CONSTRUINDO O AMANHÃ
190 ANOS DE IMPRENSA NEGRA
VOZES NEGRAS EM DESTAQUE
A Typographia Fluminense de Brito e Cia. estava no segundo ano de atividade quando seu proprietário — o jornalista Francisco de Paula Brito, homem negro livre nascido em 1809, no Rio de Janeiro — publicou a primeira edição do jornal O Homem de Côr, em setembro de 1833. Naquele momento, a imprensa negra brasileira dava os primeiros passos de uma trajetória que completou 190 anos de história em 2023.
Com apenas 5 edições, O Homem de Côr representa a apropriação e a transformação de um meio de comunicação tradicional em uma importante ferramenta de enfrentamento do racismo.
Em um país como o Brasil, onde a discussão racial foi capturada pela branquitude, a mídia hegemônica é uma estratégia de dominação. Neste contexto, o comprometimento com a publicação de periódicos para a população negra demonstra que o negro, além de compreender seu papel na sociedade, sempre esteve interessado em ser protagonista de sua história.
Desde 1833, inúmeros periódicos foram publicados em todo o país. Em São Paulo, as primeiras publicações desse tipo
surgiram apenas no final do século 19:
A Pátria e O Progresso, de 1889 e 1899, respectivamente. Mas este número cresceu exponencialmente ao longo do século 20. Alguns dos principais jornais foram: O Menelick (1915), O Bandeirante (1918), A Sentinela (1920), Clarim d’Alvorada (1924), Progresso (1928), A Voz da Raça (1933), O Novo Horizonte (1946), Notícias de Ébano (1957), O Mutirão (1958), Níger (1960), a revista Senzala (1946), Jornegro (1978), O Saci (1978), Abertura (1978) e Vissungo (1979).
A imprensa negra é fundamental para a construção da memória coletiva da negritude e a formação da identidade negra brasileira. Próximo de seu bicentenário, ainda representa o grito daqueles que recusam a se calar.
Publicações da imprensa negra. Da esquerda para a direita: O Homem de Côr (1833), A Voz da Raça (1933) e Jornegro (1978). Compilação por Natalia Santana.
ABOLIÇÃO, 90 ANOS. E DEPOIS?
13 de Maio de 1978. 90 anos de Abolição. Festas, homenagens, bailes, espetáculos, conferências, protestos. Passado o burburinho, porém é preciso que se reflita, não somente sobre a data e seu significado, se merece ou não comemorações, com festas ou protestos, mas sobre toda a influência da escravidão sobre nossas vidas, até hoje. Comemoraram-se noventa anos da abolição e sobre nossa situação atual não é preciso comentar; pois a estamos sentindo na carne. E como estaremos no centenário da abolição? E nos próximos 90 anos? Indaguemos a nós mesmos o que estamos fazendo para que a situação não seja a mesma. Não fiquemos esperando que nos seja dada uma nova abolição. É preciso que todos reflitamos sobre os fatos e busquemos as saídas que nos convir. [...] (Jornegro, julho de 1978)
Manifestação
estudantil, 2015. Foto: Mídia NINJA
Herança de mais de 350 anos de escravidão, a violência contra pessoas negras é um fenômeno histórico no Brasil. Casos como o de João Pedro Mattos Pinto, morto aos 14 anos durante uma ação policial, em 2020, compõem um quadro alarmante: só em 2021, ocorreram quase 37 mil casos de homicídios de pessoas negras, número que representa 77% do total de vítimas de morte violenta no país, segundo o Atlas da Violência. E os dados de segurança pública não são os únicos que preocupam: outros indicadores sociais demonstram que a população negra brasileira é uma das mais vulneráveis.
Saúde
Segundo o Ministério da Saúde, o índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior do que entre brancos. Já os dados sobre a mortalidade materna apontam que mulheres negras têm duas vezes mais risco de morrer durante o parto.
Emprego
Dados do IBGE mostram que em 2021 a proporção de pessoas pobres era de 34,5% entre pretos e 38,4% entre
pardos, enquanto a taxa de desocupação era de 16,5% e 16,2%, e a taxa de informalidade, de 43,4% e 47,0%, respectivamente.
Moradia
Um estudo do Instituto Pólis aponta que 37% da população da cidade de São Paulo é negra, mas nas áreas de risco de deslizamento — que se concentram em bairros periféricos — a proporção é de 55%.
O entendimento de que o racismo não é uma prática isolada, mas sim resultado de um longo processo histórico e político, é essencial para compreendermos sua dimensão. O racismo é reproduzido nas relações sociais, políticas, econômicas, jurídicas, educacionais, religiosas e ambientais, contribuindo para a marginalização do negro na sociedade.
Em um compromisso com a coletividade, o ativismo negro atua pela efetivação de políticas públicas voltadas para a saúde, a educação e a moradia digna da população negra, o combate à violência e a valorização da cultura negra.
“[...] a realidade dos afro-brasileiros é aquela de suportar uma tão efetiva discriminação que, mesmo onde constituem a maioria da população, existem como minoria econômica, cultural e nos negócios políticos” — Abdias Nascimento, “O genocídio do negro brasileiro”
Mas, ao longo da história, o negro assumiu diferentes estratégias de luta: rebeliões, quilombagem, movimentos artísticos e literários, mobilizações políticas, entre tantas outras. Fato é: enquanto o alvo estiver em nossas costas, a luta continua.
ATIVISMO NEGRO
POR TODAS NÓS
FORÇANDO PORTAS
SER MULHER NEGRA É EXPERIMENTAR ESSA CONDIÇÃO DE ASFIXIA SOCIAL.
SUELI CARNEIRO, FILÓSOFA E ESCRITORA
A desumanização da mulher negra é parte de uma opressão que combina as discriminações de raça e de gênero. Na prática, as consequências dessa dupla violência constituem um cenário no qual mulheres negras recebem 48% a menos que a média salarial de homens brancos (FGV IBRE), representam 67,4% das vítimas de feminicídio (Atlas da Violência), 62% da população carcerária feminina (INFOPEN) e 61% do total de mães solo no país (FGV IBRE).
“A dimensão racial nos impõe uma inferiorização ainda maior, já que sofremos, como as outras mulheres, os efeitos da desigualdade sexual. Na verdade, ocupamos o polo oposto ao da dominação, representado pela figura do homem branco e burguês. Por isso mesmo constituímos o setor mais oprimido e explorado da sociedade brasileira” — Lélia Gonzalez, “Por um feminismo afro-latino-americano”
Esse lugar de precariedade que é imposto sobre nós encontra nas representações estereotipadas da mulher negra um poderoso pilar de sustentação. A mucama, a mulata, a mãe preta, a mulher raivosa, a mulher forte. Um imaginário construído pela branquitude para nos subjugar e silenciar. Dentro deste contexto, não temos direito à fragilidade, ao afeto, à livre escolha ou, até mesmo, à vida.
A violência também se manifesta no constante apagamento da contribuição de mulheres negras na formação de nosso país, em uma tentativa de descredibilizar o legado que construíram.
É fundamental reconhecer que a mulher negra desempenha um papel crucial dentro do movimento negro: historicamente, ela sempre esteve presente nas
articulações do movimento e organizadas em grupos e coletivos, inclusive assumindo papéis de liderança, como Benedita da Silva, por exemplo. A participação ativa dessas mulheres tem influência direta ou indireta na conquista de direitos das minorias sociais.
O resgate da memória e a busca por referências na história nos permite vislumbrar um horizonte no qual a mulher negra não é considerada uma cidadã de segunda classe. E é por isso que devemos falar de Aqualtune, Dandara, Tereza de Benguela, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Antonieta de Barros, Tia Ciata, Laudelina de Campos Melo, Ruth de Souza, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Marielle Franco. Mulheres negras que — cada uma à sua maneira — forçaram portas, abriram caminhos na luta por equidade e transformaram o Brasil.
MULHER NEGRA
A mulher de uma maneira geral tem uma luta muito dura para se impor na sociedade como ser pensante e atuante. Em especial, para nós as mulheres negras, a briga é muito mais difícil pois temos que vencer o preconceito do sexo e da nossa pele preta. Nossa participação na vida, apesar de indispensável, quando não é ignorada é considerada inferior. Durante a escravidão, lutamos ao lado dos homens apoiando-os ou participando ativamente pela abolição. Temos o exemplo de Luiza Main, mãe do poeta Luiz Gama, que se envolveu em planos de insurreição de escravos, apesar de livre, e também, na sabinada, sendo presa várias vezes. Muitas vezes fomos usadas como escada para portugueses que quando enriqueciam, simplesmente se desfaziam de nós, como vemos no romance de Aluizio de Azevedo, “O Cortiço”.
Intervenções artísticas por Natalia Santana.
Após a abolição, o desemprego de negros era maciço, seu trabalho passou à ser feito pela mão de obra européia. Aí, nós mulheres negras tomamos o sustento do lar, pois era mais fácil conseguir emprego como ama de leite, cozinheira ou lavadeira, enquanto o homem só conseguia serviços de baixo salário. [...] Mais recentemente, dentre as mulheres negras que participaram de movimentos pela nossa raça, encontramos D. Eunice Cunha, que ao lado de seu marido, ativo batalhador das causas negras, colaborou, aí pelos anos 30 no jornal “O Clarim da Alvorada”. Ela nos conta que enfrentou diversos problemas, mesmo sendo uma professora, profissão bem conceituada na época, por ser negra. [...] Hoje não podemos deixar que a nossa participação seja subestimada. Embora ainda sejamos olhadas como boas domésticas ou como objeto sexual, a nossa presença é cada vez maior e mais ativa nos grupos negros. É necessário que tenhamos consciência da importância do nosso papel na formação de novos homens e que de nós vai depender o futuro deles, visto a influência que as mães tem sobre os filhos. Não podemos ficar paradas nos lamentando. Devemos conquistar o lugar a que temos direito e para isto é necessário que mostremos que também somos capazes. (Jornegro, Julho de 1978)
EDITORIAL Inquietação é a palavra que germinou este projeto. Feito em tempos de propagação de ataques racistas em todo o país, o primeiro número do jornal Manifesto Sankofa busca trazer luz à linha difusa que divide o passado, o presente e o futuro da população negra brasileira, demonstrando quais lutas travadas 50 anos atrás ainda se fazem necessárias hoje, e o que podemos aprender com elas e seus principais atores. Uma alternativa à mídia tradicional — que oferece pouco espaço para o pensamento crítico e a mobilização —, este jornal funciona como um canalizador para o sentimento profundo de sufocamento, provocado por um mundo que se torna cada vez mais apático diante da escalada de violência contra minorias. Abrimos com o texto Vozes Negras em Destaque, no qual demonstramos o papel da imprensa negra como uma das estratégias no combate ao racismo — afinal, “jornal é cultura e cultura é poder” (Jornegro, julho de 1978). Em Ativismo Negro, lançamos um olhar
PROJETO GRÁFICO
TEXTOS
FOTOGRAFIA
FACULDADE
ORIENTADOR DE PROJETO
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
TIRAGEM
Natalia Santana
Natalia Santana Jornegro (1978)
Mídia NINJA
Centro Universitário Senac
Prof. Fabio Silveira
Newspaper Club
10 unidades
Esta publicação foi desenvolvida entre os meses de fevereiro e maio de 2024.
para a realidade do negro brasileiro e os aspectos que levam as pessoas às ruas para protestar até os dias atuais. A inquietação ganha novos contornos com a intervenção artística que questiona a falsa narrativa de uma população negra passiva. Já o texto Forçando Portas finaliza este número com uma reflexão sobre a dupla violência — de gênero e de raça — que se manifesta no dia-a-dia da mulher negra, e como se relaciona com apagamento de sua participação no movimento negro organizado. Nenhuma das discussões levantadas aqui busca trazer soluções à mentalidade racista que perdura por tantos séculos em nosso país; em vez disso, nós esperamos que o mesmo sentimento de inquietação que deu início à construção deste jornal germine em vocês, leitores. Esta é uma publicação inaugural, e temos a esperança de que o Manifesto Sankofa ganhe repercussão. Até lá, deixamos a pergunta: qual futuro queremos construir para nós e para as próximas gerações?
AGRADECIMENTOS
Giulia Dellevedove, João Gabriel Santana, Patrick Guanaz, Tré Seals.