Dinâmica do Silêncio

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Natália Rezende Oliveira

DINÂMICA DO SILÊNCIO

Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2012

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Natália Rezende Oliveira

DINÂMICA DO SILÊNCIO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Desenho.

Orientadora: Patricia Franca-Huchet

Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES Assinatura da banca examinadora na defesa de trabalho de conclusão de curso da aluna Natália Rezende Oliveira, sob o número de registro 2008002335

Título do trabalho de conclusão de curso: Dinâmica do silêncio.

__________________________________________________________________________ Professora Doutora Mabe Machado Bethônico - Orientadora - Adjunta - EBA/UFMG __________________________________________________________________________ Professora Doutora Patricia Dias Franca-Huchet - Orientadora - Titular - EBA/UFMG __________________________________________________________________________ Professor Mestre Rodrigo Borges Coelho - Assistente III - EBA/UFMG

Belo Horizonte, 06 de Julho de 2012

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AGRADECIMENTOS Agradeço a meus familiares pelo apoio, aos professores Rodrigo Borges e Patricia Franca-Huchet pela dedicação em suas aulas. Aos colegas da faculdade e aos amigos do ateliê de Desenho, em especial ao Alexandre Jr e Ademir de Almeida, pelo companheirismo de quase quatro anos. À minha mãe por toda a ajuda e amor. Ao meu pai, por me ensinar a acreditar quando perdi a fé, e a reconhecer na fragilidade a grande força da vida.

Dedicado à minha mãe.

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RESUMO

Esta pesquisa propõe uma reflexão sobre os trabalhos desenvolvidos nos ateliês de desenho; reflexão que abarca as relações do fazer artístico com o pensamento criador movido pela vontade, o que se configura como um dinamismo silencioso característico da ação de tecer. Dessa forma, a pesquisa conduz o pensamento à investigação da estrutura da imagem e de sua percepção através do aprendizado vindo da experiência com a tecelagem e suas traduções no desenho, fotografia e objeto/instalação, assim como a vontade que constitui o originário da produção. Essas reflexões encontram correspondência sensível com pensamentos de autores como Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger, Arthur Schopenhauer e Georges Didi-Huberman, entre outros. Palavras chave: imagem – tecido – trama - desenho

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................... 8 1

A IMAGEM DA VONTADE

1.1 DO ORIGINÁRIO..................................................................... 11 1.2 DA IMAGEM............................................................................. 16 2

A IMAGEM SILENCIOSA..................................................... 21

3

A IMAGEM INVISÍVEL......................................................... 28

4

A IMAGEM ENCARNADA.................................................... 42

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CLAREIRA................................................................................. 51 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................... 55

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INTRODUÇÃO

Não tenho nenhuma história para contar. Nenhuma memória de minha infância que mostre algum contato com tecelagem ou qualquer tipo de bordado e costura que tenha me acompanhado durante meu crescimento e despertado em mim já o interesse para esse tipo de artesanato. Nunca vi minha avó realizando trabalhos desse tipo, apesar de ser sua única neta mulher e ter passado grande parte da infância brincando em sua casa. A única recordação semelhante que possuo é de minha avó ensinando ponto cruz para minha tia, lembro-me de pegar os retalhos de linha e tecido e tentar, escondida, bordar. Mas isso passou tão logo quanto surgiu. Eu gostava mesmo era de brincar no fundo do quintal da casa dela, revirando a terra, terra preta de planta, terra vermelha e areia. Um gigante pé de manga, que mais tarde fora cortado, pé de limão, pé de laranja, pé de mamão, pé de fruta-do-conde (a única que sobreviveu ao tempo). Minha avó tinha num quartinho abandonado, uma máquina de costura preta, que sempre ficava coberta com um lençol, como uma máquina-senhora sábia que descansava depois de tanto ter trabalhado. Nunca vi minha avó usando-a, seu funcionamento sempre foi misterioso para mim. Então, lembro-me de ter ganhado uma máquina de costura pequena de brinquedo, tinha provavelmente oito anos. Saía costurando todos os tecidos que encontrava... Nenhum tecido funcionava de fato. Não servia para ser roupa das bonecas, nem para ser enfeite, não servia para ser outra coisa. Ela quebrou. Penso que depois disso, nunca mais tive contato com esse universo, um mundo que de certa forma não fazia parte de mim.

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Se não tenho uma história, se não tenho nada para contar de forma que narre um evento do passado que seja considerável para meu trabalho hoje, só posso aqui fazer uma inscrição. Gravar, registrar, marcar. Plasticamente falando, realizar uma incisão de signos sobre esses papéis. É o que me resta a fazer como tecelã, distribuir um ritmo para as palavras, de forma que elas componham não um tecido, mas o movimento do fazer. Fazer não é uma ação apenas do corpo. Uma das coisas que tive contato na infância e que sempre permaneceu em mim foi a poesia. E a poesia para mim esteve sempre associada ao movimento - as cores das terras do quintal, misturadas, modeladas, medidas; os pés plantados cada um em um canto específico. Os restos de linha de bordado, a costura nos tecidos. Os desenhos no muro de casa, que se estendiam nas paredes, no sofá. Minha inscrição aqui é um relato de um movimento dos últimos dois anos de minha vida, de experiências vindas da combinação do ateliê de desenho com a disciplina artes da fibra, e, sobretudo de uma ponte que funcionaria como tensão entre as duas, nunca me posicionando num extremo. A inscrição é como a marca do desenho, incisiva e significativa, mas, especialmente, intuitiva. Isso implica o dinamismo de um trabalho silencioso, do trabalho rotineiro do movimento poético - tentar dizer algo a partir da ação.

Fundamento essa inscrição, assim como minha própria experiência, na vontade. A vontade que é aquilo que move para a ação, que pode vir do corpo ou do pensamento, e que de certa forma inicia um diálogo entre ambos, originando a Imagem da Vontade. Nesse sentido, busco na filosofia pensamentos que correspondam aos meus, embora esses pensamentos sejam também movimentos poéticos sob minha vista. Tanto a filosofia quanto a poesia tem raiz no pensamento.

Na Imagem do Silêncio, o dinamismo do desenho e da trama do tecido se confunde, ambos se completam ao mesmo tempo em que cada um se desdobra. Uma ação parece ser

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consequência da outra, parece quase prever o que está por vir. A imagem silenciosa é aquela produzida por um trabalho latente, concentrado, mas que produz a dinâmica das linhas que se transformam em desenho, e a dinâmica do desenho que volta ao tecido, para se tornar a Imagem Invisível e misteriosa da fotografia, onde o tecido é extensão de corpos e objetos, se despontando para o espaço.

É preciso notar que a palavra tecido, usada ao longo de todo o texto, para designar especialmente as peças de macramê, é indicativa da ação no passado, e não do objeto. É um duplo sentido que pode causar confusão, pois ao mesmo tempo em que é aquilo que se teceu, também designará a trama que o constitui, e ambas são definições de importância. Mas prevalece o adjetivo/verbo no particípio sobre o substantivo (o tecido que é pano), sobretudo porque sempre se relacionará com a ação e não com o produto.

Essa ação sobre o objeto é tema de A Imagem Encarnada, que discute as relações do fazer, da experiência da feitura, trazendo novamente a noção de trabalho para o processo artístico. Os trabalhos apresentados neste capítulo são ainda experiências em desenvolvimento, mas que puxam o fio do desenho, da fotografia e da trama... E a trama se desfia em vários apontamentos para a prática. O trabalho de Magdalena Abakanovicz ilustra o fazer e a experiência que são inerentes à imagem produzida.

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1 A IMAGEM DA VONTADE

1.1 DO ORIGINÁRIO Originário é o lugar de onde algo veio. Difere de origem no sentido de que a origem estabelece uma causa. A causa, a origem, quando se fala de uma prática artística, é extremamente pessoal, provavelmente virá de uma questão da vivência do artista. Mesmo que essa vivência possa ser uma experiência coletiva, ela só terá sido incitada a esse artista se o tiver afetado de alguma forma. Aqui também, a origem de uma obra seria a Arte, ou o começo, identificado por um tempo linear e uma noção de história. O originário é o lugar onde o nascido transborda do silêncio de sua essência causante1 e sua presença se torna dinâmica – viva. O originário dá lugar a vontade, pois é sempre um acontecer daquilo que começou (na origem).

No terceiro volume de “O Mundo como Vontade e Representação”2 , Schopenhauer estabelece uma relação entre ideia, vontade e representação. A vontade é aquilo que nos liga diretamente à ideia, nascida, originada; e a representação é um modo de realizála. A realização da ideia implica numa ação, numa prática, no exercício e conhecimento da representação, que também pode ser chamado de imagem. Essa prática é construtora de uma imagem que represente a ideia, e que parte da força da vontade. O mundo, diz 1

ROHDEN, Huberto. Filosofia da Arte, p. 20.

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SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, p. 56.

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Schopenhauer, só é dado à percepção como representação, aquilo que vive na ideia precisa ser representado exteriormente, porém as coisas todas contêm as ideias em si mesmas, e a arte, através da contemplação e do fazer intuitivo, nos dá uma experiência mais direta com a ideia, sua manifestação e transformação no real. A ideia sendo essência da obra não pode ser algo desprendido dela. É por isso que insisto na diferenciação entre origem e originário. A origem implica a fonte da ideia, parece viver ainda no plano ideal, e quando essa ideia se realiza, desprende-se do lugar de origem. Nossa origem está num antepassado remoto, quase esquecido pelo corpo e sua evolução, sobrevive com resistência na memória, mas uma memória afetiva que conta histórias. O termo originário me traz a ideia de algo ainda em formação, ainda se originando e tomando espaço nesse lugar da vontade do fazer. Hannah Arendt, no segundo volume de “A vida do espírito”, diz: “Sem dúvida todo homem, pelo fato de ter nascido, é um novo começo, e seu poder de começar pode muito bem corresponder a este fato da condição humana.”3 . Toda vontade está relacionada com o mundo onde deverá se realizar, todo querer deve ser realizado, diferente do pensamento que basta a si só em sua atividade. Ainda segundo Arendt, o humor predominante da vontade é a tensão, exatamente pelo fato de que a vontade necessita se realizar, a ideia precisa se configurar enquanto uma ação.

A vontade deságua na ação, na prática. Na experiência artística, como foi dito, há uma constante troca entre o pensamento-ideia e sua realização. O fazer na arte se difere dos outros fazeres, pois há uma correspondência maior entre Ideia-vontade-representação vinculados à percepção ou a uma subjetividade que é sustentadora4 da imagem. A prática artística não lida com o objeto-imagem de uma forma definidora. Não é a definição da ideia que se busca, mas a experiência perceptiva de lidar com os pormenores da matéria, com as características que singularizam o objeto. 3

ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito, p. 267.

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Subjectum: fundamento, aquilo que sustenta o objectum/objetividade.

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Heidegger, em “A Origem da Obra de Arte”, afirma que para chegarmos à essência da obra de arte é preciso compreender o criar da obra.

“(...) o ser criado da obra só se deixa apreender a partir do processo do criar. Assim, por força disto que está em causa e para compreendê-lo, temos que nos introduzir na atividade do artista para encontrar o originário da obra de arte. A tentativa de determinar o ser-obra da obra, puramente a partir dela própria, demonstra-se inexequível.”5

Adiante, ele ainda nos diz que “a essência do criar é determinada pela essência da obra”, o fazer é precedido pelo pensamento artístico, considerando que a essência da obra, chamada de verdade por Heidegger, possa ser a própria Arte. O pensamento artístico aponta e elabora questões do mundo que serão manifestadas na obra e a própria obra conterá em si mesma a arte.

Longe de querer desvendar o enigma da arte, Heidegger ao contrário, nos propõe ver esse enigma: “A nossa pergunta pela obra não é a pergunta pelo objeto do sujeito, mas pelo acontecimento da verdade pelo qual nós mesmos (sujeitos) somos mudados”6 . Assim como Walter Benjamin que, em seu texto “Após a conclusão”, diz que a obra possui a imagem do nascimento, é nascida de seu criador e a concepção criativa é, desse modo, associada ao feminino. Ao mesmo tempo, a obra age sobre o criador e o modifica:

“(...) em sua conclusão, a criação torna a parir o criador. Não segundo sua feminilidade, na qual ela foi concebida, mas no seu elemento masculino. Bem5

HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte, p. 147.

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HEIDEGGER apud Miguel Baptista Pereira, p. 8.

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aventurado, o criador ultrapassa a natureza: pois essa existência que ele recebeu, pela primeira vez, das profundezas escuras do útero materno, terá de agradecê-la agora a um reino mais claro. A sua terra natal não é o lugar onde nasceu, mas, sim, ele vem ao mundo onde é sua terra natal.”7

Aí, além da relação de troca entre o artista e a obra, uma simultânea evolução e evidência da relação entre o ideal e a matéria, há também o contraponto entre a origem e o originário: a obra e o artista chamam de terra natal não mais sua origem, mas o lugar que ela ocupam após seu nascimento. Não é na origem que as coisas permanecem ou onde são achadas, é em seu desenvolvimento, experiência que manifesta sua essência. Nesse desenvolvimento, a obra de arte desvenda o mundo, é uma abertura.

Considerando tudo isso, pode-se estabelecer facilmente a diferença entre arte e artesanato, em que, no trabalho da tecelagem em geral, o fazer é semelhante, mas que difere quando é atribuído a esse fazer um pensamento artístico. É como o mictório de Duchamp que será sempre diferente dos outros mictórios, embora continue sendo o mesmo objeto. Foi inserido no contexto artístico por meio de uma questão que atravessou a própria noção de sistema da arte reconhecida por ele (O que é arte?, perguntava Duchamp), atribuindo ao objeto (ou inserindo nele) esse pensamento artístico como manifestação de uma ideia.

O trabalho do fazer, de tornar real a vontade, evoca o gesto e também evidencia o pensamento criador, a essência da obra; evidência que vem de uma quase exclusão da própria obra em si dando lugar a uma abrangência de um total, que abriga o processo do fazer, que por sua vez é revelador do originário da obra. Mas essa quase exclusão vem do reconhecimento

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BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II – Rua de mão única, p. 280.

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de aspectos da obra em seu processo originário; vidente, do latim videns entis, é aquele que vê o (que está des-coberto). Aquele que vê no processo, no originário, a origem. Trabalhos como o da tecelagem são constituídos primeiramente por uma repetição, tanto das linhas que estruturam o tecido num tear quanto do próprio fio guia que construirá esse tecido. Sobre a experiência da repetição, o contato com o originário se torna maior, já que o desgaste visual ou automatismo gerado pela ação de um mesmo gesto nos leva a esse esvaziamento da forma, no sentido que não é ela que nos guia no processo, mas o fazer em si:

“Ela (a repetição) implica o desejo ou a pulsão do fazer. Se pensarmos que essa experiência pode suspender pouco a pouco, o modo de existência e de consciência que se instituiu no nosso fazer artístico, podemos então afirmar que o que se encadeia é o trabalho da repetição que nos leva a uma percepção de uma realidade bem mais ampla. O caminho do abandono ao trabalho conduz a uma experiência com o originário (...)”.8

A arte, ou pelo menos a palavra Arte, não se refere apenas ao fazer, mas ao saber fazer. Fala de um conhecimento, e conhecer é “morar no assunto”9 . Junto à técnica é preciso um conhecimento profundo de algo que algumas vezes não se sabe ou está escondido, mas será mostrado pela abertura da imagem, do que é produzido. O que se revela, para o artista, pode não estar na obra, mas no seu processo originário. Entretanto, ao ver o conjunto de obras como um processo de desenvolvimento do trabalho, o artista capta traços desse originário. É preciso lembrar que parte do “nosso conhecimento se orienta pelo ver”10 , pois ele surge da ideia e a ideia só pode ser vista, visualizada, como nas palavras de Heidegger – e a ideia seria

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FRANCA, Patricia. Uma repetição pode esconder uma outra?, p. 54. HEIDEGGER, Ser e Verdade, p. 243. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte, p. 163.

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aqui o conhecimento que precede o fazer, precedência que não hierarquiza, mas é apenas mais uma forma de impulsionar a ação no intelecto ou espírito. Nesse lugar de artista que vê a própria obra e o próprio desenvolvimento, elejo a Vontade como aquilo que me move a criar, o impulso ou conhecimento inicial de uma ideia que não é objeto, mas a própria ação – a ideia da ação de tecer. Vontade está diretamente ligada ao fazer. E é na tecelagem que encontro idealização desse fazer, que é acolhido pela prática artística, um fazer que corresponde a meu modo de pensar e sentir.

1.2 DA IMAGEM Assim como o corpo, a imagem é construída através de camadas. Isso significa que para se realizar uma ideia é preciso encontrar os meios de trazê-la para o real, materializá-la. A vontade que se tornará imagem é então depurada pela experimentação de possibilidades, e dessa forma, passa pelo processo de experimentação de camadas onde a origem ou essência pode se manifestar ou não, num jogo de velar e revelar11. O corpo também é composto de camadas, cada uma com uma função e também protetora de sua anterior, sendo nossa última camada, a pele, entendida como ideal para as relações com o mundo exterior. Nossas camadas interiores, até mesmo chegando à camada etérea do espírito ou alma, não podem ser vistas

11 Numa nota de Schopenhauer sobre a manifestação da essência: “Jacob Böhm, em seu livro De Signatura Rerum, cap 1, parágrafo 15, 16 e 17, afirma: “E não há coisa na natureza que não revele a sua figura interna também externamente, pois o interior sempre opera em direção à revelação. Toda coisa possui sua boca para a revelação, e esta é a linguagem da natureza, em que toda coisa fala a partir de suas propriedades, sempre revelando e apresentando a si mesma. Pois toda coisa revela sua mãe, que fornece a essência e a vontade à configuração. ””

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a princípio, inclusive por nós mesmos. É pela observação do outro que temos consciência de nosso interior. E é pela vivência que ativamos o espírito, nossa essência, a origem velada, mas que está contida em nós. Assim como no texto de Heidegger , a verdade está velada na obra12. É necessário que existamos, então, por intermédio da última camada, a da aparência13. A imagem, como aparência, é dada a ver, é pela visão que a imagem atinge primeiramente nosso interior e nos afeta. “A visão é como uma operação de pensamento para o espírito” 14.

De certa forma, os fatos da vida e mesmo as imagens vivenciadas só existem num instante presente, depois passam a sobreviver apenas na memória. Como lampejos, as imagens se reconstroem na memória e dão à experiência um lugar de sutileza e luz. Georges Didi-Huberman usa a figura do vaga-lume para associar ao aparecimento da imagem, uma luz que brilha na escuridão, e por vezes se apaga: “Ora, a imagem não é horizonte. A imagem nos oferece algo próximo a lampejos (lucciole), o horizonte nos promete a grande luz (luce)” 15. A imagem tem essa aparência iluminadora, um guia ao nosso próprio interior – aquele que não podemos ver, mas somos capazes de enxergar seus rastros luminosos com nossos pensamentos e sensibilidade. A aparência luminosa da imagem nos revela que seu interior não é diferente de seu exterior, suas camadas são todas feitas de luz (como o ser cebola de que Didi-Huberman fala em “Ser Crânio”, uma figura em que todas as suas camadas são idênticas, “a camada exterior é a muda de seu interior.”)16.

O que é uma imagem-luz? A palavra ideia em sua raiz grega diz vid, e em latim, videre, ver. 12 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. p. 159. 13 A imagem é, antes de qualquer coisa, uma aparência. É algo que aparece no mundo e dessa forma será visto. A ideia de aparência muitas vezes nos remete a uma ilusão, algo que engana, ou que é superficial no sentido de não possuir um conteúdo. Mas a aparência é o único meio da matéria existir no que chamamos de “real”, e dessa forma ser apreendida pelos nossos sentidos. Hannah Arendt problematiza no primeiro capítulo de seu livro A vida do espírito as questões da Aparência. 14 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. p.20. 15 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-lumes, p. 85. 16 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ser Crânio, p. 25.

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A ideia é aquilo que é visualizado na visão, ou seja, o perfil que as coisas oferecem à visão. Ver é, entretanto, um termo ampliado, pois a visão em si, desligada dos outros sentidos, é capaz de perceber apenas cor e claridade. É com o conjunto dos sentidos que se forma a percepção das coisas, a visão. A claridade ou luz é aquilo que, na visão, possibilita “se ter a experiência do visível, do animado e inanimado”17 . A luz é uma imagem que simboliza a ideia. A claridade é a condição para se poder ver algo. Logo, a primeira coisa que percebemos na visão é a luz, a claridade (ou o escuro, a impossibilidade, o bloqueio do ver). A luz permite a passagem do olhar, é transparente e penetrante, num sentido originário, pois é o que confere às coisas sua transparência própria18. A imagem-luz retoma sua essência por meio dessa transparência, desse atravessamento do olhar que só tem passagem por meio da luz. A imagem é, portanto, sempre uma passagem para o olhar atravessar. A imagem também me atravessa e no momento em que faz isso, ela entra e sai de mim. Torno-me uma espécie de caminho ou passagem, e também um filtro. Retenho da imagem aquilo que nela me dá a passagem – a luz, a transparência – o atravessamento dela que trilharei. Porém, o que em mim permanece da imagem, se solidifica, torna-se parte da minha estrutura. Contenho em mim todas as imagens que já vi e que por meio de minha visão, me atravessaram em todos os meus sentidos.

O tecido enquanto imagem não é mais objeto, coisa. Sem o lugar de coisa, resta ser materialidade misturada a uma significação, sendo a matéria um dado sensível e o signo uma forma ou racionalização desse sensível. Para Descartes, a imagem é um dado corporal: “a imagem é uma ideia que a alma forma por ocasião de uma afecção do corpo”. No fim de seu texto A imaginação, Sartre, que durante o livro problematizou a pesquisa da imagem, conclui que a imagem é um ato e não uma coisa. É um tipo de consciência19. Encarnada no corpo, uma

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HEIDEGGER, Ser e Verdade, p. 159. Os objetos transparentes são aqueles que se deixam atravessar pela luz, ex.: vidro. SARTRE, A imaginação, p. 120.

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ação-imagem contamina a outra. Portanto, a imagem que aparece sob nossa visão por meio de uma aparência de luz, que nem sempre se acenderá para nosso espírito, manifesta sua essência no momento em que conseguimos reconhecer nela sua existência enquanto imagem-obra, a partir do momento em que nela encontramos a passagem para o olhar. E a imagem que se

Série “Onde cabe o corpo”, 2010.

produz parte de estímulos físicos e psíquicos, e tem seu nascimento quando esses estímulos se condensam e encontram um meio de se realizar.

A imagem tecida tem a aparência de trama. A ideia da trama se configura como representante de diferentes realidades que se assemelham à materialidade da memória, nebulosa, impalpável, mas de grande força, como linhas contínuas que se entrelaçam e se sobrepõem, formando o tecido. A própria palavra trama também se remete à uma ficção ou construção no seu significado de enredo, de um emaranhado de acontecimentos. Bachelard, em seu livro “A Poética do Espaço”, diz que as matérias terrestres excitam em nós a vontade de trabalhá-las. Lembro-me, inevitavelmente, da argila, da modelagem, da matéria que

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sustenta a forma. Associo esse pensamento também ao ato de tecer, de sustentar formas criadas através dos movimentos rítmicos das mãos que guiam a linha. Na plasticidade parece haver um dinamismo do movimento criador, o que me faz referência à dinâmica do tecer. A imagem luz revela a impalpabilidade do real, o disfarce da solidez que nos engana, pois todo sólido é produto da constante agitação das moléculas. Assim, o real transforma-se de acordo com nossos movimentos, já que ele mesmo também é um movimento sobre nós. Na experiência com a tecelagem comecei a perceber o processo criador da obra, a construção da imagem através do tecido, as questões que um suporte bidimensional que faria parte da sua constituição, implicam, sendo essa experiência essencial para compreender a estrutura, os elementos de uma composição de forma prática. Esses elementos – o desenho, a linha, a urdidura, o tear, o gesto, o pensamento – são camadas construtoras da imagem. No processo de tecer, é como se fosse possível tocar a estrutura óssea, o cerne do ser-obra. A imagem do tecido me atravessou porque pude tocá-la em sua estrutura interior (a urdidura, o esqueleto de linhas que recebe a trama). Essa passagem física me oferece uma ação. É nesse sentido que compreendo o originário como o lugar do fazer.

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2 A IMAGEM SILENCIOSA

Dinâmica do desenho

Comecei a tecer sendo muito atraída por essa ação que era completamente nova para mim. Entretanto, os tecidos não me satisfaziam, não se bastavam apenas enquanto tecidos. As formas eram simples e fechadas em si, como algo que está pronto e duro, não possui uma abertura para o olhar recriar, refazer o objeto visto. O fazer, a experiência de tecer, também se perdia, pois a linha transformada pelo tecer desaparecia para dar lugar à forma tecida. Experimentei então desenhar os tecidos.

Primitivo, diz Gombrich, quer dizer aquilo que emerge junto com o homem. Tecer é uma das ações mais antigas, datada do período Neolítico, onde formas complexas de tear foram desenvolvidas usando galhos e fibras. É um dos exemplos usados por Leroi-Gourhan20 para mostrar como o homem desenvolve a motricidade e adquire a libertação dos dedos, pois cada fio da urdidura é puxado individualmente, e sua mão deixa de ser usada como ferramenta para se tornar manipuladora destas. Primeiramente, foram confeccionados cestos para depois, com materiais menos rústicos, fazerem suas próprias roupas. Outro dado interessante é que a evolução da tecelagem ocorre tardiamente. Ela deixa de ser manual apenas no século XIX, e mesmo assim passa a ser usado o sistema de cartões, que ainda precisa da mão para movê-

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LEROI-GOURHAN, O Gesto e a Palavra, vol.2.

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los, até chegar a um sistema completamente industrializado. A tecelagem era um trabalho designado à mulher, transmitido pelas gerações. Simbolicamente, o próprio ato de tecer também é associado ao gênero feminino, pois representa a criação, geração e regência do destino. É um criar que faz sair da substância da tecelã, como faz a aranha que tira de dentro de si mesma a sua teia21. Isso nos lembra da imagem que vem da vontade, a ação que move o corpo de acordo com os desejos. Todos nós somos subitamente capturados por pequenos desejos, lampejos que afetam nossos sentidos a fim de reavivá-los. O fio é um símbolo do tempo linear, do tempo de vida de cada ser humano, ou de uma trajetória contínua. Talvez por isso, a tapeçaria tenha sido usada pelos povos, principalmente os orientais, na Idade Média, como instrumento de ficção, uma crônica pictórica22, usada para contar histórias de batalhas e reinos, pela questão da gestação de um destino.

Aqui é importante retomar a questão da imagem da luz, tratada no capítulo anterior, pensando na experiência. No livro “Sobrevivência dos Vagalumes”, Didi-Huberman traz a aparição dos pirilampos como a experiência que se perde no tempo, que é esquecida ou destruída. Da mesma forma, Walter Benjamin em seu texto “Experiência e Pobreza”, fala dessa mesma destruição de uma experiência, da miséria que o homem encontra ao se deixar ser sobreposto pela técnica, algo que o impede de partir para frente. Mas, assim como DidiHuberman, Benjamin acredita numa sobrevivência, num lampejo incerto e rápido daquilo que parecia estar perdido: “Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças”.23 Na sobrevivência há também uma permanência, ou como diz Sartre, a imagem é uma revivescência, pois tudo

21 22 23

Dicionário de Símbolos, p. 640. GOMBRICH, História da Arte, p. 61. BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas, vol 1, p. 118.

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que é sobrevivente emerge das ruínas ou caos, e é visto, reconhecido, declarado vivo. E todo sobrevivente é como um ser renascido.

Linhas são sempre dinâmicas, são maleáveis. Estão à espera de uma forma. Na verdade, sua forma de linha é transmutável. O fazer da tecelagem tem por característica fundamental a repetição do gesto, a insistência naquilo que se acredita e se experimenta. É um trabalho silencioso, de espera e intimismo, que revela um contato com a essência das coisas, com a construção da imagem, com as pequenas estruturas ritmadas que fazem surgir o mundo. Pensando assim, o tecer se efetiva como um trabalho, trabalho do cotidiano que repete o gesto até que se conclua a ação, é como uma proposta de experiência que emerge da própria história, o ser renascido que sobrevive à essa história, e que se reinventa a partir de experiências complementares, como no caso do tecido que é desenhado.

Partindo então de uma transição entre o desenho e o tecido, o tecido adquire o pensamento organizador do desenho e o desenho se constitui de uma trama que entrelaça os gestos do corpo. Confeccionei pequenas peças de crochê circulares e volumosas, que seriam representadas (ou traduzidas) pelo desenho. A atividade de tecer era a ação motivadora do criar, mas os resultados conseguidos no desenho sobre papel fizeram existir a necessidade do desenho, transcrever o que era observado como uma experiência complementar à própria experiência do tecer; a minuciosa observação e interpretação dos pontos, a compreensão dos aspectos formais do tecido. Também a observação da sutileza das formas que surgiam da variação dos movimentos da agulha, da mão.

O desenho traz ao tecido diversas condições de mudança, uma mudança do tecido enquanto forma e enquanto matéria. Sendo uma representação, o desenho tem aparência

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mais velada, pois recobre a matéria do tecido com uma pele de plasticidade – a trama que constitui o corpo do tecido é modelada pelo desenho. Mas esse velamento possui o duplo sentido de velar a essência e ao mesmo tempo revelar sua existência, já que, como vimos, é pela aparência que algo existe no real. O desenho é um traço incisivo sobre o suporte, algo muito próximo de nossos sentidos e gestos intuitivos, o que também se aproxima da experiência de tecer a linha, moldar a matéria, e acrescenta a essa prática uma certa racionalidade, um plano de execução para a ideia, característica do pensamento do desenho, que é organizador dos elementos de uma composição ao lidar com o espaço do papel.

“Dois”, díptico de desenho, 2010.

Nos primeiros desenhos, os objetos tecidos que eram volumosos começaram a ser planificados, até chegar a desenhos de formas circulares completamente planas. Os círculos eram desenhados usando a variação gráfica dos pontos de tecelagem, gradação tonal e centralização no papel. A investigação de como representar os pontos, do gesto de riscar paralelo ao gesto de tecer, se tornou um exercício maior do que a preocupação com a forma

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sempre circular e centralizada, mas que mantive, pois a associação dos desenhos circulares às mandalas era o apontamento de questões da espiritualidade, que refletia uma situação de autoconhecimento através da prática/processo artístico, o que me levou a sempre pensar na arte como um lugar de proposição de experiências para o artista. Dessa forma, compreender a arte é também compreender o mundo, ou uma pequena parte da interpretação de alguém que, propondo uma produção artística ou uma experiência nesse lugar, traz questões que não são apenas formais da arte, mas do mundo em que vivemos, do crescimento do ser humano e seu próprio reconhecimento como ser vivente, criador e transformador. Contemplar significa também juntar-se ao acontecimento. Contemplar uma obra é conhecer uma história – da arte e do próprio mundo – e reconhecer-se como parte dela: “Basta que eu veja alguma coisa para saber juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se produz na máquina nervosa”.24 É o que torna a arte, para o artista, uma via de assimilação do mundo.

Descontínuo, 2011

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MERLEAU-PONTY, op. cit., p. 16.

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Percebo um mergulho no gesto da tecelagem, e na hora de emergir, é pela prática do desenho que chego à superfície – a uma superfície plana, um mar raso, de onde posso ver de cima o emaranhado de linhas que criei e de lá retirar imagens, os pontos de luz que vêm da experiência de tecer.

O desenho começou a habitar o tecido, ver a trama era como ver um desenho. Com esse desenho estabelecido não mais como desenho de observação, mas um desenho criador de si mesmo, e explorando as possibilidades que me eram oferecidas por essa prática, diferente da tecelagem, propus-me a tratar de questões formais desse tecido desenhado e a repensar sua construção. Utilizando grafismos vindos de uma pesquisa realizada com a observação de roupas tricotadas, houve uma desconstrução da representação do círculo, o que sugeriu uma ideia de movimento, fluxo no desenho, mas um fluxo descontínuo de partes que podem se encaixar ou não. O gesto era um indicador para esse fluxo, a cor se instituiu ainda de forma monocromática. Não era intenção representar apenas a plasticidade do/no visível, mas antes de tudo daquilo que é sensível, a textura do tecido, ou a própria sensação de fugacidade do fluxo temporal, por exemplo, ou deveria dizer a fugacidade da sensação – o tempo que passa e não sentimos passar.

Um ritmo pode gerar uma descontinuidade. A repetição rítmica de elementos pode gerar uma outra forma, como acontece com os desenhos, a repetição dos pontos e as diferentes formas de tecido que são criadas. O tecido desenhado tem um ritmo descontínuo, sua intenção não é construir um tecido, mas um desenho. Um desenho que quase não se encaixa, que não quer se encaixar. Ele precisa do espaço de quebra e de, sobretudo, “caminhar” pelo papel.

A observação dos pontos e a preocupação com uma estética ritmada pela variação dos

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mesmos foram abandonadas, deram lugar a uma pulsão do gesto, a ação de desenhar quase em sua forma pura – o risco. A repetição era exaltada evocando a gestualidade, a ação do fazer.

Dessa forma, volto a tecer. Falei de repetição, gestualidade, fazer, pulsão. São palavras que sempre designei ao que a tecelagem me provocava: uma vontade quase inexplicável e que só poderia se tornar dizível por meio de palavras que acionassem de imediato os sentidos. O desenho me levou de volta ao tecido. Ora, desde o início eu desenhava um tecido, nada mais natural do que voltar a vê-lo, mesmo que não fosse para desenhá-lo.

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3 A IMAGEM INVISÍVEL

Nesse trajeto de estabelecer relações entre o ato de tecer e o de desenhar, desenvolvo, como já disse anteriormente, uma extensão da tecelagem, assim como a tecelagem funciona ou abre espaço para uma extensão do desenho. Essa tensão entre as práticas é regida pelas questões provenientes do idealizar e do realizar.

Através da técnica de macramê, foi realizado um trabalho com o próprio tecido, sem mais a necessidade do desenho como instrumento de representação. O trabalho se deu pela experimentação na procura de teares usando objetos onde se era possível estender uma linha e começar a tecer. Essa linha estendida cria uma tensão que relaxa ao longo do processo, por consequência do peso do tecido ou do próprio movimento do tecer. O macramê é uma técnica de tecelagem que constrói formas geométricas usando apenas nós. Esses nós, que mostram estrutura de uma composição, sugerem a ideia de uma construção. Fernando Pessoa em “Mensagem”, diz num verso que todo começo é involuntário. Todo começo que parte de uma vontade é involuntário, se consideramos que a vontade, o desejo, nem sempre é claro, mas desperta para uma ação que precisa ser realizada efetivamente para satisfação. O começo involuntário da vontade é, então, uma operação construtora. Implica a realização; sentir vontade é sentir necessidade de se realizar algo, enquanto o desejo, realizado ou não, existe com mais força no plano ideal. Usar a linha ao invés de transcrevê-la no desenho como foi feito, é resultado de uma necessidade dessa realização plena do fazer que direciona minha prática.

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Mas o desenho não é somente o objeto bidimensional, é também, como já foi dito, o modo de operar a construção da imagem, organização, assimilação do próprio mundo. Logo, ele passa a se instituir nessa prática como o próprio tecido, que se tornou uma inscrição nos objetos/ corpos. O corpo que é tratado como lugar de ação, corpo que era agente, agora é parte da manifestação de uma ideia no mundo. Seguindo a coluna vertebral, estrutura e sustentação do ser, que o mantém de pé e também protege órgãos, a peça de macramê revela a estrutura do tecido, a fragilidade que é constituída, porém, de vários nós firmes, que se impõem. Dá continuidade ao corpo, corpo fechado que também é baú, trancado pelo tear estendido nele. Revela que o tecido é constituído de linhas finas, contínuas, finitas. Enroladas em si mesmas, são suspensas ainda pelo corpo, que revela seus pés (o pé do tecido e os pés do corpo). Com as linhas soltas, o tecido pode crescer, pode se estender com o mesmo desenho estrutural, quase arquitetônico, pois a arquitetura nunca representa nada, além da ideia de si mesma. Esse tecido é sempre ele mesmo, sempre se contém no que é essencialmente, desviado de sua função de proteção corporal para constituir parte do corpo ou ser associado a ele, sendo tratado como um outro corpo que é construído pelo fazer assim como nós que nos construímos com nossas experiências com o mundo. Esses três trabalhos descritos foram prolongados em uma série fotográfica, uma pesquisa de possíveis teares, que partiu da imagem que fotografei de uma cadeira com um fio estendido para tecer em minha casa.

Lugar de tecer, nome dado à pesquisa, fala das relações da feitura do tecido, uma ação realizada num espaço, num objeto que ocupa esse espaço e de um sujeito que é agente. Aqui há um índice para o fazer, mas não como uma sugestão – por exemplo, um tear com linhas prontas para serem tecidas, sugerindo ao observador que uma ação pode ser realizada ali -, ao mesmo tempo em que o tecido não é um objeto em si como o desenho que representava um tecido feito, pronto. A fotografia é o instrumento que registra a ação na sua forma mais simples,

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de documentação, um arquivamento. É pela fotografia que o tecido se torna uma inscrição, quase um desenho, pois também não representa a ação em si, é apenas um vestígio da ação terminada, que sempre se refaz na repetição gerada pela sequência de fotos, que revelam a constante busca dos possíveis teares. A foto é o registro dessa busca, e não do tecer em si.

A fotografia usada apenas como registro esteve presente em obras como as de Land Art, pelo fato de que os lugares interferidos ou construídos eram inacessíveis, ou a obra só podia ser vista de determinado ângulo. Essa última situação mostra que apesar de ser registro, a foto também está relacionada a determinadas características do trabalho ou começa a funcionar como a própria obra. A obra inicialmente não era a fotografia, mas apenas através dela se tornou acessível. A partir disso, os trabalhos começaram a se tornar cada vez mais “fotográficos”, o

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registro não era do processo, mas uma imagem da obra (uma outra imagem da imagem). Os primeiros trabalhos de registro da pesquisa dos teares começaram a funcionar mais do que o próprio objeto instalado no espaço, e ao longo das experimentações, a fotografia ofereceu à imagem a ser registrada, características próprias do instrumento – da inscrição da luz, da sensibilidade do filme.

O tecido inscrito no corpo ganha com a fotografia a imagem de um tecido-corpo e um tecido-objeto, diferente do desenho que era um tecido de forma estranha e que se tornou

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disforme (descontínuo). Isso acontece ao observarmos que a série de fotos apresenta três grupos de características da imagem fotografada: Os objetos, o corpo e o espaço. Esses três grupos têm a mesma raiz e funcionam como expansões da pesquisa, eles dialogam entre si de forma não linear, a troca é simultânea, mas cada um traz um apontamento especial, o que faz com que a divisão de grupos torne mais fácil a compreensão dos trabalhos e de como a fotografia interfere no lugar de suporte dessa imagem, re-significando-a.

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O grupo dos objetos foi o primeiro a ser realizado. Começou com a experiência com a cadeira, e a partir daí outros objetos foram incorporados como tear. Esses objetos-tear funcionam sozinhos, não necessitam do corpo, pois já possuem em si o índice do movimento corporal (o tecido) e têm na fotografia apenas o registro de sua imagem. E aqui é necessário ver todo o conjunto das fotos, pois cada objeto fotografado possui uma implicação particular: a cadeira, por exemplo, traz em si a ideia de ausência/presença do corpo por si só, pela própria funcionalidade do objeto, reforçando a ideia do tear ou de que o corpo pode habitar e agir ali; é necessário ver o conjunto de imagens exatamente como um conjunto, criando a relação de uma sequência quase automática de fotos assim como foi o desenvolvimento quase serial dos desenhos, seguindo a experiência do desenhar até se chegar a uma representação onde a

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relação tecido-desenho pudesse se complementar, o exercício da repetição tornou o desenho um composto de séries de papéis e séries de tramas a se juntarem, assim como a série de objetos fotografados possibilitou outras experiências, tratadas nos próximos grupos de imagem.

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O segundo grupo traz a mesma ação do primeiro. O grupo do corpo explora o corpo como tear. A fotografia aqui opera mais do que como registro, é a imagem-obra. Aqui se inicia o pensamento da fotografia enquanto imagem da imagem, proveniente das relações do tecido com o corpo, a observação das semelhanças corporais de cada estrutura ou do próprio funcionamento do corpo como tear. O vestígio do gesto e do caráter quase processual sugerido pela procura dos objetos é substituído por uma imagem de construção, estrutural do corpo/tecido. A ação não é mais do corpo sobre o tecido, mas inversamente, do tecido sobre o corpo, trazendo a relação corpo-objeto:

“Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo ao seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo.”25

No último grupo, nomeado aqui de espaço, a imagem é a fotografia, e não a imagem fotografada. Isso quer dizer que o produto da inscrição da luz sobre o filme revelado é que é a obra, e não a imagem criada ou encenada para ser fotografada. As especificidades da matéria fotográfica é que valem como obra, as interferências que essas especificidades realizam sobre a imagem a ser inscrita no processo fotográfico é que serão o resultado da ação. Dessa forma se realiza também a integração entre o corpo e o tecido, como se a ação estivesse realmente encarnada no corpo – já que a ação é um movimento corporal – e o produto dessa ação é vista como una ao ser, é aquilo que sai dele. O corpo também se integra ao espaço, à primeira vista as coisas se confundem – a pele e a parede, o tecido e a roupa. A ascendência

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MERLEAU-PONTY, op cit, p. 34.

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das mãos se direciona à luz que vem de cima e apaga as marcas do muro, gradativamente.

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Entendo a fotografia, à primeira vista, como o registro de um instante que não pode ser vivido no presente, é uma imagem criada num presente para que seja vista num momento posterior. Dessa forma, é sempre uma imagem que atravessa a temporalidade, que sobrevive.

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Como sobrevivente, é o único vestígio material da memória, uma extensão de nosso pensamento e experiência vivida. Althusser “considerava que ver na realidade e rever na memória eram da mesma ordem, e que rever na memória e ver em fotos eram a mesma coisa (...).” 26 A foto, então, funciona como extensão da memória ao mesmo tempo em que a reconstrói, pois a memória é falha e encontra na fotografia vestígios das imagens que perdeu. Mas como ver na memória é ver um real que é reinventado, a fotografia então opera como registro de um real construído. Entretanto, esse real construído não se limita apenas a uma ficção da própria realidade, mas num sentido mais essencial, a fotografia é um registro de algo realizado, de um possível. A ficção, embora exista no real e faça parte de sua própria constituição, nem sempre se realiza, dado que o real é aquilo que existe no mundo, ou seja, o visível e o invisível, aquilo em que se pode acreditar, e se manifesta ou não. Tanto a existência compartilhada, que chamamos de verdade, quanto a existência gerada pela subjetividade do ser (os pensamentos, os sonhos, as fantasias) compõem o real/mundo. Acredito que na fotografia um fragmento verdadeiro exista, e coexista com sua ficção de nunca ser também algo realizável novamente. O tempo é na verdade algo que construímos constantemente, posso compreender isso lembrando que o passado só existe no momento presente enquanto uma ficção, pois é reconstruído pela memória e seus dados imediatos apreendidos em cada experiência. Nesse sentido, me pergunto: Porque uso da fotografia nesse momento?

Roland Barthes, na “Câmara Clara”, fala dessa fotografia que é um fragmento do real e captura acasos; que não é um signo, mas a coisa mesma. Ao mesmo tempo, também não é a coisa em si, pois se trata de uma morte. É sempre aquilo que foi, e não aquilo que não é mais. Sobrevivendo no futuro, ela é aquilo que “repetirá” uma ação no tempo – daquilo que foi, no futuro, já sabemos seu destino. Mas não podemos chamá-lo de vir-a-ser, pois

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ALTHUSSER apud Soulages, p. 27

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ela (a fotografia) está presa em seu próprio tempo. É o duplo terreno do que aconteceu e da atualidade, como diz Dominique Baqué em seu livro La Fotografía Plástica.

A fotografia como registro de um possível abre caminho para essa plasticidade. Segundo Dominique Baqué, a fotografia plástica é uma fotografia que vai “contra a fugacidade do instante significante”. Nela, o tempo é suspenso, e essa suspensão dos elementos – já que tudo está sujeito ao tempo – torna a imagem muda. E no silêncio reside uma grande força.

Ao se referir ao silêncio, ela pergunta: “É a força das coisas?” Penso que o silêncio está associado a uma meditação de construção, de criação. Um trabalho silencioso é sempre feito com dedicação e concentração, ele se atém a si mesmo. Talvez possamos pensar também no contrário: Uma imagem marcante que deixa a nós, observadores, mudos. Nossa mudez diante de certas imagens é o que revela seu valor para nós. E isso não quer dizer que a imagem é que é muda: o que se silencia é porque extrapola os limites da linguagem, está vivo no plano do sensível. O silêncio é também símbolo do precedente de toda criação. Eis um possível contato com o originário, o que nos lembra dos infra-mince de Duchamp, uma fugaz revelação que é apreendida exatamente no momento em que é capturada pela nossa percepção, ainda que a captura possa ser da fugacidade e não da sensação em si. Heidegger em “Ser e Verdade”, diz que o calar é “um modo determinado, uma maneira distinta e especial de poder falar. É o que se mostra já no fato de muitas vezes, o silêncio poder dizer coisas muito mais determinadas e precisas do que a fala mais prolixa”. 27

O tecido é silencioso, uma imagem construída por uma atenção, por um tempo dedicado à tarefa de tecer, de repetir os gestos. O tecer fala de uma ação quase matemática, da

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HEIDEGGER, Ser e Verdade, p. 121.

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geometria construtiva, quase paralela à geometria fotográfica: constrói o objeto num tear, o tecido no corpo, e finalmente a imagem. A fotografia, porém, não dedica sua atenção exclusivamente ao tecido, dá a mesma proporção de imagem a todos os outros elementos que estão na composição. Seria quase uma imagem homogênea, uma superfície que planificou a tudo de forma igual. O tempo está suspenso, não tem importância alguma aqui – a fotografia foi usada inicialmente como registro, mas trouxe a construção de uma nova imagem do tecido sob três pontos de vista. Penso que o maior vestígio da fotografia seja o do próprio sujeito que fotografa, que realiza o encontro dos elementos da foto (o objeto e o tecido, além do espaço e tempo escolhidos). A própria fotografia só é resistente ao tempo quando deslocada de sua contemporaneidade. Enquanto fato presente, ela resistirá à própria impermanência da ação – se o que vejo na foto ainda posso ver no real, não há nada nela que me fará desacreditar de sua informação, mesmo que essa informação seja falsa (pois saberei confirmar sua farsa). Deslocada de seu tempo e seu contexto é que dá margem às especulações quanto ao seu grau de realidade e “teatralidade”, fazendo-nos pensar que a foto é encenação ou mimese, quando na verdade a encenação fundamental é do autor que escolhe os elementos e a composição a ser feita. A fotografia não quer, de fato, apreender o tempo. O que se captura é uma imagem: a foto não é um real, mas uma imagem de uma imagem.

A imagem de uma imagem é talvez a resposta que procuro para a fotografia. A camada sobre a imagem real, velamento que cobre com um tecido fino – a película emulsionada sensível à luz -, e este tecido parece me afastar da imagem, cria uma barreira que me impede de tocá-la. A fotografia é uma inscrição da luz, e o tempo todo falei de uma imagem luz, que abre caminho para o ver. Pensar o que é a fotografia é uma tentativa minha de compreender o que minha imagem me diz, descobrir o que ela me oferece que pode corresponder àquilo que penso ou sinto. A imagem invisível é a imagem que não me abre caminho, que não me deixa ver no

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sentido de usar todos os meus sentidos para apreendê-la. A imagem invisível da fotografia é aquela que esconde mais do que mostra: esconde o gesto, pois o tecido está pronto, esconde meu envolvimento escultórico com o objeto/corpo, pois seu resultado é bidimensional, e esconde minha própria autoria quando vejo nela minha impotência ou impossibilidade diante de sua solidez enquanto imagem – sua planificação que nunca poderei alterar, a inscrição da luz sobre o filme que altera aquilo que vejo antes de fotografar. Volto aqui a Barthes na “Câmara Clara”, que descreve o retrato de sua mãe como referencial para outras imagens, pois ele não consegue encontrá-la nas fotografias que vê. Aquela imagem não é a da sua mãe, ele não a reconhece até se deter a detalhes como a claridade nos seus olhos e sua feição, ou mesmo os objetos que ela gostava, até que parece encontrá-la na fotografia do Jardim de Inverno, uma foto de sua infância, onde todos esses fragmentos se reuniram. Antes, falei que a escuridão, a ausência de luz, é um fator que impossibilita-nos de ver, mas o é também a luz que ofusca, que é clarão, não dá passagem ao olho. Eu não sou mais filtro diante da foto, ela é que me filtra e retém de mim minha rigidez.

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4 A IMAGEM ENCARNADA

Rede (trabalho em processo), 2011/2012

Várias linhas vermelhas são amarradas e estendidas de um ponto a outro. Para tecer uma rede é preciso pensar na força da matéria, na linha firme, na técnica que suportará o peso de um corpo. O algodão é um material que cede ao longo do tempo. Durante o processo, as linhas

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começam a ceder, a cair, as medidas mudam. A rede possui três pontas, para que cubra o corpo, quase um fechamento ou refúgio. O corpo ainda não habitou a rede, mas o outro corpo, aquele

Rede (desenho de projeto), 2011

que tece, já modifica a sua estrutura. Quando terminada, e enfim alguém se deitar sobre ela, modificará mais uma vez. A mistura dos vermelhos lembra algo vivo, uma matéria orgânica. Mas também a acolhida de uma sensação marcante, um sentimento de envolvimento.

Essa imagem descrita acima é talvez a maior experiência que tive com a tecelagem durante o período em que estudei a disciplina de artes da fibra, ou mesmo no ateliê de desenho. Não apenas pela sua dimensão física – a linha estendida possuía inicialmente três metros de largura -, mas por se tratar de um trabalho corporal destinado ao corpo, e que também se situava no espaço. Meu envolvimento com a feitura do trabalho também foi intenso, a rede ocupava quase todo o ateliê de fibras e eu a tecia no interior de sua estrutura triangular, um trabalho que começaria da base do triângulo e se reduziria aos poucos até chegar à ponta final. Uma imagem é uma ação... Ação de tecer é a ação de transformar a matéria, e nesse trabalho da rede, assim como o das pedras brancas cobertas com tecido de crochê, realizado em 2011,

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uma contenção de corpos está presente, dando um início à evidência da relação do tecido com o corpo.

Aqui também caberia falar do trabalho de fotografias de Lugar de Tecer e mesmo dos desenhos que iniciaram a prática, sob o ponto de vista do envolvimento do corpo com o tecido. Nos capítulos anteriores foi discutido como a tecelagem encontrou uma extensão prática no desenho e na fotografia, e especialmente nesses últimos trabalhos fotográficos, o tecido é parte do corpo, ou o corpo é parte do tecido, uma construção recíproca. Tanto no desenho,

Rede (trabalho em processo), 2011/2012

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Rede (trabalho em processo), 2011/2012

Pedras, 2011.

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que a experiência do gesto de reconstruir o tecido por meio de uma linguagem que não o reproduziria necessariamente como é no real, quanto na fotografia, que o real reconstrói o tecido a partir de uma ficção realizada de um tecido-corpo, o trabalho dessas representações vem de um tecer escultórico, sendo que a ação terminou sempre, nesse caso dos desenhos e das fotografias, com uma transcrição da experiência de modelagem da linha em um suporte bidimensional.

Quero dizer que em todos os trabalhos, e talvez mais visivelmente na rede e suas linhas instaladas no espaço, a ação do corpo é o fio condutor das práticas e dos diálogos que surgem entre elas. Essa relação talvez fortaleça o vínculo entre o artista e a obra, que vem de um fazer essencial, ou pelo menos o torne mais evidente, pois não há referência, na natureza, por exemplo, para a construção desse tecido: ele parte da vontade de fazer, e é habitando o mundo que ocorre sua transformação, assim como a minha. Não há uma referência exterior, mas o próprio interior é a referência, pois somos uma constante transformação de nós mesmos. “O mundo real não é, mas se faz, sofre incessantes retoques, se suaviza, se enriquece (...)”.28 Pensando numa coisa que nunca é, que está sempre se transformando, minha produção é direcionada por uma questão de proposição de ação sobre a matéria, transformação da linha à imagem dessa transformação de meu ser e do mundo, que resultará numa imagem. A imagem, imagem tecida que foi discutida no capítulo 2, sofreu uma transformação ao longo do processo. O crochê que foi desenhado se transformou no tricô que desconstruiu o desenho, passando a seguir para experiências com o macramê que moldaram o tecido à imagem do corpo e do objeto, mas principalmente da ação de tecer como imagem-ação a ser (re)produzida pela fotografia. O macramê ainda se liberta da própria ação nos fios que se instalam no espaço sem uma trama de tecido, nos apontamentos que minha produção tem me levado. Fazendo esse percurso,

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SARTRE, op cit, p. 72.

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nota-se que o tecido foi perdendo sua forma constantemente, e em cada vínculo com outra linguagem, que foi essencialmente a causa de sua transformação, o tecido vai encontrando (experimentando) meios de se representar enquanto ação e não enquanto tecido apenas. No desenho, é uma ação que resulta numa forma tramada; na fotografia, ele é índice da ação, mas é também trans-formação do tecido a partir das conexões com o corpo e o espaço.

Os Abakanes, de Magdalena Abakanovicz.

A artista Magdalena Abakanovicz diz que a escultura testifica o sentido de realidade na evolução humana, além de expressar aquilo do Ser que não pode ser verbalizado. Desse modo, partindo de que a escultura dela representa seres humanos, temos a imagem do ser como instrumento de expressão, expressar sentimentos usando nossa própria imagem seria o limite, o mais próximo do que conseguiríamos do real ou de uma representação fiel à ideia/sensação. Além disso, seu trabalho traz o sentimento do humano com relação ao mundo que o rodeia. Suas esculturas são corpos incompletos, uma formação do ser ao mesmo tempo de uma teatralidade trágica de insuficiência ou perda por meio das experiências da vida. Magdalena nasceu em 1930 47 Dinamica do silêncio - TCC.indd 47

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na Polônia, e sua família sofreu grandes perdas durante a Guerra. Essa questões fariam parte de seu trabalho, mas eles carregam também um fascínio pela organicidade da natureza, nas suas primeiras obras em 1950 e 60, o que seria marcante e faria um contraponto com as feridas da guerra: um jogo de destruição e renascimento. O trabalho de Abakanovicz traz ao corpo a imagem de um sobrevivente às relações com o mundo e com os próprios homens. Seu corpo, degradado por essas relações, encontra ao mesmo tempo uma forma de se reconstruir a partir dessa extensão do mundo – corpo de fibras. Seu corpo-imagem é produto de uma ação impregnada de vivências, experiências. Seu contato com técnicas de artesanato veio das aulas que frequentou de desenho têxtil na Academia de Belas Artes de Varsóvia, o que a fez recuperar matérias flexíveis e fáceis de manipular: os tecidos e as fibras, especialmente o sisal.29 Dessas experiências, surgiu uma série de trabalhos denominados “Abakanes”, formas geométricas instaladas no espaço expositivo, feitas de sisal e tecidos tingidos pela artista. Algo de especial que aproxima minha prática do trabalho de Abakanovicz é um depoimento da artista sobre seus abakanes. Esses trabalhos lhe deram reconhecimento no início de sua carreira: “Me encantava a ideia de criar um objeto desde o princípio, desde sua armação exterior até sua estrutura definitiva.”30 Nessa frase a artista expressa um sentimento que também possuo em relação ao tecido, da consciência da formação da imagem desde a sua estrutura.

Nos anos 1960, através do feminismo que insurgia, as artistas mulheres começaram a recuperar esse tipo de material assim como as técnicas de artesanato, que eram diretamente relacionadas ao seu gênero, incorporando à arte esses materiais considerados até então nãoartísticos. Nessa mesma década, a arte se viu ampliada por novos meios e linguagens, como a performance, o vídeo e multimídias. Nesse contexto, a escultura também se amplia com

29 Sisal: s.m. Nome dado a uma planta e às fibras que essa planta produz. Com as fibras de sisal fabricam-se cordas, tapetes, cestas e outros objetos. O nome provém do antigo porto mexicano de Sisal, que exportava essa fibra. 30 ABAKANOVICZ, Magdalena. Catálogo IVAM.

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Desenhos de Magdalena Abakanovicz e Louise Bourgeois

experimentações, e além de Magdalena Abakanovicz, está situado nessa mesma linha de experiência, o trabalho de Eva Hesse, da Louise Bourgeois e da Anette Messager, que também trabalharam com a questão de transformar objetos e técnicas considerados femininos e domésticos, trazendo uma feminilidade quase exagerada e novas ampliações para a escultura (que encontra correspondência em ações como o desenho, instalação, fotografia, etc), transbordante à própria marginalização a que sempre foram referidos.

Em sua prática, a escultura é acompanhada por um desenho que carrega da mesma maneira a densidade das formas, especialmente das fibras, tecidos e costuras que a artista usa. Assim como os desenhos de Louise Bourgeois, que usam da repetição dos elementos criando também tramas que mais tarde se tornariam tecidos costurados, manipulando as listras para constituir o desenho.

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A imagem encarnada se configura de uma imagem-ação, onde o fazer é quase como um trabalho, o processo se dá pelo enriquecimento através da combinação de experiências, dando ao artista um amplo conhecimento sobre a matéria com que se trabalha. Sobre a partilha do sensível, Jacques Rancière diz: “As práticas artísticas são ‘maneiras de fazer’ que intervém na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade”.31 Da relação com o trabalho, este seria um encarceramento do indivíduo em sua ação que é única, mas o artista age duplamente, “o fazedor da mímesis confere ao princípio ‘privado’ do trabalho uma cena pública. Ele constitui uma cena do comum com o que deveria determinar o confinamento de cada um em seu lugar”.32 Ou seja, a arte desloca o trabalho de sua forma de visibilidade, cria novas relações entre o fazer e o ver. Transforma o pensamento (a ideia) numa experiência sensível.

31 32

RANCIÈRE, Partilha do sensível, p. 17 Idem, p. 64

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5 CLAREIRA “A alma não caminha em linha reta, nem cresce como o junco. A alma desabrocha, como um lótus de incontáveis pétalas.” Khalil Gibran

O originado é o que foi emanado, e o que foi emanado é aquilo que saiu de um corpo, que foi exalado dele. A imagem, como vimos, está encarnada no corpo, sendo o corpo composto de camadas não apenas materiais. Logo ela parte de uma mistura de afetos físicos e psíquicos, e se torna uma consciência, conhecimento de algo. Ao contrário do corpo fechado que apenas em situações específicas se torna translúcido (e, por isso, transparente, manifestando sua essência e se deixando atravessar por uma luz/sensação), a imagem é uma clareira. É uma abertura iluminada, ou para a luz. A imagem quer mostrar aquilo que é, mas é preciso lembrar que se o nascimento da imagem também parte de estímulos físicos, não é apenas pela visão que devemos apreendê-la. A visão é o que abre caminho para nosso interior.

Tecer é uma abertura para outros fazeres: para o desenho, o objeto, a fotografia, a instalação. É o caminho para outras clareiras. Cada fazer se abre num outro e transforma constantemente a linha. Vejo cada palavra como um signo, um mundo de significados e representações, uma polissemia com a qual às vezes não conseguimos lidar. Assim é a imagem, uma fonte de inúmeros significados, possui vários pontos de vista e pode nos afetar de muitas formas, por isso se configura como clareira – abertura para o mundo, abertura do mundo. O que Heidegger chama de ser-obra é, então, a força atuante da obra de Arte no seu espaço e tempo próprios. Como foi observado nas questões da fotografia, a obra atravessa o tempo, sobrevive, mas como uma força que interfere nesse tempo corrente. Corrente também é a correnteza do fazer, 51 Dinamica do silêncio - TCC.indd 51

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correnteza que é o originário. Lugar movente, ou deslocamento. Quem se move? A água ou a paisagem? Como ver através da janela de dentro de um carro em movimento, a paisagem é que corre. Sou levada pela correnteza, mas também sou movente na água, meu corpo com suas singularidades premedita certos movimentos desse fluxo. A correnteza é fluida, a água é transparente e translúcida, mas meu corpo é opaco, e como uma pedra, que apenas as forças da natureza seriam capazes de, num processo lento, lapidar. E assim o fazem.

Um fio se estende. É impossível dizer qual das pontas é o início e qual é o final. Disse logo acima que a obra é uma força que atua sobre seu próprio tempo. Meus trabalhos atuaram em seu tempo, mas com muito mais força um atuou sobre o tempo do outro. Enquanto desenhava, tecia. Enquanto fotografei, desenhei em pensamento. Os primeiros desenhos estavam mentalmente presentes enquanto realizei os tecidos de macramê, mais presentes do que em seu próprio tempo. O fazer nos trai nesse exato momento de desconexão temporal, mas ao mesmo tempo, como a imagem é um ser sobrevivente, uma revivescência como disse Sartre, sempre podemos retomá-la – nós é que traímos as coisas, tentando submetê-las ao nosso tempo individual a fim de apreendê-las, para não dizer aprisioná-las, pois é assim que nos sentimos com relação ao nosso tempo. Durante o processo, penso que estive retomando todos os trabalhos e os retrabalhando, como se falasse o tempo todo da mesma coisa. E de fato estava: falando sobre o tecer. Não é a vontade de um tecido pronto, mas de fazer o tecido. É essa ação de que preciso e da qual vou constantemente atrás: Um tecido desenhado que não se encaixa corre em fluxo atrás de uma nova direção, ou a procura de teares para tecer, mas nunca completar um tecido de fato, nunca chegar ao final.

Nunca chegar ao final. Se uma ação se dá como terminada, é preciso começar outra. O fazer da tecelagem se tornou ideal porque um tecido não é também uma imagem pronta,

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terminada (embora imagens sejam sempre aberturas), ou pelo menos, meu tecido é sempre uma estrutura de tecido, o mostruário de um mesmo ponto, algo que não quer dizer nada além do fazer. Minha experiência inscrita aqui, mostra a abertura da arte como não apenas a origem dela mesma, mas também como originário, um lugar onde se experimenta e se recria o tempo todo as imagens e nossos sentidos.

“No momento em que acaba de adquirir uma certa habilidade, ele percebe que abriu um outro campo em que tudo o que pôde exprimir antes precisa ser dito de outro modo. E assim, o que descobriu, ele ainda não o tem, deve ainda ser buscado, a descoberta é o que chama para outras pesquisas. ”33

Merleau-Ponty está dizendo do pintor, que sua visão é um nascimento continuado, que nada jamais é adquirido no sentido de uma apreensão total, pronta, de-terminada. Assim é meu tecido: o tecido da tecelagem que sobrevive à história, e principalmente, aquilo que sobrevive em minhas experiências, mas sempre de forma renovada, me fazendo também sobrevivente no mundo, aprendendo a me reconstruir à cada percepção, a cada nova sensação que a vida me propõe nas experiências com o mundo. Reconheço na arte um lugar de transformação do mundo, e do ser, um lugar que acolhe sobretudo nossas sensações, que nos permite deter-nos sobre elas, encará-las de frente, e fazê-las emergir.

Produzir é também uma descoberta do ver... Gosto muito de ver palavras, de desmembrálas para descobrir o que há por trás de sua composição de letras. Certa vez vi a palavra revelar. É curioso como a palavra revelar, que significar mostrar, descobrir alguma coisa, é composta de re-velar, ou seja, cobrir de novo, esconder. Lembro-me de que existimos, como foi dito, pela

33

MERLEAU-PONTY, op. cit, p.45

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aparência. Entretanto, falar do trabalho como descrição se tornou difícil para mim, porque descrevê-lo apenas não parecia dizer nada sobre ele. Nesse sentido revelar é a ambiguidade do relato, daquilo que aparece e o que está coberto, a tentativa de articular aquilo que sei da construção do processo e aquilo que a obra diz em sua autonomia. Trouxe o processo, seu originário, e tudo aquilo que me faz produzir como um fragmento da obra que em mim sobrevive e é transformador. Esse talvez seja o originário de todo trabalho para o artista.

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