Acadêmica

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ACADÊMICA

Aqui o mundo já não é mais cinza

Edição inaugural ANO I - número 01 Julho 2015 Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie Ad Immortalitatem



SUMÁRIO Membros da Academia de Letras..... 04 Descrição da Academia..................... 06 Carta de dois acadêmicos.................. 07 Edital.................................................. 11

Prefácio.............................................. 12

Poesia................................................. 14

Conto................................................. 30

Matéria.............................................. 46


Membros da academia de letras - 1º semestre/2015 Cadeira

patrono

Titular da cadeira

1

Dante Alighieri

2

Gregório de Matos

3

Luis Gama

4

Álvares de Azevedo

5

Machado de Assis

6

Anton Tchekchov

7

Monteiro Lobato

Cadeira Vaga

8

Fernando Pessoa

Cadeira Vaga

10

Mario Quintana

11

Evandro Lins e Silva

12

Jorge Amado

13

Nelson Rodrigues

14

Clarice Lispector

15

Lygia Fagundes Telles

16

Antonio Carlos Jobim

17

Ferreira Gular

18

Roberto Piva

Aurélio Tadeu Luiz Barbato (Direito - 10º sem) Danilo Souza Costa (Direito - 5ºsem) Cadeira Vaga Arthur Fernandes Guimarães Rodrigues (Direito - 8º sem) Gabriel Possamai Boneto (Direito - 9º sem) Ana Paula Ricco Terra (Direito - 3º sem)

Marco Antônio Ferreira Lima Filho (Jornalismo - 4º sem) Bruna Bianca Brandalise Piva (Direito - 4º sem) Larissa Martinez Arten (Letras - 7º sem) Leonardo Mariuzzo Plens (Direito - 4º sem) Aidil Prado (Direito 3º sem) Helena Roldan Antunes (Direito - 4º sem) Wilson Victorio Rodrigues (Direito - 9º sem) João Carlos Lopes da Silva (Direito - 5º sem) Vanessa Ferreira de Almeida (Direito - 5º sem)

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Membros eméritos (conselho de veteranos) Felipe Righetti Ganança (Direito - Formado) Karina Azevedo Simões de Abreu (Direito - Formada) Leonardo Ribeiro (Direito - Formado)

Membros honorários Guilherme Ramalho

Presidente da ABAMACK

Desde 2014

Armando Iazzetta

Antigo membro da Academia (1956) - Direito Mackenzie

Desde 2014

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DESCRIÇÃO DA ACADEMIA

A

Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie nasceu em 1956 por iniciativa dos estudantes da Faculdade de Direito que, unidos pela alma exploradora dos primeiros anos da Universidade, resolveram fundar uma entidade capaz de desenvolver o espírito literário dentro dos diversos cursos da instituição. Após as primeiras décadas, a Academia perdeu adeptos e acabou se tornando uma instituição sem membros ativos. Nesses anos, diversas ações foram executadas com o objetivo de reerguê-la, mas, em 2012, por iniciativa do Centro Acadêmico João Mendes Jr., órgão de representação estudantil da Faculdade de Direito do Mackenzie, finalmente, a Academia de Letras foi refundada. Atualmente, a Academia conta com 40 cadeiras, ocupadas exclusivamente por estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade. Após a formação, os membros compõem o Conselho de Veteranos, em número infinito. A finalidade da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie é fomentar a produção e o debate literário dentro da Universidade, contribuindo para o desenvolvimento pleno dos estudantes e da literatura nacional.

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| CARTA DE DOIS ACADEMICOS | Caro leitor, eis agora, em suas mãos, o primeiro volume da revista da Academia de Letras dos Estudantes Mackenzistas. Desfrute! Aprecie os textos! Esses são nossos pedidos nem tão humildes assim a você, leitor. Esperamos que, acima de tudo, essa primeira edição da revista possa tirar você, nobre e tão importante figura anônima, da passividade e lhe transforme, por pelo menos um momento, em um sujeito ativo. Estar em atividade. Eis o que é literatura. Mas afinal, o que é essa tal literatura? Literatura é um dos entes mais antigos do mundo, que acompanha o homem desde os tempos das cavernas, considerando-se que, desde o nascimento da simbologia, nasceu também a nossa amada literatura. O homem sempre sentiu a necessidade de relatar para os outros a sua rotina. Por isso, interferiu artisticamente nas rochas cavernosas, com pinturas rupestres, que relatassem o seu cotidiano. Este fora, sem dúvida, o primeiro jeito de comunicar algo, de passar uma mensagem sem a necessidade de falar ou expressar sinais corporais. É nesse período que o homem passou a relatar a sua extraordinária (ou banal, há quem diga) vida em pinturas. E poderia ter parado por aí, mas evoluímos. Milhares de anos após o surgimento das pinturas rupestres, surgira a linguagem escrita, a partir de um precioso trabalho imaginativo. Escrita: um símbolo imaginado, a priori, cuneiforme. Em vários países ganhou diferentes formatos: no Egito antigo, era representado pelos hieróglifos, no Japão, por ideogramas, como ainda o é. Além de inventar essa forma de linguagem, inovando na comunicação, e podendo relegar e propiciar ao mundo o avanço da tecnologia, o ser humano descobriu, concomitantemente, seu poder de imaginar. Com ele, anos após, veio, finalmente, a literatura (dessa vez, a literatura propriamente dita). Os escritores clássicos da Grécia antiga e suas epopeias homéricas. Sendo tais epopeias, nada mais que um fato verdadeiro projetado em uma história imaginada, o ser humano escritor passou a imaginar a sociedade enquanto fazia literatura. Desse trabalho, veio a Utopia, um jeito novo de pensar a realidade, um jeito, como o próprio nome diz, utópico. Nada além de um sonho. Então, o ser humano passou a imaginar a sociedade de forma diferente. Hoje, um dos prismas da literatura é justamente esse: imaginar a

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sociedade diferentemente do que ela é no plano atual. Boa parte desses escritores, sonhadores alados, percebeu que o seu trabalho podia mudar o mundo, mudar a realidade, mudar a sociedade e, quem sabe, satisfazer uma antiga utopia. Porém, como a sociedade sempre foge de ter seu status quo alterado, aqueles que quiseram mudar, foram logo tachados de loucos. Autores de livros que ainda são considerados polêmicos pagaram um preço caro por sua imaginação, por sua sede de mudança: muitos acabaram morrendo loucos ou isolados em manicômios e outros tantos, pagaram o preço com a vida. Mas, graças ao trabalho desses bravos homens e mulheres, que se tem o acesso livre e irrestrito às suas obras que restaram, percebemos que elas propiciaram e propiciam cada vez mais a alteração da sociedade, uma verdadeira evolução e revolução, colimando um mundo melhor. Vivemos um dos melhores momentos literários da história, no sentido de termos maior liberdade para escrever. À custa de movimentos literários que revolucionaram a literatura em toda a sua amplitude, ela tornou-se, de fato, universal (será que existem extraterrestres escritores?). Toda e qualquer pessoa pode escrever. Tudo é literatura. Todos são literatos. Todos são escritores, mesmo que alguns não se deem conta. Algumas pessoas contam vivências que, para o homo urbanus, bicho criado e vivido sempre no seio da sociedade, parecem verdadeiramente incríveis. O extraordinário da vida comum. Que dizer daquele pescador ribeirinho, de seus 80 anos, sempre em contato com a natureza bruta e com pouquíssimo contato com a vida urbana, analfabeto, que tem tantas histórias de vida que dariam livros recheados daquilo que Rolando Boldrin, grande nacionalista, chama de causos. O que são causos? Literatura pura de pessoas não instruídas. As formas livres, a ausência de rigorismos e os novos movimentos puderam transformar todos em escritores. Todos são poetas. Atualmente, tudo é poesia. Viva a liberdade literária, em detrimento do elitismo literário de outrora! Apesar de todos os inegáveis avanços, a literatura hoje também vive um momento tenso, algo quase que paradoxal. O fascínio da humanidade pelo que é escrito está desaparecendo. Ao termos um mundo totalmente desenhado, infestado por televisões e cinemas, o que, per si, são coisas boas, porém, com o uso

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abusivo que tem ganhado ao longo dos anos, acabam destruindo o impacto que a literatura tivera outrora. O proletário, tão explorado no seu trabalho, em troca de algum mísero dinheiro, não mais que necessário para garantir a sua desgraçada subsistência, quase sempre perde o tempo destinado à nossa querida literatura. Pior. Chaplin, em Tempos Modernos, demonstrou perfeitamente a alienação causada pelo trabalho. O trabalhador massificado, hoje, quase nunca tem uma cabeça aberta e disposta à literatura. Ler tornou-se um fardo, pesado e cansativo, sem recompensas. As pessoas, (não só trabalhadores, inclusive, pasmem, estudantes), alienadas, não conseguem mais imaginar. Ironicamente, mais do que nunca, a indústria cinematográfica tem sobrevivido graças às adaptações literárias. Isso porque encontrar roteiros inéditos e criativos se tornou uma dificuldade, o que nos faz cair em um mundo de readaptações literárias, onde, muitas vezes, filmes adaptados apresentam discrepâncias astronômicas com a obra que os precedem. O que é indiferente para a massa que não conhece o trabalho que o antecedeu. Porém, para um grande fã de literatura e conhecedor da obra, é uma afronta. Esta falta de imaginação cria uma situação perigosa: uma verdadeira armadilha. Muitos best-sellers não passam de cópias descaradas de livros pretéritos. Ontem e quase que ontem mesmo, a moda fora a literatura erótica. Primeiro surgiu uma autora, que fez sucesso com uma dita trilogia picante. Logo após, inúmeros títulos, que seguiam esta linha, começaram a ser vendidos e a ganharem lugares de destaques nas prateleiras das livrarias. Inclusive, quem escrevia esses livros conquistou um lugar, quase que roubado, em feiras literárias, que, infelizmente, tornaram-se um evento elitista, aberto a escritores vendedores em massa, e sempre a mesma patacoada já vista anteriormente. Agora, a moda é a literatura distópica de adolescentes: um quase plágio a um mangá, depois inúmeros livros sobre a mesma temática e o pior, sem um aprofundamento maior e sem diferenciais para com o “original”. A literatura, pode-se dizer, tornou-se, como a agricultura, a espera da safra. Parece que os autores, em busca do que dá mais dinheiro, escrevem livros sintéticos e sem profundidade sobre o tema da moda. Esta tão vil estagnação criativa tem só gerado problemas, não só no mundo literário, mas na

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própria indústria cinematográfica, no mundo tecnológico, nos quadrinhos (que, desafiando os puristas, são sim literatura e, muitas vezes, duma literatura mais densa, profunda, impacta e pesada que muitos livros escritos), dentre outros muitos ramos da invencionice humana. Falta sensibilidade aos escritores de ver o mundo que os cerca e mostrá-lo em todas as suas nuances e entranhas, ou lhes falta à sensibilidade de captar um imaginário repleto de poesia, em que se revelaria o que queremos ser ou o que poderíamos ter sido. Falta o fantástico. Falta o novo, aquilo que nunca se viu, ou que há muito não se via. A literatura é a primeira a ver o mundo e a reproduzi-lo. Como algumas figuras, ilustres ou não, dizem, “literatura é um soco no estômago”. É isto que nós, escritores, aqueles que tentam enxergar o mundo e a sociedade, em todos os seus prismas e os traduzem de maneira escrita ao papel, temos de fazer. Afinal, se ficarmos silentes, o que se encontra lá fora continuará o mesmo. Chocar. Provocar mudanças. Tirar a literatura da inércia, tirar o leitor de sua zona de conforto e colocá-lo no meio do furacão para que saiba o que acontece aqui e agora. Para que ele aprove ou reprove. Para que ele seja mais uma peça importante na mudança, afinal, literatura não é perfumaria, literatura é a representação gráfica escrita da realidade. Um bom observador, como deve ser um escritor, sabe que a realidade é feia e que tem de ser mudada. Por fim, é isto que esta revista pretende: trazer o novo ou inspirar e convidar a batalhar com a gente por esse novo, recuperar o pretérito que é de qualidade e necessita ser revisitado, instigar o leitor, tirá-lo da sua inércia e da sua segurança, provocar reações, propiciar a mudança social. Este primeiro volume contém o que se deve esperar da literatura. Por isso, encarecido leitor, eis os nossos votos. Boa leitura! P.S. Se quiser um cantinho ao nosso lado, não se esqueça de participar da próxima seleção para a Academia de Letras dos Estudantes do Mackenzie. É convidado a batalhar conosco!

Ana Ricco Terra e Gabriel P. Boneto Membros da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie

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EDITAL A Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie comunica a todo o corpo discente da Universidade que foi publicado o Edital para composição das 10 vagas abertas na Academia. Art. 1º O processo seletivo para seleção dos 10 (dez) membros da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie será conduzido por Comissão Eleitoral indicada pelos atuais membros. Art. 2º. Estão aptos para participar do processo seletivo os estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Art. 3º. Os candidatos deverão entregar, entre os dias 10/08/2015 a 24/08/2015, na Secretaria do Centro Acadêmico João Mendes Júnior, envelope lacrado, endereçado para a Academia, contendo: I – Folha com nome completo, idade, curso, semestre, turma, número de matrícula, e-mail, telefone. II – Carta de motivação. III – 3 (três) textos de sua autoria, de qualquer natureza, com limite de 10 (dez) páginas cada. IV – 1 (uma) crítica sobre qualquer livro de literatura, com limite de 5 (cinco) páginas. Art. 4º. A Comissão de Eleição divulgará o resultado até o dia 01/10/2015.

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Prefácio Por quê ?

Por Armando Iazzetta Filho - Fundador da Academia de Letras do Mackenzia em 1956

O termo ACADEMIA é por demais conhecido no linguajar moderno como indicativo de cultura física. Quando ouvimos “hoje vou à academia” ou ainda “hoje tenho academia”, entendemos “ hoje vou fazer ginástica”. Temos um corpo e precisamos mantê-lo sempre hígido e saudável. O nosso vernáculo, através do qual nos comunicamos e nos fazemos entender, também precisa de exercícios e aprimoramentos. O nosso idioma, como todos os demais, é um elemento vivo e dinâmico. Não basta aprendê-lo nos bancos escolares, é preciso cultuá-lo. Em que lugar? Nas escolas aprendemos a usá-lo. Nas Academias de Letras vamos exercitá-lo e aprimorá-lo. É nelas que os grandes escritores se reúnem e dão novas formas a nossa linguagem, através de suas obras literárias. É fato noticiado que nossas escolas não estão conseguindo ensinar os jovens a se expressar através de linguagem escrita. Esse fato explica a quantidade de notas ZERO atribuídas às redações solicitadas pelo ENEM em 2014. Algumas centenas de milhares, sem contar as notas sofríveis. Então, a resposta à pergunta POR QUE? Porque a ACADEMIA DE LETRAS DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE MACKENZIE, pioneira entre estudantes, visa a preparar seus membros graduandos das diversas Faculdades, para o trato com a língua portuguesa. Não adianta sair bem preparado tecnicamente de uma profissão e não conseguir expressar corretamente as suas ideias. Um advogado, um administrador, um publicitário etc que não se expresse em suas petições, relatórios ou textos, dificilmente conseguirá vender seu trabalho. Conclamamos os estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie a procurarem a Academia de Letras e passarem a se acostumar com os saraus literários que muito acrescentarão à sua vida profissional. Esperamos por vocês em nossa ACADEMIA. Participem.

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Prefácio A REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE DO MACKENZIE Por Guilherme Ramalho Netto - Menbro Honorário da Academia e 1º Presidente da ABAMACK

Inicialmente, merece todo o aplauso a iniciativa da Academia de Letras dos Estudantes da Universidade Mackenzie de publicar esse número da Revista. As palavras são insuficientes para destacar a importância da atividade literária para o desenvolvimento das pessoas. Especialmente, através da literatura, diretamente ligada aos valores humanistas, que nos vêm através dos bons autores, formadores que são, especialmente da juventude universitária, como arte, virtude e ciência de pensar, e de se expressar com clareza e elegância (art. 205 da CF). Está aí a missão da Academia, agora restaurada em boa hora pelos estudantes do Mackenzie, sensíveis à importância das letras para nossa formação como pessoas, o que muito ajudará nossa vida em sociedade, especialmente, como profissionais do direito. Tenho que os valores universais da bondade, humildade, respeito, responsabilidade, bons sentimentos, solidariedade, raramente podem ser desenvolvidos sem a contribuição da literatura. Não há literatura sem leitura atenta e refletida. Também, cabe registrar que a leitura no silêncio, refletida, é insubstituível no papel de ordenar nosso pensamento e nossos sentimentos, o que muito nos enriquece como pessoas. No ensejo do lançamento da Revista, desejo que a Academia e a ABAMACK sejam coirmãs e parceiras no ideal de cultura, a serviço dos universitários e, depois, dos graduados e pós-graduados, no exercício da cidadania, com base no valor supremo, dignidade da pessoa humana, nos aspectos físico, cultural, espiritual e social. É o que desejo, AD IMMORTALITATEM.

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Poesia fragmentos Por Aidil Prado

O que será que me vai na alma, que sinto o que não posso explicar? Enrubesce-me a face, umedece minhas mãos, dilata minhas pupilas Faz meu coração célere, minha voz estremece... O que posso fazer com esse sentimento que cresce dia-a-dia? Será uma fagulha de amor que se acende? Será um misto de desejo e querer? Será uma ilusão que me preenche as horas furtivas? O que será de meus passos que insistem em ir em sua direção? Deixam-me desorientada, me fincam diante de ti Fazem meu bom senso rir de mim? O que posso fazer para arrancar você de minha pele? Se teu cheiro tornou-se permanente Se tuas mãos insistem em me prender Se meu coração não está mais no meu peito? O que será de meus dias se você não pode estar comigo? Se não houve promessas Se não existiram encontros Se você dista em demasia da minha vida? O que posso fazer com esse desalento que me tira o sono? Se te desejo mais do que qualquer desejo, Se te sinto em cada instante de meus dias, Se minha noção de realidade perdeu-se de mim? O que será do nosso (meu) amor?

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Poesia joão Por Aidil Prado

Julgo tão ímpar ser você
 outrora um menino e hoje homem feito
 antes apenas um rabisco do que seria amanhã
 ou o que galgaria no futuro distante, pensaria.

 Logo a distinção se fez entre o menino e o homem
 os traços firmes que pouco a pouco perfazem cada passo
 pela estrada da vida seguem irrepreensíveis
 entre tantos outros meninos que esperarão ser como você
 ser humano íntegro e feliz.

 deixe sempre o riso aflorar
 e faça de cada desafio um caminhar adiante.

 Junte todas as pedras que possam surgir
 agarre-as e deposite-as na memória
 garanta que somente bons ventos
 únicos soprarão em sua vida
 ainda que tentem desviar seu trilhar
 quando achar que nada mais existe
 uma nova esperança diferenciará novamente
 a alma do homem da do menino
 reto, coerente, simples, apaixonado
 absoluto em busca sempre de si mesmo.

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Poesia querer P or Aidil Prado

Como posso refrear-me diante de tão doce querer que tira minha fome dispara meu coração desnorteia meus sentidos? Como posso concentrar minha lógica diante do seu rosto que me atrai como ímã inunda meus olhos acentua minha incoerência? Como posso acautelar-me diante dos seus passos lânguidos que flutuam diante de mim permeando minha existência abalando minha estrutura?

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Poesia agridoce Por Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez

Enquanto embriagante noite me aflige em devaneadas horas, desespero, coçando em calafrios, boca à laringe engasgam orações de ecoado apelo. E quão frígidas mãos tocam seus seios? Contraindo o visceral pesar do perdão, os lascivos dedos de castos receios, mergulham sobre montes de ilusão. Voluptuoso silêncio adentra o quarto, consumindo qualquer vão sobre a pele limbo que mais conforta do que fere. Dentro do ermo amalgamo me farto, Saliva amarga, crostas desse beijo. Agridoce a quimera do desejo.

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Poesia Soneto em dor maior P or Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez

Tarde cai sobre lágrima sovina, amadurecem vigas. Um firme esteio nas palavras vadias de teu gorjeio, como em um ramo abrolhado que me abomina. E cálida, a menina entre meus braços entretecendo insídias, por que me fere? Em arcadas mãos que cavam fundo a pele. Tão vil camponesa de arados devassos. Vi no verde anil pálido do seu rosto enrubescer bochechas, em maduras maçãs áureas, paliando amargo gosto. Sobre oposto que nego, rupturas dentro do meu pulsante cismo exposto. Rápidas palavras brandas, lentas criaturas.

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Poesia Ode aos formandos Por Aurelio Tadeu Luiz Barbato

Repicam os sinos todos em festa pelos que cingem o capelo à testa. Quem eles são?, perguntarás desconfiado; aí vem os triunfantes, responderei admirado. São heróis de luta árdua e severa, a labutar contra dura e prisca fera. Dia após dia, contra a própria mente, conhecendo toda a terra e gente. E por que são sisudos?, indagas; porque sabem as agruras da vida, e de todo o Estado, as chagas. E o que farão por nós?, desafias; terão por justiça estandarte; serão da lei dos homens vigias, a libertar o povo em qualquer parte.

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Poesia amor e armadura P or Danilo Souza Costa

E aí J. Sá o que me diz, da parte e do todo da parte, A guerra do Guerra no mundo: sua tinta, mensagem e arte? Pus-me a pensar se sabia o todo da parte que sei Talvez sem saber não diria, de Boca do Inferno a rei Então promoveu mais alguém e achava que ele entendia Sua ideia do todo e da parte na arte que ele escrevia Não entende, ele explica, é mestre Mas cabe a você entender Se sente e pratica este teste, já peca em pecar, por saber É, tudo bem, pode ser, mas aqui eu não vivo só Se semeio algo de bom, o todo floresce melhor Mas e a parte, consegue ajudar? Ou acha que só vai crescer? Aí não tem todo nenhum E peca em pecar, por saber Por hora, na hora não penso se a minha verdade é pura Talvez se me cobrem paixão, darei meu amor e armadura Quem sabe um dia consiga mostrar a si a que veio Levar sua parte ao todo, a parte que vive a passeio A parte que vive a passeio? Eu não entendo o que diz Então se concentre no todo da parte que te faz feliz Aí me confundo e me iludo, no mundo vivemos paixões Eu prego a verdade a um surdo, mas mostro a um cego emoções Então os cegos te amam, me diga porque quer mais Só quero viver como um surdo, sentir como um cego e falar por sinais Pois é, meu caro poeta, aos poucos vai tendo razão Constrói seu castelo por dentro, não erra por medo, mas sim por ação A guerra da parte é santa, entenda, é o todo que quer Não há caridade sem choro, perdão sem pecado, homem sem mulher Não há aprendiz sem um mestre Não há um teste sem prova

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A lua cresce e enche, míngua no céu e volta a ser nova Então, ainda que sinta amor de corpo e alma pura Seria injusto com a arte doar uma parte de minha armadura A arte do todo da guerra faz parte da minha figura Se sou você em parte, a parte do todo é minha pintura Eu choro contigo, poeta Enxerga o que pode fazer Errado, pecado, fardado, vive acertado quando ousa saber Eu choro contigo amigo Me faz enxergar o que vê Assim, cada um é uma parte, o todo: uma arte que está pra nascer.

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Poesia Do sentido P or Felipe Righetti Ganança

Basta ser breve instante, Que de mim nasça divina essência, Que tédio despreze, em instante mais breve Pudesse eu, nesse instante qualquer Alguns versos de amor fazer, Das folhas úmidas, ou só das folhas Pudesse eu, Ter o sentido que aqueles versos têm, E em bela árvore velha deitar, Deles faria sentido que pudesse eu sentir, Do rio que segue, Em contínuas linhas de graça, Salvo o teu olhar, Que guardo, em um sentido que não compreendo, Sinto. Tua alegre inocência, De poeta de versos incompletos, De viagem sem destino, De um sentir sem coração que o sinta, Banha as margens da fria vida, Que me carrega sem almirante algum, Pudesse eu, Saber que não há maneiras de sentir, Nem maneiras há, Nem formas há, De sonhar e sentir, Tudo o que a vida nos dá, Faria do sentir das coisas, sentido algum

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Louco, dirás, não buscar sentidos. Mas que sentido há? Se sentidos estão perdidos, Sem sentido algum. No mais breve dos instantes, Se sentido ali houvesse, Se desfez na primeira gota, No primeiro parto sem mãe, Pudesse eu, Parar de buscar sentido as coisas, As coisas do amor, Aos versos do amor, não faria. Se não nos deram sentido, No só sentido de solidão, A procura por sentido nos faz ser, [Almirantes], Seja saboroso vômito, Esta raiva de incompreensão, De beleza que posso ver, Mas não há sentido claro que a traga, Não há? O sentido das coisas, talvez É não terem sentido algum.

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Poesia o que aconteceu ao homem de ontem? P or Gabriel P Boneto

O que aconteceu ao homem de ontem? Que terá acontecido ao garoto sonhador? Aquele! Aquele mesmo! Que planejara uma infinidade de sonhos E que ia para a vida como um batalhador Em todos esses anos, quantas mudanças vivenciou Quantas foram as fases da vida que ele passou Tantas foram as adversidades que encontrou E hoje encontra-se prostrado, resignado, perdido Iludido com o que antes era-lhe o futuro Agora, o presente não passa de um mundo escuro O que vê são apenas trevas e isolação Sentimentos mil da mais nua e crua solidão Vê no mundo toda a podridão A corroer a humanidade Que está doente, clamando por um salvador Esse garoto de outro dia seria o salvador Mas agora, não consegue sentir se não a dor E quer ser deixado, deixado em paz Num canto confortável, não quer ser incomodado mais O mundo se acabando e ele sendo deixado para trás Este é o homem de ontem! O ser que traiu seus ideais! Não passa de um verme inflexível, incapaz de se renovar Ser ignorante! Sabe que vive na sociedade, mas não quer se sociabilizar E se hoje confrontasse o passado? O eu de ontem ficaria irado com o eu do hoje, que não passa de um bastardo Apesar de tanto revés, algo bom veio A poesia, nua e crua, forma bestial de literatura Eis o que aconteceu ao homem de ontem – morreu entediado e desolado!

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poesia marecheia Por Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez

Mar e cheia, maré cheia, como num mar a ver navios, respiro trovoadas enquanto me alimento, inteiro, atento, entendo, nebulosas quedas d’água no infinito, bonito, como esdrúxulas rochas radioativas entre moedores de carne, roedores, conforme andam, procriam suas estúpidas carências, decências ancestrais de crenças burguesas, crianças francesas tortas e indisciplinadas, nuas, numa cama quadrada, poucas horas sobre nada, nadam enquanto afogam mágoas enlatadas, enviadas e processadas em camadas, ponderadas como fúnebres flores de jardins, sobre mim, morrem as dúvidas de inocência, clemência de não ser.

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poesia marazia P or Arthur Fernandes Guimarães Rodriguez

No mar, mastros são lápis em papéis navegando sobre monocromáticas cores, voando palavras pelo céu, transbordando amores, rompendo o tempo, afastando o infinito, vivendo em desalento, comendo odores, cuspindo palavras perfumadas, fazendo do tudo um nada, agulha que na pedra entorta, em tortas angústias desamparadas, amedrontadas, sonoras ideias dizem, nada, cada parte dessa música, rústica, ao som das notas antigas, amigas, dos ouvidos desorientados, da saliva seca na garganta, do catarro aprisionado nos pulmões, batendo em carros, caros, os caros entes de cárie nos dentes que tremem, grunhem, rangem... Transmitindo, infligindo alguma parcela de sentimento, saneamento básico do pensamento, como vento, assoprando poeiras no oceano, sem engano, engasgo, esgano, punho atado ao pano, um ano, nau atracada ao não, vil embarcação, insídias escondidas pelo chão, galpão, alçapão, corrupto pão dos ratos, nefastos, que roem, moem e põe a sujeira nos pratos, tratos, fatos, tatos, atos e chatos, crepitando o caixão da moribunda poesia, sem simetria ou exatidão, inexatidão, inexatos dão, doam os órgãos aos sãos, imensas ondas afogando grãos, o navio que não viu o arpão, acertar o centro cerne da questão. No mar, maestros, mestres, mastros, astros, estrelas, estrelas-do-mar, areias, areias no ar, sereias, sereias-do-lar, fazem da meneante azia marítima, um digestivo navegar, mas a poesia põe azia novamente no mar, a azia dos mares asiáticos, azia angustiante criadora de poetas, profetas e promessas, movem o indefinido, sem sentido, contido em tudo que se pode olhar. No mar não se cria, não existe poesia no mar, mergulha-se, afunda-se tão fundo que não cabe num mundo, nu mudo... Aprisionado em seus mistérios, acorrentados nas audazes correntes do mar, aguerridas tormentas contrastem com a natureza do sereno no mar, com a dureza de ser ermo no ar, não há poesia no mar, só há, só ar, soar, doendo corpos pela azia, num ar soar azia, nu ar, somar azia, só mar, azia, som ar azul, nu mar azul, num mar a suar azia, no mar só há azia, não há poesia, há maresia, marazia.

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Poesia Poema da despedida Por Helena Roldan Antunes

Tudo parece um passado distante Cada instante um sonho que não ocorreu Mas morreu dentro da minha cabeça Me esqueça porque eu já esqueci Pois cresci em um segundo Tão profundo que não tem fim E assim ganhei mais distância Da ânsia de me ver sem você O porquê fica para depois Nós dois ficamos para trás Tão atrás que parece outra vida Quase esquecida no fundo da gaveta Que Julieta má que fui eu Sem Romeu não quis me matar Só andar por aí sem razão Procurando paixão em todo olhar Sem encontrar não fraquejei Não desejei resgatar nossa história Vida ilusória não quero mais Do cais de minh'alma já partiu teu navio Mar bravio afoga a esperança Nesta dança não tenho par O lar da desilusão me acolhe Não molhe seu rosto agora Lá fora tudo melhor ficará Algo alegrará seu pensamento No momento em que menos esperar Vá buscar quem te queira Na beira do guarda-chuva A luva para sua mão fria Que esfria quando me vê E você ficará bem mais feliz

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A cicatriz que deixei sumirá Nem notará a minha ausência Minha falência será decretada Por nada nesse mundo retorne Sempre contorne o que lhe obstruir Pode vir apenas para me dizer "Soube esquecer, vamos conversar?" Irá me contar as coisas boas Novas pessoas e alegrias Melhores dias que se sucederam Que aconteceram e acontecerão Pela determinação que em você há Agora vá e não volte ainda Está finda nossa relação O coração aguenta pancada mais forte A morte é sempre um reinício Seria desperdício não aprender com ela Nesta viela não volte a andar Sem lembrar fica mais suportável Conselho aplicável o que falei Seja rei e não me peça sua rainha Sou minha e sempre serei E sei que assim não lhe agrado E malgrado isso lhe digo adeus.

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Poesia À literatura Por Marco Antônio Filho

Obrigado à literatura por deixar o poeta sofrer, por dar um jeito simples de eternizar todo o sofrimento. Aquele doloroso ou talvez inesquecível sentimento ficará marcado na história como meu carinho e amor por ela em forma de poesia. Disfarçada em forma de despedida, mas sempre em tom de reencontro.

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Conto O que será de ana? Por A idil Prado

Ana era uma menina de alma, presa no corpo de mulher. Aprendeu desde cedo que suas qualidades não lhe trariam somente benesses. Renderiam a ela muitos constrangimentos, saias-justas e dúvidas quanto a ela mesma. Numa noite chuvosa e fria, Ana se dispôs a acompanhar um professor conhecido até seu carro, já que ele não tinha como se proteger da chuva, além de estar abarrotado de papéis. Assim ela seguiu, solícita, com seu escudo pluvial prostrado, protegendo o suposto cavalheiro, acima de qualquer suspeita. Apenas aparência. Andaram debaixo da chuva forte, daquelas que o que se quer somente é estar em casa, na cama, embaixo da coberta, ouvindo os pingos baterem no vidro, como se estivessem desesperados para entrar. O braço alheio roçou o seio e Ana engoliu em seco, trazendo-a de volta de seu devaneio. Imagine só, foi um acidente, pensou. Mais um, mais outro. Ana cede o escudo, ressabiada com a atitude, mas ainda, com fé na dignidade do homem. Olhou para a rua, quase deserta, apesar do horário de saída das aulas. A chuva espantou a todos. Parou. Quis ir embora dali, mas ainda chovia e foi solicitada sua companhia até o carro, “para evitar que os papéis se danificassem, afinal, tratava-se de provas...”. “Onde está o carro?”. Haviam dito que ele estacionava próximo ao campus. “Ah, está mais lá para baixo, em outro local, vamos seguindo, já chegaremos”. A rua em que estavam foi se tornando cada vez mais escura, mais vazia, mais fria. O que fazer, pensou Ana, naquela situação surreal? E se acaso precisasse correr? Para onde iria? Sem pessoas, sem táxis, tudo fechado, escuro, silencioso. Ouviam-se apenas as batidas quase descompassadas do próprio coração e a respiração acelerada do professor. Resolveu entabular uma conversa qualquer e ele, malicioso, tocou no mesmo assunto de meses atrás: o perfume. Ah, o perfume! Aquele que era o cheiro de Ana: vívida, alegre, sorridente, apaixonada, feliz. O mesmo que envolveu seu vestido e seu cabelo, para um momento dela, não dele, que no local era apenas um convidado e, mesmo assim, fez de tudo para se desven-

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cilhar de sua companheira e lhe sussurrar ao pé do ouvido como estava linda. Ana achou graça e não deu importância... Mas, naquele instante, sozinha com ele, sentiu-se como um bicho acuado e não gostou de ter salvo o cavalheiro. Em frações de segundos, o início relampejou em sua lembrança tormento dos encontros “casuais”, do toque acintoso no braço, do cerceamento para a saída do prédio... e as palavras que não paravam de gritar: “Ana, você estava linda!” “Ana, não consigo esquecer seu perfume!” “Ana, ficaria lisonjeado se fosse o objeto do seu amor!” “Ana, preciso falar com você (sem nada efetivo para dizer)!” Ana, Ana, Ana!!!!!!! Naquela altura, tentou ir embora, mas tudo estava deserto, somente um bar aberto na outra quadra. Andou em direção contrária, tentando acelerar os passos, mas foi impedida: “Não vá, é perigoso. Acompanhe-me até o carro.” Mas não chovia mais e Ana precisava ir! A mão segurou firmemente seu braço, impedindo-a de continuar, direcionando-a a seguir em frente, em meio à escuridão total. Emudeceu. Não queria acreditar no que estava acontecendo. Pensou em correr, mas a mão ainda pousada em seu braço, continha-a. Pensou em gritar, mas quem a ouviria e, caso ouvisse, quem a acudiria? Acabou-se aquela quadra e Ana avistou ao longe, do outro lado da rua, próximo da única luz existente, um hotel, daqueles que pessoas como ela jamais entrariam. Parou para tomar fôlego e, mais uma vez, tentou desvencilhar-se daquela situação, sendo impedida pelo corpo alheio à sua frente. “Onde está o carro? Estamos andando há muito tempo!” “Não se preocupe, disse ele, está logo ali”, apontando para a entrada daquele local duvidoso. “Não tenha medo! Você está com fome? Eu estou. Vamos comer algo e eu a levo para casa”. O corpo todo de Ana começou a tremer. Sua boca ficou seca, suas mãos geladas e o instante final parecia próximo. Desespero total. Se ao menos ela reagisse... se... se... Viu ao longe uma luz se aproximando, devagar. Um casal saído do breu total, falava com ele. Aproveitou para fugir. Reuniu todas

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as forças, pôs-se no meio da via a gritar e a balançar os braços para o alto, chamando a atenção do motorista. Entrou rapidamente no táxi, travou as portas e quase desfaleceu. Do lado de fora, o algoz batia no vidro do carro, pedindo para entrar, dizendo que a acompanharia. Sentiu as travas abrirem e, numa fração de segundos, gritou para o taxista seguir em frente. Assustado com a reação, o fez. Ana olhou para trás e viu, no meio do nada, apenas os olhos da fera que perdeu a caça. A chuva não estava mais lá fora, mas insistia em molhar sua face.

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Conto O manifesto das mulheres poetas Por Ana Paula Ricco Terra

São muitas as dúvidas que permeiam o cotidiano de uma mulher. Verdade que somos todas sobreviventes de Woodstock e mil motivos temos para acreditar que os grilhões do machismo foram arrebentados de tal maneira que nem o pó sobrou como resquício no tempo. Mas se vivemos de fato no paraíso da liberdade, por que insaciáveis dúvidas não nos deixam viver ausentes de culpa? Por que parece contra a natureza uma mulher admitir a si mesma que é capaz de sentir prazer? (Como se esse pequeno divertimento apenas fosse permitido de vez em quando SE um homem assumisse a responsabilidade do ato). Por que o medo de encontrar alguém do sexo oposto, sentindo por perto o falso fantasma da fragilidade? Por que o medo de pensar e falar exatamente aquilo que pensamos? Por que o medo das avós e das mães? Por que corar na frente do pai por uma pergunta pessoal que não deveria ter qualquer obrigatoriedade de resposta? Cansamos de textos sendo censurados e de estereótipos que sobrevivem ao tempo nos tomando a liberdade! Queremos ser mulher! Queremos ser pessoa! Peço licença ao senhor Marx para roubá-lo em sua valiosa ideia da tomada de consciência e transformá-la em uma luta feminina... Que tal se cada uma de nós nos apoiássemos buscando o direito de sermos livres despojadas da categoria de inferiores? Que tal se pudéssemos assumir o que antes não nos era permitido? Temos uma vantagem... Se ao homem é proibido pensar como mulher (seja lá o que é pensar como uma mulher), podemos pensar como homens (ou como quem quisermos, se o pensar como mulher deixa de ser para nós “pensar como mulher”). Dói pensar que a literatura está repleta de construções que nos excluem. Por que livros tão lindos, clássicos tão poéticos são contaminados pela ignorância que ainda não está só no passado? Desconsideramos tudo que nos tratam “como um vento que passou”, como diria nosso poeta Cazuza? Abandonamos os clássicos? Não. Eu digo: Que os clássicos sejam nossos também. Que olhemo-los com outros olhos: Sejamos os homens. Lutemos pelo direito de pensar como homens! Lutemos pelo direito de assumirmos papéis masculinos nas obras clássicas! Lutemos pelo direito de sermos POETAS (não poetisas com muito pudor e sim poetas românticos que morrem de amor).

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Balzac que esteja do nosso lado quando de Ève passarmos a Lucien; de irmã carinhosa que se desdobra no trabalho doméstico pelo irmão, seremos aquela que busca a intelectualidade, aquelas que escrevem poemas sobre a vida. Não, Durkheim, não somos diferentes, não temos experiências distintas por sermos mulheres! Somos pessoas e cada pessoa vive suas experiências de maneira individual: não somos todas iguais e não somos menos suscetíveis ao suicídio porque não sentimos como sentem os homens. Existimos e podemos ser POETAS. Goethe: o papel de Lotte não nos cabe mais – a mãe de todos não é a mulher que enche os olhos; não sabe o que é a verdadeira alma que encanta: morreu sem conhecer a mulher que é o próprio Werther. Somos todas Miladys tão fortes como Athos em Os Três Mosqueteiros. Somos e sentimos como pessoas. Nós, mulheres da Academia de Letras, somos POETAS e lutamos para, como POETAS, sermos reconhecidas.

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Conto Minha primeira “istória” Por Bruna Bianca Brandalise Piva

Há uma coisa empírica sobre o tempo, que só com o tempo se aprende. É que nossos sentidos vão ficando mais aguçados, nossos temores mais brandos e nossas escolhas mais acertadas, principalmente se essas escolhas forem literárias. Acredite, a metamorfose do homem não é só de corpo, mas, principalmente, de espírito e quando digo espírito não pretendo fazer aqui qualquer apologia religiosa, não, falo do espírito construído em mundo terreno, nesse roteiro escrito ao longo da vida, cheio de improvisos e notas de rodapé. E aí está toda a magia de envelhecer, é a metamorfose de nosso espírito de lagarta a borboleta. A primeira coisa que aprendemos com o tempo é que guardar coisas inúteis e velhas ocupa um espaço que não podemos dispor e por mais que possa ser dolorosa, a limpeza é fundamental. E foi assim que minha apostila da primeira série, o caderno do terceiro ano, o guardanapo da restaurante chique que visitei há alguns anos, a minha prova mais bem sucedida e inclusive meu primeiro texto literário foram parar num saco de lixo preto que, dentre muitos outros, se perdeu, desaparecendo naquele gira-gira sem fim do caminhão de lixo, e desse jeito mesmo imaginei todo meu passado triturado, triado e reciclado. É claro que eu queria uma cerimônia, talvez um enterro e um discurso inflamado. Mas, quem daria valor a meu primeiro conto intitulado “Minha Primeira Istória”? Pois é, ficou faltando um “h”! E o zero marcado em vermelho no meio da folha, impediu a todos de se interessarem pela leitura do texto. O engraçado é que hoje, antes de jogá-lo fora, a curiosidade apertou como um espremedor de batatas e, de palavra em palavra, fui decifrando as orações que, para minha surpresa, me levaram a um riso confuso, um riso profundo recheado pela lembrança do dia em que fui lagarta. E se há uma saudade maior em ser lagarta, é a do casulo. Oh, lugarzinho bom, ali acolhido e protegido, o homem é criança, e nada no mundo lhe pode tirar essa condição, mas a esta outra coisa sobre o tempo que só se aprende com ele, o romper do laço, a busca do desconhecido, e a independência são condições

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intrínsecas para ser borboleta, e assim, abrindo mão da velha “istória”, é que a nova história encontra espaço para florescer, afinal, como diria Richard Bach “aquilo que a lagarta chama fim do mundo, o homem chama de borboleta”.

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Conto Pão franzcês e kafê para inglês P or Danilo Souza Costa

Imagine um pão que alimenta e um café que desperta. Imagine que há uma xícara de café toda ornamentada, enfeitada, com detalhes dourados, toda se exibindo, escondendo o seu made in, e que ninguém toca, mas passa e elogia a beleza daquele café. Imagine só: um pão que alimenta e nada pra despertar. Imagine o José. Ele é seu amigo, e acorda um dia em sua casa na forma de um bicho asqueroso, monstruoso e repulsivo, lembrando uma barata gigante. Agora se pergunte: quem é ele? O bicho? O amigo? O José? Quem é esse que dormiu ontem e acordou hoje? Há diferença entre eles? Damos nomes pras coisas, às explicamos e as entendemos por analogia a outras, o que leva a crer que a visão pode confundir o sentido real das nossas certezas, que podem parecer óbvias, mas podem ser apenas reflexo de coisas que a gente acredita que é verdade, sei lá por que. Imagine o que é uma democracia, pense na sua essência, onde há um líder com discursos populistas, ou seja, que conforta as nossas esperanças moribundas, que dita de forma democrática as regras do jogo, uma vez que sempre consulta sua base aliada e as famílias que nunca elegem um presidente para nós, mas visando um interesse maior, e diria, bem maior, não deixam nossa democracia morrer, nos tornando um Estado que possui o governo dos melhores. E viva a democracia. Vivemos fazendo coisas pra atingir um não lugar muito comum: a liberdade. Vivemos acreditando no que vemos, tocamos e ouvimos. A analogia é ótima na infância, mas a filosofia deve ser trabalhada desde a juventude. O José seria seu inimigo por que parece que vai te atacar? Quem é que cria esse abismo enorme entre o ser e o não ser? Tá, a gente pensa pouco, mas alguém também ilude... As ideologias segregam, confortam e dão uma preguiça, que até ligamos a TV pra esquecer o que não nos agrada. Devemos nos preocupar com as estruturas que formam os nossos conceitos, pois o marketing de poder, de vitória e de liberdade deturpa a mente e reluz como ouro, vendendo essa ideia a quem nem queria comprar.

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Ouve-se muito falar em inversão de valores, o que pode parecer subjetivo, pelo fato de valor ser algo relativo, mas com o perdão da explicação comparativa, podemos perceber que há xícaras belas que contêm veneno e estão postas na mesa pra atrair quem não bebeu. Agora imagine que o veneno tenha o nome de café e em vezde te despertar te aliena e te mata pra si mesmo. É mais ou menos como diria um inglês aí: um esgoto com nome de flor tem cheiro de esgoto e não de flor. Mas pra saber escolher o que enfeitará a nossa casa, devemos esquecer os nomes e conceitos e procurar enxergar a essência, pra não cair no grave erro de achar que o mau cheiro vem, ou do vizinho, ou da rua.

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Conto quando P or Felipe Righetti Ganança

Quando nasci, eu já era protegido por uma Constituição que me garantia uma série de direitos, sem mesmo que eu soubesse algo sobre eles. Antes que eu entendesse o significado de uma nota de dois reais, o problema da hiperinflação já tinha sido superado e a primeira vez que fui ler sobre o assunto foi em uma aula de história na escola. Quando eu tinha 12 anos, começou a vigorar o novo Código Civil que colocava, de uma vez por todas, homens e mulheres na mesma igualdade formal, sem que ao menos eu soubesse que homens e mulheres pudessem ter direitos tão diferentes. Nunca me passou pela cabeça uma mulher não poder votar, não ter o direito de se divorciar sem dar explicações ou se casar por obrigação assumida pelos pais. Eu nunca conheci um escravo e nunca conversei com alguém que viveu nessa época. Quando eu tinha 13 anos, um operário assumiu a presidência do meu país e, mais tarde, uma mulher assumiria o mesmo cargo. Um ano depois um negro assumia a presidência dos Estados Unidos. Eu nunca vivi um dia em que o Habeas Corpus esteve suspenso. Quando eu tinha 16 anos, resolvi tirar meu título de eleitor e pude votar em quem eu quisesse. Se eu quiser fundar um partido político, eu posso. Eu nunca vi uma receita de bolo no lugar de uma notícia de jornal e eu posso ouvir, falar e ler o que eu quiser, quando eu bem entender. Talvez por ter nascido com tudo isso pronto, grande parte da minha geração cresceu com dois grandes problemas: achar que tudo sempre foi assim e acreditar que tudo isso já basta.

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Conto ‘Le & ‘La P or Karina Azevedo Simões de Abreu

Ela acordou, tropeçando um pouco nas próprias pálpebras e com o pé dormente. O dia lá fora ainda não havia desabrochado, e um cinzento clima fresco pairava sobre a manhã. Ele ainda estava dormindo, ressonando profundamente, e, embora estivesse calor (como sempre!), estava enroscado em um edredom recém lavado de conforto e maciez. Ela fez alguns desenhos, enquanto pensava em borboletas e folhas verdes. Sua cabeça doía um pouco, e os olhos denotavam cansaço e sono. Como iria bem uma coberta. Ele se remexeu desconfortavelmente, talvez antevendo que logo seria a hora de acordar, que era a última coisa que ele desejava. Tinha algumas horas de correria e longas ruas para percorrer. Ela fechou os olhos, por apenas um segundo, sem dormir, respirou fundo e sorriu. Ele abriu os olhos, por apenas um segundo, sem acordar, respirou fundo e sorriu.

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Conto Você sabe o que significa andar de mãos dadas?

Por Karina Azevedo Simões de Abreu

Andar de mãos dadas significa que, mesmo que por alguns instantes, você seguirá o mesmo caminho acompanhando e sendo acompanhado por aquela pessoa. Durante aquele breve momento, não importa o que aconteça, terá alguém para te apoiar e te socorrer. Esse alguém lhe ajudará a se levantar caso tropece, e, muitas vezes, te impedirá de cair. Ele vai te dizer o caminho quando você se sentir perdido, mas às vezes precisará que você o guie. Trilhar um mesmo caminho pode ser durante um dia, um mês, um ano ou até mesmo uma vida. É algo sério, sincero, que brota no fundo da alma como brotam as flores na primavera. Pode ser uma trilha de pedras, de areia, de asfalto, de poças de lama ou mesmo de plantas e canções. Pode ser um caminho leve como a brisa ou doloroso como um espinho. Por isso, quando alguém lhe oferecer a mão para caminhar, aceite-a apenas consciente de seu significado. Aceite-a de coração, e disposto a enfrentar alguns contratempos. Aceite-a sabendo que da chuva e dos louros raios de sol nascem o arco-íris e que a grama não seria tão bela ao amanhecer sem seu orvalho que acumulou durante a noite. Andar de mãos dadas significa que, mesmo por alguns instantes, você seguirá o mesmo caminho acompanhando e sendo acompanhado por determinado alguém. Significa ter um sorriso quando se está triste e um abraço quando se está carente. Significa ter um ombro para chorar e alguém para pedir colo, assim como significa também ter alguém para desejar um bom dia e bons sonhos; ter alguém que faça valer a pena levantar da cama, sorrir e viver. Ah, e ainda mais importante que entrelaçar as mãos é atar os corações; é estar sozinho acompanhado, é sorrir sem mexer a boca e rir sem fazer barulho, apenas o olhar. É aquela fita de cetim que enfeita a caixa de bombom dos enamorados, é a chama que crepita na lareira. Ah, é tanta coisa que já não mais o sei dizer. Sei apenas que quero caminhar no momento. Caminhar por uma longa jornada de poucos minutos, por um longo trajeto de poucos metros e por lugares nunca vistos por onde todos passam toda hora. Caminhar pelo prazer da estrada e não só pelo desejo da chegada ao destino. Então... Quer unir a sua junto com minha pequena mão e caminhar?

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Conto o desenho da menina Por Marco Antônio Ferreira Lima Filho

A menina abre seu livro de pensamentos. Nele, um infinito de possibilidades a serem feitas pela ponta de seu lápis mal apontado, porém confiável que a guria usa. A borracha fica logo ao lado para que, em um eventual erro, conserte logo assim que achar algo de errado. As páginas amareladas pedem com sua vazia expressão que alguma coisa seja feita com ela. Seja um desenho, uma frase, uma história, um pensamento... O que for! A menina se deita em sua cama e começa a pensar. Pensa em tudo que fez no dia. Lembra de quantos rostos viu desde que saiu de casa até o momento que voltou. Recorda-se dos pequenos gestos que vira ao longo do dia. Das pessoas que passavam em sua volta e lhe davam um sorriso, um ar de cansaço ou uma expressão preocupada. Seus olhos procuravam coisas inusitadas que não se via todo dia, para poder anotar em seu caderninho quando chegasse a sua casa. Levemente, a menina começa a rabiscar. Pequenas linhas vão dando formas, que viram círculos que parecem querer virar olhos pequenos e escuros, tais como ela viu em um menino. A boca é traçada com cuidado, para que o mínimo detalhe de uma boca pequena em forma de coração seja feito fielmente como havia visto. Suas bochechas redondas são marcadas pelos pequenos buracos que se formam no meio dela. O sorriso é grande, como se escondesse a boca de tão grande que são seus dentes. A menina para. Por que será que acha que falta alguma coisa? Imagina que há algo que completasse o desenho, mas não é possível trazer. Vejamos: temos a boca rosada; os olhos negros e grandes; a sobrancelha forte que lhe realça os olhos... Até mesmo coloquei os cabelos castanhos enrolados que lhe dava uma expressão de anjo! O que falta? Tentou refazer várias vezes naquela noite. A luminária focava bem no centro do papel riscado e rabiscado milhares de vezes. O grafite se misturava com o papel amarelo e deixava fortes riscos na página amarelada. As sujeiras da borracha se espalhavam pela cama a cada soprada que a menina dava quando terminava de apagar. Após um tempo, a menina se dá conta do que faltava. “Mas é claro!”, pensou ela. Num rápido movimento, fechou o livro,

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imaginou o menino que amava e pediu ás estrelas presentes a sua frente na janela: “poderia fazer-me o favor de mandar um pouco de amor dele? É isso que falta no meu desenho: um pedaço da alma dele para que o desenho seja fielmente como senti.” E assim a menina fecha o livro e vai repousar. Sua alma está limpa, sentindo-se como se estivesse nova em folha. Afinal, o que queria era poder estar do lado dele mais uma vez. Queria pedir para que uma estrela o trouxesse e o deixasse ficar ao seu lado mais uma vez para que ele pudesse deixar seu desenho e suas frases mais reais; que pudesse fazer com que o livro inteiro de imaginação fosse nada mais e nada menos do que um pedido direto para si mesma de trazer o menino um dia de volta ao seu lado. Era um livro de pedidos secretos que só tinha uma intenção: deixar o amor guardado pra quando ele voltasse.

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|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |

UTILIDADE

A frieza absoluta nunca o impedia de estar presente em vários lugares, especialmente nos mais íntimos. Toda aquela severidade e seu jeito obscuro de ser destacavam-se nos insistentes silêncios e, talvez, exatamente por isso, todos sem exceção, lhes confiavam os mais íntimos segredos, expondo-se sem constrangimento diante dele, como a desafiá-lo a ter uma vida, uma vida viva. Por vezes sua aparência lembrava restos de outras coisas, de outros momentos, de outras pessoas. Tantas formas podia assumir que quase nunca o definiam por sua expressão, apenas por sua presença ou ausência. Sempre um tanto sisudo, em sua arrogância de sabe-tudo, quase chantagista perante o que lhe caía de graça, podia ser dono do mundo se lhe apetece apenas falar.

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Não revelava sentimentos especiais ou algum apego específico, mas se mostrava útil para as senhoras mais vulneráveis que passavam muito tempo ao seu redor, solitárias e adoecidas por suas tristezas sem fim. Junto dessas existia em sua função de apoio, de socorro, guardando suas coisas particulares, atento às suas falas de abandono, segurando seus copinhos de licor ou suas xícaras de chá com alguma cerimônia, alimentando uma dependência quase obscena que lhe permitia considerar-se indispensável. Nunca fora muito de animais de qualquer espécie, todas as suas experiências com esse tipo de ser, lhe renderam arranhões, manchas e profundo desagrado. Tratava-se de um ente feito de arestas afiadas e sabia como utilizá-las para afastar o indesejável. Tinha uma perfeita noção de qual era o seu lugar no mundo e fazia bom uso dele – observando, arquivando, catalogando e organizando objetos, impressões e informações concretas e talvez também as abstratas. Não gostava dos dias por causa do sol que parecia lhe inchar as articulações, fazendo-o sentir-se um tanto bovino. Não gostava das noites porque sempre acabava do lado da cama de alguma alma necessitada - sua inabilidade emocional o tornava facilmente aborrecido. Enjoava das pessoas, enjoava dos ambientes, enjoava dos meses e estações do ano, tudo ia tornando-se igualmente entediante conforme as rotinas se escoavam. Sabia-se egoísta e vazio, mas de algum modo interessante. Sem coração ou afetos, mas profundamente prático. Em geral sem uma beleza significativa, mas em certos círculos e por certos motivos, admirável! Então ia ficando ali, tempos após tempos, em sua tarefa taciturna e inquestionável, iludido pela imobilidade de sua suposta importância. Toda fantasia de controle acabou no dia em que ela chegou. Ela ocupava com a luz do seu sorriso e seu perfume antigo, cada centímetro do ambiente. Seu humor - nem doce nem cítrico - preencheria seus dias e tudo que lhe acontecesse Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 47


a partir daquele momento. Irreverente, ela lançou sobre ele seu lenço transparente e ele incomodado com tamanha energia, sentiu-se pego por um vendaval de primavera ou um carrossel de cores açucaradas. Nada nunca mais pareceu igual. Aquela alteração brusca de sintonia o irritou muito, atarantado e agressivo acertou-lhe o mindinho do pé e esperou o grito, surpreendendo-se com a gargalhada alta que o colocou num desespero contido, recalcado, aturdido. Imobilizado pela surpresa e pela própria condição, apenas obscureceu-se mais em seu canto predileto e esperou enquanto ela o ignorava solenemente, andando por todo lado com sua leveza de fada, com seus passos cadentes de bailarina. Nunca antes conhecera um pescoço como aquele e em ganas de assassino, sonhava torcê-lo, mordê-lo, oferecê-lo aos deuses em sacrifício. Não trairia, porém, sua tez plácida nem mesmo pela mulher mais linda do mundo e toda aquela sua exagerada felicidade. Os dias passavam e quanto mais ela pairava por ali, mais ele sentia-se oprimido, quanto mais a vida dela era vivida, com suas cores e sua sépia, com suas alegrias e tormentos, mais peso ele se via carregando sobre si. Sendo assim, a idade, antes plenamente ignorada, passou a pesar-lhe os pés e com ela uma melancolia própria dos que sabem que meia vida não é melhor do que nenhuma. Uma hora ela olhou para ele com outros olhos, olhos de borboleta travessa em tarde quente e se empenhou a mudá-lo, mudá-lo tanto que o ofendeu, ao final sentiu-se meio

mulher e se, por um lado, isso o aquecia, por outro o fragilizava. Aquelas coisas escorrendo sobre ele e secando, todos aqueles cheiros, novas temperaturas e novos sabores, o confundiam demais, exasperavam, feriam sem, contudo, causar-lhe o ímpeto necessário para apenas recusar-se. Quando o tormento acabou, o outro surgiu entre afoito e misterioso. Magro em sua altura, mas quase belo com seus cabelos mal cortados. Olhou para ele apenas uma vez, seu sorriso irônico lhe pareceu de pena, nada comentou. Inerte como um morto, observou-a entrar e lançar-se nos braços do forasteiro e a forma como ele tocava nela a noite inteira, evidenciou mais do que denunciou, toda a impossibilidade que cercava suas próprias relações. Tudo fora feito para o outro, aquele outro cujas mãos passeavam com desenvoltura pelas formas que ele cultuava todo dia, aquele outro que beijava ora com suavidade, ora com furor, tudo o que ele insone, velava todas as noites, aquele que esbarrava nele os pés grandes toda vez que ia, toda vez que ia... Quando enfim descansaram, ele recebeu sobre si um bule quente que feria um pouco sua recém-pintada superfície, também havia pratinhos com guloseimas e pode vê-la abrindo seu lindo sorriso até um pouco depois dos olhos para agradecer o que o outro lhe servia com aparente amabilidade. Estudou a expressão dela cuidadosamente, as faces rosadas e brilhantes de pura languidez, os cabelos soltos em liberdade e desalinho, toda aquela beleza sem esforço que lhe revelava o rosto cheio de

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uma nova luz, seus olhos transmitindo uma meiguice pueril, denunciava aquilo que outrora ele apelidara de estranha estupidez feminina. Já conhecia aquele olhar de tantas outras vezes, apenas não lhe levara a sério, não o deixara tocá-lo, não assim, não como ela. Sentiu suas estruturas cedendo um pouco, o peso dos anos não se compara ao dos sentimentos. Sabia pela experiência alheia, ingerida por sua atuação de voyer absoluto, que plantar expectativas, em geral, se traduzia em colher decepções. Calou-se ainda mais calado do que sempre fora, se isso acaso fosse possível, enrijeceu as pernas curtas e grossas, segurou-se como pode e coisificou-se de vez, por pura preservação, embora mal pudesse compreender do que pretendia se proteger. Pensou por último se ela repararia, se em algum momento se daria conta, se o notaria, se ao menos sentiria falta da forma como ele a acompanhava em lealdade absoluta. Ao final viu-se arrastado, repartido, depredado. Feito em partes. Abandonado num terreno baldio qualquer. Apodrecendo chuva após chuva. Sem mais nenhuma utilidade.

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|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |

O MENINO, O HOMEM E O DESTINO

Mais mudanças no canto de sombras. Incontáveis são as mudas estabilidades dessa vida e incontáveis são as transições que falam. O prazer era o do movimento, da coreografia das estações, do abandonar-se e do adquirir. A dor habitava o repouso em que a cabeça dispara em brasas, que ao se lançarem marcam a pele com memórias do que foi deixado para morrer lá fora, nos frios de algum outro lugar. Seria importante identificar o exato segundo em que a névoa da primeira infância cede lugar aos labirintos das primeiras letras. Com os tocos de madeira roubados engendrava grandes batalhas e homenagens aos soldados mortos. Assim havia tarde e manhã. A saudade agoniante que sentia do irmão mais velho não se justificava por alguma ausência, antes tinha lugar na redução de seu relacionamento a diálogos oculares e suspiros de indignação. O irmão insistia em negar, ele insistia em admitir. A injustiça atordoante revelada nesta negação não dava margem para nenhum tipo de reconciliação. O pequeno intuía naquilo tudo o medo, um pavor animista que faz crer em poderes que as palavras na verdade não têm.

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Perdido nos devaneios das vacas e dos galinheiros, nos deveres escolares e na limpeza do quintal, o maior abanava do pensamento toda a angústia de simplesmente não poder voltar para casa. Mesmo durante a noite, quando compartilhava a cama com aquela cabeleira cacheada que seguia usando chupeta, fingia ser só no mundo apenas para não dar de cara com a história dos malditos adultos, esses grandes incompetentes. O olhar sempre daria com a língua nos dentes, caso os tivesse. O olhar da mãe traduzia-se em culpas e penitências fracassadas. Andava agora sempre cabisbaixa, criando uma espécie de corcunda invisível, presa de uma cantilena estranha, repleta de trivialidades que beirava a um fútil obsceno – a hora do leite, a hora do banho, a hora da cama, a hora da aula – e de hora em hora, em meio aos marulhos pouco polidos dos muitos moradores da casa do avô, os três imigrantes se esbarravam por ali e por lá numa cegueira emocional seletiva que apenas ao pequeno ofendia. Perseverante o caçula seguia ansiando a anuência do irmão. Incansável, o perseguia pela casa, pelos campos e pelas águas do imundo açude. Ouvi-lo admitir, afirmar aquilo que ambos sabiam, aquele segredo macabro que os tirara de casa, os lançara na fazenda e fizera o pai desaparecer, seria simplesmente como voltar a respirar. A crua verdade era que os dois se recordavam das visitas daquele outro, do vestido aberto com o qual a mãe saía do mato num sorriso rosado e algo tétrico. Quanto mais Cassiano reprimia o assunto, mais condenava o irmão a um ostracismo sufocante e aos monstros que arrogantes continuavam a povoar sua própria miséria. O avô era um homem bom, mas não era um homem gentil. O pequeno se livrara de sua perseguição constante graças aos surtos de asma, em compensação tinha uma legião de tias solteiras coladas ao seu cangote, elas lhe exigiam meias, cachecóis e blusas de lã mesmo em dias quentes e de sol a pino. Odiava em particular os serões quando lhe punham de Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 51


doente e o enfiavam águas amargas goela abaixo, lhe escorriam óleos grudentos pelo nariz, esfregavam seu peito com pasta de mostarda fedida e o faziam comer peixe todo santo dia, o remédio de Santo Esperidião. Incrivelmente cansado para alguém tão jovem, Cassiano se sentava de noite na varanda e gastava o tempo com as estrelas. Recordava da mãe dançando ao léu em noites soltas de verão, depois do Natal. Seus sorrisos verde-água se misturavam na prata das mocinhas do céu, brincadeiras de roda que o faziam o mais apaixonado dos filhos, o mais novo adormecia zombeteiro no colo dela enquanto os três esperavam o pai voltar da roça, a janta feita, bolos de milho servidos, a cortina da porta do quarto deles cerrada, risadinhas metálicas que indicavam que tudo ia bem. Ali no avô o tempo voava em longas torturas, um mês engolia uma década. Andava macambuzio por não tolerar a aproximação do irmãozinho. Quando sentia nos ossos o raio fixo daqueles olhos lânguidos, quando via os longos cílios que eram tão dela, a testa larga do pai, as mãozinhas roliças que tantas e tantas vezes apertaram seus braços buscando abrigo em noite de vendaval, algo ardido em seu peito se espalhava e se encolhia. Não conseguia cuidar dele agora. Não podia nem mesmo cuidar de si. Tinha se feito um barril de ódio. Podia matar o primo Otto de um pronto. Podia matar o pai que os largara ali sem nem olhar para trás. Podia matar a mãe, que teimava em ser sempre mais bonita em sua tristeza peculiar. Podia matar o pequeno

por amá-lo tanto e por não ser forte o bastante para suportar seu sofrimento romântico. Quando tal raiva se lhe apoderava dele corria com as mãos tensas para o meio do mato e matava um sapo ou esmagava um arbusto. Longe da casa corria feito louco, urrava e gemia, fazia rilhar os dentes e estapeava a própria cara com força. Bem no fundo só queria que a mãe viesse lhe buscar e o pusesse para dormir, como quando era único, ingênuo e feliz. Muito tarde para tudo isso agora, se sentia ridículo. O sentimento cinza e rijo acompanhava os três desde a manhã e ia forte até a hora de dormir. Fantasmas na janela ameaçavam a mãe que já completamente inóspita e disforme não se fazia de refém de coisa alguma – num passe errado aniquilara um mundo e não conseguia olhar adiante e encontrar nenhum recomeço. Tristeza só vem em suaves sussurros de grilo na alma boa, no anjo sem asas, na fada destituída de sua luz. O resto de nós vira fumaça de cigarro velho, antigo, fedido, desnaturado. Só um homem traído cuja família lhe escorreu entre os próprios dedos compreende o mau gosto de um fracasso tão total. Cassiano pensava no pai, sozinho num canto qualquer desse mundo de Deus, deitado com mulher da vida talvez, bêbado de muitos dias, valente para se enfiar em briga com qualquer Zé Ruela de boteco só para esconder a dor na porrada, aquele massacre longilíneo que o peito perpetuava. Ninguém pode sentir duas dores ao mesmo tempo, isso se comprova na Ciência, por segundos a mais intensa cede lugar para a mais aguda e o momento de alívio de uma dor

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por outra pode ser a exata diferença entre um sufoco e um respiro. Toda noite o pequeno se gastava de olhos arregalados, fixados na silhueta do irmão – sua única esperança no mundo. Se Cassiano conseguisse dar sentido a tudo aquilo talvez seu medo fosse embora, talvez aquela coisa no ar se diluísse, talvez o pai voltasse e todos pudessem voltar para casa. Dia após dia lutava contra o sono enquanto o irmão lutava contra o desejo de sair de perto dele. Lá pelas tantas da madrugada dormiam enfim próximo e de cabeças encostadas, a cena mais inocente do mundo capaz de esmagar de culpa a alma de uma mãe penitente do mais ridículo adultério da Terra. A asma foi piorando conforme mais e mais cotonetes iam sendo enfiados em suas orelhas por tias obcecadas por higiene. O preço do remédio fez da mãe escrava da casa. Cada dia somado em que se vivia de favor se revelava um dia a menos de leveza de sorrisos curvos, pequenos como mariposas translúcidas. Trancafiado em casa, sem permissão sequer de sair ao sol, foi sentindo um mofo crescer por dentro, um bolor azedo e nos músculos uma tensão exagerada que usava tentando conter a energia que lhe fluía íntima, seu núcleo de criança saudável teimando em aparecer. Não apreciava a vida de menina mimada que ia levando, aquilo lhe estragava os nervos e fazia multiplicarem-se lágrimas constrangedoras. Aos poucos ia ficando mais esquivo, retraído e birrento, protagonizando episódios de descontrole e hostilidade totalmente estrangeiros.

Lógicas da infância são simples e acertadas. Coisas como dizer que primo Otto era mais agradável que o pai não pareciam se coadunar com o fato de ele ter fugido de trem no mesmo instante em que o pai cego de raiva e de pinga arrastava sua mãe pelos cabelos até o rio, de onde ela voltou toda ensanguentada apenas para pegar os filhos pelos braços e caminhar léguas e léguas até a fazenda do avô. O pequeno se ressentia da falta do sofá da sala onde costumava deitar para achar figuras no teto manchado pela umidade. O maior sentia falta dos livros de história que o pai lhe dera de aniversário. A mãe sentia falta das vidraças recém-instaladas na cozinha e que permitiam ver as roupas limpas esvoaçando nos varais. O pai sentia falta do orgulho de ser homem de bem, pai de família, alguém no mundo de quem podiam precisar. Primo Otto já bisbilhotava a janela de uma nova vizinha em São Paulo. A espécie de mágoa calada entre os irmãos chegou ao ápice na noite em que o pequeno jazia roxo na cama, pulmão roncando mais que navio a vapor, olhos agigantados, contornados por pálpebras brancas de gente morta e cujo brilho grotesco parecia capaz de iluminar todo um arraial. O menininho insistia em apertar a mão do maior até doer, era tanto amor louco e desespero naquele par de janelas escuras que Cassiano jurou para si mesmo que assim que ele caísse enfim morto por sufocamento sairia correndo daquela casa maldita e nunca mais ia voltar. Embora estivesse mais do que pronto para a fuga, o pequeno não morreu. - Mãe, o que você fez foi acabar com a gente... Disse o mais velho num tom de mera constatação e aspirou fundo, como quem se alivia. Depois saiu do quarto sem aguardar o efeito do comentário. O menor ouviu. Não recriminou a mãe por nada, mas o alívio fez seu trabalho. Enfim algo causara tudo aquilo, tinha mesmo relação com as coisas que ambos haviam presenciado e não era mesmo sua culpa. Naturalmente sua melhora foi atribuída ao antialérgico. Certa ironia passou a colorir seus dias. Dava Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 53


nome aos tocos de madeira, dava-lhe caras de gente conhecida feitas com caneta hidrocor. Alguns tomavam forma e jeito de membros da família. O primo Otto amargava uma penitência sem fim enfiado até o pescoço numa garrafa PET, cheia de lama do rio. Apesar de um novo sonambulismo, que inclusive lhe rendera uma boa mijada dentro da geladeira, sentia-se mais e mais esperto e outra vez vivo. Seis meses. Viam na mãe uma magreza e um silêncio que parecia traduzir enfim o vislumbre de algum fio para sua confusa meada. Aquela tarde vazia acabou por trazer mais do que a chuva torrencial que acabou por enclausurá-los no canto mais sombrio da sala. O menorzinho aboletava-se no colo da mãe feito um pequeno morcego herbívoro grudado em uma bananeira. O grande aproveitava um resto limpo de papel de pão e desenhava cruzes de diversos tipos com um lápis de olho surrupiado de alguma tia, seus desenhos ganhavam sempre uma toada sinistra que a mãe ignorava convenientemente. O homem entrou porta dentro num rompante, um spray de chuva lhe saía das roupas umedecendo tudo ao redor. A surpresa confundia as cabeças e erguia exclamações interiores que não ousavam de fato existir no tempo e no espaço, outra vez expressão perdida no receio de que palavras soltas celebrassem reconhecimentos e a partir deles nascessem destinos. Devia ter perdido uns dez quilos e cortara a barba toda. As roupas amarrotadas e encardidas denotavam um tempo de exílio na lua.

Grandes rodelas verdes ao redor dos olhos davam-lhe um contorno geral de transtornado e se voltar a vê-lo tinha sido uma alegria, vê-lo num segundo instante foi um desconforto. O silêncio deitou-se pleno num abandono de leviandade. Os olhos se encontravam e se havia compreensão havia uma negação mútua que só palavras espadas poderiam desfazer. Tudo jazia estagnado como um quadro de natureza morta e a percepção do portal aberto esfriava barrigas e trazia asas ao pensamento. O sofrimento contínuo é açúcar em artérias saudáveis, cada grão representa corrosão e tanta doçura é amarga em longo prazo, o prazer é queimadura, todo suor é esqueleto, todo dia é um negativo, todo o ar é tóxico e a juventude se vai em teias plenas de uma falsa velhice, cujo antídoto se esconde atrás de um sorriso constante. Todo perdão é mortífero se chega na hora errada, toda a traição é imperdoável se traz em si o signo de uma covardia que para o eu sempre nasce enviesada. Cancerígena. Hipócrita. O pai tinha ido até lá para recuperar sua família. Ver os filhos fê-lo mais forte. Ver a mulher que o magoara fê-lo mais fraco. A mãe percebeu com nitidez o espectro que penetrava as narinas dele, por um momento titubeou entre os mares de culpas, a mágoa pela surra e a agonia de não achar mais sentido naquela vida de oca transição. Fora caprichosa e tola, uma vaidosa, o caso não havia durado nem o suficiente para poder chamá-lo de alguma paixão. Se cedesse ali seria para sempre moldura vazia.

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Pegou-lhe a mão e ao sentir sua repulsa esperou com humildade que ele chegasse no lugar onde ela estava agora. Aos poucos o homem fez um esforço e sorriu um pouco numa careta tensa e engraçada. A mulher inclinou a cabeça num gesto suave de ave indefesa. Os meninos se entreolharam permitindo-se pela primeira vez um pouco de esperança. Observava-se com atenção o pai erguer o peito buscando talvez recuperar um pouco da dignidade, aquela mesma que vinha assistindo escoar hemorragicamente desde que soubera dela. Desajeitado cumprimentou os outros da casa. Havia em tudo certo sentimento de decoro, uma solenidade amarela, algo como o final de um réquiem quando os músicos aliviados encerram suas partituras com cuidado para que não pairem dúvidas quando ao momento final. Cassiano foi o primeiro a enfiar suas poucas coisas no carro e aguardar sentado impacientemente enquanto os pais se despediam dos avós e tios. Com o carro em movimento dava para ver sua cabeça recostada de lado, vislumbrando o ar pelo vidro traseiro, como se dormisse os sonos dos justos, mas de olhos abertos, ainda atentos, de vigília.

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|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |

OPOSIÇÕES E CORRESPONDÊNCIAS EM MEMÓRIAS DE DUAS JOVENS ESPOSAS um estudo do duplo em balzac

Este estudo se propõe a identificar e analisar os aspectos da construção e da organização das personagens Luísa de Chaulieu e Renata de Maucombe, na obra Memórias de duas jovens esposas, de Balzac. Pretende-se destacar elementos da relação de duplo, estabelecida entre as personagens, e do movimento especular sobre os quais toda a ação da obra é articulada. Utiliza-se como fundamentação teórica desta análise o conceito desenvolvido por Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, que, ao edificar uma justaposição entre Apolo e Dionísio, representa as duas faces de um duplo que, tal qual o que ocorre entre as duas personagens de Balzac, não existem sem seu oposto. Essa dinâmica entre as personagens balzaquianas é apresentada em dois movimentos opostos que evoluem em intersecção - cada um representando os posicionamentos e a vida de uma das protagonistas – que, em constante contestação, mais do que alcançar uma complementaridade, acabam por nutrir tal antagonismo, cada qual se fortalecendo e se consolidando em seu lado da polarização. Ao final, o fenômeno estabelecido a partir desse jogo dialético é o início de uma discussão fundamental para o delineamento de um novo tipo de representação social feminina, com toda sua bagagem de duplicidade e conflito, a saber: a mulher moderna.

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De forma geral, a obra trata de uma extensa correspondência entre duas amigas de longa data, que ao abandonar o convento em busca de uma vida não religiosa, trocam as experiências vividas, cada uma em sua própria circunstância, descrevendo seus acontecimentos, sentimentos, ideias, planos e visão de mundo. Encontram-se também cartas do marido de Renata, dos dois maridos de Luísa e de um dos cunhados, todas necessárias para esclarecimentos dos fatos em si, sem que estas interrompam ou alterem o foco narrativo, que é a relação das duas personagens principais e seus desdobramentos. Segundo Ronai (2012), a primeira menção desta obra por parte do autor acontece em 1834 quando em cartas para sua noiva, Condessa Hanska, Balzac anuncia que vai ocupar-se “com as memórias de uma jovem esposa”. Apenas em 1841 define como título definitivo Memórias de duas jovens esposas, revelando inicialmente uma óbvia intenção de escrever, não em forma de cartas entre duas amigas, mas, sob a forma de memórias escritas por uma só. Muitas informações corroboram a ideia de que a primeira figura a ser imaginada por Balzac tenha sido Renata. Falas de Renata para Luísa, como “é que tu me afiguras uma outra eu mesma” ou como “Tu, querida Luísa, serás a parte romântica de minha existência” ilustram por si mesmas essa ideia. Evidências atribuem o quadro da vida conjugal de Renata, tão realista para os padrões da época, a confissões reais de uma amiga do autor, Sra. Zulma Carraud. A figura correspondente de Renata, Luísa, parece ter nascido de uma necessidade de melhor explicar a vida da primeira por meio de uma oposição. A temática do duplo é recorrente na literatura a partir do século XVIII, se num primeiro momento é utilizada como um reforçador da ideia de homogeneidade nos aspectos identitários, no romantismo passa a ser retomada do ponto de vista contrário, ou seja, da heterogeneidade (Gonçalves, 2011). Nesse período o conceito de singularidade do sujeito é deixado de lado, consequentemente, trazendo uma Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 57


ções que expressem desmedida, vibração, autenticidade (como, por exemplo, a música, o sofrimento, o sexo) entre outras.”

fragmentação da ideia de eu. É da perspectiva dessa quebra de unidade do eu que o duplo heterogêneo surge, tornando-se várias vezes metáfora da busca pela identidade. Em sua heterogeneidade, o homem objetiva afirmar uma integralidade, uma unidade, uma identidade homogênea que precisa se repensar e se reconstruir a cada instante. (Bravo, 2002) A identidade se constrói por meio das relações com o outro. O eu só existe através do outro, o outro é aquele que nos direciona, só podemos definir nossa posição em relação ao outro. O processo de compreender-se só pode se realizar mediante a alteridade. O duplo é uma instância sempre presente, crítica e sempre gerando opiniões por parte de seu outro, já que é por meio dela que o sujeito constrói sua identidade. (Bakhtin, 2006) É desse movimento constante de compreender a si e ao outro através da constante oposição que surge a força dessa narrativa. A dicotomia Apolíneo-Dionisíaco - expressão referente aos mitos gregos de Apolo e Dionísio - foi popularizada por Nietzsche, na obra O nascimento da tragédia, como um contraste entre o espírito de racionalidade, ordem e harmonia intelectual, representado por Apolo e o espírito da espontaneidade e do êxtase, representado por Dionísio.

Apolo surge como um deus de “poderes configuradores”, pois governa a forma, a proporção, a perspectiva (entre outros elementos) gerando harmonia e a “ilusão” da bela aparência das coisas. É o mito que representa a semente do pensamento racional, desenvolvido posteriormente pela filosofia, trata de experiências que se relacionam com a exatidão, característica própria da razão, sendo que mesmo a fantasia apolínea nasce da crença na supremacia da objetividade, da dominação da vida por meio de artifícios reflexivos. O caráter apolíneo, de propensão filosófica, possui o dom de considerar homens e todas as coisas como imagens oníricas e interpreta a vida através dessas imagens. Através de uma limitação mensurada por elementos racionais, de uma liberdade em face das emoções mais selvagens, desfruta de uma sapiente tranquilidade e de uma ênfase no princípio da individuação (conceito junguiano que descreve o processo através do qual o ser humano evolui de um estado infantil de identificação para um estado de maior diferenciação, o que implica uma ampliação da consciência).

No que tange à arte e a vida podemos denominar apolíneas as manifestações que expressem exatidão, harmonia, prudência, ilusão (como por exemplo, as artes plásticas) e dionisíacas as manifesta-

Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida e, para poder observá-la, o autocontrole. E assim corre ao lado da necessidade estética da beleza, a exigência do ‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em

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demasia’, ao passo que a auto-exaltação e o desmedido eram considerados como os demônios propriamente hostis da esfera não apolínea. (Nietzsche, 2007, p.370) No duplo balzaquiano, cabe a Renata o caráter apolíneo, tem esse papel reafirmado pela própria parceira de dualismo em falas como as que se seguem: “Portamo-nos as duas de modo bem singular: muita filosofia e pouco amor, é o teu lema; muito amor , pouca filosofia, o meu.” (Balzac, 2012, p. 351) “Ó minha sublime Renata, acho-te agora muito grande! Dobro os joelhos diante de ti, admiro tua profundeza e tua perspicácia.” (Balzac, 2012, p. 404) “Querida imbecil, a tua carta bem mostra que só conheces o amor teoricamente.” (Balzac, 2012, p. 440) “O que vais classificar de minha loucura, minha Renata, eu a quis realizar só por mim...” (Balzac, 2012, p. 467). Ao aceitar o papel imposto pelos pais, de casar-se cedo com um homem mais velho e conveniente, imediatamente a personagem se apropria de uma severidade e de uma maturidade pouco esperada numa moça tão jovem. De quase noviça a espécie de oráculo, Renata desliza por sua trajetória previsível, recheada de estratégias de ascenção social e econômica, numa posição bastante confortável enquanto soberana de um marido velho totalmente submisso e, senhora de si, através de um controle milimétrico e ferrenho de cada emoção e desejo que a sorte poderia lhe trazer. Em raras exceções, quando confrontada pela felicidade amorosa de Luísa, demonstra algum senti-

mento pelo fato de ter aberto mão de suas ansiedades adolescentes pelo amor e consola-se sempre na possibilidade do amor materno, embora reconheça que a presença de Luísa e de sua oposição lhe possibilita manter-se em seu equilíbrio apolíneo, apesar de constamentemente lhe criticar os “desvarios”. Apolo deseja sempre conduzir os seres a uma vida sensata e tranquila, traçando linhas fronteiriças entre eles e trazendo à sua memória, através de exigências de autoconhecimento e comedimento, que tais linhas são as mais sagradas do mundo. (Nietzsche, 2007) No caso de Renata, tais linhas estruturantes são as normas sociais e as exigências culturais da época, suas imposições ao papel feminino adequado. Embora seja impossível não comentar, que ao contrário do que era esperado pelos padrões de então, Renata se torna a franca soberana de sua casa. Ainda que mascarada pelas aparências para não ridicularizar o marido, fica explícito em toda a narrativa, que uma jovem de 17 anos dominava e conduzia um marido de 37 em todas as coisas, realizando a contento cada uma de suas ambições. No discurso da persongem são explícitas as características formais do caráter apolíneo. Em cartas recheadas de descrições imagéticas e de análises filosóficas, todos os outros personagens e as circunstâncias surgem como elementos de um quadro sobre o qual ela reflete, analisa e disserta. Construindo para si mesma e apregoando a Luísa, as bases da ilusão de um controle absoluto – sobre si mesma, sobre a vida, sobre as pessoas que a cercam e sobre o destino – e através da qual estabelece suas escolhas e posicionamentos de vida, como demonstram suas expressões abaixo: [...]vejo a vida como uma dessas grandes estradas da França, lisa e suave, sombreada por árvores eternas. (Balzac, 2012, p. 305) Minha vida está agora determinada. A certeza de seguir por um caminho traçado convém igualmente ao meu espírito e ao meu caráter. Uma grande força moral Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 59


corrigiu para sempre o que denominamos os acasos da vida. (Balzac, 2012, p. 324) Se empreendo reerguer esse caráter deprimido, restituir seu brilho às qualidades que nele entrevi, quero que tudo pareça espontâneo em Luis. Tal é a tarefa suficientemente bela que me impus e que basta para a dignidade de uma mulher. (Balzac, 2012, p. 345) Estudei cruelmente o papel da esposa e da mãe de família. (Balzac, 2012, p.365) Durante essa vida animada por festas (...) e à qual assisto como a uma peça teatral bem representada, eu levo uma vida monótona e regrada, à semelhança da vida de convento. (Balzac, 2012, p. 395) A individuação apolínea, revelada num desejo perene de proteger seu verdadeiro eu, evitando emiscuir-se no outro, o que representa o oposto do anseio dionisíaco pela unificação, é muito bem ilustrada por Renata ao dizer que “Permanecendo na solidão, uma mulher nunca se torna provinciana, conservando-se o que é.” (Balzac, 2012, p.325) ou em “eu muito desejava permanecer nessa bela estação da esperança amorosa, que, não gerando o prazer, deixa à alma a sua virgindade”. (Balzac, 2012, p.341) Assim como em Nietzsche, sem a relação fraterna complementar Apolo-Dionísio, a tragédia não seria um espetáculo possível - pois sem Apolo ela perderia seu caráter mimético e sem Dionísio perderia o vigor e a expressão de vida, tornando-se apenas uma expressão formal e uma supremacia da razão – não se-

ria possível uma Renata sem uma Luísa, o que parece ter sido bem intuído e bastante investido por Balzac na construção das personagens. Renata sem Luísa não passaria de um diário de uma jovem casada ao gosto dos costumes da época, às voltas com suas múltiplas obrigações de mãe e dona de casa ambiciosa, por sua vez, Luísa sem Renata traria talvez as delícias e martírios de uma jovem passional e espontânea em conflito com as exigências da sociedade, lugar comum nos romances do século XIX. Já as oposições e correspondências entre as duas, acentuadas pelo estilo epistolar que enriquece muito a narrativa, ao permitir maior ingresso no universo subjetivo das personagens, acabam por transformar a obra em uma criação de “extraordinária penetração psicológica, com intensa dramaticidade” (Ronai, 2012, p.271) que pode ser considerada de fato uma grande obra e com uma sofisticada atmosfera trágica, que dificilmente poderia ser produzida de outra forma. Como possível primeiro vértice do duplo, Renata retrata Luíza num tom profético que sempre destaca seus lugares antagônicos e sua ligação de almas: Em que sociedade brilhante vais viver! Em que tranquilo retiro terminarei eu minha obscura carreira! (Balzac, 2012, p. 301) Enquanto te preparas a colher as alegrias da mais ampla existência, a de uma srta. de Chaulieu, em Paris, onde reinarás, tua pobre corça, Renata, essa filha

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do deserto, caiu do empíreo onde nos alDionísio aparece como oposição à ilusão candorávamos nas realidades vulgares apolínea de controle. Entre outros atributos, é de um destino simples de uma margarida. “o deus da vida, da metamorfose, da desmedida, (Balzac, 2012, p.305) da morte, do sexo, da dor e da música.“² DioTu, querida Luísa, serás a parte ro- nísio é a expressão da vida autêntica, “na qual mântica da minha existência. (Balzac, a alegria é vivida quando a situação o pede e o 2012, p.306) sofrimento não é negado quando a dor se lhe Afligiste-me sem querer, e, se não fôs- apresenta”². Insta a uma experiência de vida semos duma única alma, eu diria que me sem artifícios, espontânea, verdadeira, onde a feriste, mas não nos ferimos também a dor é vivenciada sem anestésicos metafísicos, nós mesmas? (Balzac, 2012, p.362) em total oposição ao caráter simétrico e harTuas cartas dão um sabor passional monioso de Apolo. Através do caráter dionià uma vida doméstica tão simples, tão síaco, acontece um lançar-se à radicalidade da tranquila, uniforme como a estrada real vida, para a realidade dos revezes do destino. num dia de sol. (Balzac, 2012, p. 373) É comum uma associação dos cultos dionisía...teus amores parecem-me um sonho! cos com o estado de embriaguez e desenfreada Por isso sinto dificuldades em compreen- licença sexual, que conduz a um esquecimento der como os tornas tão românticos. (Bal- de si próprio e a uma libertação de si mesmo zac, 2012, p.396) culminando num entusiasmo, resultado da Das duas eu sou um pouco a Razão, possessão pelo deus. Desta forma, o indivíduo como tu és a Imaginação; eu sou o gra- com todos os seus limites, afunda numa espéve Dever, como tu és o louco Amor. Essse cie de autoesquecimento e com ele, esquece-se contraste de espírito que não existia se- também dos preceitos apolíneos, o desmedido não para nós duas, à sorte aprouve con- surge como a verdade, toda a contradição da tinua-los nos nossos destinos. (Balzac, existência humana aparece com suas dores e 2012, p.432) prazeres, surgindo como do coração da natureza. Não se fala mais de ascese, espiritualidaSurge então Luísa - provavelmente a se- de ou dever, apenas de uma opulenta e triungunda criada pelo autor, mas a primeira a fante existência. surgir no romance - dotada de um caráter dionisíaco ilustrado até mesmo por uma profun[...]o único Dionísio verdadeiramente da relação com a música, arte dionisíaca por real aparece numa pluralidade de confidefinição: “Unicamente a música me encheu gurações, na máscara de um herói lutaa alma, só ela foi para mim o que foi a nossa dor e como que enredado nas malhas da amizade.” (Balzac, 2012, p.319) vontade individual. Pela maneira como o deus aparentemente fala e atua, ele se assemelha a um indivíduo que erra, anela e sofre. (Nietzsche, 2007, p.67) Luísa demonstra em cada carta, observação, descrição, tamanho entusiasmo e magnetismo, que torna impossível ao leitor uma não identificação instantânea. Toda sua sede de viver e sua curiosidade pela vida são reveladas a cada situação vivenciada e na maneira como a personagem muito mais sente, do que pensa as situações. Existem uma verdade e uma Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 61


espontaneidade características em Luísa, que a despeito de sua inteligência e de sua perspicácia, acabam por dominar suas escolhas, nem sempre acertadas e quase nunca precavidas. Aspectos preponderantes de seu caráter passional se revelam constantemente em sua fala: É uma vantagem imensa não ser uniforme. (Balzac, 2012, p.293) Sinto ainda vivamente o golpe desse primeiro choque de minha natureza franca e alegre com as duras leis do mundo. (Balzac, 2012, p.315) O amor é, certamente, uma enncarnação, e que condições não serão necessárias para que ela se realize! (Balzac, 2012, p.319) Há não sei que apetite em mim para as coisas desconhecidas ou, se quiseres, proibidas, que me inquieta e revela, no meu íntimo, um combate entre as leis da natureza e as da sociedade, mas surpreendo-me a fazer transações entre essas potências. (Balzac, 2012, p.374) Em toda a obra de Balzac observa-se uma preocupação intensa e, inclusive admitida pelo próprio, pela retratação autêntica dos costumes de sua época. É nítida em toda obra balzaquiana essa nuance visionária que lhe permite intuir, através dos acontecimentos históricos, políticos, econômicos e sociais, o sentido de seu tempo, identificando as potências anônimas e as forças do invisível, suas tendências e probabilidades. Ainda que se atribuam mui-

tas vezes ao autor a alcunha de conservador, o mesmo não consegue evitar ver-se fascinado por personagens que escapam ao seu controle como Luísa de Chaulieu, exatamente por não se encaixarem nas exigências e papéis de sua época. Talvez desse fascínio tenha surgido essa leitura da história em colisão constante com a progressão romanesca evidenciada na construção dessas duas personagens. Embora o desfecho trágico de Luísa corresponda exatamente ao apogeu de Renata, quando da conquista de todas as suas ambições: Paris, os filhos, a ascensão do marido e sua afirmação como grande dama da sociedade, Balzac não nega a Luísa a dignidade de sua escolha, uma vez que seus amores foram verdadeiros, demonstrando aqui uma equivalência dos contrários e uma autenticação da importância de cada um, todos os seus desejos são realizados, inclusive o de morrer aos 30 anos, ainda jovem, bela e atraente. Ao final, ao ver a amiga morta (seu duplo), de coração despedaçado, Renata chama pelos filhos, a base sobre a qual todo sentido de sua vida e de seu controle ilusório fora construído, sem Luísa lhe resta apegar-se a eles para manter-se viva. A correspondência entre as personagens se dá, não só por sua visão de mundo e características pessoais, mas também na forma como o autor trabalha as relações de tempo e de espaço. Se de início temos Luísa debutando em Paris e Renata começando uma vida de casada provinciana, vemos aos poucos as duas invertendo tudo, Luísa morrendo ao final, isolada em um chalé no campo enquanto Renata

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acompanha o marido em seu sucesso profissional e social em Paris. Enquanto Luísa, sem conseguir gerar filhos, se aprofunda nas experiências amorosas por dois homens diferentes, em dois momentos diferentes, em duas relações muito diferentes, hora sendo adorada, ora adorando, Renata gera três filhos a quem se dedica e com quem se relaciona mais profundamente na impossibilidade de entregar-se amorosamente ao marido, sentido sempre como homem inferior, a quem cabia a ela elevar. Se no início temos a sensação de que Luísa abre-se para a vida, enquanto Renata se enclausura, ao final, temos o sacrifício de Luísa em prol da ascensão de Renata, concluindo a dualidade das personagens. Seguindo o conceito de Candido, de que “o escritor dá a personagem, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva de sua existência e a natureza de seu modo de ser” (1995, p.59), concluímos que na obra citada, onde o duplo Luísa-Renata se contrapõem constantemente em valores renovadores e conservadores da sociedade vigente, observa-se através da natureza de cada personagem e de suas relações, um trabalho de revisão constante de questões fundamentais para a construção de uma nova identidade feminina, díades como: dever x paixão, amor x maternidade, dependência x autonomia, dominação x submissão, são discutidas exaustivamente e organizados num posicionamento apolíneo x dionisíaco por si mesmo muito produtivo. Acompanha-se no enredo o desdobramento das escolhas das

personagens, sendo que o destino de cada uma define e é definido pelo da outra, não de forma intencional, mas de forma especular. Deste modo, destacamos a importância desta obra ao discutir questões pertinentes, ainda hoje atuais, revelando a multidimensionalidade do autor, a acuidade de suas percepções e a atemporalidade de suas contribuições.

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|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |

REVISANDO LILITH EM A PELE QUE HABITO compreendendo os aspectos da conflitiva homem-mulher

Assistir ao filme A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, é entrar em contato com o Mito da forma mais perturbadora possível, ou seja, reatualizado. Tudo ali é mítico! O tempo é mítico porque é circular, passado e presente se substituindo num emaranhado de fatos que aos poucos ganha significado e significados os mais surpreendentes, significados que mudam tudo, dando ao enredo novos equilíbrios, um novo entendimento, portanto, significados míticos. E mesmo a tentativa da personagem Vera de demarcar o tempo, escrevendo os dias na parede, iniciando de trás para frente, se perde num infinito de riscos mediados por desenhos míticos, míticos porque desenhos que buscam explicar o homem. O espaço é mítico. A escolha de Toledo como cidade central da trama não poderia ter sido mais acertada. A cidade espanhola, declarada 'World Heritage Site' pela UNESCO em 1986 por sua característica de coexistência pacífica das culturas cristã, judaica e islâmica (“The City of Three Cultures”). Lugar onde mundos se encontram e se confluem - na lógica mítica, ponto de onde os mundos também se originam.

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Talvez, a presença de elementos do Brasil no filme não se deva apenas ao gosto pela cirurgia plástica, como justifica o diretor, fazendo muito mais sentido, assim, a ponte do quadro de Tarsyla Amaral, exposto na parede do quarto, na cena em que Gal carbonizada caminha para a janela. Brasil - um lugar onde as culturas também se encontram, se confluem e, portanto, de onde também se originam. Chama a atenção o nome da mansão do médico, “El Cigarral”, ou lugar das cigarras, alusão clara ao fato que se tem ali um lugar onde metamorfoses acontecem: uma casa de campo que é palco de encontros e tragédias, onde coisas vivas são criadas e recriadas sob o desejo de um demiurgo autoritário, onde o sagrado está presente através de deuses pendurados nas paredes (Vênus, Dionísio e Ariadne) e onde conversas ao redor de grandes piras incendiadas explicam as origens e os segredos da vida. Temos até um jardim de mansão para orgias dionisíacas. Os personagens são míticos: temos um Adão /Lilith /Galatéia enclausurado (Vicente-Vera), temos um Prometeu pós-moderno/ Frankenstein espanhol/ Pigmaleão/ Dionísio (Robert), temos também um Zeus lascivo e infantilizado (Zeca) metamorfoseado em tigre amordaçando a própria mãe e violentando uma mortal - homens agindo como deuses, segundo seus desejos e intentos, acima do bem e do mal, oprimindo os mortais, geralmente mulheres (ou homens que transformam em mulheres... rs..). Temos virgens apavoradas (Norma) diante de homens-sátiros excitados e confusos (Vicente) e até uma Europa/Lilith mãe de monstros (Marília). Tudo isso numa amoralidade que soa muito natural, como devia ser no Olimpo. São tantos os mitos evocados pela história, pelos detalhes, pelos fatos do filme e pela atuação dos personagens que antes de mergulhar nessas analogias, faz-se mais do que necessária uma introdução ao assunto. A partir do século XX, os eruditos ocidentais retomaram a percepção de mito oriunda das sociedades arcaicas, passando a compreendê-lo como a designação de uma história Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 65


verdadeira, dotada de um caráter exemplar, significativo e sagrado. O homem moderno, compreendendo a si mesmo como construído pela História, assim como o homem arcaico se considerava o resultado de uma série de eventos míticos, acaba por admitir o mito, não como teoria abstrata ou fabulação vã, mas como elemento constitutivo de sua formação, codificação verdadeira do sagrado primitivo e sabedoria prática. (Eliade, 1963, p.7) Nas sociedades onde o mito vive como modelo para a conduta humana, dando valor e significado à existência, é possível esclarecer não só uma etapa na trajetória do pensamento humano, mas também elucidar a contemporaneidade - captar os sentidos por trás da conduta, entender suas causas e reconhecê-las como fenômenos humanos. O mito é uma realidade cultural extremamente complexa (...) conta uma história sagrada, ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio (...) narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. (Eliade, 1967, p.11) Todo mito de origem pressupõe e prolonga a cosmogonia; como a criação do mundo é a criação por excelência, a cosmogonia torna-se o modelo exemplar para toda a espécie de

‘criação’. Todo mito de origem introduz uma situação nova, algo que ainda não existia. O meio cósmico em que se vive, por mais limitado que se vive, por mais limitado que possa ser, constitui o “Mundo”; sua origem e sua ‘história’ precedem qualquer outra história individual. (...) Uma coisa tem uma origem porque foi criada, isto é, porque um poder se manifestou claramente no Mundo, porque um acontecimento se verificou. (Eliade, 1967, p.39) Para o homem religioso, o essencial precede a existência, o homem tornou-se o que é devido a uma série de eventos, o mito os relata e com isso explica como e porque a humanidade se formou dessa maneira. A existência real se inicia no exato instante em que este homem recebe essa história primordial e aceita as suas consequências. Sempre se trata de uma história divina, portanto, eterna e atemporal. Os eventos essenciais não são os mesmos para todas as religiões. No caso do mundo judaico-cristão (ou seja, o nosso), o evento essencial é o drama do Paraíso, cujo qual constituiu e definiu a condição humana como se apresenta. Inevitável pensar em mitos de criação (e tudo no filme gira em torno da criação, na figura deste Prometeu Pós-moderno, Frankenstein espanhol), sobretudo na nossa cultura ocidental, sem pensar no Éden e em todos os desdobramentos que isso significou para nós, ainda mais no que tange à problemática da relação entre gêneros.

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Almodóvar, talentoso e ousado cineasta, trazia em si fundidos o princípio masculino e grande inovador da sétima arte e reconhe- o feminino, só depois teriam sido separados cidamente um questionador dessas relações, sucessivamente. Segundo os comentários do cuja temática se apresenta de forma insisten- Rabi Abba, no livro do Esplendor – o Sepher te em toda a sua obra (títulos como Mulheres Ha-Zohar (um dos livros Canônicos judaià beira de um Ataque de Nervos, Fale com Ela, cos, série de comentários místicos sobre a Tudo sobre minha Mãe, Ata-me, Abraços Parti- Torá - os cinco livros de Moisés - escritos em dos, entre outros, são um verdadeiro desfile aramaico e hebraicomedieval, contendo uma de diversas abordagens sobre o assunto), traz discussão mística sobre a natureza de Deus e em A Pele que Habito, em todo resgate mitoló- considerações sobre a origem e estrutura do gico que o filme propõe, mais um lugar onde universo, a natureza das almas, pecado, reo conflito do Paraíso, em sua versão comple- denção, o bem e o mal, e diversos temas relata, incluindo o Adão andrógino e Lilith, é re- cionados), o primeiro homem era macho e fêtomado e discutido. Para quem nunca ouviu mea precisamente para que se assemelhasse a essa, cabe uma explanação. Deus que não tinha distinção de sexos em si. Segundo o mito judaico-cristão, Jeová-Deus (Sicuteri, 1998, p.13) decidiu criar o homem para que se tornasse o Pode-se associar a esse entendimento, o coroamento da criação e disse: “Façamos o ho- mito do Andrógino Primordial, considerado mem, que seja a nossa imagem, segundo a nos- um representante do mito do duplo na mitosa semelhança.” (Gênesis 1.26) logia grega, localizado n’O Banquete, de PlaEmbora possa se pensar na estrutura afe- tão. Segundo o filósofo grego, a constituição tiva e sexual de Adão em termos antropológi- do homem era diferente da atual, havia três cos, existe um mistério obscuro a respeito da sexos na espécie humana, além do masculiprimeira companheira de Adão: a mitologia no e do feminino, existia um que participava bíblica reforça a ideia de uma androginia ini- tanto no aspecto, quanto no nome de ambos cial, ao afirmar que “Deus criou o homem à os outros. O masculino era considerado fisua imagem, à imagem de Deus o criou, ma- lho do sol, o feminino da terra e o comumcho e fêmea os criou.” (Gênesis 1.27) Este é -de-dois, da lua. Os andróginos eram fortes um trecho sinuoso, pois introduz o conceito e orgulhosos de sua completude e perfeição, de androginia no indivíduo, segundo o prin- atreveram-se contra os deuses e foram punicípio da harmonia total do Uno que é feito de dos, separados. (Santos, 2011, p.104) Dois e também perpetua, através da multipliDa mesma maneira, o homem do Éden cação da espécie, na união do masculino com o - inicialmente Uno e indiferenciado - ao gafeminino, a imagem de Deus, já que o homem nhar maior consciência, é separado em dois. lhe é semelhante. Sob essa perspectiva, Adão A compreensão dessa separação, como se deu e quais foram suas consequências é essencial para esse estudo. Segundo a mitologia judaica e babilônica, inicialmente o homem, além de andrógino, teria também uma sexualidade indiferenciada e primitiva, acasalando-se inclusive com animais, afastando-se dessas práticas quando conseguiu reconhecer a mulher, uma “auxiliadora que lhe fosse idônea” (Gênesis 2.18), o Adão bíblico solicita uma companheira quando identifica sua própria insatisfação. Os comentários rabínicos consideram Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 67


uma metáfora desse abandono do primitivismo, o livro sagrado dizer que Adão deixaria pai e mãe para unir-se à mulher (uma vez que o mesmo não tinha pais). Assim fica velado o desinteresse pela inferioridade animal ao orientar-se para uma companheira mais digna. Comenta-se, inclusive, que Adão inicialmente tinha um rabo, que lhe foi retirado para seu decoro, informação ratificada pelos estudos científicos a respeito da evolução do corpo humano. (Sicuteri, 1998, p.15) É no momento em que Adão nomeia os animais, em Gênesis 2.20 que parece compreender a necessidade da diferenciação, Adão abandona então a parte de sua identificação com o divino expressa na androginia, supera a sexualidade animal e eleva-se pedindo a Deus uma companheira. De acordo com a compreensão rabínica, Deus não teria criado logo de início uma companheira para Adão porque “viu que Adão se lamentaria dela, por isso não a criou enquanto não a tivesse pedido...” Deste modo a mulher nasce, por desejo de Adão, que dera-se conta de sua própria solidão e também de si mesmo, de sua própria alma. O mito de Lilith surge na grande tradição oral, reunida nos textos de sabedoria rabínica de versão jeovística e é paralelo, precedendo-o em alguns séculos, ao da versão bíblica. Tais narrações, especialmente no que concerne ao nascimento da mulher, são repletas de contradições e mistérios excludentes. Deduz-se que a narração sobre Lilith, primeira esposa de Adão, perdeu-se ou foi removida no período da transposição da versão jeovística para a sa-

cerdotal, em seguida sendo alterada pelos Pais da Igreja. (Sicuteri, 1998, p.23) A redescoberta de Lilith nos remete a uma compreensão da origem da relação homem e mulher, da cisão entre instintivo e racional, também a um esclarecimento do grande equívoco do primado do masculino sobre a mulher sentida como inferior. “Toda a história psicológica da relação homem-mulher (...) é uma série de notas de rodapé à história de Adão e Eva.” (Hillman, 1984, p.13) Dizem os rabinos que desde o início de sua criação, Lilith foi somente um sonho e o sonho, para o homem, é a voz potente de seu espírito e de sua profundidade interior. No sonho não existe espaço para verdade ou inverdade, para a lógica ou a fantasia. No sonho o homem está inteiro (...) E tudo existe, como existe o homem. Porque existe o homem que sonha. E Lilith para nós nasce talvez do sonho ou da narrativa dos rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva. (Sicuteri, 1998, p. 25) Lilith pode ser identificada nas sutilezas, subentendidos e alusões analógicas do Beresit-Rabba (o primeiro livro da Torá). Surge definitivamente em Gênesis 1, Deus os abençoou e, segundo a versão jeovística, macho e fêmea humanos estavam em estado animal, indiferenciados e sem disparidade entre os sexos. Eles eram informes. O “desta vez” de Gênesis 2.2225¹, quando da criação de Eva, dá margem de

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referência para esta mulher antecedente. Segundo a tradição, Lilith nasceu cheia de saliva e sangue e era capaz de instigar em Adão uma insustentável perturbação e isso o assustou terrivelmente. Em outra versão, teria sido criada com fezes e imundície em vez de pó puro, denotando intenção de Jeová em criar a mulher inferior ao homem. Na criação de Lilith está implícita a perda da unidade mágico-religiosa dos dois sexos na pessoa única do ‘homem’. A mulher, evidentemente, enquanto reprimida e comprimida sob a autoridade do macho, tentava reconquistar então, a paridade. Lilith nasceu das mãos do Jeová Deus, impura, humana: Um Adão, portanto. (Sicuteri, 1998, p. 28) Como Lilith nasce após Adão, ao entardecer do sexto dia, assim como os répteis e os demônios, já entra no mito com uma carga de fatalidade, um verdadeiro espírito deixado informe por Deus, ela é uma companheira que possui uma identificação com a serpente e o demônio, Lilith estaria mais próxima do protótipo natural da mulher do que Eva. As diferentes reações de Adão frente às duas naturezas femininas, censurando Lilith (vista como carnal e como aquela que seduz) e aceitando Eva (vista como imagem do bem), não o isenta de que ambos os femininos lhe tragam desgraças, uma vez que a dócil Eva também é seduzida pela serpente e pela sua própria curiosidade.

Embora a mulher tenha sido criada para personificar o sentimento que liga o homem da antiga tradição a seu Deus, o amor entre o casal é perturbado quase que de imediato. No caso de Lilith, não havia paz entre eles porque quando se uniam sexualmente na posição tida como mais natural – mulher por baixo do homem – ela se impacientava e questionava porque deveria abrir-se sob o corpo de Adão, porque deveria ser dominada por ele, se fora feita do pó e, portanto, sua igual. Solicitou então a inversão de posicionamento para estabelecer uma paridade entre eles. Adão recusou e a submeteu. Lilith não aceita essa imposição e se rebela contra Adão, pronuncia irritada o nome de Deus, acusa o homem, transgride a ordem e rompe o equilíbrio. Adão se vê abandonado e em seu desespero recorre ao Pai que interpreta o desafio ao homem, como um desafio ao divino. (Sicuteri, 1998, p.35) Lilith voa para longe, na direção das margens malditas do Mar Vermelho. Após ter profanado o nome do Pai, se torna o veículo do pecado, o símbolo da transgressão. O “demônio’”em Lilith impele a mulher a “fazer algo” que o homem não permite: Lilith pede a inversão das posições no coito, Eva obedece a serpente e come o fruto proibido. Parece haver uma espécie de lei natural que impele a mulher à prevaricação para não ser obrigada a submeter-se ao homem. Tanto Lilith quanto Eva assumem o risco de seus atos e modificam tudo, dão origem a uma outra coisa, a uma nova ordem, a uma situação nova, a um outro mundo. Lilith tem sua natureza alterada quando blasfema contra Deus, já não é mais capaz de obedecer, não é mais companheira de Adão, passa a relacionar-se com espíritos maléficos e a parir demônios. Embora tenha uma natureza astuta como a da serpente e uma grande sabedoria demoníaca, seu sofrimento aumenta quanto maior se torna o seu conhecimento. Lilith permanece na própria liberdade, endemoninhada, talvez rainha do inferno, como seu espírito feminino. Ao declarar guerra ao Pai e receber dele um papel demoníaco, desencadeia força destrutiva e desde então não há paz para o homem. Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 69


Lilith é associada à experiência das fases lunares (lua nova representaria sua fuga do Éden) e manifesta o lado feroz de todas as divindades femininas. Vemos aspectos dela em Hécate, nas Lâmias, Eríneas e Fúrias, em Medéia e nas bruxas da Idade Média, também em toda mulher que não se submete e não desiste diante da dominação masculina. Pensar em Lilith independente, sobrevivendo por si mesma em oposição ao macho e à lei do Pai, sugere a ideia de uma postura de total competição com o homem ou uma elaboração interna do tema da relação e a respeito disso, o mito das Amazonas sugere uma boa analogia, já que elas constituem a forma arcaica daquilo que é chamado impropriamente de feminismo. É sobretudo em Vicente-Vera, o homem transformado em mulher e em sua jornada que o mito de Lilith incide. O filme é baseado no romance francês Mygale (ou tarântula), de Thierry Jonquet, que rege sua principal linha narrativa com algumas mudanças criativas que melhoram o enredo. Inevitável ligar o simbolismo da aranha ao órgão sexual feminino - ideia talvez herdada do populacho, mas que ganha até em Saramago seu lugar, imortalizada em O Homem Duplicado. Atribui-se o título muito mais, porém, ao fato desse tipo de aranha em vez de teias, cavar túneis na terra, preparando alçapões para prender suas vítimas. Pensando no título escolhido por Almodóvar, A Pele que Habito, faz muito sentido, uma vez que a nova pele indestrutível que continha o eu de Vicente, representava muito mais do que um aspecto

fenotípico, mas um verdadeiro aprisionamento psíquico - pele essa acompanhada de uma vagina, órgão celebrado e amaldiçoado pelos séculos afora, causador de misérias, doador de prazeres, lugar por onde se obtém a luz, para Vicente um verdadeiro alçapão. Tendo-se em vista o nome dado por Louise de Bourgeois (de quem falaremos a seguir) a sua mais afamada obra, a aranha de bronze, com 9 metros de altura, exposta no Museu Guggenheim em Bilbao, Mamã, fica óbvio tanto o simbolismo quanto a conflitiva sugeridas. De modo geral, o filme trata da obsessão de um cirurgião plástico pela criação de uma pele transgênica, capaz de resistir a agressões as mais diversas, em especial, queimaduras. Tal desejo nasce inicialmente em prol da cura da esposa, queimada gravemente em um acidente de carro, perpetuando-se depois da morte desta, pela sua própria loucura e genialidade. Colocando-se como criador, Robert age de forma amoral, ignora aspectos éticos e qualquer sentimento de culpa. Movido pela vingança, sequestra o agressor da filha (Vicente), transformando-o numa mulher em tudo semelhante a sua esposa falecida, Gal (evocando Galatéia, a escultura perfeita, amada por Pigmaleão, a quem Afrodite transforma em mulher real). Essa transformação de Vicente em Vera leva 6 anos, assim como no final dos 6 dias da criação Lilith é criada, após o período de evolução do Adão andrógino indiferenciado. Transformado do dia para noite em mulher, através de uma vaginoplastia, num processo avesso ao que se costuma fazer nos

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casos de transsexualidade, em que primeiro existe a aplicação de hormônios para a alteração das características físicas secundárias do paciente e só depois a mudança de sexo propriamente dita é efetuada. Vicente se vê de imediato destituído do poder sobre si mesmo, aqui representado muito psicanaliticamente pela perda do falo. A seguir se vê sendo modificado dia após dia, até se tornar outra pessoa por completo, numa sequência de intervenções cirúrgicas e medicamentosas completamente alheias ao seu desejo e consentimento. Vicente é feito coisa, substância, matéria-prima para a criação de algo novo, em uma palavra se torna argila. Aprisionado no corpo e no espaço, reduzido a um quarto televisionado, Vicente feito Vera, portanto um homem posto em um corpo de mulher ainda inacabado (Adão andrógino com Lilith, misturados e informes), vivenciando em si mesmo todo o processo de criação de seu idealizador, inicia uma busca interna por equilíbrio e sobrevivência. Trilhando uma verdadeira jornada de herói, onde cada etapa é importante, onde cada escolha define o personagem, determina assim a reconstrução de seu caráter e destino. Em cada instante de escolha de Vera, é a lógica de Lilith que prevalece, seu modelo de feminino, feminino transgressor, aquele que se recusa à submissão e à vitimização. Nesse momento outros nomes são invocados neste caminho de formação da nova pessoa que ainda é Vicente, mas que também é Vera. Refletindo sobre o fato de que nas metamorfoses míticas, por mais outro que

o indivíduo se torne, algo seu permanece, a ‘mens’, o que se observa é uma ação estratégica por parte do personagem no intuito de preservar essa essência. Essa ideia fica bem ilustrada pela cena em que Vera, trancafiada em seu quarto, seleciona canais de TV. Entre assistir a um documentário em que felinos gigantes capturam uma presa e identificar-se com a vítima, e um programa de Ioga, em que a apresentadora justamente faz um discurso sobre a necessidade de encontrar no interior de si mesmo um local de refúgio, onde ninguém poderia lhe destroçar, opta pelo segundo e passa a praticar Ioga diligentemente, com o objeto de “não confundir a forma – Assana – com o conteúdo”. Vera segue sendo provada dia após dia, são lhe oferecidas roupas de mulher, que ela se recusa a usar, mantendo-se vestida apenas com seu macacão protetor, cor da pele que nos dá sempre a impressão de nudez, nudez mítica, nudez informe do paraíso e mesmo quando aceita se vestir a agir como a mulher idealizada por Robert, só o faz na esperança de conseguir escapar dali. As roupas femininas, recortadas, servem como matéria-prima para suas esculturas, inspiradas num livro em que toma contato com as esculturas de Louise Bourgeois. A artista, muito influenciada pelo surrealismo e pelo primitivismo, apresenta numa obra com inequívoca dimensão autobiográfica, uma militância interior que se contrapõe ao mundo exterior assumindo um caráter universal. Trata especialmente das emoções mais fundamentais do homem, partindo sempre do particular, falando da consciência trágica e brutalmente cruel da existência humana, expressando através de suas esculturas os complexos emaranhados existentes na constituição das questões de gênero, corpo, essência, sobretudo no que tange aos aspectos do feminino e de sua condição: “Femme Maison” é uma série de pinturas figurativas e metafóricas que reflectem sobre identidade e condição de género dentro da complexidade modernista e vertical da cidade em explosão. A Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 71


disfuncionalidade da arquitectura, dita doméstica, converte-se no próprio corpo da mulher em clausura, a mesma mulher menina para quem a casa familiar da infância provincial, miniaturizada em mármore à escala de uma boneca, significava a guilhotina pendente em “Cell (Choisy)”. Tornadas arquitecturas totémicas, as esculturas “Personages” das décadas de 40 e 50, celebram a abstracção antropomórfica que a linguagem anterior não contém. Com total autonomia inicial, começam progressivamente a integrar ambientes cada vez mais complexos, em diálogo umas com as outras, num histórico contributo para a genealogia da instalação. É também no espaço e do espaço que brotam as esculturas em gesso e látex do período seguinte. Viscerais, primitivos, orgânicos e disformes, os corpos em metamorfose parecem libertar-se, fluidos, a partir de fissuras e orifícios subterrâneos. (...) Mais referenciais e controladas, as esculturas de mármore reforçam o carácter sexual das anteriores. Falos, vulvas, torsos hermafroditas, reconfiguram uma linguagem escultórica híbrida materialmente classicizante. As celas e os quartos são o apogeu narrativo do pensamento plástico de Bourgeois. (Arte Capital - ver referências) Importante salientar que esse viés artístico é próprio de Vicente que já trabalhava na confecção de esculturas e na ornamentação

de vitrines na loja de roupas Vintage de sua mãe, costureira e restauradora de figurinos – que comprava roupas usadas e as “reformava”. Nesse ponto vale também comentar a importância da frase de Hemingway escrita na parede por Vera – “A Arte é garantia de saúde”, que sem dúvida revela o eixo paradigmático em que a essência de Vicente se apoia para tolerar a condição de aprisionamento físico e mental em que vive. Em seus desenhos, escritos e esculturas trata de estabelecer um diálogo entre o que era e o que está se tornando, construindo em si mesmo outra coisa, coisa esta capaz de abarcar todo o conteúdo simbólico, informativo e emocional com o qual é obrigado a lidar. Outro momento importante de escolha para Vicente-Vera é aquele em que ela se vê diante da proposta de maquiar-se, recebendo inúmeros cosméticos e um livro de orientações. A escolha da marca dos produtos, Chanel, não parece ter sido aleatória, uma vez que Coco Chanel, costureira (como a mãe) e estilista francesa famosa por transformar a imagem da mulher no mundo, traz de forma emblemática em sua história pessoal a transgressão, a recusa por submeter-se ao papel social imposto à mulher, transmitindo essa possibilidade a todas as outras através da moda – ao abandonar o uso dos espartilhos, ao cortar os cabelos curtos, ao mudar toda a maneira de vestir a mulher, abriu do externo para o interno um caminho novo para o feminino. É bárbaro refletir sobre isso, porque a marca Chanel é usada para propor a Vera um

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jeito de ser mulher baseado no desejo de Robert e ao recusar a maquiagem, ficando apenas com o lápis para suas escritas na parede, Vera recusa a marca Chanel (que acabou se tornando também um instrumento midiático de controle da mulher) e opta pela ChanelLilith, por sua ideologia igualitária e por sua originalidade, ou seja, pela essência da mulher real. Essa grande ênfase em roupas, cortes e costuras, sem dúvida serve de metáfora para a pele, bastando para isso lembrar-se das cenas em que Robert está desenvolvendo GAL em um manequim e depois em Vera. A pele, nosso maior órgão, aquilo que nos contorna, que nos formata, que nos contém. Um nome que surge un passant no filme, mas que vale comentar é o de Alice Munro, primeira contista a ganhar o Nobel da Literatura, em 2013. A escritora é conhecia por abordar aspectos do cotidiano inusitado, situações que levam o enredo – ou uma vida – a algum sobressalto importante ou até mesmo a uma mudança completa de rumo. Suas personagens femininas estão sempre envolvidas em algo não convencional, mas se mostram sempre resignadas em sua sorte. No que tange ao momento em que Vera o recebe, pode-se pensar numa referência ou reforço à sua aparente aceitação passiva da condição em que se encontrava. A grande cena ‘Lilithiana’ do filme ocorre, quando depois de 6 anos e uma tentativa de suicídio frustrada, percebendo a obsessão de Robert por ela, Vera começa a tentar seduzi-lo. Todo o discurso da personagem nesses

momentos é pura menção à cena em que Lilith tenta convencer Adão de que é igual a ele, feita como ele e, portanto, sua companheira ideal. Vera começa sua fala dizendo que tanto ela quanto Robert não eram como todo mundo, propõe que convivam, de ‘igual para igual’, diz a ele que pertence a ele, que fora feita à medida dele e que ele havia gostado disso. Assim como Adão, Robert rejeita essa proposta, só acolhendo Vera como amante ao vê-la vitimizada por Zeca, portanto, rebaixada, agredida, humilhada, profanada e conspurcada, da mesma forma que Adão só se anima a recuperar Lilith após ela ter se exilado e se imiscuído aos demônios. Nesse momento, assim como Dionísio que acolhe Ariadne após ter sido abandonada por Teseu, Robert salva Vera, assassinando seu próprio irmão, que ainda está em cima dela na cama. Desse modo, como Adão, Dionísio e Robert, essa figura mítica do homem que é incapaz de aceitar uma mulher, a menos que ela esteja numa posição de vítima, de alguma forma inferiorizada, desvalida, desprotegida e reduzida é tema recorrente na história e na literatura, trazendo a tona um complexo de inferioridade e um medo ancestral do homem com relação à mulher de quem ele só se consegue se aproximar quando fragilizada. Dionísio surge aqui, também no hábito de Robert de oferecer ópio a Vera, assim como o deus grego que embebedava suas conquistas. Importante destacar que Robert já reconhecia em Vera seu duplo, em sua obsessão por observá-la, copiando muitas vezes até suas posições e gestos, toda a fascinação se dá por uma identificação plena e pela percepção da força do outro – 'Vera é uma sobrevivente!' e a imagem dela que vai crescendo na tela em relação à dele, embora ela siga olhando-o de baixo para cima, numa reverência de criatura para criador. Mesmo após ceder às propostas dela, segue temendo-a e se confia nela, é unicamente por reconhecer nela as marcas de si mesmo. Ao final, quando ela enfim o mata, apenas trocam de lugar, Robert dando a ela o poder de vida e morte sobre ele, poder que antes era dele sobre ela. Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 73


Outro aspecto de Lilith surge na figura de -lo, antes ciente de que o mesmo Deus que o Marília, a mulher cuja loucura habita o ventre. feria era o único a poder salvá-lo) - teria sido Conta-se que Lilith passou a parir demônios modificado, evoluindo de uma postura diviapós entregar-se aos espíritos caídos. Marília, na despreocupada de julgamentos morais ou mãe que Robert trata como serva, pois igno- sem uma ética que Lhe impusesse obrigações ra ser seu filho, seduzida por um empregado (já que a moralidade pressupõe consciência, e (pai de Zeca) e por seu patrão (pai de Robert), Deus, avalia Jung, é uma experiência psíquica gera dois loucos, cada um louco à sua própria transcendente, um fenômeno absolutamente maneira. Lilith também se expressa na em- portentoso, e não um homem, simplesmente). briaguez de Robert pelo cheiro de carne queiSob essa perspectiva, a experiência com mada vindo de Gal, na adoção de um estilo Jó teria sido uma espécie de divisor de águas de vida de vampiros após o acidente dela e de na relação de Deus com o homem, o ponto suas queimaduras, sem espelhos e na comple- culminante de um arquétipo em evolução, ta escuridão. Lilith surge também em Josefi- pois esse homem mortal viu o semblante de na, a mulher que foge e abandona marido e Javé, a partir do que Deus se renova “conhecifilho constantemente e para quem não have- do”, tomando consciência de si, agindo e cresrá mais vestimentas, uma vez que seu marido cendo dentro dos homens. Para completar a vende suas roupas, numa tentativa talvez de contraparte desta experiência mística, Javé apaga-la de vez de sua vida. (ou Jeová) decide encarnar-se em nosso meio. A Lilith amazona surge em Cristina, a mu- Entretanto, o segundo Adão (Jesus) não naslher que não gosta de homens e que desafia ce das mãos divinas e do pó, mas sim do venVicente a vestir ele mesmo o vestido que de- tre de uma mulher humana, uma segunda seja ver nela. É essa cena que Vera retoma no Eva. Jesus, representando o Deus que viveu final do filme para convencer Cristina de sua entre os homens, que conhece a condição hureal identidade, mostrando a ela que de fato mana, pode arbitrar sobre ela com justiça e vestira o vestido ele mesmo. redimi-la, pois a conhece de dentro para fora, Impossível não resgatar aqui um texto de se fez como homem, se fez homem. C.G.Jung, chamado Resposta a Jó, no qual o De forma análoga, Vera representa o hoautor faz toda uma reflexão sobre a relação mem que só é capaz de compreender a conentre Deus e o homem, sugerindo que Jeová dição feminina e redimi-la ao se tornar uma. - afetado pelo discurso e atitude de Jó (que, Da mesma forma que Javé vitimiza Jó, pois após ter sido vítima de toda a coleção de tor- sequer possui a consciência moral para não turas e injustiças que bem conhecemos, reve- fazê-lo, uma vez que não contém em seu íntilando a frágil condição humana diante de um mo a noção, de si e do outro, necessária para Deus Todo Poderoso e sem nunca amaldiçoa- que isso não lhe seja possível, para que haja

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um limite moral imposto dele para ele, o homem não consegue VER a mulher, integrá-la e acolhê-la enquanto não se exercita na alteridade e na empatia, na capacidade de abrir em si mesmo um espaço do outro e para o outro – no caso, para a mulher, o grande outro do homem. A Pele que Habito conta a história de um homem que obrigado a viver como mulher, é submetido a todas as opressões e experiências fatais que uma mulher pode vivenciar em sua história de vida, protagonizando um processo de redenção por um ato não intencional de agressão (situação com Norma) que resulta em verdadeira homenagem ao espírito feminino e à sua resiliência inata. Ironicamente, a conclusão desse processo abre um espaço para que ele se torne desejado pela mulher que deseja e que não desejava homens, ilustração talvez de que o caminho para o coração e para a vagina da mulher habite na capacidade de compreendê-la e de se colocar em seu lugar, sendo o resultado disso, revelado na forma de tratá-la. Conclui-se retomando a ideia de que sempre que o conflito entre o masculino e feminino se verifica, quando os gêneros de alguma forma se mostram imbricados, confundidos, emaranhados e em disputa, o que se manifesta são os aspectos do embate mítico do Paraíso; pode-se afirmar que muito tem sido conquistado no sentido de se integrar o desejo de igualdade de Lilith à necessidade de autoafirmação de Adão, mesmo a curiosidade de Eva tem sido amplamente saciada

na busca livre pelo conhecimento por parte de muitas mulheres, aplicadas a instruir-se e investir todo seu potencial construtivo e criativo. Muito tem sido feito também no sentido de conscientizar o mundo a respeito da violência contra a mulher e, a despeito das culturas e religiões que ainda insistem em reprimi-la e oprimi-la embaixo da pecha de uma falsa manutenção da ordem, pode-se intuir que um mundo onde homens e mulheres se respeitam em suas diferenças ou ao menos estão abertos ao diálogo e à colaboração mútua só pode se tornar um lugar infinitamente melhor para se viver.

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|Danielli de Cassia Morelli Pedrosa |

A ESCADA

Ainda menina, fitou a escada. A longa camisola de flanela feita pela avó mais atrapalhava do que aquecia – pesada, confundia os movimentos das pernas, podia segurá-la com a mão direita enquanto com a esquerda se amparava no corrimão. Aquele tecido todo irritava e o cabelo, apertado demais na trança feita pela tia, parecia um cabresto. - Tão lindo esse seu cabelo, vamos prendê-lo! Quanto mais tempo passava contemplando a escada de cima, mais uma volúpia líquida ia se espalhando em suas veias, tomando o corpo numa espécie de infusão quente, alcoólica. Em antecipação sentia os pés suspensos, primeiro um e depois o outro, o dobrar suave e firme dos joelhos, a sensação de capacidade para a obra.

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Num instante percebeu a própria sombra na parede, projetada bem na esquina da escadaria, parecia tão grande! Orgulhosa, admirou o perfil longilíneo que se opunha totalmente ao que de fato era seu corpo naquela época, seria a profecia de um corpo adulto elegante? O pescoço comprido da sombra a encantava, os movimentos delicados davam-lhe motivos para sorrir e em meio a esse transe, como que para arrebatar-lhe das fantasias onipotentes da infância, surgia uma verdade estranha, algo que ainda lhe soava alto demais, um desconforto, um cobertor curto que descobria o peito quando se aquecia os pés. A menina não sabia, mas esse desajuste lhe acompanharia ainda por muito tempo. O desejo era descer a escada. Aquela contemplação toda só servia para aumentar sua gana de conquistar o que queria. Ao baixar os olhos, encontrou um par de meias em cor-de-rosa. Dentro de alguns minutos passaria a odiar essa cor para sempre. Ouvia o vento travesso contribuir com o farfalhar das cortinas, se pretendia descer, fazia-se necessária à pressa. Logo a avó se aproximaria e então a oportunidade estaria perdida. A vida na casa não passava de um jogo insólito, teatro de angústias e de controle, vestia as roupagens de seu personagem e mantinha-se invisível dentro dele. A escada ganhara um tom adverso naquela madrugada do último abril. A lembrança dos fatos tornara-se algo esparsa. Sabia que a mãe lhe daria um irmão, isso segundo informações do pai que lhe respondera – entre perplexo e cômico – sua pergunta sobre o motivo dela ter ficado tão gorda. Desde então a menininha via constantemente uma energia fluorescente pairando pela casa. Nada mais de brincadeiras. Nunca mais puderam regressar para seu próprio lar, lá onde ficaram sua cama e seus brinquedos. Quase não via o pai. Passava longas temporadas no quarto das tias, onde era constantemente instado um silêncio difícil e migratório. As refeições, feitas sempre em horas bem marcadas, constituíam-se de comidas de adulto que ela nunca apreciava e havia escassez de leite Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 77


porque o avô tomava antes dela. A mãe, rechonchuda e frágil, lhe apertava demais ao peito quando dormiam - sono indigesto, colchão no chão do quarto das irmãs do pai. Em seu pensamento esparso de criança, sentia o amor doído pela falta de alegria. Habituée da gentileza rude de seu outro avô, buscou alguma aproximação também com este, busca frustrada, pois ele era um homem duro em sua moleza, estranho, que teimava em trocar seu nome pelo de qualquer outra criança e quando lhe dirigia um olhar parecia atravessar-lhe, focado em algo que estava além dela. O cheiro dele enjoava, um dia saberia de suas aventuras etílicas, por agora traduzia para si mesma o perfume ardido que lhe causava uma curiosidade meio mórbida, ao vê-lo fumando como chaminé no quintal de trás. A vida da menina era um oceano de conversas sussurradas por detrás de portas e recriminações constantes camufladas atrás de doces sorrisos conciliadores. Via na mãe uma crescente melancolia, o que somada à fragilidade própria dos estados avançados da gravidez, despertava na menina uma espécie de medo ancestral do abandono. Tal sentimento em vez de acovardá-la a desafiava a ser cada vez mais livre. Não queria ajuda no banho, não queria dormir com ninguém, não queria que lhe dessem comida na boca, não queria toques de nenhuma espécie ou histórias antes de dormir. Numa madrugada fria de final de outono acordou com um movimento pendular da mãe no colchão ao lado. Fitou o rosto dela com atenção e a luz pálida advinda do vão da por-

ta entreaberta, luz de abajur de santo, tão comum na casa de beatas católicas, revelou algo vindo de seus mais horríveis pesadelos – lágrimas desesperadas. Atordoada, a pequena passou a ouvir a discussão vinda do corredor. O avô gritava cego de raiva palavras que ela não conhecia, o som surdo de uma pancada e de um gemido arrancou a mãe dos cobertores num movimento por demais lépido para um corpo em tão adiantada gestação. A criança seguiu correndo atrás da mãe presa de um terror inespecífico, viu a avó meio dependurada na beira da escada amparada pela mãe, ambas em desespero, ambas quase a despencar escada abaixo, num segundo momento viu também o avô prensado na parede pelo corpo redondo da mãe. Ouviria no decorrer da vida muitas versões do mesmo fato, mas era essa a imagem que lhe contaria sempre a verdade do que ocorria nas sombras daquela casa triste. Depois disso, durante muito tempo tivera medo de escadas. Pensava em noites escuras e frias, se lembrava do cheiro do avô e de choros da mãe, se via caindo no infinito após o primeiro degrau, um tombo do qual muito pouco sabia já que era pouco mais de um bebê quando ocorrera. Por muitos dias só descia as escadas no colo de alguém e esse arranjo lhe bastava, porém crianças crescem depressa demais e com elas suas reais necessidades. Logo já não vestia mais as roupas que lhe mandavam, não aceitava mais prender os cabelos, não se calava mais diante da demora em tirá-la do quarto pela manhã mesmo cientes de que já estava acordada fazia muito tempo.

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Todo o seu ser em franco desenvolvimento ansiava por duas coisas: Voltar para sua própria casa e descer aquela maldita escada, sozinha. Poderosa, criou seu próprio sortilégio. Bastaria descer a escada sem nenhuma ajuda e todo esse universo paralelo bizarro em que agora viviam deixaria de existir, como os sonhos ruins que se evaporam ao despertar. Observava a escada com uma concentração extrema: calculando, compreendendo, arquitetando. Não havia margem para erro algum. Assistia constantemente todos os adultos descendo e subindo aqueles degraus vez após vez – andavam e até corriam, pulavam degraus, dançavam com leveza de bailarinos sem pestanejar. Não podia ser tão difícil! Ensaiou o primeiro passo com os olhos cerrados, sentia na ponta do pé, calçado apenas de meias, a distância e a superfície – algo lhe dizia que dos melhores sentidos excluía-se a visão. Após convencer-se de que já absorvera o movimento, desceu lentamente para o degrau de baixo sentindo uma vertigem leve, quase uma altura da mente, um torpor. Repetiu a ação lentamente, pé após o outro, sem pressa e lutando contra a intuição que lhe pedia brevidade. Tudo foi ganhando maior facilidade, embora a mão já lhe doesse, cativa da exagerada firmeza ao corrimão de madeira escura. Após o quinto ou sexto degrau já havia um sorriso em seus lábios e no décimo, uma sensação gloriosa de dever cumprido lhe enchia o peito de criança, a plenitude da conquista feita - liberdade ensolarada que ilumina até os recônditos essa caverna sombria, na qual nos enfiamos tantas vezes na vida.

Quando já fazia a curva que lhe concederia a graça do trecho final de sua missão, foi pega de surpresa pelo som agudo reverberando por todos os cantos da casa. O efeito do susto foi a perda completa do equilíbrio. Num vislumbre havia o corpo de criança estendido inerte no final da escada, desacordado, ferido, quiçá morto. Um arrepio tomou-lhe de ponta a ponta, no reflexo ergueu com violência os braços e foi assim, dependurada no corrimão, que dedos gelados pela água fria que lavava a louça a agarraram. Nervosíssimos, tentavam de toda forma dominar a criança. A menininha, apavorada, se empertigava, chutava, arranhava e mordia. Não desceria no colo agora que se sabia capaz. Irritada, a avó lhe fez sentar no degrau à força. - Se você quer descer sozinha, vai ter que descer sentada! Bem podia virar fada ou borboleta e voar para muito, muito longe.

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|Danilo Souza Costa |

ANÁLISE SOBRE A OBRA LITERÁRIA O CORAÇÃO DAS TREVAS - JOSEPH CONRAD

Nesta exposição, tratarei de um dos maiores clássicos da literatura do século XX: O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, achando de bom tom, para tanto, construir um resumo da obra e pontuar, segundo a minha visão, peculiaridades da história. Adianto, desde já, que a conclusão é totalmente parcial acerca da genialidade desta obra atemporal, que trata expressamente da colonização e da legitimada busca por capital. Mas é tacitamente que ela impressiona quando mostra o impacto da influência cultural sobre a mente humana, iluminando a ideia de que o certo e o errado em cada lugar dependem, acima de tudo, da melhor justificativa apresentada. Europa: século XIX –o século do progresso, da fé enorme na ciência, em que o homem é herói da sua própria história; é o século de Darwin, dos determinismos, em que se crê que é possível desvendar leis gerais que movem o mundo; é o século dos neoimperialistas, que justificavam seus atos na maior “filantropia às avessas” que o mundo possa ter visto, alimentando o mito do colonialismo.

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Conrad, em O Coração das Trevas (1902), conta a história de Charlie Marlow, um apaixonado por mapas e viagens náuticas, que, na ânsia de ver realizado seu sonho de garoto de conhecer um lugar supostamente não explorado, se voluntaria para assumir o comando de um navio a vapor que iria se lançar no coração da África. Marlow é o narrador da própria trama. Típico contador de histórias, ele narra aos seus companheiros de embarcação – que são apresentados por sua classe social e não pelo nome – o que vivenciou em sua viagem ao Congo com minúcias, dor e pesar, como se fosse, tudo aquilo, um pesadelo. Ao ingressar em uma companhia marítima, para qual se voluntariou, assumiria como comandante “de um vapor”. O protagonista submeteu-se a alguns ritos burocráticos que o fez crer ter algo de sigiloso naquela prática; todavia, firmou o contrato. Posteriormente, ele foi submetido a exames médicos, no quais após lhe aferirem a pressão, o médico pergunta se poderia medir o seu crânio, questionando ainda (se ele teria histórico de loucura na família). Essa prática de medir o crânio nos faz lembrar de Cesare Lombroso, positivista contemporâneo a data da história, que hoje compõe o rol dos integrantes do racismo científico. Lombroso acreditava que o biótipo do indivíduo determinava sua tendência para o crime, considerando ainda, que os negros tinham mais predisposição ao cometimento daqueles – teoria que ganhou status de verdade durante a época. Assim, o procedimento médico ao qual Marlow foi submetido era considerado um exame oficial, que, dentre todos os outros, visava garantir a segurança dos demais tripulantes. Ao ser questionado por Marlow do porquê de não viajar para examinar os funcionários da empresa no local do trabalho, o doutor diz não ser tolo e afirma que as coisas se modificam por lá. Essa passagem deixa o leitor tenso, se perguntando o porquê de todo aquele rito e quais os mistérios que cercam a trama. Por que O Coração das Trevas? Quais trevas? Aonde será que esse rio nos levará...? Marlow, recém nomeado comandante, finalmente inicia sua viagem a bordo de um vapor Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 81


francês, descrevendo a paisagem como uma esA colonização, para “civilizar” os povos pécie de retorno aos primórdios da humanidade tidos como primitivos, foi o marketing da e, após um mês, desembarca em um dos postos campanha dos governos imperialistas, que se da companhia, onde observa alguns homens ne- baseavam na ideia dos antropólogos evoluciogros de “aparência decadente”. Um rapaz apro- nistas, que sustentavam que aqueles povos vixima-se faminto e Marlow lhe dá um pedaço de viam na “infância” da humanidade e que eles, pão, observando um pano de lã que aquele tinha os brancos europeus, tinham a dura missão de em volto ao pescoço, sem entender a utilidade “educá-los” e “civilizá-los”. daquilo. Note que o protagonista, embora tenha Ao prosseguir em viagem por mais de trezenuma atitude aparentemente nobre ao alimentar tos quilômetros, nosso aventureiro chega com o trabalhador, carrega em si a sensação de supe- a sua tripulação ao Posto Central e recebe uma rioridade, própria do etnocentrismo europeu. previsão de que deverá esperar aproximadamenFica a impressão de que, para ele, aquilo fosse te três meses para seguir viagem. Por lá, interacomo alimentar um animal qualquer, já que ao gindo com um agente de primeira classe, Marlongo do romance, os escravos são propostos low ouve que o Sr. Kurtz, chefe do posto, era um por Conrad como instrumenta vocalia. (Há ne- “prodígio, um emissário da bondade e da ciência”. cessidade de colacar a tradução entre parênteses. Sr. Kurtz era o autor de um quadro que conPesquisei, mas não encontrei. Talvez fosse o caso tinha a figura de uma mulher com os olhos vende questionar o autor.) O mais curioso, que se dados e com uma tocha acesa na mão. Considepode observar na forma de escrita do autor, é rando que a arte é uma produção cultural, mas que ele faz muito o uso de personificação, dando com traços pessoais, fica como desafio ao leitor a impressão que ele “personifica as coisas e coi- desvendar a personalidade de Kurtz, diante de sifica as pessoas”: atitude própria do capitalismo, tantas pistas. interessantemente. Literariamente brilhante, A caminho do posto de Kurtz, Marlow estahumanamente desprezível. va ansioso e também sentia medo. Ouve falar E, como Marlow não está livre dessa ten- algo sobre marfim e também que Kurtz e seu dência, é interessante pensar a possível relação assistente precisam ser mortos para servir como que ele pode ter feito entre a cor da lã e a cor exemplo, pois prejudicam os interesses daquela da pele, bem como questionar o porquê daquele empresa; Marlow acha os homens monstruo“ser” usar tal adereço. Em contraposição, ao ver sos porque julga que suas mentes são capazes o contador-chefe da companhia, lhe saltou aos de tudo. No caminho, próximo ao destino final, olhos tamanha elegância com suas vestimentas ancora a embarcação e são atacados por nativos finas. Mas elegante para quem? Pro negro de lã com flechas que voam pelos ares. Posterior a isso, no pescoço talvez não, já que a elegância é, sem conseguem, enfim localizar o posto e encontram dúvida, uma produção cultural. o assistente do chefe, imaginado por Marlow

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como uma figura mítica, a quem não se aguenta de curiosidade para conhecer. Marlow descobre que foi o próprio Kurtz quem ordenara o ataque à embarcação, já por que não queria ser levado de lá, e que mais do que ser um dos nativos, como parte integrante da tribo, ele era uma espécie de líder que, por alguma razão, em sua busca incessante por marfim, acabara por se anexar ao povo onde vivia, promovendo rituais “primitivos” e ordenando a morte de integrantes desobedientes, tendo ainda, a frente de sua cabana, uma exposição de crânios humanos, mostrando total distanciamento do que seria considerado civilizado aos moldes europeus. E o que teria acontecido com aquele pródigo, emissário da bondade e da ciência, considerado pelo seu assistente e pelos membros da tribo como um sábio, detentor de esclarecimentos fundamentais? Será que viu muito sangue, promoveu muitas mortes em busca de algo que teria valor relativo? Será que essa busca imposta por outrem, deturpou a mente de um pensador que pode facilmente ter entrado em um conflito de interesses? É possível. “[...] um esboço de uma mulher vendada que carrega uma tocha acessa.” Talvez seja a chave de um mistério formado pelo labirinto da mente humana. A arte, como já dito antes, carrega o homem e o seu produto, a cultura. Em sua visão de mundo e dentro de sua crença, Kurtz detinha um conhecimento, uma iluminação, que estava em sua mão e que, paradoxalmente, não poderia ser usado pela pessoa que o detinha, pois estava vendada, estava nas trevas pessoais,

em suas próprias trevas, já que a venda é um limitador pessoal. Agora imaginemos um indivíduo, produto da descrita sociedade europeia, fazer parte de uma tribo; sua noção de valor se transforma, o que importa para ele é o que importa para sua cultura. Ao final da história, Marlow encontra Kurtz em seu leito de morte, e esse o confia algumas palavras, documentos e fotografias. Algumas noites depois, Kurtz morre, proferindo o que talvez pudesse ser uma descrição das trevas – “o horror, o horror!”. Tamanho é o peso destas palavras, que quando volta à Europa, Marlow conta para a companheira de Kurtz que suas últimas palavras foram o nome dela. Com isso, Marlow escondeu o horror, assim como todo esse horror era escondido e justificado para a “civilização”. Mas e esse tal “Coração das Trevas”? A treva é a escuridão, a ignorância, o medo, o mal. O coração pode ser o centro, onde acontece, mas pode ser o âmago, o mais profundo. O leitor sem dúvida sente isso, se vê no Tâmisa, no navio, na tribo, tem um choque com o seu diferente, como Caminha ao chegar ao Brasil, mas se percebe igual, segundo nossos valores e fragilidades. Essa obra nos faz pensar acerca do certo, do errado, do relativo, do civilizado. E o civilizado, talvez, seja fazer coisas aceitáveis ou que pareçam aceitáveis, dentro dos moldes da sociedade que acolhe esses conceitos, desde que possam ser justificadas e baseadas nos mais puros sentimentos e intenções humanas. Conrad se veste de Marlow e corre ao claustro, onde “torce, aprimora, alteia, lima” (Bilac) as descrições que lhe são interessantes e fundamentais para lapidar, como um ourives, o “coração” que ele quer mostrar. E tanto tempo depois, ainda podemos ser contemporâneos de seu entendimento e, sem alterar-lhe “a fôrma e a forma” (Bandeira), resumimos essas trevas em curtas palavras: “o horror, o horror...!”.

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|João Carlos Lopes da Silva|

A ECOLOGIA MENTAL E O NOVO PANORAMA DA HUMANIDADE

Empresas em liquidação, queda nas bolsas de valores do mundo, crises financeiras ameaçam diferentes mercados que refletem em todos os países da comunidade internacional, inflação, recessão; excesso de consumo, escassez de recursos, fome, guerras, revoltas populares, epidemias e catástrofes naturais... Avançamos em nossa lógica do progresso em todos os sentidos: em nenhuma outra época gozamos de tanta tecnologia, pesquisa e descoberta científicas como agora. Ultrapassamos as fronteiras do espaço e saímos para conhecer o Universo do qual somos parte. Sabemos hoje que não estamos no centro da existência, mas somos um planeta, entre os muitos do nosso sistema solar – presente em uma das várias galáxias dentre as que compõem este Universo em constante expansão.

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Diariamente temos, além dos problemas e preocupações de ordem pessoal, as complicações que afetam toda a coletividade – e que não são poucas. Se de um lado o individualismo nos deu o senso de pessoalidade, podendo até mesmo ser avaliado como fator positivo modernamente; de outro, parecemos ter perdido o senso de humanidade. Entretanto, é inevitável não nos pensarmos como esta totalidade, este todo humano, que está intimamente ligado em infinitos aspectos, sendo o mais considerável deles: moramos nesta mesma Terra. E o que fazemos com essa nossa morada é completamente contraditório com todo o progresso, em termos de consciência, que atualmente experimentamos: as vidas de milhões de espécies estão ameaçadas, muito da diversidade que compõem a fauna e flora terrestre desapareceu. O aquecimento global é uma realidade tão latente que a cada ano os verões estão mais insuportáveis e os invernos mais rigorosos. Somos péssimos inquilinos da Terra e a tratamos como donos – espécies de reis e rainhas – sem nenhum comprometimento com a sua existência, como se ela dependesse de nós para existir, quando na verdade nós somente estamos aqui porque ela possui as condições perfeitas para o surgimento de todas as formas de vida - inclusive a nossa. Portanto nossa relação com esta morada é de interdependência e não de dominação. Assim como dependemos uns dos outros – por isso humanidade – dependemos da Terra como nossa morada maior. A Ecologia Mental insere-se então neste contexto para nos dizer que não é somente o modo de sociedade em que vivemos que está destruindo a vida na Terra, como também o algo muito mais profundo: o modo como pensamos. Os padrões mentais, ideias e pensamentos que temos acumulado ao longo da vida. Sabemos, por exemplo, que o desenvolvimento sustentável é uma realidade a ser acolhida por toda a humanidade, ou pelo menos por parte dela que está comprometida com a manutenção da vida na Terra, no entanto todo o conhecimento que temos recebido sobre a urgente necessidade de modificar o modo como nos relacionamos Acadêmica • Aqui o mundo já não é mais cinza | 85


com o ambiente em que vivemos parece não ser eficaz porque não houve a mudança mental necessária para criar novos hábitos. A poluição, o consumo desenfreado de bens e serviços, a ideia de dominação e destruição como meio recreativo e o desmatamento são exemplos de problemas que diariamente nos cercam, contra os quais não conseguimos tomar atitudes conscientes necessárias por conta dos padrões mentais que nos condicionam. Este modo de pensar, considerando a Terra como objeto de dominação está intimamente enraizado no homem e suas origens, e vêm de muito antes da sociedade moderna. Grande parte da nossa agressão contra a natureza vem de dentro da nossa mente – dos vícios culturais, preconceitos e instintos que possuímos. O antropocentrismo erra ao colocar o homem como o sentido da existência das outras coisas; a cosmologia nos ensina que no Universo todas as coisas estão interligadas, e todos os seres, portanto, são interdependentes – e igualmente importantes. Há uma relação íntima entre tudo aquilo que existe. Leonardo Boff, que trata do tema da Ecologia Mental, considera que há duas tarefas básicas nesse processo de terapia ecológica: remover os obstáculos que impedem a nossa mente de considerar a Terra e todos os seres vivos que ela abriga coexistentes e não subordinados nossos; e buscar novas orientações para que criemos hábitos ecologicamente corretos. Neste sentido trata-se de uma completa transformação do padrão mental atual para dar espaço a um processo contínuo de reeducação da mente.

Ainda para Boff há alguns obstáculos nesse processo: a) a indiferença: a insensibilidade ao acreditarmos que tudo pode continuar como está e a crença de que o modo como estamos levando é correto e a Terra suportará isso por muito mais tempo, o que não é verdade. Beiramos o colapso – há risco de maiores catástrofes coletivas como as que já ocorrem; b) o consumismo: nosso hábito mais individualista e irresponsável, assim, é preciso construir um novo modo de consumo solidário em que pensemos não somente em nós mesmos como nessa comunidade ecológica e humana que nos cerca; c) a falta de cuidado: não cuidamos do equilíbrio da própria natureza, do ar que respiramos, do lixo de nossas casas etc., é preciso resgatar a ética do cuidado. Não podemos esquecer que ao tratarmos deste tema estamos falando diretamente da manutenção da vida, da nossa e daqueles que virão depois de nós. A visão de cooperação não pode ser perdida neste processo de novo pensamento na consideração do planeta. Ao contrário da competição que se fomenta hoje, a Ecologia Mental nos propõe um estilo de vida cooperativo entre todos os seres vivos. Precisamos considerar a raça humana como uma grande família, chamada de humanidade, na qual todos nós somos uns dependentes e cooperadores dos outros, sem nos esquecermos da Terra, a nossa morada, que possui recursos e condições perfeitas para a nossa permanência viva. E que, no entanto, sofre grandes ameaças e sente, como entidade viva que é, a degradação de todo mal que continuamente temos lhe feito.

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Por fim, a Ecologia Mental é um ideal que precisa ser difundido em toda a sociedade civil e seus segmentos, nas organizações que incorporam o cuidado do meio ambiente e academias, nas diferentes religiões e culturas, nos órgãos de discussão internacional e blocos econômicos, pois somente assim despertaremos a humanidade para um novo panorama global de cuidado da vida – tornando a Terra um lugar melhor para nós vivermos e para as próximas gerações. Pratique essa ideia.

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feche a revista e vá ler um livro

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