GAร CHOS Uma histรณria pouco convencional sobre o povo do rio grande do sul
GAร CHOS Uma histรณria pouco convencional sobre o povo do rio grande do sul
Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno na solidão. Abertura de O Continente, tomo inicial de O Tempo e o Vento
Alexandre Elmi e Aline Custรณdio Organizadores
GAร CHOS Uma histรณria pouco convencional sobre o povo do rio grande do sul
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos)
Reitor Joaquim Clotet
Vice-reitor Evilázio Teixeira
Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues da Cunha
Diretor da Famecos João Guilherme Barone Reis e Silva
Coordenador do curso de Jornalismo ábian
el ano
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Realização da disciplina Projeto Experimental IV - Jornal Livre
Professores responsáveis Alexandre Elmi e Aline Custódio
Projeto gráfico e diagramação Filipe Castilhos, Jéssica Manzzoni, Lucas Zandonai, Maicon Hinrichsen
Fotografia Filipe Castilhos, Lucas Zandonai e Maicon Hinrichsen
Reportagem Andressa Moreira Carlos Eduardo Lando Carlos Müller Villela Cândida Schaedler Drika Oliveira Illos Leite Jéssica Sbardelotto Laura Azevedo Laís Escher Laísa Mendes da Silva Luiz Guilherme Alves Maicon Hinrichsen Manuela Schroeder Kuhn Marcelo Garcia Nathalia Gomes Rodrigo Azevedo Thiago Suman
Capa Imagem: Maicon Hinrichsen
Revisão gráfica Bruno Ibaldo
Endereço Avenida Ipiranga, 6.681 Prédio 7 - Porto Alegre (RS) - Brasil www.pucrs.br/famecos Dezembro de 2015
SUMร RIO Editorial Carlos Villela
Prefรกcio Juremir Machado
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O CONTINENTE Etnia Cândida Schaedler
Fronteiras Carlos Villela
Monocultura Luis Guilherme
Educação Laura Azevedo
Literatura Andressa Moreira
Ensaio fotográfico 1 Filipe Castilhos
26 34 44 50 54 62
O RETRATO Hino Maicon Hinrichsen
Heroísmo Carlos Lando
Marketing Drika Oliveira
Terra de Anas Laísa Mendes
Frio Thiago Suman
Ensaio fotográfico 2 Lucas Zandonai
74 82 86 96 102 110
O ARQUIPÉLAGO Reeleição Jéssica Sbardelotto
Pseudo-politização Laís Escher
Serrviço Público Rodrigo Azevedo
Racismo Nathalia Gomes
Violência Manuela Kuhn
Ensaio fotográfico 3 Maicon Hinrichsen
122 132 142 150 156 162
NOSSA BATALHA Carlos Villela
E
ste livro de reportagens partiu de um desafio que nós alunos da disciplina de Projeto Experimental em Jornal no curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS fizemos a nós mesmos. Gaúchos é um projeto de resgate do jornalismo que fomenta debates, que vai atrás do que pouco se discute e coloca em evidência para fomentar debates na sociedade. O jornalismo está cada vez mais movido pela desconstrução. É consenso que, para compreender quaisquer costumes e atitudes de um povo, é preciso investigar suas origens – sua mitologia. Os séculos de história gaúcha são repletos de pormenores pouco conhecidos e desconsiderados – pormenores sociais, econômicos, políticos, culturais e geográficos silenciados por essa mitologia aparentemente pétrea. Mas, para o jornalista, nada é pétreo. Alguns conservadores e puristas consideram projetos que questionam a figura do gaúcho como uma forma de revisionismo supostamente “barato” e feito apenas para escandalizar, mas nós não nos alinhamos a esse pensamento de forma alguma. O interesse aqui não é derrubar uma cultura consolidada, e sim expandi-la para que os gaúchos que ficam de fora do padrão possam participar. Todas as reportagens deste livro jogam luz no que estava na penumbra, dando voz ao que era silenciado pela conveniência do estereótipo. Fomos atrás de muitas curiosidades que parecem ter passado despercebidas por quem modelou a visão atual do gaúcho. É a união entre a análise profunda da cultura que nos acompanha desde o momento em que nascemos nestes pagos (ou nos estabelecemos nesta querência) e o questionamento constante que caracteriza o bom jornalismo. Dessa forma, com a orientação dedicada e o apoio incondicional dos professores Alexandre Elmi e Aline Custódio, desenvolvemos esse projeto no qual o texto de qualidade era a regra e contar novas e pouco conhecidas histórias eram o objetivo final. O mestre Leonam, ex-professor da Famecos e guia espiritual informal, sempre destacou em aula que o jornalista precisa ser 131
humilde, pois a real estrela é a reportagem. Nós, jornalistas em formação, somos profissionais especialistas em contar histórias, e fazemos disso nosso ganha-pão, em troca de um salário pequeno e sofrido. Mas, quando consideramos o fato de que contar uma história é uma arte, o fazemos com gosto. A arte, assim como a boa reportagem, reverbera no horizonte do tempo. E, para um jornalista, perceber a importância de seu trabalho para a sociedade é a maior gratificação profissional possível. Portanto, aqui está o Gaúchos. Uma obra de repórteres humildes, dedicados e, sem sombra de dúvida, artistas. Este livro é uma espécie de legado que queremos deixar para o povo do Rio Grande do Sul. O jornalismo ainda promove discussões, estimula o pensamento, tem o poder de mudar o mundo. Gaúchos quer ajudar a responder aos descrentes que questionam se o jornalismo está morto. Não está. O jornalismo sofre, apanha e perde batalhas, mas sempre ganha a guerra. Pois não tá morto quem peleia.
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NOSSA BATALHA Carlos Villela
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ste livro de reportagens partiu de um desafio que nós alunos da disciplina de Projeto Experimental em Jornal no curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS fizemos a nós mesmos. Gaúchos é um projeto de resgate do jornalismo que fomenta debates, que vai atrás do que pouco se discute e coloca em evidência para fomentar debates na sociedade. O jornalismo está cada vez mais movido pela desconstrução. É consenso que, para compreender quaisquer costumes e atitudes de um povo, é preciso investigar suas origens – sua mitologia. Os séculos de história gaúcha são repletos de pormenores pouco conhecidos e desconsiderados – pormenores sociais, econômicos, políticos, culturais e geográficos silenciados por essa mitologia aparentemente pétrea. Mas, para o jornalista, nada é pétreo. Alguns conservadores e puristas consideram projetos que questionam a figura do gaúcho como uma forma de revisionismo supostamente “barato” e feito apenas para escandalizar, mas nós não nos alinhamos a esse pensamento de forma alguma. O interesse aqui não é derrubar uma cultura consolidada, e sim expandi-la para que os gaúchos que ficam de fora do padrão possam participar. Todas as reportagens deste livro jogam luz no que estava na penumbra, dando voz ao que era silenciado pela conveniência do estereótipo. Fomos atrás de muitas curiosidades que parecem ter passado despercebidas por quem modelou a visão atual do gaúcho. É a união entre a análise profunda da cultura que nos acompanha desde o momento em que nascemos nestes pagos (ou nos estabelecemos nesta querência) e o questionamento constante que caracteriza o bom jornalismo. Dessa forma, com a orientação dedicada e o apoio incondicional dos professores Alexandre Elmi e Aline Custódio, desenvolvemos esse projeto no qual o texto de qualidade era a regra e contar novas e pouco conhecidas histórias eram o objetivo final. O mestre Leonam, ex-professor da Famecos e guia espiritual informal, sempre destacou em aula que o jornalista precisa ser 15
humilde, pois a real estrela é a reportagem. Nós, jornalistas em formação, somos profissionais especialistas em contar histórias, e fazemos disso nosso ganha-pão, em troca de um salário pequeno e sofrido. Mas, quando consideramos o fato de que contar uma história é uma arte, o fazemos com gosto. A arte, assim como a boa reportagem, reverbera no horizonte do tempo. E, para um jornalista, perceber a importância de seu trabalho para a sociedade é a maior gratificação profissional possível. Portanto, aqui está o Gaúchos. Uma obra de repórteres humildes, dedicados e, sem sombra de dúvida, artistas. Este livro é uma espécie de legado que queremos deixar para o povo do Rio Grande do Sul. O jornalismo ainda promove discussões, estimula o pensamento, tem o poder de mudar o mundo. Gaúchos quer ajudar a responder aos descrentes que questionam se o jornalismo está morto. Não está. O jornalismo sofre, apanha e perde batalhas, mas sempre ganha a guerra. Pois não tá morto quem peleia.
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PREFÁCIO
Contra os mitos
Por Juremir Machado
J
ornalismo é descobrimento. História, também. O historiador é o jornalista que cobre o passado. Cobre-se para descobrir. Descobrir significa destapar, levantar o véu, fazer emergir, “desocultar”, trazer à luz, dar a ver, revelar, desvelar, desconstruir falsas verdades. As sociedades constroem mitos. Esses mitos tornam-se aparentemente fundamentais para a coesão social. O que garante, porém, que essas mesmas sociedades não poderiam viver muito bem desmontando esses pilares fictícios nos quais se amparam? Mito e verdade vivem em conflito. Nas últimas décadas, jornalistas passaram a crer que a verdade não existe. É uma espécie de crime de lesa-profissão. O jornalismo está condenado a buscar a verdade ou a desaparecer. A epistemologia que sugere ser impossível chegar a qualquer verdade confunde inexistência de verdade com situações em que há litígio sobre a verdade. Não é porque nem sempre se chega a uma verdade que nenhuma verdade existe. Deodoro da Fonseca não foi o primeiro branco a chegar ao Brasil. D. Pedro II não proclamou a independência brasileira. A revolução farroupilha não foi um levante de negros contra a infâmia da escravidão, com apoio de brancos bem-intencionados e dispostos a dividir suas extensas terras. 19
Tornou-se comum citar o historiador Eric Hobsbawn para dizer que toda tradição é inventada. Essa ideia é verdadeira se com ela se quer dizer que toda tradição pode resultar do cruzamento de influências externas com necessidades e construções internas. A bombacha dos gaúchos veio de fora. Essa ideia de tradição inventada é falsa se com isso se quer defender a tese de que a posteriori se pode atribuir ao passado aquilo que nele não estava inscrito. Os “gaúchos” do século XIX não lutavam a cavalo usando fraques vindo da Turquia. Não comiam fígado de ganso importado da França nos intervalos das batalhas. Não dançavam usando perucas como num baile de Luís XVI. O Rio Grande do Sul vive de mitos que podem e devem ser desconstruídos. O jornalismo tem contribuído para isso. O Brasil também se acomoda ao falso como fundamento da coesão social. Em 1964, jornais e grandes jornalistas brasileiros apoiaram o golpe que derrubou Jango da presidência da República. Depois de 1968, com o AI-5 e o endurecimento da ditadura que sempre foi férrea, jornalistas inventaram uma narrativa de heroísmo da imprensa, mesmo da grande imprensa, contra o arbítrio. Esse tipo de mito não se sustenta mais. A tarefa do jornalismo é desmitificar. A revolução farroupilha não foi abolicionista nem humanista. Num momento crucial, foi financiada com a venda de negros no Uruguai por Domingos José de Almeida. Ao final, aceitou a traição em Porongos para desimpedir o caminho à anistia, com direito à indenização secreta, bolsa-revolução, concedida pelo Império. Bento Gonçalves cobrou a sua parte. Uma estratégia para absolver a infâmia é o relativismo disfarçado de contextualização: ter escravos seria um dado banal da época. Só o desconhecimento da história acata tal disparate ideológico. Em 1835, a contestação ao escravismo, ainda que a escravidão persistisse em muitos lugares, era um fato. José Bonifácio havia erguido a sua voz contra essa ignomínia no Brasil em 1823. O tráfico externo estava proibido desde 1831 por uma lei que, como tantas outras, não pegou, sendo refeita em 1850, só produzindo efeitos reais a partir de 1856. Contar a verdade é possível. Faz bem. 20
Neste livro, coordenado pelos professores Alexandre Elmi e Aline Custódio, estudantes da Famecos, melhor faculdade de jornalismo do Brasil, fazem o dever de casa: derrubam mitos caros aos gaúchos. Andressa Moreira, Cândida Schaedler, Carlos Lando, Carlos Villela, Drika Oliveira, Filipe Castilhos, Ilos Leite, Jéssica Sbardelotto, Jessica Manzzoni, Laís Escher, Laísa Mendes, Laura Azevedo, Lucas Zandonai, Luiz Guilherme Alves, Maicon Hinrichsen, Manuela Kuhn, Marcelo Garcia, Nathália Gomes, Rodrigo Azevedo e Thiago Suman visitam as principais representações fictícias dos gaúchos sobre si mesmos e não deixam pedra sobre pedra. Levantam todos os pelegos e mostram o que se esconde por trás das fábulas. Como se cria um herói omitindo pedaços de biografia ou comprando como verdade o romantismo de um José de Alencar? Como se herda o que não existiu? Como se escreve a história para que ela sirva ao mito? Como se cria uma propaganda pela qual o melhor é sempre daqui? Como se faz da falta de continuidade, pela não reeleição circunstancial de governadores, um mito de resistência e politização? Como se enraíza uma ideia distante da realidade, sobre um grau fictício de politização, com base numa percepção seletiva? O Rio Grande do Sul que resistiu ao golpe contra João Goulart, em 1961, através da Rede da Legalidade, comandada por Leonel Brizola, trabalhou pela derrubada de Jango, em 1964, e apoiou amplamente o regime militar. Recentemente, num episódio com final feliz, ainda se tentou resistir a que se trocasse o nome da avenida ditador Castelo Branco, em Porto Alegre, para avenida da Legalidade e da Democracia. Como se constroem as figuras, masculinas ou femininas, que nos servem de arquétipos? O Rio Grande do Sul tem dois tipos de escritores determinantes: os construtores de mitos e os desmistificadores. Erico Verissimo, talentoso e com reconhecimento mais disseminado, ajudou a fabricar o imaginário que adula os gaúchos, o imaginário Capitão Rodrigo. Cyro Martins e Dyonélio Machado desmontaram a trama. João Guedes, o gaúcho a pé, e Naziazeno, o funcionário sem dinheiro para pagar o leiteiro, podaram o que 21
ainda restava de autoglorificação na teia de imagens autocomplacentes sempre renovada para nos salvar da depressão e da crua verdade. Para além do talento de cada um, embora o de Dyonélio não fosse menor que o de Erico, o viés narrativo escolhido tem contado no tribunal das reputações. É mais fácil admirar quem exalta nossas qualidades, mesmo inexatas, talvez falsas, verdadeiras, às vezes, sempre controversas. O mito é a muleta do homem que teme andar por si mesmo. Apoia-se no sofisma para não cair. Se não é a mentira pura e simples, pode ser inverdade sem mentir. O mito é meia-verdade. Já cultivamos a ideia de termos a melhor educação do Brasil. Onde estamos agora? Por trás desse inventário podem existir armadilhas ideológicas. Há os saudosos dos tempos antigos nos quais a educação seria perfeita. Em 1964, o Brasil, numa população de quase 80 milhões de habitantes, tinha 93 mil jovens nas universidades. Os nostálgico desse “paraíso perdido” lamentam, com razão, que hoje alunos batam em professores, mas omitem que, nos seus belos tempos, professores batiam em alunos. Ainda somos o celeiro da nação? Já somos um celeiro com lugar ao sol para todos os produtores, do pequeno ao grande, do gaúcho a pé ao montado em alta tecnologia? Ou estamos a caminho de uma monocultura esterilizante para exportação? Gostamos de símbolos, vivemos de mitologias, amamos a cultura e a arte. Nos estádios de futebol, cantamos o hino do Rio Grande do Sul, escrito por Chiquinho da Vovó, a plenos pulmões e desprezamos o hino nacional brasileiro. Sabem os gaúchos que uma parte do nosso bravo hino foi suprimida, em 1966, justamente no começo da ditadura militar? Uma parte que diz “entre nós reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na glória e na virtude, romanos”. Mera coincidência? Ou nossos militares não queriam ser lembrados todo santo dia da democracia ateniense? Onde estamos? Numa era inédita de violência? Na continuação de um passado que seria melhor esquecer? Em 1895, quando surgiu o jornal Correio do Povo, o chefe de polícia do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, era instado a tomar providências 22
contra brigadianos que saíam pela cidade armados assaltando as pessoas. Foi uma das primeiras notícias do agora centenário jornal de Caldas Júnior. A vida segue. Cada época com seus lamentáveis problemas. Como lidamos com os preconceitos? Estamos prontos para enterrar a homofobia e o racismo? Não parece. Um CTG foi incendiado, em Santana do Livramento, para impedir um casamento gay. O racismo nos estádios de futebol repete-se com a mesma intensidade dos pontapés e dos golpes baixos. Resta sonhar com o futuro? Temos perspectivas? Quais? Durante muito tempo, ser funcionário de carreira do Estado do Rio Grande do Sul era motivo de orgulho e uma escolha certa. E agora? Ser funcionário virou privilégio, mácula? O Estado deve ser mínimo? Médio? Máximo? Eficiente? Apenas o necessário? O Rio Grande do Sul é um cadinho de culturas, de etnias, de origens, de mesclas, de misturas, de miscigenação. Por que nossa música, nossa arte, não explode no Brasil inteiro? Somos nós que nos fechamos ou os outros que não nos entendem? Somos um país dentro do país? Uma ilha perdida na imensidão do país continente? Vivemos de costas para o Brasil? A verdade pode doer, mas continua fundamental. Viver no mito é para avestruz. Temos de tirar a cabeça do chão e olhar nos olhos dos outros. Olhar em nossos próprios olhos. Não precisamos nos diminuir. Tampouco temos de nos vangloriar do que não fomos exatamente ou não somos. Temos direito a cultivar nossa singularidade. Não somos obrigados a cair no conto de que o “de fora” é sempre melhor. Aqueles que nos acusam de bairristas quase sempre o fazem em nome do próprio bairrismo. Paulistas e cariocas, por exemplo, são bairristas que se veem como cosmopolitas. Colonizadores internos que não compreendem o desejo dos colonizáveis de continuarem tendo uma identidade própria. Este belo livro pesquisa, questiona, interpreta, entrevista, explica, articula e, entre jornalismo, história e sociologia, dá espaço para o contraditório, tecendo os fios dos vários pontos de vista. Cobre-se para descobrir. O tempo dos mitos acabou. Se nem toda verdade é alcançada, muita verdade pode ser dita. Basta investigar 23
O CONTINENTE
No enredo da trilogia de Erico Verissimo, O Continente é a forja a ferro e fogo do Rio Grande do Sul, entrelaçando a história de famílias e con itos arra a constituição a identidade, o tempo da conquista e o po er lustra a coesão e a aglutinação pr prias as gran es e tens es territoriais a união a concatenação o senti o
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Herança inventada Cândida Schaedler
A voz de uruguaiana Carlos Villela
A ilusão do campo Luis Guilherme
Falta de educação Laura Azevedo
Como se cria um herói Andressa Moreira
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Classico Filipe Castilhos
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HERANÇA INVENTADA Cândida Schaedler
O gaúcho, descrito por viajantes que pisaram aqui no século 19, não corresponde ao de hoje. Na época, esses indivíduos eram vistos com maus olhos, por serem ladrões de gado. A construção do mito em torno do gaúcho, que o alça a bom pai de família, valente e orgulhoso, foi algo posterior, criado por intelectuais. O desejo de mitificar a imagem deu resultado, respingando no próprio ufanismo. O que ocorre é que as tradições sul-rio-grandenses são resultado da contribuição de italianos, alemães, portugueses, espanhóis, negros e indígenas, e não vieram prontas – são resultado de uma mescla de etnias.
O
gaúcho de hoje não tem nada a ver com o gaucho – assim mesmo, sem acento – que vagava pelos pampas rio-grandenses a partir de 1536 até meados de 1870. O gaúcho – este com acento –, descrito como bom pai de família, orgulhoso, honrado e valente, é uma figura antagônica àquela definida por viajantes que pisaram no Rio Grande do Sul no século 19. Relatos de viagem descrevem o gaúcho como um ser errante e difícil de classificar, justamente pela mistura de etnias que o compõem – sendo uma mescla de índios, negros e europeus. A construção do mito foi algo posterior, iniciado, sobretudo, na literatura e por intelectuais de influência. O historiador Setembrino Dal Bosco, que tem mestrado pela Universidade de Passo Fundo (UPF), explica que houve uma transformação deliberada do gaucho no gaúcho atual. “Decreta-se a morte do gaúcho histórico, por ser a escória, e constrói-se uma identidade romantizada e idealizada”, explica. O gaucho ao qual Dal Bosco refere-se é aquele que montava a cavalo, mas era ladrão de gado e contrabandeava couro. Não tinha boa índole e aprendeu a montar com o que denomina de “nativos” – ou seja, os indígenas, que eram os únicos habitantes do Brasil até a colonização europeia. Na gênese, o gaúcho que conhecemos é, portanto, uma mescla de etnias que inclui os índios e traz heranças dos guaranis. O gaúcho é uma invenção inspirada no peão de estância, que tinha habilidades de montaria e era dócil. Os estancieiros do final do século 19 gostavam de contratá-los porque eram bons trabalhadores e sabiam montar bem a cavalo, o que aprenderam com os nativos guaranis. Dal Bosco afirma que o mito do gaúcho pode ter surgido concomitantemente com outros mitos sul-rio-grandenses: o da democracia pastoril (o estancieiro cultivava os mesmos hábitos que os peões), o do gaúcho como um ser valente e bravo e o da produção sem trabalho. “Eles retiraram daquele gaúcho histórico suas desqualificações e preservaram apenas as características que os interessavam. Também se 27
separaram os gaúchos do Rio Grande do Sul dos da Argentina, Paraguai e Uruguai”, enfatiza Dal Bosco. “Os gaúchos, nômades, habituados nas margens do rio da Prata, principalmente das campinas ao Norte de Montevidéu, estendem-se igualmente em todo o território banhado pelo Paraguai, Paraná e Uruguai, até o Oceano, em todas as partes onde há estâncias ou charqueadas em que servem de peões.” Nicolau Dreys, em Notícia Descritiva da Província de Rio Grande de São Pedro do Sul (publicado originalmente em 1839). Dal Bosco explica que historiadores não costumam utilizar o gentílico gaúcho para se referir aos habitantes do Rio Grande do Sul. Preferem o termo “sul-rio-grandense”. “O adjetivo gentílico gaúcho está sendo mal usado e nos impede de formar uma identidade sul-rio-grandense que seja compatível com a verdadeira”, salienta. De acordo com a historiadora Daysi Lange, na obra Imagens do Gaúcho: História e Mitificação, o início da construção desse mito deu-se simultaneamente ao surgimento da literatura no Rio Grande do Sul, com a criação do Sociedade do Partenon Literário de Porto Alegre, em 1865. Nesse período, seus integrantes alinharam-se aos ideais republicanos. Um dos mais influentes dentro do grupo foi Apolinário Porto Alegre, que escreveu obras exaltando as qualidades gaúchas, dando início à construção do mito. “O padrão romântico, ao buscar o tipo característico da origem rio-grandense, homogeneizou a sociedade na idealização de um símbolo – o gaúcho – de natureza livre, nobreza de sentimentos e exemplo de coragem que são qualificativos do núcleo simbólico capazes de se repetirem pela própria estrutura do mito”, afirma Lange. “Sem chefes, sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm, da moral social, senão as ideias vulgares, e sobretudo uma sorte de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de 28
“O padrão romântico, ao buscar o tipo característico da origem Rio-Grandense, homogeneizou a sociedade na idealização de um símbolo”. Daysi Lange, historiadora.
quem lhes faz benefício e de quem os emprega, ou neles deposita confiança: entregues ao jogo com furor, esse vício, que parecem praticar como um meio de encher o vácuo de seus dias, é a fonte dos roubos e às vezes das mortes que cometem. Joga o gaúcho tudo o que possui, dinheiro, cavalo, armas, vestidos, e sai às vezes do jogo inteiramente ou quase nu; nessa posição é que o gaúcho se torna temível, pois que, perdendo tudo o que tem, não perde ainda o desejo de desafiar outra vez a fortuna, nem a esperança de achá-la menos cruel; e por mais temível que se torne nesse estado, não de desesperação, mas de profunda mágoa, os movimentos interiores do gaúcho escapam aos olhos do observador; nunca se altera nele aquela superfície de impassibilidade que faz parte mais saliente de seu caráter; ele se diverte, sofre, mata e morre com o mesmo sangue frio.” Nicolau Dreys, em Notícia Descritiva da Província de Rio Grande de São Pedro do Sul. No livro A Invenção das Tradições, de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, os historiadores escrevem que há três tipos de tradições inventadas desde a Revolução Industrial. A gaúcha se insere na terceira categoria, cujo principal objetivo é socializar e inculcar um sistema de ideias, valores e padrões de comportamento em determinado grupo. Para eles, a tradição é invariável, impondo práticas fixas, normalmente formalizadas e repetidas, enquanto Max Weber, em Economia e Sociedade, afirma que a tradição não pode ser entendida como algo estático, pois se insere em um espaço-tempo mutável que envolve o passado e o presente. Por mais que se tenha o ímpeto – principalmente por conta do ufanismo – de acreditar que a figura do gaúcho sempre existiu como é hoje, a ideia é incorreta. Os costumes, o folclore e as tradições gaúchas tiveram a participação de portugueses, espanhóis, alemães, italianos e também – embora não se fale tanto – de negros e de indígenas. O historiador e técnico do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) Terson Praxedes explica 29
que a mistura já começou com a colonização portuguesa. Depois, com a chegada de outros imigrantes às terras sul-rio-grandenses, cada um deixou sua contribuição para formar o que, atualmente, conhecemos por gaúcho. O chimarrão, bebida tradicional no Estado, é uma herança do índio guarani, que também existe em outros países do Rio da Prata, como Argentina, Uruguai e Paraguai. No Rio Grande do Sul, prevaleceu a denominação de chimarrão, enquanto em terras paraguaias é tererê (embora a infusão seja com água fria) e em uruguaias e argentinas, mate. Tirando isso, Praxedes salienta que a contribuição indígena não foi tão significativa. “O índio foi mais caçado do que usado como elemento de cultura”, pontua. “Ainda tomei dois mates antes de partir. O uso dessa bebida é geral aqui: toma-se mate no instante em que se acorda e, depois, várias vezes durante o dia. A chaleira cheia de água quente está sempre ao fogo e, logo que um estranho entre na casa, oferecem-lhe mate imediatamente. O nome do mate é propriamente o da pequena cuia onde é servido, mas dá-se também à bebida ou à quantidade de líquido contido na cabaça (...). Os verdadeiros apreciadores do mate tomam-no sem açúcar, e então se obtém o chamado mate-chimarrão. (...) Aqueles que estão acostumados ao mate não podem privar-se dele, sem sofrerem incômodos.” August de Saint-Hilaire, em Viagem ao Rio Grande do Sul (publicado originalmente em 1821). As danças gaúchas, por sua vez, têm, em alguns ritmos, as alemãs como inspiração. A valsa e o xote, por exemplo, são ritmos introduzidos pelos teutos, de acordo com Praxedes. Outros passos são oriundos da tradição uruguaia e argentina; outros, ainda, da espanhola, como o sapateado. O que se fez no Rio Grande do Sul foi mesclar e superpor cada ritmo e influência em algo que parece unificado, com uma identidade própria. A origem das próprias danças brasileiras, de acordo com o 30
livro Manual de Danças Gaúchas, de Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, remonta aos ritmos espanhóis. Como a formação do Rio Grande do Sul se deu dois séculos e meio após a colonização do Brasil, é natural que, quando surgissem as danças e folclores rio-grandenses, houvesse influência da mestiçagem brasileira que havia sido elaborada ao longo dos mais de 200 anos. “O baile começou poucos instantes após a chegada do conde, mas nunca vi coisa tão monótona. Era preciso, por assim dizer, obrigar os homens a tirar as senhoras para dançar e, à exceção do conde, nenhum cavalheiro lhes dirigia a palavra. Dançaram-se ‘inglesas’ e valsas. Entre os portugueses, esta última dança não é tão executada com tanta rapidez como na Alemanha e na França; aqueles fazem, na valsa, um grande número de posições, algumas vezes muito voluptuosas”. August de Saint-Hilaire, em Viagem ao Rio Grande do Sul. No que diz respeito à vestimenta, a indumentária da prenda, segundo Praxedes, foi inventada misturando o vestido da caipira e o da espanhola. A bombacha é reminiscência da roupa que os paraguaios utilizavam na guerra e, na essência, tem origem turca. O pala é herança indígena para proteger do frio – diferente do poncho, que é gaúcho mesmo, sendo utilizado também como proteção para a chuva. Os negros, conforme o historiador, não deixaram tantos legados quanto outras etnias, mas, na gastronomia, percebe-se a presença ainda forte da feijoada. Ao virem para o Brasil, os viajantes registraram ideias contraditórias a respeito do trato conferido aos descendentes de africanos: ora descreviam como eram bem-tratados, ora como sofriam nas mãos dos rio-grandenses. Em relação à diversidade de etnias que compõem as tradições do Rio Grande do Sul, a antropóloga da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Ceres Brum diz que é constitutiva e que a preocupação em trazer à tona elementos oriundos de 31
É natural que, como a formação do Rio Grande do Sul aconteceu após dois séculos da colonização do Brasil, as danças gaúchas tenham influência da mescla étnica do país.
outros grupos étnicos é muito recente. “Está muito relacionada ao próprio fortalecimento do tradicionalismo gaúcho”, comenta. “A cultura tradicionalista é dinâmica”. A mistura pode ser observada nitidamente sem muito esforço. Em um passeio pelo Acampamento Farroupilha, tradicionalistas assam galeto – comida típica italiana –, comem cucas – herança alemã –, vendedores ambulantes comercializam cocadas – doce tradicional na América Latina e em Angola – e piquetes anunciam até bolinho de chuva – tipicamente português. Ao lado do tradicional costelão – isso sim, algo tipicamente rio-grandense, herdado dos gauchos –, outras comidas mostram a diversidade da qual o povo do Rio Grande do Sul se compõe e que, por mais que se tente enquadrar dentro de um estereótipo, escapa a definições ufanistas e pré-concebidas. “Apenas chegando ao lugar onde pernoitei, o meu soldado acendeu uma grande fogueira; cortou a carne em grandes nacos de espessura de um dedo, fez ponta numa vara de, aproximadamente, dois pés de comprimento, cravou-a em forma de espeto numa porção de carne, atravessou nesta outros pedaços de madeira em sentido transversal, para que ela ficasse bem estendida; enfiou o espeto obliquamente na terra, levando ao fogo um dos lados da carne e, quando julgou suficientemente assado, expôs o outro lado ao fogo. Ao fim de um quarto de hora, o assado podia ser comido; era uma espécie de beef-steack suculento, mas extremamente duro. Na viagem que fiz em companhia do conde, já vira seus peões e soldados prepararem as refeições desse modo.” August de Saint-Hilaire, em Viagem ao Rio Grande do Sul. Para o presidente da Comissão Nacional de Folclore, Severino Vicente, a cultura popular é transmitida entre gerações. “A diversidade cultural brasileira é o que vai dar forma ao Brasil”, salienta. Vicente diz que folclore é cultura, embora o conceito de cultura, para ele, seja muito vago. “O folclore é uma ciência dentro da cultura popular”, define. “Tradição é aquilo que 32
“A cultura tradicionalista é dinâmica”. Ceres Brum, antropóloga.
é passado de geração a geração e não envelhece. É o ponto de sustentação do folclore”, explica. Vicente ainda comenta que o folclore e as tradições são dinâmicas e precisam da aceitação coletiva para funcionarem. No Brasil, ele considera natural que sejam compostas da junção de culturas de várias etnias, pois frisa, de maneira veemente, que “aqui reside a maior diversidade cultural do planeta”. Como muitas outras culturas do mundo, portanto, a gaúcha não escapa da mistura de etnias. A tentativa de exaltá-la em relação às demais não se aplica no sentido de que é formada, exatamente, de uma mescla de outros povos.
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A VOZ DE URUGUAIANA Carlos Müller Villela
Clavo mi remo en el agua Llevo tu remo en el mío Creo que he visto una luz al otro lado del río El día le irá pudiendo poco a poco al frío Creo que he visto una luz al otro lado del río [...] En esta orilla del mundo lo que no es presa es baldío Creo que he visto una luz al otro lado del río Al Otro Lado del Río, do uruguaio Jorge Drexler, simboliza o melancólico isolamento da maior cidade fronteiriça do Rio Grande do Sul
O
Rio Uruguai, nascido da união dos rios Pelotas e Canoas, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, tem 1.770 quilômetros de extensão. Antes de desembocar no Rio da Prata, o Uruguai cruza dois Estados brasileiros, quatro províncias argentinas e seis departamentos uruguaios. Do lado de cá, é o rio dos caracóis. Do lado de lá, es el río de los pájaros. Na metade do percurso dessas águas extremamente latino-americanas, encontra-se Uruguaiana. Sede do maior porto seco da América Latina e a principal produtora continental de arroz, o título de “celeiro do Brasil” é uma das várias medalhas no peito da chamada Princesa do Uruguai. Aproximadamente, 700 quilômetros separam Uruguaiana de Porto Alegre, Buenos Aires, Montevideo e Asunción, o que contribuiu para que a cidade fosse um dos palcos principais da história rio-grandense. A Guerra dos Farrapos originou a cidade, e a Guerra do Paraguai transformou-a em um cenário de conflito. E, em um passado cheio de sangue e glória, Uruguaiana se firmou como uma voz potente na política gaúcha. Contudo, o tempo passou, e a honrosa e valente princesa do Uruguai está rouca. Nas últimas décadas, os jogos internacionais de poder mudaram drasticamente. A importância das fronteiras físicas se reduziu, dando lugar a um traçado muito mais subjetivo e apoiado na influência social e econômica. Dessa forma, Uruguaiana deixou de ser protagonista direta para se tornar uma intermediária. A localização estratégica da cidade impede que ela perca a influência regional, mas, com a crescente centralização de todas as formas de poder nas capitais, essa distância equidistante entre quatro metrópoles transformou a cidade em um mero ponto de parada. Essa quebra de paradigma nas relações internacionais afetou, principalmente, a convivência da população com as cidades vizinhas, especialmente com a ciudad hermana Paso de los Libres, na Argentina. Libres, como é conhecida, funciona como 35
um grande supermercado, no qual os uruguaianenses vão para fazer suas compras do mês e abastecer seus automóveis com a gasolina argentina, mais barata e, de acordo com o que dizem, mais pura. Não há, exatamente, uma interdependência, pois o impacto econômico do consumo dos brasileiros na Argentina é muito maior do que a relação inversa. Entretanto, a partir de 2013, o governo argentino tornou obrigatória a imigração para o ingresso de quaisquer estrangeiros nativos de países do Mercosul. Essa atitude não foi bem aceita pelos uruguaianenses, pois implicou na espera de até uma hora e meia em uma fila para a realização desses trâmites. Esse procedimento burocrático desanimou os brasileiros, e muitos só cruzam a fronteira quando há necessidade. Assim, o comércio de Paso de los Libres sofreu um baque tremendo, e Uruguaiana tornou-se ainda mais isolada do ponto de vista social. Como única e prodigiosa filha da Revolução Farroupilha, a história de Uruguaiana facilmente derruba a ideia popular de que os líderes farrapos eram “do povo”. Assim como os grandes nomes do conflito que levou à sua fundação, a cidade era uma pequena Europa nos confins do pampa rio-grandense. Os grandes estancieiros ditavam as regras e a economia, fazendo com que Uruguaiana se assemelhasse à Santana do Livramento, Bagé e Pelotas – símbolos de fortuna em suas respectivas regiões, diferente da Porto Alegre na qual o poder urbano se sobrepunha ao rural. O professor de literatura Cicero Galeno Lopes afirma que o maior motivo de Uruguaiana ser socialmente independente da capital do Estado está nos fortes laços comerciais com metrópoles muito mais relevantes na época. “Uruguaiana era uma cidade com cafés, mesinhas de madeira trabalhada, e isso era reflexo do que havia em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, capitais nacionais essencialmente aristocráticas. E essas duas cidades, por sua vez, refletiam um modelo de vida europeu”, explica Lopes. A aristocracia uruguaianense, formada por estancieiros e empresários, tinha como ponto de encontro o Clube Comer36
Em 1840, o povoado de Santana Velha foi destruído por uma inundação. 24 de fevereiro de 1843, o movimento farroupilha refundou e repopulou o local. Uruguaiana é a única cidade originária da Guerra dos Farrapos.
cial, edifício de estilo clássico em frente à Praça da Matriz. A localização privilegiada era um símbolo indireto da exclusividade do clube. Pouco tempo depois, os pequenos comerciantes e outros cidadãos com relativo poder aquisitivo e que não se encaixavam no perfil exigido por aquela agremiação fundaram o Clube Caixeiral. Mais tarde, a camada mais pobre da população e os descendentes de escravos criaram o Clube Laço do Amor, sediado em um prédio sem requinte nas proximidades do Rio Uruguai. A arquitetura e o público de cada clube definiam como funcionava a sociedade de Uruguaiana. Contudo, o cenário dos clubes recreativos da cidade perdeu a importância social que tinha quando essas divisões sociais foram deixando de ser tão explícitas e significativas – algo que aconteceu no país inteiro, mas que parece representar o começo do fim da “era de ouro” da Princesa do Uruguai, pois foi concomitante com as mudanças na distribuição do poder local. Essas várias alterações socioeconômicas tiveram início em meados da década de 1950, quando a longínqua Uruguaiana acabou se distanciando de várias outras formas das metrópoles e do poder. Em 1956, o desenvolvimentista Juscelino Kubitschek foi eleito presidente do Brasil e implantou reformas que priorizavam o setor terciário. Seguindo sua proposta de fazer o país crescer “50 anos em 5”, Kubitschek incentivou o crescimento da indústria automobilística nacional por meio da construção de inúmeras rodovias e a instalação de fabricantes internacionais de carros. Para viabilizar esse projeto, os transportes ferroviário e hidroviário foram planejadamente desestimulados. A ligação entre Uruguaiana e Porto Alegre começou em 1907, através da inglesa Brazil Great Southern Railway Company Limited, sediada em Londres. A partir de 1952, a linha era feita pelo trem Minuano da Viação Ferroviária Rio Grande do Sul (VFRGS), e em 1974 foi substituída pelo Trem Húngaro. Em 1987, o transporte de passageiros foi encerrado definitivamente. Isto foi um marco negativo em relação ao isolamento da Fronteira Oeste, pois a distância geográfica da região tornou-se um problema 37
ainda maior. Por algum motivo, carros e ônibus não conseguiram substituir plenamente a conexão que as linhas férreas proporcionavam entre Uruguaiana e o resto do país. A partir da década de 1970, a pecuária uruguaianense sofreu um forte impacto. A popularização de tecidos sintéticos fez com que a criação de ovinos se tornasse obsoleta, visto que a lã perdeu espaço no mercado para o poliéster, de produção mais fácil e barata. Os criadores de bovinos também foram prejudicados, não só pela redução do consumo de couro, mas também pelo crescimento vertiginoso da produção de carne e leite no Centro-Oeste brasileiro, em grande parte impulsionada pela então jovem Brasília. Enquanto a pecuária entrava em decadência na Fronteira Oeste, a agricultura rapidamente se firmou como a maior fonte de renda por meio do arroz. Os terrenos alagadiços da região, propícios para a orizicultura, levaram agricultores de diversas partes do Estado – especialmente de Cachoeira do Sul e arredores – a fazer contratos de cultivo nas terras dos grandes proprietários, em troca de repasse de parte do lucro. Portanto, surgia em Uruguaiana uma nova elite financeira. Esse processo fez com que as famílias tradicionais passassem a conviver com, nas palavras de Lopes, “novos e estranhos sobrenomes” na região. “Não que eles quisessem abrir a alta roda da sociedade para os recém-chegados, mas a nova ordem econômica na cidade tornou isso inevitável. Surgiam os Pereira, os Oliveira, etc, e, mesmo sem o pedigree que a aristocracia uruguaianense tanto prezava, eles tinham dinheiro”, diz. Apesar da importância econômica da produção de arroz (algo que dura até hoje), Uruguaiana deparou com um êxodo de mão de obra ativa, pois a falta de indústrias na cidade levou ao aumento do desemprego e à falta de perspectivas. De acordo com Lopes, isso se deve em muito à vinda de companhias multinacionais. “Em Uruguaiana tinha uma fábrica de guaraná (companhia PO, propriedade de Ramão Prunes de Oliveira), e era a bebida mais consumida na cidade. Aí, veio a Coca-Cola, com toda a força que os Estados Unidos exerciam no Brasil 38
durante a ditadura, e não tem como uma fábrica de guaraná uruguaianense sobreviver”, explica. As conexões sociais e econômicas de Buenos Aires e do Rio de Janeiro com Uruguaiana obviamente refletiam na produção e apreciação da cultura da cidade. Os trabalhos de Alceu Wamosy, talvez o maior nome da literatura uruguaianense, eram de estilos neoparnasiano e simbolista, o que distanciava seus poemas da realidade do gaúcho. Isso pode ser percebido em seu poema Duas Almas, no qual conta uma história de saudade ambientada em um local “em que a neve anda a branquear, lividamente, a estrada” – a geada, muito mais “gaúcha”, era desconsiderada em troca da europeia neve. Como suas obras foram escritas em um período no qual o país não tinha um movimento literário forte, elas manifestavam influência claramente europeia – decorrência do poder político da capital argentina, dita Paris dos Pampas, e da forte relação da capital fluminense com o Velho Continente. Portanto, Wamosy involuntariamente tornou-se o símbolo da Uruguaiana rica e, na medida do possível, glamourosa. A identidade do gaúcho fronteiriço só tomou força quando as obras do escritor pelotense João Simões Lopes Neto foram “redescobertas” em 1916, após sua morte. Seus livros – especialmente Contos Gauchescos – saíram do ostracismo literário e passaram a ser reconhecidos por especialistas e pelo público como os mais importantes textos sobre a cultura do Rio Grande do Sul. Segundo Lopes, a aclamação póstuma de Simões Lopes Neto implicou no reconhecimento do “gaúcho original” que antes era apenas visto como mão-de-obra. Como decorrência, a música nativista se abriu a essa nova tendência, o que levou à fundação, em 1971, da Califórnia da Canção Nativa, inspirada no Festival Nacional de Folclore de Cosquín, criado 10 anos antes na cidade homônima na província argentina de Córdoba. O evento foi idealizado principalmente pelos intelectuais e estudiosos uruguaianenses, que buscavam dar espaço à valorização desse gaúcho original – o marginal, o Blau Nunes dos Con39
A sociedade uruguaiananense no começo do século XX era bastante influenciada pelo Rio de Janeiro e Buenos Aires, as duas grandes metrópoles sul-americanas na época.
tos Gauchescos. Mas, de acordo com a escritora uruguaianense Vera Ione Molina Silva, a ideologia que servia como base para a proposta da Califórnia não tinha muito apelo popular. “Embora muitos acreditem que o nome Califórnia vem do Estado americano, ele foi escolhido pelo seu significado em grego, que é ‘um conjunto de coisas bonitas’. Apesar da intenção de fazer um festival folclórico e de importância cultural, essa intelectualidade por trás do evento acabava por afastar o público-alvo ao invés de atrair”, diz. Lopes endossa essa visão e relembra que, no fim da década de 1970, recepcionou uma professora alemã que chegou a Uruguaiana e tinha interesse em conhecer a cultura da cidade. “Mostrei para ela o disco da Califórnia daquele ano. Por algum motivo, comentei sobre um outro disco de um grupo muito popular entre as comunidades mais pobres. No fim, ela levou o segundo, e me falou que a coletânea da Califórnia parecia ‘erudita’ demais”, relembra. Com o passar dos anos, a Califórnia se firmou como o maior festival cultural do sul do Brasil, atingindo um público de mais de 60 mil pessoas em seu auge nos anos 1980 e premiando com a Calhandra de Ouro compositores como Sérgio Napp, Elton Saldanha, Luiz Coronel e Telmo de Lima Freitas. Mas, nos moldes das diferentes decadências sofridas por Uruguaiana, o festival perdeu fôlego a partir do começo dos anos 2000, e sequer ocorreu em 2006, 2008, 2010, 2011 e 2012. Em 2013, a Califórnia retornou e, de acordo com o músico Luiz Lagreca Neto, parece ter voltado com força. Lagreca, vencedor de três prêmios na última Califórnia, acredita que a população uruguaianense sente falta de uma produção cultural de qualidade: “Nas últimas duas edições, o público prestigiou em massa. Quando acabou a última, já tinha CD pirata das músicas para vender na Baixada (centro popular de compras da cidade). Certo não é, mas é sinal de que tem público”. O isolamento de Uruguaiana é claro quando se analisa os componentes da “casa do povo”. O deputado estadual Frederico Antunes, do Partido Progressista, é o único representan40
Inspirada no Festival Internacional de Folclore de Cosquín, a Califórnia da Canção Nativa foi fundada em 1971 e serviu de modelo para quase todos os festivais nativistas de música.
te de toda a Fronteira Oeste na atual legislatura da Assembleia gaúcha. E ele próprio vê essa situação como algo crítico. “As 13 cidades da Fronteira Oeste têm 500 mil habitantes. Isso seria suficiente para eleger quatro deputados estaduais com folga, e, no mínimo, dois deputados federais. Só que não há uma unidade em torno de alguma candidatura”, diz. Não que o deputado acredite que há um problema no processo democrático em si. Segundo ele, isso é algo que pode ocorrer, pois eleições ocorrem em âmbito estadual. “O voto para deputado estadual não é limitado por regiões, e assim como eu recebo votos de várias cidades fora da fronteira, outros candidatos que não são ligados à fronteira recebem votos lá”, afirma. Atualmente no quinto mandato, Antunes considera que os outros deputados são parceiros nos seus projetos de lei em benefício da fronteira, mas que é complicado atrair investimentos públicos e privados para a região. Porém, o deputado é esperançoso em relação à reinserção de Uruguaiana no contexto geopolítico do Estado, especialmente por conta das linhas diárias de transporte aéreo entre a cidade e Porto Alegre, reestabelecidas em outubro de 2015 pela Azul Linhas Aéreas. A reativação dessa linha aérea, que demora aproximadamente duas horas para fazer o percurso, marcou o início das atividades do Programa Estadual de Desenvolvimento da Aviação Regional, que concede desconto no ICMS do querosene para companhias que tenham interesse em realizar voos que conectem a capital gaúcha com o interior do Estado. Essa nova forma de transporte solucionou uma demanda da população uruguaianense, que, desde o encerramento das atividades da extinta companhia NHT na cidade, em 2013, só tinha como chegar a Porto Alegre através das linhas de ônibus da Planalto Transportes. A viagem, que dura aproximadamente nove horas, tem valores que variam entre R$ 104 na modalidade comum e R$ 375 no leito-cama. A passagem de avião tem custo aproximado de R$ 175. Além da redução de quase sete horas de deslocamento e um preço próximo da passagem de ônibus, An41
tunes destaca a possibilidade de viagens interestaduais. “Vai ser possível sair do Aeroporto Rubem Berta logo após o meio-dia e chegar a São Paulo ou ao Rio de Janeiro no começo da noite. Ou seja: Uruguaiana vai se conectar com o polo nacional que é Porto Alegre, e também com polos internacionais”, afirma. Estas conexões com as duas maiores metrópoles brasileiras podem representar a volta da importância social e cultural de Uruguaiana. Embora não seja exatamente semelhante, essa situação é análoga à época em que a cidade mantinha proximidade com Buenos Aires e o Rio de Janeiro, agora contando com a presença da maior megalópole da América do Sul, São Paulo. Dessa forma, os problemas econômicos, as dificuldades crescentes de transporte e a falta de perspectivas que deixaram Uruguaiana à deriva no mapa sociocultural do Rio Grande do Sul se encaminham para virar um capítulo passado na história, ou ao menos é isso que os uruguaianenses esperam. É o que a Princesa do Uruguai precisa para voltar a recuperar a voz.
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A ilusão do campo
Luiz Guilherme Alves
O Rio Grande do Sul já foi conhecido como celeiro do Brasil. A partir dos anos 1980, novas fronteiras agrícolas foram abertas em outras regiões do país e o Estado perdeu o posto. Mesmo com esta diversidade, a cultura da soja mantém a importância da agricultura na economia gaúcha. Com uma safra estimada de 14,9 milhões de toneladas para 2015 e 412 dos 497 municípios plantando o grão, a oleoginosa desponta como principal fonte de receita em várias cidades.
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s paisagens do Rio Grande do Sul não são mais as mesmas. O pampa dos tropeiros, aquele pedaço de terra ao Sul do continente dividido com os irmãos platinos, tem assumido uma nova cara por essas bandas. Ao viajar pelas estradas que cortam o Rio Grande é possível ver o gado dando espaço para um mar verde que banha as planícies e planaltos gaúchos, até ser coberto por grãos dourados de soja. Apesar de não concentrar mais os maiores números na produção do grão no Brasil – a região Centro-Oeste é a maior produtora – o Estado está entre os principais produtores do país. De acordo com a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estetística (IBGE), a safra de 2015 no Rio Grande do Sul, será de cerca de 14,9 milhões de toneladas, com participação de 412 dos 497 municípios gaúchos na colheita. São 5,22 milhões de hectares em área plantada no Estado, com um valor bruto de aproximadamente R$ 14 bilhões em receita. Mesmo em áreas como a Serra e o Litoral, em que o terreno não favorece o cultivo da soja, a possibilidade de lucro pelos preços da commodity no mercado internacional faz com que agricultores das outras regiões ocupem todos os espaços disponíveis, sendo possível ver lavouras de soja inclusive na beira das estradas, logo depois do acostamento. Além disso, regiões pouco lembradas pelo cultivo do grão passaram a produzir a oleoginosa. A metade Sul do Estado, conhecida pela pecuária e o cultivo de arroz, teve a soja superando em 2015 pela primeira vez a área plantada de arroz, conforme dados da Empresa de Assietência Técnica e Extensão Rural (Emater-RS). O valor da soja é que determina o tamanho da área plantada, observa Alencar Rugeri. “Se o milho dobrasse de preço, a área da soja diminuiria”, salienta. Ele explica que a lei da oferta e da procura é o que define a opção por uma cultura ou outra. A demanda internacional da soja tem sido alta nos últimos anos. O técnico lembra que 45
países como a China têm comprado altas quantidades do grão e, enquanto isso continuar, a produção vai seguir maior que os demais cultivos. Até cidades sem tradição com a oleoginosa, por não terem o terreno adequado para vastas lavouras, estão apostando. É o caso de Picada Café, no Vale do Caí. Conforme o IBGE, a cidade tem a menor área de soja plantada, com um número estimado de 1 hectare e 2 toneladas do grão cultivadas em todo o município. O técnico da Emater local, Rafael Hoss, explica que são pequenos grupos de famílias que cultivam a soja apenas para o trato dos animais. Ao contrário dos agricultores de Picada Café, uma cidade da região Central do Estado, antes conhecida por charqueadas e campos abarrotados de gado, aparece como a primeira em produção da oleoginosa. Com área cultivada de 144 mil hectares e produção estimada de 432.437 toneladas, segundo dados do IBGE para 2015, Tupanciretã viu a soja se tornar protagonista na sua história ligada à agricultura e à pecuária. Mesmo sendo a maior produtora gaúcha, a cidade não consegue reverter os lucros em melhorias à população de 23.421 habitantes. As carências são encontradas em todas as áreas. A estrada que liga a cidade ao Oeste do Estado, passando pela localidade de Santa Tecla, há anos é prometida por sucessivos governos e nunca sai do papel. Há carências, também, nas áreas de saúde, comércio e lazer. “A população cobra porque, em outras regiões do país, municípios com cerca de 20 anos têm até universidade, pelo desenvolvimento do setor do agronegócio. E, Tupã, que é de 1928, demora a crescer”, comenta Almir Rebelo. O engenheiro agrônomo acredita que faltam projetos de desenvolvimento no país e no Estado, sendo feitos apenas projetos de governo. Para ele, o setor primário tem sustentado a economia. Contudo, para que melhore são necessários mais projetos de integração com os demais setores. A trajetória da soja no Rio Grande do Sul ganhou forças a partir do final dos anos 1970, mesma época em que a produção 46
a trajetória da soja no rio grande do sul ganhou forças a partir do final dos anos 1970, mesma época em que a produção se consolidou como a principal cultura do agronegócio do brasil.
se consolidou como a principal cultura do agronegócio no Brasil. No país, o grão passou de 1,5 milhões de toneladas em 1970 para mais de 15 milhões de toneladas no início dos anos 1980. Novas tecnologias e modelos de produção impulsionaram estes números. Em algumas regiões gaúchas, o solo arenoso e sujeito à erosão demandava pesquisa de técnicas mais eficientes de plantio. “A agricultura tradicional, em função dessas condições, empobrecia o solo e aumentava os custos de produção”, aponta Rebelo. Ele explica que o plantio direto e as pesquisas em transgenia auxiliaram no aumento da produtividade e permitiram a expansão das lavouras de soja. No início dos anos de 1980, gaúchos começaram um movimento migratório para o Centro-Oeste do Brasil. Nem assim houve redução do cultivo no Estado. Pelo contrário, ocorreu a ampliação da fronteira agrícola da soja para o restante do país. O técnico da Emater Alencar Rugeri acredita que esse processo migratório se deve às oportunidades observadas pelos agricultores naquela região, com terras muitas vezes mais baratas, porém com maiores dificuldades logísticas. “Precisa ter coragem para sair dessa forma, alguns dão certo e muitos outros não conseguem ir adiante”, ressalta. Conforme dados da Embrapa, em 1970, menos de 2% da produção nacional de soja era colhida no Centro-Oeste. Em 1980, o número subiu para 20%. Na década de 1990, para 40% e, nos anos 2000, para 60%, ocupando mais áreas a cada safra. Isso tornou o Estado de Mato Grosso o maior produtor do grão no país. Rebelo acredita que hoje a produção é maior na região pelo tamanho da área. “O Mato Grosso é, hoje, o celeiro brasileiro porque os produtores do sul resolveram desbravar a região. A capacidade de produção do Rio Grande do Sul é maior do que na época em que o Estado era o celeiro do país, pois novas áreas começaram a produzir”, aponta. A força do cultivo de soja no Estado permanece. Tupanciretã é um exemplo disso. Ainda nos anos 60, agricultores da região da Quarta Colônia, vindos de cidades como Faxinal do Sotur47
“A capacidade de produção do rio grande do sul é maior do que na época me que o estado era o celeiro do país, pois novas áreas começaram a produzir”. almir rebelo, engenheiro agrônomo.
no e Agudo, começaram a migrar para áreas com maior facilidade de plantio, com terrenos mais planos e menos vegetação nativa. Tupanciretã, que tinha como principal cultivo o trigo, passou a ter na soja o foco da produção, sobretudo em função de sua rentabilidade maior. Além disso, a cidade abrigava um dos maiores frigoríficos da América Latina. Contudo, a empresa perdeu forças durante a década de 1970, o que abriu espaço para o avanço da oleoginosa. Foi nessa época que a família Soldera chegou a Tupanciretã. A criação de gado ainda era forte, porém, estes agricultores investiram, em princípio, no cultivo do trigo. A soja foi entrando aos poucos. Marcos Soldera, da terceira geração da família, conta que o avô e o primo saíram da região de Faxinal do Soturno e se estabeleceram em Tupanciretã. Alguns dos filhos os acompanharam, entre eles, o pai de Marcos, Têncio Soldera. Hoje, a família é uma das principais produtoras da cidade, com cerca de 6.000 hectares de soja plantados por safra. Dos cinco filhos de Têncio, três ainda estão ligados diretamente à produção agrícola. O que inquieta os produtores é que, nas novas gerações, muitos dos filhos têm optado por outras áreas quando buscam uma formação superior. “Ainda não sabemos se algum deles vai ter interesse em continuar na produção”, finaliza Marcos.
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FALTA DE EDUCAÇÃO
Laura Azevedo
Com mais de 13 milhões de alunos matriculados na rede pública de ensino, o Rio Grande do Sul encara um cenário crítico na educação. Especialistas afirmam que a decadência do setor no Estado está diretamente ligada ao governo e existe há mais de duas décadas.
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e o Rio Grande do Sul fosse um aluno do Ensino Fundamental poderia ser considerado um repetente. Os números revelam um gaúcho distante daquele mitificado pelo resto do País como inteligente, culto e dedicado à educação. E o problema, segundo especialistas, começa na base do ensino: na desvalorização da profissão de professor. O Estado tem um dos piores índices do Brasil no que se refere aos estudantes em fase de alfabetização capazes de escrever no nível desejado para a idade e segue como pior no Sul no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Para reforçar ainda mais o status de aluno com dificuldades de aprendizado, segura a lanterna como o Estado brasileiro com o menor vencimento básico inicial para os professores estaduais – responsáveis pelo ensino de mais de 1 milhão de alunos matriculados na rede estadual gaúcha. Na mais recente Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), divulgada pelo Ministério da Educação em setembro de 2015, o Estado apresentou um dos piores índices do Brasil no que se refere aos estudantes em fase de alfabetização capazes de escrever no nível desejado para a idade. Enquanto o País teve média nacional de 9,88% de alunos do 3º ano do Ensino Fundamental atingindo o melhor nível de escrita, os gaúchos não passaram de 7,53%. Foi o pior índice da Região Sul: os paranaenses alcançaram 15,53%, enquanto Santa Catarina teve 22,25%, o melhor índice do Brasil. A ANA aplica o teste de desempenho entre todos os matriculados no terceiro ano do Ensino Fundamental das escolas públicas com a intenção de avaliar o nível de alfabetização e letramento em Língua Portuguesa e Matemática. Em entrevista ao jornal Zero Hora, na época da divulgação destes dados, o secretário estadual de Educação, Vieira da Cunha, afirmou que o Estado vem involuindo, ficando cada vez mais distante do nível de excelência que seria desejável. “ É constrangedor estar na lanterna da Região Sul. Esses resultados 51
são preocupantes, e mostram o tamanho do desafio que temos pela frente para reverter esse quadro. O lado positivo é que isso acende um alerta, e vai servir de base para novas intervenções pedagógicas”, disse o secretário ao jornal, na época. Para o especialista em educação e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Fernando Becker o principal motivo da queda na qualidade da educação é a desvalorização do professor pelo Estado. “Não há docência que se sustente com desvalorização. O ensino público está indo para o fundo do poço”. O educador acredita que o Rio Grande do Sul nada fez para mudar a situação da educação pública, pois houve abandono no lugar de planejamento. “Os resultados que temos atualmente são consequência do que vivemos na educação há anos”, afirma. Para ele, a partir da década de 1990 o governo fechou os olhos para a educação. Segundo o professor, houve um desligamento do Estado, que passou a tratar o ensino como uma atividade banal que poderia ser feita sem qualificação por um baixo custo. “Esse período foi crucial para determinar a qualidade da educação. Com o governo de braços cruzados, os professores responderam de forma negativa ‘o Estado faz de conta que nos paga e fazemos de conta que ensinamos’”, analisa. A depreciação da profissão de professor nas escolas gaúchas é constatada nos salários que os 94.800 professores ativos na rede pública estadual. O Rio Grande do Sul é uma das três unidades da federação que ainda descumprem a lei que instituiu o valor mínimo que os educadores da rede pública devem receber por uma jornada de trabalho de 40 horas semanais. Dados divulgados pela Fundação Lemann revelam que o Rio Grande do Sul tem o menor vencimento básico inicial para os professores estaduais no País: R$ 1.260 por 40 horas semanais, enquanto o piso nacional é de R$ 1.917,78. A presidente do Cpers, Helenir Aguiar Schürer, ressalta que os professores gaúchos ganham, em média, cerca de 30% do que deveriam receber se fosse aplicado o piso em todos os níveis de carreira. Ela classifica a situação como arrocho salarial. “Bons profissionais 52
“Os resultados que temos atualmente são consequência do que vivemos na educação há anos”, Fernando Becker
estão pedindo exoneração e abrindo mão dos seus sonhos para sobreviver”, resume. “O profissional sem incentivo não exerce seu trabalho com o mesmo vigor, com o mesmo sentimento”, considera o mestre em educação e doutor em psicologia escolar e desenvolvimento humano há mais de 30 anos Euclides Redin. Para Fernando Becker a solução estaria em trabalhar com um plano de carreira,e exercendo a meritocracia. “É inadmissível que um professor que se empenha, que tem performance e busca se qualificar ganhe o mesmo que um professor relapso”. Ele aponta que é necessário um plano efetivo de educação, que tenha duração além de um mandato presidencial e que empregue por meio de concursos públicos exigentes e sem concessões. “É preciso que o plano de educação seja um plano de Estado, uma política nacional de educação como na Coréia do Sul, na Finlândia e no próprio Chile, países que souberam reerguer o ensino. Hoje, a família está se planejando, e o Estado não”, conclui.
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Dados divulgados pela Pesquisa Ibope Inteligência, revelam que Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com o menor vencimento básico inicial para os professores estaduais.
COMO SE CRIA UM HERÓI
Andressa Moreira
Sob a lente de Simões Lopes Neto e de José de Alencar, o mito do gaúcho foi estampado em páginas de obras literárias. No entanto, não é possível atribuir a construção deste personagem somente a estes autores. A história e a cultura do Brasil também contribuíram para a criação de um herói do Sul.
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uem oficializou o gaúcho de personalidade forte, honra e tradição? O homem apaixonado pelo cavalo e pelo mate, que não anda sem o facão e a pistola, pois sente o cheiro de guerra de longe? Perpetuada em obras como Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto, e O Gaúcho, de José de Alencar, esta aura épica em torno do gaúcho tem sua origem na história e na literatura. De acordo com a professora e mestra em Literatura Cristine Severo, a Guerra dos Farrapos (1835-1845) é o ponto de partida para entender mais a fundo de onde surgiram tais atribuições ao personagem característico do Pampa. “Uma guerra de estancieiros que precisavam de soldados, recrutando homens entre os negros e os peões que trabalhavam em suas fazendas. Os escolhidos foram muito exaltados durante a guerra. E sua valentia, força e coragem, muito celebradas”, afirma. Entretanto, Cristine ressalta que o objetivo de enaltecer os gaúchos que foram à guerra foi justamente para mantê-los sob o comando dos generais, “lutando até a morte por uma batalha que não era a sua e que não lhes traria nenhum benefício”, complementa. Em outras palavras, os combatentes recebiam incentivo moral para continuarem firmes. Assim, era criada a imagem do rio-grandense bravo e intrépido. “Disso surgiam hinos, canções, histórias populares, muitas vezes oriundas da oralidade, que contavam as proezas do gaúcho. A literatura tomou parte nisso representando esse arquétipo por meio desse olhar idealizado dos românticos”, justifica ela. O primeiro a fazer uso deste romantismo foi José de Alencar, no século 19. Cristine explica que este período literário ficou marcado pela necessidade de criar uma identidade nacional para o Brasil que, apesar de ser um país independente, não possuía uma história própria. “No Brasil, os escritores se voltaram à idealização da figura do índio. Acredito que no Rio Grande do Sul esta tendência se voltou para a idealização da figura do gaúcho”, diz a professora. Para o professor e doutor em Linguística 55
e Letras Antônio Hohlfeldt, a imagem que Alencar construiu é fundamental para a sociedade. Ele afirma que os povos têm que ter mitos, pois eles são contos de fundação. Estes relatos explicam as características originárias de um local ou de um povo. Portanto, Hohlfeldt defende que as crenças instauradas por Alencar sobre o gaúcho não são pecados. “Isso não é ruim. O ruim é você achar que tem que se guiar pelo resto da vida com base nestas histórias”, defende. José de Alencar é o autor conhecido por lutar pela identidade brasileira. Hohlfeldt lembra que, para isso, o escritor fez praticamente um livro sobre cada região, para que uma figura de cada parte do Brasil fosse criada. Este era o projeto principal do romantismo, e o objetivo de O Gaúcho, de 1870, não era diferente. No livro, Alencar constrói uma narrativa, em terceira pessoa, que monta a paisagem do Sul do país. A imagem do Pampa é retratada na vida do personagem Manuel Canho, que deseja vingar a morte do pai, João. Aliado a este fato, outros conflitos na história mostram episódios de ódio, vingança, compaixão e, até mesmo, amor. Neste enredo, o gaúcho relatado por Alencar possui uma alma heróica que torna o personagem fantasioso. Na história, castelhanos caçavam o comerciante Loureiro, a quem João Canho deu abrigo. O espanhol Barreda descobre o acobertamento e mata o pai de Manuel, que a partir daí fica cego de vingança e parte em busca do assassino. O romantismo de José de Alencar criou um personagem que deu vida a uma identidade. Hohlfeltd refere-se a Manuel Canho como um “quase super-homem” pelas características atribuídas ao personagem ao longo da história. O professor de Literatura e historiador Luís Augusto Fischer também justifica a obra de Alencar como fantasiosa, pois era baseada em informações secundárias por parte de um familiar do autor, que lutou na Guerra da Cisplatina. Segundo ele, o escritor leu relatos deste parente e escreveu O Gaúcho. Enxergou o homem do Sul de longe e o idealizou em Canho, perpetuando este perfil no imaginário dos leitores. 56
O romantismo de José de Alencar criou um personagem que deu vida a uma identidade.
Ao seguir uma linha cronológica, Simões Lopes Neto, apesar de ter publicado Contos Gauchescos e Lendas do Sul em 1912, não se apropriou do romantismo instaurado por Alencar, esclarece Fischer. Ele era considerado regionalista, e o legado de sua obra também gera conflitos em cima do mito do gaúcho. Porém, as opiniões em torno do que Simões Lopes Neto quis dizer com os Contos Gauchescos não são sempre unânimes. Em 19 contos e três lendas, o livro expõe as peculiaridades do universo do gaúcho. Nele, o autor passa a fala para Blau Nunes, que conduz todos os contos a partir de suas memórias. Lopes Neto, em um capítulo introdutório do livro, apresenta Blau para um suposto ouvinte, Patrício, por ter tantos episódios de vida para contar, sobre caminhos por onde passou, pessoas que conheceu, recordações e lembranças do passado. Nos relatos, memórias de acontecimentos envolvendo casos de honra, amor, vingança, raiva, vícios e crenças, em torno de personagens valentes, leais e corajosos. No entanto, o autor se concentra bastante nos dramas pessoais e sentimentos de cada personagem, o que confunde opiniões sobre o mito do gaúcho. Para Fischer e Hohlfeldt, o mito de Lopes Neto não está propriamente no gaúcho, mas nas histórias que narram origens. Ambos defendem que Blau Nunes é um homem comum, com características semelhantes a qualquer pessoa. Um personagem pobre, humilde, honrado e que faz o que qualquer um poderia fazer não se destaca por isso. “O Blau Nunes surgiu inspirado em um peão que era funcionário na estância do pai dele, então ele era conhecedor do perfil gaúcho”, esclarece Hohlfeldt. “As pessoas me dizem que o Simões Lopes Neto é mitificador gauchesco. Mas quando você vai ler a obra dele, não tem nada disso. O gaúcho dele é um cara que olha os grandes de baixo e é capaz de contar histórias de paixões humanas profundas”, completa Fischer. Os dois professores justificam que este autor cria os personagens com valores universais. Ou seja, ele é um gaúcho, mas é uma pessoa igual a qualquer outra.
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Para Fischer e Hohlfeldt, o mito de Lopes Neto não está propriamente no gaúcho, mas nas históriras que narram origens.
Entretanto, Hohlfeldt chama atenção a este conceito sobre valores universais. “Universal é exatamente o mítico, ou arquétipo”, aponta. A problemática está em torno do conceito de mito. Hohlfeldt explica que é possível se referir a ele no sentido de modelo de algo, assim como Blau representa o modelo do gaúcho, mas com valores universais. Porém, diz que o mito também pode ser considerado pela mentira. Para ele, o melhor exemplo seria comparar o mito como inverdade no gaúcho inventado por Alencar, e o mito como modelo pelo Blau Nunes de Lopes Neto. O conceito de mitologia também depende de como uma pessoa interpreta os fatos. Nas religiões existem fábulas que desvendam as origens de criação das crenças, e a narrativa do autor seria similar a isso. A interpretação de cada pessoa vai ser o fator definitivo no momento da leitura. “Simões escreveu o texto e colocou na rua, mas quem dá sentido para o texto é cada leitor”, explica. Ao falar de um gaúcho e atribuir características para ele, Lopes Neto criou um exemplo, que vira uma generalização e, portanto, se torna mito. “Está escrito no livro: Blau Nunes, genuíno tipo crioulo rio-grandense, sublinhado crioulo. Isso é um tipo geral. Essa é a representação do gaúcho”, adiciona. Mas, tanto para Fischer quanto para Hohlfeldt, o autor não exaltava características do personagem assim como as idealizações de Alencar. Na opinião de Cristine, Lopes Neto alterna a mitificação e desmitificação do gaúcho em Contos Gauchescos. “Ele prezava os valores tradicionais do gaúcho e seus objetos de identificação, como o cavalo, a guaiaca, a arma, mas ele também tinha um olhar muito realista sobre o gaúcho, representando suas fraquezas e falhas”, defende. Segundo ela, os contos “Correr eguada” e “Chasque do imperador” são dois exemplos claros da mitificação do gaúcho por parte de Lopes Neto. Em “Correr eguada”, Blau Nunes atribui a característica aventureira ao homem do Sul. Neste relato, ele descreve como era a caça ao gado e como a façanha proporcionava um momento libertador ao Pampa. Já em “Chasque do imperador”, Blau Nunes, na época, servia ao 58
O melhor exemplo seria comparar o mito como inverdade no gaúcho inventado por Alencar e o mito como modelo pelo Blau Nunes de Lopes Neto.
Imperador Pedro II, e nas vindas do monarca para a província, Blau não deixava de apontar diferenças entre ele e seu superior. Cristine ressalta que Lopes Neto cria, justamente, a identidade do gaúcho nestas comparações. Servindo de exemplo o diálogo entre o imperador e o barão, que chamou de “indiada coronilha” o homem local e de “cuscada lá da Corte” o Imperador e os demais intelectuais que vinham da cidade. Ao mesmo tempo, a professora ressalta que Blau, ao contar a história, ridiculariza o imperador muitas vezes, se diferenciando dele, alimentando o mito. Cristine aponta a oscilação de Simões no conto que, segundo ela, mitifica, em “Artigos de fé do gaúcho”, e em outro que desmistifica, em “Batendo orelha”, a imagem do gaúcho. No primeiro, como o nome sugere, o narrador apresenta uma lista de regras que o homem do Rio Grande do Sul deve seguir durante a vida. Segundo ele, são coisas que nenhuma pessoa pode aprender nos livros, somente vivendo a vida e passando por experiências que ensinam o valor das coisas. Gira em torno dos três itens essenciais que acompanham o gaúcho: o cavalo, a arma e a mulher. Em contraposição, o conto seguinte a este é “Batendo orelha”, e a professora assinala como uma disposição proposital de Lopes Neto. O texto narra a história de um menino e um potro que então crescem e depois se encontram na vida adulta. “A forma como o conto é disposto, intercalando um momento da vida do menino e da vida do potrilho, separados por um asterisco, indica que as vidas dos dois se entrelaçam e são paralelas, ou seja, se assemelham”, explica. No conto, os dois passam por situações parecidas. Quando crescem, servem ao Exército, logo depois são dispensados. “Assim, o gaúcho e o cavalo passam a ter a mesma vida miserável e a mesma morte sem glória. Em contradição com o conto anterior, no qual o cavalo era a extensão do corpo do homem, em ‘Batendo orelha’ é a decadência desse homem e desse cavalo”, defende. Cristine preserva o pensamento de que o olhar de Blau sobre 59
o gaúcho muda em diversos momentos durante a obra. Por vezes, o personagem olha para o gaúcho como herói, herdeiro dos farrapos, e outras como o indivíduo decadente que virou moderno. Dando a entender que o “novo” gaúcho, segundo Blau, não é mítico por conta da perda dos valores tradicionais que antes eram exaltados. Hohlfeldt acredita que Lopes Neto, com esta obra, falava de um tempo muitas vezes não identificado. Um tempo que já passou, e que esse pode ser outro fator para ser classificado como tempo mítico, mas que não o torna falso. “Se tomar mito como narrativa mentirosa, é claro que estará sendo incoerente com os Contos Gauchescos. Só que o mito, no sentido que normalmente se toma, é da narrativa das origens, que explica raízes. O Simões é a raiz do Rio Grande do Sul”, opina. Mesmo com as peculiaridades dos trabalhos de José de Alencar e Simões Lopes Neto, percebe-se a criação de mitos de formas variadas. Podem ser verdadeiros e mentirosos, dependendo da forma com que forem interpretados pelo leitor. Contudo, a principal diferença entre os dois autores está na maneira de construção da narrativa e da forma como idealizaram os personagens. De um lado, Alencar e o romantismo agindo na idealização do indivíduo característico do Pampa, de modo que fosse firmada uma identidade do Sul do Brasil. Do outro, Lopes Neto com a abordagem da psicologia dos personagens, deixando em segundo plano o regionalismo, mas mesmo assim construindo uma narrativa de origem dos gaúchos.
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O “novo” gaúcho, segundo Blau, não é mítico por conta da perda dos valores tradicionais que antes eram exaltados.
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CLÁSSICO
Filipe Castilhos
O que não é ser gaúcho? Essa não é a pergunta que se espera, nem a que se responde. O texto desconstrói o que nos mostram as fotos. O Rio Grande do Sul é o Estado com maior incidência de religiões afro no Brasil, no entanto, no Centro da capital impera uma catedral católica. Montamos muito do que hoje chamamos de nossa cultura partindo das referências dos outros. Saibamos ver que somos um ran stein e tra iç es ue ficou no meio do caminho entre o Brasil e o resto da América do Sul.
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Ficha técnica Câmera Fotográfica: Canon EOS 7D Lente: Canon EF 24-105mm f/4L USM Canon EF-S 10-18mm f/4.5-5.6 IS STM
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O RETRATO
Em O Tempo e o Vento, O Retrato é o tomo da introspecção. O retrato de um personagem, o médico chamado Rodrigo Cambará, se degrada na parede, como metáfora da decadência psicológica, imagem que representa o esfarelamento natural da história. O progresso corrosivo atropela a resistência da tradição e da imobilidade alimentada pelo passado.
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Anatomia do hino Maicon Hinrichsen
Reescrever e história Carlos Lando
O marketing daqui Drika Oliveira
74 82 86 96
Terra de anas Laísa Mendes
O exílio musical Thiago Suman
102 110
Acampamento Lucas Zandonai
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ANATOMIA DO HINO
Maicon Hinrichsen
Um dos simbolos da cultura gaudéria mais aclamado pelo povo gaúcho, o hino é herança de um passado bélico característico de uma Revolução Farroupilha repleta de controvérsias. No entanto, existe a necessidade de se debater sobre iconografias preconceituosas e nem tão heróicas como se imagina. O hino é racista? O que está por trás das belas palavras que o compõe? Por que ainda cantamos o hino?
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Nosso hino é de um ufanismo muito grande”. As palavras são de Terson Praxedes, historiador e pesquisador da cultura do Rio Grande do Sul no Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, confirmando que o hino é uma amostra da tal superioridade que muitos gaúchos acreditam ser uma marca do Estado. Saudosistas, como se tivessem participado da Revolução Farroupilha (1835-1845), cantam e exaltam a música do maestro Joaquim José de Mendanha de peito inflado, orgulhosos. No entanto, poucos sabem a história e os reais significados das palavras que, juntas, formam as seis estrofes. Cerca de três ou quatro anos depois do término da Guerra dos Farrapos, a letra que hoje é cantada em cerimônias oficiais no Estado surgiu como a aurora precursora na trajetória que o povo gaúcho traçava na, agora, República Rio-Grandense. Um alvorecer que antecedia o começo da nova era no Rio Grande, emanada do farol da divindade, representado pela luta farroupilha que “buscava iluminar, para o restante do Brasil, o nosso projeto gaúcho de proclamação da República, de liberdade”, como acrescenta o tradicionalista Euclides Fagundes Filho, conhecido como Bagre, irmão de Nico Fagundes. Praxedes afirma que “são frases altamente ligadas à simbologia maçônica”, característica que permeou o universo farroupilha à época. Apesar de a proclamação ter acontecido em 11 de setembro de 1836, foi o Vinte de Setembro escolhido para emplacar a terceira linha do hino, dia marcado pela partida de Bento Gonçalves para Porto Alegre, a fim de tomar a capital gaúcha. Este dia, então, ficou conhecido como o precursor da liberdade obtida contra as forças imperiais que reinavam o Brasil no século 19. Mostremos valor, constância! Era essa a convocação para o povo gaúcho tomar em armas e lutar pelo Estado. A chamada para provar que os habitantes do território mais ao Sul do Brasil eram donos de si próprios. Mas de quem era essa luta? Quem eram os responsáveis por angariar soldados em busca de vitória nesta ímpia e injusta guerra? Para a elite, a guerra era injusta. A classe mais abastada sofria fortes com o aumento de impostos 75
sobre o charque, seu principal produto. Bagre Fagundes sustenta que a injustiça não era para uma classe social “Não foi injusta só para o nosso povo, mas para quem também lutou pelo lado do Império. O povo não queria brigar. As lideranças é que brigaram”. Clamar que a revolução foi injusta contra os negros mortos no Massacre de Porongos (batalha onde os negros foram atacados desprevenidos pelas tropas imperiais e massacrados pelos soldados do Império) parece um erro, já que, segundo a fala de Bagre, todos que lutaram eram ex-escravos. “Negros que trocaram a sua liberdade para lutar”, afirma o tradicionalista, indo de encontro ao argumento histórico de que no tratado de Ponche Verde, assinado entre o Rio Grande do Sul e o Império, o General Davi Canabarro teria traído sua tropa de lanceiros, deixando-os sem reação perante o ataque dos soldados do Exército brasileiro. Além disso, o membro da família Fagundes enaltece que as revoluções são feitas pela elite, mas acrescenta que não são apenas os burgueses e fazendeiros. “São as pessoas instruídas que fazem a revolução. O povo luta, e ganha ou perde. Mas quem pensa é a elite intelectual. Lenin não era povo. Nem Trotsky ou Montesquieu. Um fazendeiro, se não tiver visão, não faz revolução”. Assim como Bagre, Praxedes também acusa o tratado de ter sido assinado apenas por um lado: “Foi um tratado de rendição, quando só os farrapos assinaram o termo. O Império assinou as condições do quê ia ficar com quem. Mas a paz não existiu”. Seguindo por essa linha, pedir para que sirvam nossas façanhas, de modelo a toda a terra parece solicitar que o resto do mundo copie a maneira de lidar com a política que o Estado havia adotado. Mas que façanhas são essas? Traições para satisfazer outros interesses ou a verdadeira vontade de lutar pela sua terra? Bagre ressalta um sentimento inexistente à época, e que muitos gaúchos do século 19 tomam como verdade: o movimento, apesar de parecer, não era separatista (ou deixou de ser). “Essa estrofe mostra que nosso movimento não queria separar o Estado do resto do Brasil. Mas, sim, chamar o resto do país para 76
“Não foi injusta só para o nosso povo, mas para quem também lutou pelo lado do Império. O povo não queria brigar. As lideranças é que brigaram” Bagre Fagundes, tradicionalista.
enfrentar o império. Nosso orgulho de sermos gaúchos é grande, mas temos muito orgulho de também sermos brasileiros. Tínhamos tudo para sermos do outro lado (Argentina). Se o movimento fosse separatista, hoje não estaríamos falando português, mas espanhol. O Canto Alegretense já diz ‘ouve o canto gauchesco e brasileiro’”. Mas por que seríamos argentinos? Davi Canabarro volta a ser o personagem fundamental deste contexto para se tentar entender o que de fato aconteceu durante a Revolução. O general foi procurado pelo ditador da Argentina Juan Manuel de Rosas, que lhe “ofereceu dinheiro, homens e armas para apoiar a luta farroupilha contra o Império. O interesse do ditador era acabar com a hegemonia do Brasil e reconquistar territórios brasileiros, que, segundo eles, nós já tínhamos tomado da Argentina nas guerras de fronteira, como a parte das Missões, que era toda da Argentina”, conta Bagre. O General Canabarro, entretanto, enviou carta de resposta ao ditador na qual deixava claro que não basta para ser livre, ser forte, aguerrido e bravo, e que a briga era entre os habitantes da mesma pátria, se recusando a aceitar ajuda da província castelhana. A carta dizia: “Senhor, o primeiro de vossos soldados que transpuser a fronteira, fornecerá o sangue com que assinaremos a paz com os imperiais. Acima de nosso amor à República está o nosso brio de brasileiros. Quisemos, ontem, a separação de nossa Pátria. Hoje, almejamos a integridade. Vossos homens, se ousarem invadir nosso País, encontrarão, ombro a ombro, os republicanos Piratini e os monarquistas do senhor D. Pedro II”. A discussão sobre a independência do Rio Grande do Sul é calcada na ideia do povo gaúcho mais politizado do que os demais habitantes do Brasil. A audácia gaudéria permeia o imaginário de inúmeros adeptos de tornar o Sul um país à parte e força a entender que a Revolução Farroupilha foi uma tentativa de separar o Estado do Brasil. Da mesma forma, leva a crer que povo que não tem virtude acaba por ser escravo dos mais poderosos, ou seja, que os negros eram um povo desvirtuado e, por isso, sucumbiram 77
“Vossos homens, se ousarem invadir nosso País, encontrarão, ombro a ombro, os republicanos Piratini e os monarquistas do senhor D. Pedro II”. David Canabarro, general farroupilha.
à escravidão. É o que pensa Bagre Fagundes, ao afirmar que a palavra povo refere-se a todos os gaúchos. “Não bastava apenas ser forte e aguerrido. Tinha que ter virtude. O branco, o negro, o índio. O povo gaúcho. Não tem absolutamente nada contra os negros. Pelo contrário, o nosso negro farroupilha é muito valorizado. É uma das capas da formação do povo gaúcho. É importantíssima a presença negra no Estado. Esse trecho do refrão não tem nada a ver com negro, com Porongos, com nada”, explica. O tradicionalista acredita que toda a polêmica provém de uma série de falsos conceitos e que “isso tem a ver com época do Brasil. Temos um sentimento racista no Estado, mas não é maior nem menor do que no resto do país. Somos tidos como o povo mais racista, mas é mentira. Gostam de citar o caso de Porongos, mas isso foi um episódio infeliz. Não nos vangloriamos desse episódio, mas também não precisamos atirar pedras no Davi”. Praxedes segue na mesma linha de raciocínio. Em seu mais recente livro, motivado justamente pelo alvoroço em torno da estrofe, ele busca explicações nos significados das palavras povo e escravo. Segundo ele, “as palavras não são sinônimos de negro, então não possuem nenhuma ligação com o povo afrodescendente. O trecho da estrofe refere-se ao povo gaúcho como um todo”. Na contramão de Bagre Fagundes e Praxedes está o jornalista, historiador e professor Juremir Machado da Silva, crítico da cultura tradicionalista gaúcha. “A manutenção desta cultura é feita ano após ano, embasada em mitos narrativos, contados por montanhas de evidências, para endeusar personagens que não são os heróis que pensamos ser”, pondera. O professor deixa de lado as simbologias que rodeiam as estrofes mais literárias da composição, e ataca o verso mais polêmico como “totalmente indiferente ao sofrimento dos escravos”. Juremir ressalta o sentimento amplamente racista da época, impregnado no refrão que se refere aos escravos desvirtuados. “É perverso com os escravos, mostrando uma superioridade branca para dizer 78
que não éramos iguais a eles, não podíamos ser comparados a eles”. A partir disso, o jornalista traz à tona a subjetividade que compõe o verso e rebate os argumentos de Praxedes, que afirmava não encontrar relação entre as palavras usadas na canção e os negros. “Não precisa dizer que era o negro citado no hino. Quem eram os escravos? Os negros. Então, nesse caso, escravo é equivalente a negro. O sentimento era esse”, afirma. “Mesmo na época, foi mais incompetência na redação do que uma própria referência de falar dos negros. Eles eram racistas, isso é sabido. Mas era tão comum o sentimento de superioridade aos negros que eles não viam problema em criar essa citação”, completa. Hoje a tradição gaúcha é repassada de geração para geração sem a contextualização dos acontecimentos históricos que construíram o Rio Grande do Sul. O hino serve como ferramenta simbólica da origem gaúcha, usado sem a menor preocupação com os fatos escondidos atrás de suas cortinas musicais. “Quem canta o hino não o faz pensando em reforçar um preconceito. É apenas como uma marca, um símbolo do Rio Grande do Sul”, comenta Juremir. Ele afirma que os momentos históricos são diferentes e que, hoje, o hino não tem o mesmo sentido que tinha na época da revolução. “Não temos como reescrever a história. As pessoas não pensam nem na Revolução Farroupilha quando cantam o hino, nem no conteúdo histórico. É apenas para reforçar que somos gaúchos. Hoje, certamente, não cantam tentando reproduzir preconceitos. Mas, simplesmente, por ser uma marca do Rio Grande do Sul”. Assim como toda a Revolução Farroupilha, o Hino Rio-Grandense é só mais uma incógnita repleta de subjetivismos e interpretações que carecem de documentos, testemunhas e comprovações. As investigações realizadas por historiadores e pesquisadores sobre os reais acontecimentos parecem ser embasadas pelo envolvimento de cada um deles com essa parte da história brasileira. Os mais relacionados à tradição se mostram fiéis à história gloriosa. Admitem os erros cometidos, mas minimizam como simples equívocos necessários para se fazer 79
“Quem canta o hino não o faz pensando em reforçar um preconceito. É apenas como uma marca, um símbolo do Rio Grande do Sul”. Juremir Machado da Silva, jornalista.
revolução. Os que possuem menos ligação com o meio tradicionalista tentam evidenciar que tudo não passou de um jogo de poderes e traições, cujo único objetivo era beneficiar a parte nobre – e branca – do povo gaúcho. No entanto, todos parecem concordar que hinos – ou trechos deles – são heranças de um passado bélico. Juremir entende que hino é coisa de outra época. “Acho que já passou o tempo dos hinos. Acredito que daqui uns anos as pessoas vão parar de cantá-lo”, conclui.
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REESCREVER A HISTÓRIA
Carlos Lando
Cento e oitenta anos depois, tradicionalistas e pesquisadores discutem se o que aconteceu em 1935 pode mesmo ser chamado de levante popular ou revolução. A imagem mitificada dos farrapos é desconstruída por especialistas.
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Rio Grande do Sul vive uma efervescência tradicionalista a cada 20 de setembro, quando se celebra a Revolução Farroupilha (1835-1845). No entanto, existe uma tensão entre aqueles que pesquisam o que de fato ocorreu em 1835 e quem cultiva a história presente no imaginário popular. O ser mitificado apresenta os farrapos como verdadeiros heróis, mas, aos poucos, a imagem vem sendo desconstruída por documentos e pesquisas. Os historiadores, por exemplo, classificam o episódio como uma “guerra civil”. “Há um certo exagero em determinadas posturas dos farroupilhas. Eles foram transformados em abolicionistas, heróis destemidos e defensores dos interesses gerais. Mas, na verdade, eles eram defensores de seus interesses como fazendeiros”, explica o jornalista e pesquisador Juremir Machado da Silva. A Revolução Farroupilha completa 180 anos em 2015, tempo suficiente para o fato passar por um complexo processo de mitificação impulsionado pelas adequações feitas e retransmitidas de geração para geração. O Centro de Tradições Gaúchas (CTG) é um dos instrumentos que praticam a manutenção do que, para os historiadores, é um mito. O atual presidente da Associação do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) – órgão que orienta os Centros de Tradições Gaúchas (CTG’s) –, Manoelito Savaris, defende que a revolução não é um mito e representa um levante da sociedade gaúcha. “A guerra foi a consequência de uma série de insatisfações da sociedade que estava completando apenas 100 anos naquela época e passava por um processo de maioridade – isso porque ela já se queria independente sob o ponto de vista do pensamento. Foi um movimento que lutou pela liberdade, igualdade e humanidade. Eles defendiam a implantação de uma república quando o Brasil ainda era uma monarquia. Defendiam direitos de cada comunidade eleger seu representante em uma época em que os dirigentes políticos eram nomeados e pregavam direito à propriedade privada quando não havia”, argumenta. O lema “liberdade, igualdade e humanidade” soa irônico à medida que a postura dos farroupilhas é desvendada por quem 83
pesquisou sobre a revolução e, inclusive, criticada quando o termo “abolicionistas” é atribuído aos farrapos. Juremir acredita que fazer dos farrapos heróis abolicionistas é um dos pontos mais delicados que envolvem o processo de mitificação. “Eles eram fazendeiros brancos que, em determinado momento, precisaram de mão-de-obra escrava como tropa e prometeram aos escravos a liberdade. Conforme a constituição investigada, os escravos não foram libertos. Nem mesmo após as batalhas. Com seu lema, a Revolução Farroupilha vendeu negros para se financiar”, conclui. Dados apresentados pelo jornalista, pesquisador e doutor em história Tau Golin evidenciam que a força do exército dos farrapos era fundamentalmente negra. Segundo ele, de 10% a 20% da tropa que estava permanentemente em prontidão era formada por negros – índice que, ao final da batalha, superava os 50%. A última batalha dos farrapos aconteceu no cerro de Porongos quando os lanceiros negros que estavam lá acampados foram brutalmente assassinados. No local, os aproximadamente 150 homens foram pegos de surpresa pela tropa imperial. “Há uma carta do Barão de Caxias para o ministro da guerra dizendo que o acerto havia sido feito. Existe a ordem do dia para o ataque da cavalaria. E existe outra carta ao ministro informando que tudo havia dado certo. Caxias levou os sobreviventes negros para serem escravos no Estado no Rio de Janeiro”, revela Golin. Para o MTG, a posição dos historiadores é fantasiosa. “Nós temos gente no nosso movimento que tem a mesma opinião desses historiadores e acham que foi uma traição. E nós temos gente dizendo que não foi traição. Acho que é muito fantasiosa a forma como determinados historiadores veem Porongos. As condições de envio da carta de Caxias, por exemplo, são duvidosas. Como ela chegou de Rio Pardo a Bagé com uma informação precisa de local, hora e distribuição do acampamento em Pinheiro Machado?”, questiona o presidente do MTG. A divergência entre os pesquisadores e quem representa o Movimento Tradicionalista acontece em todos os campos da re84
“Os farrapos eram fazendeiros brancos que, em determinado momento, precisaram de mão-de-obra escrava como tropa e prometeram liberdade aoas escravos. Conforme as pesquisas, os escravos não foram libertos”. juremir machado da silva, jornalista.
volução. “Nós não comemoramos uma guerra perdida ou sem vencedor. As ideias farroupilhas foram implantadas 50 anos depois. Sob o ponto de vista ideológico, os farroupilhas foram os grandes vencedores. Sob o ponto de vista militar, eles não obtiveram sucesso. Tudo o que eles pregavam aconteceu na proclamação da República do Brasil”, argumenta Manoelito Savaris. Contrariando a posição de que a Revolução Farroupilha representava a sociedade gaúcha da época, os pesquisadores defendem que a maioria dos rio-grandenses apoiava a constituição do Brasil, sem intenção significativa de separação – cenário oposto do que é transmitido pelo tradicionalismo. Segundo Juremir, os fazendeiros que lideravam o movimento não representavam os desejos da população. “As grandes cidades da época, inclusive, não se engajaram na causa farroupilha”, afirma. Golin acredita que o mito criado em torno da revolução conduziu para uma atribuição equivocada ao sentido do fato. “Esse mito acontece porque a guerra é contada e recontada sem tempo, sem processo, de forma a direcionar o pensamento e atribuir a ele um valor de libertação nacional”, explica. Em oposição, o representante do MTG acredita que as pesquisas têm o interesse de desconstruir o Movimento. O espaço ideal em nossa cultura mostra que a felicidade do gaúcho seria estar em sua estância, ao lado da carne assando no fogo de chão e seu cavalo – animal que cumpre função de instrumento operativo desse espaço. A partir do mito, o imaginário gaúcho foi transformado e, de certa forma, se estagnou e não transcendeu. “Nesse contexto, a nossa tendência foi de, na universalidade, não compreender a complexidade do Rio Grande do Sul. Quando não há simbolização do espaço, você não faz o exercício de poetizá-lo. E sem a poética de espaço as pessoas não sabem onde estão, é uma fragilidade da identidade e do lugar”, conclui Golin.
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“Nós não comemoramos uma guerra perdida ou sem vencedor. Sob o ponto de vista ideológico, os farroupilhas foram os grandes vencedores. Sob o ponto de vista militar, eles não obtiveram sucesso. os ideais farroupilhas aconteceram 50 anos depois”. Manoelito Savaris, tradicionalista.
O MARKETING DAQUI
Drika Oliveira
Empresas que vêm de fora buscam adicionar elementos regionais em suas peças publicitárias. Outras precisam mudar suas estratégias de marketing nacional para conseguir penetrar no mercado gaúcho e usar argumentos que façam com que eles se sintam superior aos outros. Mas, afinal, será que tudo que é daqui é melhor? Até que ponto vale investir nessa regionalização?
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Este livro podia ter 1001 coisas, mas não seria um livro gaúcho. A gente é melhor em tudo, por isso, o nosso livro tem 1002 coisas. A primeira delas é tomar uma Polar bem gelada, coisa que já virou tradição entre a gauchada e é uma das melhores coisas para fazer no Rio Grande do Sul antes de morrer. E olha que tem muita coisa pra fazer por aqui. Até demais. (...) Se tu é daqui, enche o peito de orgulho e lê bem faceiro, tchê. Se tu não é, te enche de inveja, lê e dá uma boa olhada no que tu tá aprendendo”, diz um trecho do livro 1002 Coisas pra Fazer no RS Antes de Morrer, lançado em 2011 pela Cerveja Polar. Mais do que uma forma bem humorada de ilustrar os exageros da autoestima dos gaúchos, o livro é um exemplo de como este sentimento tem potencial para se transformar em estratégia de negócio. A paixão que os gaúchos têm pelas suas tradições e costumes pode gerar sucesso para empresas que elaboram um plano de marketing, voltado para o mercado rio-grandense, usando argumentos que façam o povo se sentir superior aos outros. Os que não entram na brincadeira têm problemas e não conseguem a mesma aceitação. Há vários níveis de associação entre negócios e imagem ligada ao gauchismo. O mercado de produtos tradicionalistas se abastece da cultura regionalista sem precisar pensar nas estratégias de divulgação. Estas lojas focam no consumo de vestuários, utensílios e acessórios da cultura gaúcha. Everaldo Oliveira, comerciante da loja Crioulo, localizada em Porto Alegre, garante que o que mais vende em seu estabelecimento é a bombacha, por representar uma peça única no traje do gaúcho, usada como expressão de identidade. Ele conta que nunca precisou pensar em propaganda, pois sua loja sempre se manteve com um público fiel. “Tem muita gente que usa bombacha, mais do que imaginam, mesmo aqui na Capital. Em áreas mais rurais, como Viamão, há muito pessoal de CTG”, comenta Oliveira. Mesmo que as roupas gaúchas apresentem algumas limitações quanto à utilização fora dos ambientes tradicionalistas, a 87
comercialização tem se expandido. Inclusive, é possível encontrá-las em locais como shoppings e aeroportos. De acordo com uma estimativa feita pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e pela Fundação Cultural Gaúcha, o investimento em peças e produtos tradicionalistas movimenta, todos os anos, cerca de R$ 1 bilhão no Rio Grande do Sul, levando em conta gastos pessoais e de entidades como os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Além da bombacha, outro produto de destaque é o chimarrão, apontado como símbolo dos gaúchos. Tomá-lo envolve a aquisição de três produtos básicos: cuia, erva-mate e bomba, sem contar a água, que precisará de uma garrafa térmica para mantê-la aquecida. Estes itens chegam a movimentar, sozinhos, R$ 176 milhões por ano no Estado. No mercado tradicionalista, também prospera o comércio de utensílios para churrasco, como espetos e facas, o de exposições e rodeios, como cavalos, gado e acessórios para os animais, e o musical, no qual bandas gaúchas, como Os Serranos, são aclamadas pelo público. O grupo já foi indicado ao Grammy Latino na categoria de Álbum de Música Regional e de Raízes Brasileiras, com o DVD Os Serranos - 40 anos Sempre Gaúchos, e conquistou três discos de ouro, com Isto é…Os Serranos, Bandeira dos Fortes e Os Serranos Interpretam Sucessos Gaúchos. O consumidor dá muita importância às campanhas que valorizem os elementos da cultura regional. As empresas nascidas no Estado já carregam uma preferência natural do consumidor gaúcho, que é visto como exigente e conservador. Por isso, é preciso, além de tudo, aliar a qualidade e a boa divulgação. Se a empresa for de fora, os cuidados devem ser redobrados, pois não basta apenas tentar vincular os símbolos e a tradição com a empresa, mas entender a forma de pensar, falar a língua do povo e entregar o que o mercado regional está acostumado. A empresa AmBev foi uma das primeiras a perceber esta característica: trocou o rótulo da cerveja Polar de For export para No export. Comercializada apenas no Rio Grande do Sul, ela 88
O investimento em peças e produtos tradicionalistas movimentam todos os anos cerca de R$ 1 bilhão no Rio Grande do Sul.
adotou o slogan “A melhor do mundo é daqui” e se tornou uma das bebidas mais consumidas pelos gaúchos. Seu ponto forte para o sucesso é o marketing irreverente e bem-humorado. Os gaúchos gostam da Polar, e suas estratégias já foram case de vários estudos. Hoje quem cuida da sua comunicação é a agência Paim, localizada em Porto Alegre. Assim, permanece com as suas ideias produzidas por um núcleo composto exclusivamente por gaúchos. César Kopper, redator de criação que atende as demandas da marca, conta que é um trabalho divertido de se fazer, mas também é preciso ser certeiro na comunicação e tentar fugir do que já foi feito. Além de estar atento a tudo o que acontece, deve-se saber do que o público-alvo gosta ou não, conforme experiências anteriores. “Afinal, o gaúcho é o povo mais exigente e orgulhoso que existe, imagine quando falamos dele”, brinca Kopper. Segundo o publicitário, a comunicação é simples, bairrista, e visa sempre valorizar a cultura com um diálogo muito coloquial e próximo, como se estivessem falando com qualquer amigo. Um bom exemplo são os posts publicados pelo núcleo publicitário da cerveja no Facebook e no Instagram. Todo dia publicam algum assunto pertinente, de forma bem humorada e, muitas vezes, até egocêntrica – aquela coisa forçada de dizer que tudo do Rio Grande do Sul é melhor. A Polar tem uma interação muito forte e positiva com seu público. “Eles gostam disso, desse bairrismo escrachado e conversado, e defendem esse fato interagindo nas mídias online postando fotos, marcando amigos e até parafraseando nosso slogan”, explica Kopper. Para não perder o pique, a Paim tem um planejamento que conta com reuniões no começo do ano para traçar as campanhas e as ideias que serão feitas, aliada a uma criação irreverente, diversificada e inovadora, mas sempre mantendo os costumes gaúchos. Todos os aspectos de identidade visual da cerveja exploram o regionalismo: suas cores, que são as mesmas da bandeira do 89
“Afinal, o gaúcho é o povo mais exigente e orgulhoso que existe - imagine quando falamos dele”. César kopper, publicitário.
Estado, suas páginas nas redes sociais, as propagandas de TV e no rádio e até mesmo seu site, que não traz “br” no final e, sim ,“rs”, entendendo que o Rio Grande do Sul é um país. Quem navega pelo site ainda encontra a mensagem: “Tua ceva é tão gaúcha que o site agora é polar.rs - acessa e entra para o movimento ‘gaúcho sem modéstia’. http://www.polar.rs”. Ao acessar, as pessoas encontram um questionário para saber se elas realmente são gaúchas. As perguntas são sobre as regiões, o sotaque e as brincadeiras que só quem é gaúcho entende. Felipe Gomes, 28 anos, estudante de Direito, comenta que, para ele, a Polar é a melhor cerveja e que tem preferência por consumi-la. “As propagandas deles são demais. Aquela do ‘Bah polivalente’, que eles não falam mais nada além disso o comercial inteiro, foi a melhor sacada. Eles sabem como fazer os gaúchos consumirem a cerveja. Além disso, o gosto dela é muito bom também. Não tem nada melhor do que uma Polar bem gelada para fechar o dia com chave de ouro”, explica Gomes. Na propaganda em que o consumidor se refere, os personagens estão sentados em uma mesa de bar e falam apenas “Bah” para cada tipo de situação que acontece: a cerveja sendo servida bem gelada, quando um deles vira ela na mesa, a hora do brinde, quando entra uma mulher bonita no estabelecimento e quando eles veem que ela tem namorado. Ao final passa a mensagem: “Bah. A melhor expressão polivalente do mundo é daqui.” Outro exemplo de marca que percebeu as características dos gaúchos está nas operadoras de celular, que também regionalizaram as suas estratégias de marketing. A TIM alterou o nome de um plano de telefonia móvel, passando de Infinity para Infinity Tri, fazendo uma referência ao jargão gaúcho, e o transformou em serviço. A marca já trabalhou um conceito parecido, quando o plano se chamava Infinity Sul. Segundo a empresa, para estar mais próxima do consumidor gaúcho, foi elaborado um plano estratégico que contou com um estudo detalhado do mercado do Rio Grande do Sul e levou em consideração as particularidades dos gaúchos, suas tradições, 90
preferências e as diferenças entre os consumidores de cada localidade. A partir disso, a companhia desenvolveu um trabalho de marketing e comunicação e também campanhas de aproximação com o público do Estado. Desde 2010, ela se tornou patrocinadora oficial da dupla Gre-Nal. Aproveitou o embalo para lançar ainda os chips exclusivos para tricolores e colorados: o TIM Chip Torcedor do Grêmio e o TIM Chip Torcedor do Internacional. Além de personalizarem o celular, usando os SIM cards com os logos dos clubes, os chips contam com conteúdos dos times, como notícias diárias e alertas de gol via SMS em dia de jogos. “O chip com conteúdo exclusivo dos times foi um pedido dos torcedores gaúchos assim que anunciamos o patrocínio aos clubes”, diz o diretor da TIM no Rio Grande do Sul, Christian Krieger. “Desde que iniciamos a comercialização, os chips da dupla Gre-Nal já estão entre os quatro mais vendidos no país, entre os times patrocinados pela TIM no Brasil”, destaca. Para a dona de casa Cristina Silva, 53 anos, o chip do Internacional foi a melhor criação da TIM. Colorada fanática, ela conta que já tinha um número de outra operadora, mas quando viu através de propagandas os SIM cards, comprou um para ter novidades do seu time. “Nem todos os jogos passam na TV, e eu fico nervosa quando assisto. Por isso comprei o chip e um outro aparelho de celular só pra isso. Prefiro ter ele, que vai me avisando os lances mais importantes e quando sai gol, do que ouvir no rádio e ficar desesperada. Sou hipertensa, imagina como fica meu coração”, brinca Cristina. O desafio de se inserir em um mercado conhecido pelo alto consumo de produtos locais e pela força de marcas regionais é grande. As empresas constroem maneiras de brincar com essa fama de que o gaúcho é melhor em tudo. E todos sabem que isso não é verdade, mas é cômico e exagerado. O bairrismo pode orgulhar o povo gaúcho, mas possui uma conotação negativa para quem olha de fora e está vinculado a uma visão estreita de mundo que menospreza tudo aquilo que vem de fora. 91
“Desde que iniciamos a comercialização, os chips da dupla Gre-Nal já estão entre os quatro mais vendidos no país, entre os times patrocinados pela TIM no Brasil”. Cristiano Krieger, diretor da tim no rio grande do sul.
Algumas das grandes marcas que tentam entrar no Estado fazem o possível para se aproximar dos costumes do povo, com medo do preconceito e de não serem aceitas. O Acampamento Farroupilha, no qual os gaúchos comemoram em sua capital a semana alusiva ao 20 de Setembro, se tornou uma das formas de expor marcas e de tentar se aproximar do público regionalista. Em 2015, empresas nacionais, como o banco Bradesco e a operadora de TV por assinatura Sky, foram patrocinadoras oficiais da Semana Farroupilha, montando também piquetes e realizando ações interativas. Da mesma forma, marcas como a cerveja Schin, Perdigão, Knorr, Atacadão e Philip Morris não perderam tempo e entraram de cabeça neste grande negócio que se tornou a cultura gaúcha, na Semana Farroupilha. Para a professora de Publicidade e Propaganda da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS) Silvia Koch, existe uma medida para essa regionalização, pois fica com um sotaque estranho as marcas que não são do Estado tentando utilizar isso para agradar. “O grande problema, quando essas empresas tentam fazer isso de uma forma forçada, é que elas acabam constituindo algo que soa falso”, comenta Silvia. “A questão é a medida, em específico na data da Semana Farroupilha. Acaba sendo algo que pode chamar atenção, mas vai depender muito da linguagem utilizada. Fica muito esquisito e completamente deslocado. Necessariamente, uma marca não precisa se regionalizar para ter sucesso, ela pode ter a sua essência como marca e fazer pequenos ajustes de acordo com o local. Esses ajustes não significam se transformarem em marcas gaúchas, com sotaque gaúcho, significa entregar um bom produto, um bom serviço”, finaliza. O professor de Administração Marlon Dalmoro, que escreveu tese de doutorado sobre hábitos de consumo dos gaúchos, acredita que as empresas que possuem algum tipo de vínculo com a cultura acabam sendo assimiladas como gaúchas e se beneficiam desse fato. Uma forma de garantir o pertencimento é a origem da empresa, como, por exemplo, as Lojas Colombo. 92
O Acampamento Farroupilha, no qual os gaúchos comemoram em sua capital a semana alusiva ao 20 de setembro, se tornou uma das formas de expor marcas e tentar se aproximar do público regionalista.
Outra é a autenticidade no relacionamento com os públicos, como o caso da cerveja Polar, que, mesmo pertencendo a uma multinacional, se posiciona como uma marca gaúcha. Para ele, somente estratégias de comunicação de curto prazo não são sinônimos de sucesso. Explorar estes mercados a partir da uma comunicação local exige tempo para construir um relacionamento de autenticidade e pertencimento. Somente enrolar a bandeira do Rio Grande do Sul no produto no dia 20 de setembro não basta. “Penso que o mercado gaúcho possui uma orientação cultural muito forte, e as empresas devem reconhecer isso. Como toda cultura, qualquer tentativa de gerenciamento pode causar problemas para a empresa, tendo sim que compreender os fluxos culturais e jogar com eles, ao invés de gerenciar ou negar”, comenta. Um caso que chamou atenção foi o das Casas Bahia. Em 2004, a empresa inaugurou suas lojas no Rio Grande do Sul, utilizando a mesma estratégia de marketing com a qual conquistaram o resto do Brasil. Chegaram a ter 27 lojas físicas, mas fracassaram com o tempo. A dificuldade de ganhar espaço no Estado fez com que o processo de fechamento de unidades começasse. O presidente do grupo, Michael Klein, foi atrás de respostas para as razões do insucesso. Por meio de pesquisas, constatou que teria de mudar todo seu modelo de comunicação, inclusive o boneco usado nas propagandas. As mudanças não foram aprovadas e, em 2009, suas portas fecharam no Estado. Este ano, em 2015, foi anunciado, por meio do grupo Via Varejo, que as lojas estão de volta, porém, com mais cautela. A rede garante que não vai querer repetir os mesmos erros do passado. As lojas deverão ter uma estratégia mais adaptada à cultura local. “O retorno das Casas Bahia para o Rio Grande do Sul foi baseado na constatação de que não estávamos explorando o potencial do Estado neste segmento moveleiro. Mesmo assim, o retorno se dará com muita cautela e humildade, analisando cada uma das unidades e o que os clientes querem”, explica o presidente da Via Varejo, Líbano Barroso. 93
Para mergulhar na identidade gaúcha, é preciso conhecer quem entende do assunto, como por exemplo, O Bairrista, que começou com um perfil na rede social Twitter e logo depois virou um site que soube aproveitar o mercado e ganhar seu espaço. Produzido por um gaúcho de Cachoeirinha Junior Maicá, o jornal online divulga notícias fictícias de forma humorística. Apresenta o Estado como melhor em tudo. Mais do que isso, considera-o como uma república independente. Quando questionado sobre de onde veio inspiração para suas ideias, ele conta que foi durante um jogo de futebol em Porto Alegre, em que o público permanecia indiferente enquanto o Hino Nacional Brasileiro tocava. Mas, ao ouvir as primeiras notas do Hino do Rio-Grandense, o estádio todo se levantou e pôs-se a cantar, orgulhoso. A partir daí, surgiu o projeto de fazer piada com o amor que o gaúcho sente por seu Estado e a possibilidade de transformar o Rio Grande do Sul em país. Júnior ressalta que O Bairrista tem apenas a intenção de tratar os acontecimentos diários com uma dose de humor. Por isso, ele nunca teve problema em ser mal interpretado por pessoas de outros Estados. “Nunca tivemos problemas com gente de fora porque eles são menos inteligentes que nós e não entendem nosso dialeto. Brincadeira! Nunca tivemos porque o conteúdo do Bairrista é totalmente voltado para os gaúchos”, comenta Maicá. Para ele, o bairrismo é meio desfocado. “A gente tem um bairrismo bom que nos faz ter um ambiente propício e cultural. Por outro lado, nos faz acreditar que qualquer coisa que surja aqui seja boa, até mesmo um sentimento separatista totalmente surreal”, finaliza. Além do site, ele também lançou dois livros que foram sucesso: O Bairrista: As Melhores Notícias do País, em 2011, e logo em seguida O Bairrista: Sirvam Nossas Façanhas de Modelo a Toda Terra, em 2012. Outro velho conhecido dos gaúchos, Jair Kobe interpreta um dos personagens mais populares no Estado, o Guri de Uruguaiana. Ele fala de forma bem humorada dos costumes e comportamento, apontando, por exemplo, a mania gaúcha de 94
se refrescar na beira da praia com 45°C tomando chimarrão. Segundo Kobe, eles se deram conta de que falar do bairrismo, da tradição, é um bom negócio. “As pessoas gostam. Existe uma espécie de protecionismo comercial bairrista aqui no Estado. Quando fiz minha estreia no teatro, com o espetáculo Seriamente Cômico, o Guri de Uruguaiana já era um dos personagens. Ele foi criado a partir das minhas experiências com figuras gaúchas. Percebi que bairrismo gaúcho era um nicho de mercado importante e muito pouco explorado no humor, por isso investi no gaúcho e montei um espetáculo solo do Guri de Uruguaiana, em 2008”, comenta. Para ele, o gaúcho é um povo que tem tradições fortes e se orgulha muito de ser do Estado, por isso acredita que um personagem carismático, que ressalta isso, faz tanto sucesso. De maneira geral, quando a comercialização de um produto é focada na valorização da cultura regional, o sucesso é mais fácil. O gaúcho é um brasileiro diferente. Louva uma determinada marca porque é do seu Estado e possui um orgulho de suas raízes completamente incomum a outras regiões do Brasil. Praticamente, todo cidadão rio-grandense já cantou o Hino antes dos jogos da dupla Gre-Nal, toma chimarrão, gosta de churrasco e acredita que é melhor em tudo. Kopper deixa uma dica para as empresas que apostam no Rio Grande do Sul. “O bairrismo pode não ser compreendido e parecer realmente exagerado para quem olha de fora, mas, para quem nasceu aqui, uma simples comunicação direcionada e uma pitada de gauchês faz a diferença para uma marca ganhar aceitação ou não. Cabe a cada empresa saber o que precisa ser feito. Aliás, bem feito”.
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TERRA DE ANAS Laísa Mendes
Símbolo da literatura gaúcha, Ana Terra ainda inspira muitas mulheres. A personagem de Erico Veríssimo, na trilogia O Tempo e o Vento, é lembrada pela força, coragem e independência. Na época descrita na obra, os homens iam para guerra e passavam meses sem ter contato com mães, filhas e esposas. Ana viveu todos esses papéis. No entanto, entre as esperas e as perdas, ela não podia deixar de cuidar da casa e da roça: “[...] um dia era a cópia de outro dia, em que ela trabalhava de sol a sol, em casa e na lavoura, fazendo serviço de homem”. Não há mais batalhas para guerrear, mas as mulheres do campo seguem na sua luta diária, lavando e passando, plantando e colhendo.
A
voz grave de Marili ecoa pelas altas paredes da casa de madeira. Não fossem os movimentos rápidos e a destreza para preparar a comida, organizar a cozinha e conversar, simultaneamente, seria difícil acreditar em todas as tarefas que compõem a sua rotina. Todos os dias, às 6h30min, ela levanta, prepara o café e toma chimarrão com o marido. Desde 2011, após esse ritual, Marili Santina Brondani Bortolin, 53 anos, conta com uma responsabilidade a mais: ordenhar as 12 vacas de leite com a máquina canalizada comprada por ela: “Meu marido nunca quis essa função de vaca de leite, sempre puxou para trás. Ele dizia que eu ia me arrepender, que não ia dar certo. Até que decidi”. Antes da mudança, a agricultora tirava leite de cinco vacas, apenas para o consumo da família e venda para vizinhos próximos. O marido, Antônio Bortolin, 61 anos, ficava responsável pelos 13 hectares de plantação de arroz que integram a ampla vista da varanda da casa. Foi em uma feira de agronegócio, em Rio Pardo, que Marili decidiu comprar a máquina de ordenhar. Ela conta que saiu determinada a adquirir um equipamento simples. Porém, ao chegar lá, concluiu que, mesmo custando mais caro, a canalizada – que garante que não haja contato entre o produtor e o produto – era mais vantajosa. Escolheu o equipamento e comprou no próprio nome. “Fiquei muito feliz, muito alegre. Era um sonho que eu tinha há muitos anos e estava realizando ali”, recorda, comemorando a primeira conquista. Moradora da localidade Linha do Soturno, em Dona Francisca, distante cerca de 260 quilômetros de Porto Alegre, Marili é uma das 759.365 mulheres que vivem na área rural do Rio Grande do Sul, segundo o Censo do IBGE de 2010. Embora esse número represente 47,6% da população rural do Estado, a mão de obra feminina no campo não é reconhecida, como explica a professora de sociologia da Universidade de Cruz Alta (Unicruz) Janete Schubert. “É muito presente no meio rural a divisão social do trabalho. Isto é, não há um trabalho feminino e outro masculino, e sim uma divisão de tarefas baseada no gênero. Essa desva97
lorização existe ainda que o trabalho das mulheres seja o mesmo desempenhado por homens, e isso acaba tornando invisíveis as atividades desenvolvidas por elas”, esclarece. O Censo Agropecuário de 2006 aponta que 60% das mulheres rurais se encontram ocupadas nos 441.467 estabelecimentos agropecuários existentes no Estado. Ainda assim, pensamentos como o de Ana Terra, personagem que via a lida na lavoura como sendo trabalho de homem, ainda perduram e influenciam negativamente nos processos de emancipação das agricultoras. A socióloga comenta que, muitas vezes, elas não têm a titularidade da terra, não sabem sobre as finanças da família e não possuem poder decisório sobre o negócio familiar. A soberania masculina no campo se materializa: apenas 12,9% das mulheres em atividade são responsáveis pelo próprio estabelecimento, enquanto os homens representam 61,3%, conforme a Emater-RS. “Existe uma influência muito forte da cultura patriarcal, em que o homem tem de dominar e a mulher tem de obedecer. Há, também, uma naturalização dessa opressão e isso é muito grave. As mulheres fazem todo o trabalho da casa, cuidam dos filhos e trabalham com o homem. Mas o que aparece é o trabalho do homem. Essa cultura contribui para a permanência do imaginário de que as tarefas executadas pelas mulheres têm menos valor”, pontua a socióloga. Irle Marize Lampert, 51 anos, percebe que o seu trabalho é menos valorizado que o de homens em geral e observa que a população feminina ainda é vista como coadjuvante na lida do campo. A moradora da localidade Rincão dos Klein, em Augusto Pestana, na região noroeste do Estado, “pega parelho” com o marido. Além das plantações de soja, o casal cultiva mandioca, pepino, feijão, melancia e tantas outras “miudezas” no entorno da casa. Assim como a agricultora de Dona Francisca, Irle é responsável por tirar o leite das oito vacas da propriedade e ainda fazer todo o trabalho doméstico. “Não acho que os homens tenham capacidade de fazer o nosso serviço. Entrega uma casa na mão deles pra ver como fica!”, diverte-se. 98
Somente 12,9% das mulheres em atividade são responsáveis pelo próprio estabelecimento.
Cerca de 200 km separam Irle e Marili. Elas não se conhecem, mas têm muito em comum com a maioria das mulheres do campo que trabalha de janeiro a janeiro. Nem todas, no entanto, conquistam espaço para reivindicar o devido reconhecimento pela dedicação ao serviço rural. Além disso, alguns passo de evolução já foram dados. Marili conta que, na comunidade onde vive, as mulheres mais velhas, que antes não podiam nem pensar em dirigir, só agora buscam a carteira de motorista. Ela, por outro lado, é quem dirige até a cidade para comprar os produtos, administra a renda familiar e quem dá a palavra final quando se trata da produção de leite – pois, na plantação de arroz, prefere não dar palpite. “De forma alguma me sinto uma ajudante! Aqui em casa sou a líder e ele que é o meu ajudante (risos). Ele me dá esse espaço, porque se fosse como aquele tipo de homem machista que tem por aí, não seria assim. Graças a Deus, aqui não tem isso”, comenta, orgulhosa. Clarice Vaz Emmel Bock, responsável pelo setor de Gênero, Juventude Rural e Educação Ambiental da Emater-RS acredita que histórias como a de Marili logo não serão mais minoria. “Elas fazem mais do que todos os outros membros da família, tomam decisões na propriedade e representam o elo com a sociedade. Antes, em função de todo um contexto que não deixava brechas, elas acabavam à mercê da vontade dos maridos. Hoje, porém, demonstram muito mais força e coragem para discutir as questões que lhe interessam, da família e da propriedade”, defende. De fato, as mulheres têm provado que são capazes de realizar qualquer tarefa, seja no âmbito doméstico ou no agrário, e que, assim como os homens, podem ocupar todos os espaços. Na visão da socióloga, um dos fatores que impulsionou a atividade feminina no campo foi o avanço da tecnologia, pois permitiu às mulheres desempenhar funções que antes exigiam força física. “Isto pode acarretar mais trabalho para as mulheres que vivem no campo, uma vez que a maioria dos homens não auxilia nas tarefas do lar”, contrapõe. 99
“Elas fazem mais do que todos os outros membros da família, tomam decisões e representam o elo com a sociedade”, defende Clarice Vaz Emmel Bock, técnica da Emater-RS.
O acréscimo de trabalho fora das dependências da casa não livrou as mulheres da jornada dupla. Apesar disso, algumas organizações de agricultoras contribuem para uma divisão mais igualitária do trabalho, mesmo involuntariamente. É o caso do Coletivo Mãe Terra, originado no Assentamento Rodinha, no município de Jóia. O grupo, formado por 20 mulheres, existe há 15 anos e já passou por vários momentos. No início, as agricultoras assentadas se reuniam para rodas de conversa, com o intuito de se divertirem e se aproximarem umas das outras. Porém, com o passar do tempo, as famílias foram conquistando seus lotes, e as mulheres, assumindo outras responsabilidades, o que ocasionou na desistência de muitas integrantes. Geneci Diesel, 50 anos, conta que, acompanhada de outras mulheres, queria encontrar uma forma de incentivar as agricultoras assentadas a se reunirem e fazerem algo por elas mesmas. “Um dia a gente estava lá de “bobeira” e surgiu essa ideia de fazer os panificados. No começo, queríamos produzir só para nós. Mas o pessoal foi gostando. Começamos a vender de porta em porta”, relembra. Como o próprio nome sugere, a terra é a fonte principal dos ingredientes utilizados pelo coletivo na produção dos pães, cucas, bolachas, massas, fitoterápicos e conservas. A matéria-prima, quando não é cultivada pelas integrantes, é adquirida por meio de permuta ou comprada dos moradores do assentamento. Geneci dedica de dois a três dias da semana para o Mãe Terra e garante que o filho e o marido dão conta dos afazeres domésticos quando ela não está em casa. Para ela, não há divisão no trabalho desenvolvido por homens e mulheres, pois todos são capazes de desempenhar a atividade que for. “As mulheres estão se dando mais valor, estão se assumindo e tomando mais decisões também. Acho que antes as mulheres tinham medo de falar e serem independentes. Hoje em dia, tem muita mulher guerreira cuidando da casa e fazendo o serviço da roça”, afirma, confiante. A moradora de Dona Francisca também acredita que, aos poucos, as mulheres do campo estão se libertando. Para ela, 100
O acréscimo de trabalho fora das dependências da casa não livrou as mulheres da jornada dupla.
a paixão pelo que se faz é o principal ingrediente para os projetos darem certo. Dentro de casa, o brilho da chapa do fogão a lenha revela o capricho com o lar. Na estrebaria, Marili chama cada uma das vacas pelo nome. E no fim, como recompensa for todo trabalho e esforço, a agricultora assume que o mérito é dela. “Quanta coisa comprei com o dinheiro das vacas, que é dinheiro meu. Antes, era do arroz. Embora tenha ajudado, não era meu. Agora, aquele lucro, todo o dia dez, é maravilhoso, é gratificante. Hoje sinto que nunca estive mais feliz”, comemora.
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O EXÍLIO MUSICAL
Thiago Suman
O Estado é um caldeirão de miscelâneas culturais e étnicas. Envolvida por clima gélido prevalece uma linha de concepção musical singular e de pouca reverberação no resto do país.
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Rio Grande do Sul traz no seu DNA características culturais distintas do Brasil. Ritmos como a milonga, o chamamé e o xote são heranças da miscigenação colonial do Estado. Portugueses, italianos, alemães e negros fizeram parte da construção desta identidade gaúcha. Porém, mercadologicamente, a expansão da nossa produção musical tem um efeito limitador: a sonoridade local não consegue repercutir pelo Brasil afora. Ela permanece presa diante dos limites físicos e culturais do Pampa e, praticamente, não há artistas representando o gaúcho longe das nossas fronteiras. Esporadicamente, um ou outro nome repontou em décadas passadas. Vítor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, bateu recorde de vendas nos anos 1980, tendo lançado 70 LP’s e registro de 88 milhões de cópias comercializadas. É até hoje o regionalista que mais representou a cultura gaúcha. Ou mesmo Heber Artigas Armua Fós, uruguaio naturalizado brasileiro, que artisticamente ficou conhecido como Gaúcho da Fronteira e, no final da década de 1990, operou uma conexão da cultura do sul do Brasil com o forró nordestino ao lançar o disco Forronerão em parceria com o grupo Brasas do Forró. Dessa mistura, despontou nas paradas de sucesso com Vanerão Sambado, que tem melodia dele e letra de Vaine Darde. A obra mescla o vanerão (gênero alegre de dança de salão de origem alemã, com influência cubana) com o samba de avenida. Os versos se propuseram a nacionalizar a identidade gaúcha: “Fiz um vanerão sambado que é este samba vaneirado que até hoje ninguém viu / Só pra ver como e que fica gaita ponto com cuíca, olha só o que saiu / Cavaquinho com guitarra, tá na cara que dá farra e muito pano pra manga / Bombo legüero e pandeiro, vai ser aquele entrevero na tua escola de samba / E com chimarrão e mé, todos vão dizer no pé, no galpão ou na favela / E quem sabe em fevereiro eu não saia de gaiteiro na Mangueira ou na Portela”. Diante dessa escassez de representatividade, a cultura regio103
nal se fechou em proposta e espaço. Paulatinamente, artistas locais se põem a militar em busca de ferramentas e teorias que ajudem a abrir brechas de mercado. O porto-alegrense Hique Gomez, consagrado nos palcos ao lado do parceiro Nico Nicolaiewsky com a peça de teatro musical Tangos & Tragédias, que ficou em cartaz por quase 30 anos, pode ser considerado um artista completo. O próprio Gomez tem consciência do espaço limitado que o artista gaúcho consegue atingir quando comparado a outras culturas, como a nordestina, por exemplo. “A história conta muito o fundamento etnogênico. Em todos os países existem os grandes centros culturais, de onde se fortalecem a diversidade das linguagens e onde se encontram as diferenças. No Brasil, o folclore nordestino teve respaldo no Rio de Janeiro e São Paulo devido ao grande contingente de nordestinos nestes grandes centros. Já a Bahia, se transformou no pólo cultural por conta da força de seus grandes artistas que nos deram a Tropicália – que foi a tradução da revolução comportamental e da contracultura. Antes disso, a Bahia já havia nos legado a batida da Bossa Nova, com João Gilberto abrindo espaço para a comunicação internacional da música brasileira”, opina Gomez. O cantor acredita que a musicalidade do Nordeste se distancia da Região Sul por conta de suas ancestralidades, e é a oralidade herdada dos povos bardos que difunde com força essa cultura. O artista reforça que esse dado é fundamentado pelo músico Carlo Nuñes, espanhol da cidade portuária de Vigo, que reconheceu similaridade da sonoridade do Brasil com sua gaita de fole. Hique conta que a literatura do consagrado romancista Ariano Suasuna também confirma esse atavismo cultural. “Toda música nordestina tem uma herança celta”, resume. O músico analisa que o nordeste do Brasil acabou colonizado por invasores ingleses, espanhóis, franceses e holandeses, onde a música de taberna passada pela tradição oral predomina. “Já o Sul, foi colonizado depois, com as Missões (jesuítas) e deles vieram o violão e a tradição hispânica, trazendo na sua essência toda uma cultura árabe que se arraigou na Península Ibérica”, completa. 104
“Fiz um vanerão sambado que é este samba vaneirado que até hoje ninguém viu, Só pra ver como e que fica gaita ponto com cuíca, olha só o que saiu, Cavaquinho com guitarra, tá na cara que dá farra e muito pano pra manga”.
Gomez percebe, nessa relação com a ascendência espanhola, a principal característica da nossa estética até os dias de hoje. “Somos o Estado mais hispânico do país e isso é cada vez mais presente, por exemplo, na produção musical com o Vitor Ramil, fazendo suas parcerias com os hermanos e especialmente com a figura do gaúcho se consolidando como um folclore compartilhado entre três países, Brasil, Uruguai e Argentina ”, afirma. O músico considera a influência das delimitações territoriais sobre cada retalho cultural do país. Para ele, a musicalidade africana prepondera na Bahia, porque os africanos aportaram lá pela familiarização com o clima. O mesmo acontece no Mato Grosso com as guarañas paraguaias . “A natureza não reconhece os limites políticos que o homem estabeleceu. É a natureza que fala em todos estes casos”, completa. Aqui no Sul, os artistas que atuam no circuito de festivais de música nativista acabam fomentando o cancioneiro regional, com criação de músicas autorais e inéditas a cada final de semana. Apesar disso, circulam no diminuto cenário dos festivais, sem conhecimento do grande público. O multipremiado cantor e compositor Pirisca Grecco fez um meaculpa ao perceber, na estrutura desses eventos, alguns elementos que dificultam a difusão cultural. “Antes de querer culpar as grandes redes de rádio e TV pela perda do compromisso cultural dando rédeas para a indústria do jabá, quero olhar para dentro e falar por mim. Acho que nossa música é muito nova ainda, apenas 40 anos mal completados de festivais. A fórmula competitiva desde berço atravanca a coletividade que se faz necessária para que as coisas evoluam. Nossa música não é de todos, não representa todos”, opina Pirisca. O cantor é reconhecido como um dos grandes nomes dessa geração. Ao todo, lançou seis discos e conquistou cinco Prêmios Açorianos de Música (de melhor álbum regional em 2003, 2006 e 2009 e melhor intérprete regional em 2006 e 2009). Ele identifica na própria aldeia um sintoma que pode ajudar a entender o embarreirando da música de raiz do Rio Grande do Sul. 105
“Temos preconceito com quem cruzou o Rio Uruguai. Elis Regina foi tratada simplesmente como uma drogada, Kleiton e Kledir foram taxados como frescos, existe um público que afirma que o Gaúcho da Fronteira, com Vaneirão Sambado, nunca nos representou”, lamenta Pirisca, ao exemplificar o repúdio que o próprio gaúcho possui com quem leva sua música além das fronteiras do Estado. O músico acredita que a arte gaúcha não sai daqui pela possessividade do espectador, porque aqui ela está sob controle, do protagonismo do espectador e não do artista. Com um prisma diferente sobre essa estética, Juarez Fonseca, jornalista e crítico musical, com passagens pela Folha da Tarde e Zero Hora, entende que a força centrífuga do eixo Rio-São Paulo sempre foi um dos fatores determinantes para essa marginalização da produção musical do Sul. De acordo com ele, pelo fato de as grandes gravadoras estarem estabelecidas nesses dois Estados, o mercado acabou monopolizado. Fonseca também reforça o destaque da musicalidade nordestina quando comparada à sulina. “O Rio Grande do Sul tem uma dificuldade histórica de se fazer ouvir pelo Brasil”, afirma o crítico. Ao tratar dos artistas locais, ele os separa em duas categorias: os que fazem música nacional e os que fazem música regional, sendo a última quase inexistente fora do Estado. O crítico cita, por exemplo, Elis Regina, gaúcha que não se preocupava em levar a identidade regional e que fez muito sucesso. Ele também exemplifica essa situação com a banda Engenheiros do Hawaii, que se notabilizou nos anos 1980, produzindo rock nacional, ficando no mesmo patamar de Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso. Do outro lado, há Renato Borghettti, que o crítico considera mais regional e representativo no gênero instrumental. Já Teixeirinha, ele aponta para uma ligação mais próxima com a música sertaneja. “Poucos artistas gaúchos conseguiram sucesso nacional”, conclui. Vitor Ramil, compositor, cantor e escritor, em seu livro A Estética do Frio, mistura o clima, a colonização e as fronteiras com 106
três pátrias, para justificar a formação da identidade musical do gaúcho. Na obra, ele considera, por exemplo, o clima do Estado gélido um fator crucial para gerar esse perfil singular. O próprio autor não conceitua a estética do frio como algo consumado: “Não acho que seja algo que já exista. Eu mesmo me sinto em busca de colocar traços meus na minha produção artística, de forma a reagir a estereótipos de ser brasileiro e de gauchismo”. Ramil discorda que exista uma resistência ao produto artístico do Rio Grande do Sul. Na sua concepção, há barreiras dentro do próprio Estado que tendem a absorver seus artistas e regionalizar a sua área de atuação. Ele reforça que não é algo exclusivo dos sulistas e cita o Pará como exemplo. “São lugares bem extremos do país e existe lá uma cultura local muito forte. Provavelmente, nós gaúchos não conheçamos quase nenhum nome da música paraense. E não é que tenhamos resistência com a música do Pará. É que os artistas não saem muito de lá”, explica. O músico, natural de Pelotas, acrescenta que, caso o artista produza uma obra de relevância nacional e tenha temperamento que permita inserção na mídia nacional, fará parte do todo. “A estética do frio é uma expressão que fala por si só”, completa o músico. Ele acredita que as pessoas a compreendem como uma síntese poética, que tem efeito muito maior do que teria uma tese elaborada. A estética do frio, segundo ele, é um desencadeador. Sobre a influência étnica na elaboração dessa identidade, o compositor também compreende que a cultura negra é colocada em segundo plano. Ele enfatiza a importância mundial da música de matriz negra, seja no gênero pop, na música americana e no samba, por exemplo. “Nossa alma negra tem que transbordar mais”, conclui. Fonseca também comentou a obra de Ramil, refletindo sobre alguns dos motivos desse trânsito se dar com mais liberdade e fluxo: “A estética do frio não é uma coisa fechada. A ideia do Vitor não é uma contraposição a alguma coisa, ela é uma identidade do Sul. Está ligada ao tropicalismo, que identifica o Brasil, 107
mas não identifica o Rio Grande do Sul, porque é um Estado climaticamente diferenciado”, afirma. O tradicionalismo é extremamente valorizado no Rio Grande do Sul, a ponto de ser praticado nos Centros de Tradição Gaúcha com a representação de usos e costumes típicos dos antepassados. Porém, ainda que essa celebração conecte gerações, Ramil alerta para a necessidade de transposição da arte e do diálogo com seu tempo: “Se fosse uma coisa só repetida no formato do passado, estaria em um museu, como uma peça que não ecoa. Tudo que é tradição só pode ganhar esse status na medida em que está vivo, inserido no que se faz”. E ele ainda atribui aos artistas a responsabilidade de realizar essa manutenção: “Para isso acontecer, cada compositor tem que estar fazendo a sua maneira. Não pode se prender à uma normatização.” Diante dessa Geleia Geral (termo criado por Décio Pignatari que justifica a fusão cultural concretista dos anos 1950 e que foi retomado no tropicalismo de 1970), o povo do extremo Sul do país pode se questionar se somos autárquicos culturais ou herdeiros de um destino renegado. A complexidade do tema desdobra posicionamentos como se percebe na exposição de integrantes da classe artística, como Hique Gomez e Pirisca Grecco, ou mesmo na contraposição do crítico Juarez Fonseca. O fato é que não se define no escopo musical se somos emancipados ou bastardos, mas trilhamos uma estrada peculiar e nossa, afinal, como disse Ramil, “Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história”.
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“Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história”. Vítor Ramil, músico.
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ACAMPAMENTO
Lucas Zandonai
Desde sempre ouvimos histórias mal contadas: conhecemos pela metade ou de forma distorcida os fatos do mundo. O mesmo acontece com a cultura do Rio Grande do Sul. E assim como a palavra, a fotografia também tem o poder de manipulação, a partir do momento em que o fotógrafo aponta a câmera para um determinado lugar. Como dito por Lewis Hine, “fotografias não mentem, mas mentirosos fotografam”. As imagens seguintes demonstram a tradição praticada no Acampamento Farroupilha. No entanto, será que esta é uma narrativa completa do que é praticado por todos os gaúchos? Este livro revela aquilo o que não é dito nem fotografado.
Ficha técnica Câmera Fotográfica: Canon EOS 60D Lente: Canon EF-S 18-135mm f/3.5-5.6 IS
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O ARQUIPÉLAGO
Em contraposição a O Continente na trilogia de Erico Verissimo, O Arquipélago tem a força da fragmentação, da deterioração dos elementos de ligação que dão sentido. Revela a derrocada da família, o surgimento de novas referências a partir da emergência de grupos sociais. Desmancham-se as ilusões de superioridade pela ação das forças do isolamento.
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O povo que diz não Jéssica Sbardelotto
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O politizado Laís Escher
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Futuro ameaçado Rodrigo Azevedo
Um Estado de racismo Nathalia Gomes
O medo mora aqui Manuela Kuhn
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Gaúchxs Maicon Hinrichsen
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O POVO QUE DIZ NÃO
Jéssica Enderle Sbardelotto
A história política do Rio Grande do Sul mostra um cenário de descontinuidade de governos. Antes de haver a possibilidade de reeleição, partidos intercalavamse no poder. Atualmente, mesmo que ela seja permitida, a situação segue idêntica. Nesse contexto, governantes falham ao fazerem planos que não ultrapassam os quatro anos, e eleitores ao irem às urnas visando substituir o nome atual. Entre os principais problemas das rupturas está o abandono de projetos elaborados por governos anteriores devido à polarização partidária e às diferentes perspectivas de cada mandatário.
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provada há 18 anos, a emenda constitucional que permite a reeleição no Brasil ainda não produziu os efeitos administrativos da continuidade nas eleições para o governo do Rio Grande do Sul. De lá para cá, Antônio Britto (PMDB), Olívio Dutra (PT), Germano Rigotto (PMDB), Yeda Crusius (PSDB) e Tarso Genro (PT) não conseguiram ir além dos quatro anos de mandato. Dentre as razões para explicar a falta de continuidade, uma se destaca: a polarização política no Estado. Porém, essa não é uma realidade recente. Para compreender a situação atual, é preciso retomar a história política gaúcha. Nos primeiros anos do regime republicano, o monopólio partidário foi comandado por Júlio de Castilhos com base nas concepções autoritárias e centristas do positivismo, seguido por Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. No período de Borges de Medeiros havia um partido dominante, o Partido Republicano Rio-grandense (PRR), e a oposição foi massacrada na Revolução Federalista, entre 1893 e 1895, com mais de 10 mil mortos oficialmente. Durante todo o tempo, até 1928, eles foram mantidos fora do poder. Mesmo sem haver a possibilidade de reeleição àquela época, já havia a alternância de poder entre partidos, dado que o candidato da situação sempre era derrotado pelo da oposição. “Depois da guerra, volta o multipartidarismo que segue até hoje, mas ocorre a necessidade de agrupamentos: de 1945 a 1964, há os grupos do PTB e os anti-PTB, cada um com suas coligações, que é onde começa a polarização. Depois da ditadura, o mesmo acontece, então, com os grupos do PT e anti-PT”, relata o historiador e doutor em Ciência Política Rene Gertz. O período citado por Gertz como a volta do multipartidarismo dá-se após o Estado Novo, entre 1937 e 1945, marcado pelo autoritarismo resultante de um golpe de Estado para a manutenção de Getúlio Vargas à frente do poder, com o apoio dos militares e de políticos da esfera federal. Ao final do Estado Novo, mesmo com o maior número de partidos, a polariza123
ção ganha força. Tal cenário era similar ao atual e contrariava a afirmação de que os gaúchos são “mais politizados” do que os demais eleitores. Desde a eleição de Walter Só Jobim (PDS), no primeiro pleito após o Estado Novo, em 1947, nenhum partido conseguiu eleger um sucessor. Daquele ano até o Golpe Militar de 1964, a disputa concentrou-se entre o PSD de Jobim e o PTB de Leonel Brizola. Com o retorno das eleições mediante sufrágio, da qual saiu vencedor Jair Soares (PDS), em 1982, volta também a polarização assinalada por Gertz, a qual permanece nos pleitos atuais. O primeiro governador que pôde buscar a reeleição no Estado foi Antônio Britto, do PMDB, na disputa de 1998, quando perdeu para Olívio Dutra, candidato do PT. Em vez de tentar a permanência de Olívio, em 2002, o partido opta por concorrer com Tarso Genro que, por sua vez, é derrotado por outro peemedebista, Germano Rigotto. O então governador vê o fim de seu mandato quatro anos depois, fracassando também na tentativa de permanecer no cargo, o qual foi conquistado por Yeda Crusius, do PSDB, que no segundo turno venceu o novamente concorrente petista, Olívio Dutra. A vitória de Tarso em 2010 apresenta uma particularidade frente aos anos anteriores, com a conquista ainda no primeiro turno. Logo após, o PMDB retoma o governo estadual em 2014, última eleição até então, com o ex-prefeito de Caxias do Sul José Ivo Sartori vencedor com 61,21% dos votos. O resultado surpreendeu quem acompanhava as pesquisas de intenção de voto. Dois meses antes, Sartori estava em último entre os três principais candidatos, com 7% da preferência, enquanto Tarso somava 30% e Ana Amélia Lemos (PP) liderava com 39%. A mudança no cenário ocorreu já no primeiro turno, quando Ana Amélia é derrotada pelos outros dois, que seguem para a segunda etapa, enquanto Sartori fecha com 40,40% e Tarso Genro a 40,57%. O resultado final mostra a vitória com diferença de mais de 20 pontos do peemedebista frente ao opositor, revertendo o quadro das primeiras pesquisas. 124
Nenhum partido reelegeu sucessores no rio grande do sul desde o fim do estado novo, em 1947.
A rivalização partidária notada nos governos atuais assemelha-se à da República Velha (1889-1930), mas, naquela época, havia longos períodos sob o mesmo comando – caso de Borges de Medeiros, que governou por 25 anos, entre 1898-1908 e 1913-1925 –, diferente do que acontece atualmente, quando os governos não ultrapassam os quatro anos do primeiro mandato. Para a jornalista Rosane de Oliveira, colunista política do jornal Zero Hora, a grenalização coloca em dúvida a afirmação de que os eleitores gaúchos são mais politizados que os demais e torna cada pleito uma briga, gerando, por exemplo, prejuízos a programas já instituídos. “Mesmo programas que têm continuidade, como o Primeira Infância Melhor, que é um programa super legal, criado pelo Rigotto, os governadores posteriores mantiveram, mas ele foi se esvaziando. Em vez de, por ser um programa importante, que foi mantido, ele ter continuidade, simplesmente vai se esvaziando e agora com a crise praticamente morreu”, critica. O Primeira Infância Melhor (PIM), apontado pela jornalista, foi implementado em 2003, tornando-se lei em 2006. O Programa visa o desenvolvimento nos primeiros anos de vida, com visitas a famílias em situação de vulnerabilidade social, com foco na educação e cuidado das crianças. Considerado um dos projetos prioritários da Secretaria Estadual da Saúde à época de sua criação, o PIM também integra a Ação Brasil Carinhoso, do governo federal, que tem como eixo principal a Educação Infantil para crianças cujas família sejam beneficiadas pelo Bolsa-Família. Entre as principais ações do programa, estão o desenvolvimento de planos para as famílias atendidas, voltados à saúde, educação e assistência social; acompanhamento de gestantes e orientações às mães quanto ao aleitamento materno e ações para a redução da mortalidade materna e infantil. Nos dois primeiros anos, houve repasse de cerca de R$ 2 milhões aos municípios participantes. Entre 2007 e 2010, cerca de R$ 30 milhões foram investidos pelo governo estadual, alcançando mais de 85 mil crianças. 125
a grenalização política contribui para a falta de continuidade dos governos
As interrupções de programas já implementados tornou-se recorrente, como o projeto de estímulo à atração de empresas, criado por Britto, sob a perspectiva de ser uma forma de melhorar a situação financeira do Estado, visão com a qual não concordou Dutra, seu sucessor, resultando na suspensão do projeto. Mais do que os programas, a mudança de posicionamento reforça os problemas, à medida que os interesses partidários sobrepõem-se às necessidades estaduais. A elevação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), aprovada pelo legislativo estadual neste ano, está em pauta há mais de 15 anos, desde o governo de Olívio. A mesma oposição peemedebista que, à época de Olívio, foi contrária, em 2004 aprovou o aumento no governo de Rigotto, situação repetida em 2015, no mandato de Sartori. “Quem antes era contra, agora é a favor. Quem aqui é contra, é a favor da CPMF em Brasília, porque o governo é seu. É uma incoerência que mostra um pouco porque o Rio Grande do Sul trava tanto”, critica Rosane, se referindo à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) criada pela presidente Dilma Rousseff (PT) para elevar a alíquota da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Para o diretor-executivo da Agenda 2020 Ronald Krummenauer, o jogo político destacado pela jornalista não é exclusividade do Estado, mas fica em evidência pela falta de continuidade local. Para ele, a falha dos eleitos é pensar só no seu mandato, o que faz com que se acomodem e não desenvolvam projetos a longo prazo. “O Sartori, por exemplo, em 31 de dezembro de 2018 acaba o mundo e um novo mundo começa em 1º de janeiro de 2019, seja lá quem for o governador. Tecnicamente isso é muito ruim, mesmo levando em conta que o eleito possa ser melhor qualificado que o que estava. Sempre é discutível quando as soluções são muito semelhantes, como acontece quando existem problemas sérios de caixa, como é o caso do Rio Grande do Sul”, critica. São raras as situações em que não há perdas nos projetos implementados de um governo para o outro. Entre os exemplos, 126
“Quem antes era contra, agora é a favor. É uma incoerência que mostra um pouco porque o rio grande do sul trava tanto”. Rosane de oliveira, jornalista.
estão os investimentos em inovação e tecnologia resultante da lei aprovada por Yeda Crusius em 2009, que estabeleceu medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica no Estado e, posteriormente, teve continuidade e elevação de investimentos no governo do petista Tarso Genro. “O problema é que exemplos positivos são exceções. Por exemplo, tinha sido montado um sistema de avaliação no governo Yeda e no primeiro semestre do governo Tarso foi zerado, com a proposta de um novo sistema que nunca foi montado. Na prática, desde então, não há nenhum sistema de avaliação da educação no Rio Grande do Sul”, relembra Krummenauer. Assim como Krammenauer, o jornalista Carlos Bastos acredita que o problema inicia pelos mandatários, que antes mesmo de tomarem posse, já começam a fazer planos para as eleições sequentes. Com mais de 50 anos de profissão, grande parte no jornalismo político, ele acredita que o Brasil ainda não está preparado para a reeleição. “Acho que o Brasil é um país subdesenvolvido, o instituto da reeleição é válido para países evoluídos, países europeus, Japão, Estados Unidos, países mais adiantados politicamente que o Brasil”, defende. Apesar de achar os gaúchos mais politizados do que eleitores de outros Estados e ser favorável ao que denomina “alternância de poder”, Bastos admite que as falhas dos governantes prejudicam o Estado. O principal exemplo lembrado por ele é a instituição da escola em tempo integral feita por Brizola no Rio de Janeiro e Alceu Colares no Rio Grande do Sul, projeto abandonado pelos sucessores e que, apenas atualmente está sendo retomado, de acordo com o jornalista. O cientista político Bruno Lima aponta que a reeleição é um fenômeno recente, criado em Função do Plano Real por necessidades financeiras, mas também atribui à bipolaridade a descontinuidade dos governadores no Estado. Assim, além de não permanecer no poder, os partidos não apoiam os novos mandatários, independente dos benefícios que seus projetos possam trazer. Porém, afirma que o problema não é a alternância. “O 127
“O instituto da reeleição é válido para países evoluídos, países europeus, japão, estados unidos, mais adiantados politicamente do que o brasil.” carlos bastos, jornalista.
ruim é que a única agenda permanente de projeto de poder é a neo-liberal, Agenda 2020, Fórum da Liberdade, agenda dos veículos de mídia. Não tem consenso básico permanente de um projeto”, defende. Lima ainda destaca que os movimentos comunitários de Porto Alegre, por exemplo, não possuem agenda positiva. A população, no geral, não tem poder de veto nos projetos, mesmo que estes interfiram diretamente na sociedade. Assim como Rosane, ele diz que o oportunismo que rege a política estadual impede avanços, devido à mudança de posicionamento de acordo com a situação de seu partido. Além de lembrar das quatro décadas de déficit, o economista e ex-auditor de finanças públicas da Secretaria da Fazenda Darcy Carvalho dos Santos acredita que o tempo de um único mandato é insuficiente para atender a todas as necessidades da população, situação agravada pelo fato de que os eleitos, invariavelmente, possuem concepções diferentes. “O Estado vinha se equilibrando desde a Yeda, que teve como benefício a grande arrecadação, além de ter grande contenção de despesas. Tarso entra com visão totalmente diferente, crescimento menor, mas manteve os mesmos gastos, com mais reajustes, mesmo sem ter recursos, com déficits violentos, reajustes permanentes com receita não permanente”, explica. Apesar de mencionar bons resultados no governo tucano, Rosane lembra que eles foram limitados, pois o Déficit Zero que marcou a gestão foi resultado de congelamentos de salário que não se sustentariam por muito tempo, mantidos apenas pelos três primeiros anos, quando mudou de posição no momento em que o então secretário da Fazenda, Aod Cunha, abdicou do cargo. “No fim, ela estava muito impopular e abandonou tudo. Foi uma gandaia só, ela aprovou um monte de coisas, aumentos que serão custo por 50 anos, botou dinheiro no programa de recuperação de estrada sem controle, tirou o dinheiro da previdência e terminou o último ano com R$ 1 bilhão de déficit”, relembra. 128
com frequência, grandes programas de governo não são mantidos pelos sucessores de partidos diferentes.
Mais do que as mudanças partidárias, Krummenauer acredita que o que agrava a situação são as diferenças de posicionamento e pontos de vista políticos entre candidatos eleitos por uma mesma sigla. “O coração (da campanha política) do Rigotto não tem nada a ver com a proposta de ‘meu partido é o Rio Grande’ de Sartori. A cada quatro anos temos uma insatisfação e acabamos elegendo uma pessoa muito diferente. Por que isso? Como não tem continuidade de projetos, não tem como ter grandes soluções, grandes mudanças no Rio Grande do Sul não vão acontecer em um mandato”, defende. Santos afirma que um problema dos eleitores e políticos gaúchos é a comodidade de culpar terceiros, especialmente o governo federal, assim como ocorreu com o bloqueio das contas do Estado, devido ao não pagamento da dívida em 2015. Além disso, ele aponta que a falta de rigidez na fiscalização dos órgãos responsáveis influencia na aprovação de projetos sem que passem pela devida análise. “Se o TCE, que é o órgão responsável, fiscalizasse, o Estado não estaria como está. O governador eles até fiscalizam, mas não julgam. O parecer que vai para a Assembleia é quase sempre favorável, o que significa a quase certeza de que vai ser aprovado. Recentemente o parecer mostrou sérios problemas, mas o Tribunal é formado por políticos”, conta. A insatisfação que pode ser um dos argumentos para o cenário político do Estado, por vezes, beneficia os opositores. A situação detectada após as manifestações de 2013 serviu como chave para iniciar a campanha vitoriosa de Sartori em 2014. A pesquisa realizada pelo marqueteiro Marcos Martinelli para a Fundação Ulysses Guimarães mostrava que 91% dos gaúchos não queriam “ouvir falar de política ou de políticos”. A partir desse cenário, Martinelli, coordenador da campanha do José Ivo Sartori (PMDB), criou uma campanha que não mostrava ideologia ou promessas, mas apresentando o candidato que até então era conhecido por apenas 70% da população estadual. “Não vamos ter um slogan com ideia central que fale de partido (PT), nem de grupo (Ana Amélia, cujo nome é associado 129
“Se o TCE, que é o órgão responsável, fiscalizasse, o Estado não estaria como está. O governador eles até fiscalizam, mas não julgam”. Darcy Carvalho dos Santos, economista.
ao Grupo RBS). Tinha que ser uma coisa abrangente e em cima disso foi criado o ‘meu partido é o Rio Grande’ e o ‘gringo que faz’, lembra. A polarização, já característica do Estado, também foi um dos trunfos para a eleição. Enquanto Tarso e Ana Amélia tinham nomes já reconhecidos, a estratégia vencedora buscou algo que diferenciasse o candidato dos demais, mostrando-o como uma terceira via. De menos de 10% nas pesquisas iniciais para o primeiro lugar na disputa, Martinelli acredita que o histórico de não reeleição e a imagem de ser uma opção diferenciada foram decisivos para o resultado. “O gaúcho, antes de ser a favor, é anti alguma coisa. Anti-petismo, anti-direita, anti-RBS. Em vez de falar das coisas ideológicas, nós falamos das coisas boas que ele fez em Caxias do Sul. Estava muito polarizado, Tarso querendo ir pra segundo turno e Ana Amélia querendo ganhar no primeiro, então era hora de conhecer quem ele era”, explica. Para Martinelli, a falta de continuidade é um tabu que deve permanecer e acredita que nenhum governador, independentemente de qual for o partido, consegue mostrar seus esforços de maneira concreta em quatro anos. Já para Rosane, a eleição de Sartori retoma a questão do petismo x anti-petismo. Ela relembra que, durante as eleições, ficou clara a falta de definição no plano de governo do então candidato, ainda que, segundo ela, tenha prevalecido a necessidade de tirar Tarso do poder. Porém, este não é o único problema. “Então, o que tu imagina? Agora todo mundo vai torcer para o Sartori dar certo, porque se der errado, nós que vamos nos ralar por quatro anos, certo? Não. A torcida é assim: quanto mais ele se ferrar melhor porque daí depois ele perde a eleição”, argumenta.
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“O gaúcho, antes de ser a favor, é anti alguma coisa. Anti-petismo, anti-direita, anti-RBS”. Marcos Martinelli, Marqueteiro.
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O POLITIZADO
Laís Escher
Um conceito se sustenta com bravura: a suposição de politização do povo gaúcho, quase sempre dividido em dois lados, maragatos ou chimangos. Mas o que é ser politizado? Será que realmente somos mais esclarecidos e participativos do que os habitantes de outros Estados?
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olitizada: uma moça indignada com o Congresso Nacional e com o buraco da rua de casa. Politizado: um senhor idoso que defende um partido e abraça uma ideia. Politizada: uma mulher que trabalha com ações coletivas. Politizado: um rapaz mesário do processo eleitoral que quer exercer cidadania. Mas, afinal, em meio a tantas possibilidades, o que é ser politizado? É inegável que o Rio Grande do Sul tenha um cenário político distinto do restante do país, como sua própria história afirma. Porém, não há algo que nasça dentro do gaúcho e o torne automaticamente politizado. “Politizado é relativo. É mais politizado do que quem?”, provoca Luiz Alberto Grijó, professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O gaúcho faz política em diversas frentes – e tal multiplicidade abre o caminho para se pensar se é possível comparar os vários graus de participação. Organiza atos de repúdio e discussões acerca de determinados temas, cria comitês e coletivos e consegue tornar tradicionais fóruns com temáticas que abordam cidadania. O que se percebe, ao longo da história, é que, gradativamente, foi se construindo uma ideia de diferença, que o Estado apresentaria especificidades em relação ao restante do Brasil quando o assunto é mobilização política. Grijó aponta que, em consequência destas peculiaridades construídas, fazia-se a ideia de que o Rio Grande do Sul seria distinto e qualitativamente melhor do que os outros Estados em outras experiências, lugares e contextos. Um buraco de rua é o suficiente para mobilizar as pessoas, por exemplo. Moradores de determinado local podem se organizar para buscar a resolução deste problema próximo e momentâneo, configurando assim um modelo mais inicial de cultura política. Associações de bairro, ligadas ainda a problemas emergenciais e efêmeros, mas que apresentam também uma organização maior em torno de fatos diversos, evidenciam uma cultura de politização mediana. Se houvesse uma escala para apurar o grau de politização, o ponto mais alto de medida 133
de cultura política seriam as ações que unificassem uma cidade toda, por exemplo, na busca por direitos e solução de problemas. Situações pontuais como estas descrevem um mecanismo que permite, de certa forma, medir politização. A cultura política estudada pelo campo da Ciência Política estabelece uma gradação que vai da lógica paroquial, passa pela lógica subjugada e imediata e segue até a lógica universalizante, conforme explica Tarson Núñez, pesquisador em Ciência Política da Fundação de Economia e Estatística (FEE). “O primeiro nível, e mais básico, é o da cultura paroquial que congrega o cidadão que só conhece os seus próprios problemas individuais e da sua localidade. O segundo nível, um pouco mais elaborado, apresenta uma cultura política subjugada, na qual o indivíduo não se restringe somente ao imediato e ainda orienta sua decisão política e os valores com base na hierarquia, em posição de submissão aos que governam. E o terceiro nível, mais aperfeiçoado, coloca o cidadão numa cultura política participativa e consciente. Este indivíduo é quem tem uma análise mais racional e conhece melhor o universo da política”, explica. Mem de Sá, em sua obra A Politização do Rio Grande do Sul, aponta que a formação da consciência política gaúcha é tomada pelas pessoas a partir das escolhas políticas de seus chefes, se tornando fiéis a isso e morrendo com esta convicção. Grijó analisa que, sob este ponto de vista de que abraçar uma ideia ou um partido é o suficiente para tornar as pessoas politizadas, não trair determinada filiação política por parte de governantes de tipo “caudilhesco” e “militaresco” bastaria para ser um cidadão de atividade política considerável, obedecendo assim o que for ordenado por algum político. Como o Rio Grande do Sul é “grenalizado”, as pessoas tendem a pensar que ele é politizado. A veemência na defesa de um lado ou de outro configura a identidade deste gaúcho. Outro indicativo é a cidadania que se relaciona com a politização a partir da objetividade do sistema de representativo, 134
ou seja, a percepção de que o mandante (cidadão) vota racionalmente nos mandatários (candidatos eleitos), durante o processo eleitoral. “Esta é uma ideia absolutamente fictícia, pois ninguém vota pensando apenas no interesse coletivo. Nem nos Estados Unidos, nem na Bélgica e nem na Noruega, que são países desenvolvidos”, observa Grijó. Quem enxerga que politização é pensar a coletividade e exercer sua cidadania constantemente tem maior compreensão política e mais instrução. Mas, infelizmente, nem toda a população tem a oportunidade de compreender este cenário desta forma. E isso não é culpa do povo. O sistema político é pensado para que as pessoas não enxerguem com clareza o que é plano de governo e o que é plano de Estado, por exemplo. “Os candidatos, que conhecem o jogo político muito bem, não têm interesse em esclarecer estas questões para a população, porque, de certa forma, isso os prejudicará. A relação destas pessoas com a política é votar em alguém que vai conseguir algo para elas. E a culpa é da pessoa que ela não pensa no coletivo? Não é! Porque aquele que está lá pedindo o voto para ela não tem o interesse de que o cidadão entenda melhor o coletivo”, explica Grijó. Ainda que a história explique boa parte da identidade vista como politizada do gaúcho, outros fatores – que dizem respeito à cultura política existente em terras sul-riograndenses – ajudam a compreender o significado contemporâneo das manifestações políticas. O cidadão gaúcho, que conta com uma herança coronelista, também é um sujeito colonizado. Imigrantes alemães e italianos que chegaram ao Rio Grande do Sul traziam consigo não somente a busca por um pedaço de terra, mas também a cultura do cooperativismo. É possível perceber que o cidadão rio-grandense não entenda politização como algo fundado apenas em ideologias partidárias. Ou seja, que exerça sua cidadania e envolva-se com o coletivo por meio da lógica paroquial para atingir o nível político universal. Desta forma, a mudança é estrutural e de caráter reformista. Entender o fenômeno também passa por um mergulho his135
a cultura da cooperação é observada desde a época da colonização portuguesa. Esse processo emergiu no Movimento Cooperativista Brasileiro surgido no final do século 19, estimulado por funcionários públicos, militares, profissionais liberais e operários.
tórico, em busca das raízes de alguns traços do comportamento político local. A cultura política gaúcha coronelista teve o início de sua configuração em meados do século 19. Reforçou-se em 1898, a partir da Primeira República, no período de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, porque o sistema brasileiro possibilitou uma maior autonomia das unidades federativas. “Neste mesmo período, os gaúchos – e, principalmente, quem se apresentava como liderança à frente do cenário político e econômico, isto é, a elite da região – percebia que o Estado estava a alguns passos atrás das outras regiões do Brasil”, conta Grijó. Dadas as suas especificidades, os gaúchos construíram, ao mesmo tempo, uma resistência e uma busca pela própria autonomia. A forma como a soberania é constituída no Rio Grande do Sul está fortemente associada a um autoritarismo que surge do governo e também da sociedade em geral. A expressiva atuação de líderes militares existentes, pelo fato de o Rio Grande do Sul ser uma região fronteiriça, além de palco de guerras e revoltas e apresentar peculiaridades quando comparado ao restante do Brasil, impulsionam esta tendência. O cenário político era sempre de enfrentamento. O ímpeto do gaúcho, sob a perspectiva dos comentaristas da corte, era sinônimo de barbárie. “Todo mundo, toda hora, brigando, se matando e se degolando, para eles, era coisa de bárbaro. Não era atitude de cidadão civilizado. No entanto, sob o ponto de vista que alguns rio-grandenses, como o político Assis Brasil, esta conduta era um distintivo de bravura, de destemor e de que o Rio Grande do Sul é uma espécie de baluarte da nacionalidade na região platina”, explica Grijó. A mitologia que se estabelece em torno da ideia do cidadão gaúcho politizado tem bases fortes na identidade construída no século 19 pelas camadas mais altas da sociedade e se consolida com outros fatos recorrentes e recentes. A polarização também é outro elemento que representa o processo identitário do gaúcho. A escolha do lado. Maragato ou chimango. Federalista ou 136
Republicano. Inter ou Grêmio – numa análise mais simplória e rasa. No entanto, Grijó diz que, historicamente, este fato abarca diversos aspectos e não se centra simplesmente em compreender dois lados. “As coisas jamais aconteceram desta forma. Elas são muito mais complexas. Elas tendem, sim, a se polarizar em momentos eleitorais acirrados ou de crise política, mas está não é uma característica específica do RS”, esclarece. A busca pela origem histórica deste processo perpassa, ainda, a Revolução Federalista. Em 1893, houve uma dissensão política, diz o cientista político Benedito Tadeu César. “Havia um embate muito forte entre uma visão liberal, oligárquica e a outra que busca centralizar tudo no Estado. Na República Velha, por exemplo, era o único Estado do Brasil onde existiam dois partidos políticos: Partido Republicano Gaúcho e o Partido Republicano Federalista”, explica. Ser um Estado de fronteira e mais periférico colocava o Rio Grande do Sul distante do poder e fazia com que o indivíduo pudesse manifestar aqui, mais publicamente, sua indignação com o governo. Segundo Núñez, o gaúcho podia expressar seus pensamentos contrários ao governo sem sofrer punição, pois muitos deles, inclusive, tinham terras em outros países fronteiriços com o Estado, podendo assim se refugiar. “Os inconfidentes em Minas Gerais são um exemplo de contestação aos chefes de Estado que mas foram presos por estarem no ‘centro’ do país”, pontua. Na época dos embates entre maragatos e chimangos, o envolvimento nas causas era compulsório. Núnez analisa que a história do Rio Grande do Sul se formou com base em conflitos políticos intensos, comparados aos outros Estados do Brasil. O que sempre houve foi uma tradição de participação política forte, porém desinformada. Ou seja, o peão estava lá na fazenda, e o fazendeiro convocava os seus subordinados às revoluções. Não era possível escolher um partido. Isto era feito pelo latifundiário. Ao peão restava apenas obedecer às ordens. “Isto não se relaciona com uma politização do indivíduo, mas com a 137
Maragatos eram revolucionário da revolução rio-grandense de 1923, adepto do partido liderado por Assis Brasil Os chimangos eram partidários DE Borges de Medeiros que estava a frente do Partido Republicano Riograndense.
natureza coronelista existente no Rio Grande do Sul, na qual as pessoas tomavam um lado, pois eram convocadas a fazer determinada função. Inclusive, alguns documentos comprovam que boa parte das pessoas se identificava pela cor do lenço, mas não sabiam o que queria dizer aquilo. Não tinham plena consciência pelo que estavam lutando”, pondera. O gaúcho está muito voltado para dentro do seu espaço. Em 1920, no entanto, o regionalismo era expresso de outra forma. Era pensado de dentro para fora. Grijó explica que as instituições políticas gaúchas – que eram compostas, em sua essência, pela elite – organizavam a política em partidos muito esclarecidos, com uma suposta fidelidade politica e partidária, lida como uma doutrina e não como uma ideologia. Para estes partidos, esta organização política pensada no Estado era diferente do Brasil e o país precisava deste mecanismo para o seu modo de fazer política ser efetivo. Riograndensizar. Este foi o termo utilizado por um estudante de Direito, que em um comício em 1920 disse que era preciso “riograndensizar” o Brasil. No momento em que essas palavras foram proferidas, elas causaram estranhamento até mesmo nos políticos presentes. Porém, no manifesto lançado pelo então presidente Getúlio Vargas durante a chamada Revolução de 1930, a ideia reaparece. No dia 4 de outubro, o texto foi publicado pelos principais jornais da Capital que se findava com a célebre frase: “Rio Grande, de pé, pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heroico!”. Esta colocação é uma releitura da ideia de politização existente em solo gaúcho e que reaparece mais tarde em outros discursos. Esta máxima funciona para reafirmar o exemplo de politização que o Estado apresentava. Políticos da atualidade reproduzem o discurso do confronto e da tomada de partido. “Aqui houve sempre – e muito mais – acirramento ao longo da história. Mas, em questão de politização, não enxergo o cidadão gaúcho lidando com a política de uma maneira diferente do país”, diz o deputado estadual Pedro Ruas (PSOL). Para ele, culturalmente, no Estado o povo é 138
“O povo oprimido e faminto. O regime representativo golpeado de morte, pela subversão do sufrágio popular... [...]Não foi em vão que o nosso Estado realizou o milagre da união sagrada. É preciso que cada um de seus filhos seja um soldado da grande causa. Rio Grande, de pé pelo Brasil! Não poderás falhar ao teu destino heróico!”. (trecho do discurso de getúlio Vargas”
diferente. A cultura é muito mais semelhante a dos uruguaios e argentinos, do que próxima do restante do Brasil. Aqui, no Rio Grande do Sul, há mais capacidade de confronto, e isto não estaria ligado à politização. “Não vejo que o nosso povo seja mais politizado. Acho que, inclusive, perdemos para os nossos vizinhos do Uruguai e da Argentina, porque há um grau muito maior de conscientização nesses países”, diz Ruas. No entanto, esta visão não se mostra unânime. O deputado estadual Gilmar Sossella (PDT), por exemplo, enxerga por outra perspectiva. “Não somos mais do que ninguém, mas somos diferentes. E por quê? Porque somos, sim, um povo politizado. Tivemos aqui governantes que se preocuparam com a educação do gaúcho”, aponta o parlamentar, fazendo alusão a Leonel de Moura Brizola, político gaúcho ligado às questões do trabalhismo e da educação. Ações de mobilização e que reivindiquem mudança parecem inerentes ao povo gaúcho. A história é capaz de explicar esta cultura. Somente aqui no Rio Grande do Sul é que se configurou – no período pós-ditadura e de surgimento do Partido dos Trabalhadores - uma intelectualidade militante. “O Rio Grande do Sul parece que não acompanha a mudança na estrutura social e não apresenta massa crítica operária. O PT, por exemplo, tinha força, mas era um partido de classe média comparado ao restante do Brasil. Não tinha uma base essencialmente operária”, pontua César. Desde 1980 – quando estes acontecimentos começaram a assumir dimensões consideráveis – iniciou-se o surgimento de uma militância cidadã. O engajamento brotava realmente do povo e não provinha das ordens da elite que comandava a revolução no século anterior. Coletivos, associações e fóruns são exemplos de ações desenvolvidas e que criam uma cultura de politização e cidadania, consequentemente. Não diferente de todo o Brasil, o Rio Grande do Sul paulatinamente foi se mostrando descrente com a conjuntura política tradicional. Entre as tantas consequências deste fato, existe algo explícito no com139
portamento das pessoas. O cidadão gaúcho politizado tem entendido um pouco mais sobre compreensão da postura cidadã. No entanto, a onda individualista do mundo globalizado traz confusão às ideias. No interior ou na Capital, a política foi sendo feita das mais variadas formas – mesmo o Rio Grande do Sul não sendo um Estado politizado e podendo ser facilmente lido como político. Nem todos os gaúchos exercem a própria cidadania, embora todos, em algum momento da vida, sejam convocados a votar. Política e politização são linhas paralelas. Para a obtenção do conceito pleno de politização, elas deveriam ser convergentes. No entanto, o processo político não precisa desta relação. Ele pode acontecer sem consciência e visão cidadã. Mas, quem é o personagem rio-grandense que vota e que é essencial neste contexto? Também é importante enxergar o tema a partir do envolvimento com as formas mais institucionais de se fazer pública, algo que se explicita a cada eleição. O eleitor gaúcho é uma mulher adulta e de Ensino Fundamental incompleto. No Rio Grande do Sul, 26% da população gaúcha votante tem entre 45 a 59 anos. Dentro deste grupo, se sobressaem as mulheres, representando 52%. Entre os dados educacionais, 36% dos votantes têm Ensino Fundamental incompleto, 19% Ensino Médio incompleto e apenas 5% têm Ensino Superior completo. O número de eleitores que estão compreendidos neste levantamento realizado em setembro de 2015 é de 8.392.033, segundo dados do Tribunal Regional Eleitoraldo Rio Grande do Sul. Ao discutir sobre escolhas políticas, há quem defenda a abstenção como uma expressão política, com base na ideia de que não votar representa uma forma de escolher. Nesta situação, de 2002 a 2014, os gaúchos sempre mantiveram a média de 15% de abstenção, o que, comparado a média nacional de 29%, é baixo. O contexto social e histórico pode até explicar a máxima por tantos sustentada, mas a figura do cidadão gaúcho politizado não é clara. Um tanto determinista. Por vezes, engajado. Crítico. Ora, inspirado em ideias e em discursos revolucionários. 140
Ora, ativo em obras reformistas. Aquele que almeja a educação, o trabalho e o cooperativismo. Leonel Brizola como exemplo. O garoto de 13 anos que defende o CTG como um partido. A jovem de 28 anos que nunca entendeu planos políticos semelhantes. A senhora de 50 anos que queria “um Brizola para mudar tudo o que está aí”. O rapaz anarquista de 30 anos que gere a horta comunitária de seu bairro. O senhor de 76 anos que se sente cidadão ao votar. O gaúcho politizado está em toda parte. Talvez, este personagem só não atenda às ideias convencionais.
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FUTURO AMEAÇADO Rodrigo Azevedo
No Rio Grande do Sul, Estado que sempre valorizou o ingresso na carreira pública, ainda vale a pena ser um servidor? Essa questão fica no ar – e lateja na cabeça dos concurseiros gaúchos. Talvez o ponto de inflexão da quase unânime ideia de que a carreira pública é a saída esteja na linha torta que a previdência gaúcha traçou nos últimos anos, quando se tornou insustentável. Razões não faltam: má gestão, falta de planejamento e (por incrível que pareça) imprevidência. Um paradoxo. Ou o Estado planeja, e coloca os pés no chão. Ou a situação vai passar do fundo do poço – se é que já não passou.
O
Rio Grande do Sul, de acordo com os dados mais atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é o quinto Estado brasileiro com a maior taxa de expectativa de vida. Do Mampituba para baixo, as mulheres vivem, em média, pouco mais de 80 anos. Entre os homens, o número diminui um pouco, mas ainda pode ser considerado alto em relação aos dados nacionais. Enquanto no Brasil os habitantes de sexo masculino vivem, em média, 70 anos, os gaúchos estendem essa idade por mais três. Confrontados com os números divulgados em 1980, os dados mostram que ambos os sexos, hoje, estendem o período de vida em oito anos. As pesquisas de longevidade atestam que o Rio Grande do Sul – e o Brasil, em alguns Estados – entre outros predicados, é um celeiro de qualidade de vida. Constatação que pode ser considerada um ponto altamente positivo. Mas os dados também servem de alerta para outra questão que gera polêmica há muitos anos: o sistema previdenciário. Aqui, a situação financeira é um engodo administrativo há pelo menos 20 anos. E o caos do caixa estadual tem impactado diretamente nos aposentados. Mais do que isso: na gestão dos recursos destinados a eles. A dramaticidade do cenário é tamanha que tem afastado jovens da tentativa de ingressar na carreira pública. Um exemplo disso é Pedro Flores da Cunha, advogado de 29 anos, morador da Capital. Depois de graduado, ele decidiu que estudaria para um concurso público: queria ser, de uma vez por todas, funcionário público. Estabilidade, garantia de recebimento do salário em dia, 13º, plano de saúde, todos esses elementos que formam o esqueleto dos benefícios de se tornar um servidor do Estado pairavam nos pensamentos de Cunha – e pesavam bastante na decisão. Mas sua ideia de futuro mudou de forma abrupta em abril de 2015, quando o governador José Ivo Sartori (PMDB) anunciou um pacote de mudanças nos benefícios dos funcionários públicos e, no mês seguinte, passou a parcelar salários dos servidores. “Aquilo, para mim, foi um ba143
que. Focava meus estudos nos concursos estaduais, porque não tenho a intenção de sair do Rio Grande do Sul. Mas as últimas mudanças, principalmente a aprovação da previdência complementar, me fizeram repensar tudo” admite Cunha. Em agosto de 2015, a Assembleia Legislativa aprovou o projeto de Previdência Complementar, que estava no conjunto de medidas de diminuição de gastos do governo Sartori. O novo modelo é, para muitos especialistas, um ótimo negócio para os cofres do Estado, mas péssimo para o servidor. Todos os funcionários que ingressarem na carreira pública a partir da data de sanção da lei irão se enquadrar no novo sistema, que prevê um teto de salário para o aposentado – mesmo valor do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS): R$ 4,527,00. A porcentagem de contribuição mensal permanece a mesma, de 13,25% (com contrapartida igual do Estado). O servidor que não se contentar com o valor poderá abrir um plano de previdência complementar junto à nova estatal criada pelo governo, a RS-Previ, voltada exclusivamente para a gestão dos recursos e sem envolvimento com o mercado. O RS-Previ irá cuidar somente dos planos dos servidores públicos gaúchos. “Foi uma decepção para mim. Já estava com um pé atrás de me tornar servidor do Estado por vários motivos. Agora, com a perda da aposentadoria quase integral, vou voltar a procurar emprego no meio privado”, planeja Cunha, que diminuiu seu ritmo de estudos e passou a enviar currículos para escritórios de advocacia. Em um Estado antigo, que tem no embrião a cultura da valorização do trabalho do servidor público e que historicamente incentivou o ingresso na carreira estadual, a sustentabilidade financeira da previdência foi se deteriorando ao longo do tempo. O quadro, ainda longe de ser o ideal, caminha a passos lentos no percurso de uma possível recuperação. Em 2014, a falta de recursos no cofre dos aposentados e pensionistas gaúchos ultrapassou os R$ 5 bilhões. Para sanar esse déficit, o Estado foi obrigado a repassar dinheiro do caixa único para a previdência 144
Em 2014, a falta de recursos no cofre dos aposentados e pensionistas gaúchos ultrapassou os R$ 5 bilhões. Para sanar esse déficit, o Estado foi obrigado a usar dinheiro do caixa único.
– prática que vem ocorrendo há 15 anos. Também em 2014, 54% da despesa com pessoal foi direcionada para funcionários inativos. O maior percentual entre todos os Estados brasileiros. Os números negativos explicam a razão do problema: hoje, o Estado tem 20 mil aposentados a mais do que servidores na atividade. O descompasso acumula explicações, mas a principal recai sobre o modelo previdenciário que operou até 2011. O Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) tem a seguinte lógica: o que o ativo paga de aposentadoria, descontado na folha salarial, vai para o pagamento do inativo e pensionista de hoje. Em um Estado no qual o número de pessoas que se aposentam é maior do que a entrada de funcionários, o sistema se torna inviável. Para um futuro próximo, os estudos atuariais do Instituto de Previdência do Rio Grande do Sul (IPE-RS) não são animadores: o prognóstico é de que o buraco financeiro nas contas seja zerado somente em 2024. Outro erro de modelagem do sistema RPPS é não ter levado em consideração o crescimento da expectativa de vida no país. De acordo com a legislação do RPPS, todo o funcionário público tem direito a receber aposentadoria do Estado, até o fim de sua vida, com o salário integral. E o balizador do valor final a ser pago após a sua retirada é a quantia recebida no último contra-cheque, geralmente, o salário mais alto ao longo de toda a carreira. A medida, benéfica para o estatutário público, é tiro no pé para o Estado. No entanto, o diretor de Previdência do IPE-RS, Ari Lovera, tem convicção de que está provado, com pesquisas de projeção, que o modelo é insustentável. “O Estado vai continuar colocando dinheiro na previdência por muito tempo. Para isso não continuar, deveria se buscar fontes alternativas de recursos para suprir o déficit, que hoje é muito alto”, assinala Lovera. Segundo Lovera, o modelo, embora tenha sido extinto em 2011, continua sendo o que que mais tem adesões. De acordo com cálculos do IPE-RS, esse sistema irá demandar recursos do Estado por mais de 80 anos, aproximadamente. Kátia Moraes, 145
De acordo com a legislação do RPPS, todo o funcionário público tem direito a receber aposentadoria do Estado, até o fim de sua vida, com o salário integral.
presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Aposentados e Pensionistas do RS (Sinapers), defende que o Estado acumulou esse alto déficit por ter destinado incorretamente o dinheiro de contribuição dos funcionários. Para ela, a verba recolhida dos servidores nem sempre rumava para o lugar que deveria: os cofres da previdência. Na maioria das vezes, o recurso caia no caixa único e cobria outras despesas, ou, ainda, era usado para pagar a dívida com a União. “O Estado nunca efetivou a formação de fundos previdenciários capitalizados, pelo contrário, com a sociedade, priorizou a destinação destes recursos para outros fins que não o de acúmulo para pagar os benefícios futuros”, afirma. Os famigerados problemas estruturais do Estado, sem dúvida, prejudicam o equilíbrio da previdência. Mas o Estado sofre com outro defeito: a falta – ou o pouquíssimo – debate sobre questões de alta relevância. Kátia reclama da intransigência dos governos que comandaram o Estado e afirma que, até hoje, não ocorreu uma discussão democrática a respeito da previdência. “As entidades representativas dos servidores estaduais nunca foram ouvidas e muito menos houve uma discussão sobre a previdência pública em alto nível, abrangendo a sociedade, o governo, os poderes, os órgãos e os servidores. Pelo contrário.”. Thiago Felker, pesquisador que se debruça sobre cálculos previdenciários na Fundação de Economia e Estatística (FEE), diz que, até 1998, nem todo funcionário público era obrigado a pagar a taxa de aposentadoria durante a prestação de serviço público. Mesmo não contribuindo, porém, todo o servidor tinha como direito receber a quantia quando deixasse a repartição pública. “Não havia nenhuma previsão do que poderia acontecer no futuro. Muitos trabalhadores do Estado sequer contribuíam para a previdência. E isso durou muitos anos. Parte do alto déficit que pagamos hoje vem dessa desorganização e da falta de planejamento lá no começo da vida pública”, reflete Felker. Em 2004, uma modificação importante ocorreu no mecanismo previdenciário gaúcho. A fim de acabar com as incon146
Até 1998, nem todo funcionário público era obrigado a pagar a taxa de aposentadoria durante a prestação de serviço público.
sistências financeiras nas aposentadorias, o governo estadual aprovou, na Assembleia Legislativa, a Emenda 41. O modelo vigente continuou sendo o RPPS, mas o projeto aumentou a alíquota de contribuição do servidor – antes de 9% – para 11%. Além da elevação do valor arrecadado, que tinha contrapartida igual do Estado (somando 22% de contribuição), a proposta definiu uma mudança no valor a ser recebido quando da aposentadoria. Foi criado um cálculo que considerava a média dos salários recebidos ao longo da carreira pública. A cifra obtida desta equação seria o valor pago pelo Estado para o funcionário inativo, e isso aliviaria o gasto com a previdência. Auditor fiscal e especialista em contas públicas, Darcy Francisco dos Santos defende que o RPPS é inviável há mais de 15 anos. Para ele, a mudança de 2004 foi importante, mas, como o rombo já era gigantesco, os efeitos positivos são quase imperceptíveis. “Esse modelo (o RPPS) apresenta um problema estrutural: o crescimento maior do número de beneficiários do que o de contribuintes. Ele, na verdade, só deveria ser utilizado nos sistemas que tenham alcançado um Estado estacionário, que não tivesse mais contratações. Com as alterações de 2004, a situação melhorou muito pouco”, explica Santos. Autor do livro O RS tem Saída?, Santos revela um estudo técnico assustador: conforme a pesquisa feita por ele, se o Estado deixasse de admitir pessoal hoje – o que é uma utopia – o déficit previdenciário só seria zerado em 2023. É um prognóstico bem diferente da projeção feita pelo IPE-RS, que prevê estancamento a partir de 2024, levando em consideração o ritmo normal de contratação. Conforme a pesquisa de Santos, a cada R$ 100 que é gasto com ativo, são pagos R$ 150 a inativos. “Os inativos crescem 5% ao ano. O inativo, quando cresce, não gera despesa para o Estado, só muda de lado”, enfatiza o auditor. Para Kátia, no entanto, foi em 2011 que o Rio Grande do Sul deu um passo muito importante para solucionar o impasse. A partir daquele ano, em 15 de julho de 2011, todo funcionário que ingressou na carreira pública passou a contribuir com 147
A fim de acabar com as inconsistências financeiras nas aposentadorias, o governo estadual aprovou, na Assembleia Legislativa, a Emenda 41.
13,25% (com contrapartida igual do Estado) para um novo fundo previdenciário civil e um militar, ambos chamados de Fundoprev. É o que, tecnicamente, se chama de segregação de massas. Com rendimento capitalizado, o fundo inverteu o processo do RPPS. A lógica do Fundoprev é a de que o servidor de hoje paga a sua própria aposentadoria lá adiante. Até o mês de setembro de 2015, a nova conta acumulava contribuições de cerca de 21 mil servidores. De acordo com Kátia, até agosto de 2015, o fundo acumulou R$ 400 milhões – cifra que, segundo o Sinapers, já comprova uma sustentação financeira do novo sistema. “Estes recursos dos fundos, apesar do pouco tempo de existência, já estão desonerando o Estado, já estão sendo pagos os proventos a seis pensionistas de segurados falecidos que estavam vinculados aos mesmos”, explica. Os estudos de Felker, porém, mostram que o Fundoprev pode causar mais adiante o mesmo problema que o RPPS gerou: a insustentabilidade financeira. De acordo com o documento Previdência Estadual: o Fundoprev como Solução?, o fundo, entre agosto de 2012 e 2013, teve rendimento negativo. Segundo o economista, isso não é um indicativo de que vá ocorrer desvalorização sistemática do fundo, mas o retrocesso deste ano é motivo para ficar alerta em relação a sua gestão. Os recursos do fundo estão espalhados por 26 fundos de investimento, alguns deles de renda fixa e outros de renda variável. Os nomes dos bancos e dos fundos, porém, não são divulgados pelo IPE-RS. O estudo de Felker aponta que o cerne da construção do Fundoprev reside na capitalização dos recursos. Entre janeiro de 2012 e agosto de 2013, o rendimento das aplicações foi negativo em R$ 865.163,00, segundo dados do IPE-RS, de 2013. Sabe-se que o mercado financeiro está sujeito a oscilações, mas o mau desempenho das aplicações em 2012 e 2013 deve chamar atenção dos administradores para melhorias na alocação dos recursos. “É muito cedo para tirar qualquer conclusão do Fundoprev, ele ainda é muito recente, mas é preciso ficar atento 148
O Fundoprev pode causar mais adiante o mesmo problema que o RPPS gerou: a insustentabilidade financeira.
aos seus rendimentos e, por enquanto, alguns períodos não são satisfatórios”, alerta.
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UM ESTADO DE RACISMO
Nathalia Gomes
Três pessoas, em média, são vítimas de racismo em terras gaúchas, a cada semana. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, dos casos de preconceito registrados nos últimos 13 anos, 2.104 envolvem negros. Estes números colocam em xeque a ideia de um Estado tolerante.
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As interpretações desenvolvidas neste trabalho sobre as condições de existência social do escravo confirmam e ampliam os resultados conhecidos sociologicamente sobre a situação do negro na sociedade brasileira de castas. Em todos os sistemas de convivência social que os escravos participaram no Rio Grande do Sul, sua condição básica definiu-se pela alienação social das qualidades de pessoa humana. A definição do escravo como um objeto e a incapacidade do escravo realizar socialmente desígnios seus, ou de sequer concebê-los, marcam a situação social dos escravos”, escreveu Fernando Henrique Cardoso em sua tese de doutorado, publicada em livro, em 1962. Mais de 50 anos depois da constatação do ex-presidente em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul, ataques à condição humana dos negros ainda persistem no Estado que se proclama tolerante. É o que mostra a história de Suzete Nunes, 50 anos. Ela, que por 23 anos sofreu com ofensas de uma família vizinha no condomínio onde morava com as duas filhas em Porto Alegre, demorou para fazer a denúncia. Suzete via o lixo ser despejado na porta de casa todos os dias e ouvia xingamentos pela cor da pele. As ofensas pararam quando a agressora adoeceu. Em 2010, os netos da vizinha voltaram a fazer piadas. Suzete passou a registrar ocorrência policial a cada novo ato de racismo. Dois anos depois, o filho da vizinha agrediu fisicamente uma das filhas de Suzete, Gabriele Nunes, hoje com 27 anos. Foi esta situação que desencadeou um processo na Justiça. A filha conta que os vizinhos não aceitavam o fato de que a família dela era mais organizada, mais estruturada e tinha carros e roupas melhores. “Isso incomodava, irritava, porque na mente de racista as pessoas negras são inferiores”, declara Suzete. Para ela, a implantação de novas leis está mudando o cenário, como no caso das cotas, que dá uma oportunidade para mais negros entrarem nas universidades públicas. “Ne151
cessitamos de mais exemplos de médicos, advogados, políticos, professores, enfermeiros, artistas, seja o que for, mostrando que são capazes. Para que os jovens tenham espelhos bons, e não só os de sempre, os estereótipos do negro pobre e bandido-marginalizado”, conta. E é, justamente, esta atitude de brancos excluírem os negros por se sentirem ameaçados que o sociólogo especialista em história da imigração, racismo, identidades étnicas e violência Karl Martin Monsma explica: “Os incidentes de racismo abertos tendem a aumentar nas épocas em que os negros estão progredindo. Como por exemplo, entrando no Ensino Superior, por meio de cotas, em cursos elitizados como Medicina e Direito. Por quê? Porque esses negros estão invadindo o espaço dos brancos, eles acreditam que não merecem estar onde estão. E então se usa a violência para recolocar essas pessoas no seu lugar”. Suzete e as filhas ganharam uma ação na Justiça contra o filho da vizinha. Ele foi condenado à prisão no regime semi-aberto. “Alívio foi a nossa primeira sensação. Depois, justiça. Foi difícil entender o que aconteceu durante anos. Foi racismo. Até a nossa família não entendia. Como minha mãe é adotada, meus primos, tios e meus avós são todos brancos de origem italiana. Ninguém entendia o porquê dos xingamentos e que isso era racismo”, conta Gabriela. “As pessoas que não sofrem racismo nunca vão sentir essa sensação de inércia, de raiva, de tudo misturado. Mas nós sabemos o que é esse sentimento amargo e que o racismo está nas palavras, nas atitudes e, até mesmo, em um olhar. Quem sofre racismo sente esse ódio, essa indiferença gratuita em qualquer situação do seu dia”, conclui Gabriela. O caso da família de Suzete foi à Justiça após muita insistência, mas histórias como esta não são raras. O Rio Grande do Sul chega a ter, em média, três vítimas de racismo a cada semana. Um número que, segundo ativistas e vítimas, pode ser considerado alto, mas que não se aproxima dos casos que acontecem e não são registrados. Segundo a Secretaria de Segurança Pú152
blica, 72,5% das denúncias de vítimas de preconceito por raça, cor, etnia ou nacionalidade no Rio Grande do Sul envolvem pessoas negras. Em 13 anos, dos 2.902 fatos denunciados, 2.104 têm como vítimas os negros. Desses números, 52% são homens entre 35 e 39 anos. Entre as mulheres, é dos 18 aos 24 anos. Para Monsma, o preconceito racial no Brasil não ocorre só pela cor da pele. Ele se soma a outros fatores, como a condição social e, em alguns casos, a orientação sexual. Um exemplo disso é um negro de classe média que é barrado no banco ou parado pela polícia por, supostamente, estar fora do seu lugar na sociedade. “Se tem dinheiro, deve ser traficante. Em geral, tem certa flexibilidade, tem tolerância para casos específicos e muito preconceito em outros casos. O indivíduo é uma combinação de características, e ser negro é só uma delas. Todos que agem de forma racista tendem a perceber esses traços em conjunto. E até devem caracterizar certos negros como sendo menos negros por tais aspectos”, explica. Outra vítima de atos racistas foi o comentarista de arbitragem da RBS TV Marcio Chagas da Silva, que protagonizou um dos episódios recentes divulgados pela mídia. Ele sofreu xingamentos – como “macaco safado” – durante quase todo o jogo que apitava, entre Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves, em 2014. Após as agressões verbais, encontrou seu carro amassado, arranhado e com bananas no capô e no teto. Ele já havia passado por duas situações semelhantes: em 2005, em Caxias do Sul, com o treinador da equipe do Encantado, Nestor Mior, e no ano seguinte, na Capital, com o goleiro do Cruzeiro de Porto Alegre. “Todo negro já passou por algum tipo de preconceito na vida. Passei por isso na minha vida pessoal e profissional. Lido de forma racional para não agir por impulso e perder a razão, mas confesso que é um processo bem difícil”, conta Marcio. Ao contrário do que aconteceu com Suzete, as ações preconceituosas feitas contra Chagas não resultaram em prisão. O Esportivo perdeu cinco mandos de campo e sofreu multa de 153
O Rio Grande do Sul chega a ter em média três pessoas vítimas de racismo a cada semana.
R$ 30 mil. No segundo julgamento, a equipe foi punida com a perda de nove pontos e, consequentemente, a queda para a segunda divisão. Mas, para Marcio, a punição deveria ter sido maior. “A sensação de ver o clube punido foi um misto: vitória, por ter valido a pena ir até o fim da denúncia. E derrota, por ter passado por tudo e não ter tido o mínimo de apoio da entidade a qual eu representava”, pondera. Chagas não está sozinho ao lamentar a impunidade. Segundo Monsma, a falta de punição é um fator de estímulo aos atos de racismo e não adianta acreditar que apenas a Justiça será capaz de solucionar estas questões. Conforme ele, deveria haver um líder político que liderasse uma tomada de consciência capaz de inibir novos casos. Prefeitos e governadores precisam condenar publicamente esses casos. “Quando falamos de violência contra os negros é comum a polícia atuar de maneira racista, com violência contra os jovens negros. Passa uma mensagem à população de que é legitimo, que negros são subumanos e que não merecem o mesmo respeito das outras pessoas. É o próprio Estado que ensina aos brancos”, esclarece. O caso de Bento Gonçalves não é novidade no meio esportivo. Segundo o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol, que utiliza a mídia nacional e internacional para coleta de dados, o Rio Grande do Sul lidera a lista de Estados que mais sofreram com racismo. O resultado aponta que, em 2014, 20 casos assombraram o futebol brasileiro. Destes, 25% aconteceram em solo gaúcho. “O Brasil é um país racista que não reconhece o valor do povo africano. Infelizmente, o problema é histórico e só com educação e boa vontade haverá mudança e conscientização de que somos diferentes, mas o respeito deve prevalecer acima de tudo”, conclui Chagas. Os dois casos citados aconteceram no Rio Grande do Sul, Estado onde os negros estão em minoria. No Brasil, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, a população de pardos e negros é considerada a maioria, chegando a 50,7%. Já no Rio Grande do Sul, os números 154
A falta de punição é um fator de estímulo aos atos de racismo e não adianta acreditar que apenas a Justiça será capaz de solucionar estas questões.
indicam 16,1%. Para Sergio Nunes, Coordenador de Igualdade Étnica Racial da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos, talvez seja em função desse número ser mais baixo no Estado e que esse tipo de preconceito aconteça. “O Rio Grande do Sul é extremamente racista. Participei de uma mesa em Garibaldi e as pessoas se declaravam racistas. Racismo é cultural, desde a construção do nosso país. O Estado brasileiro decidiu que era racista desde que contratou aqueles navios para virem da África, uma mão de obra escrava. Na medida em que uma etnia tem o poder sobre a outra, acaba gerando um preconceito. O gaúcho é extremamente racista em função da nossa colonização”, afirma. Não ser racista é diferente de ser tolerante. Conforme Nunes, racismo e tolerância não são iguais. “O racismo é uma coisa, a tolerância é outra. Um exemplo é a cidade de Dois Irmãos, onde somente 2% da população é negra, mas a prefeita de lá é negra. Então, daí vem a tolerância. Somos tolerantes sim, mas ainda somos racistas, uma coisa não tira a outra”, declara. Já para o sociólogo Karl Monsma, a tolerância no Rio Grande do Sul é um mito, primeiro por ter uma imagem de que o Estado em geral é branco e não ter populações negra e indígena expressivas. “O Rio Grande foi um dos principais Estados escravistas. Então, os negros estão aqui desde a época da escravidão. Especialmente, nas grandes cidades, em Pelotas e Porto Alegre. O maior mito do Estado é que boa parte dos campeiros eram escravos. Há uma imagem da história que falta que é a do gaúcho livre. Eles não eram livres eram escravos”, afirma. O sociólogo acredita que o Rio Grande do Sul é um Estado racista como todo o Brasil, mas sua a natureza é um pouco diferente dos outros. Os negros no Sul enfrentam um racismo mais escancarado, por causa da grande maioria da população branca, de origem alemã e italiana, deixando a entender que toda população gaúcha é branca e que os negros não têm o seu lugar aqui.
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“Quando falamos de violência contra os negros é comum a polícia atuar de maneira racista, usando a violência contra os jovens negros”. Karl Monsma, sociólogo.
O MEDO MORA AQUI
Manuela Kuhn
Nos últimos anos, os gaúchos passaram a conviver com a criminalidade crescente. São inúmeros os casos de pessoas que perderam familiares por causa da violência. Para especialistas, a falta de atuação dos órgãos competentes está na raiz da transformação do cenário.
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Estado politizado e seguro, idealizado por quem vive distante do Rio Grande do Sul, sucumbe quando são revelados os índices atuais relacionados à segurança. Porto Alegre é o maior exemplo: a taxa de homicídios é quatro vezes maior do que a de São Paulo e duas vezes maior que a do Rio de Janeiro. No primeiro semestre de 2015, o número de homicídios na capital gaúcha foi de 19,7 casos para cada 100 mil habitantes. No mesmo período, a taxa foi de 9,7 no Rio de Janeiro, e 4,4 em São Paulo. Os dados mostram que o índice de homicídios no Estado é maior do que há dez anos. Segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública, em 2005 o Rio Grande do Sul teve 1.391 homicídios durante os 12 meses. Em 2015, somente no primeiro semestre, foram 1.187 casos. No topo da lista está Porto Alegre, com 290 homicídios registrados, seguida por Alvorada, na Região Metropolitana, com 62. E o que explica tanta violência? Para o mestre em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Francisco Amorim o aumento na criminalidade ocorreu, principalmente, pelo avanço do crime organizado em torno do tráfico de entorpecentes e pela superlotação nos presídios. “Parte dos crimes contra a vida e contra o patrimônio está relacionada à rede criada e mantida na ilegalidade. Muitas vezes, são crimes instrumentalizados pelos traficantes. Outra questão importante é a superlotação do sistema prisional por conta de uma política fracassada de combate ao tráfico de drogas e aos pequenos delitos. Cadeias superlotadas abrem espaço para o fortalecimento de facções criminosas, que acabam controlando de dentro das celas muitas das atividades criminais fora delas”, afirma. Para Amorim, a assimetria social ainda é muito grande. Ele também sustenta a falta de atuação do Estado em algumas regiões: “Onde o Estado não está presente, com saúde e educação, com verdadeira inclusão social, outras forças podem assumir o espaço, como quadrilhas envolvendo atividades delitivas”. O jornalista Renato Dorneles, repórter de polícia do jor157
nal Diário Gaúcho, observa que a violência no Estado começou a crescer a partir da década de 1990, quando o tráfico de drogas se consolidou como o principal crime. “Os homicídios crescem na medida em que a guerra por pontos de tráfico lucrativos se intensifica e assaltos passam a se tornar suporte financeiro ao tráfico”, explica. Assim como Amorim, Dorneles também chama atenção para a organização do crime que se estabelece em presídios superlotados e faz com que líderes passem a ordenar crimes praticados dentro e fora dos presídios. Para ele, o desaparelhamento das polícias que ocorre no Estado faz com que a violência só aumente: “Além de o Estado não ocupar o seu espaço nas periferias das grandes cidades e nos presídios, entre outros lugares, permitindo que o crime viceje nestes locais, a falta de polícias dotadas de equipamentos e treinamentos necessários faz com que o crime se organize e fortifique cada vez mais”. Na visão de Amorim, a violência que se percebe no Rio Grande do Sul não está apenas nas ruas. ”A sociedade parece estar mais intolerante e violenta em sua vida cotidiana. Há linchamentos físicos e simbólicos todos os dias no Brasil”, afirma. Foi este cotidiano violento, destacado por quem acompanha a questão da segurança, que pode ter levado à morte Ronei Faleiro Junior, 17 anos, em Charqueadas, a 58 km de Porto Alegre, em 1º de agosto de 2015, após ser agredido por um grupo de jovens na saída de uma festa. Na casa onde vivia com a família, o quarto ainda está intacto. Do mesmo jeito que ele deixou quando saiu pela última vez. O sorriso e a alegria de viver do único filho agora só podem ser relembrados por fotografias. O pai, o engenheiro Ronei Faleiro, 48 anos, ainda recorda de cada detalhe da madrugada daquele sábado. Para ele, é difícil passar um dia sem pensar nas agressões sofridas por Ronei Junior e que tiraram a vida do jovem. “Era meu único filho, minha razão de viver. Era um jovem cheio de vida, com planos, expectativas, que se formaria no final do ano. Ele sonhava em ser engenheiro, estava ansioso pelo 158
“Os homicídios crescem na medida em que a guerra por pontos de tráfico lucrativos se intensifica e assaltos passam a se tornar suporte financeiro ao tráfico”. Renato Dorneles, jornalista.
vestibular. A ausência dele não vai terminar até o último dia de nossas vidas. No início, a dor é muito forte. Aí vem a saudade que traz tristeza, que não acaba mais”. Acompanhado de dois amigos, o adolescente foi a uma festa no Clube Tiradentes, em um ginásio de Charqueadas. O objetivo era arrecadar fundos para a festa de formatura que ocorreria no final do ano. “Ele era um dos organizadores da festa. Foi a primeira festa aberta ao público que o Ronei frequentou. Ficamos a noite toda conversando por mensagem, pedindo se estava tudo bem. Deixamos combinado que às 5h eu buscaria. Quando cheguei, ele pediu para eu esperar uns 15 minutos para dar carona pra um casal de amigos. Aí ele demorou, e fui buscar. Desci do carro, e foi aí que nos atacaram”, relata o pai. Faleiro, o filho e o casal de amigos foram atacados por um grupo formado por nove adultos e sete adolescentes que pertencem a um chamado “bonde”, que repudia e agride pessoas que não são de Charqueadas. O grupo atingiu Ronei Júnior com garrafadas na região da cabeça, que provocaram traumatismo craniano. Os envolvidos compartilharam o crime em grupos do Whatsapp, numa espécie de comemoração pelas agressões. A responsabilização dos nove adultos e sete menores pelo fato não diminui a dor do pai do jovem assassinado. Ele conta que, na primeira audiência do caso, ficou lado a lado com as mães dos menores que agrediram seu filho, mas nenhuma chegou a conversar ou trocar olhar com ele. “Nunca procurei saber quem são as famílias dos 16 envolvidos. Só penso que eles poderão ver seus filhos dentro de casa novamente, passar o Natal com eles, final de ano. E eu e minha esposa perdemos nosso único filho. Desde o que aconteceu, ela não saiu mais de casa, parou de trabalhar, passa os dias em casa. Para dormir precisa ficar sedada ou tem crises de choro e depressão. Perdemos a razão de tudo que a gente fez até então”, lamenta. O engenheiro tenta, aos poucos, voltar à rotina na empresa onde trabalha e afirma não estar preparado para perdoar: “Acho que perdão é uma palavra muito forte. Perguntaria a eles se per159
“Perdemos a razão de tudo que a gente fez até então”. Ronei Faleiro, engenheiro
doam a si mesmos por tudo o que causaram. A gente perdoa por erros menores. Um erro que leva um jovem cheio de vida, e que não saía para causar mal algum, é outra coisa”, desabafa. Na opinião de Amorim, colocar a polícia nas ruas poderia ser uma alternativa para reduzir os homicídios. “O caminho passa por aproximar a polícia dos cidadãos. Uma polícia comunitária de verdade reduz crimes na rua e auxilia no combate à violência doméstica, outra causa de mortes no Estado”, acredita. Com a falta de uma polícia comunitária, comunidades de bairros de Porto Alegre encontraram outra alternativa para lidar com a situação. Por meio de páginas em redes sociais, os moradores se avisam sobre assaltos e compartilham pedidos de ajuda. O morador do Bairro Cefer Fabiano Ocácia é o idealizador da página Cefer Urgente, que tem como objetivo reunir nas redes sociais a comunidade da região. “Queria um mural de informações para que pessoas se identificassem e se ajudassem. A ideia era colocar a comunidade para interagir, informações sobre suspeitos, questão de assaltos no bairro e no transporte coletivo, tudo isso”, ilustra. Na página Sarandi Urgente, outra criada por um morador que prefere manter a identidade em sigilo por questões de segurança, são mais de 13 mil acessos diários nas postagens. Entre elas, estão dicas como a de um morador que aconselha a “sair para rua quando necessário, botar cachorro/cerca elétrica em casa, não andar de noite na rua e andar sempre acompanhado”. Fabiano afirma que tem algumas questões que envolvem a criminalidade no Bairro Cefer com as quais ele não se envolve. “Não me meto com o tráfico. Se tem ou não, prefiro não comentar. Andei batendo em batalhões para fazer rondas ostensivas aqui no bairro. Não quero ser metralhado, só quero ajudar a resolver o problema de segurança pública. ”, explica o líder comunitário. A Secretaria da Segurança Pública do Estado afirma que desenvolve projetos para conter a criminalidade. Porém, alega que os dois principais não foram colocados em prática por causa da 160
crise financeira no Rio Grande do Sul. Uma das iniciativas seria elaborar um plano estadual de segurança pública envolvendo as áreas de inteligência policial e a criação de um programa de redução da criminalidade. Outra ação ainda não desenvolvida é criar um plano específico para os 191 municípios que compõe a fronteira do Rio Grande do Sul. Para reforçar o policiamento ostensivo nos bairros da capital gaúcha, a Secretaria criou a Força Tática. Entre 100 e 300 homens auxiliam no trabalho da polícia militar. O objetivo é atuar na prevenção e repressão de delitos, a partir dos indicadores estabelecidos pelo órgão. O grupo patrulha áreas conflagradas e aborda pedestres, veículos e coletivos. Mas para a família de Elvino Nunes Adamczuk, 49 anos, dono da tradicional Padaria da Getúlio, no Bairro Menino Deus, em Porto Alegre, as ações que o Estado afirma ter colocado em prática não foram suficientes. Adamczuk morreu em setembro de 2015 depois de ser atingido por uma bala perdida durante um tiroteio entre assaltantes e policiais militares e ficar internado três dias numa UTI. Ele passeava com os cachorros na região onde mora. O filho da vítima, Wagner Adamczuk, resume a dor e a esperança por Justiça em poucas palavras: “Tento não pensar no que aconteceu para não sofrer mais. Cada dia é um sentimento diferente que a gente sente. Não tem como explicar. Quero que sejam punidos o quanto antes. A dor não acaba nunca”, desabafa. Dias após a morte do comerciante, habitantes do bairro, amigos e clientes da padaria fizeram uma caminhada pelas ruas do Menino Deus para pedir Justiça. Moradores de rua que, todos os dias, faziam fila em frente à padaria para ganhar comida entregaram uma carta à família agradecendo e desejando que Elvino descanse em paz.
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gaúchxs
Maicon Hinrichsen
O gaúcho é moderno, vive no século 21 como os demais habitantes da República Federativa do Brasil. É homo, hétero, bissexual. Branco, negro, mulato. É rico e pobre. Diverso, tecnológico. Para uns, um gaúcho de verdade é o que está armado em sua indumentária peculiar, sob a sombra do chapéu, tomando daquela água verde em recipiente de porongo e vestindo as botas que um dia trilharam o caminho da revolução. Chamar de gaúcho só quem honra a tradição é a forma mais doce de maquiar os mesmos preconceitos e conservadorismos de séculos passados e de impedir que o progresso se estabeleça.
Ficha técnica Câmera Fotográfica: Canon EOS 7D Lente: Canon EF-S 24-105mm f/4 Canon EF 50mm f/1.8 II
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Esta publicação foi impressa na gráfica Epecê com papel pólen soft 80 gramas e couché brilho 115 gramas.
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