E-Book Anjos De Jaleco: a rotina dos profissionais de Saúde no combate à Covid-19

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ANJOS DE JALECO: A ROTINA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE NO COMBATE À COVID-19

Nathalie Piton



Nathalie Piton

ANJOS DE JALECO: A ROTINA DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE NO COMBATE À COVID-19



Agradecimentos Agradeço a Deus pelo dom da vida, ao Espírito Santo por me guiar, aos anjos da guarda por sempre me protegerem e à Maria, mãe de Deus, por me acolher debaixo do seu manto. Agradeço aos meus pais, Wilson Roberto e Joselice Piton, por acreditarem em mim e nos meus sonhos, também por cada esforço investido na minha educação. Às minhas irmãs Williane Piton e Thamyris Piton, pelo incentivo na escolha do curso. E a todos da família Piton e Ribeiro pelas energias positivas lançadas durante esses quatro anos. A faculdade nos proporciona momentos incríveis e inesquecíveis, e nesses anos de curso eu encontrei várias pessoas e fiz amizades que levarei para todo o sempre. Agradeço a amizade de todos da sala, em especial a Kauany Oliveira e a Sabrina Hespanhol. Ao meu amigo irmão, Brian Santos, que sempre acompanhou minha rotina acadêmica desde o principio, incentivando, torcendo e vibrando a cada conquista. Não poderia deixar de citar essa maravilhosa mulher, mãe e jornalista, Daniela Origuela, que ajudou em tudo, desde a escolha do tema até as fontes. Obrigada pelas orientações e por todas as conversas, sem você talvez eu não chegaria a escrever esses agradecimentos.


À minha professora e orientadora, Andressa Luzirão, que sempre incentivou e exerceu com excelência, com toda paciência e dedicação ao avaliar as propostas do trabalho. Agradeço também ao setor de estágio pela oportunidade oferecida. À Secretaria de Imprensa e Comunicação da Prefeitura de São Vicente (Seicom), que me acolheu e prestou todos os cuidados para que eu me sentisse em casa. Foi estagiando neste ambiente que eu pude crescer espiritualmente e profissionalmente. A todos os profissionais de saúde do Centro de Referência e Emergência de São Vicente (CREI) e do Hospital Municipal de São Vicente, que dividiram o tempo entre plantões e entrevistas para ajudar na execução deste trabalho. E, não menos importante, mas essencial, agradeço a Universidade Paulista- UNIP e todo seu corpo docente.


Dedicatรณria Aos meus pais pelo incentivo e confianรงa perante as dificuldades. Aos colegas de trabalho pelo apoio e a Deus por possibilitar tudo isso.


índice 09 PREFÁCIO; INIMIGO INVISÍVEL E OS HEROÍS DA LINHA DE FRENTE

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11 OCUPE A MENTE¹!

18 CÍNTIA E O MEDO DE MORRER

ALINE E A SAUDADE

21 ELDA E SEU JALECO BLINDADO PELA FÉ

29 ANA PATRÍCIA E A GUERRA DUPLAMENTE VENCIDA

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25 CAMILA E SEUS PLANTÔES DIFÍCIES

32 ROSEMEIRE E O PELOTÃO DE GUERRA

38 PRODUÇÃO E SENTIMENTOS

BRUNO E A DISTÂNCIA QUE TRANQUILIZA E INQUIETA

40 ALMA DE ARTISTA


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Inimigo invisível e os heróis da linha de frente Final de mais um ano, dezembro de 2019. Em Wuhan, na China, uma guerra se aproximava e ninguém esperava por ele: o inimigo invisível. Foi confirmado o primeiro caso da doença. Nada tão alarmante. Depois o primeiro óbito. O problema estava cada vez mais perto. Em território brasileiro, o cenário era de aglomeração, afinal, era Carnaval. Os foliões nas ruas dançando e cantando marchinhas carnavalescas, inclusive eu. O vírus que lute. Depois da Semana Santa, especificamente na Quarta-feira de Cinzas, a gente pensa o que faz. A princípio, o vírus atacava idosos e pessoas com a saúde mais vulnerável ou com doenças crônicas e respiratórias. Então, foi confirmado o vírus em um corpo jovem. Ninguém estava blindado! Dúvida que martelava na cabeça de todos: morrer de fome ou de corona? Sem leito ou sem emprego?


10 Fecharam o comércio. Depois manifestaram para reabrir. Uma amiga não morreu com o vírus, mas também não aguentou a crise, teve um surto e cometeu suicídio. Salvase quem puder! Os números começaram a ganhar rostos, nomes, idades e classes sociais. Até aqui foram mais de 100 mil vidas perdidas, 100 mil histórias, 100 mil saudades. Um número assustador. Dor incalculável. Era uma simples gripezinha, não é? Ela parou o mundo. Quebrou a economia. Colocou todos de joelhos dobrados e fez o ateu ter vontade de rezar. Os livros e as escolas irão registrar o fato mundial, talvez seja tema de questão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e até do vestibular. Nunca, em tão pouco tempo, tantos de nós morreram de uma mesma causa. Faltou ar! Então, os heróis entraram em cena. Nos próximos capítulos, esses valentes, verdadeiros anjos de jaleco, atuaram na linha de frente no combate à Covid-19. Alguns contraíram o vírus e, mesmo assim, voltaram a guerrear, dessa vez bem mais fortes. São profissionais incansáveis que salvaram vidas, com atenção redobrada nas UTIs Unidades de Terapia Intensiva), nas UBS (Unidades Básicas de Saúde), nas ESF (Estratégias Básica de Saúde), nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), nos laboratórios e nas clínicas do SUS (Sistema Único de Saúde) ou redes privadas.

Nathalie Piton


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OCUPE A MENTE!

Leia os livros empoeirados da estante. Assista séries da Netflix e filmes do Globoplay. Trabalhe em home office. Escreva. Pinte. Jogue. Ouça músicas. Dance. Cante. Levante-se. Vista-se. Tome o café da manhã. Reorganize o quarto. Ocupe a mente! Em meio aos impactos causados pela covid-19, a saúde mental foi fortemente abalada pela necessidade do isolamento social. O mundo se adaptou a uma nova realidade. De repente foi necessário conviver com a solidão, medos e incertezas. Os cuidados com a saúde mental precisaram ser redobrados.

sinais do corpo Rondinelli Salvador Silva, 41 anos, é psiquiatra e realiza consultas com profissionais da área da saúde. Recentemente, atendeu uma enfermeira de 36 anos que atua em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).


12 "Ela estava com choro fácil, ansiosa, pensamento de morte, aumento de frequência respiratória e receio de trabalhar", conta o médico. O quadro se desenvolveu por conta dela trabalhar diretamente noticiando os óbitos aos familiares dos pacientes.

movimentação em casa Segundo Rondinelli, o transtorno depressivo e de ansiedade se dá por meio de pensamentos negativos, baixa energia, tristeza, cansaço e, quando a pessoa está no limite da crise, em alguns casos há tendência de pensar ou tentar suicídio. É necessário manter uma rotina. Determinar horários para acordar, realizar as refeições e usar as redes sociais. A movimentação dentro de casa também é essencial para a ocupação mental. “Os idosos são um exemplo de como o isolamento faz mal para as pessoas. O idoso precisa de contato. É recomendado que os jovens ensinem a manusear as redes sociais e manter a rotina deles é fundamental”, explica.

ADAPTAÇÕES Em tempos de pandemia, para manter o tratamento das crises, a medicina passou a realizar consultas on-line para atender todos que precisam de ajuda. Assim, foi possível fazer psicoterapia por meio de videoconferência.


13 “Quem faz tratamento de crise de pânico é importante que mantenha a psicoterapia e o uso do remédio. Para quem não tem a possibilidade de fazer as sessões, o ideal é praticar exercícios físicos, como a aeróbica, zelar o sono, cuidar do consumo de café, de energéticos, cocacola e drogas, que são os disparadores”, orienta o médico.

Foto: Arquivo pessoal de Rondinelli Salvador Silva, 41 anos, psiquiatra na clínica Affectio e no Centro de Atenção Psicosocial (CAPS), São Bernardo do Campo.


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ALINE E A SAUDADE A saudade se misturava com a incerteza das próximas horas. A sensação de medo era constante, a angústia era uma companheira e não dava trégua. Uma dor no peito, uma mistura de sentimentos, mas a esperança a mantinha de pé. De olhos fechados, Aline da Conceição Santos, 25 anos, sonhava com o sorriso do filho Pedro Santos Pimentel, 2 anos e meio. Ela sentia falta da bagunça, dos brinquedos espalhados pela sala, da manhã ao tomar banho, da birra nas refeições e da hora de trocar as fraldas. Aline é enfermeira e está na linha de frente do combate ao coronavírus no Centro de Referência Emergência e Internação de São Vicente (CREI). Com medo de adoecer e contaminar sua família, ela não teve outra escolha a não ser deixar o menino morando temporariamente na casa dos avós maternos. Para dar conta de tanta saudade, carinhosamente a jovem observa as fotos do filho.


15 A profissional não sabe quando verá o garoto, nem quando dará um abraço apertado de urso nele. O motivo é zelo e cuidado. Por outro lado, manteve o coração tranquilo e seguro - ficou distante fisicamente do pequeno, mas presente no coração. Em videochamadas para seus pais, a enfermeira encontrou a possibilidade de manter o elo afetivo com o filho. O outro pedaço da saudade estava a uma distância de mais de dois mil quilômetros. O marido Arnaldo Carmo Pimentel, que estava a trabalho no estado do Mato Grosso e só vinha para casa a cada 45 dias.

NAS ESTATÍSTISCAS Se já não bastasse atuar na linha de frente, Aline também fez parte das estatísticas de quem foi infectado pela doença. Coriza, febre, perda de paladar e olfato marcaram a chegada do vírus no organismo da jovem mãe e enfermeira. Positivada e em isolamento domiciliar, sua rotina mudou mais ainda. A preocupação com a família e os cuidados em casa foram redobrados. E precisou manter a distância de seu esposo. Já que o quarto do filho do casal estava disponível, a enfermeira se instalou no cômodo e o quarto deles ficou somente para Arnaldo. Ali eles ficaram por mais de dez dias isolados um do outro. Seguindo as recomendações médicas, após dias, Aline não sentia os sintomas do vírus e retomou ao trabalho na linha de frente do combate, na batalha incansável de salvar vidas.


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DESAFIADOR Durante quatro anos, a rotina da enfermeira consiste em 24 horas de plantão, saindo de um hospital e entrando em outro - no período da manhã, Aline trabalha no Centro de Referência Emergência e Internação (CREI), em São Vicente, e, à noite, atua na Casa de Saúde de Praia Grande.“Durmo pouco, mas gosto da minha rotina”. Ao longo de sua trajetória profissional, desafios e obstáculos foram aparecendo no percurso. Porém, o mais desafiador foi atuar em meio à pandemia da covid-19. Os plantões da profissional foram alterados e, além de atender pacientes com coronavírus, ela prestava serviços administrativos. Enquanto paramentava-se com avental, luvas, viseira, máscara e touca, a angústia e a esperança eram sentimentos que misturavam em seu coração. Com amor na missão de ajudar o próximo, o medo foi aumentando durante a pandemia. Mas com o tempo, Aline e os colegas de plantão se acostumaram com a rotina diária. Não sabem quando será o fim de plantões intensos, mas as esperanças em dias melhores habitam no interior de cada um deles. “Ser profissional da saúde é estar disposto a lidar com diversas situações, incluindo tristezas e alegrias. É um misto de emoções e situações que devemos enfrentar no nosso cotidiano”, diz.


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Foto: Arquivo pessoal de Aline da Conceição dos Santos, 25 anos, enfermeira do Centro de Referência Emergência e Internação (CREI), de São Vicente.


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CÍNTIA E O MEDO DE MORRER “Tenho medo de morrer sem poder dar o último abraço no meu filho”, desabafa Cíntia Maria dos Santos, 41 anos, enfermeira do Hospital Municipal de São Vicente. Por atuar na linha de frente e estar exposta ao vírus, Cíntia preferiu se isolar de seus familiares e ficou em quarentena no seu apartamento. Enfrentando a solidão e o desespero de morrer, seu medo tinha nome: o filho Caio, 9. Por outro lado, o cuidado com ele superava todos os sentimentos, pois ela sabia que seu filho estava mais seguro na casa dos avós. Dias sem ver o garoto, o único contato entre mãe e filho se dava por horas de ligação em videochamadas, pelo WhatsApp. Mesmo com tantos cuidados consigo e com a família, Cíntia foi infectada. Foram 14 dias lutando para vencer o vírus. Com sintomas de tosse seca, dor na garganta, febre, perda de olfato e paladar, falta de ar e complicações no pulmão, ela precisou ser hospitalizada. Debilitada, a profissional não conseguia manter a alimentação por conta da tosse. A respiração também ficou comprometida.


“Foi um milagre eu não precisar ser intubada”, lembra Cíntia, enfermeira supervisora do hospital vicentino.


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SEMANA SEM FIM Sob cuidados médicos e sem receber visitas no quarto do hospital, a profissional permaneceu por sete dias em tratamento contra a covid-19. A semana parecia não ter fim, foram longos dias de incertezas e solidão. O relógio parecia não funcionar, dando a impressão de que os ponteiros marcavam sempre a mesma hora. Deitada e coberta por lençóis brancos, seus olhos percorriam cada canto do leito, as paredes já não tinham cor, o monitor que marcava os sinais vitais parecia não apitar frequentemente. Os programas da televisão já não a distraiam. Sua vida ficou com uma única cor: cinza. Mas esses dias difíceis estavam terminando. Amanheceu e o café da manhã já estava a caminho, acompanhado de uma boa frase do médico. Era o dia de receber alta, de ir para casa e rever aqueles que ela amava.

O SORRISO AO VER CAIO Após um mês sem ter contato direto com a família, ela finalmente pôde reencontrar o filho. “Quando vi o Caio, chorei de emoção”. Com lágrimas escorrendo pelo rosto, ela sorriu de felicidade. Só ela sabe o quanto esperou por esse momento. Um dia que ficará marcado em sua memória. E mesmo sabendo que o vírus não estava mais em seu organismo, Cíntia sentia medo de transmitir a doença para o próximo. De volta ao seu lar, continuou com todos os cuidados necessários.


20 O inimigo invisível foi derrotado, a guerra foi vencida. Vitoriosa e de volta ao combate, Cíntia retornou para a linha de frente da covid-19.

Foto: Arquivo pessoal de Cíntia Maria dos Santos, 41 anos, enfermeira do Hospital Municipal de São Vicente.


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ELDA E SEU JALECO BLINDADO PELA FÉ Ela acordou. Abriu os olhos. Sorriu. Olhou para cima. Ergueu as mãos, juntou e rezou: “Pai nosso que estais no céu. Santificado seja o vosso nome... amém! Ave Maria cheia de graça... Amém! Santo anjo do Senhor, meu zeloso e guardador!”. A técnica de enfermagem Elda Menezes, 52 anos, mantém a esperança em dias melhores. Devota de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e Santo Expedito, santo das causas justas e urgentes, ela frequenta todas as terças-feiras o terço na Matriz São Vicente Mártir, localizada na Praça João Pessoa, Centro de São Vicente. Outro templo sagrado que frequenta é a Igreja Nossa Senhora do Carmo, na Avenida Capitão Mor Aguiar. Em um grupo do terço da Igreja, ela recebeu imagens e orações de apoio enviadas pelo WhatsApp. Para ela, é preciso se apegar a uma religião, até mesmo para manter a sanidade mental e confortar um doente que precisa de palavras positivas e orações.


22 É com essa fé que a profissional se manteve diante da situação de desespero na linha de frente do enfrentamento da covid-19 no hospital municipal de São Vicente, onde trabalha desde 1994.

terço na calça branca Entre um respirador e outro, a luta travada a cada minuto para vencer o coronavírus ficava mais intensa. Os pacientes positivados chegavam a cada instante. Elda cuidava de cada um. Ali, não havia somente desconhecidos, mas pessoas que tinham famílias, mães, pais, avós, irmãos, tios e primos. Enquanto uns choravam esperando o pior, Elda colocava um terço no bolso direito da sua calça branca e rezava por todos que davam entrada no hospital. O carinho entre os colegas e a euforia de presenciar pacientes recebendo alta são verdadeiro "combustível" para enfrentar essa situação fora do comum. Para ela, ser profissional da saúde também é ser vigilante e implica em cuidar, alimentar, acompanhar a recuperação do paciente e oferecer carinho e atenção, principalmente para os idosos. Com plantão de 12 horas por dia e folgando uma vez no mês, sua rotina é intensa.

AFASTAMENTO DA FAMÍLIA Além de conviverem com a tensão pelo risco de serem contaminados a qualquer momento, os profissionais da saúde também lidam, todo dia, com a preocupação de infectar membros de suas famílias.


23 Apesar de todos os exames testarem negativo, ela não deixou de lado todos os cuidados necessários. Chegava em casa do plantão e ia direto para o banheiro, lavava o cabelo todos os dias e, antes de cumprimentar a família, limpava o nariz com rinossoro e as mãos com álcool em gel. “Cheguei a ponto de sair do plantão e, ao chegar em casa, entrar só de calcinha. Deixava o chinelo do lado de fora encostado em algum canto, para não entrar com o sapato do trabalho contaminado”. Esta foi a rotina da profissional durante o período inicial da pandemia.

PREOCUPAÇÃO REDOBRADA A preocupação em casa ainda é redobrada. Elda mora com a mãe, dona Luzenita Menezes, 77, e as duas filhas, Mariane Menezes, 30, e Victoria, 18, que tem síndrome de Down. A técnica de enfermagem sempre dormiu com a caçula, que na pandemia passou a dividir o quarto com a irmã mais velha, para que Elda ficasse sozinha em outro cômodo. Vitoriosa na linha de frente, a técnica de enfermagem se sente uma boa “soldada”. Cuidou de todos os pacientes, esteve ao lado das famílias ao noticiar a perda de um ente e, apesar disso, não teve os sintomas do vírus manifestados em seu corpo. A guerra ainda está em campo, mas com sua luta diária e seu jaleco blindado pela fé, Elda segue firme na dura batalha de salvar quem precisa.


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Foto: Arquivo pessoal de Elda Menezes, 52 anos, tĂŠcnica de enfermagem do Hospital Municipal, de SĂŁo Vicente.


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CAMILA E OS PLANTÕES DIFÍCEIS “Eu vi muitos colegas infectados e colaboradores que trabalhavam comigo morrerem. Cheguei a pegar plantão com paciente conversando e passar plantão com paciente morto. Durante o pico da pandemia foram as coisas mais comuns que aconteceram”. O depoimento é de Camila Martins, 31 anos, enfermeira no Hospital Arthur Ribeiro de Saboya, em São Paulo, que viveu momentos difíceis durante os plantões na linha de frente do enfrentamento da covid-19. Um marco para ela foi atender a um chamado de remoção de um paciente positivado para a doença. Era o cunhado de sua melhor amiga. Ela o transportou pelo Serviço de Atendimento Movél de Urgência (SAMU). O rapaz estava consciente e, pouco mais de 24 horas depois, sua amiga telefonou para avisar que o moço havia falecido. A profissional também perdeu colegas para o coronavírus - dona Ester, Marquinhos e Huedson foram uns deles.


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BOMBINHA PARA RESPIRAR MELHOR Uma semana antes de ser diagnosticada com covid-19, a profissional da saúde sentiu febre e dor de garganta, mas lembra que os sintomas foram embora rapidamente. No dia 23 de março, uma segunda-feira, Camila estava de plantão no SAMU, no hospital municipal de São Vicente, e acabara de realizar um transporte de paciente positivado para o coronavírus. Sentada, orientando e conversando com a equipe médica, sentiu mal-estar e os colegas acharam que os sintomas poderiam ser do vírus. Com insuficiência respiratória, a profissional foi diretamente para o Hospital Municipal de São Vicente e, no mesmo dia, foi realizado o exame. Após 30 dias, o resultado deu negativo, porém foi feita tomografia e o diagnóstico deu positivo para o vírus. Não foi fácil se recuperar e voltar para a guerra. Ela precisou encarar falta de ar e desconforto respiratório, a ponto de mal conseguir sair do quarto e ir ao banheiro. Camila passou a usar bombinha para respirar melhor. Quando apresentou melhora no quadro respiratório, outros sintomas apareceram: dor no corpo, fadiga, dor no maxilar, mandíbula, vômito e diarreia. Após a melhora de todos os sintomas, o desarranjo intestinal persistiu por mais 12 dias. Foi então necessário cumprir o isolamento rigorosamente, repousando e tomando os medicamentos. Depois de muito esforço, os sintomas acabaram e o vírus foi vencido. Mais forte do que nunca, a profissional voltou à linha de frente no combate ao vírus.


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36 HORAS DE PLANTÃO Exposta a vários tipos de vírus, a rotina da profissional é de 36 horas de plantão. No período noturno, Camila atua diretamente na linha de frente do coronavírus no hospital Arthur Ribeiro de Saboya, em São Paulo. A instituição era referência para a covid-19, mas com a diminuição do surto da pandemia, voltou a atender outros pacientes. Para suprir a alta demanda de casos do coronavírus, Camila foi designada para assumir a direção do plantão e lidera uma equipe de aproximadamente 150 enfermeiras para gerir 12 horas noturnas de funcionamento do hospital Arthur Ribeiro de Saboya, na capital paulista. Nas primeiras 12 horas do dia, a profissional presta assistência a pacientes de nível primário de infecções sexualmente transmissíveis no Serviço de Assistência Especializada (SAE), em São Vicente.


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Foto: Arquivo pessoal de Camila Martins, 31 anos, enfermeira no Hospital Arthur Ribeiro de Saboya, em SĂŁo Paulo.


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ANA PATRÍCIA E A GUERRA DUPLAMENTE VENCIDA Com 12 ou 24 horas de plantões diários, a rotina da técnica de enfermagem Ana Patrícia de Moraes Sales, 48 anos, começa cedo. Com a janela semiaberta, os raios solares invadem seu quarto, clareando seu rosto. Às vezes, ela não ouve o relógio despertar, mas às 6 horas já está com os olhos abertos para mais um dia na missão de salvar vidas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Municipal de São Vicente (HMSV), onde atua desde 2005. Na cozinha, o aposentado Luciano Torrado, 47 anos, prepara as refeições para a esposa. A primeira do dia está na mesa: cafezinho quente para despertar e um pão com manteiga derretida. A bolsa de trabalho já está arrumada em cima do sofá. Ela faz o sinal da cruz e pede a benção de Deus. Dá um beijo no esposo. É hora de sair. Coloca a chave no controle do carro, aperta o cinto e sinal verde, hora de avançar.


30 São 7 horas, horário para assinar o ponto. Mais um dia iniciando para a profissional que trabalha na área da saúde há mais de duas décadas e que está no último ano da faculdade de enfermagem na Universidade de São Vicente (UniBr). Paramentada com roupa, sapato, máscara, gorro e avental, Ana visita todos os pacientes e verifica a necessidade de cada um. Em um dia ‘comum’ e sem saber que estava infectada, ela manteve sua rotina árdua. Perda de paladar e olfato, falta de ar e febre marcaram o início do isolamento da profissional. Lutando para uma rápida melhora, elal manteve os cuidados em casa. Ficou o tempo necessário em quarentena, manteve distância de seu marido e usava máscara dentro de casa.

marido internado Após curada e sem sintomas, seu marido também testou positivo para o vírus e precisou de mais cuidados. Com comorbidades e doenças pré-existentes, Luciano ficou internado dez dias no leito da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Lucas, em Santos. Após o enfrentamento da doença, ele apresentou melhoras em seu quadro hospitalar e, seguindo as recomendações médicas, teve alta. De volta para casa, Ana cuidou carinhosamente do seu companheiro e ficou atenta a qualquer sinal fora do comum. Na dupla batalha contra a Covid-19, Ana e Luciano foram atingidos como soldados feridos, mas a esperança, cuidado, zelo, carinho e amor resultaram na recuperação do casal.


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Foto: Arquivo pessoal de Ana Patrícia de Moraes Sales, 48 anos, técnica de enfermagem na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), de São Vicente.


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ROSEMEIRE E O PELOTÃO DE GUERRA O medo era constante de ficar frente a frente com o inimigo invisível. “Eu me senti uma soldada sendo designada para a guerra”, conta a auxiliar de enfermagem Rosemeire Cardoso da Silva, 47 anos, sobre seu cotidiano de trabalho no Centro de Referência de Emergência e Internação (CREI), em São Vicente. Durante a batalha, a soldada foi atingida e, ‘ferida’, trabalhou em jejum durante o dia, só bebendo líquido, e durante uma semana teve a sensação de náusea. Com poucos sintomas e sensação de melhora, Rosemeire achou que tinha vencido a guerra e saído ilesa. Mas no dia 30 de maio outros sintomas apareceram, como cansaço e dor no corpo. Durante três dias, a profissional trabalhou com remédio correndo pelo corpo. Com o resultado alterado da tomografia, veio a confirmação: estava com covid-19. Medicada com azitromicina e dipirona, Rosemeire permaneceu em isolamento domiciliar e precisou de


afastamento. Perda de olfato e acĂşmulo de catarro no peito foram outros sintomas que teve.


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RENÚNCIA E ACEITAÇÃO Em quarentena, ela precisou adotar medidas e cuidados. Separou um quarto para manter a distância do seu esposo. Tão perto e ao mesmo tempo tão longe, a profissional sentia saudade da rotina diária com seu marido. Foi preciso renunciar a carinhos, beijos e abraços, mas a segurança dos dois estava em primeiro lugar. Longos dias se passaram e a cura estava cada vez mais próxima. Pouco a pouco, Rosemeire foi se recuperando. Foi preciso paciência para aceitar que desta vez a paciente era ela. No começo foi estranho deixar de cuidar dos outros para cuidar de si. Encerrado os dias no campo de guerra, hora de tirar o colete, deixar de lado o escudo e cantar o hino de vitória. Curada, a profissional se manteve em alerta a qualquer sintoma. De volta à rotina, ela pôde fazer o que mais gosta: ajudar a salvar vidas.


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Foto: Arquivo pessoal de Rosemeire Cardoso da Silva, 47 anos, auxiliar de enfermagem no Centro de Referência Emergência e Internação (CREI), de São Vicente.


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bruno e A DISTÂNCIA QUE TRANQUILIZA e INQUIETA Pensando no bem-estar de sua família, no cuidado com o próximo e na preocupação com o contágio do coronavírus, Bruno Domingos Fraga, 23 anos, técnico de enfermagem do Hospital Municipal de São Vicente (HMSV), teve que se adaptar a uma nova rotina com a pandemia do coronavírus. Desde que a doença chegou, ele está na linha de frente do combate ao coronavírus, seguindo jornadas diárias de exposição aos riscos. Pelo contato que mantém com pessoas sintomáticas e infectadas, o profissional teve sintomas gripais e, mesmo testando negativo, ficou preocupado com a segurança de seus familiares e optou por sair de casa. "Decidi morar sozinho para que a proteção deles estivesse assegurada", relata Bruno, que também é graduando de fisioterapia.


36 Deixando a casa de seus pais, ele viveu uma nova adaptação diária. Ao chegar de incansáveis plantões com 12 horas trabalhadas, não encontrava à sua espera a comida caseira feita pela mãe, o abraço apertado de seu pai e a bagunça de sua irmã. O profissional reforça a ideia de seguir o isolamento, uma vez que ele e seus colegas estão expostos ao vírus para proteger a sociedade. "Sejamos conscientes e cautelosos".

DESCOBRINDO A PROFISSÃO O amor por cuidar do próximo surgiu ainda na infância, quando seu avô precisava de cuidados especiais após sofrer um Acidente Vascular Encefálico (AVE). Precisando de internação, durante as visitas Bruno tinha um contato maior com profissionais de enfermagem. Na adolescência, as feiras de profissões promovidas pelas faculdades eram de grande importância para o jovem. Dentro do evento, Bruno conhecia curiosidades sobre a futura profissão. Conseguiu realizar o curso técnico após ser aprovado no vestibular da Escola Técnica Doutora Ruth Cardoso, em São Vicente. “Aventurei-me e sigo me aventurando nessa profissão”.


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Foto: Arquivo pessoal de Bruno Domingos de Fraga, 23 anos, tĂŠcnico de enfermagem do Hospital Municipal, de SĂŁo Vicente.


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PRODUÇÃO E SENTIMENTOS Anjos de Jaleco: A rotina dos profissionais da saúde no combate à covid-19 é um livro-reportagem que relata a batalha dos profissionais que atuam na linha de frente contra o novo coronavirus. Profissionais da saúde que lutam diariamente para que outras pessoas possam sair vivas do caos que o mundo vive atualmente. Este trabalho tem o objetivo de mostrar, de forma humanizada e sensível, como os profissionais da saúde estão lidando fisicamente e emocionalmente em um momento delicado como o de uma pandemia. Aqui, histórias reais das vidas que estão por baixo de cada jaleco. São famílias, problemas e situações que muitos não conseguem enxergar quando observam os profissionais dentro de um hospital trabalhando com tanta garra e determinação para que tudo ocorra da melhor maneira e que as vidas sejam preservadas. Os profissionais entrevistados para que o livro pudesse ser desenvolvido atuam nas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva), UBSs (Unidades Básicas de Saúde), ESF (Estratégias Básica de Saúde), UPAs (Unidade de Pronto Atendimento), laboratórios e clínicas do SUS (Sistema Único de Saúde) ou redes privadas. Em cada relato pôde-se observar o quão difícil é a vida desses profissionais, que diante de tantos problemas ainda precisam ser fortes para oferecer o apoio e o cuidado necessários.


39 Eles são mais que profissionais da saúde: são verdadeiros anjos para quem está dentro de um quarto de hospital, compartilhando emoções e momentos com aqueles que, em alguns casos, não terão a oportunidade de voltar para casa.


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Alma de artista A tela em branco é o corpo. O esboço é a alma do artista. A moldagem é a arte do próprio talento. Cada traço um sentimento. Cada cor uma história. Os tons coloridos homenageiam os grandes heróis da saúde, que neste momento estão na dura batalha na linha de frente para combater o inimigo invisível: o novo coronavírus. Por conta da alta demanda dos casos positivos para o vírus, a cidade vicentina instalou um Hospital de Campanha na Praça dos Ambientalistas, no Jardim Rio Branco, Área Continental. O artista Rico Arruda, 47 anos, reproduziu imagens de uma fila de super heróis reverenciando profissionais da saúde. A outra arte é de um australiano que homenageia um médico com asas de anjo. “Artistas do mundo estavam reproduzindo imagens de força aos profissionais de saúde, e eu também quis homenagear os heróis da linha de frente”, explica Rico. As imagens estão localizadas na entrada do hospital e a outra na entrada e saída de ambulâncias.


REVERÊNCIAS AOS HERÓIS DE TOUCA, LUVAS, MÁSCARAS E JALECOS

Foto: Arquivo pessoal de Rico Arruda, artista. Grafite no muro do Hospital de Campanha de São Vicente, Praça dos Ambientalistas, Jardim Rio Branco, Área Continental.


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