador de bem-estar.
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PRIVACIDADE TERRITORIALIDADE ESPAÇO PESSOAL Estamos constantemente nos relacionando com o ambiente, seja ele interno ou externo, público ou privado, individual ou compartilhado. Nossa relação com o espaço é bilateral e da mesma forma que projetamos nossas vontades nesse espaço, ele reflete situações que modificam nosso cotidiano. O conceito de território aparece em todas as culturas. Não importa o tamanho da comunidade, sempre existe uma área que a maioria dos membros da mesma origem cultural podem se apropriar e trocar experiências. Os níveis desejados de privacidade podem ser regulados e variam com a cultura que pertence o indivíduo, com o sexo, a idade, com a classe social e o uso pretendido para o local (Altman e Chemers, 1989) Para Moser (1998), essas relações complexas podem ser avaliadas em três níveis diferentes de privacidade: Espaço pessoal, territorialidade e densidade física e social. O espaço pessoal, é definido por Hayduk (1978 apud Moser 1998) como uma fronteira imaginária pessoal, que o estranho não pode violar, tendo como principal função, evitar a exposição e estímulos sociais e físicos indesejados, com o objetivo de conservar a liberdade de ação, privacidade e intimidade do indivíduo. E ainda segundo ele,
essa invasão do espaço pessoal causa fuga, ou evitação. Existem, é claro, casos mais extremos da invasão do espaço pessoal, que não se atém apenas ao desconforto, mas a invasão em si e a violência, configurando uma anomalia. São exemplos situações de abuso contra a mulher, homofobia, racismo e violência direcionada a minorias, situações que infelizmente ocorrem todos os dias. Alan Westin (1967), define quatro estados de privacidade das pessoas: solidão, intimidade, anonimato e reserva, sugerindo que há uma variedade de razões pelas quais o indivíduo precisa controlar sua privacidade. Dois desses aspectos são relevantes quando avaliado o contexto urbano: solidão, por ser difícil consegui-la no
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espaço público e anonimato, pela liberdade de observação constante de observadores. Já a territorialidade tem limites visíveis e palpáveis, para Altman (1976 apud Moser 1998), existem 3 tipos de território: o território primário (normalmente definido pela residência ou local de trabalho) o secundário (que é dividido com um número de pessoas conhecidas, a sala de aula, ou universidade, por exemplo) e terciário (espaço público partilhado com desconhecidos, com apropriação momentânea, como exemplo a rua, praia e outros). Cada território se apresenta com características antropológicas distintas. O espaço primário, justamente por ser delimitado e o convívio se dar com pessoas conhecidas, tende a ser o que ambiente que nos deixa em um estado de menor alerta, reduzindo a complexidade das estimulações nervosas. Já o território secundário, ainda de acordo com Altman, favorece o exercício do poder, justamente por serem espaços menos centrais e exclusivos. Neles, os comportamentos de agressão e dominação se tornam mais comuns, visto que se caracteriza por um espaço frequentado pelas mesmas pessoas diariamente com distintas personalidades, muitas vezes com hierarquias muito bem definidas, e hierarquias que se dão de acordo com o histórico pessoal de cada um. Por fim, entende-se que a territorialidade tem a função de organizar as casas, bairros, cidades,
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estados, países, escolas, hospitais, prisões e outros. Enquanto o espaço pessoal tem um papel regulador, que tende a proteger os indivíduos de ameaças físicas e emocionais, regulando a intimidade dentro dos diferentes tipos de territórios.
DENSIDADE FÍSICA E SOCIAL Com o aumento progressivo das populações urbanas, surgiram inúmeros estudos relacionando a densidade e seu efeito negativo a curto e longo prazo. Para efeitos de estudos, são comumente utilizados dois conceitos: densidade interior e densidade exterior. A interior se refere a quantidade de pessoas que vivem na mesma casa ou apartamento enquanto a exterior fala sobre o número de unidades habitacionais por superfície de solo. Stockols (1972 apud Moser 1998) fala também sobre densidade objetiva, que seria a medida de um número de indivíduos por unidade espacial e a densidade subjetiva, caracterizada como a percepção e reação individual da pessoa exposta a forte densidade, portanto, muito mais relacionada com sua individualidade. A lotação de transportes públicos, um fator costumeiro em grandes cidades, foi estudado por Singer, Lundberg e Frankenhauser (1978 apud Moser 1998), que apontaram aumento do nível de estresse nesses passageiros através dos níveis elevador de catecolamina e epinefrina nas suas urinas. Além disso, percebeu-se que o fator de tomar a lotação primeiro e ter a possibilidade de escolher onde vai se sentar, aumenta a satisfação do passageiro, provando novamente que a possibilidade de controle é um tranquilizador.
Outro fator interessante é o efeito da densidade sobre a forma de se relacionar, uma densidade elevada provoca sobrecarga de estímulos, reduzindo a quantidade e qualidade das interações. Em estudo desenvolvido por Baum et al (1982 apud Moser 1998), analisaram a disposição dos dormitórios universitários, comparando o dormitório corredor e apartamento. Neste estudo foram analisadas as formas de interação dos indivíduos, e o estudo revelou que estudantes que viviam em dormitório corredor consideram que estão muito expostos a interação social, tem a impressão de pouco espaço e invasão. Por isso, quando estão em situação que necessitam de maior interação ou trabalho em grupo, tendem a se manter mais afastados, justamente como um mecanismo de equilíbrio em relação à constante exposição social. A redução das condutas de ajuda em espaço urbano se explica também por esse motivo. A responsabilidade individual é abandonada em proveito de um anonimato que protege da presença dos outros.
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APROPRIAÇÃO
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O conceito apropriação consiste em um dos mais importantes para a análise da interação do indivíduo com o meio urbano. Sylvia Cavalcante e Terezinha Façanha Elias, no livro “Temas básicos em psicologia ambiental”, (2011, p. 63) definem a apropriação como “um processo psicossocial central na interação do sujeito com seu entorno por meio do qual o ser humano se projeta no espaço e o transforma em um prolongamento de sua pessoa, criando um lugar seu.”. De acordo com Enric Pol (1996) , conforme citado por Cavalcante e Elias (2011, p. 65), o processo de apropriação pode ser dividido em duas categorias. A Primeira, definida como ação/transformação consiste em um processo direto de demarcação territorial de modo que se relaciona muito com o conceito de territorialidade citado acima. A segunda categoria seria a de Identificação, na qual o processo de apropriar-se se dá no âmbito da identificação com o território, com a construção de significado e personalização do mesmo. Dessa forma, o processo de apropriação se dá por uma via de mão dupla. O indivíduo se reconhece no ambiente e portanto se apropria dele, ao mesmo tempo em que ao estampar sua marca no ambiente (se apropriando dele) se reconhece ali. Independente da forma como decidimos analisar a apropriação, sabe-se que é um processo que ocorrem de forma mais fácil em um local privado, no qual o indivíduo possui o controle sobre o lugar e a
liberdade de definir as formas como ele será utilizado. Já no espaço público a apropriação se dá mais recorrentemente na forma de identificação e de ocupação do espaço, sem que ele seja legalmente seu, de modo que normalmente representa uma apropriação passageira e que precisa ser constantemente reforçada, uma vez que está sujeita à apropriação dos outros. O processo de apropriação está muito ligado à outro conceito recorrente da psicologia ambiental, o de Apego ao Lugar. Este, por sua vez corresponde à construção de laços com o ambiente através da identificação com o mesmo. Pode ocorrer por conta de características funcionais, quando o ambiente facilita a realização de tarefas, de características simbólicas, relacionadas à memória e ao imaginário pessoal, ou então por características ligadas ao tempo de permanência naquele espaço, criando um alto grau de familiaridade com o lugar. O apego ao lugar auxilia no processo de apropriação do espaço, pois, uma vez que aquele lugar corresponde aos aspectos positivos de identidade de lugar do indivíduo, há um desejo de proximidade com ele e um sofrimento pela separação, levando o indivíduo à ocupar aquele espaço. Isso se torna ainda mais importante quando se tratando dos ambientes públicos.
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ANÁLISE DA PSICOLOGIA AMBIENTAL NO MEIO URBANO 19
Quando passamos a relacionar os conceitos tratados nos estudos de psicologia ambiental com os diferentes níveis de aglomerações humanas, percebemos que as interações interpessoais variam tanto de acordo com o maior ou menor grau de intimidade, quanto com o número de pessoas que formam tais aglomerações. Na escala das cidades, por exemplo, se tem uma maior facilidade de perceber o conceito de espaço pessoal, visto que no convívio entre indivíduos desconhecidos a tendência é de se respeitar o espaço alheio, enquanto que na escala dos grupos sociais, como centros comunitários, conseguimos perceber melhor o conceito de apropriação, principalmente do espaço público em seu entorno. Além disso, o conceito de direito à cidade, desenvolvido por Henri Lefebvre em 1968, é muito utilizado atualmente quando tratamos das problemáticas urbanas. Segundo o autor esse seria um direito da não exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana. Um direito coletivo para remodelar a urbanização. Deveria haver, para isso, uma maior participação daqueles que têm um histórico de constante exclusão e marginalização nas decisões de formação das cidades. As diferenças encontradas entre as escalas analisadas e o conceito de direito à cidade tudo tem a ver com o contexto envolvido no surgimento e desenvolvimento dos conglomerados urbanos no século XIX e é um item de extrema importância a ser analisado
para embasarmos um estudo nesse tema. Como já citado anteriormente, no mundo todo esse processo fez com que parte da população fosse deslocada das cidades camponesas às cidades industriais de maneira rápida, passando a criar espaços sem uma necessária qualidade urbana. Com o passar do tempo e aumento significativo desse movimento de mudança têm-se situações onde os indivíduos ou mesmo grupos, procuram ou são forçados a encontrar um local para viver e um lugar para trabalhar dentro de seus limites econômicos e políticos (FRICK, 1986), e não mais onde se identificam, alocando-se mesmo que longe de suas atividades diárias, em bairros que posteriormente se tornaram as conhecidas periferias. Desde aquela época, os mais privilegiados ocupavam os locais mais próximos de seus trabalhos e necessitavam de menor tempo de deslocamento para executar suas atividades, apesar de não conhecerem de fato seus vizinhos, pela falta de uma comunidade propriamente dita, se reconheciam socialmente neles. Consequentemente as áreas que essa parcela da população ocupava eram cada vez mais homogêneas, apresentavam cada vez mais comércios e serviços e não demandavam grandes esforços por parte dos moradores para se desenvolverem. Esses fatores criaram uma certa especulação imobiliária, tornando essas áreas supervalorizadas e repelindo cada vez mais a camada menos abastada da sociedade.
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Dessa forma, a população deslocada das cidades camponesas, que tinha uma conexão e sensação de pertencimento àquele modo de vida anterior, se encontra em um local novo e desconhecido, sem os serviços básicos e sem identidade coletiva alguma. Nesses bairros periféricos surgem, assim, pequenos grupos que têm como característica comum o contexto que os fez estarem ali. Segundo a dissertação de mestrado de Frederica Gomes, esse processo de agrupamento, quando acontece através de grandes fluxos migratórios, possui características que refletem a bagagem cultural e econômica dos novos moradores, criando assim, de maneira espontânea, uma identidade local. Essa identidade local, que faz com que, ao longo dos anos, essa população que ficou à margem do centro industrializado crie um senso de comunidade e passe a agir, apropriando-se dos espaços públicos para que os mesmos atendam às suas necessidades básicas. Como consequência, esses moradores sentem-se pertencentes do que é público e por esse motivo lutam em
conjunto por espaços mais dignos e por melhorias constantes em seu redor. Tal luta, no entanto, não faz com que o Estado os perceba como parte integrante e necessária das cidades e, consequentemente, não trabalhe para suprir as necessidades desses moradores, e sim, foque em um maior desenvolvimento das áreas centrais já desenvolvidas. Por fim, o crescimento das cidades, o aumento das problemáticas à elas relacionadas, e a falta de auxílio estatal faz com que Lefebvre cite em “O Direito à Cidade”, sobre um projeto de mudança estrutural, que será longo e difícil, já que será preciso resolver inventando (espaço e tempo novos), resolvendo contradições e conflitos entre os mais profundos produzidos pelo ‘modo de produção’ que dominou (LEFEBVRE, 1986, p.05). Esse projeto teria como finalidade nos dirigir a uma sociedade urbana que demandaria uma apropriação do espaço pelo indivíduo e, consequentemente, diminuiria as desigualdades geradas pela ocupação urbana na época do desenvolvimento industrial.
DIFERENÇAS DE INTERAÇÃO ENTRE AS PESSOAS CONSIDERANDO O “STATUS”
As comunidades periféricas do século XXI que apresentam escassez nos serviços básicos e que lutam pela inclusão na cidade são consequência direta da marginalização ocorrida na época da industrialização. Hoje em dia, no entanto, além da segregação espacial que é clara e visível, temos também a segregação
social, que varia de acordo com cor, gênero e condição financeira e gera inúmeras problemáticas nas relações interpessoais. No contexto das cidades, as lutas por dignidade e espaços públicos para todos, criam uma interação entre pessoas com um mesmo propósito e são um grande fator de pertencimento local. Segundo Lefebvre (1968, p.14) “Os violentos contrastes entre a riqueza e a pobreza, os conflitos entre os poderosos e os oprimidos, não impedem nem o apego à Cidade nem a contribuição ativa para a beleza da obra. No contexto urbano, as lutas de facções, de grupos, de classe, reforçam o sentimento de pertencer.”. Quem está lado a lado numa luta, dessa forma, se identifica com o outro independente dos inúmeros contrastes socioculturais passíveis de existir, o que geralmente não ocorre em situações cotidianas da sociedade. No dia a dia não é pouco frequente vermos relatos de mulheres que não se sentem respeitadas em ambientes de trabalho formados majoritariamente por homens,
relatos de pessoas pretas seguidas por seguranças e/ou agredidas, física ou verbalmente, por conta da cor de sua pele, em ambientes teoricamente voltados à todos, ou então relatos de pessoas com renda baixa que se sentem deslocadas em locais como shoppings centers. Esses preconceitos e opressões causados por simples diferenças genéticas ou de “status” social, geram desconforto e sensação de não pertencimento ao local. Em síntese, esses espaços que impedem apenas alguns tipos de relações interpessoais podem ser chamados de segregacionistas. Mesmo que denominados públicos, são muitas vezes voltados somente para uma camada da sociedade, o que faz com que os que não fazem parte dela sintam-se desconfortáveis quando os ocupam. Abaixo daremos alguns exemplos de situações do cotidiano nas quais essa segregação e falta de pertencimento ao local público se aplicam.
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OCUPAÇÕES URBANAS POR DIREITO A CIDADE
“NAS RELAÇÕES SOCIAIS, NO BRASIL, EXISTE UMA PROFUNDA DISTÂNCIA ENTRE DISCURSO E PRÁTICA OU ENTRE O TEXTO DA LEI E SUA APLICAÇÃO. EM CONSEQUÊNCIA, GRANDE PARTE DA SOCIEDADE PERMANECE SEM DIREITOS PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO. SÃO IGNORADOS, SEGREGADOS E INVISÍVEIS APESAR DAS DIMENSÕES DESSA EXCLUSÃO. COMO ESSA ESPÉCIE DE APARTHEID NÃO É CLARA E ASSUMIDA, VIVE-SE UMA CONTRADIÇÃO, UM FAZ DE CONTA. FAZ DE CONTA QUE ISSO É UMA DEMOCRACIA, FAZ DE CONTA QUE A LEI SE APLICA A TODOS DA MESMA FORMA, FAZ DE CONTA QUE TODOS TÊM DIREITOS IGUAIS, COMO É O CASO DO DIREITO À CIDADE. O QUE A PRÁTICA DOS ROLEZINHOS TEM DE NOTÁVEL, FANTÁSTICO, EXTRAORDINÁRIO MESMO, É O DESNUDAMENTO DESSA CONTRADIÇÃO. QUANDO OS EXILADOS URBANOS DECIDEM ANDAR PELA CIDADE, ESSE APARTHEID EXPLODE NA CARA DA SOCIEDADE AINDA QUE NÃO SEJA ESSA A INTENÇÃO DA MAIOR PARTE DA MOÇADA. ESSA ATITUDE QUESTIONA, PROFUNDAMENTE, A SOCIEDADE QUE APRENDEU A SER CÍNICA (ESPECIALMENTE O “PARTIDO DA MÍDIA”) PARA ESCONDER A INCRÍVEL DESIGUALDADE DE UM PAÍS QUE NÃO É POBRE MAS TEM UM POVO POBRE .”
Erminia Maricato sobre os rolezinhos
2014
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Conforme já comentamos, muitas vezes a população se apropria dos espaços públicos com o objetivo de expressar sua identidade no local e, consequentemente, atenuar esse sentimento de segregação. Isto porque, a partir da análise comportamental, a identidade é caracterizada como uma necessidade universal e uma parcela dela compreende a identificação do indivíduo com os lugares (KRUPAT, 1985, apud GOMES, 2006). Além disso, o espaço público em si, com todas as suas possibilidades e ofertas, também configura uma necessidade coletiva (Kaplan, Kaplan e Ryan; 1998 apud GOMES, 2006). Assim, apesar das pessoas possuírem diferenças significativas, grupos se formam naturalmente ou são associados pela conjuntura do tecido urbano, por possuírem necessidades e afinidades em comum, sejam elas econômicas, sociais ou culturais (MOSER, 1998). Um exemplo dessa reação de apropriação em busca de satisfazer suas demandas por pertencimento são os casos dos chamados “Rolezinhos”, fenômeno que iniciou em São Paulo, no final de 2013. Os eventos começaram com o intuito de promover o encontro de adolescentes da periferia que se conheciam apenas pelas redes sociais, agrupando centenas e às vezes milhares de jovens em shoppings da cidade. Ainda que esses centro comerciais não sejam locais de fato públicos, mas sim empreendimentos privados acessíveis ao público, cabe essa exemplificação no nosso contexto,
uma vez que, devido a escassez de espaços públicos de qualidade, os shoppings, muitas vezes, são vistos pela população como a única opção segura de entretenimento. Fator de enorme relevância, uma vez que a segurança tem se mostrado a condição principal nas escolhas de locais para desempenhar atividades de lazer e serviços (GOMES, 2006). Os “Rolezinhos”, ao passo que ganharam caráter de representação da luta pelo direito à cidade, começaram a ser reprimidos e proibidos. Por mais que a natureza desse fenômeno tenha sido, desde o princípio, apenas de lazer, as manifestações comportamentais desses jovens, ou seja, seu movimento de apropriação do espaço, foram vistas como uma turbulência no cotidiano do público alvo dos shoppings: a classe média. Escancarou-se, assim, a segregação espacial descomunal que rege a vida urbana no nosso país. É importante pontuar, no entanto, que esses adolescentes não tinham o objetivo de protestar. O caráter político foi um efeito colateral da movimentação natural desses adolescentes da periferia em busca de seus direitos de viver a cidade. Levantamos, portanto, novamente a crítica: os espaços de pertencimento universal se tornam segregacionistas à medida que se voltam a apenas uma camada da sociedade.
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BEM ESTAR E SOCIEDADE Os humanos são seres sociais, dessa maneira, como citamos, tendem a se agrupar com seus semelhantes. A segregação espacial, no entanto, custa caro a essa característica humana, visto que é o espaço público que provém canais de movimento, articulação de comunicação e lazer (CARR et al, 1992, apud GOMES, 2006). É nele que as trocas pessoais mais valiosas ocorrem. Lang (1987), por sua vez, enfatiza que é necessário um equilíbrio entre o espaço físico e o social para que as relações se desenvolvam da maneira adequada. Dessa forma, visto que o bem estar psicológico dos indivíduos está intimamente relacionado com as
suas relações interpessoais, por consequência, sofre forte influência do ambiente e da forma como eles estão inseridos no meio urbano. Assim, a carência de espaços públicos de qualidade e a negação dos poucos existentes é também uma forma de negar novos vínculos sociais à parte marginalizada da sociedade. Logo, é crucial que o meio físico sustente as estruturas sociais das mais diversificadas (RAPOPORT, 1977, apud GOMES, 2006) para que promova relações sem distinções. O movimento de apropriação dos espaços, portanto, não é uma busca apenas por identidade, mas também por laços, pela manutenção da vida em comunidade por bem estar.
ESPAÇO PESSOAL E TERRITORALIDADE NO MEIO URBANO Apesar da característica humana de carecer da relação com outros seres da mesma espécie, há, por outro lado, a necessidade de privacidade em diversos níveis e momentos da vida urbana. Anteriormente, citamos que o conceito de espaço pessoal é facilmente percebido nas cidades, assim como a territorialidade terciária. Um exemplo deste é a forma como nos comportamos em
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uma praia. Embora seja um espaço de uso público, sem barreiras fixas, demarcamos o nosso território momentâneo com o uso de objetos, como guarda-sol e toalhas. Durante esse período de uso, esperamos que aquele recorte do espaço seja compreendido por terceiros como território e que, portanto, não seja invadido sem permissão. Essa noção de respeito por limites abstratos
é adquirida ao longo do nosso crescimento, através das vivências que temos em comunidade. O espaço pessoal por sua vez, é observado com mais frequência em relação à territorialidade, por tratar-se de um limite que envolve a pessoa e a acompanha em todos os momentos e lugares. No transporte público, por exemplo, ele é violado quando a pessoa que se senta ao nosso lado não cumpre um certo distanciamento. É importante ressaltar, no entanto, que tal distância, ou seja, o tamanho do espaço pessoal de cada indivíduo é diferente e se altera com base nas suas experiências, crenças e cultura, conforme explicam Elali e Pinheiro (2011, p. 145). Além disso, há momentos em que, por não haver outra opção, a invasão é justificável. Exemplificando, quando há espaço em um banco de uma praça para que a pessoa se sente mais distante de nós e ela escolhe sentar ao nosso lado, nos sentimos invadidos. Caso o banco já esteja ocupado na outra extremidade, avaliamos tal comportamento como aceitável. Apesar disso, dependendo dessa proximidade e se há contato físico ou não, ainda que aceitável, pode significar um incômodo. Assim, os indivíduos estão sempre vivenciando a cidade entre as concepções de apropriação e espaço pessoal, relações sociais e privacidade. O meio físico, portanto, deve suportar essa variação, visto que ambos os extremos constituem necessidades humanas.
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PANDEMIA E QUARENTENA: MUDANÇAS NAS RELAÇÕES URBANAS 2020 e a pandemia do novo coronavírus trouxeram consigo uma mudança considerável nas relações interpessoais e de apropriação dos espaços. O fato da população se isolar em suas casas e evitar grandes deslocamentos causou uma redução da ocupação dos grandes centros urbanos e um aumento no uso dos comércios e serviços de bairro, consequentemente, os problemas de mobilidade tão presentes nas cidades atuais foram altamente reduzidos. Em contrapartida, a busca por áreas de lazer ao ar livre aumentou e o uso de transportes particulares em detrimento dos públicos também. Com isso, a tendência para os próximos anos é de termos bairros cada vez mais autossustentáveis, com mais áreas verdes e planejados a partir do ponto de vista do pedestre, e não mais do carro. Deize Sbarai Sanches Ximenes e Ivan Carlos Maglio, em seu artigo de setembro de 2020 publicado no jornal da USP, trouxeram pontuações de grandes autores da área, Jane Jacobs e Jan Gehl, sobre críticas e reflexões feitas anos antes em relação ao planejamento urbano. Jacobs, desde 1961 criticava a ideologia urbanística do modernismo, a qual separava esquematicamente o uso do solo, enquanto que Gehl, em 2013, já ressaltava a importância do resgate da dimensão humana nas cidades.
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É de extrema importância, dessa forma, que as políticas públicas trabalhem de acordo com as mudanças comportamentais que a pandemia trouxe, caso contrário o futuro de nossas cidades será de cada vez mais carros nas ruas e estresses urbanos. Ágatha Depiné em sua publicação no site VIA UFSC, diz “Budapeste sofreu uma redução de 90% no uso de ônibus e 50% no tráfego rodoviário. Nas cidades chinesas, após o fim das restrições e quarentena, o medo de contágio na população fez com que o uso de transporte público fosse reduzido pela metade e corridas de táxis se tornassem menos frequentes, duplicando o uso de carros particulares nas ruas.” Outra situação que ganhou repercussão através da mídia foi a narrativa de uma “pandemia democrática”, sustentada pelo argumento de que ninguém estaria livre da COVID-19, independe do sua condição social. Oliveira et al (2020), no artigo “Desigualdades raciais e a morte como horizonte considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural”, discorre sobre como a pandemia escancarou a divisão socioeconômica no nosso país. Visto que, os indivíduos que mais precisam se expor ao vírus são “Predominantemente trabalhadores precarizados, que não possuem
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o 60 privilégio de ficar em casa, que 50 utilizam os transportes públicos 40 superlotados; têm acesso precário ao30saneamento básico [...]”. 20
PROPORÇÃO DE HOSPITALIZAÇÕES POR CO10 VID-19, SEGUNDO RAÇA/COR, DIA DA DI0 VULGAÇÃO E SEMANA (SE) 15 16 17 EPIDEMIOLÓGICA 18 19 20 SEMANA EPIDEMIOLÓGICA Negros Brancos 80
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PROPORÇÃO DE ÓBITOS POR COVID-19, SEGUNDO RAÇA/COR, DIA DA DIVULGAÇÃO E SEMANA EPIDEMIOLÓGICA (SE) Negros
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70 No cenário pandêmico, todos 60 os fatores deturpantes da cidade, como 50os estressores e anomalias, somam-se ao perigo iminente do 40 vírus, 30 que se mostra de forma mais rígida 20e constante para populações 10 0
em situação de vulnerabilidade social. No artigo são apresentados dados do Ministério da Saúde em seus boletins epidemiológicos, que destacam a queda das internações e óbitos em brancos e o aumento em negros, fator que indica justamente essa incoerência urbana onde algumas vidas tem o privilégio de permanecer seguras em casa enquanto outras precisam se colocar a mercê de vários problemas urbanos, que se atenuam em época de crise. Espera-se por fim, que as cidades pós pandemia passem a privilegiar mais os cidadãos periféricos, e através de uma reparação social, promover a saúde, bem estar, segurança, redução dos estresses urbanos e melhoramento dos espaços públicos, valorizando o coletivo em prol do particular. Outro fator indispensável é elaborar espaços que melhorem a qualidade de vida e que possibilitem uma menor necessidade de contato, visto que o fator densidade, além de um estressor urbano passa por um aspecto de saúde quando falamos sobre o distanciamento social exigido na pandemia. Pedro da Luz Moreira, professor de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense, já disse, “O urbanismo pode estimular hábitos como exercícios e caminhadas, ao oferecer boas calçadas, em vez de privilegiar espaços para carros. Mas também deve se voltar à saúde psíquica, dotando diferentes áreas da cidade com equipamentos educacionais e de lazer.”.
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CONCLUSÕES 29
Visamos aqui fazer uma reflexão acerca de dois pontos principais tratados no texto. Primeiramente seria importante destacar quais características de uma ambiente público promovem o bem-estar psicológico, e em seguida, quais são as características de um espaço público que incitam a apropriação dos diferentes grupos socioculturais. A respeito da primeira questão, percebe-se que a demasiada exposição às demandas e aos estressores ambientais presentes nas grandes cidades influenciam um estilo de vida acelerado e estressante, no qual o sujeito se vê alienado por meio de sua rotina do dia a dia. Por conta disso, torna-se demasiado importante a presença em nossas cidades de ambientes que promovam a restauração desse desgaste cotidiano. Diversos estudos realizados no campo da psicologia ambiental analisam quais são as características presentes em um ambiente que permitem e/ou promovem a restauração do indivíduo. Dentre eles, duas teorias se destacam, ambas desenvolvidas na década de 80, a Teoria Psico-evolucionista, desenvolvida por Roger Ulrich, que aborda os ambientes restauradores a partir de uma visão do desgaste por acúmulos de stress, e a Teoria da Restauração da atenção, desenvolvida por Rachel e Steven Kaplan, a qual aborda a restauração a partir do desgaste da atenção dirigida. (ALVES, 2011) Apesar de possuírem pontos de
partida distintos, ambas as teorias concordam quanto às características necessárias para a tornar um ambiente restaurador, destacando em especial os ambientes naturais. Analisando os grandes centros urbanos tais como são, ambientes construídos e muitas vezes hostis ao fluxo natural da vida, vê-se a importância da inserção de espaços verdes naturais no interior dessas cidades, tais como praças e parques urbanos, permitindo assim uma breve fuga da correria da vida cotidiana. Benefícios do contato com a natureza, mesmo que breve, são reportados em diversos estudos, demonstrando a redução da frequência cardíaca e a diminuição dos níveis de ansiedade e stress dos indivíduos após a exposição à ambientes naturais. Evidenciase também, como concluído nos estudos realizados pelo casal Kaplan, que ambientes que promovem a utilização da atenção por fascinação (que não necessita de um esforço consciente) facilitam a posterior realização de tarefas dirigidas. Ressalta-se que não apenas ambientes puramente naturais, mas a simples presença de elementos naturais nos ambientes construídos, como luz natural e inserção de vegetação, também influenciam no processo de restauração dos indivíduos. Assim, percebe-se como a arquitetura presente nas cidades tende a possuir um impacto muito grande no estilo de vida dos citadinos, e a pura substituição de ambientes fechados e acondicionados, tais como shopping centers, por ambientes
abertos, como ruas comerciais, podem colocar o indivíduo em contato com elementos naturais e restauradores, além de garantir um caráter mais inclusivo à cidade. A segunda questão diz respeito às características dos ambientes públicos que incentivam este caráter inclusivo dos espaços e consequentemente uma apropriação mais igualitária pelos diferentes grupos socioculturais. A identificação, fator apontado por Enric Pol (1996) é o item primordial para um indivíduo se sentir disposto e à vontade para se apropriar de um espaço. Elementos cotidianos que façam com que ele enxergue sua história, semelhantes e raízes os deixam mais confortável para ter uma relação bilateral com a cidade: se projetar no espaço na medida que o espaço se projeta nele. Nesse aspecto, se sentir pertencente a um ambiente, tira o indivíduo de local de anonimato urbano e o coloca em um espaço de responsabilidade coletiva, criando uma relação de genuína de mutualismo entre citadino e cidade. Com isso, é importante avaliarmos, no papel de arquitetos e urbanistas, a história local, figuras de liderança, representatividade, hábitos, lutas e interesses, para então criar mecanismos que permitam que os indivíduos daquela sociedade se reconheçam e, principalmente, se manifestem naquele espaço. Necessitamos também reconhecer as diferentes formas de experimentação do espaço público em questão pelos
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distintos perfis de usuários e seus respectivos estilos de vida, podendo assim planejar um espaço que supra as necessidades ambientais de todos esses grupos sócio-culturais. A apropriação caminha de encontro ao conceito de Apego ao Lugar, que está diretamente ligado à memória afetiva e ao imaginário pessoal. Esse fator tende a ser individual no micro, porém, na visão urbana, o Apego se dá em vizinhanças, bairros, comunidades, cidades e até mesmo países. Elementos urbanos que promovam a união desses grupos e respeitem sua história certamente irão se englobar de forma harmoniosa e saudável ao espaço e aos indivíduos. O conceito de apropriação e apego a o lugar passa também por um viés político, relacionado ao direito à cidade. Aspecto que, segundo Henri Lefebvre, é um direito coletivo de remodelação urbana, e para isso, seria primordial criarmos cada vez mais mecanismos de participação através de políticas
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públicas - como projetos urbanos participativos, por exemplo -, e eleger governantes que coloquem a representatividade e história urbana em primeiro plano. Por fim, entende-se que da mesma forma que a territorialidade mostra sua função ao organizar as casas, bairros, cidades, estados, países e interações humanas, a apropriação tem função de organizar histórias, memórias e relacionamentos urbanos. Desta forma, cabe ao arquiteto e urbanista, traduzir os interesses das comunidades, criando espaços que promovam o bem estar, valorizem a história, promovam senso de identidade e privilegiem os indivíduos que estão às margens - em um cenário habitual ou pandêmico. Com o foco em reduzir os estressores e tratar, de forma social e humana as anomalias urbanas, criando uma cidade mais saudável, inclusiva e afetiva, colocando o indivíduo sempre em seu papel de protagonista.
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ACADÊMICAS: FRANCHESCA MEDINA LAÍS EFFTING DE ANDRADE LUIZA LOBATO KINAST NATÁLIA BASSANESI BATISTA TEREZA PEIXOTO SCHULZ MACEDO