Alberto L. Bialakowsky – Universidad de Buenos Aires – Argentina.
Alcina Maria de Castro Martins – (I.S.M.T.), Coimbra – Portugal
Alexander Steffanell – Lee University – EUA
Ángela A. Fernández – Univ. Aut. de St. Domingo – Rep. Dominicana
Antonino Vidal Ortega – Pont. Un. Cat. M. y Me – Rep. Dominicana
Armando Martinez Rosales – Universidad Popular de Cesar – Colômbia
Artemis Torres Valenzuela – Universidad San Carlos de Guatemala – Guatemala
Carolina Crisorio – Universidad de Buenos Aires – Argentina
Christian Cwik – Universität Graz – Austria
Christian Hausser – Universidad de Talca – Chile
Daniel Schugurensky – Arizona State University – EUA
Elizet Payne Iglesias – Universidad de Costa Rica – Costa Rica
Elsa Capron – Université de Nimés / Univ. de la Reunión – France
Elvira Aballi Morell – Vanderbilt University – EUA.
Fernando Camacho Padilla – Univ. Autónoma de Madrid – Espanha
José Javier Maza Avila – Universidad de Cartagena – Colômbia
Hernán Venegas Delgado – Univ. Autónoma de Coahuila – México
Iside Gjergji – Universidade de Coimbra – Portugal
Iván Sánchez – Universidad del Magdalena – Colômbia
Johanna von Grafenstein, Instituto Mora – México
Lionel Muñoz Paz – Universidad Central de Venezuela – Venezuela
Jorge Enrique Elías–Caro – Universidad del Magdalena – Colômbia
José Jesus Borjón Nieto – El Colégio de Vera Cruz – México
José Luis de los Reyes – Universidad Autónoma de Madrid – Espanha
Juan Marchena Fernandez – Universidad Pablo de Olavide – Espanha
Juan Paz y Miño Cepeda, Pont. Univ. Católica del Ecuador – Equador
Lerber Dimas Vasquez – Universidad de La Guajira – Colômbia
Marvin Barahona – Universidad Nacional Autónoma de Honduras – Honduras
Michael Zeuske – Universität Zu Köln – Alemanha
Miguel Perez – Universidade Nova Lisboa – Portugal
Pilar Cagiao Vila – Universidad de Santiago de Compostela – Espanha
Raul Roman Romero – Univ. Nacional de Colombia – Colômbia
Roberto Gonzáles Aranas –Universidad del Norte – Colômbia
Ronny Viales Hurtado – Universidad de Costa Rica – Costa Rica
Rosana de Matos Silveira Santos – Universidad de Granada – Espanha
Rosario Marquez Macias, Universidad de Huelva – Espanha
Sérgio Guerra Vilaboy – Universidad de la Habana – Cuba
Silvia Mancini – Université de Lausanne – Suíça
Teresa Medina – Universidade do Minho – Portugal
Tristan MacCoaw – Universit of London – Inglaterra
Victor–Jacinto Flecha – Univ. Cat. N. Señora de la Asunción – Paraguai
Yoel Cordoví Núñes – Instituto de História de Cuba v Cuba – Cuba
Os muros da cidade
Sua terra?
Nossa terra?
De onde viemos?
Para onde vamos? Onde de fato estamos?
O que vale é o lugar da terra que o seu coração ocupar!!!!!!!!!!!
Então ocupe!!!!! Eu? Ocupei!!! Fui ocupada!!!
No decorrer dos meus 20 anos de prática profissional ocupei e fui ocupada por este complexo que é a Maré.
Ocupei espaços, instituições e até corações!!! O que tb gerou desocupações:
Desocupei concepções e valores culturais reformulando, transformando, se adaptando....
Fui ocupada pelo movimento desta Maré de ocupações múltiplas (instituições públicas, comunitárias, religiosas dentre outras) unidas às lutas sociais pelo direito à saúde, educação e moradia; quando não pelas fortes ações de violência entre o poder paralelo e o poder policial atualmente denominado como: segurança pública.
Também fui ocupada pelo trabalho desenvolvido junto às organizações comunitárias e as não governamentais exatamente para a garantia dos direitos básicos da população.
E ainda hoje retorno a pergunta inicial: Onde de fato estamos?
Qual o lugar que o trabalho dos profissionais da Política de Assistência Social ocupa? Dentro das conhecidas instituições públicas denominadas CRAS ou CREAS?
A violência urbana, as operações policiais, o medo social produzido pela mídia e quando não pela própria comunidade, tem cada vez mais afastado os profissionais dos espaços de moradia e de atendimento à população.
Os muros começam a ser levantados mais fortemente entre quem mora e os apenas trabalhadores sociais. Sendo fortalecidos pelas mídias sociais e pela própria política de segurança pública atual.
Ao compreender a prática profissional do Serviço Social para além do atendimento pontual quando a população busca o acesso aos serviços; e sim durante o processo de acompanhamento
dos indivíduos ou famílias. Necessitamos cada vez pular os muros que nos separam. Justamente para conhecermos os territórios, as particularidades das instituições e serviços existentes, as leis e limites territoriais, os espaços de esporte, lazer, cultura, encontros sociais, comércios, restaurantes e por aí vai...
Atravessar os muros geográficos da cidade, da favela e das instituições para atuar de uma forma mais articulada e consistente é o trabalhar em Rede.
Os espaços dentro de uma comunidade são criados e recriados com grande rapidez, seja para suspensão de uma moradia, seja para a determinação de barreiras reais a dita “segurança pública” conforme vemos cotidianamente nos jornais.
Nós sujeitos sociais temos vivido na cidade maravilhosa com muros cada vez mais altos; de muros definidores de padrões, status, símbolos de riquezas e poder. De muros determinados e fortalecidos também pelos próprios aplicativos sociais formadores de grupos e nichos sociais.
E de outro lado, nossos muros institucionais as vezes se fecham para o caos e para as reflexões sobre os fatos na busca pela efetivação dos serviços nas respostas imediatas e/ou na lógica da quantificação dos atendidos/atendimentos. (ex: escolas).
Pensar e atuar politicamente exige dos profissionais o indagar acerca da sua própria prática profissional: os muros que nós mesmos construímos e reconstruímos, consolidamos, derrubamos ou preferimos não enxergar (talvez estes sejam os muros mais sólidos).
Como dentro de uma cidade os espaços urbanos também são uma construção social, façamos parte deste processo de consolidação dos Espaços.
Então ocupem!!!!
LeticiaCardiloReis AssistenteSocial
Sumário
Prefácio
Capítulo 1 - A experiência do NEPHU na luta por moradia: enfrentando dilemas e contradições em processos de regularização fundiária 18
Regina Bienenstein - Glauco Bienenstein - Daniel Mendes Mesquita de Sousa
Capítulo 02 - Mulheres negras e moradia: a interseccionalidade nos territórios populares 34
Vitoria Gouveia dos Santos Ribeiro Machado
Capítulo 03 - Casa é um direito: olhando para a questão habitacional em Portugal ............................43
Caterina Francesca Di Giovanni
Capítulo 4 - A Maré na cidade: organização e resistência 61
Edson Diniz
Capítulo 5 - A Distopia Urbana: os territórios de exceção na Região Metropolitana do Rio de Janeiro................................................................................................................................................................80
Bruno José Oliveira
Capítulo 6 - Para além da “cidade partida”: inventário crítico dos estudos sobre violência e gestão urbana no Rio de Janeiro (1980 - 2010) 91
Danilo George Ribeiro - Fernanda Barbosa
Capítulo 7 - A Segurança Pública como Expressão Máxima da Gestão Racista das Políticas Sociais no Conjunto de Favelas da Maré 108
Camila Barros
Capítulo 8 - Questão Urbana, direito à moradia: o que as assistentes sociais têm a dizer 122 Francine Helfreich
Capítulo 09 - Trabalho Social na Habitação: trajetória, resistências e afirmação do direito à cidade........................................................................................................................................................... 145
Joana Valente Santana - Rosangela Dias Oliveira da Paz
Capítulo 10 - Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social: reflexões sobre as contribuições do serviço social................................................................................................................... 156
Aline Rocha
Capítulo 11 - Trabalho profissional em favelas: cotidiano e particularidades na assistência social carioca 173
Carla Cristina Marinho Piva
Capítulo 12 - Serviço Social e questão social no adoecimento emocional de jovens mulheres faveladas 182
Viviane Carmen da Conceição Santos
Sobre os autores............................................................................................................................................ 197
Prefácio
Em 18 de janeiro de 2018, o coletivo Stop Despejos! organizou o seu primeiro piquete para parar um despejo com demolição, no Bairro 6 de Maio, um bairro autoconstruído, de “barracas”1, em Amadora, cidade da cintura suburbana de Lisboa. Cerca de 40 ativistas conseguiram fazer com que as escavadoras – protegidas por um cordão de polícia – acabassem por retroceder e abandonar o bairro. Talvez o momento mais significativo, capturado no vídeo que documenta a ação, é quando o coordenador do aparelho policial dá a volta para avisar o resto da equipa que o despejo não será hoje2. No fundo do campo visual há duas mulheres, uma das quais com um dossiê de documentos: quase certamente funcionárias dos serviços sociais da Câmara Municipal de Amadora. Nas dezenas de ações violentas de despejo que marcaram várias décadas de história de bairros como o 6 de Maio3, atrás do aparelho policial pode-se sempre vislumbrar a presença de funcionários ou funcionárias dos serviços sociais, formal e tecnicamente responsáveis para oferecer acompanhamento aos núcleos domésticos que não consigam encontrar uma solução habitacional no mercado – o que, no caso das demolições de bairros autoconstruídos, acontece com toda a gente. Como recontados dezenas de vezes por moradores e ativistas, o que estes serviços podem oferecer é, normalmente, o número de telefone da segurança social ou de alguma organização de caridade – geralmente as Santas Casas da Misericórdia – que, por sua vez, podem oferecer alguns dias ou semanas de permanência em pensão, em muitos casos com a necessidade de separar o núcleo doméstico (tipicamente os homens das mulheres e, consequentemente, das crianças).
Em Portugal, quem tem participado nas lutas pela habitação, seja no papel de morador/a afetado, ativista ou académico/a, identifica no serviço social um ator que serve para justificar e normalizar a violência estrutural e direta dos despejos de Estado – como, de facto, longamente documentado em vários outros contextos europeus4 . É esta uma das razões pelas quais tive muita sorte em ser contatado, há uns tempos, pela Francine Helfreich enquanto estava a planear um período de pós-doutoramento em Lisboa. O ano que Francine passou em Lisboa foi, para mim e para muitos e muitas colegas, realmente esclarecedor quanto ao potencial social e político de uma profissão que, em Portugal e na Europa, está muito aquém da realização desse potencial – no serviço social, pelo menos, a Europa tem muito a aprender “do Sul” no geral, e do Brasil no específico.
Entre os resultados desse pós-doutoramento, este livro, no recolher uma pluralidade de perspectivas teóricas e práticas sobre o serviço social e a questão urbana no Brasil, se constitui como um importante instrumento para quem pratica e quem estuda nos dois lados
1 “Bairro de barracas” foi longamente o termo mais utilizado em Portugal – inclusive nos documentos legais de vários programas de realojamento lançados ao longo dos anos – para denominar bairros informais precários, isto é, o que em Brasil seria uma favela.
2 Ao minuto 1’ e 20” do vídeo disponível em https://stopdespejos.wordpress.com/portfolio/bairro-6-de-maio-amadora18-janeiro-2018/.
3 Há mais exemplos no site de Stop Despejos!. Para duas reconstruções históricas e antropológicas da “erradicação” das “barracas” no município de Amadora, ver Giacomo Pozzi, 2017, Comes cachupa, falas crioulo!” Notas etnográficas militantes sobre estratégias de construção e destruição do Bairro Santa Filomena, Amadora, Lisboa: Associação Habita; Ana Rita Alves, 2021, Quando Ninguém Podia Ficar. Racismo, habitação e território, Lisboa: Tigre de Papel.
4 Ver, por exemplo, Ian Cummins, 2019, “Reading Wacquant: Social work and advanced marginality”, European Journal of Social Work, vol. 19, n. 2, pp. 263-274.
do Atlântico, precisamente por subverter claramente a relação observada na Europa entre a prática profissional e o campo dos “direitos” – e por conceptualizar de forma rica o papel do “urbano” nessa prática e na produção desses direitos.
Na sua estruturação em três partes, o livro afunila progressivamente o argumento. A primeira parte é dedicada à uma definição da questão urbana no contexto brasileiro, com contraponto para a experiência portuguesa, com atenção para as múltiplas e profundas desigualdades em volta da questão da habitação/moradia em contextos de capitalismo semiperiférico. A segunda parte, coerentemente com o assentar-se do livro primariamente nas experiências de dois núcleos de trabalho na região metropolitana de Rio de Janeiro (o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares e o Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos), leva o leitor para a região carioca. Especial atenção é dada aos contextos favelados – com destaque para o Complexo da Maré –, lugares onde o conflito entre desenvolvimento desigual e direitos urbanos é mais evidente. Finalmente, a terceira parte, que coloca claramente o serviço social no centro do debate, explora o conflito entre os valores e princípios da profissão – que deveriam orientar o trabalho para a provisão universal de habitação/moradia – e os retrocessos que o processo de neoliberalização implica na provisão de direitos. Um eixo conceptual transversal a todo o livro, coerentemente com o impacto profundo do Henri Lefebvre na academia (crítica) brasileira5, é a lente do “direito à cidade” – na sua dupla componente de acesso aos direitos e de possibilidade de participar à produção do próprio espaço urbano –, que se torna em verdadeiro “instrumento” normativo e pragmático de construção de formas de “saber fazer”. As contribuições, no seu conjunto, oferecem um mapeamento amplo e complexo das possibilidades e realizações do serviço social na questão urbana.
Em jeito de reflexão final, deixem que volte outra vez para Portugal, para uma viagem no tempo. Num livro publicado há poucos meses, Ana Drago aborda criticamente as relações entre participação política e questão urbana durante e depois da revolução portuguesa de 1974-75. Na sua análise do SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) – política pioneira de slum upgrading e participação lançada pelo ministro Nuno Portas em 1974 –, Drago destaca a importância das equipas de serviço social na construção da comunidade política necessária às operações no terreno6
Enquanto finalizo este prefácio, no verão de 2024, Portugal está no ano em que celebra os 50 anos do 25 de Abril, o dia que acabou com a ditadura do Estado Novo e abriu para um período, o PREC, Processo Revolucionário em Curso, em que o país avançou na direção do socialismo e colocou as fundamentas – muitas das quais foram desmanteladas nas décadas seguintes de normalização democrática – de um país mais justo, democrático e politizado. Durante este ano, o mainstream das celebrações tem-se esforçado para normalizar o 25 de Abril enquanto momento de início de uma democracia liberal e europeia7 e assim apagar os componentes genuinamente revolucionários da última revolução socialista em terreno europeu. Outras e outros têm-se esforçado, antes pelo contrário, para recuperar a
5 Ver Bianca Tavolari, 2016, “Direito à cidade: Uma trajectoria conceitual”, Novos Estudos CEBRAP, vol. 35, n. 1, pp. 93109.
6 Ana Drago, 2024, A cidade democrática. Habitação e participação política no pós-25 de Abril, Lisboa: Tinta da China, pp. 124-126.
7 Ver Giulia Strippoli, 2024, “I garofani sono ancora rossi? I 50 anni della rivoluzione portoghese nel dibattito pubblico”, Storie in Movimento, https://storieinmovimento.org/2024/04/22/i-garofani-sono-ancora-rossi/.
lição do PREC, e as possibilidades que a sua história abre, também no campo da habitação e do serviço social8 .
Esta breve viagem ao passado serve para desmistificar a ideia de que os problemas dos serviços sociais (europeus) do hoje sejam inevitáveis – já tivemos melhor. Precisamos, então, de um esforço – teórico, analítico, operacional – para o qual este livro organizado por Francine Helfreich se constitui como um importante instrumento. Obrigado.
Simone Tulumello, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, simone.tulumello@ics.ulisboa.pt
8 Ver Drago, 2024, A cidade democrática, cit.; Simone Tulumello, 2024, Habitação para além da “crise”. Políticas, conflito, direito, Lisboa: Tigre de Papel, capítulo 4.
Apresentação
Francine Helfreich
Este livro é oriundo dos acúmulos nos debates concernentes ao amplo campo teórico-político que envolve a questão urbana. Trata-se de um produto coletivo cujo trabalho contém um conjunto de reflexões que buscam contribuir para pensar as lutas sociais em prol da moradia e o trabalho profissional das assistentes sociais nas periferias e nas favelas. São trabalhos e experimentos elaborados por autores que atuam em territórios que se constituem enquanto expressões agudas das desigualdades socioespaciais vivenciadas cotidianamente pelos seus moradores. O ponto em comum entre eles é o compromisso com a organização coletiva, compreendida como instrumento necessário na luta pela efetivação de direitos.
A temporalidade da elaboração dessa coletânea refere-se ao período entre 2023 e 2024 em que estive em Portugal na condição de Investigadora Visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Fui atenciosamente recebida pelo Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade (SHIFT) e especialmente acolhida pelo coletivo de pesquisadores do Centro de Estudos Urbanos (HUB). Tive a alegria de ser supervisionada pelo jovem brilhante pesquisador Dr. Simone Tulumello que me presenteou com o prefácio desse livro.
Meus investimentos teóricos sobre o “urbano” decorrem da necessidade do aprofundamento oriundo dos estudos da tese de Doutorado, que na época, me dediquei com mais ênfase sobre o trabalho profissional de assistentes sociais nas escolas públicas localizadas nas favelas. Naquela ocasião, me detive nos estudos que dialogavam com a na área da Educação. Agora, passada mais de uma década nessa oportunidade, os caminhos que trilhei me levaram aos aspectos que moldam a Questão Urbana. As ações extensionistas da universidade pública, minha caminhada militante, a participação em movimentos sociais, a aproximação ao Fórum de Lutas Pela Moradia através do Núcleo de Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU) e minha reaproximação com as favelas do Complexo da Maré através de projetos extensionistas vinculados ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE), foram determinantes para a escolha dos interlocutores e das temáticas abordadas nessa coletânea. Muitos dos autores desta produção atuam na universidade de forma engajada, ou são ativistas e profissionais que defendem o direito à cidade, bem como, os direitos sociais e humanos.
O urbano aqui é tratado e retratado por diferentes autores que de forma articulada, coletiva ou individualmente produziram reflexões sobre aspectos distintos. Alguns textos versam sobre estudos teóricos, outros apresentam e analisam experiências sobre as direito à moradia, regularização fundiária, cotidiano nas favelas, gestão da violência, segurança pública, urbanização e elementos constitutivos do trabalho profissional de assistentes sociais nas cidades. Ganha relevância e destaque aqui o território do Complexo da Maré, situado na cidade do Rio de Janeiro. O território composto por 16 favelas onde vivem mais de 140 mil pessoas onde estive inserida como assistente social por muito tempo, suscitando reflexões, articulações e construindo uma rede de interlocutores que ao pensar a favela por dentro e para dentro, rompem com as análises estereotipadas, estigmantizantes e homogenizadoras, mas tangenciadas pela perspectiva de totalidade. A favela aqui é compreendida como parte
da cidade, intrínseca à lógica do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, que, ao se desenvolver, produz necessariamente territórios desiguais (Harvey: 2004).
O livro se vincula a dois núcleos de estudos que têm se dedicado à realização de pesquisas sobre os fenômenos presentes no cotidiano das favelas e periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O primeiro é o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE), criado em 2009 por mim e Eblin Farage, outra autora da coletânea quando ocupamos, respectivamente, os cargos de assistentes sociais e coordenadoras de projetos e de processos formativos na Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES). A inserção profissional e militante no complexo de favelas da Maré nos possibilitou experimentar a construção de uma perspectiva contra-hegemônica de educação que, de acordo com Gramsci, tem como objetivo último gestar o germe do novo ainda na sociedade capitalista. Posteriormente, após aprovação em concurso público para docentes da Escola de Serviço Social da UFF, levamos o núcleo constituído na favela para a Universidade. Assim, ao relacionarmos ensino, pesquisa e extensão, demos continuidade àquelas ações, agora com ênfase na formação profissional de assistentes sociais. Nossas ações e intervenções inter-relacionam questão urbana, movimentos sociais, direito à cidade e educação, sempre pautadas nas reflexões articuladas entre classe-raça-gênero.
Entre as várias motivações que nortearam a construção do NEPFE, ainda no período de inserção na Maré, destacam-se: 1) a necessidade de produção de pesquisas e produções que reflitam sobre o cotidiano das favelas e espaços populares; 2) a proposta de constituição de uma rede de pesquisadores oriundos e/ou inseridos em espaços populares e favelas com vínculo com as Universidades públicas; e 3) a necessidade de produção de conhecimento que contribua para a diminuição dos estereótipos, preconceitos e visões homogeneizadoras sobre esses territórios, buscando influir na constituição de políticas públicas.
O núcleo tem como foco de seus estudos e produções a questão urbana, com ênfase nas diferentes dimensões da vida cotidiana na favela e nos movimentos sociais. Além disso, muitas produções também vêm sendo construídas sobre temas correlatos e na área da educação. O livro se conecta ainda a um segundo núcleo, já que em 2017 me vinculei também ao Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU), vinculado à PróReitoria de Extensão que reúne arquitetos e urbanistas, engenheiros, advogados e assistentes sociais e atua, sobretudo, com os seguintes temas: projetos, planejamento e gestão urbana, habitação de interesse social, assentamentos populares, regularização fundiária, redesenho urbanístico, participação popular e conflitos socioespaciais.
Metodologicamente o livro, sob forma de coletânea, se organiza em três partes: textos que se debruçam sobre aspectos que se vinculam ao debate da moradia: interseccionalidade, gênero, raça, demais direitos a moradia vinculados regularização fundiária etc. Ambos os textos estão fundamentados em uma análise crítica da realidade, atravessados pelas contradições que modo de produção capitalista expressa nas suas políticas, sejam elas no Brasil ou em países como Portugal, também estudados aqui.
A segunda parte do livro reúne os textos que expressam as particularidades dos territórios periféricos do Rio de Janeiro, com destaque para reflexões sobre o Complexo da Maré onde a violência se faz presente e a política de segurança pública a é amplamente questionada. Já na terceira parte, os textos expressam os acúmulos que assistentes sociais possuem na produção de conhecimentos sobre seu exercício profissional nas políticas urbanas, dialogando com a linha política adotada pelas entidades representativas da categoria
profissional (ABESS, CFESS- CRESS, ENESSO). Os textos deixam nítido o domínio e a crítica às legislações e normativas brasileiras. Ao mesmo tempo, apresentam um debate para além de uma corriqueira descrição do fazer profissional, e abordam experiências ancoradas nas três dimensões do trabalho profissional, dimensão teórica-metodológica, técnicooperativa e ético-política.
Portanto, o livro inicia com o capítulo A experiência do NEPHU na luta por moradia: enfrentando dilemas e contradições em processos de regularização fundiária que é o título do capítulo elaborado coletivamente por Regina Bienenstein, Glauco Bienenstein e Daniel Mendes Mesquita de Sousa. A produção do trio de estudiosos apresenta a construção de uma metodologia própria de regularização fundiária que garante o direito à moradia adequada aos moradores de áreas populares além da dimensão jurídica. O artigo traz no seu bojo elementos que se vinculam a à luta pelo direito à moradia na dinâmica da produção de cidades brasileiras, em distintos períodos até os tempos atuais.
Na sequência, Vitoria Gouveia, mostra como as cidades brasileiras são marcadas pelas relações de raça, classe e gênero. Em capítulo intitulado Mulheres negras e moradia: a interseccionalidade nos espaços populares, a autora, arquiteta e urbanista, busca refletir sobre a interseccionalidade e o direito à moradia, partindo do caráter racial e de gênero do processo de segregação socioespacial dando destaque ao lugar da mulher negra.
Casa é um direito: olhando para a questão habitacional em Portugal, é um texto elaborado pela arquiteta italiana Caterina Francesca Di Giovanni que retrata em seu fecundo capítulo a realidade de Portugal, país que se encontra mergulhado em uma profunda crise habitacional.
A autora apresenta como o direito à habitação é determinado naquele país, apontando as tensões entre as prerrogativas Constitucionais públicas de habitação e a crescente dinâmica de mercantilização do acesso à moradia potencializada pela especulação imobiliária. No texto, as soluções pontuais e emergenciais são apresentadas à luz de um mergulho teórico- analítico que nos mostra as tensões e conflitos que circunscrevem a temática naquele país.
Já a segunda parte do livro, é iniciada com o texto de Edson Diniz. Com seu olhar de historiador, nos incita a mergulhar na construção histórica do conjunto de favelas da Maré. Através de uma leitura mais ampla sobre o processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, o autor no capítulo A Maré na cidade: organização e resistência propicia uma ampla caracterização do que foi a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. A atuação do Estado também é demarcada em seu caráter de classe, como elemento fulcral para compreender como as favelas expressam as desigualdades socioeconômicas, culturais, étnico-raciais e territoriais enquanto parte de uma cidade que se fragmenta.
“A Distopia Urbana: os territórios de exceção na Região Metropolitana Rio de Janeiro” é o capítulo elaborado por Bruno José Cruz Oliveira. O instigante texto versa sobre a ampliação do domínio territorial das facções do narcotráfico e das milícias nas últimas décadas que tem se apresentado como um complexo desafio para a promoção de estratégias de organização coletiva dos moradores nas favelas e periferias da metrópole fluminense. De acordo com as suas análises, os grupos ao controlarem politicamente os territórios periféricos e estabelecerem formas de convívio com o Estado contribuem para a manutenção do controle do processo político pelas classes dominantes.
O capítulo, Para além da “cidade partida”: inventário crítico dos estudos sobre violência e gestão urbana no Rio de Janeiro (1980 - 2010), escrito pelos historiadores Danilo George Ribeiro e Fernanda Barbosa, apresenta uma reflexão crítica sobre a trajetória de estudiosos brasileiros
que elaboram com envergadura relevante produções teóricas sobre as temáticas da violência urbana e segurança pública. Munidos de categorias teóricas gramscianas como intelectuais orgânicos, aparelhos privados de hegemonia e Estado, analisam as instituições: Instituto de Estudos da Religião (ISER), o Viva Rio e o Seminário Rio contra o crime. No texto, os autores desenvolvem como essas instituições desempenham papel central na formulação de teses que moldaram a opinião pública e as políticas de segurança pública na cidade entre 1980 e 2010.
Camila Barros, jovem pesquisadora e militante, apresenta o texto A Segurança Pública Como Expressão Máxima da Gestão das Políticas Sociais no Conjunto de Favelas da Maré. Nele analisa cuidadosamente a gestão racista da política de segurança pública e seu impacto no conjunto de favelas onde a "guerra às drogas" é o foco de atenção. A autora mostra como as operações policiais frequentes criam um ambiente de instabilidade que impede a efetivação dos direitos básicos e afeta a vida cotidiana, impedindo que direitos sociais básicos sejam garantidos àquela população.
A terceira parte do livro, começa com o capítulo da minha autoria intitulada Questão urbana, direito à moradia: o que as assistentes sociais têm a dizer Nele, apresento os resultados da pesquisa realizada através do levantamento nos Anais dos Congressos Brasileiros de Serviço Social (CBAS) e nos Anais do Encontro Nacional de pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) no período compreendido entre 2013 e 2022. O levantamento expressa a forma como os profissionais de Serviço Social direcionam suas ações, mais especificamente em torno do direito à moradia, do direito à regularização fundiária e do acesso à assistência técnica de interesse social (ATHIS).
O capítulo de autoria das renomadas pesquisadoras Joana Valente Santana e Rosangela Dias Oliveira da Paz nos abrilhanta com o debate sobre trabalho social enquanto componente da política habitacional. Trabalho Social na Habitação: trajetória, resistências e afirmação do direito à cidade, é um texto que é escrito na conjuntura acalorada sobre os debates sobre Trabalho Técnico Social onde diversos grupos vêm discutindo o assunto. O texto vem a se somar aos demais capítulos não somente para problematizar o trabalho social na habitação neste amplo um campo de disputa de projetos e recursos dos programas habitacionais, mas sobretudo, porque traz nele um conjunto de proposições para avanço do Trabalho profissional das assistentes sociais.
Em seguida o capítulo Serviço Social e questão social no adoecimento emocional de jovens mulheres faveladas de autoria de Viviane Carmen da Conceição Santos nos transporta ao complexo da Maré. No texto a autora, através de relatos sobre adoecimento emocional de jovens negras residentes em favelas, problematiza questões que se imbricam como Gênero, Sexualidade, Raça e Etnia, Território, Condições Socioeconômicas e violências. Tais aspectos atravessam de forma diferente a vida das jovens atendidas pela autora no seu espaço sócioocupacional.
O debate sobre ATHIS, será problematizado por Aline Rocha no capítulo Assistência técnica à habitação de interesse social: Reflexões sobre as contribuições do Serviço Social onde a autora compartilha os resultados obtidos ao longo das suas pesquisas desenvolvidas durante o Mestrado em Serviço Social e o Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, sobre as contradições e potencialidades da atuação de assistentes sociais no interior de equipes de ATHIS. Seu texto mostra como a inserção dessas profissionais em equipes de Trabalho Social, que se tornou obrigatória nas políticas públicas federais para habitação de interesse
social com a Lei de Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social (Lei Federal nº 11.888/2008), proporcionou avanços no que tange a garantia de direitos a população atendida pelas políticas habitacionais.
A produção da assistente social Carla Cristina Marinho Piva intitulada Política Pública de assistência social na cidade: análise do trabalho de assistentes sociais em favelas do Rio de Janeiro se debruça a analisar o trabalho das (os) assistentes sociais que atuam na Política Pública de Assistência Social nas favelas de Rollas e Antares, localizadas em Santa Cruz na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Seu estudo demonstrou que o trabalho das(os) assistentes sociais está circunscrito a um modelo de gestão pautado em reedições de acordos de resultados, atravessados pelas interferências dos conflitos armados, onde as(os) trabalhadores respondem a esses episódios, por meio de estratégias que transitam desde comunicações internas com a gestão até a interface com as unidades públicas da rede local de saúde.
Diferentes de outras obras por mim organizadas, este livro surge naturalmente na medida em que reconheço no encontro com outros interlocutores suas reais preocupações seja nas lutas por direito, seja nas necessidades de contribuir para a qualificação do trabalho de assistentes sociais – a qual sempre foi uma das grandes intenções dos estudos que venho realizando.
Por fim, agradeço aos autores confiança em mim depositada na cessão de seus manuscritos. Expresso também a minha gratidão a todos os pesquisadores que integram o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, sobretudo, ao Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade do ICS-ULisboa (SHIFT). Destaco especial agradecimento aos integrantes do Urban Transitions Hub (UTH) que, ao fornecer as possibilidades de troca via grupo de estudos periódico, apoiam a produção de novos conhecimentos junto aos diferentes investigadores visitantes que buscam o instituto. Assinalo de forma muito especial ao aos diálogos com Bruno José Oliveira com quem estabeleci interlocuções e apresentou sugestões valorosas que me permitiram amadurecer e avançar na produção desta coletânea. Agradeço a colaboração das alunas de iniciação científica do Curso de Serviço Social da UFF em especial a Mariana Lourenço Leite que esteve comigo ao longo de 2023-2024 no grupo de pesquisa que se vincula ao Núcleo de Estudos e pesquisas sobre favelas e espaços Populares 9 NEPFE) e ao Núcleo de Estudos sobre Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU) e o Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal (PPGSSDR) fluminense – RJ.
PARTE I
Capítulo 1
A experiência do NEPHU na luta por moradia: enfrentando dilemas e contradições em processos de regularização fundiária
Regina Bienenstein
Glauco Bienenstein
Daniel Mendes Mesquita de Sousa
Introdução
Este capítulo discute questões relativas à luta por moradia na dinâmica da produção de cidades brasileiras, com foco no período que vai desde meados da segunda metade do Século XX até o presente momento. O objetivo é refletir sobre a contribuição da Universidade para o avanço da luta popular pelo direito à terra. A reflexão se dá por meio da análise da atuação do Núcleo de Estudos Habitacionais e Urbanos (NEPHU), órgão vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense (PROEX/UFF) que, desde os anos 1980, participa, em conjunto com movimentos sociais, na defesa da moradia de interesse social adequada no estado do Rio de Janeiro, Brasil. Se concentra na revisão do processo de construção de uma metodologia de regularização fundiária que, para além da dimensão jurídica, agrega qualidade ao meio ambiente construído, garantindo o direito à moradia adequada aos moradores de áreas populares. Nele, considera-se o enfrentamento da questão do acesso à terra, frente à ampliação da informalidade, ao aumento da população vivendo de aluguéis nas comunidades e, por fim, à expansão do poder paralelo e do crime organizado nas comunidades.
Importante ressaltar que, ainda que o atual contexto sociopolítico brasileiro aponte diversos óbices ao desenvolvimento do trabalho, avalia-se que a conjuntura política aberta com a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022, parece ser um alento, tendo em vista os últimos anos de desconstrução dos instrumentos políticos e jurídicos. Dessa maneira, o caminho da construção de políticas públicas voltadas para moradia adequada parece orbitar novamente o cenário político, apesar das atuais condições da vida urbana terem se tornado crescentemente complexas e contraditórias.
Tendo em vista que não se pode escolher as condições em que a luta se faz, pensar sobre ela, em conjunto com as comunidades, movimentos sociais e ativistas, pode representar um importante e desafiador caminho para se tentar reverter o rumo do desenvolvimento das nossas cidades, buscando garantir o direito à cidade e à moradia. Nesse cenário, certamente a Universidade pública brasileira, ao assumir como suas principais funções a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão de qualidade e socialmente referenciados teve e continua tendo papel relevante no contexto de um País que, paradoxalmente, apresenta um considerável grau de riqueza, de um lado, e um crescente e contundente quadro de miséria e desigualdade de outro.
Além desta introdução e das considerações finais, o capítulo está estruturado em três partes. A primeira, corresponde ao período que vai do final da ditadura empresarial-militar (1985), quando são apresentadas algumas das principais questões vinculadas à formação
propriamente dita do NEPHU, enquanto núcleo extensionista de uma universidade pública, identificando os objetivos principais da luta pelo direito à cidade e à moradia que se reestruturava à época. Nesse momento, a definição do redesenho urbanístico do ambiente construído de assentamentos populares apareceu como uma forma de realizar, simultaneamente, a regularização urbana e a fundiária, passo inicial para a construção de um método de trabalho que colocava a comunidade como protagonista na elaboração dos projetos que iriam afetar seu espaço de morar, isso acontecendo em plena ditadura empresarial-militar(1964-1985)!!
A segunda parte corresponde ao período de abertura democrática (1985-1995), quando pesquisas associadas a iniciativas de extensão universitária permitiram realizar sínteses e, num processo de aproximações sucessivas, consolidar um método de trabalho, com rotinas e instrumental gráfico que viabilizaram o diálogo entre moradores e equipe técnica. Os casos usados aqui como referências ocorreram em diferentes contextos sociopolíticos e jurídicos, demonstrando desafios e dificuldades que apareceram e continuam aparecendo na implementação dos instrumentos da legislação mais atual.
Na terceira parte, a luta popular se afirma como referência e o método desenvolvido como guia. Num contexto político caracterizado por dilemas e contradições, passando pelas administrações do Partido dos Trabalhadores, PT (2003-2016) e pelo período pós-golpe de 2016 até o presente momento, marcado pela resistência democrática representada pela reeleição de Lula, em 2022, e pela ofensiva neoliberal e de setores vinculados à extrema direita, aspectos esses que têm colocado novos desafios e obstáculos, demandando crescente organização das forças populares e democráticas, para viabilizar o supracitado direito à cidade e à moradia. Importante destacar que este é um desafio ainda mais presente quando a democracia brasileira, dificilmente conquistada, sofre ameaças. Nesse sentido, é urgente participar, contribuir e reforçar as lutas populares, movimentos sociais e ativistas voltados para a reconstrução de um ambiente democrático capaz de reverter o rumo do desenvolvimento urbano brasileiro e garantir um efetivo direito à cidade e à moradia. É neste contexto que se compreende o necessário e importante papel da universidade pública brasileira.
O fim da Ditadura
Empresarial-Militar: a emergência de um método
Conforme já apontado em diversas ocasiões, a obtenção da moradia pelo trabalhador de menor renda foi e continua sendo, via de regra, predominantemente o resultado de sua ação direta em territórios periféricos e/ou relegados pelo capital imobiliário, frequentemente impróprias para ocupação, onde, sem qualquer orientação técnica, se formam favelas e loteamentos autoproduzidos e autoconstruídos.
O tratamento das favelas pelo Estado tem variado ao longo do tempo. Após extenso período de invisibilidade e apesar de tolerados até mesmo pelos agentes econômicos (notadamente, no caso em tela, o capital imobiliário), passaram a ser “[...] consideradas como ‘desafio’ à propriedade privada, isto é, ao pilar da organização territorial da sociedade capitalista e um obstáculo à atuação da especulação imobiliária” (Bienenstein, R., 2001, p. 26), ganhando espaço propostas de remoção forçada, em especial, nas décadas de 1960-1970, na cidade do Rio de Janeiro, durante o período da ditadura empresarial-militar brasileira (1964-1985).
O despertar de um novo amanhecer, após essa noite de 21 anos que se abateu sobre o Brasil no período de 1964 a 1985, trouxe um conjunto de esperanças e demandas a serem satisfeitas no que se referia aos territórios populares, a saber, favelas e comunidades urbanas. O resgate de itens das pautas anteriores, inscritas nas reformas de base (que incluíam os setores educacional, fiscal, político, urbano e agrário), à época do então Presidente João Goulart (1961-64) pelos movimentos sociais que se reorganizaram durante o processo de redemocratização, promoveu, em 1985, a atualização de tais pautas, conferindo importância à regularização de serviços públicos e do direito à terra, dentre outras demandas.
Tal reorganização, nos estertores da derrocada do período ditatorial, repercutiu tanto na articulação de coletivos sociais (sindicatos e moradores, entre outros) e associações profissionais, quanto nas instituições públicas como, por exemplo, nas universidades federais, com a emergência de associações de docentes voltadas não somente para a questão salarial, mas também para novas formas de atuação no seio da sociedade o que, por sua vez, requereu a revisão, ainda que inicialmente tímida, dos currículos vigentes.
A estruturação de um conjunto de moradores de áreas populares em movimentos sociais organizados, por seu turno, resultou na formação de associações de moradores, que recorreram a associações profissionais, como por exemplo o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), para requerer orientações que pudessem contribuir com a mitigação dos problemas oriundos do tipo de urbanização que se acirrou durante o regime militar.
Nesse contexto, a Favela do Gato, localizada no município de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro situada em terreno acrescido de marinha pertencente à União e ameaçada de remoção total, em decorrência da construção de novo traçado da rodovia federal BR101, trecho Niterói-Itaboraí, estado do Rio de Janeiro, buscou em fins de 1982 apoio no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFF, em especifico na disciplina obrigatória da grade curricular, “Projeto de Habitação dos Grupos de Baixa Renda/Projeto IV”, cujas professoras de então, Maria Elisa Meira (já falecida) e Regina Bienenstein, aceitaram o desafio.
Nessa oportunidade, um grupo de professores do então Departamento de Arquitetura e Urbanismo que trabalhava com propostas vinculadas à habitação de interesse social decidiu pôr em prática uma nova abordagem acadêmica da questão, rediscutindo, inclusive, o papel social tanto de uma universidade pública, quanto dos arquitetos e urbanistas que ela formava.
Importante considerar que a ação, apesar de inserida em uma disciplina, extrapolava o atelier de projeto e não obedecia ao calendário acadêmico, em função dos tempos e movimentos do processo oriundo de reivindicações dos segmentos sociais envolvidos, assim como exigia a articulação e integração entre atividades de ensino, pesquisa e extensão. Nesse contexto, o primeiro desafio enfrentado foi a inexistência de fomento à extensão universitária, o que tornava toda a atuação dependente dos alunos matriculados na disciplina como também de voluntários interessados no trabalho.
Na verdade, tal orientação inseriu, de forma contundente, as demandas populares como parte do atelier de projeto, transformando-o em um espaço interdisciplinar. Nele, exercícios simulados em terrenos abstratos, sem nem mesmo a existência de destinatários dos estudos e projetos, foram substituídos por projetos a serem desenvolvidos em lugares reais, com moradores e demandas também reais.
De qualquer forma, a partir da parceria estabelecida com a Universidade, o caso da Favela do Gato se tornou terreno fértil não somente para revisão as orientações a serem
adotadas no ensino da arquitetura e do urbanismo voltado à temática da habitação social numa universidade pública, como também à reflexão sobre os princípios e os pressupostos metodológicos para a regularização fundiária, enquanto uma ação voltada para assegurar o direito à moradia e à cidade. O diálogo com moradores e a vivência quase cotidiana naquele espaço, num processo que privilegiava e continua a privilegiar o “estar no chão” do território popular, logo apontaram para a necessidade de considerar suas potencialidades (atividade da pesca lá desenvolvida, por exemplo), assim como os problemas lá existentes (ruas estreitas ou interrompidas, parcelas sujeitas a inundação, coabitação e insalubridade devido à alta densidade).
Dessa maneira,
[...] o projeto Favela do Gato se desenvolveu dentro de dois eixos principais: o primeiro (1983 e 1984) voltado para impedir a remoção total, assegurando o reassentamento das famílias cujas moradias seriam atingidas pela estrada para outro local, em condições previamente conhecidas e acordadas, e o segundo eixo direcionado para a regularização fundiária da parte remanescente da favela (Bienenstein, 2017, p 41-42, grifo nosso).
Duas questões logo se colocaram como fundamentais. A primeira delas já perseguida nos exercícios acadêmicos desenvolvidos antes mesmo da chegada da Favela do Gato à Universidade, se referia à garantia da efetiva participação e do protagonismo da população na definição e na decisão das propostas que afetariam seus espaços de morar. Partindo do pressuposto de que são inegáveis a experiência e o conhecimento da população sobre tal espaço, adotou-se como orientação fundamental romper a posição de ‘trabalhar para o usuário’ e, adotando-se a postura de ‘trabalhar com o usuário’, reconhecendo o protagonismo do morador cujo conhecimento é adquirido em sua vivência cotidiana dos espaços da cidade. Isto colocou o desafio de “/.../ praticar uma arquitetura que consider[asse] o ambiente construído pelas pessoas no seu dia a dia, seus marcos simbólicos e representações individuais e coletivas, no sentido de melhorá-los, e não propriamente de substituí-los” (Bienenstein, R. et.al., 2017, p. 24).
Nesse sentido, mais do que discutir e apresentar propostas para os professores no atelier, era necessário adotar procedimentos de projeto que deveriam ser compreendidos pelos moradores durante o processo de resolução dos desafios colocados, como também exercer, por parte da equipe envolvida, o papel de interlocutor dos habitantes junto aos órgãos técnicos competentes e envolvidos nos processos.
A intenção de estabelecer um verdadeiro diálogo entre equipe técnica e os moradores se transformou na tarefa de traduzir a linguagem técnica, hermética, abstrata e de difícil compreensão, buscando uma linguagem oral, escrita e gráfica acessível. Ela exigiu também renunciar ao poder de decisão do arquiteto, ao demandar que ele se colocasse disposto e disponível para trabalhar lado-a-lado com moradores, estando disposto a “apreender e trabalhar com as lógicas e os conceitos da população para, a partir daí, estabelecer um rico processo de trocas (de conhecimentos, saberes, experiências, entre outros)” (Idem, p. 26).
A segunda questão se relacionava com a postura a ser adotada, frente aos problemas identificados na área objeto de estudo. Nesse sentido, duas alternativas se colocavam: (i) promover a regularização fundiária do assentamento, sem correção dos problemas e
supostamente acelerar o processo jurídico ou (ii) conhecer, reconhecer e avaliar as condições de habitabilidade daquela parcela de cidade, suas características e problemas para, a partir daí, trabalhar no que foi denominado de redesenho urbanístico, permitindo resolver os problemas encontrados.
Esta última foi a opção escolhida pelos moradores da Favela do Gato. Portanto, a regularização fundiária não se restringiria à distribuição de títulos correspondentes às parcelas de terras ocupadas, sem qualquer ação que promovesse melhorias no ambiente construído e consolidado ou se limitaria a uma estratégia de acesso ao mercado privado de terras, mas deveria significar um caminho no sentido de alcançar o direito à moradia e à cidade, isto acontecendo antes mesmo da aplicação de um referencial jurídico mais robusto que orientasse tais decisões.
O desafio foi então buscar propostas que atendessem às necessidades identificadas no assentamento, e que também fossem compreendidas e aceitas pelos moradores. Partindo do reconhecimento daquele espaço construído, a ideia era promover ajustes e não sua substituição. O olhar cuidadoso sobre a ocupação logo evidenciou a importância de trabalhar não somente os espaços públicos, mas também os espaços privados (lotes e moradias), agregando um desafio adicional, acarretando a necessidade de romper com a resistência de alguns moradores em relação a alterações em suas posses, há muito consolidadas.
Apesar de discutidas com cada uma das famílias lá residente e, aparentemente, sendo por todas aprovadas, o momento da implantação dos novos limites de lotes evidenciou que a linguagem utilizada na apresentação das propostas ainda merecia ser aperfeiçoada e que o método de discussão individual deveria ser alterado. Na verdade, ficou evidente ser fundamental a criação de espaços coletivos de decisão, visando evitar a defesa exacerbada de interesses individuais. Estava assim construído um primeiro roteiro metodológico, com as principais atividades a serem desenvolvidas.
Uma vez vencidos esses obstáculos e após a implantação da proposta de resenho urbanístico da área que articulou o assentamento com seu entorno, as famílias remanescentes no assentamento se tornaram proprietárias da terra que ocupavam, com escrituras recebidas, em 11 de janeiro de 1993, (Bienenstein, R., 2014, p. 58-64).
Outro resultado importante da experiência na Favela do Gato foi o fato de que a riqueza do processo vivido tanto pelos moradores envolvidos, quanto pela equipe da Universidade (professores e alunos), teve como desdobramento a proposta metodológica de assessoria técnica aos segmentos sociais subalternizados, que progressivamente se aperfeiçoou e consolidou, abrindo caminho para outras possibilidades de replicação e se tornando uma espécie de guia para outras ações de assessoria. Vale contudo destacar que a construção de um método não significou a ausência de óbices, uma vez que houve resistências com o que se poderia resumidamente identificar como um “urbanismo popular”, que requeria um novo olhar, tanto no que se referia à postura do arquiteto (professores e alunos) frente às demandas do processo de elaboração de propostas, quanto ao tipo de envolvimento exigido dos alunos inscritos numa disciplina formal e obrigatória da grade curricular do curso de Arquitetura e Urbanismo. Resumidamente, os argumentos abrangiam desde constrangimentos relativos ao estreitamento das possibilidades de mercado de trabalho e à perda do controle do processo de concepção de propostas.
Além disso, era também alegado que a universidade não poderia assumir tarefas legalmente atribuídas aos profissionais de arquitetura e urbanismo, especialmente as que diziam respeito à autoria e responsabilidade técnica das propostas. Por parte dos alunos, houve alguma reação frente ao fato de a experiência requerer um envolvimento que poderia extrapolar os horários curriculares formais, o que afetaria suas respectivas agendas pessoais, enquanto outros estudantes argumentavam que estariam atuando sem o devido pagamento das horas trabalhadas, ou seja, servindo de “mão de obra barata e/ou não paga”!
O conjunto dessas resistências acarretou diversas discussões e embates, mas não conseguiu estancar a ação realizada pela Universidade, diante da crescente demanda de coletivos populares por assessoria técnica. Na verdade, na década de 1980, as discussões e experiências de assessoria técnica, iniciadas ainda nos anos 1960 na cidade do Rio de Janeiro, começaram a ser retomadas em algumas universidades e a experiência da Favela do Gato se coloca como uma das pioneiras naquele momento. Hoje, a situação é outra, na medida em que há um conjunto de grupos extensionistas e de pesquisa em diversas instituições de ensino superior do País, que têm como temática os territórios populares.
Importante destacar que novos desafios oriundos de um tipo de urbanização crescentemente segregada e desigual do ponto de vista espacial e social têm exigido novos olhares sobre a realidade imediata e a busca de soluções que priorizem a transformação do ambiente de atuação, a partir dos territórios populares. Ou seja, são demandadas soluções que admitam entrelaçamentos mais articulados entre o saber técnico formal e os saberes populares, que resultem numa atuação conjunta e se tornem um poderoso instrumento operativo, tanto para a explicitação de aspectos da realidade brasileira, que até recentemente não eram tratados na universidade, quanto para aqueles cujo protagonismo nas lutas pela sobrevivência cotidiana têm demandado uma criatividade que deve ser incorporada ao processo de reelaboração dos seus espaços de vivência. Claro está que isso implica na tomada coletiva de consciência de uma realidade que era e ainda é, muitas vezes, invisibilizada.
Vivenciando a Redemocratização: reconhecendo e atuando em espaços populares (1985-1995)
As esperanças nutridas pela redemocratização do Brasil, especialmente a partir da promulgação da nova Constituição, em 1988, encontrou obstáculos por conta, resumidamente falando, de três aspectos: (i) pelos novos arranjos geopolíticos que emergiram no bojo do que foi denominado “fim do socialismo real”; (ii) pela emergência dos novos avanços tecnológicos em curso à época, notadamente aqueles ligados à microeletrônica e a automação e (iii) pelas repercussões do esgotamento do modelo de desenvolvimento do mundo capitalista, no após a Segunda Guerra Mundial, baseado na contínua e crescente inclusão de mão de obra na produção de valor e mais-valia, que caracterizou o que ficou conhecido como “os 30 anos gloriosos”, e cujo ocaso se deu na primeira metade dos anos 1970, trazendo questionamentos ao conjunto de políticas compensatórias que caracterizavam o que foi denominado de “Estado de bem-estar social” , que no Brasil assumiu uma versão incompleta.
Nesse sentido, se por um lado, com a redemocratização, o país se reinseria no contexto das democracias do mundo, por outro, enfrentava o esgotamento do modelo de
desenvolvimento levado pelos governos militares, especialmente no que se referia ao pagamento dos empréstimos internacionais contraídos no mencionado período e, no que tange à moradia, assistiu-se o fim do modelo implementado pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e a eclosão das lutas dos mutuários.
Assim, a conjugação desses aspectos com as carências de toda ordem presentes na sociedade brasileira naquela época e as pautas que foram reprimidas durante o período militar, representaram contundentes obstáculos para a efetivação dos avanços contidos na denominada “Constituição Cidadã”. Não por acaso, o termo “década perdida” tenha surgido no noticiário econômico, assim como tenham fracassado as tentativas de estabilização, materializadas nos diversos planos que foram instaurados durante a Nova República.
Vale também observar que, nesse mesmo período, o País assistiu o crescimento das organizações político-partidárias e sociais dos trabalhadores, tais como a criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT) em 1979, em Lisboa, Portugal, do Partido do Trabalhadores (PT) em 1980, e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984.
Em resumo, o fim da ditadura empresarial-militar patenteou uma série de mudanças em diversas dimensões da vida urbana, que acabaram por revelar novos arranjos políticoeconômicos e sociais que ainda marcam a estrutura do Estado brasileiro, mas que, a partir da liberdade de organização e de imprensa e das eleições diretas para os diversos níveis políticoadministrativos, abriram possibilidades de grandes transformações sociais.
O olhar sobre essa situação começa a se alterar, a partir da introdução de conceitos e mecanismos na Constituição Federal de 1988 que viabilizavam ações de urbanização e de regularização fundiária, abrindo possibilidades para a parcela popular da cidade que passou a ser vista como compondo o déficit habitacional qualitativo que merecia ser recuperado. Durante a Nova República1, ainda que enfrentando os obstáculos que foram resumidamente tratados na subseção anterior, a agitação política e as lutas concernentes às reivindicações de direitos prosseguiram. Nesse contexto e conforme indicação anterior, no âmbito da experiência aqui discutida, os resultados positivos da parceria entre a Universidade e a Favela do Gato despertaram a atenção de outras comunidades organizadas e inscritas na luta por seus direitos, que passaram a demandar apoio técnico ao grupo de professores da UFF engajado no supracitado projeto, Projeto Favela do Gato, sinalizando para a necessidade de uma ação permanente de assessoria técnica, que resultou na institucionalização do NEPHU. O resultado foi a consolidação da experiência com a criação em caráter experimental do NEPHU, inicialmente em caráter experimental, em 1986, inicialmente vinculado ao Gabinete do Reitor, tornando-se um núcleo de apoio à extensão universitária, ligado à PROEX/UFF, somente em 2007.
Para efeito destas notas, no bojo do retorno à normalidade democrática valem ser destacadas as eleições diretas para os governos estaduais que, no estado do Rio de Janeiro, resultou na eleição de Leonel de Moura Brizola (1983-87 e 1991-94) e na possibilidade de resgate de ações voltadas à inserção de grupos sociais menos favorecidos nas pautas governamentais. Dentre tais ações, podem ser citadas a implementação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), a partir de 1983 a reestruturação das ações das
1 Período iniciado a partir do fim da ditadura empresarial-militar, em 1985.
polícias civil e militar e o acolhimento de demandas do pujante movimento social organizado à época; dentre elas, o movimento pela posse da terra da região de Pendotiba, no município de Niterói, o que seria à época o maior conflito fundiário urbano, cujos moradores lutavam desde o final da década de 1970 pela posse da terra e contra a remoção.
Em 1986, portanto ainda em momento anterior à promulgação da Constituição Cidadã, em 1988, moradores e lideranças apresentaram ao NEPHU, pedido por assessoria técnica, impondo novos desafios à equipe. Na verdade, a escala do que passou a ser chamado de Projeto Pendotiba, acarretou a mudança de patamar da proposta de trabalho, incorporando novos desafios. Naquele momento, a ação envolveria cerca de 5.000 famílias, distribuídas em 12 glebas descontínuas.
A partir de então, o engajamento do NEPHU em diferentes conflitos fundiários, permitiu a aplicação e o aperfeiçoamento da metodologia de regularização urbanística e fundiária, originária no Projeto Favela do Gato. Nesse sentido, é importante destacar aspectos relativos ao processo dialógico entre a equipe técnica e a população, buscando viabilizar o entendimento e o diálogo com um número muito maior de pessoas e, a partir daí, orientar processos decisórios efetivamente coletivos, no sentido de promover a transformação dos territórios trabalhados, incluindo, por exemplo, a correção de situações variadas de risco (escorregamento, inundação, insalubridade), problemas de circulação, além do acesso a serviços urbanos, entre outros quesitos.
Novamente, a organização e mobilização de um considerável número de moradores, somada à parceria com o NEPHU possibilitaram, após intensa luta política, a conquista da desapropriação das terras por interesse social e para fins de regularização fundiária pelo governo Brizola, em 1987.
Uma vez conseguida a desapropriação da terra, a luta se voltou para a titulação de cada família. Na ocasião, o enfoque a ser adotado na regularização fundiária sequer era objeto de discussão. Foi necessário então colocar o tema na pauta e buscar uma definição coletiva sobre se a titulação deveria representar a possibilidade de agregar qualidade ao ambiente construído ou se ocorreria sem alteração nos assentamentos, o que corresponderia à exclusão das famílias cujas moradias estavam em áreas de risco. Esse processo demandou muito diálogo e reflexão para que aquelas famílias tivessem a clara dimensão de seus direitos e das dificuldades que seriam enfrentadas, num cenário em que, apesar do momento político vivenciado no Brasil a partir da redemocratização, predominava a lógica patrimonialista e, portanto, de resistência a ações voltadas para beneficiar as classes populares. Importante lembrar que no tocante à prática de planejamento urbano, o desconhecimento da cidade popular também se fazia presente, somente considerando sua face chamada ‘formal’. A atuação nos territórios populares se resumia a ações do tipo ‘bica de água’, pavimentação de trechos de escadarias ou implantação de pequenas áreas de lazer. Mas, o que se propunha era preparar o assentamento para receber infraestrutura plena, resolver problemas de acessibilidade, de insalubridade e de risco, garantindo efetivamente o direito à cidade àquela população.
Uma vez escolhido o enfoque, o próximo desafio foi romper a resistência da equipe técnica do governo estadual, especialmente por conta de se colocar na pauta de demandas uma proposta de regularização fundiária diferente da adotada naquele momento pelo governo do Estado, que contemplava apenas a dimensão jurídica.
A atuação em uma das glebas do Projeto Pendotiba, Monan Pequeno, permitiu contornar a resistência e as dificuldades colocadas pelos técnicos do Estado sobre esse novo enfoque de regularização fundiária: (i) eliminando problemas e aproveitando as potencialidades presentes no assentamento; (ii) permitindo promover sua inserção corrigida na estrutura física da cidade e o acesso de seus moradores a espaços de uso público e privado planejados (ruas, praças, lotes, edificações etc.); (iii) auxiliando o planejamento ao nível municipal, uma vez que traria para o âmbito da gestão administrativa, áreas que historicamente estiveram fora de seu domínio e ação, incorporando-as ao sistema de registro e controle de terras e de construção e à base jurídica e fiscal da cidade (Bienenstein, R., 2001, p. 29).
O apoio técnico a outras comunidades que lutavam pelo direito à moradia e à cidade trouxe outras questões a serem tratadas, tais como: casos de aluguel, mais de uma posse por titular, ocupação em faixas de proteção de corpos d’água, de redes de alta tensão, ocupação de áreas de proteção ambiental foram alguma delas. Essas novas questões exigiram longos diálogos com os moradores, sempre em espaços coletivos, quando ficou clara a necessidade de não espacializar/localizar os problemas ao discuti-los, tratando-as como situações gerais para as quais seria necessário definir regras para resolver. Além disso, foi preciso também experimentar novas linguagens gráficas no diálogo para que problemas e alternativas de solução ficassem claras e compreensíveis para todos os participantes. Assim, adotou-se o recurso de “histórias em quadrinhos” que ilustravam cada problema e apresentavam as alternativas de solução. Essa estratégia contribuiu para neutralizar a tendência de personalizar e se posicionar em defesa de seus respectivos interesses individuais, no lugar de considerar os interesses coletivos.
O método assim consolidado, a partir de uma perspectiva dialógica e emancipatória, incorpora a população em todas as decisões sobre seu espaço de morar, permitindo a definição coletiva e negociada de normas de parcelamento, uso e ocupação do solo a serem aplicados no respectivo projeto de redesenho urbanístico. Assim, todos os estudos são realizados num processo permanente de integração, diálogo e troca de experiências entre moradores e técnicos. Busca-se, portanto, possibilitar ao cidadão comum, em especial ao de baixa renda, o direito de ser protagonista nas decisões relativas à elaboração do projeto urbanístico e ao saber técnico, sugerindo o exercício de um urbanismo que, por um lado, respeite as tipicidades da cidade real, preservando, sempre que possível o ambiente construído existente e por outro, observe e avalie criticamente suas condições de habitabilidade e trabalhe no sentido da solução dos problemas encontrados e de um exercício legível para seus destinatários finais.
Desnecessário dizer que progressivamente o roteiro metodológico, os instrumentos e as rotinas para o desenvolvimento do redesenho urbanístico e da proposta de regularização fundiária foram aperfeiçoados e contribuíam para acelerar o processo.
Com o fim da ditadura-civil militar, a consequente reconquista da democracia também acarretou a consolidação de normativas tais como as leis orgânicas municipais e as constituições estaduais, resultando num novo olhar sobre a regularização fundiária que, entre outras medidas, acabaram, conforme já mencionado, por ampliar a procura de movimentos populares pelo NEPHU, influenciados diretamente pelas então recentes experiências e conquistas da Favela do Gato e do Projeto Pendotiba.
A década de 1990 se inicia com a primeira eleição direta para presidente da república, em 1989, após o período dos governos militares, elegendo para o cargo Fernando Collor de Mello (1990-1992). Com um discurso dito modernizador, Collor inicia seu governo vinculando suas propostas à agenda econômica já em curso na Inglaterra, a partir da eleição de Margareth Thatcher como primeira-ministra (1979 a 1990), e nos Estados Unidos da América, com Ronald Reagan sendo eleito presidente da república (1981 a 1989). As orientações contidas no que ficou conhecido como “Thatcherismo” e “Reagonomics” priorizavam, cada um a seu modo, a desregulamentação e a privatização, entre outras iniciativas a serem adotadas pelas novas administrações. Ambos os governos representaram não somente o renascimento ideológico da direita, obnubilada desde 1945, e seus postulados, mas especialmente as ideias identificadas com o que hoje é conhecido como neoliberalismo. Tais prescrições estavam alinhadas com o que ficou conhecido como “Consenso de Washington”, especialmente no que se referia à austeridade fiscal como principal forma de enfrentar o quadro de crise de financiamento dos estados nacionais e o acionamento de privatizações de empresas e de serviços públicos.
O impedimento de Collor, em 1992, e a forte oposição dos movimentos sociais às reformas neoliberais retardaram a implementação mais radical de tal ideário no Brasil, que seria retomado a partir de 1995, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) para a presidência do país.
Desnecessário dizer que o que se poderia aqui denominar “virada neoliberal”, também repercutiu nas formas de governo das cidades, obedecendo na escala local às mesmas orientações gerais anteriormente citadas. Nesse contexto, observou-se o deslocamento da administração urbana para a gestão empresarial das cidades (cf. Harvey, 1996), provocando o abandono de todo um conjunto de instrumentos que, embora nunca tenha de fato dado conta de realidades dinâmicas e contraditórias das forças do mercado, garantiram algum tipo de racionalidade na aplicação de diretrizes voltadas ao desenvolvimento das cidades.
Todavia, o período também abrigou conquistas importantes , em especial, a construção de um potente arcabouço jurídico, a partir da Constituição Federal de 1988, que incluiu dois artigos voltados para a questão urbana e fundiária e indicou o Plano Diretor como instrumento necessário ao planejamento, a partir da aprovação da Lei n° 10.257, em 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade, que tem o planejamento participativo e a função social da propriedade entre seus mais importantes princípios básicos.
Além de uma referência, um guia para a ação: sobre a consolidação do método
A aprovação do Estatuto da Cidade e a eleição de Lula, em 2002, resultaram em outro contexto político que possibilitava a disputa por um novo modelo de cidade entre, de um lado, as forças sociais ligadas aos movimentos de moradia e dos direitos sociais e, de outro, as forças do mercado, voltadas para a flexibilização das legislações urbanas. Nesse contexto, a criação do Ministério das Cidades, em 2003, a normatização do processo de regularização fundiária e de diversos instrumentos de política urbana voltados para a construção de cidades de direitos representaram importantes avanços. Contudo, por outro lado, assistiu-se à
emergência e consolidação de novas iniciativas pró-mercado, as quais apontavam para a reinvenção da cidade como campo privilegiado da acumulação urbana.
Na década de 2010, se observa um claro embate entre aqueles que defendem uma cidade de direitos, voltada para as necessidades e uso pelas pessoas, e a visão pautada pelas orientações neoliberais materializadas especialmente, para a crescente flexibilização da legislação urbana e a condenação dos planos diretores, com o argumento de obstaculizarem o pleno desenvolvimento da cidade, uma vez que engessava o livre movimento de agentes econômicos, notadamente, o capital imobiliário. A resultante de tais tensões acarretou na tendência para a redução da escala de planejamento, substituindo o plano pelo projeto, sejam eles grandes projetos urbanos ou pequenas intervenções pontuais.
Além desse deslocamento, uma outra forma de planejar emerge nesse contexto, a saber, o planejamento estratégico. Diferentemente do viés dito “engessador” dos agora “antigos” planos diretores que apontavam regulamentações diversas, entra em cena a discussão dos possíveis cenários – cambiantes – aos quais a cidade deve se integrar, tendo em vista a nova dinâmica do capitalismo mundo afora. Ou seja, a ideia do que a cidade poderia/deveria ser é substituída pela ideia do que elas têm a oferecer, tendo em vista as “janelas de oportunidade” presentes na dinâmica econômica de corte predominantemente financeiro e globalizado.
Desse modo, assumida como algo a ser vendido num mercado mundial altamente competitivo de cidades em busca de investimentos, emergem propostas de desregulamentação do aparato jurídico e institucional, voltadas para deixar partes da cidade sob o livre arbítrio do mercado, reforçando o processo histórico de uso da terra, do qual o capital imobiliário é protagonista, assim como intervenções pontuais de renovação urbana e iniciativas de divulgação das supostas qualidades da cidade, estratégia também conhecida como city-marketing, que passaram a compor os principais quesitos da nova pauta urbana.
Assim, ao invés do que anteriormente estava colocado (e, necessário registrar, embora com diversas limitações), isto é, o discurso e o ideário calcados no desenvolvimento e na igualdade, a nova realidade do mundo capitalista passa a delinear a ideia de desenvolvimento vinculado à competitividade!
No caso de Niterói, a criação de uma Secretaria de Assuntos Comunitários e a aprovação de um Plano Diretor que, em 1992, incluía instrumentos voltados para a democratização do acesso à cidade, foram rapidamente substituídas por iniciativas de outra natureza, tais como a implementação de equipamentos culturais, como o Museu de Arte Contemporânea (MAC), inaugurado em 1996, o Caminho Niemeyer, cujas obras foram iniciadas em 2002, assim como a adoção de um contundente conjunto de iniciativas voltadas ao city-marketing constituíram a coleção de propostas que, a partir da primeira eleição para o cargo de prefeito da cidade de Jorge Roberto Silveira (1989-92; 1997-2000; 2001-2002; 2009-2012), passaram a compor o rol de iniciativas de sucessivas administrações até o presente momento, ainda que sob o comando de diferentes coalisões de poder presentes na cidade.
Nesse período e também conforme indicação anterior, influenciados pelas experiências da Favela do Gato e do Projeto Pendotiba, abordados na seção anterior, se amplia e fortalece o movimento de luta pelo direito à moradia e à cidade em Niterói, e a Universidade passa a ser procurada não somente para desenvolver estudos e projetos técnicos voltados para resolver problemas e situações de risco ou enfrentar propostas de
remoção, mas também como fonte de conhecimentos que qualifiquem a participação dos moradores de áreas populares em espaços de discussão sobre a cidade e locais de moradia, como audiências públicas convocadas pelo executivo e/ou legislativo municipal.
Desse modo, emergem, de um lado, o reconhecimento e a importância dos territórios populares no contexto das cidades, requerendo um posicionamento e a ação daqueles que lutam pela sua inclusão/adequação no espaço e na sociabilidade urbana e, de outro, um tipo de orientação vinculada a um modelo de gestão, produção e uso da cidade, alinhado aos novos modos de gestão da riqueza capitalista predominantemente baseadas na financeirização.
Nesse contexto, assiste-se ao progressivo acirramento das contradições já presentes no espaço e na sociabilidade, a urbanização brasileira radicaliza seus padrões de segregação e desigualdade, apresentando uma também problemática articulação entre áreas de extrema riqueza espalhadas num mar de territórios populares de miséria e pobreza.
Nesse ambiente de contradições, os dispositivos legais aprovados, sejam os presentes na Constituição de 1988 ou em dispositivos infraconstitucionais, como o Estatuto da Cidade, não encontraram um consistente respaldo das políticas públicas municipais Brasil afora, impondo óbices às tentativas de reversão do processo de segregação socioespacial. Na verdade e de forma sintética, não seria exagero afirmar que, a despeito do ambiente democrático presente no País e da ampliação de dispositivos legais, o que se tem assistido, especialmente nos últimos anos, é a consolidação de coalizões de poder e dinheiro locais, cujas articulações têm capturado tais dispositivos, transformando-os em uma janela de oportunidades para a acumulação. Além disso, tais coalisões também têm conferido um caráter peculiar aos processos de discussão e reflexão sobre os destinos das cidades, transformando-os em algo que pode ser reconhecido como “uma democracia sob medida” dos interesses dos grupos hegemônicos.
Compondo ainda o cenário de contradições e disputas, é importante relembrar que o período recente também foi marcado pelos megaeventos esportivos ocorridos no Brasil (Panamericano - 2009, Jogos Olímpicos - 2016 e Copa do Mundo - 2014) que desencadearam a volta das remoções como política pública de Estado.
Na verdade, após um longo percurso em que o NEPHU, envolvido em projetos de regularização fundiária e apoio à luta de diversas comunidades, principalmente no Rio de Janeiro, com o advento dos megaeventos esportivos houve o retorno do fantasma das remoções. Cerca de 88 mil pessoas foram removidas somente na cidade do Rio de Janeiro, no período de 2009 a 2018, o que aponta para a falta de uma política pública efetivamente voltada para resolver o problema de moradia da parcela mais empobrecida da classe trabalhadora.
Não é à toa que os processos participativos foram sendo cada vez mais deixados de lado pelas gestões municipais e a consulta à população passou a se resumir ao cumprimento “burocrático” de exigências legais. Audiências públicas, oficinas e outros eventos que deveriam representar espaços de participação, se transformaram em espaços de validação do que já estaria previamente definido, nos quais as estratégias de organização da discussão (tempo exíguo de intervenção para dirimir dúvidas e/ou fazer proposições, linguagem técnica pouco acessível, entre outras) e a captura de dispositivos, invertendo e/ou dificultando sua aplicação, acabou por obstaculizar as iniciativas de comunidades de conseguirem superar o desafio da regularização fundiária e urbana. Nesse cenário, cresceu a influência do capital
imobiliário no planejamento urbano, agora travestido pelo discurso da gestão democrática de uma cidade em que somente aqueles que têm demanda solvável têm a chance de nela se inserir.
Este foi também o período no qual milhares de manifestantes foram para as ruas protestar, inicialmente, contra a alta da tarifa dos transportes públicos que afetaria o direito à mobilidade, especialmente nas grandes metrópoles. Rapidamente, esse movimento “fez emergir não uma, mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e paradoxos” (ROLNIK, 2013, p. 8). “O coração da agenda da reforma urbana, a reforma fundiária/imobiliária, foi esquecido. Os movimentos sociais ligados à causa se acomodaram no espaço institucional onde muitas lideranças foram alocadas.” (Maricato, 2013, 23).
De acordo com Safatle (2015, não numerado), o período compreendido entre o “final dos anos 1980 até hoje [2015] a democracia não se aperfeiçoou, e os seus problemas ficaram mais evidentes, como a baixa participação popular”. O autor aponta ainda que, na realidade, a Nova República foi, entre outras coisas, um modelo de construção pós-ditadura na qual a governabilidade era compreendida através da cooptação de uma parte da classe política que se desenvolveu na própria ditadura, e da gestão de toda essa massa fisiológica da política brasileira vinculada a interesses locais.
Soma-se a isso a guinada ocorrida no Brasil, com o golpe parlamentar de 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, quando se inicia a revisão de diversos marcos legais, incluindo o da regularização fundiária, com a proposta da Medida Provisória n° 759/2016, convertida na Lei Federal nº 13.465/2017, que criou formas de aquisição da propriedade, com o intuito de beneficiar o mercado imobiliário. Em paralelo, é iniciada também uma intensa campanha no sentido da revisão dos fundamentos da “função social da propriedade” (Sousa, 2022).
Nesse contexto, o NEPHU juntamente com o movimento social organizado continuou atuando em projetos populares que buscavam, por um lado, pelo menos mitigar tais repercussões, e por outro, apontar caminhos inovadores para solução de antigos problemas, participando em diversas frentes com ênfase, conforme anteriormente indicado, em processos de regularização fundiária e urbanística, principalmente com base numa metodologia que busca transformar os membros de tais movimentos em atores do processo de elaboração dos projetos, ou seja, retirá-los da posição de meros ouvintes, requerendo e valorizando sua efetiva participação e protagonismo.
O exame detalhado do espaço construído das comunidades do Morro do Lazareto (2004) e Morro Lara Vilela (2005), em Niterói; Vila Esperança (2006), em São Gonçalo; Engenho Velho (2007), em Itaboraí; Arroio Pavuna (2013) e Vila União Curicica (2014), no Rio de Janeiro; e Fazendinha-Sapê (2018), em Niterói ofereceu dimensões e desafios diferentes a serem trabalhadas e incorporadas ao método.
Nesse sentido, tais casos indicaram, mais uma vez, a importância e a necessidade de trabalhar os espaços públicos e também os privados, lotes e casas, de modo a resolver especialmente problemas de insalubridade, coabitação, mais de uma posse por titular, casos de aluguel, o contraste entre lotes com dimensões apropriadas para atividade agrícola (2.000 a 4.000m2) lado a lado com outros com áreas extremamente reduzidas, produto da intensificação do processo de urbanização (30 a 50m2) , entre outros, garantindo assim, condições adequadas de moradia. Em todas essas situações, o desafio tem sido também o de
encontrar caminhos para cumprir a função social da propriedade (Bienenstein, R., et. al., p. 135)
Além disso, também ficou evidente que ajustes no ambiente construído quando negociados família a família, propiciam a defesa exacerbada de interesses individuais, em detrimento do coletivo, abrindo espaço para resistências e conflitos. A estratégia adotada foi a adoção de uma rotina metodológica que passou a incluir instâncias coletivas de discussão e decisão, de modo a permitir enfrentar a relutância dos moradores e/ou posseiros de lotes que teriam a área diminuída, com a discussão e definição prévia de parâmetros urbanísticos gerais, “regras gerais do jogo”, que orientariam o redesenho daquele território.
O projeto de redesenho urbanístico, gerado a partir da aplicação de tais parâmetros urbanísticos às situações-problema encontradas, define limites das posses/lotes e identifica cada moradia a ser reassentada e os possíveis locais onde poderia ser construída a nova casa, sempre que possível, realizado nos limites do próprio assentamento, a partir do redesenho dos lotes. A escolha da nova localização, assim como as alterações propostas nos lotes que permanecem são submetidas para aprovação de cada família, em reuniões com todos os moradores. Aqui, a linguagem gráfica e oral a ser utilizada é um aspecto fundamental para permitir a clara compreensão do que está sendo proposto. Geralmente, são necessárias várias assembleias, quando se destaca a importância dos interesses coletivos sobre os individuais e onde cada família pode se manifestar sobre o projeto e especificamente sobre a proposta para seu lote, o que orienta possíveis alterações e ajustes no projeto para atender a todas as demandas.
O método proposto seria novamente aperfeiçoado quando aplicado na comunidade da Fazendinha-Sapê, em Niterói, ameaçada de remoção em 2010, a partir de proposta de desapropriação pela Prefeitura de Niterói para viabilizar a utilização da área para construção de um conjunto habitacional para abrigar os antigos moradores do Morro do Bumba. A partir de um forte movimento insurgente, os moradores, organizados em torno da Associação dos Moradores e Amigos da Fazendinha-Sapê, conseguiram resistir à remoção total da prefeitura da cidade e anular o Decreto de Desapropriação.
Em 2018, representantes da Associação dos Moradores procuraram o NEPHU para realizar o projeto de regularização fundiária plena, processo impactado, em março de 2020, pela pandemia da Covid-19, obrigando a interrupção dos encontros presenciais da equipe com os moradores. A alternativa adotada para sua continuidade foi utilização de meios remotos. Nesse momento, uma nova estratégia é incorporada à metodologia e representantes dos moradores passam a participar das reuniões técnicas, anteriormente exclusiva da equipe. Tal rotina demandou um cuidado ainda maior com a linguagem técnica empregada que deveria ser, a todo momento, traduzida. No entanto, sem dúvida, sua adoção representou um salto qualitativo na busca por uma ação verdadeiramente emancipatória.
Palavras Finais
Diante do quadro habitacional atual onde é reconhecidamente impossível substituir, num curto período, o estoque de moradias representado pela produção informal, a alternativa que se apresenta viável é a melhoria de sua qualidade, isto é, empreender ações relativas não só à provisão de saneamento básico, infraestrutura e recuperação de moradias, mas também
ao redesenho urbanístico do assentamento e à regularização legal e jurídica da propriedade da terra (Bienenstein R., 2001, p. 26-28).
No entanto, é também importante considerar que a regularização fundiária, independente do enfoque adotado, “se implantada isoladamente, pode vir a estimular/alimentar a “indústria da irregularidade” (Cenecorta & Smolka, 2000, apud Bienenstein, R. 2001. P. 435). Na verdade, o tratamento do problema habitacional exige múltiplas e diversificadas soluções, incluindo a construção de novas moradias, a preço acessível ao trabalhador de baixa renda, de variadas tipologias e localizações; o aproveitamento, recuperação e adequação de espaços construídos vazios ou subutilizados que não cumprem sua função social; a urbanização e a regularização urbanística e fundiária de assentamentos populares até a aplicação do arcabouço jurídico disponível, que facilitem o acesso à terra vazia e infraestruturada pela classe trabalhadora. Tais alternativas devem ser complementadas e estar associadas a políticas sociais e econômicas. Além disso, o tratamento da questão habitacional deve estar contemplado e integrado às questões urbanas. Somente essa articulação permitirá enfrentar a situação de desigualdade e segregação presente em nossas cidades.
Especificamente com relação à regularização fundiária, é importante apontar que a política pública não pode estar dissociada da política habitacional e deve considerar o tipo de planejamento praticado.
O enfoque de regularização fundiária adotado nas experiências desenvolvidas no âmbito do NEPHU, “precedida ou acompanhada pelo redesenho urbanístico dos assentamentos implica em trabalhar com parâmetros urbanísticos que sejam aplicáveis a áreas espontâneas e que também garantam condições adequadas de habitabilidade” (Bienenstein, R., 2001, p.454). Isso demanda trabalhar em dois sentidos: por um lado, conhecer em detalhe e ter um olhar crítico sobre o espaço construído pela população, observando e avaliando suas condições de habitabilidade, problemas e potencialidades (Bienenstein, R., 2001) e, por outro lado, buscar identificar parâmetros urbanísticos que, mesmo não obedecendo à legislação urbanística, permita trabalhar com regras especiais, respeitando a tipicidade do ambiente construído e garantindo qualidade ao ambiente.
Cabe ainda relembrar que o exercício dessa prática poderá afetar espaços consolidados e provocar reações e conflitos entre moradores. Nesse sentido, é importante reconhecer a importância do saber popular e desenvolver tais iniciativas por meio de práticas verdadeiramente participativas. A experiência desenvolvida pelo NEPHU ensinou que discussões e decisões coletivas, objetivos claros e linguagem oral, escrita e gráfica apropriada são fundamentais para que o processo de redesenho urbanístico permita a ampla participação dos moradores nas decisões a serem tomadas. É também importante destacar alguns elementos externos ao método de trabalho em tela que extrapolam esta reflexão, repercutem na continuidade da assessoria técnica a moradores de territórios populares e, nos casos aqui discutidos, se manifestaram com maior ou menor intensidade em Vila Esperança, Engenho Velho, Morro do Lazareto, Vila União Curicica, Arroio Pavuna e na Fazendinha-Sapê. São eles: o retorno de propostas de remoção com justificativas variadas e a pressão do capital imobiliário; a imobilização do movimento popular através do avanço de um processo de cooptação de lideranças locais e a presença do narcotráfico e da milícia, fatores que podem obstaculizar ou mesmo impedir a atuação de equipe técnica e que merecem ser tratados em outra ocasião. Tais fatores demonstram as
dificuldades a serem enfrentadas em processos regularização fundiária e nos permitem refletir sobre os limites da democracia representativa. No que concerne aos entraves políticos e administrativos no enfrentamento da questão, não seria exagero dizer que as leis têm caminhado em um sentido, enquanto as administrações locais ainda estão presas aos interesses da classe dominante e do capital imobiliário, num cenário no qual ainda predomina o caráter patrimonialista da sociedade brasileira.
Finalmente, é importante destacar que “a construção de um “urbanismo socialmente includente e democrático” (Maricato, 2000, p. 179 apud Bienenstein, R., 2001, p. 465) passa também pela discussão sobre a atuação e a formação dos profissionais e pelo papel e responsabilidade da Universidade pública, gratuita e socialmente referenciada no sentido de buscar respostas técnico-científicas adequadas às necessidades e prioridades da população.
Referências
ABRAMO, Pedro. A Cidade da Informalidade: O desafio das cidades latino-americanas. Rio de Janeiro: Livraria Sette letras, FAPERJ, 2003.
BIENENSTEIN, Regina. Redesenho Urbanístico e Participação Social em Processos de Regularização Fundiária. São Paulo, 2001. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2001.
BIENENSTEIN, Regina; FREIRE, Eloísa Helena Barcelos; BIENENSTEIN, Glauco. A luta da Favela do Gato contra a remoção – um exemplo de articulação entre a universidade e comunidade. In: BIENENSTEIN Glauco, BIENENSTEIN Regina, SOUSA, Daniel Mesquita Mendes de. (Orgs). Universidade De Luta Pela Moradia. 1. Ed. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017, pp. 41-42.
BIENENSTEIN, Regina; GORHAM, Cynthia; BIENENSTEIN, Glauco; SOUSA, Daniel Mendes Mesquita. Autonomia, Resistência E Enfrentamento: Caminhos da Assistência Técnica. Contribuições para extensão universitária socialmente referenciada. In: XVIII ENANPUR 2019 Anais..., XVIII ENANPUR, 2019
GOHN, Maria da Gloria. Participação e democracia no Brasil: da década de 1960 aos impactos pós-junho de 2013. Petrópolis, Vozes, 2019.
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. São Paulo, Espaço e Debates, n. 39, 1996, p. 48-64.
HARVEY, David. Espaços de Esperança. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
SOUSA, Daniel Mendes Mesquita de. Direito à moradia no capitalismo dependente: Desafios da regularização fundiária em municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, 2023.
Capítulo 02
Mulheres negras e moradia: a interseccionalidade nos territórios populares
Vitoria Gouveia dos Santos Ribeiro Machado
1. Interseções e a interseccionalidade:
Os últimos cinco séculos, que conhecemos como a Modernidade, foram definidos por uma série de processos históricos, incluindo o tráfico atlântico de escravizados e consequentemente a escravidão e colonização europeia de África, América Latina e Ásia. Esses processos evocam o desenvolvimento do capitalismo e da industrialização, bem como o estabelecimento de estados-nação e o crescimento das disparidades entre os países. As categorias gênero e raça surgiram durante essa época como eixos fundamentais a partir dos quais as sociedades foram estratificadas e pessoas foram exploradas (Oyěwùmí, 2020).
“Raça” é um termo relacional e histórico, isto é, sempre esteve em constante mudança de significado, por estar inevitavelmente atrelado às circunstâncias históricas em que é inserido. Até o século XIX, as discussões acerca das diferenças humanas baseadas na raça estavam sempre no campo filosófico. Porém, a partir do desenvolvimento da corrente positivista, as suposições sobre as diferenças entre seres humanos mudaram quando estes deixaram de ser um objeto filosófico e passaram a ser um objeto científico. Esse advento permitiu a consolidação do racismo científico, a partir das concepções de determinismo biológico e geográfico, ou seja, na crença de que a pele não branca e o clima tropical favoreciam o surgimento de comportamentos violentos, imorais, além de indicarem pouca inteligência. Dessa forma, pessoas não brancas passaram a ser relacionadas à “bestialidade” e “ferocidade”. No século XX, parte da antropologia tinha como objetivo demonstrar a autonomia das culturas e abolir determinações biológicas ou culturais capazes de hierarquizar as diferentes raças e promover um tratamento discriminatório. A resposta obtida foi a de que a raça não é derivada da realidade natural. Raça é um elemento essencialmente político, como foi evidenciado pelos eventos da Segunda Guerra Mundial, especialmente o genocídio cometido pela Alemanha nazista. Mesmo com esse avanço, raça ainda é um fator político importante, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação socioespacial (Almeida, 2019).
O termo “gênero” é conceitualmente construído a partir da segunda onda do movimento feminista, desde a década de 1950 até meados dos anos 1990. Nesse período, uma série de estudos focados na condição da mulher surgiram, e a partir disso, uma teoria base sobre a opressão feminina começou a ser construída. Surge a distinção entre sexo e gênero, sendo o primeiro entendido como uma característica biológica e o segundo como um elemento constitutivo das relações sociais, um conjunto de características e papéis imposto à pessoa dependendo do sexo (Scott, 1995). Ademais, havia a necessidade de entender o sujeito mulher, a identidade feminina. Se o gênero é socialmente construído, a categoria social “mulher” não é universal (Oyěwùmí, 2020). Diante disso, o feminismo hegemônico e branco predominante no século XX começa a ser criticado porque não articula as desigualdades raciais, de classe, de gênero e sexualidade em suas propostas de análise. A
partir disso, as feministas negras constroem uma contundente ferramenta teóricometodológica de análise da realidade social: a interseccionalidade. Uma ferramenta “usada para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cis heteropatriarcado, e as articulações decorrentes daí” (Akotirene, 2018, p. 14).
A palavra interseccionalidade deriva da junção do adjetivo “interseccional”, do latim “intersectio”, de intersecção, que significa cortar pelo meio, e do sufixo -idade. Interseccionalidade é a característica do que é interseccional, a ação de cruzar uma coisa com outra, qualidade que se realiza por meio de interseções. O termo “interseccionalidade” começa a ser usado no campo das ciências sociais a partir de 1989, quando é cunhado pela professora e jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw. Naquele contexto, Crenshaw (2012) identificou que mulheres negras eram invisibilizadas tanto dentro do feminismo, como na luta antirracista. Ao se falar sobre mulheres, tomava-se como referência as experiências de mulheres brancas; e ao se falar sobre a população negra, tomava-se como referência as experiências de homens negros. Para ilustrar a interseccionalidade, Kimberlé Crenshaw usa a noção de eixos e ruas como analogia. Ao imaginar uma interseção de ruas, visualizamos ruas que seguem em direções diferentes - norte-sul, leste-oeste, por exemplo - e se cruzam em determinado ponto. Esses seriam os eixos de discriminação, sendo a discriminação racial a rua que segue do norte para o sul e a discriminação de gênero a rua que cruza a primeira na direção leste-oeste (Crenshaw, 2012). Na interseção entre esses eixos, estão as mulheres negras, como ilustra a figura abaixo.
Fonte: CRENSHAW, 2012.
Gender = Gênero
Racism = Racismo
Uma autora que dialoga com Crenshaw, é Judith Butler (2022). Ela critica a teoria feminista ao argumentar que, em sua essência, a teoria tem presumido que existe apenas uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, e atrelada diretamente a noção
Figura 1: Discriminação Racial e de Gênero
binária de masculino/feminino. A categoria mulher, ao ser analisada sem o cruzamento de raça e outros marcadores sociais, como orientação sexual e classe, oferece uma falsa ideia de universalidade. O grupo “mulher”, sozinho, não é capaz de abarcar as vivências de todas as mulheres.
A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a “especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam equívoca a noção singular de identidade (Butler, 2022, p. 22).
A partir disso, podemos refletir sobre a constituição das identidades do grupo “mulher”, que abarca multiplicidades a partir dos eixos de relação de poder supracitados: classe, raça, orientação sexual e identidade de gênero. Desse modo,, tomamos a interseccionalidade como ponto de partida para visibilizar algumas dessas identidades.
A interseccionalidade permite associar raça, gênero, classe e outros marcadores sociais. Tendo em vista que esses marcadores são diferentes entre si, ao cruzarmos dois ou mais marcadores, isto é, ao observar o que há na interseção entre eles, é possível analisar a vivência de mulheres negras. Do ponto de vista analítico, é importante frisar a dificuldade em se determinar o impacto específico tanto da raça, quanto do gênero, porque ambos estão entrelaçados nas experiências de mulheres negras. Este é o desafio da interseccionalidade e a partir disso, o capítulo pretende refletir sobre a conformação racial e de gênero do território, buscando identificar onde, predominantemente, a população negra e feminina está presente.
2. Raça, gênero e classe no território
Por conta do passado escravocrata e colonial do território brasileiro e da consequente consolidação do racismo estrutural, a segregação socioespacial tem um caráter racial. No Brasil, o mercado de terras e a produção do ambiente construído por intermédio de grandes projetos, operações urbanas, dentre outras iniciativas, têm reforçado o abismo entre as classes ricas e pobres, e consequentemente pessoas brancas e negras. Essa separação foi consolidada a partir da Lei Nº 601/1850 (Lei de Terras), primeira iniciativa no sentido de regulamentar a propriedade privada no Brasil. A lei restringe o acesso à terra somente através da compra, transformando-a em mercadoria. Com isso, grandes fazendeiros e latifundiários foram os que conseguiram acesso às terras, já que detinham os recursos financeiros necessários. Isso resultou na desigualdade racial do território, com as pessoas negras escravizadas ou recém-libertas e os indígenas, tendo o acesso à terra bastante dificultado, para não se dizer impossibilitado. Dito isso, um aspecto importante nesta reflexão é a dimensão espacial das relações raciais. Sendo a raça um constructo social, que classifica e regula comportamentos e relações sociais, ela tem uma relação direta com a geografia, cujo objetivo é compreender as dimensões espaciais das relações sociais. A partir disso, defende-se que as “relações raciais grafam o espaço, constituem-se no espaço e com o espaço” (Santos, 2012 p. 38). Diante
disso, é necessário considerar a espacialização de pessoas negras e consequentemente a segregação socioespacial, que comumente foi interpretada pelo viés economicista, analisada apenas a partir da classe. Diante da realidade das cidades brasileiras, podemos afirmar que a segregação socioespacial ocorre principalmente em favelas e comunidades, em suma, em territórios populares. Mas quem são os favelados? Que cor eles têm?
Partindo do entendimento de que as relações raciais grafam o espaço, encontramos em Lélia Gonzalez (1982) a indicação do lugar social e espacial da população negra brasileira. A autora reinterpreta a teoria aristotélica de “lugar natural” a partir do recorte racial para pensar os lugares naturalizados de negros e brancos que se agrega com a classe social.
Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães de mato, capangas etc., até à polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” [...] dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço [...] (Gonzalez, 1983, p. 232)
Desse modo, a lógica casa grande-senzala, instaurada pelo colonialismo, não foi rompida no território brasileiro. Apesar de ser uma reflexão feita há quarenta anos, a divisão racial do espaço infelizmente ainda impera na realidade do Brasil. Majoritariamente, a população branca deixou a casa grande para ocupar desde as mansões até os condomínios luxuosos, em bairros urbanizados e servidos de plena infraestrutura urbana; e a população negra deixou a senzala para ocupar desde as favelas até os conjuntos habitacionais de interesse social, localizados majoritariamente em periferias mal-infraestruturadas.
Considerando o recorte espacial de duas cidades do estado do Rio de Janeiro: a capital, Rio de Janeiro, e Niterói, cidade localizada no Leste Fluminense, seguimos a reflexão. Essa divisão racial do espaço na cidade do Rio de Janeiro é visível na “Figura 2: Mapa Racial de Pontos - Cidade do Rio de Janeiro, RJ”, onde é possível perceber que há uma menor concentração de favelas e uma ocupação predominantemente de pessoas brancas nas áreas litorâneas que, historicamente, vêm se consolidando como as mais valorizadas do ponto de vista imobiliário, material e simbólico (Tavares, 2016, p. 52). Nessas áreas, é flagrante a ausência de pessoas pretas e pardas, que se concentram nas zonas de favelas e nas periferias “distantes” do litoral.
Fonte: Autora, 2023.
O mesmo padrão racial de ocupação se observa na cidade de Niterói, antiga capital do estado. A “Figura 3: Mapa Racial de Pontos - Cidade de Niterói, RJ” mostra uma maior concentração de pessoas pretas e pardas nos territórios populares (favelas e região Norte), enquanto as regiões e bairros considerados nobres são locais majoritariamente ocupados pela população branca, especialmente na Região das Praias da Baía e Região Oceânica.
Fonte: Autora, 2023.
Figura 2: Mapa Racial de Pontos - Cidade do Rio de Janeiro, RJ
Figura 3: Mapa Racial de Pontos - Cidade de Niterói, RJ
Partindo para a análise da segregação socioespacial a partir do gênero, o que nos interessa é articular principalmente as três categorias sociais: raça, gênero e classe a partir da interseccionalidade. Ainda no pensamento de Lélia Gonzalez sobre o lugar de negro, identificamos uma reflexão pioneira acerca da interseccionalidade. Apesar da criação do conceito em 1989 pela professora e jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw, muitas intelectuais e feministas negras já abordavam a interseccionalidade antes, como por exemplo Gonzalez: “O fato é que, enquanto mulher negra sentimos a necessidade de aprofundar a reflexão, ao invés de continuarmos na repetição e reprodução dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais” (Gonzalez, 1983, p. 225).
Gonzalez (1993) defendia a necessidade de ir além da perspectiva socioeconômica, pautada apenas na raça e na classe, que elucidava uma série de problemas presentes nas relações raciais e estava presente majoritariamente nos textos sobre a temática na época Pautar o lugar da mulher negra apenas a partir dessa perspectiva não era suficiente. Essa inquietação surgiu a partir da figura da “mucama”, negra escravizada que era escolhida para os serviços realizados dentro da casa grande, e posteriormente a figura da empregada doméstica.
Segundo Gonzalez (1983), o engendramento da empregada doméstica se fez a partir da figura da “mucama”. Segundo a autora, a empregada doméstica é a “mucama” permitida. Isso pode ser percebido a partir de alguns dados, como o rendimento do trabalho, que qualifica a inserção do trabalhador no mercado laboral. Em 2022, a população branca ocupada ganhava, em média, 64,2% a mais do que a população negra ocupada, e os homens, 27,0% a mais do que as mulheres. Dentre esses casos, o grupo de pessoas com o menor rendimento médio real foi o de mulheres negras. Além disso, em relação às ocupações informais, que não garantem acesso aos mecanismos de proteção social, como direito à aposentadoria e às licenças remuneradas, para maternidade ou afastamento laboral por motivo de saúde, mostram uma maior proporção de pessoas negras trabalhando informalmente, e um cenário ainda pior para as mulheres negras, que representam porcentagens maiores também neste índice. Em relação à composição das atividades econômicas do Brasil, existem muitos trabalhadores em serviços domésticos, registrando quase 6 milhões de pessoas ocupadas, majoritariamente mulheres (5,3 milhões), contrastando com 500 mil homens realizando esse tipo de serviço (IBGE, 2023). Em suma, todos estes dados atrelados revelam desigualdades historicamente constituídas, a maior proporção da população negra ocupando posições de empregados e trabalhadores domésticos, sem carteira de trabalho assinada. E dentre estes casos, majoritariamente estão as mulheres negras, resultado da combinação perversa do racismo, sexismo e a pobreza. Este é o perfil comum dessas trabalhadoras, majoritariamente mulheres negras e pobres inseridas ainda no cotidiano de muitas famílias brancas, realizando serviços domésticos dentro das casas, assim como as “mucamas”. Dito isso, Gonzalez mostra a importância da interseccionalidade a partir da figura da empregada doméstica e da “mucama”. A autora deflagra as opressões marcadas pela interseção entre raça, gênero e classe sofridas pelas empregadas domésticas e os resquícios racistas nas relações de trabalho por conta do passado colonial e escravocrata do Brasil.
Diante disso, é necessário avaliar o lugar das mulheres negras na sociedade brasileira, evidenciando quais são as condições de moradia dessas mulheres majoritariamente. Atualmente no Brasil, o déficit habitacional é majoritariamente feminino. Esse fenômeno é
observado nos dados levantados pela Fundação João Pinheiro, no Relatório de Déficit Habitacional no Brasil, a partir de coletas realizadas entre 2016 e 2019.
Em 2019, 60% do déficit habitacional brasileiro era composto por mulheres. Tal situação é mais agravante na região onde estão inseridas as cidades de Niterói e do Rio de Janeiro, recorte espacial deste capítulo, onde esse percentual é de 62,3% (aproximadamente 1,423 milhão). Importante ressaltar que em todas as regiões geográficas, o déficit se mantém feminino. E a partir da análise por gênero, renda e raça, alguns pontos devem ser ressaltados. Entre 2016 e 2019, há um aumento do número de domicílios em déficit habitacional com mulheres como pessoa responsável pelo domicílio no segmento de até um salário-mínimo de renda domiciliar para todas as raças, mais expressivamente nos domicílios que têm mulheres pardas¹ como responsável e com até um salário-mínimo de renda domiciliar.
Especificamente no caso de um componente específico do déficit habitacional: o ônus excessivo com aluguel, situação em que o valor do aluguel é igual ou superior a 30% da renda familiar, entre 2016 e 2019, percebe-se o predomínio de domicílios com mulheres pardas como responsáveis e com renda familiar de até um salário-mínimo. Além disso, a ocorrência desse tipo de déficit é muito mais comum entre arranjos domiciliares formados por mães solo, mulheres sem cônjuge e com filho(s) de até 14 anos de idade (FJP, 2022).
Desse modo, é imprescindível pensar a intersecção entre raça, gênero e classe, tendo em vista que, segundo dados do IBGE (2019), dentre as 11 milhões de mães solo no Brasil, 61% delas são mulheres negras. Além disso, 63% das casas que têm como pessoa de referência mulheres negras, com filhos até 14 anos, estão abaixo da linha da pobreza. Esses dados explicitam um fenômeno denominado feminização da pobreza. Diante disso e consequentemente das dificuldades de acesso à terra, os territórios populares se configuram como uma solução para a falta de moradia de mulheres, e especialmente mulheres negras.
3. Interseccionalidade e o direito à cidade
Como exposto anteriormente, a interseccionalidade se apresenta como uma ferramenta teórico-metodológica importante para fazer uma análise contundente da realidade de mulheres negras. Isso porque permite associar raça, gênero, classe e outros marcadores sociais. Tendo em vista que não é possível identificar o efeito de cada um deles, porque estão todos estão entrelaçados na vivência de mulheres negras, a interseccionalidade permite a visibilidade destas trajetórias.
Articulando a interseccionalidade e os espaços urbanos, é possível perceber, a partir dos dados expostos anteriormente sobre como raça, gênero e classe se articulam, o lugar da mulher negra no território brasileiro, concluindo onde predominantemente, a população negra e feminina está presente. A feminização da pobreza e consequentemente o déficit habitacional feminino, articulado à divisão racial do espaço a partir da Lei de Terras e a impossibilidade de aquisição de terras por pessoas negras expõe que a solução encontrada pelas mulheres, e principalmente mulheres negras, para resolver a falta da moradia, foi os territórios populares, caracterizados pelas favelas, comunidades e ocupações.
Diante disso, vale evidenciar que a moradia só foi considerada um direito social no texto da Constituição Brasileira de 1988, doze anos depois, a partir da Emenda Constitucional Nº 26, de 2000, que alterou o texto do Artigo 6° para a seguinte redação:
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Brasil, 2000).
Tendo em vista que a moradia foi considerada um direito social a partir dessa emenda, é importante citar alguns autores que trabalham o direito à cidade e, consequentemente, o direito à moradia. Segundo David Harvey (2008, p. 23), esse é um dos mais preciosos, contudo, “mais negligenciado dos nossos direitos humanos”, e está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. É um direito comum, antes de individual, já que essa transformação depende do poder coletivo de moldar o processo de urbanização. Direcionando a reflexão ao recorte de raça, classe e gênero, é possível perceber que a luta pelo direito à cidade, cuja urgência é evidenciada na trajetória de mulheres negras moradoras de territórios populares, deve ser pensada também a partir da interseccionalidade. Em 1968, Henri Lefebvre (2001) foi quem primeiramente desenvolveu o conceito de direito à cidade. O autor aponta que as diferenças de acesso aos direitos dentro da cidade são determinadas pela classe. Tendo em vista todas as problemáticas expostas anteriormente sobre a realidade das mulheres negras no território brasileiro, não podemos nos apreender apenas aos condicionantes de classe, mas também de raça e gênero. A luta urbana vivenciada por uma mulher negra é totalmente diferente da vivenciada por um homem branco (Paula, 2019).
Em suma, o objetivo principal deste capítulo é viabilizar trajetórias que comumente não são pautadas no campo da arquitetura e urbanismo, e nos estudos gerais sobre a questão urbana. Sendo assim, que as vozes dessas mulheres negras, que vivenciam os territórios populares e direta ou indiretamente tem uma presença efetiva na luta pelo direito à moradia e à cidade, possam ecoar e mobilizar futuras mudanças no nosso meio acadêmico e profissional, ainda bastante elitista e embranquecido.
Notas
1. O termo “pardo” foi incorporado como categoria oficial pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no Censo de 1950, na classificação de cor ou raça, além dos termos preta, amarela, indígena ou branca para denominação étnica ou racial das pessoas no Brasil. A nomenclatura usada no texto segue a determinação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei Nº 12.288), que considera a população negra o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.
Referências
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Capítulo 03
Casa é um direito: olhando para a questão habitacional em Portugal
Caterina Francesca Di Giovanni
Introdução
Ter uma habitação é uma necessidade básica de todos os ser humanos, é condição essencial para ter uma vida digna e as condições físicas e sociais da casa influem a qualidade de vida de quem a habita. O direito à habitação1 tem um papel extremamente importante para o bem-estar humanos, sendo fundamental para aceder aos outros direitos fundamentais; é, de facto, demonstrado que a privação de uma habitação condigna provoca desigualdades sociais, económicas, da educação e da saúde, e conduz a episódios de segregação socioespacial.
Hoje o conceito que reconhece habitação como direito e valor de uso (public good) é posto em causa, quase suplantado com o sentido de produto (commodity), ativo financeiro e fator de lucro capitalista. Esta faceta antagónica da habitação, direito e mercadoria ao mesmo tempo, representa, de facto, “um conflito estrutural” (Tulumello 2024, p. 172).
A crise habitacional, a qual assistimos nos últimos tempos em termos globais e locais, é suportada e pressionada pelo fenómeno de financeirização (Tulumello & Dagkoulikyriakoglou, 2021), que esvazia e despreza o conceito de direito à habitação como direito humano fundamental, universal, incondicional e inalienável.
Figura 1 - Manifestantes protestam durante a manifestação
Fonte: "Casa para Viver, Planeta para Habitar", 30 de setembro de 2023.
1 É importante sublinhar que o “Direito à habitação” em Portugal é correspondente ao “Direito à moradia” no Brasil. Todas as vezes que se lê aqui “habitação” seria “moradia”, tal como “renda” seria “aluguel”. Estes conceitos têm significados diferentes nos dois países e podem confundir na leitura do texto.
Este contributo foca-se no conceito de “habitação como um direito”2 partindo do artigo 65 da Constituição portuguesa, que garante o direito à habitação no país. Apesar da promessa constitucional bastante inovadora para a época, as políticas habitacionais em Portugal não têm sido um sucesso como, pelo contrário, mostram na atualidade muitos problemas em relação a uma habitação condigna.
O objetivo aqui é examinar o direito à habitação em Portugal através dois aspetos: o primeiro é perceber a definição do direito à habitação em teoria, ou seja, através o conjunto de leis, tratado internacionais, textos académicos e jurídicos que o definem.
O segundo aspeto é compreender o direito à habitação em prática, ou seja, como efetivamente está operacionalizado no cenário mais recente da questão habitacional em Portugal, analisando quais soluções estão a ser desenvolvidas para enfrentar os problemas atuais.
Este texto é assim formado por 3 partes, seguidas das reflexões conclusivas.
A primeira parte define o direito à habitação em teoria; além da Constituição portuguesa, reportaremos conceitos e reflexões de académicos, realçando o nexo que liga direito à habitação ao direito à cidade.
Na segunda parte apresentaremos o direito à habitação em prática; através a descrição dos últimos acontecimentos da questão habitacional em Portugal, as carências habitacionais e o tipo de pessoas envolvidas, não deixando de mencionar o papel dos movimentos sociais que impulsionam o Estado para que responda aos urgentes problemas habitacionais.
Na terceira parte, como prossigo da segunda, mostraremos as soluções da resposta do Estado e a análise de alguns resultados preliminares que se colocam no âmbito da investigação em curso do projeto LOGO do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa3 .
Finalmente, nas conclusões vão estar umas reflexões sobre como a política pública de habitação em vigor não está garantindo o direito à habitação para todos, como definido pela Constituição; o Estado mostra-se incapaz de responder a operacionalização deste direito, continuando a responder em maneira emergencial e sem uma visão integradora e a longo termo, e colocando, de facto, o direito à habitação como universal apenas em teoria.
1. Direito à habitação em teoria
O direito à habitação é um direito humano estabelecido internacionalmente; foi reconhecido no artigo 25.º da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 e no artigo 11.º do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais de 1966, que estabelece «o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência»4 . (Nações Unidas, 2002, p. 9).
2 A referência do título deste contributo é dada pela sessão temática da revista de Política Social, Rediteia nº 52 (2020), “Habitação como um direito” e pela fotografia da manifestação de 2023 (Fig. 1).
3 Desde julho 2023 faço parte do projeto de investigação LOGO- A governança local das políticas de habitação. Uma investigação das estratégias locais de habitação”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (2022.03719.PTDC) e coordenado pelo Doutor Marco Allegra.
No âmbito europeu, encontra-se reconhecido na Carta Social Europeia de 1965 e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em vigor com o Tratado de Lisboa em 2009, que inclui no artigo 34.º o direito à habitação, referindo-se ao combate da exclusão social e reconhecendo a assistência social e habitacional para garantir uma vida digna para todos.
Em Portugal, encontra-se ratificado no artigo 65º da Constituição democrática de 1976, que declara:
«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.
5. É garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território.»
(Constituição da República Portuguesa, texto da VII Revisão Constitucional, 2005. Fonte: https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublica Portuguesa.aspx)
A introdução do direito à habitação e a maneira como é definido no texto constitucional tem um duplo aspeto inovador: primeiro, porque não todos os países democráticos têm reconhecido este direito na própria carta constitucional (por exemplo, a Itália reconhece apenas o direito à propriedade5), em vez o artigo 65 mostra-se “até mais
5 Na Constituição portuguesa, o direito à propriedade está reconhecido no artigo 62 entre os direitos económicos. Para mais informações sobre a comparação desses direitos na Constituição portuguesa e na italiana ver Antunes & DiGiovanni, 2021 e Di Giovanni, 2022.
progressista, isto é, vai mais longe, do que aquilo que está inscrito em declarações e protocolos internacionais e em Constituições de outros países europeus” (Antunes, 2021, p. 95). É necessário referir que o texto constitucional de 1976 foi elaborado no contexto social, cultural e económico da Revolução dos Cravos que livrou o país de mais de 40 anos de ditadura; naquela altura o “problema da habitação [...] era gravíssimo no país”, estimava-se que “faltavam aproximadamente meio milhão de habitacões para que todas as famílias portuguesas acedessem a uma habitação individual” (Idem, p. 73).
A Constituição foi escrita num período progressista no qual vinha a ser construída a democracia no país, ou seja, no PREC (Processo Revolucionário em Curso), que teve lugar entre 25 de abril de 1974 e 25 de novembro de 1975, sendo “um processo de organização popular capaz de construir espaços de autonomia e, ao mesmo tempo, de desafiar o direito - isto é, de forçar a transformação estrutural do Estado” (Tulumello, 2024, p. 236).
O PREC não teve ressonância só na habitação, mas foi além dela; os seus princípios revolucionários produziram um momento extraordinário na história do país na produção de direitos sociais da democracia portuguesa. De acordo com Tulumello (2024, p. 224), tratouse de um momento de conjuntura de natureza política, social e histórica no qual “as relações de poder permitem o nascimento de movimentos sociais capazes de pôr em xeque e transformar a legalidade e a própria estrutura de um Estado”. Uma conjuntura que nunca mais se repetiu na história do país até agora.
O segundo aspeto inovador é que o artigo 65 não se limita a definir o conceito, mas explica as responsabilidades do Estado e o que este pode fazer para garantir o direito á habitação, mencionando o esforço público, como também o apoio às comunidades locais e experiências como criação de cooperativas e autoconstrução. A concretização deste direito é, portanto, ligada à maneira como o Estado responde para garanti-lo, reconhecendo que as escolhas feitas em matéria de políticas públicas de habitação estão condicionadas por múltiplos fatores, como pelos recursos financeiros do país e pelo posicionamento ideológico dos Governos eleitos. Por estas razões, “as políticas de habitação não deveriam ser analisadas de forma isolada, mas sim compreendendo a conjuntura e a realidade económica, social e política de cada momento” (Antunes, 2021, p. 90).
Antes de continuar, é necessário fazer um parêntese explicando, para que não saiba, que em Portugal não existe a regionalização6 e a política de habitação encontra-se centralizada; incumbe ao Estado intervir como regulador, promotor, provisor direto e como proprietário (Mendes, 2020), existindo, porém, uma transferência de responsabilidades do poder central para o poder local (os municípios), que foi, “no domínio habitacional, omissa e hesitante”. (Antunes, 2021, p. 99). Em prática, falamos de transferência de deveres e encargos, e pouco ou nada de recursos técnicos, financeiros e administrativos, tornando assim as autarquias como meros executores das políticas definidas pelo poder central (Mendes, 2020). Para um resumo sobre as competências da habitação entre poder central e local em Portugal ver a Fig.2.
6 Apesar da exceção das regiões autónomas dos arquipélagos de Madeira e dos Açores.
Figura 2 - Instituições com intervenção na área da habitação pública em Portugal.
Estado Municípios
Atribuição Garantir a uniformidade da legislação. Elaborar políticas de habitação.
Rendas
Gestão
Monitorização dos usuários
Decadência e revogação
Vendas Definir requisitos para alienação da habitação.
Utilizar as políticas nacionais de habitação. Elaborar programas municipais de habitação. Fixar regras para habitação municipal (rendas, critérios de prioridade). Manutenção do parque habitacional. Gerir listas municipais.
Critérios de definição para habitação municipal.
Regulamentos de gestão e contratos de arrendamento de habitação municipal.
Verificação periódica de rendimentos.
Verificação da situação habitacional.
Possibilidade de vender habitação municipal a particulares.
IHRU Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana
Utilização das políticas de habitação social criadas pelo governo central. Manutenção de edifícios e habitações públicas.
Critérios de definição para habitação de propriedade do IHRU.
Regulamentos de gestão e contratos de arrendamento de habitação pública.
Verificação periódica de rendimentos.
Verificação da situação habitacional.
Possibilidade de vender habitação municipal a particulares.
Fonte: Elaboração da autora.
Olhando do ponto de vista teórico, não existe um conceito que define o direito à habitação em maneira unívoca. Por isso, é reputado um “conceito vazio” (Bengtsson, 2001, p. 256), adquirindo significado de acordo com o conjunto de princípios e ações que vão ser adotados na política nacional de habitação, e que definem o tipo de regime de habitação. De acordo com Bengtsson (2001), o regime de habitação adotado pode ser genericamente categorizado por duas abordagens: a primeira – universal – onde o Estado intervém no funcionamento do mercado geral, no sentido de obrigação de garantir um direito social e atender às necessidades de todos; e a segunda – seletiva – onde o Estado intervém com uma política pública reservada a uma minoria de pessoas, a mais carenciada, alocando habitações apenas para pessoas em condições desfavorecidas. Esta abordagem evidencia que é no mercado que se devem encontrar recursos habitacionais e o Estado deve satisfazer apenas o excesso de procura que não seja atendido pelo mercado.
Esta divisão de regimes de habitação mostra como o direito à habitação seja um “marcador político de preocupação” (Idem, p. 256), que define como a habitação é pensada e tratada na política do Estado-social e perceber “qual o papel do Estado e qual a população que deve ser abrangida pelas políticas públicas de habitação” (Antunes, 2021, p. 175).
Na definição do direito à habitação na Constituição portuguesa e no sentido explicado acima por Bengtsson, notamos o apelo a uma abordagem de regime nitidamente universal, todavia as intenções delineadas em teoria nem sempre têm uma conexão linear com as políticas criadas para as alcançar e demonstraremos como o que está escrito na Constituição portuguesa não está a ser levado à prática. Em termos gerais, podemos afirmar que a política pública de habitação em Portugal tem tido uma aplicação seletiva, porque restrita a um segmento de população de acordo com o período (apoio à classe média, construção para os pobres, etc.), não abrangendo todas as categorias e deixando assim os graves problemas habitacionais a mercê do mercado.
É necessário refletir sobre o facto que o direito à habitação não compreende apenas espaços habitacionais, sendo habitação muito mais que as quatro paredes da casa.
A casa é espaço de abrigo, proteção, segurança, privacidade, descanso, lazer, é também onde se cria a própria identidade, onde se tecem as relações familiares, é determinante do status social, do acesso aos serviços, da saúde física e psicológica, entre outras variáveis.
Portanto, o direito à habitação tem uma dimensão mais abrangente do que se costuma pensar, sendo essencial pelo direito à cidade e tornando estes direitos estritamente ligados.
Ao contrário do direito à habitação, o direito à cidade não é juridicamente definido na Constituição ou por outras leis, mas é amplamente reconhecido em outras frontes. Definido pela primeira vez por Henry Lefebvre em 1968, o direito à cidade estabelece-se como um apelo e, ao mesmo tempo, uma necessidade e “só pode ser formulado como um direito à vida urbana transformada e renovada” (Lefebvre, 1968 [2014]: 113, trad. própria, itálico no texto original).
De acordo com Aalbers & Gibb (2014), tem uma dimensão concreta dada pelas lutas e reivindicações de re-inventar a cidade da maneira mais conforme às novas exigências e novas configurações das relações sociais, políticas e económicas para a afirmação da justiça social e territorial para todos os que a habitam, reapropriando-se do poder de decisões de pensar e construir a cidade (Harvey, 2012, p. 8-9).
Trata-se de um direito coletivo mais do que individual, porque implica o exercício de um poder coletivo e de participação que nasce como grito de reivindicação nas ruas e nos bairros, mostrando a existência de uma conexão robusta entre os movimentos sociais e as lutas para uma habitação adequada e para a afirmação do direito à cidade (Rolnik, 2014).
2. Direito à habitação em prática: “fotografia” da questão habitacional
Como explicamos anteriormente, nem sempre as intenções teóricas têm uma conexão linear com as políticas criadas para as alcançar; nesta secção vamos examinar a efetiva aplicação do direito à habitação na prática, isto é, como o Estado responde para garantir este direito.
Antes de mais, deixamos uma postila, que indica como, do ponto de vista histórico, as políticas públicas de habitação em Portugal foram sempre emergenciais e sem visão a longo termo, perpetuando os problemas habitacionais num mecanismo estrutural de crise. Devido às restrições da dimensão do contributo, não será possível explicar aqui o trajeto das políticas habitacionais para evidenciar a evolução do direito à habitação, mas referimos obras que possam ajudar o leitor a ter uma leitura histórica sobre o tema7
O objetivo aqui é focar-se sobre a presente questão habitacional em Portugal que tem caraterísticas novas, mas também “alguns déjà-vu” (Tulumello, 2024, p. 93), como o debate sobre regulação do mercado, o retorno dos subsídios para compra, entre outros.
Antes de passar aos problemas ligados à questão habitacional, iniciamos por mostrar uma “fotografia” da presente a habitação hoje em Portugal.
Existem em Portugal cerca de 70% de proprietários (habitação própria) e o 22% de casas arrendadas e o restante entre habitação social, cooperativa e outras situações de utilizo habitacional (Censos 20218).
A habitação social9 representa o 2% (cerca 120 000 fogos) do parque inteiro e é uma percentagem extremamente baixa se a confrontarmos com a outros países europeus, cujo parque habitacional público pode chegar a 20% ou até ultrapassar esse valor; é o caso dos Países Baixos, da Dinamarca, da Áustria e da Suécia (dados Housing Europe, 2021).
Contudo, Portugal não é único país a ter um tão reduzido parque habitacional social, encontramos similaridades com os países da Europa do Leste – a Eslováquia, Estónia, Hungria, Bulgária, Lituânia etc. – e da Europa do Sul, como Espanha, Itália, Grécia. São países que têm um regime residual de habitação, cujo significado foi explicado na secção anterior, adotando os conceitos desenvolvidos por Bengtsson (2001).
É constantemente agrupado com os países da Europa do Sul não apenas pelas semelhanças do ponto de vista dos “números da habitação” (como vimos, muitas casas de propriedade e poucas de habitação social), mas também pelas analogias que vão “além dos números” (Di Giovanni & Antunes, 2019), ou seja, pelas caraterísticas históricas, políticas e sociais e o tipo de soluções adotadas; não esquecendo que cada trajetória nacional conta uma história diferente destes números, com mecanismos sociais em períodos diferentes (Antunes & Di Giovanni, 2021).
Em Portugal não existe só um claro défice quantitativo de habitações a custo controlado, mas também subsistem problemas graves na qualidade das habitações, comummente explicada com indicadores, como a dimensão do espaço, a falta de serviços essenciais na habitação, o conforto térmico e a qualidade tecnológica de construção.
Dados do Eurostat (2018) indicam que Portugal é o segundo país da União Europeia com mais população a residir em alojamentos com más condições (Antunes, 2021, p. 180). Por norma, quanto mais recente for o parque habitacional, será mais fácil encontrar soluções de qualidade, como consequência da evolução da legislação nesta matéria nas últimas décadas. Todavia, nem sempre isto corresponde à realidade, e Portugal é um exemplo
7 Para um breve resumo da cronologia das políticas de habitação em Portugal ver Allegra & Di Giovanni (2024) ou em maneira mais aprofundada (Antunes, 2018; Antunes, 2019).
8 Censos - O que nos dizem os Censos sobre a habitação – 2021. Fonte: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=66323830&PUBLI CACOESmodo=2
9 A habitação social (social housing) em Portugal é maioritariamente de propriedade pública (public housing) e pode ser definida como habitação a custo controlado ou em regime de renda apoiada; a habitação a preços acessíveis (affordable housing) é um tipo de habitação com rendas acessíveis abaixo do mercado para a classe média.
disso, tendo um parque habitacional relativamente jovem, pois quase metade dos edifícios clássicos foram construídos após 1980 (Censo 2021), em comparação com a média europeia que regista nos mesmos anos cerca do 30% de todo o parque construído11 (Eurostat, 2011).
Relativamente à questão do conforto térmico das habitações, Portugal regista altos valores de pobreza energética e uma em cada 5 famílias (cerca de 2 milhões, 20% da população) não consegue aquecer ou arrefecer a própria casa (Horta et al., 2019). Nesse cenário são as famílias com menos recursos económicos as mais afetadas, confirmando que existe uma correlação muito forte entre rendimento familiar e pobreza energética, ou seja, entre condição social das famílias e condição física do alojamento (Carmo et al., 2015).
Além das questões mencionadas, é necessário ainda realçar que existe um problema muito grave de acesso à habitação, sobretudo nas áreas metropolitanas, onde se concentra a maioria da população do país13. O aumento exponencial dos preços da habitação que Portugal teve nos últimos anos, como evidenciado na Fig. 3, provocou mais desigualdades socio-territoriais, afetando não apenas as populações mais vulneráveis, mas também as classes médias, que não conseguem ter acesso à habitação nas áreas metropolitanas.
Figura 3 - Índice dos preços da habitação- Trimestral 2014- 2024
Total Alojamentos novos Alojamentos existentes
Fonte: Banco de Portugal, https://bpstat.bportugal.pt/dominios/39
O esforço máximo do rendimento das famílias destinado à habitação própria não deveria ultrapassar o 30%, embora o Eurostat coloque o limite máximo de 40%14 O estudo de Seixas & Antunes (2019), realça que no período 2016-2018, os valores da habitação ultrapassam a taxa de esforço de 40% em alguns municípios, como Lisboa, Cascais e Oeiras. Para cerca metade dos rendimentos familiares médios, a taxa de esforço na compra de casa na AML é de 56%, que pode chegar até 116% no município de Lisboa; para arrendamento é de 91% para a AML e de 134% em Lisboa.
11 Eurostat - Census hub HC53 de 2011: Fonte: https://ec.europa.eu/eurostat/statisticsexplained/index.php?title=Quality_of_life_indicators_-_material_living_conditions#Housing_conditions
13 É necessário dizer que a área metropolitana de Lisboa tem 2,9 habitantes e a área metropolitana do Porto tem 1,8 habitantes, que somando é cerca metade da população de todo o país (Censo 2021).
Estes valores são intoleráveis para quem mora e trabalha em Portugal e delineiam uma falta de reposta que não se limita apenas à habitação social, destinada aos segmentos mais vulneráveis, mas também à habitação acessível, destinada a jovens e classe média
A subida dos preços, o acesso à habitação, a precariedade de núcleos informais e as desigualdades socioespaciais são só alguns dos problemas habitacionais que atualmente atravessam transversalmente muitas áreas metropolitanas dos países ocidentais.
Por isso, a habitação ganhou uma atenção renovada nos últimos anos ao nível internacional: na Urban Agenda (2016), no European Pillar of Social Rights (2018), nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e na Agenda 2030 da ONU.
Em Portugal, a habitação obteve um interesse aumentado através de uma série de iniciativas locais que deram lugar a reivindicações do direito à habitação, que impulsionou o Estado para que tomasse decisões sobre uma temática urgente e esquecida por muito tempo. Começamos para recordar a onda de preparação do conflito social dos movimentos sociais que, sumariamente, na última década (Tulumello, 2024, p. 119) – não que nos anos anteriores não o tinham feito (Di Giovanni, 2018) – reclamaram com mais força os direitos à habitação e à cidade, que tinham sido deixados à mercê das lógicas do mercado, de mecanismos capitalistas de atrair investimentos e capitais com consequências de turistificação e gentrificação.
Estas contestações denunciavam as lógicas de mercantilização e financeirização não apenas no sector habitacional, mas também na apropriação exclusivamente privada no uso urbano coletivo e público (por exemplo, recordamos a luta para ter um jardim na praça de Martim Moniz em Lisboa15).
Iniciativas interessantes – como a Caravana pelo Direito à Habitação em 201716 (Falanga et al, 2019; Tulumello, 2024; Kühne, 2019) – permitiram conhecer as emergências nas várias zonas do país, criar redes e partilhar conhecimento para empoderamento cívico, a fim de pressionar o poder público à resolução de graves problemas.
Graças a esta onda de força cívica coletiva, em 2017 veio em visita em Portugal a Relatora Especial das Nações Unidas para a Habitação Adequada, a qual publicou um relatório onde denunciou as graves carências habitacionais existentes no país e a falta de coordenação entre o governo e os municípios para enfrentá-las (Farha, 2017).
De seguida, o Estado começou a dar sinais políticos para enfrentar a urgente questão habitacional, estabelecendo, ainda em 2017, uma Secretaria de Estado da Habitação 17 , que levou à elaboração de diagnósticos e levantamentos e ao lançamento de um pacote legislativo, chamado Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), aprovado em 2018.
A NGPH18 apresenta-se como “um momento discursivo governamental inovador” (Mendes, 2020) pretendendo atingir dois grandes objetivos ideológicos: o primeiro é passar de 2% a 5% de habitação “com apoio público” (diferente da habitação pública) e o segundo objetivo é desenvolver políticas integradas, intersectoriais e para um novo modelo de governança (mais colaborativa, integrada e baseada no conhecimento). Todavia, na sua operacionalização está longe das metas prefixadas e presenta já alguns insucessos, que veremos através dos resultados preliminares dos programas ao abrigo desta política.
17 Após 13 anos de ausência, a última Secretária do Estado da Habitação tinha estado em 2004.
18 Nova Geração de Políticas de Habitação, https://www.portaldahabitacao.pt/nova-geracao-de-politicas-de-habitacao
Entre os vários programas aprovados aqui recordamos dois: o Programa 1º Direito endereçado para situações mais indignas, de precariedade habitacional e o Programa de Arrendamento Acessível para arrendamento a preços compatíveis com os rendimentos das famílias, maiormente para classe média.
A NGPH estabelece, entre outras coisas, que cada município aprove a própria Estratégia Local de Habitação (ELH), formada por diagnóstico das carências, soluções encontradas e prioridades, e que vai ser fundamental para aceder ao financiamento do Programa 1º Direito.
Em 2019 foi aprovada a Lei de Bases da Habitação, que se apresenta “como um importante suplemento de operacionalidade à Lei Fundamental, estabelecendo as incumbências e tarefas do Estado na garantia do direito à habitação a todos os cidadãos, nos termos da Constituição” (Antunes, 2021, p. 94). “A habitação é um direito que tem uma função social importante para garantir a vida em comunidade” (Roseta, 2024, p.18) e isto, foi registado em termos jurídicos: a Lei de Bases define, pela primeira vez, a função social da habitação como “o uso efetivo para fins habitacionais de imóveis ou frações com vocação habitacional, nos termos da presente lei e no quadro do interesse geral” (artigo 4, Lei nº 83/2019 de 3 de setembro).
A Lei de Bases define também as Cartas Municipais de Habitação (CMH) como instrumento de articulação da política de habitação com a política de solos, intimamente ligadas às já anunciadas Estratégias Locais de Habitação (ELH) definidas na NGPH. Além disso, a Lei de Bases apela para a elaboração de um Programa Nacional de Habitação (PNH), que foi aprovado em 2022 para o período temporal 2021-2026 (retroativo de um ano), mas que, de acordo com o parecer da Rede H (2021), parece pouco operativo, apresentando fragilidades do ponto de vista técnico, científico e operativo, limitando-se apenas a descrever a estratégia, a visão e a missão da NGPH de 2018 e as orientações do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) no campo da habitação.
Em 2020, enfrentamos a pandemia de Covid19 que, por um lado, tornou mais claro quanto as condições de habitação são fatores de desigualdade social, de vulnerabilidade, de segregação territorial e de segurança doméstica; por outro, fez com que a crise habitacional piorasse, devido às situações de perda de trabalho e de conseguinte despejo da habitação, de dessegregação das famílias e de “ficar em casa”19 quando a casa não tem condições dignas para ser habitada, quer do ponto de vista físico do abrigo quer do ponto de vista familiar (como os casos de violência doméstica).
Contudo, a pandemia trouxe novos e consideráveis recursos financeiros, como a aprovação do Plano Europeu de Recuperação e Resiliência (PRR, 2021–2026) e todos os países europeus afetados pela pandemia apresentaram os próprios planos nacionais para ser financiados em vários âmbitos20; é de realçar que o PRR português destina uma parte considerável à habitação, enquanto não todos os países decidiram destinar verba neste âmbito (sobretudo para a construção ou reabilitação profunda do parque existente).
19 Lema da pandemia que ficou global e uma das medidas adotadas durante os confinamentos.
20 Recordamos que o valor financiado por cada país difere não apenas pelas caraterísticas do próprio país, mas também pela maneira como foi afetado pela pandemia. Por isso, a Itália apresentou um plano com uma soma muito acima de Portugal (mesmo que contássemos a diferença demográficas entre os dois países), porque a Itália foi o país mais afetado na Europa na primeira fase da pandemia.
Em 2023 foi aprovado o pacote legislativo “Mais Habitação”21, que quer promover o acesso à habitação a custos acessíveis, através de medidas financeiras como incentivos fiscais, novas linhas de crédito para construção ou reabilitação etc.
Recentemente o país mudou linha política porque, após muitos anos de governo de centro-esquerda, instaurou-se um governo de centro-direita, o qual apresentou já o seu pacote legislativo para habitação chamado “Construir Portugal”, onde está previsto o reforço económico de 400 M € para permitir que o programa 1º Direito seja levado a bom porto e a decisão de querer disponibilizar 59 mil casas até 203022. Os resultados são ainda para antever, mas há quem esteja relutante já a partir do título; de acordo com Helena Roseta (2024)23 , Portugal já está construído, existindo mais de 700 mil casas vagas no país.
3. Direito à habitação e questão urbana: soluções e resultados em comparação
Apresentaremos aqui alguns resultados preliminares dos programas públicos adotados para enfrentar a questão habitacional discutida na seção anterior. Como já anunciamos, trata-se de políticas ainda em curso, sem prejuízo de poderem anunciar resultados diferentes nos próximos tempos O PRR português tornou-se um “choque exógeno” à política nacional de habitação (Allegra & Di Giovanni, 2024) porque destina uma grande fatia, mais de 3 mil milhões de euros à habitação, com um pacote formado por vários programas. Apesar de parecer pouco dinheiro sobre o financiamento total, trata-se de um investimento enorme para o setor da habitação, que sempre teve um financiamento público abaixo do 1% do orçamento nacional.
A linha C02 Habitação dentro do PRR financia várias linhas – alojamento urgente temporário, social e acessível, entre outros – sendo que mais que a metade do financiamento é reservada ao programa do 1º Direito, que acaba por ter um peso enorme, quer em termos de sucesso destes fundos europeus no âmbito da habitação, quer em termos do que se irá fazer no território e para as famílias em Portugal.
Por um lado, este programa torna-se completamente incorporado financeiramente pelo PRR (que o financia a 100%), utilizando, de facto, os fundos europeus para substituir o investimento nacional na política habitacional declarado no Orçamento de Estado em 2019 planeado no âmbito do lançamento da NGPH (Fig. 4).
Fonte: (previsões) Orçamento de Estado (2019: 183); (despesas) Relatórios e Contas do IHRU (2019, 2020, 2021, 2022).
Por outro, através deste programa são previstos 26.000 fogos para enfrentar as carências do número igual de famílias; estes fogos devem ser compridos até junho de 2026 (prazo temporal do PRR) e equivalem acerca do 70% da linha habitação no PRR (37.457 fogos).
Figura 5 - Fogos financiados pelo PRR.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados de O Contador (https://www.ocontador.pt)
É necessário refletir sobre o significado deste número das habitações que levanta bastante dúvidas (Rede H, 2022), no momento que corresponde às necessidades identificadas no Levantamento Nacional das Necessidade de Realojamento Habitacional conduzido pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) em 2018, e que se trata de um número incompleto e desatualizado hoje para caracterizar as emergências habitacionais do país.
Em 2018, o Instituto Nacional da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) tinha identificado 25.762 famílias como estando em situação habitacional claramente insatisfatória
que precisavam de realojamento, dos quais 327 famílias a viver em acampamentos clandestinos, 941 em bairros ilegais e 11.999 em barracas ou construções precárias.
De acordo com Amnistia Portugal25 com base nos dados do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, em 2021 foram contabilizadas em Portugal mais de 38 mil famílias a viver em situação de habitação indigna, e mais de um terço residem na área metropolitana de Lisboa (AML)
Com a aprovação da NGPH, estamos num cenário no qual a quase totalidade dos 308 municípios têm ELH elaborada e aprovada, onde é possível ver as carências habitacionais do município e as soluções encontradas no âmbito do 1º Direito ou além deste programa.
Com base na investigação em curso do projeto LOGO, os dados parciais a partir dos acordos que os municípios assinaram com IHRU para o financiamento do programa 1º Direito contam quase 70.000 famílias em carência habitacional, mas o total poderia atingir rapidamente as 90-100.000. (Fig. 6).
Figura 6 - Carências habitacionais em Portugal.
Carências AML
Carências AML e AMP
Fonte: dados do Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (IHRU 2018) e do projeto LOGO (2024). No levantamento do IHRU responderam 307 municípios, dos quais: 187 declarando que tinham necessidades habitacionais e 120 declarando que não tinham.
Além dos 26 mil fogos serem um número ultrapassado e subestimado, há duas outras questões que vale a pena realçar, a primeira é que nem sabemos se estes fogos serão de facto, cumpridos, pois até hoje a execução do PRR encontra-se muito em atraso26, apesar de ser em execução, nas palavras dos governantes, depressa e bem27 para conseguir os objetivos atingidos. Contudo, há um ditado popular que afirma “Depressa e bem, não há quem”, alertando que a rapidez é inimiga da perfeição; aguardamos os resultados para ver se “terá de haver quem” e será possível reverter a famosa expressão popular28 .
A segunda questão ligada aos 26 000 fogos é que, enquanto no levantamento de 2018 estes fogos estavam contemplados como famílias com carências habitacionais e necessidade de realojamento (ou seja, falavam principalmente de construção nova), no programa 1º
26 Para uma análise mais aprofundada sobre a operacionalização dos fundos do PRR no território português, remetemos para os dados do projeto O Contador, animado pelos investigadores Helena Roseta, Silvia Jorge e Aitor Varea Oro (www.ocontador.pt).
Levant IHRU (2018) Levant LOGO (2024) - 273/308 municipios (in progress)
Direito financiado pelo PRR representa fogos que serão, pela maioria, reabilitados do parque habitacional público existente. Isto pode não é por se crítico, sendo que a maioria do parque habitacional público em Portugal se encontra muito degradado e precisa efetivamente de uma adequada reabilitação; todavia, temos de refletir que isto não corresponde ao que foi ideologicamente calculado e ao que está descrito nas ELH das Câmaras, onde a maioria das famílias não são arrendatários de habitação pública, mas com situações de casas indignas privadas, cedidas, arrendadas e autoconstruídas29 .
Além do 1º Direito, outro programa da NGPH que assinalamos aqui é o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), que cria um sistema de incentivos fiscais dirigidos aos proprietários que arrendam fogos com valor 20% abaixo do mercado.
De acordo com o artigo de Travasso et al. (2020), existe uma enorme disparidade entre os rendimentos das famílias e os valores das rendas praticadas nos centros com maior pressão, e, em grande parte do território nacional e com as atuais condições de mercado, a maioria das famílias não conseguiriam aceder a este tipo de arrendamento dito “acessível”.
A análise de Travasso et al. (2020) define a camada de população que pode aceder a este programa que é, obviamente, muito diferente por território, mas, em geral, abrange um segmento de cerca de 10% dos agregados com rendimentos medianos, sendo que nas áreas sob maior pressão responde a uma fatia ainda menor e referente aos agregados com rendimentos mais elevados (como no caso da cidade de Lisboa).
Sabemos que não é fácil que um mesmo instrumento se adeque à diversidade dos contextos do país, mas aqui subsiste uma criticidade de fundo devido ao facto que o programa está a olhar apenas para os valores de mercado imobiliário (que é exageradamente alto nas áreas metropolitanas), não tendo em conta os valores médios dos rendimentos (comparativamente baixos para sustentar as despesas da casa nas áreas metropolitanas).
O estudo mencionado de 2020 alertava para as criticidades que podíamos influenciar a execução do programa, e notamos como, após 5 anos do seu lançamento, o PAA continua a ter uma taxa muito reduzida de execução. Enquanto o Governo previa que o PAA chegasse a 20% do mercado, “abrange hoje pouco mais de 1000 contratos, o equivalente a 0,12% do total de contratos de arredamento em vigor”30. Portanto, trata-se de um programa que até agora tem resultados irrisórios no território nacional, tornando-se um mito31 que não resolve os problemas de acesso à habitação.
Através da breve análise feita, podemos dizer que a política pública de habitação (NGPH), com discurso estratégico e uma visão integradora e intersetorial nas palavras da lei, apresenta resultados que deixam algum amargo na boca. Estamos a falar de programas cuja operacionalização está ainda em curso, contudo, é possível fazer um primeiro balanço. Primeiro, até agora as metas quantitativas da NGPH (passar de 2% ao 5% de habitação “com apoio público”) estão longe de serem atingidas, e até o que se espera seja acabado até junho 2026 (prazo do PRR) levanta dúvidas se será respeitado e como (qualidade das soluções).
Segundo o principal esforço logístico e financeiro do governo continua a estar orientado (através do programa 1º Direito inteiramente financiado pelo PRR) para os setores
29 A partir da análise em curso do projeto LOGO e sobre a leitura de mais de 100 ELH no país.
mais marginalizados da sociedade portuguesa; as iniciativas direcionadas à classe média (como a PAA) parecem não ter tido impacto.
Terceiro, os resultados qualitativos da NGPH (desenvolver políticas integradas, intersetoriais e para um novo modelo de governança, mais colaborativa, integrada e baseada no conhecimento) também não parecem ter avançado muito, tendo em conta que existem dificuldades em definir o conceito de “carência habitacional” em maneira coerente (como vimos, existem levantamentos com números diferentes) e que a burocratização da maquina pública é um fator impeditivo para agilização dos programas e na colaboração entre instituições (Allegra & Di Giovanni, 2024).
4. Reflexões conclusivas
Após termos apresentado os desafios da atual questão habitacional e os resultados dos programas adotados para enfrentar estes desafios, podemos afirmar como o direito à habitação em Portugal não está a ser garantido a todos, como escrito na lei constitucional.
Incapaz de responder a operacionalização deste direito, o Estado continua a responder em maneira emergencial e sem uma visão integradora e a longo termo, e colocando, de facto, o direito à habitação como universal apenas em teoria.
“Os problemas de hoje, de facto, já foram enfrentados e debatidos, embora de forma diferente, em outras épocas” (Tulumello, 2024, p. 93), com resultados de “múltiplas crises que foram requerendo intervenções pontuais e de emergência” (Idem, p. 95). Assim, podemos questionar-nos se alguma vez em Portugal já existiu uma verdadeira política de habitação, e, se alguma vez, na história do país, foi então garantido o direito à habitação para todos.
Como afirmamos no início deste texto, o direito à habitação é um direito humano fundamental, universal, incondicional e inalienável; não pertence a alguns, não é privilégio para poucos, mas se refere a todos. Vimos como pode estar bem defendido em teoria, nas leis internacionais e nacionais, na Constituição e nas leis de bases, mas se não está garantido em prática, estamos perante um “direito que não há” (Idem, p. 93).
Como todos os direitos humanos, o direito à habitação faz parte dos valores de uma “sociedade civilizada, desenvolvida, livre e democrática” (Antunes, 2021, p. 185) e “a privação deste direito é uma forma extrema de desigualdade e exclusão social, incompatível com uma democracia plena nas suas dimensões política, económica, social e ambiental” (Roseta, 2024, p. 115).
A garantia do direito à habitação é sim responsabilidade do poder governamental, mas estamos todos envolvidos na sua realização; isto é, todos nós contribuímos para que se concretize este direito assim como contribuímos para a construção da democracia.
Isto não se faz sem luta e as duas lutas são inseparáveis: “lutar pela habitação é lutar pela democracia” (Ibidem).
Podemos pensar que já alcançámos a democracia, mas sabemos que ela não é fixa e duradoura para sempre; pelo contrário, está constantemente em risco porque se não há garantia dos direitos humanos significa que não está garantida a democracia. É nosso dever cuidar dela todos os dias para nós e para quem virá depois nós Para isso, é preciso ainda esforçarmos muito e não podemos parar de lutar: nas ruas, nos bairros, nos lugares de poderes político, na academia...porque a democracia faz-se em qualquer lado.
E a luta não se faz sozinhos.
Faz-se construindo um trabalho conjunto, amplo e duradouro, com vários atores e vozes invisíveis, difíceis de ser ouvidas senão através de um trabalho de rede. Em Portugal, há ainda um caminho a percorrer para garantir, de forma efetiva, o direito à habitação e nesta luta estamos todos envolvidos.
Notas/Agradecimentos
A autora escreve de acordo com o novo acordo ortográfico da língua portuguesa.
O trabalho apresentado integra uma investigação em curso, realizada no âmbito do projeto “LOGO- A governança local das políticas de habitação. Uma investigação das estratégias locais de habitação”, no qual a autora encontra-se contratada como investigadora júnior no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O projeto é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (2022.03719.PTDC) e coordenado pelo Doutor Marco Allegra.
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Capítulo 4
A Maré na cidade: organização e resistência
Edson Diniz
Introdução
O presente capítulo tem como objetivo discutir o processo de constituição histórica e urbana do Conjunto de Favelas da Maré, localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Com quase 140 mil moradores, a Maré é constituída por 16 favelas e é oficialmente um bairro desde 1994, sendo, no entanto, um dos maiores conjuntos de favelas do país. Para realizarmos esse movimento, observaremos o desenvolvimento do núcleo inicial desse conjunto de favelas tendo, contudo, a preocupação de olhar o contexto mais geral do surgimento e da dinâmica de crescimento das favelas na cidade. Especialmente, porque o surgimento da Maré está vinculado diretamente com a formação das favelas que nasceram das transformações urbanas resultado de disputas territoriais e políticas entre as classes e grupos sociais na virada do século XIX para o século XX, quando a cidade de modernizou sob a ótica do capital.
Assim, destacaremos como esse processo contribuiu para a configuração do Rio de Janeiro contemporâneo, onde os territórios mais valorizados foram apropriados pelas classes mais abastadas, sempre apoiadas pelo Estado, tendo como consequência imediata a expulsão dos mais pobres para as periferias mais distantes do Centro da cidade ou seu isolamento em terrenos menos valorizados pelo mercado dentro do próprio Centro-zona Sul, como as áreas de morro, por exemplo.
Veremos como o Rio de Janeiro ganhou ares cosmopolitas na busca por enterrar o seu passado colonial, identificado com atraso, pobreza, sujeira e doenças. Não sem propósito, diferentes presidentes e prefeitos, ao longo do tempo, buscaram apagar a alcunha pejorativa de “cidade pestilenta” (Needell,1993; Benchimol,1994), a partir do combate às epidemias que assolavam a cidade todos os anos durante o século XIX. Eles elegeram, com o apoio da chamada “medicina social” e do “higienismo”, os cortiços que abrigavam os mais pobres e a população negra, como inimigos da cidade. Essa foi uma “herança” que ainda hoje pesa sobre os mais pobres e a população negra.
Desse modo, foi a partir da urbanização e modernização do Centro da antiga capital da colônia e da consequente destruição dos cortiços, que se acentuaram e consolidaram as desigualdades no Rio de Janeiro na virada do século XIX e início do século XX. Nessa cidade “civilizada”, os mais pobres e a população negra não tinham lugar. Por isso, em um ato de verdadeira resistência, inventaram esse lugar: a Favela.
A partir desse momento o “problema” da Favela passa a ser o maior desafio a ser resolvido pelas autoridades públicas e pelas elites. Veremos que esse território dos pobres –incialmente os morros da cidade – serão alvo de tentativas de erradicação ao longo de mais de 130 anos. E embora a política de erradicação e remoção das favelas tenha sido atenuada, ela é sempre uma ameaça sobre a população favelada como bem demonstra a realização da
Copa do Mundo em 2014 e das Olímpiadas de 2016, quando cerca de 20 mil famílias foram removidas para dar espaço aos equipamentos esportivos (Faulhaber; Azevedo, 2015).
Nessa linha, a história da constituição do Conjunto de Favelas da Maré nos ajudará a entender o processo de resistência e luta dos favelados pela permanência no chão construído e conquistado a duras penas. Pretendemos discutir a constituição da Maré como uma síntese do processo da consolidação das favelas como territórios integrantes da cidade, mesmo sabendo que cada uma das 763 (IBGE, 2012) favelas cariocas têm história e identidades próprias.
A Favela como expressão maior de desigualdades na cidade
A Favela é o fenômeno urbano mais complexo. As discussões no entorno desse território têm suscitado, ao longo de mais de 130 anos, estudos jornalísticos, pesquisas acadêmicas, ações do Estado e do mercado, que comprovam sua importância. Nas mais de 13 mil favelas espalhadas pelo Brasil - tão diferentes quantos as denominações que recebem em cada estado -, moram aproximadamente 18 milhões de pessoas (Albuquerque, 2024). Só na cidade do Rio de Janeiro, moram nesses territórios 22% da população total, ou seja, cerca de 2 milhões de pessoas.
Mas a presença das favelas no país não se resume apenas a seu tamanho e à questão geográfica, elas impactam áreas como, economia e cultura, por exemplo. Segundo o Data Favela, as favelas brasileiras geram uma renda anual de 202 bilhões de reais, em 2023 (Albuquerque, 2024).
É das favelas também que vêm a renovação da cena cultural brasileira. É só observarmos a contribuição do Funk, do samba e do Rap como uma linguagem nascida de ruas e vielas, e que se expande até chegar nos mais distantes lugares do mundo. É cada vez maior também o número de jovens favelados que ocupam espaços importantes de produção de saber e conhecimento científico, como as universidades públicas, centros de ciência e no mercado, o que contribui para democratizar essas instituições e a própria sociedade.
No entanto, apesar de sua importância, esses territórios, ainda são a maior expressão das desigualdades da sociedade brasileira, pois enfrentam questões relacionados à baixa renda salarial, escolaridade precária, infraestrutura insuficiente e o domínio de seus territórios por grupos civis armados. Tudo isso agravado pela falta de investimentos por parte do Estado em políticas públicas voltadas para esses territórios e sua população.
Ainda sobre o papel do Estado nesses territórios merece destaque sua atuação na área de segurança pública. A política adota foi a da chamada “guerra às drogas”, onde há o enfretamento armado aos grupos criminosos que controlam o varejo das drogas e dominam a oferta de serviços e produtos nos territórios favelados. A marca mais visível de tal política são as incursões feitas nas favelas e os constantes tiroteios, que por vezes deixam vítimas fatais entre os moradores, criminosos e os próprios policiais.
A ação violenta do Estado se baseia também na teoria das “classes perigosas” , criada ainda no século XIX, na Europa, para caracterizar a ação de grupos criminosos, mas que com o tempo, passou a associar pobreza e criminalidade. O curioso é que mesmo sem usar essa expressão na atualidade, o conceito continua forte no imaginário social no Rio de Janeiro como se viu, por exemplo, na fala do então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que em 1995 disse que a favela da “Rocinha era uma fábrica de Marginais” (G1, 2007)
Esse olhar criminalizante sobre as favelas acaba por validar a violência nesses territórios trazendo prejuízos de toda a ordem para os moradores, pois não apenas coloca suas vidas em risco, mas também os estigmatiza. Muitos, por conta disso, escondem que moram em favelas na hora de conseguir um emprego, por exemplo.
A verdade é que a política de guerra às drogas e sua visão criminalizante paralisa o cotidiano das favelas. A título de exemplo: no ano de 2023, as crianças do Conjunto de Favelas da Maré ficaram sem poder ir às escolas durante dias 15 dias (REDES DA MARE, 2023). Este é um dano irrecuperável para a educação dessas crianças, que mais tarde pode se transformar em desvantagens no mundo do trabalho e no mundo acadêmico.
Por todas as questões levantadas até aqui, é preciso entendermos melhor como esses territórios populares carregam tantas desigualdades, ao mesmo tempo em que tais desigualdades são lidas como naturais pelo conjunto da sociedade e pelo Estado.
De fato, esse estado de coisas só pode ser explicado, pelo menos em parte, a partir da consolidação de uma determinada “imagem” social que localiza a Favela como uma espécie de “anticidade”, ou seja, um território onde as leis e direitos podem ser suspensos.
Um território habitado pelas “classes perigosas”, que precisa ser vigiado e controlado diante da impossibilidade de eliminá-lo, como se tentou durante muito tempo.
A construção desse imaginário social negativo sobre a Favela e seus moradores foi consolidado na primeira metade do século XX, mas ainda hoje cumpre papel fundamental nas justificativas apresentadas para o tratamento desigual dispensado a elas pelo Estado, pela sociedade e pelo mercado.
Imagem essa que nega toda a vida dinâmica, rica e produtiva construída pelos moradores desses territórios, que com seu trabalho, criatividade e inserção na vida cultural e econômica da cidade, a movimentam diariamente. Por isso, é importante observarmos um pouco mais de perto esse processo para entendermos melhor as dinâmicas que levaram à consolidação dessa imagem sobre as favelas na cidade. Comecemos, então, pela questão dos cortiços e sua destruição, o que deu origem justamente as favelas, que se expandiram por todos os cantos do Rio de Janeiro e se tornaram uma das marcas identitárias mais importantes dessa cidade.
A destruição do Cabeça de Porco
Localizado na rua Barão de São Félix, no Centro do Rio de Janeiro, existia o maior cortiço da cidade com o sugestivo nome de “Cabeça de Porco” , notabilizado por seu tamanho - alguns calculam 2 mil moradores, outros calculam 4 mil - e pela fama de que a polícia lá não entrava (Rocha,1995) Na verdade, o Cabeça de Porco era constituído por uma centena de casas, compartilhadas por várias famílias, dispostas lada a lado e cortadas por uma rua central, tendo várias ramificações menores por onde circulavam uma massa de trabalhadores pobres e negros empregada em atividades pouco rentáveis, próximas ao Centro da cidade (Chaloub,1996).
O fato é que em 1893, o então prefeito Barata Ribeiro decidiu derrubar o Cortiço sob alegação de que ali viviam desordeiros de toda sorte e que os cortiços, aquele em especial, eram ameaças à saúde pública. O prefeito transformou essa decisão em um grande evento na cidade montando, para tanto, uma verdadeira “operação de guerra”. Bombeiros, policiais, políticos, funcionários da prefeitura e de empresas de engenharia, e o próprio Barata Ribeiro
se uniram para derrubar as velhas casas de onde os moradores tentavam retirar o pouco que tinham antes do desmonte. Em muitos casos isso não foi possível, e móveis, roupas e documentos foram perdidos (Benchimol, 1990).
Houve grande repercussão na cidade com destacada cobertura dos jornais. Estes saudaram a decisão do prefeito, que por seu turno mandou uma espécie de recado sobre a mão forte do Estado, às “classes perigosas”. Por isso, o feito de Barata Ribeiro foi bem além da simples derrubada do maior cortiço da cidade, fato por si só marcante. Na verdade, ele inaugurou uma nova forma, via violência estatal, de resolver as questões socais e de moradia na cidade, sendo seguido por outros prefeitos e reformadores ao longo do tempo.
É importante salientar, no entanto, que muito contribuiu para o apoio dado ao prefeito e sua ação contra o Cabeça de Porco, da chamada “medicina social” e do movimento conhecido como “higienismo”, que visavam livrar a cidade do Rio de Janeiro das epidemias que ceifavam milhares de vidas todos os anos.
De fato, no século XIX, a cidade do Rio de Janeiro, era temida por muitos que a visitavam, estavam a trabalho ou a negócios (Chalhoub,1996), porque a então capital do Império do Brasil era assolada, de tempos em tempos, por doenças altamente contagiosas. Tanto que a cidade era conhecida pela alcunha nada lisonjeira de “cidade pestilenta” (Benchimol, 1990). A febre amarela, por exemplo, fazia centenas de vítimas, sobretudo entre os estrangeiros, sendo que a cólera e a tuberculose também “grassavam” na cidade, com diziam as autoridades sanitárias da época, atingindo principalmente os mais pobres e a população negra. Talvez, por isso, a primeira dessas doenças causasse maior preocupação entre as autoridades sanitárias do que as outras duas.
Na verdade, a própria configuração do espaço urbano e as condições de moradia e higiene, herdadas da cidade colonial, principalmente nos territórios onde moravam os mais pobres, eram bem precárias, contribuindo para o aparecimento de surtos de doenças periodicamente (Benchimol,1990). O fato é que essa população habitava em casas divididas em cômodos pequenos, conhecidas como cortiços, como é o caso do já citado Cabeça de Porco. Em muitos desses cortiços, os moradores se espremiam em espaços apertados, insalubres, pouco ventilados, onde compartilhavam banheiros coletivos. Diante desse quadro, e dada as condições precárias de limpeza urbana, falta de esgoto, e assistência médica adequada, não era incomum que quando alguém se contaminava, toda a vizinhança sofresse com as doenças, que avançavam de casa em casa. É o caso da epidemia de cólera-morbo que matou quase cinco mil pessoas só em 1850. (Lobo, 1978).
Assim, diante da gravidade das epidemias que assolavam a cidade, os médicos e o movimento higienista, ganharam notoriedade e poder. Com a criação da Junta Central de Higiene Pública, em 1851, a importância da chamada médica social se expandiu, indo além do campo restrito à medicina. Os médicos passaram a ditar como deveria ser a organização das casas, o cotidiano nas ruas e mesmo o comportamento da população.
Sob os auspícios da medicina social foram condenados os morros da cidade – que, segundo se argumentava, impediam a livre circulação do ar, facilitando o surgimento dos “miasmas” , espécie de “vapores” nocivos resultantes da decomposição de matéria orgânica e sobretudo, as habitações coletivas, especialmente os cortiços. Estes eram vistos como os principais responsáveis pelas doenças, e dadas as suas condições insalubres, deveriam desaparecer.
Na verdade, a medicina social ajudou a construir a ideia de que era preciso fazer uma grande reforma urbana no Rio de Janeiro para transformá-lo em uma cidade moderna, civilizada e limpa. Contudo, fica evidente que a necessidade de tal reforma não era apenas por conta da preocupação com as “pestes” que assolavam a cidade, mas principalmente, era fruto das necessidades das novas forças econômicas, liberadas a partir da extinção da escravidão, que agora poderiam investir na transformação urbana em favor da acumulação capitalista (Porto, 1995)
O fato é que os cortiços da área central da cidade foram as primeiras vítimas do processo de modernização e embelezamento que o Rio de Janeiro sofreu no início do século XX, sobretudo com a chamada Reforma Passos. Como veremos a seguir, esse processo é fundamental para o surgimento das favelas, pois com a destruição dos cortiços, os mais pobres ficaram sem um lugar para morar. Por isso, a população que lá habitava, literalmente, subiu os morros da cidade, como já havia acontecido com os habitantes do Cabeça de Porco um pouco antes. Esse movimento deu origem à Favela como território onde os mais pobres ocuparam um novo espaço físico e simbólico na cidade.
Nasce a Favela
A historiografia consagrou o “Morro da Favella” – atual Morro da Providência –, localizado na área central da cidade, como a primeira favela do Rio de Janeiro, pois para lá foram os desalojados do Cabeça de Porco, os soldados vindos de Canudos– território que chegou a abrigar 20 mil pessoas no interior da Bahia, e que virou foco de resistência popular aos desmandos de governo locais e da recém proclamada República - e pessoas de outros cortiços derrubados pelas reformas urbanas. Para essas pessoas, subir o morro foi a única alternativa encontrada para não deixar o Centro, pois ali estavam o trabalho e as redes de apoio de vizinhos e parentes construídas ao longo da vida. Dentre as reformas urbanas mais importantes, certamente está a Reforma Passos ou o “bota-abaixo”, como ficou conhecida popularmente a intervenção feita pela prefeitura. Ela teve impacto material e simbólico profundo na vida da cidade, sendo levada a cabo pelo prefeito Francisco Pereira Passos entre os anos de 1902-1904. Tal reforma tinha como objetivo principal modernizar o velho da capital da República, pois este ainda tinha ares de cidade colonial o que limitava sobremaneira o desenvolvimento das forças capitalistas impulsionadas com o fim do Império. A Reforma Passos esteve inspirada, em muitos aspectos, na reforma de Paris, que transformou a velha cidade europeia em uma cidade burguesa, moderna e iluminada. Para tanto, o seu administrador, o Barão de Hausmann, destruiu os antigos bairros da classe operária, onde habitavam as “classes perigosas”, origem de barricadas e revoluções, que tanto assustavam as elites europeias, para que, na sequência, a vida burguesa pudesse se estabelecer. O alargamento de ruas, construção de avenidas, monumentos, casa de ópera, teatros e elegantes cafés, consolidaram a “nova Paris”, a “cidade luz”, expulsando, nesse processo, os mais pobres para as periferias (Benchimol,1990).
No caso do Rio de Janeiro, Passos seguiu caminho semelhante ao determinar o alargando e abertura de ruas, canalizar rios, sanear parte da Lagoa Rodrigo de Freitas e determinar uma série de posturas municipais que mexerem com a vida cotidiana da população, como, por exemplo, a proibição da mendicância.
Mas foi a construção da Avenida Central – atual Rio Branco – obra realizada pelo governo federal, com estrita colaboração de Passos, o momento decisivo para a destruição dos cortiços e reconstrução do velho Centro da cidade. Pelo menos 590 prédios e 3 mil casas (PORTO, 1995) foram destruídas para dar lugar a maior avenida da América do Sul. No entanto, para que essas obras modernizantes se concretizassem houve o desalojamento de cerca de 20 mil pessoas. Muitas delas se mudaram para as periferias mais distantes, porém, a maioria, sem ter para onde ir, sem apoio do Estado e necessitando permanecer próximo a seus locais de trabalho, foi obrigada a inventar um novo território para si: a Favela. O fato é que o surgimento da favela mudou para sempre as relações socioeconômicas, estético-culturais, geográficas e identitárias da cidade do Rio de Janeiro. O aparecimento da favela como centro dinâmico de uma “vida diferente” daquilo que se considerava como o padrão civilizatório e desejável na cidade modernizada, gerou um discurso que caracterizou esse novo território da cidade, contraditoriamente, como uma espécie de “anticidade”.
Desse modo, a Favela foi descrita, ao longo dos últimos 130 anos como uma espécie de “avesso da cidade”, lugar onde as leis e normas sociais poderiam ser suspensas. Essa interpretação trouxe consequências danosas para a vida dos moradores desses territórios, já que além de não receberem as políticas públicas adequadas às suas necessidades, foram e ainda são tratados como “cidadãos de segunda classe” pelos poderes que governam a sociedade capitalista.
Por tudo isso, nossa proposta a partir deste ponto é entender como o discurso da anticidade se consolidou ao longo do tempo para, em seguida, pensarmos na construção do Conjunto de Favelas da Maré como um território que se afirmou justamente contra esse discurso.
A Favela como a Anticidade na cidade
Entre 1900 e 1910, as primeiras notícias sobre as favelas, naquele momento território ainda desconhecido pelas classes abastadas, se baseavam muito mais em impressões subjetivas do que em observação direta e em dados, pois poucos foram aqueles que “subiram os morros” da cidade para olhar mais de perto a vida lá em cima. O interessante é que, na falta de dados mais precisos, uma das imagens mais recorrentes e reproduzidas em jornais e revistas será a de uma população hostil, perigosa e formada por criminosos.
Interessante também perceber que tal imagem se constrói, em boa medida, a partir da leitura do célebre livro “Os Sertões”, lançado em 1902, pelo jornalista Euclides da Cunha. Nele, o autor descreve a vida no Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, sob a liderança do beato Antônio Conselheiro, acusado de ser monarquista e lutar contra a recém proclamada República. Muitos intelectuais, jornalistas e médicos, influenciados pela leitura do livro, olharam para as favelas através de suas lentes e viram ali a extensão do próprio Arraial, com sua pobreza e gente “diferente”, que não se encaixava muito bem na República.
Desse modo, os jornais e revistas da época, viram as favelas como abrigo de “vagabundos e criminosos”, com diz matéria do Jornal do Brasil de 1900 (Silva, Barbosa, Simão, 2020). Já em 1909, a Revista Careta, uma das mais importantes da cidade, seguindo na mesma linha afirma em uma de suas matérias que “apesar de haver elementos honestos, a favela é “antro de facínoras”, defendendo, na sequência, o extermínio dela.
Não sem propósito, já nos anos de 1920, instala-se na cidade uma campanha pela eliminação das favelas levada à cabo pelo médico, jornalista e corretor imobiliário Augusto Mattos Pimenta. Combinando um discurso reformista e higienista, ele classificou a favela como a “lepra da estética, que enche de sujeira e miséria os bairros mais novos…” (Valladares, 2005, p. 42). Tal afirmação teve impacto importante na sociedade da época, pois ao associar a favela à lepra, uma doença temida por todos, Pimenta identifica seus moradores como indesejáveis tais como os “leprosos” da Idade Média.
Como “solução” para a favela, transformada em problema principal da cidade, Mattos Pimenta defendeu sua imediata extinção e a construção de “casas baratas” para a população pobre. Porém, o que se viu, como consequência dessa primeira campanha contra as favelas, foi a derrubada de vários “barracos” feito pela prefeitura e o esquecimento total da proposta de construção das casas populares.
Outro momento importante para a consolidação do discurso antifavelas aconteceu em 1927. O prefeito Antônio Prado Junior contratou o urbanista francês Alfred Agache para que este realizasse um planejamento de expansão e embelezamento da cidade. O Plano Agache, como ficou conhecido, repensou a cidade a partir da racionalidade capitalista, onde as classes sociais deveriam estar separadas a partir de determinada hierarquia socioeconômica, cabendo às elites os locais mais valorizados como a orla da zona sul, por exemplo. (Abreu, 2013). A recomendação de Agache - repetiu os mesmos preconceitos de Mattos Pimenta contra os favelados - para o caso específico das favelas foi a sua completa extinção e a construção de casas populares vendidas a baixo custo para a população removida.
Porém, o Plano, não saiu do papel, pois além de ser de difícil execução – já que mexeria com toda a estrutura da cidade e precisaria de consideráveis investimentos -, a conjuntura política havia mudado com a Revolução de 1930, e a ascensão de Getúlio Vagas ao poder. Este se aproximou dos mais pobres e favelados dispensando as remoções como política de governo.
Em 1938, foi lançado o “Código de Obras da Cidade”, documento criado para regular o espaço urbano. Ele é de suma importância, pois embora proibisse a construção de novas Favelas, abriu espaço para o reconhecimento das que já existiam quando, contraditoriamente, proibiu obras de melhoramentos nas habitações já levantadas (Valladares, 2005). Reconhecia-se, assim, pela primeira vez no mapa da cidade a existência das favelas. Muito embora permanecesse no documento a recomendação para sua extinção.
Com o crescimento vertiginoso desses territórios, sobretudo, a partir da década de 1940, com o aumento da imigração, cresceu a necessidade de conhecê-los melhor e com dados mais objetivos do que se tinha até então. Foi nesse sentido, que a secretaria geral de saúde pública e assistência da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro propôs ao médico Victor Moura Tavares a realização de um estudo sobre a situação das favelas do distrito federal. Ao apresentar seus resultados, Moura surpreendeu a todos colocando-se na contramão das interpretações correntes sobre as favelas, ao afirmar que elas não eram compostas por criminosos (Zaluar, 1998), como se imaginava. Pela primeira vez, um estudo mais detalhado sobre a realidade das favelas procurava enxergá-las para além dos estereótipos e preconceitos.
Contudo, apesar desse reconhecimento, as propostas de Tavares para o “problema” era impedir o surgimento de novas favelas e extinguir as que já existiam. Para tanto, ele
defendeu as seguintes medidas: a) o controle da entrada de “indivíduos de baixa condição social” na cidade; b) o retorno obrigatório desses indivíduos a seus locais de origem; c) a proibição de construção de “novos casebres” e de reformas nas favelas já existentes e, d) uma campanha para a “reeducação dos favelados (Silva, Barbosa, Simão, 2020).
Fica evidente que mesmo discordando do discurso que identificava os moradores de favelas como perigosos, Victor Moura Tavares repete argumentos que vão de encontro ao discurso que identifica a favela como uma anticidade.
É interessante observar que a consequência prática do Plano Agache, do Código de Obras, do relatório Victor Tavares e das discussões sobre o “problema” das favelas nos anos de 1940, foi a criação de 3 Parques Proletários. Para esses espaços - formados grandes barracões de madeira, com creches, clínica médica, posto policial e centro social - foram levadas cerca de 7 mil pessoas (Valladares, 2005) com a promessa de retorno assim que o território onde moravam estivesse urbanizado (Zaluar; Alvito, 1998). Essa volta jamais aconteceu e com o tempo, os próprios Parques foram se “favelizando” até que alguns anos mais tarde, suas populações fossem removidas para conjuntos habitacionais distantes. Os Parques, principalmente os da zona sul da cidade, não resistiram ao aumento da especulação imobiliária e a consolidação do estigma negativo que acompanhava as populações faveladas. Esse estigma fica evidente quando observamos os resultados do primeiro recenseamento de favelas na cidade do Rio de Janeiro, iniciado em 1947 e apresentado em 1949. O estudo identificou 105 favelas com uma população total de 138. 837 habitantes vivendo em 34.528 domicílios (Valladares, 2005). Apesar dos dados objetivos se sobressaírem por sua qualidade, as interpretações feitas sobre eles só reafirmam os antigos preconceitos, com o fortalecimento do racismo sobre os favelados.
Em trechos do relatório reproduzidos por Valladares, por exemplo, fica evidente uma visão amplamente baseada em estereótipos, preconceitos e racismo:
Não é de surpreender o fato de os pretos e pardos prevalecerem nas favelas. Hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas, fornecem em quase todos os núcleos urbanos os maiores contingentes para as baixas camadas da população. (p. 65)
No trecho mais adiante:
[...] o preto, por exemplo, via de regra não soube ou não pode aproveitar a liberdade adquirida e a melhoria econômica [...] renasceu-lhe a preguiça atávica [...] sem amor-próprio e sem respeito à própria dignidade – privase do essencial à manutenção de um nível de vida descente, mas investe em somas relativamente elevadas em indumentária exótica, na gafieira e nos cordões carnavalescos... (p. 65)
Talvez, o que mais impressione nos trechos destacados acima seja o retrato feito da população negra das favelas, a partir de um discurso racista que as condena e as culpabiliza pela existência dos territórios pobres na cidade.
Em 1950, o Censo feito pelo IBGE – tendo a sua frente o sociólogo Aberto Passos Guimarães – traz mais dados sobre as favelas e põe em xeque a visão preconceituosa e racista
estabelecida no recenseamento de 1949 (Valladares, 2005). A começar pelo número de favelas existentes na cidade. No primeiro estudo, o número observado foi de 105 favelas, já no segundo documento, o número de favelas cai para 58, pois os critérios foram alterados para se conseguir maior precisão na definição do que era ou não favela. Justamente porque no recenseamento de 1949, não havia um conceito objetivo sobre o que era favela, no Censo de 1950, essa definição foi apresentada a partir de alguns critérios bem específicos.
O Curioso, no entanto, é que mesmo desmentindo a ideia de que os favelados eram preguiçosos ou de que a pobreza era culpa dos negros, todos os critérios apresentados pelo Censo para definir a favela partiam sempre do que ela não tem. De fato, entre as décadas de 1940 e 1950, a imagem da favela como anticidade, ou seja, mesmo quando traz uma visão mais objetiva, produzindo uma imagem diferente dos moradores de favelas, como a constatação de que se tratava de trabalhadores – pondo por terra a ideia de que eles eram desocupados e criminosos – engajados na vida produtiva da cidade, o relatório final carrega consigo, de maneira implícita, a ideia da favela como anticidade.
O fato é que mesmo com o aumento do conhecimento sobre esses territórios, as favelas continuaram a ser vistas e tratadas como “enclaves” na cidade, com regras e vida próprias, contrárias ao que deveria ser o “padrão de civilidade da cidade.” Assim, apesar de algumas vozes dissonantes, o discurso da favela com anticidade continuou a orientar as ações de diferentes agentes sociais e estatais com relação a esses territórios da cidade.
Foi isso, por exemplo que aconteceu nas décadas de 1960 e 1970, quando o Rio de Janeiro viveu a “era das remoções”, principalmente nos governos de Calos Lacerda (19611965); Negão de Lima (1966-1971) e Chagas Freitas (1971-1974). Nesse período, 80 favelas foram atingidas pelas remoções, sendo mais de 23 mil barracos demolidos e pelo menos 139 mil pessoas deslocadas (Valladares, 2005). As justificativas para as remoções e derrubada de barracos giravam entorno das mesmas afirmações feitas contra as favelas nas décadas de 40 e 50, do século passado: criminalidade, sujeira, perigo de contaminação.
A conjuntura política dos anos 1960, a bem da verdade, foi um dos fatores determinantes para esse volume grande de remoções. Ou seja, isso só foi possível dentro de um quadro de exceção devido ao arbítrio da ditadura civil-militar imposta ao país entre 1964 e 1985. As favelas e sua população sofreram com a repressão militar e com a atuação das polícias, que recrudesceram a violência contra os favelados.
De fato, a resistência e organização, dos moradores de favelas contra as remoções foi atacada pelos governos militares. Como exemplo temos um decreto de 1967, que submetia as associações de moradores ao controle da Secretaria de Serviços Sociais. Em seguida, vem o decreto n0 870, de 1968 – substituiu o anterior – onde as Associações passam a ter como exclusiva finalidade representar os moradores junto ao governo do estado (Zaluar. P35), o que limitava sobremaneira o papel político dessas associações. A própria Federação de Associação de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), criada em 1963, sofre intervenções dos militares, seus diretores sofrem perseguição política, sendo alguns deles presos justamente quando a ditadura militar decreta o Ato Institucional número 5 (AI-5) de 1969, que endureceu ainda mais as ações repressivas.
As ações de remoções e a ideia da extinção das favelas continuaram até as décadas de 1980 e 1990, quando com a redemocratização do país, as favelas têm seu direito de permanecer em seus territórios reconhecidos. Obviamente, isso não se deu sem a construção de outros olhares sobre as favelas e a organização política de seus moradores, já que estes
passaram a produzir seu próprio discurso sobre seus territórios e questionaram, a partir de pesquisas e dados objetivos, as representações da favela como a anticidade.
Passa-se, então, à construção de programas de urbanização das favelas no Rio de Janeiro e de negociações por melhorias com os favelados, muito embora, em determinados momentos, como nos jogos olímpicos de 2016, favelas como a Vila Autódromo, tenham sido removidas apesar da resistência de seus moradores (Faulhaber; Azevedo, 2015).
A verdade é que ainda falta muito para que as favelas atinjam os padrões e os índices de qualidade de vida de outros territórios da cidade, sobretudo os mais abastados. Elas ainda, apesar de todo o avanço que se conseguiu com a organização comunitária, são tratadas como enclaves na cidade - a anticidade - como vimos acima.
Por isso, observar a constituição da Maré é importante, pois ela é um exemplo de organização e de busca por melhores condições de vida a partir da afirmação de seus moradores como sujeitos de sua história na cidade desigual. É nesse sentido que o próximo item observará um pouco mais de perto a constituição desse território da cidade do Rio de Janeiro, maior do que 96% das cidades brasileiras (REDES DA MARÉ, 2019), e seu desenvolvimento urbano como um bom exemplo de resistência, criatividade e afirmação de cidadania.
A Maré e sua construção histórica
A formação do Conjunto de Favelas da Maré remonta ao início do século XX, o que faz dela uma das favelas mais antigas da cidade. Seus primeiros moradores se estabeleceram na região ainda nos anos 1920, estando ligados ao antigo “porto de Inhaúma” cujo atividade comercial remonta ao século XIX (Diniz; Belfort, Ribeiro,2013) Este porto servia de entreposto entre as “freguesias” do interior como Olaria, Penha e Inhaúma de onde chegavam produtos agrícolas e de material de construção das olarias de tijolos para o Centro do Rio de Janeiro.
No entanto, o primeiro núcleo de ocupação – aqui merece destaque a falta de estudos sobre a ocupação desse território pelos povos originários - se surgiu da atividade pesqueira na Baia de Guanabara a partir de um conjunto de ilhas - aterradas para a construção da Universidade Federal do Rio de Janeiro - e de uma faixa do continente - identificada à época no que hoje seria uma parte da Maré, mais precisamente na comunidade Bento Ribeiro Dantas. Também existem notícias de uma outra atividade econômica no que seria mais tarde o Morro do Timbau, ou seja, uma pedreira de onde eram extraídas partes de rocha para comércio. Tal atividade teria gerado também uma pequena ocupação por parte dos trabalhadores dessa pedreira. Da junção dessas primeiras ocupações nasceu a favela da “Praia de Inhaúma” como ficou conhecido o primeiro conjunto de barracos erguidos sobre as águas da Baia da Guanabara. Essa favela, no entanto, foi removida em 1973, pelo governador Chagas Freitas, sendo seus moradores transferidos para conjuntos habitacionais na zona oeste da cidade (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2013).
O certo, porém, é que será nos anos de 1940 que a Maré passará a ser efetivamente ocupada a partir do único local seco que existia: o Morro do Timbau. Todo o território que hoje forma o Conjunto de dezesseis favelas da Maré, era constituído por manguezais aterrados e gradualmente ocupados, seja pelos primeiros moradores seja pelo próprio Estado, como veremos mais adiante.
Na verdade, a década de 1940 representou um dos momentos de maior chegada de migrantes ao Rio de Janeiro. Muitos vieram do interior do próprio estado, outros de regiões como Minas e nordeste, e ocuparam as periferias e favelas próximas das indústrias ou de regiões onde havia a oferta de empregos e oportunidade de geração de renda. É neste momento, por exemplo, que se inicia a construção da “variante Rio-Petrópolis”, atual Avenida Brasil. O objetivo dessa nova via rodoviária era facilitar a entrada e saída do estado e, de forma mais ambiciosa, construir um corredor industrial que incrementaria a economia da cidade (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2013).
Porém, o plano de ocupação industrial na região teve ser mudado a partir da presença das primeiras favelas que chegaram antes e passaram a disputar espaço, afirmando sua presença na cidade. Esse será o caso, por exemplo, do Morro do Timbau cuja ocupação efetiva foi inaugurada nos anos de 1940. Como vimos, a região já contava com a presença de pescadores e de uma primeira favela erguida sobre as águas da baia - sobre as palafitas - nas proximidades do Morro.
Aliás, o nome do Morro, de origem indígena, significa “terra entre águas”, justamente por ser o único local seco entre as águas da baia de Guanabara (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2013). É neste local, segundo Lilian Vaz (1995), que uma senhora de nome Orosina fixou o primeiro barraco com seu marido e passou a ocupar o lugar, dando origem a uma espécie de “mito fundador”. Depois dela, outras pessoas nas mesmas condições, ou seja, sem poder suportar os caros aluguéis no Centro da cidade, se deslocam para a periferia mais próxima. Vale a pena mencionar que o bairro de Bonsucesso - próximo a Maré - era um centro comercial que atraia pessoas em busca de trabalho desde a inauguração da estação de trem e que servia de comunicação com outros bairros mais distantes (Abreu,2013).
O maior desafio encontrado pelos primeiros moradores do Morro se deu em 1947, chega à região o Primeiro Batalhão de carros de combate do Exército, transferido do bairro do Maracanã para a construção do estádio que sediaria a copa do mundo de futebol em 1950.
A partir daí os militares passaram a ter uma relação tensa com os moradores, pois julgaramse donos do terreno onde se situava o Morro do Timbau. Eles passaram a controlar a vida desses moradores, derrubando barracos “não autorizados”, cobrando taxas ilegais, e mesmo cercando o Morro com arame farpado em 1955. Os militares se aproveitam de uma conjuntura amplamente desfavorável aos favelados, que contou com a criação da Fundação Leão XIII (1947) e a guarda municipal (1948), instituições criadas para tutelar e reprimir as favelas.
Toda essa arbitrariedade, no entanto, gerou uma reação organizada pelos moradores. A primeira ação foi criar uma Associação de Moradores em 1954, e em seguida buscar caminhos legais junto à Câmara de vereadores da cidade. Esse expediente foi usado por outras favelas na busca por garantia de direitos. Vereadores como Aristides Saldanha, o deputado Breno da Silveira e o advogado Margarino Torres defenderam a causa dos favelados, inclusive fazendo um comício no Morro do Timbau e conversando com os moradores sobre seus direitos (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2013).
Mais um fato importante foi a visita ao Morro do Timbau do General Henrique Teixeira Lott - o mesmo que impediu um golpe de Estado em 1961 - para conhecer o local. Foi ele quem ordenou a retirada do arame farpado que cercava o Morro a partir da pressão que sofreu do Partido Trabalhista Brasileiro acionado pelos moradores. Isso demostra como estes se organizaram para enfrentar as arbitrariedades militares, como quando D. Orosina,
indignada com as cobranças ilegais de taxas, se dirige ao presidente Getúlio Vargas por meio de um telegrama pedindo-lhe para que tais cobranças fossem suspensas. Para sua surpresa, o presidente a convidou para uma conversa e lhe deu um documento eximindo-a de pagar quaisquer taxas. Segundo Lilian Vaz (1994), D. Orosina nunca mais pagou as taxas sendo seguida por outros moradores.
Enquanto se desenvolvia a ocupação no Morro do Timbau - onde a Associação de Moradores encaminhava, com recursos dos próprios favelados, as obras de melhorias como água, luz e esgoto - outros núcleos de ocupação na Maré se estabeleceram como é o caso da Baixa do Sapateiro - bem próxima ao Morro - e o Parque Proletário da Maré. Essas ocupações, diferentes do Morro foram realizadas sobre as águas da baia de Guanabara, a partir da construção das “palafitas”, e ganharam maior incremento com a construção da Avenida Brasil. Seus moradores usavam um expediente de ocupação engenhoso: os barracos eram construídos sempre à noite para evitar os agentes da guarda municipal. Pela manhã, as famílias não saiam de dentro do barraco sob nenhuma hipótese para evitar sua demolição e consolidar sua moradia.
É importante frisar que essas favelas, sobretudo o Parque Maré, - por sua maior proximidade com a Avenida Brasil - estiveram sob risco constante de despejo pela prefeitura. Quando isso acontecia, seus moradores, longe de uma postura passiva, recorriam à imprensa e à Câmara de vereadores como já haviam feito os moradores do Morro do Timbau. Organizados para defender seu chão, os favelados também se organizam para resolver problemas concretos como a falta de água.
Esta foi durante muito tempo uma preocupação, pois para buscar água era preciso atravessar a Avenida Brasil e isso significa correr risco de vida, já que se atravessavam as duas pistas - depois a Avenida ganhou mais duas - com as latas d’água na cabeça ou usando o “rola-rola”. Invariavelmente, segundo os depoimentos de moradores mais antigos, algumas pessoas morriam atropeladas. (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2013). Só bem mais tarde esse problema foi superado. Foi quando parte do Parque Maré - as palafitas – foi removido para os conjuntos habitacionais dentro da própria Maré, no bojo do Projeto Rio, e quando as obras para a construção do Centro de Habitação Provisório de Nova Holanda - a últimas das favelas originais da Maré - começaram no início dos anos 1960, e parte da água encanada direcionada para lá foi “desviada” para o Parque Maré (VAZ, 1994).
Ainda na década de 1950, surgiram mais duas favelas: o Parque Major Rubens Vaz e o Parque União. A primeira delas, tem início em 1953, quando algumas pessoas se estabeleceram em uma região conhecida como “areal”, um espaço onde fora despejada grande quantidade de areia retirada do fundo da baia de Guanabara para a dragagem do canal da portuária, feito por uma empresa que não permaneceu no local. A nova ocupação foi organizada, inicialmente, pelo paraibano João Araújo - nome de uma das ruas principais da favela hoje – e mais tarde assumida pelo advogado Margarino Torres – o mesmo que já defenderá os moradores do Morro do Timbua na Câmara - cujo papel na defesa das favelas no Rio de Janeiro foi relevante. Da área inicial, próxima a Avenida Brasil, a ocupação se estendeu para os fundos da baia de Guanabara em um processo parecido como o visto nas favelas da Baixa do Sapateiro e do Parque Maré.
A ocupação do areal ganhou o nome de seu primeiro líder, João Araújo, depois com a chegada de Margarino Torres em 1958, mudou de nome para homenageá-lo, até que em
1965, os moradores, através de sua Associação, deram o nome definitivo à favela: Parque Major Rubens Vaz.
Já o Parque União, começou a ser ocupado por volta de 1954. Porém foi a partir de 1959, com a chegada de Margarino Torres, vindo da vizinha Parque Rubens Vaz, que a ocupação ganhou corpo. Torres assumiu para si a tarefa de organizar as ruas de modo mais racional com traçados retos e mais espaço entre as casas de madeira erguidas. Seu controle sobre quem poderia ou não morar na nova favela era absoluto a ponto de só permitir se estabelecer ali aqueles que possuíam carteira assinada e trabalho.
Quem, porventura, desobedecia a suas instruções ou construía sem sua autorização sofria represálias severas. De acordo com Lilian Vaz (1994), Torres chegou a queimar alguns barracos erguidos sem seu consentimento, impondo assim, uma marca que diferenciou o Parque União das outras favelas da Maré. Isso porque as pessoas foram selecionadas de acordo com a renda e com a condição de poderem pagar as taxas exigidas por Torres como parte para seus “honorários” e parte para reverter em benfeitorias para os moradores. Com a saída de Margarino Torres em 1961, a Associação de Moradores - criada no mesmo anopassa a organizar a luta por melhorias como luz, água e esgoto.
Em 1962, foi inaugurado o Centro de Habitação Provisório Nova Holanda (CHP). Esse projeto concretizava, assim como os antigos Parques Proletários dos anos de 1940, a ideia de que os favelados deveriam ser “civilizados” para poder habitar em casas e apartamentos, cujos padrões se aproximavam daquilo que as classes abastadas consideravam como “normal”. Os CHPs abrigariam populações removidas de favelas - sobretudo de áreas mais valorizadas da zona sul - para que posteriormente as famílias fossem realocadas nos conjuntos habitacionais na zona oeste da cidade.
Construída a partir do aterramento de parte da baia de Guanabara, feito pelo governo do estado, Nova Holanda abrigou incialmente moradores vindos das favelas: Macedo Sobrinho, Morro do Querosene, Praia do Pinto, Esqueleto e Morro da Formiga. Esse processo todo fez parte do chamado período das grandes remoções quando entre os anos de 1962 e 1973, foram removidas cerca de 80 favelas e despejados 139 mil pessoas, durante os governos de Carlos Lacerda (1961-1965); Negrão de Lima (1966-1971) e Chagas Freitas (1971-1974). As ruas de Nova Holanda foram planejadas para serem largas, quadriláteros onde se situavam casas de madeira de dois andares, chamados de duplex, e outras de um pavimento apenas. Todas possuíam sala, dois quartos, banheiro, cozinha e varanda. Algumas delas eram habitadas por mais de uma família (Vaz, 1994)
De acordo com as pessoas que viveram o processo de remoção e chagada em Nova Holanda, tudo foi feito de maneira arbitrária, pois as autoridades não comunicavam para onde seriam levados os moradores despejados. A maioria só sabia para onde iria quando desembarcava dos caminhões com seus poucos objetos já no novo espaço.
Conforme o depoimento do sr. José Justino Faustino:
Nós viemos saber que viríamos para aqui no dia que botaram as muambas no caminhão [...] disseram que iria remover, mas não sabia para onde, depois que sabe [...] três horas é que veio o caminhão trazer nossas mudanças ali na rua 03, número 37. Ali ficamos. (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2013, p 85.)
Fica evidente o desrespeito pelas pessoas. Elas não tinham o menor controle suas vidas na hora das remoções e não podiam sequer opinar sobre o lugar onde passariam a morar. Esse processo foi a tônica do período das grandes remoções. Mas para além dessa questão havia outra: os laços comunitários, a memória e identidade dos favelados, foram repentinamente rompidos. Os vizinhos e suas redes de apoio e solidariedade foram afastados subitamente, o que fragilizava ainda mais a vida dos que chegavam em território estranho e se misturavam com pessoas com as quais não tinham nenhum vínculo.
Por isso, no caso de Nova Holanda, onde as pessoas vinham de pelo menos cinco favelas diferentes foi preciso recriar laços afetivos com o território e com a vizinhança nova. Isso nem sempre foi fácil, sobretudo em um espaço considerado transitório como era o objetivo do projeto dos Centros de Habitação Provisória desenvolvidos pelo governo Lacerda.
Porém, aquilo que parecia uma enorme dificuldade foi superada com a organização dos moradores. Este foi um processo rico e de aprendizagem democrática que ainda hoje é referência para a Maré contemporânea e para outras favelas da cidade. Começando pelo enfrentamento a tutela da Fundação Leão XIII e de um posto policial localizados em Nova Holanda (Diniz, Belfort, Ribeiro, 2012).
A Fundação e a polícia procuravam controlar os moradores ditando regras de convivência entre vizinhos, proibindo a venda, aluguel ou reparos nos imóveis, além de controlar o horário de entrada e saída das pessoas no Centro. Todo esse controle era justificado pelo governo do estado como uma maneira de “manter a ordem e os bons hábitos de convivência” (Souza, 1995). Porém, todo esse controle gerou - como já havia acontecido nas outras favelas da Maré - um movimento comunitário de resistência às arbitrariedades da Fundação Leão XIII e de luta por melhores condições de vida.
Foi assim que ganhou força nos anos de 1970, o movimento do “postinho”, um dos mais importantes da história da Maré, especialmente de Nova Holanda. Na verdade, esse movimento nasceu da criação de um posto de saúde organizado por médicos recémformados, financiados pelo Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), que queriam tratar da questão da saúde dos favelados e, ao mesmo tempo, incentivar esses grupos a reivindicarem seus direitos. Dessa ação nasceu, por exemplo, o “grupo de mulheres” em 1977. Esse grupo foi fundamental para alavancar o movimento comunitário de Nova Holanda e na Maré como um todo, pois formou lideranças femininas que foram pioneiras nas lutas por direitos dos favelados.
Muitas dessas mulheres estiveram juntas na criação da chamada Chapa Rosa que em 1981 enfrentou e venceu as eleições para a Associação de Moradores de Nova Holanda, elegendo uma jovem liderança, Eliana Sousa e Silva, para o cargo de presidente. Essa foi a maior derrota infligida à Fundação Leão XIII, sendo um marco na organização comunitária na Maré e sinal do declínio do controle sobre os moradores.
O fato novo foram as assembleias convocadas pela Associação de Moradores de Nova Holanda, que aconteciam nas ruas com a presença de 500 pessoas discutindo os rumos das reinvindicações por melhorias e por direitos (Vaz, 1994). Uma das maiores preocupações era com o perigo das remoções, sobretudo quando foi anunciado o Projeto Rio, pois havia o medo de que ele removesse as favelas da Maré para conjuntos habitacionais distantes, como já havia acontecido com outras favelas.
Além do fortalecimento das lutas comunitárias, a organização dos moradores a partir daí levou à criação de uma escola comunitária dedicada a alfabetizar as crianças menores para que ingressassem na escola da prefeitura, que já existia no local, com maiores chances de sucesso escolar. No mesmo sentido de organização e ação comunitárias, foi construída uma cooperativa de material de construção em 1988, para dar oportunidade aos moradores de construir e reformar suas casas a preços abaixo do mercado.
Aqui é importante assinalar que nos anos de 1980, o Centro de Habitação Provisório já havia se consolidado como uma favela em definitivo e as pessoas já driblavam a proibição de não construir ou fazer reparos nos barracões originais. A Cooperativa conseguiu financiar a construção de casas e reparos a partir de um acordo de financiamento com a Caixa Econômica Federal que dava a vantagem aos moradores de pagar por preços mais justos os materiais de construção que precisavam (Diniz; Belfort; Ribeiro, 2012).
Obviamente, o contexto mais geral nos anos de 1980 ajudou as favelas na sua luta por direitos. Lembremos que a lei da anistia fora assinada em 1979, quando a ditadura civilmilitar já dava sinais de esgotamento e enfraquecimento, e onde a pressão pelo fim do autoritarismo e por democracia só aumentavam no país.
Foi nesse cenário que a Maré recebeu a notícia do já mencionado Projeto Rio. Este causou apreensão entre os moradores, pois prometia interferir em uma região extensa que começaria no Caju, passando pela Maré até Duque de Caixas (Vaz,1994). Uma das ações mais importantes prometidas pelo Projeto Rio seria a remoção das favelas situadas às margens da baia de Guanabara. De acordo com o plano original, os moradores da Maré seriam removidos para os conjuntos habitacionais da zona oeste, isso significaria para muitos uma segunda remoção e mais uma vez as rupturas e mudanças abruptas nas vidas das famílias. Por conta do medo da remoção, os moradores da Maré se organizaram e criaram a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (CODEFAM). Por meio das pressões exercidas pela Comissão e pela repercussão na imprensa, o Projeto Rio foi modificado e o perigo da remoção foi afastado. A atenção se voltou para a remoção das palafitas, onde as condições de vida continuavam difíceis e insalubres.
Assim, o governo federal, construiu, a partir do Projeto Rio, 5 conjuntos habitacionais dentro da própria Maré para onde foram realocados os moradores das palafitas (REDES DA MARÉ, 2019). O primeiro desses conjuntos foi a Vila do João, inaugurada em 1982 com a presença do último presidente militar, João Batista Figueiredo, que deu o nome ao lugar. Mais tarde, com a pressão das Associações de moradores mais conjuntos foram construídos entre meados dos anos 1980 e 1990. Nos anos 2000, mais moradores chegaram para se fixarem em novos conjuntos habitacionais, resultados de políticas públicas de moradia popular, aproximando a Maré de sua configuração atual. Por fim, o que fica evidente, a partir da história de constituição desse território popular na cidade do Rio de Janeiro, é que os moradores da Maré sempre se organizaram de foram solidárias para resistir às dificuldades, fossem as geradas pela natureza do terreno fossem as geradas pelas forças políticas e econômicas que tentaram lhes negar o direito à cidade. Talvez, essa seja a maior das lições oferecida pelas favelas: a persistência em afirmar sua total legitimidade de fazer parte da cidade.
Apontamentos finais
O que fica evidente, ao longo do nosso estudo, é que as favelas são territórios da cidade que expressam as nossas desigualdades socioeconômicas, culturais, étnico-raciais e territoriais. E que tais desigualdade se estruturam a partir da perspectiva capitalista da divisão de classes, gênero e raça conformadas ainda no final do século XIX, conciliadas ao longo do século XX. O resultado foi a construção de uma “cidade fragmentada” e hierarquizada, onde territórios abastados, como os bairros da zona sul, convivem próximos aos territórios favelados, mas sem que haja “comunicação” entre eles.
Observamos que um dos principais fatores que contribuíram para esse estado de coisas foi a construção de uma imagem da Favela como um território à parte, uma anticidade, que seria o avesso da civilização, onde habitam potenciais criminosos. Tal imagem, fruto de um discurso amparado em diferentes agentes sociais, embora hoje seja condenado como “politicamente incorreto”, ainda permanece vivo e orienta em grande medida as ações do Estado, do Mercado e de muitas instituições da sociedade civil na relação com as favelas.
Por isso, para nos aproximarmos de uma imagem mais real das favelas, procuramos questionar esse discurso criminalizador, a partir da investigação sobre sua origem e discutir o percurso histórico desses territórios na cidade. Esse movimento é fundamental também para pensar no conceito de cidade e de sociedade construídos nos dois últimos séculos no Brasil e, em especial no Rio de Janeiro, que de uma maneira ou de outra, procurou excluir os mais pobres - sobretudo a população negra - dos benefícios dos direitos modernos.
Como pudemos ver, ao longo deste texto, isso fica evidente nas várias batalhas contra os cortiços, contra as favelas, nas remoções, nos despejos, destruição de barracos e ações policiais violentas que continuam ceifando a vinda dos moradores de favelas.
O combate contra a desigualdade econômica estrutural enfrentada pelos moradores desses territórios, bem como o preconceito e o racismo, precisa estar na agenda da cidade, e não podem ser pautas apenas do povo favelado. Isso vale, por exemplo, para a questão da segurança pública. São cada vez mais constantes os confrontos violentos entre as forças de segurança do Estado e os grupos armados que dominam territórios favelados, tendo como consequência a morte dos jovens, em sua maioria negros.
Talvez, um primeiro passo para construirmos novas relações entre os territórios favelados e o restante da cidade seja justamente reconhecer e apoiar as favelas no que elas têm de mais característico: sua inventividade, riqueza cultural e senso de solidariedade. É preciso também reconhecer que elas são territórios portadores de histórias, engajamento político, pluralidade de formas de viver, e ações culturais que configuraram o que se poderíamos chamar de “alma carioca”. São, portanto, integrantes fundamentais da história e identidade da cidade do Rio de Janeiro. Por fim, concordando com Hélio Oiticica: a favela é como motor da transformação nessa cidade (Diniz; Cardoso, 2015).
Referências
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PARTE II
Capítulo 5
A Distopia Urbana: os territórios de exceção na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Bruno José Oliveira
Introdução
O presente trabalho debruça-se sobre a formação daquilo que caracterizamos como territórios de exceção na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O contato do seu autor com a temática em questão realizou-se através da sua inserção como pesquisador e militante social. A ampliação do domínio territorial das facções do narcotráfico e das milícias nas últimas décadas tem se apresentado como um complexo desafio para a promoção de estratégias de organização coletiva dos moradores nas favelas e periferias da metrópole fluminense. Tais grupos ao controlarem politicamente os territórios periféricos e estabelecerem formas de convívio com o Estado contribuem para a manutenção do controle do processo político pelas classes dominantes. O objetivo desta reflexão é contribuir com a análise desse fenômeno partindo do pressuposto de que ele é parte de um cenário mais amplo de crise econômica e social do Rio de Janeiro que encontra raízes já no final dos anos 1950 com o declínio da sua atividade industrial.
1. Redemocratização e participação popular na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Ao criar as condições sociopolíticas para imposição do modelo de desenvolvimento associado (Ianni:1985), a Ditadura Empresarial Militar foi responsável pela consolidação do capitalismo monopolista no Brasil. A aceleração do processo de industrialização durante os anos do “Milagre Econômico” esteve conectada à concretização do perfil majoritariamente urbano da população brasileira. Contudo, ao ancorar-se na superexploração da força de trabalho (Marini, 2005) e na repressão política esse processo produziu, de acordo com Maricato (2014), a “urbanização dos baixos salários” e transformou os grandes centros urbanos em espaços privilegiados de expressão da desigualdade social brasileira. Nesse sentido, o desgaste do regime de exceção potencializado pelo esgotamento do seu modelo econômico encontrou no questionamento das contradições socioespaciais urbanas uma das plataformas mais dinâmicas de organização coletiva das classes subalternas. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro esse fenômeno se manifestou através da expansão das associações de moradores, sobretudo nas favelas e territórios da periferia metropolitana. Esse foi o processo que embasou a criação da FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro) em 1977. A entidade teve um importante papel na organização de novas associações, atuando como articuladora de mobilizações populares e denunciando as péssimas condições de vida enfrentadas pela população que residia nas periferias urbanas do Estado.
Paralelamente, a FAFERJ (Federação das Associações de Moradores das Favelas do Estado do Rio de Janeiro), criada em 1963 em meio a um cenário de ampliação das lutas populares, passou por um processo de renovação da sua direção que adotou uma postura centrada na organização e mobilização dos moradores das favelas. Esta linha de atuação política resgatou a concepção fundacional da entidade e foi caracterizada por Brum (2003: p.77) como associativismo de resistência. Ela colidia com uma perspectiva apoiada no clientelismo que se instaurou naquela entidade a partir da perseguição de lideranças alinhadas às esquerdas no período imediatamente posterior ao Golpe de 1964. A existência de uma entidade dedicada exclusivamente à articulação política dos moradores de favelas demonstra que o impulso de participação política registrado neste período acompanhou a complexidade socioterritorial que caracteriza a metrópole fluminense.
Porto (1995), Silva (1993) e Pinheiro Júnior (2007) chamam a atenção para a existência de outros polos de organização coletiva de moradores dos territórios periféricos como o Movimento dos Amigos dos Bairros de Nova Iguaçu, o Movimento União de Bairros em Duque de Caxias, ambos localizados na Baixada Fluminense, e o Comitê União de Bairros da Zona Oeste, na cidade do Rio. Oliveira (1993) e Nascimento (2006) debruçaram-se sobre esse mesmo processo no Leste Fluminense, particularmente nas cidades de Niterói e São Gonçalo onde foram fundadas entidades congêneres, a FAMNIT (Federação das Associações de Moradores de Niterói) e a UNIBAIRROS (Federação das Associações de Moradores dos Bairros), respectivamente em 1983 e 1985.
Tal fenômeno vai ao encontro das formulações produzidas por Castells (1983) e Lojkine (1981) acerca da inerente crise urbana ocasionada pela precariedade e insuficiência dos meios de consumo coletivos necessários à produção e reprodução social no contexto do capitalismo monopolista. A abrangência do impulso de organização e participação política das classes subalternas, expresso na ascensão dos movimentos sociais urbanos neste período, atesta que as contradições sociais e urbanas presentes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) estavam em sintonia com essa dinâmica.
Em concomitância, as esquerdas organizadas experimentaram um novo momento para as suas atuações por conta do processo de abertura política e o fim do bipartidarismo a partir de 1979. No tocante a sua atuação junto aos movimentos sociais urbanos, este processo envolveu as correntes que atuavam no cenário político pré 1964, como foram os casos dos trabalhistas do PDT (Partido Democrático Trabalhista), os comunistas do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e do PC do B (Partido Comunista do Brasil). Simultaneamente, os grupos oriundos da oposição armada à ditadura, as organizações trotskistas, a esquerda católica e as novas vanguardas sindicais organizaram- se no Partido dos Trabalhadores (PT). Havia ainda grupos que atuavam sob a sigla do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), sendo o mais expressivo deles o MR-8 (Movimento Revolucionário - 8 de outubro). Ao mesmo tempo, a intervenção da chamada “ala progressista” da Igreja Católica junto às classes subalternas cariocas e fluminenses também merece ser destacada. O papel exercido por clérigos e leigos embasados pela Teologia da Libertação no fomento à organização coletiva nas favelas e territórios populares foi um dos mais importantes catalisadores da participação popular naquele período.
2. O municipalismo democrático-popular e a contraofensiva neoliberal.
O restabelecimento das eleições diretas para os governos estaduais ajudou a produzir um novo capítulo na dinâmica política da redemocratização. Assim, no Rio de Janeiro, foi o Partido Democrático Trabalhista (PDT) a força política que mais capitalizou eleitoralmente a descompressão da participação popular produzida pela redemocratização. Ao ser eleito em 1982 ao Governo do Estado, Leonel Brizola, fundador e presidente da legenda, adotou um discurso centrado na defesa dos direitos humanos das populações faveladas e periféricas. O seu governo adotou uma perspectiva de estímulo às organizações populares e de diálogo permanente com as mesmas, em especial com as associações de moradores. Ainda que essa linha de atuação não fosse incompatível com dinâmicas de cooptação e institucionalização dos movimentos, conforme analisa Brum (2003), ela constituiu-se como um avanço na direção da democratização das relações entre os moradores dos territórios periféricos e o aparelho de Estado.
No esteio do “brizolismo”, em 1986, Roberto Saturnino Braga (PDT) foi eleito como Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro e governou até 1988. Fruto da Emenda Constitucional nº 25/1985 que retomou as eleições diretas para as prefeituras, o seu mandato cumpriu o papel de vanguarda na adoção de mecanismos oficiais de democracia participativa. Os “Conselhos Governo- Comunidade” foram a expressão de uma nova perspectiva políticoadministrativa que buscou ampliar a permeabilidade do aparelho de estado no município em relação às reivindicações das classes subalternas e, desse modo, territorializar as práticas de gestão participativa como instrumentos de edificação de uma cultura política apoiada no protagonismo político-organizativo das classes subalternas.
A este paradigma de administração pública desenvolvido no âmbito do governo da cidade do Rio de Janeiro, agregaram-se a partir de 1988 as experiências realizadas nos municípios governados pelo Partido dos Trabalhadores no restante do país. O estímulo à organização e à participação popular foram a base do que ficou conhecido como “modo petista de governar”, do qual o “Orçamento Participativo”1 foi o principal baluarte. Todavia, na RMRJ, a hegemonia eleitoral do PDT tornou o PT um coadjuvante na dinâmica institucional. Embora disputassem entre si a liderança das esquerdas, os dois partidos compuseram coalizões que foram responsáveis pela adoção de práticas de gestão participativa nos municípios da região como foram os casos de Niterói, São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Nilópolis. Podemos afirmar, portanto, que a redemocratização brasileira se expressou na RMRJ na emergência de um municipalismo democrático-popular. Ele esteve assentado na ampliação dos investimentos em políticas públicas e sociais que acompanharam a reorganização jurídica, financeira e institucional preconizada pela Constituição de 1988 e na ampliação dos canais de diálogo e participação com os movimentos sociais urbanos que se formaram naquele período.
1 O Orçamento Participativo é um instrumento de administração do orçamento público que permite à população decidir sobre a destinação dos investimentos públicos através de instrumentos de democracia direta como assembleias e conferências.
3. Os anos 1990: ofensiva neoliberal e aprofundamento da crise social.
Existiam dois caminhos possíveis para a dinâmica política da RMRJ no contexto da redemocratização. O primeiro estava centrado na organização popular e na ampliação dos movimentos sociais urbanos como pilares de construção de uma nova cultura política assentada no protagonismo das classes subalternas e na ampliação das práticas de gestão participativa impulsionadas pelo municipalismo democrático-popular como paradigma de administração territorial. Na sua direção contrária, existia a possibilidade de reatualização do conservadorismo político apoiado nas práticas de controle e desmobilização das classes subalternas, bem como, na manutenção de uma administração pública refratária às práticas de democratização do aparelho de estado. Nesse sentido, a definição do rumo político da redemocratização na RMRJ seria atravessada pelas mudanças ocorridas na conjuntura nacional e internacional durante o início dos anos 1990, conjugadas a aspectos concernentes à esfera regional.
A queda do Muro de Berlim e a derrocada do Socialismo Real atingiu frontalmente o conjunto das esquerdas no mundo e produziu um cenário de crise ideopolítica nas suas organizações. Esse contexto de descrédito do pensamento anticapitalista pavimentou o caminho para a ofensiva ideológica e política do neoliberalismo. Diante dela, organizações, lideranças políticas e intelectuais outrora identificados com correntes socialistas experimentaram uma adaptação em relação às teses do livre mercado2 . No caso brasileiro, mesmo com uma renovação das esquerdas durante a redemocratização capitaneada por partidos e correntes teórico-políticas que buscavam afastar-se da referência representada pelos partidos comunistas alinhados à União Soviética, o anticapitalismo registrou um sensível enfraquecimento. Esse foi um dos aspectos que contribuíram para que o cenário de ampliação das experiências de organização e mobilização popular que se desenvolveu durante os anos 1980 entrasse em declínio. Paralelamente, as ideias neoliberais encontraram farta receptividade nos círculos intelectuais, políticos e midiáticos identificados com as classes dominantes e produziram uma renovação do conservadorismo brasileiro. Ele centrou-se na defesa do desmonte das conquistas sociais estabelecidas na Constituição de 1988 e na adaptação da estrutura econômica e tributária aos ditames da especulação financeira. Tal intento teve como pressuposto o abandono de qualquer perspectiva de desenvolvimento econômico que estivesse ancorada no
2 O exame das trajetórias de duas figuras públicas cariocas ilustra bem esse fenômeno. O primeiro foi o advogado de presos políticos Marcelo Alencar que iniciou a sua carreira política no Movimento Democrático Brasileiro, onde foi suplente de Senador. Em 1969 teve os seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional 5. Com a redemocratização, ele filiou-se ao PDT e foi eleito Prefeito da Cidade do Rio de janeiro em 1988. Em 1993, aderiu ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), agremiação que naquele período afastou-se das suas referências socialdemocratas e aderiu às teses neoliberais. Entre 1995 e 1998 governou o Estado do Rio de Janeiro e aplicou um draconiano ajuste fiscal e promoveu a privatização de empresas estatais. Na política de segurança pública foi o responsável pelo que ficou conhecido como “gratificação faroeste”, um bônus salarial destinado aos policiais que se destacassem por realizarem “atos de bravura”, medida que estimulou a ampliação da letalidade das ações policiais. O segundo foi o economista César Maia que iniciou o seu ativismo político no Partido Comunista Brasileiro no início dos anos 1960. Em 1968 exilou-se no Chile de onde retornou em 1973. Em 1981 filiou-se ao PDT, partido em que se manteve até 1991, quando ingressou no PMDB, onde foi eleito Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro e governou a cidade entre 1993 e 1996. Em 1996 adere ao direitista Partido da Frente Liberal. Nos anos 2000 exerceu dois mandatos como Prefeito, entre 2001 e 2004 e 2005 e 2008. Nesse período, notabilizouse por defender a atuação de grupos civis armados que combatiam as facções do tráfico de drogas, caracterizando-as como “autodefesas comunitárias”. Atualmente exerce o mandato de Vereador na Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo Partido Social Democrático.
intervencionismo estatal, ao mesmo tempo em que advogou a plena abertura do mercado nacional.
É importante ressaltar que a ofensiva neoliberal foi ao encontro do esgotamento da era desenvolvimentista que entre as décadas de 1930 e 1980 converteu o Brasil em um país urbano-industrial. Nesse sentido, ela ajudou a preencher o vazio programático existente entre as classes dominantes brasileiras e deu origem à contrarreforma do Estado (Behring:2021) implementada ao longo da última década do século XX. Ela teve como objetivo transformar o Brasil numa plataforma de valorização do capital financeiro (Paulani:2008) através da transferência da maioria dos recursos que compõem o fundo público para a iniciativa privada via endividamento estatal.
Um dos principais efeitos desse processo foi o reforço da redução do parque industrial nacional que já registrava uma queda expressiva desde os anos 1980. Contudo, no caso do Rio de Janeiro, o início dessa dinâmica remete às décadas anteriores. De acordo com a análise de Araújo e Melo (2014:p.78) já no final dos anos 1950 os setores econômicos que estruturavam a acumulação de capital no território fluminense, notadamente, os setores mercantil e agrícola demonstraram ser incapazes de sustentar um ritmo de industrialização acelerado de longo prazo. As saturações das áreas disponíveis à instalação de plantas industriais de grande porte e a precariedade da infraestrutura no interior do Estado contribuíram para a redução do investimento industrial. Tais fatores, conjugados à escolha do setor automobilístico a partir do Plano Metas3 como pilar do projeto de industrialização da economia brasileira, consolidaram o Estado de São Paulo como principal centro econômico do país, resultando na gradativa redução do protagonismo econômico do Estado do Rio de Janeiro. Essa dinâmica foi ampliada com a perda da condição de capital federal em 1961 e com os impactos produzidos pela Crise do Milagre Econômico nos anos 1970. Desse modo, o crescimento demográfico e a formação da periferia urbana da RMRJ desenvolveram-se em consonância com o processo de desindustrialização da região, o empobrecimento da sua população e a progressiva terciarização da sua economia. Esse cenário seria agudizado com a abertura econômica e a adoção de políticas de ajuste fiscal tanto em nível nacional quanto em nível local a partir dos anos 1990. Com efeito, o desemprego estrutural e a ampliação do circuito inferior da economia (Santos, p. 57) através da expansão da informalização produziram o aprofundamento da precarização das condições de vida das classes subalternas cariocas4 e fluminenses5 Simultaneamente, no plano político, a participação popular que foi um dos suportes para a implementação de inovações democráticas nas administrações locais entrou em franco declínio. A crise ideopolítica das esquerdas associada às transformações no mundo do trabalho resultantes da redução da atividade industrial na região provocaram a desarticulação dos vetores contra-hegemônicos que tiveram um papel fundamental na politização das classes subalternas cariocas e fluminenses na década anterior. Para além das organizações partidárias, a ala progressista da Igreja Católica viu a sua influência ser reduzida em função das mudanças advindas da própria hierarquia eclesiástica pautadas pelo conservadorismo do
3 O Plano de Metas foi um programa realizado durante o Governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960) radicado na ampliação dos investimentos públicos em infraestrutura e no estímulo á industrialização.
4Carioca é o termo utilizado para designar a pessoa que nasce na Cidade do Rio de Janeiro.
5 Fluminense é o termo utilizado para designar a pessoa nasce no Estado do Rio de Janeiro
papado exercido por João Paulo II e também pelo aumento expressivo da adesão às igrejas pentecostais pelos moradores das periferias.
4. Controle político e exploração econômica: os territórios de exceção.
Foi nessa quadra histórica que condensou decadência econômica e adensamento populacional que a cidade do Rio de Janeiro, tornada capital do Estado a partir da fusão entre os Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1974, passou a fazer parte de um importante corredor logístico de distribuição de substâncias ilícitas produzidas na América Latina em direção à Europa, Ásia e África. A existência de um significativo mercado consumidor das mesmas, com destaque para a cocaína, também contribuiu para converter a cidade e a região em um grande polo de consumo. Com efeito, a expansão dessa atividade ilegal se apresentou como mais uma expressão da ampliação do mercado de trabalho informal na RMRJ, arregimentando, conforme analisa Campos (2012:p.108), parte considerável da sua mão de obra nas suas periferias e favelas.
Nesse diapasão, surgiram empreendimentos empresariais ilegais conhecidos como facções que, ao lançarem mão do seu poderio bélico, dominam o narcotráfico a partir dos territórios em que elas estão inseridas. Portanto, faz parte do modus operandi dessa forma de empreendimento ilegal o controle socioterritorial, entendido como a possiblidade de um grupo que possui instrumentos de poder impor normas de comportamento e convívio sobre os moradores de um determinado território. Conforme analisa Campos (2012, p 106) as práticas violentas exercidas por elas para manterem o seu poder em nada se diferem daquelas historicamente proporcionadas pelas forças de segurança do Estado.
Além delas, ao longo das últimas décadas as facções desenvolveram uma variedade de instrumentos para burlar a repressão estatal. Entre eles destacamos além do tradicional suborno, o financiamento de campanhas eleitorais e o arrendamento dos territórios em períodos de eleição. Nesses contextos, a possibilidade do desenvolvimento de formas de organização popular que assumam uma postura centrada na politização e mobilização dos moradores frente às contradições urbanas é muito limitada ou mesmo inexistente, o que, em última instância, contribui para a manutenção do estabilishment social e político. Leeds (1999:p.255) corrobora esta reflexão ao analisar que entre as práticas de controle exercidas pelas facções do narcotráfico estão
[...] as alianças entre candidatos a cargos públicos e grupos de traficantes, as quais costumam ocorrer nas comunidades onde esses últimos são particularmente perigosos. [...] Os grupos de traficantes podem também pressionar os moradores a votarem de determinada forma. Os votos para o candidato são trocados por dinheiro e influência legítima para os traficantes que, geralmente, querem livrar-se da imagem de marginal fazendo amigos influentes em postos certos.”
Simultaneamente, os grupos de extermínio que, de acordo com Alves (2003), receberam suporte institucional da Ditadura Empresarial Militar, encontraram novas dinâmicas de atuação e organização durante a redemocratização. Além da incorporação de indivíduos que não compunham os quadros da segurança pública, o discurso de combate às
guerrilhas urbanas de inspiração marxista foi transmutado para a denúncia e repressão do tráfico de drogas, mobilizando o mesmo conjunto de métodos violentos e valores conservadores utilizados durante o período de exceção. Conforme os processos eleitorais tornaram-se regulares, o controle dos territórios que registravam a atuação desses grupos ganharia a condição de capital eleitoral em potencial. Isso foi fundamental para a estruturação de uma nova forma de cobertura institucional que, a partir de então, se apoiaria na conquista de cargos eletivos nos poderes executivo e legislativo nos municípios. A manutenção do controle sobre os territórios localizados nas periferias intensificou a combinação entre o exercício da violência e o clientelismo político.
A partir da segunda metade da década de 1990, esses grupos adotaram práticas de exploração econômica dos territórios. A imposição do pagamento de “taxas de proteção” sobre os moradores, comerciantes e instituições localizadas nas áreas por eles controladas passou a fazer parte da sua dinâmica de acumulação de capital. Nesse sentido, desenvolveuse uma mutação que envolvia a sua forma de atuação. Se nas suas origens eles eram contratados por empresários locais para prestarem serviços privados de segurança, a partir desse período, eles próprios passariam a atuar também como empreendedores ilegais controlando direta ou indiretamente uma série de atividades econômicas, incluindo, em muitos casos, o próprio comércio varejista de drogas, nas áreas sobre as quais eles exerciam ou passariam a exercer o controle territorial. De acordo com Díaz e Alves (2022, p. 12-13), essa mudança de modus operandi está na base do fenômeno que convencionalmente é nomeado como milícias na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Podemos afirmar que as facções e as milícias ao criarem formas de convívio com o Estado convertem-se em instrumento de exercício do controle sobre as classes subalternas. Temos como pressuposto que esse fenômeno pode ser considerado uma peculiar modalidade extraoficial de administração territorial na qual o aparelho estatal terceiriza a execução das suas ações de repressão política sobre as iniciativas de organização coletiva que possuam uma perspectiva de questionamento da ordem. A atuação desses grupos no cotidiano dos territórios periféricos conta com a complacência dos agentes públicos que tecem uma ampla teia de relações de poder que se expressam nessas localidades e dão origem a complexas engrenagens político-eleitorais. A resultante dessa dinâmica tem sido a promoção de um estado de exceção permanente nas periferias da metrópole fluminense e a manutenção do controle dos órgãos de representação política pelos grupos ligados às diferentes frações das classes dominantes.
Por estarem embasadas em atividades ilícitas, o capital acumulado pelas milícias e facções transita, com frequência, entre as esferas formal e informal da economia através das práticas de “lavagem de dinheiro”6. Varese (2018), ao se debruçar sobre a atuação das máfias na Itália, na Rússia pós-soviética, em Hong Kong e no Japão afirma que o controle do poder local é algo absolutamente necessário para o processo de valorização e ocultação de dinheiro acumulado através das suas atividades ilegais. Ainda segundo o mesmo autor, esse processo tende a ser potencializado naqueles arranjos político-institucionais que atribuem competências e, consequentemente, acesso à robustas parcelas do fundo público pelas esferas locais de poder. Nesses cenários, o controle dos territórios como forma de acúmulo
6 Esse é o termo utilizado para caracterizar práticas que têm o objetivo de ocultar a origem de dinheiro obtido de forma ilícita.
de potencial eleitoral é um artifício basilar para garantir a influência política e a manutenção do processo de acumulação de capital em que estão imersos. Atentos a esta reflexão, chamamos a atenção para um dado da realidade: a ampliação do controle socioterritorial das facções e das milícias na RMRJ coincide com um momento histórico onde os municípios, a partir da descentralização prevista pela Constituição de 1988 e promovida ao longo dos últimos trinta anos, acumularam novas atribuições e ampliaram o seu acesso ao erário público. Desse modo, as possíveis interações entre esses dois fenômenos é uma hipótese que consideramos plausível.
5. Considerações finais:
As transformações sociais e políticas produzidas pelo declínio do protagonismo econômico estão na base das mudanças que envolvem os conflitos entre as classes na RMRJ. Na medida em que a desindustrialização iniciada no final dos anos 1950, juntamente com a terciarização da economia e a sua inerente precarização das relações de trabalho concorreram para a corrosão das bases de organização sindical, houve o deslocamento das suas expressões políticas mais agudas do âmbito das relações de trabalho para a esfera do direito à cidade (Harvey:2014).
A expansão das associações de moradores durante a redemocratização foi um sintoma desse processo. Ela esteve na base da alteração do quadro político-institucional fluminense naquele momento. As experiências de governos alinhados com a perspectiva de democratização do aparelho de estado, com o estímulo à participação política das classes subalternas e dispostos a afirmarem os direitos humanos dos segmentos mais pauperizados da população expressaram naquele momento em níveis local e estadual as pulsões democratizadoras presentes na sociedade brasileira. A continuidade daquele processo dependia de uma dinâmica permanente de politização e organização das classes subalternas. Todavia, essa hipótese não se confirmou. Além da crise ideopolítica e programática das esquerdas pós fim do Socialismo Real e da desindustrialização conjugada à reestruturação produtiva, no caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, agregamos mais um elemento: a atuação das facções do narcotráfico e das milícias enquanto agentes terceirizados de promoção do controle político nas periferias que tem se desdobrado na formação dos territórios de exceção. O potencial democratizador das relações de poder registrado pelos movimentos sociais urbanos apresentou-se durante os anos 1980 como uma ameaça ao status quo político-institucional. Assim, é possível afirmarmos que havia uma necessidade premente dos grupos políticos tradicionais e ligados às diferentes frações das classes dominantes fluminenses desenvolverem formas de controle das classes subalternas que estivessem adaptadas aos tempos colocados pela redemocratização. Simultaneamente, o dinamismo do processo de acumulação de capital proporcionado pela ampliação do comércio de substâncias ilícitas e pela exploração econômica dos territórios favelados e periféricos proporcionou a ascensão de uma fração mafiosa das classes dominantes, fenômeno que se aproxima daquilo que Demier (2019) caracterizou como lumpemburguesia. A sua existência está visceralmente ancorada no controle dessas áreas, o que torna a limitação ou mesmo a interdição de dinâmicas de organização coletiva antissistêmicas nessas localidades uma necessidade. Leite (2008, p. 382) afirma que, de acordo com um relatório produzido por uma
investigação da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) entre 1992 e 2001, período de consolidação do comércio de substâncias ilícitas em grande parte desses territórios, bem como de início das mutações que levaram os grupos de extermínio a assumirem o atual formato miliciano, mais de 800 dirigentes de associações de moradores foram expulsos dos seus territórios, assassinados ou cooptados politicamente.
A permanência e o agravamento desse cenário nas periferias da RMRJ ao longo dos últimos 30 anos contribuíram para a formação de uma cultura política autoritária nesses territórios que encontrou no neofascismo a sua expressão ideopolítica. Compreendemos que isso nos ajuda a entender os seguidos êxitos eleitorais de figuras ligadas a essa perspectiva, da qual Jair Bolsonaro é a maior expressão. Ao mesmo tempo, temos assistido a nacionalização de práticas de controle socioterritorial semelhantes àquelas que estão consolidadas na RMRJ. Tal fato nos sugere que o Rio de Janeiro se transformou em um laboratório avançado de tecnologias de controle social alinhadas com a emergência de contextos pós-urbanos. Neles, o paradigma da cidade moderna compreendido como o espaço da civilidade, da universalidade e das liberdades individuais é definitivamente abandonado. Graham (2016) ao analisar o cotidiano de cidades que experimentaram cenários de decadência econômica como Detroit e Chicago nomeou como urbicídio esse espaço urbano da crise estrutural do capitalismo que se transformou numa zona de permanente vigilância, controle e apartação dos indivíduos, onde o extermínio físico e social de elementos considerados disfuncionais à ordem é um recurso frequente. Se considerarmos que essa prática de manutenção da ordem social tem incluído novos territórios diariamente através da expansão do narcotráfico e das milícias, é difícil vislumbrarmos um processo de reversão desse contexto no curto e nos médios prazos. Todavia, seja qual for o caminho que viabilize a superação desse cenário distópico, ele obrigatoriamente deverá estar ancorado em um novo impulso de participação que se apoie na organização e na mobilização coletivas das classes subalternas cariocas e fluminenses.
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Capítulo 6
Para além da “cidade partida”: inventário crítico dos estudos sobre violência e gestão urbana no Rio de Janeiro (1980 - 2010)
Danilo George Ribeiro Fernanda Barbosa
Introdução
Neste capítulo buscamos produzir um inventário crítico sobre a formação, a atuação e a direção forjada por Alba Zaluar, Luís Eduardo Soares e Rubem César Fernandes, intelectuais orgânicos precursores dos estudos sobre violência urbana no Rio de Janeiro, ressaltando suas atividades junto a aparelhos privados de hegemonia como o Instituto de Estudos da Religião (ISER), o Viva Rio e o Seminário Rio contra o crime – responsáveis, a nosso ver, por sedimentar consensos sobre a violência, a polícia e a favela. No período aqui analisado, tais intelectuais formularam teses que foram incorporadas pelos meios de opinião pública e atuaram na direção da sociedade civil sobre os problemas da violência urbana. Dessa forma, suas ações justificaram ou legitimaram programas estatais na área de segurança pública no Brasil entre 1980-2010. Tomando o inventário como ponto de partida, jogaremos luz sobre o aperfeiçoamento tanto do aparato coercitivo estatal quanto da cultura de guerra urbana na cidade do Rio de Janeiro, observado a partir de finais da década de 1980 – período em que o Brasil ocupava o segundo lugar no hanking dos países com maior porcentagem de população favelada, de acordo com Mike Davis (1997). Nossa hipótese é de que a segurança pública gestada na cidade durante o período analisado é reveladora de um processo permanente de manutenção do consenso acerca da legitimação e da naturalização da arbitrariedade policial e do monopólio da violência por esses agentes. E tal processo encontra-se na base da compreensão do espantoso crescimento de territórios atualmente controlados por grupos paramilitares na cidade.
Apesar de haver diferenças metodológicas entre esses autores, os consensos teóricos que os unificam são uma noção abstrata e a-histórica de Estado a partir de três questões que organizam suas abordagens. Em primeiro lugar, a violência urbana é descrita como algo externo ao Estado, associado fundamentalmente ao “tráfico de drogas nas favelas”. Em segundo lugar, as polícias são vistas como corporações dotadas de uma suposta autonomia organizacional e cultural passíveis de “reforma” através da adequação dessas instituições ao chamado Estado Democrático de Direito, como forças repressivas “renovadas” por um viés comunitário, social ou cidadão. Por fim, em terceiro lugar, há a defesa da aproximação entre as corporações e as Organizações Não-Governamentais (ONGs) como um elo de integração entre a favela e o “asfalto”.
Nossa hipótese central defende que a atuação desses intelectuais orgânicos e suas articulações em aparelhos privados de hegemonia se fizeram “partido”, pavimentando o caminho para um programa de reforma policial combinada com ações sociais. A partir do eixo programático de “cidadania policial”, essa articulação criou as bases para a construção
de campanhas “cívicas” contra a violência e para a formação do Viva Rio, que teve papel preponderante na formação de policiais que atuariam em diversos programas de policiamentos comunitários, desenvolvidos com a Polícia Militar, destacando-se a criação do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), no Rio de Janeiro, no ano 2000. Tais programas foram atravessados pelas prerrogativas de garantia da lei e da ordem (GLO) (Decreto nº 3.897, 24 de agosto 2001), que concederam às Forças Armadas, desde 1992, permissão para intervir em grandes eventos, greves da Polícia Militar, eleições e situações de “violência urbana”, abrindo caminho para a ocupação militar de favelas.
Sobre esse aspecto, é importante destacar a complexa relação dialética de cumplicidade criada entre políticas voltadas para a área de segurança pública da cidade e para questões urbanas de modo geral, como direito à moradia, serviços e transporte. Toda a dimensão urbana do Rio de Janeiro reflete o modelo de “cidadania policial”.
Se atualmente cerca de 58% de todo o território está sob o controle “milícias”, ou “narcomilícias”, a compreensão para esse fenômeno perpassa o conhecimento desse processo ulterior de “empoderamento” da polícia militar e civil, e demais forças de segurança, como bombeiros e membros das Forças Armadas, durante o período analisado. Esses grupos são indissociáveis do processo de reprodução ampliada do capital e operam o que a historiadora Virgínia Fontes (2019) chamou de “policialização da existência”.
Portanto, buscaremos corroborar com nossa hipótese central ao analisarmos brevemente como a “milicialização” de forças de segurança e territórios, ao contrário de acusar a “ausência” do Estado e o crescimento de um poder muitas vezes dito “paralelo” na cidade, expressa, em realidade, a manutenção do controle estatal (paraestatal) em zonas periféricas e integra o processo de espacialização da luta de classes e do funcionamento ampliado do Estado.
Intelectual orgânico, inventário e aparelhos hegemônicos
O conceito central a ser manejado neste texto é o de intelectual orgânico a partir da lavra gramsciana, postuladora de que “os intelectuais têm a função organizativa da hegemonia social (sociedade civil) e do domínio estatal (sociedade política)” (Gramsci, 2000, p.20). Nesse sentido, mais do que a alta escolarização ou a erudição, a função do intelectual moderno é a capacidade de organizar e dirigir a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria visão de mundo de um determinado grupo social. Como explica Roberto Leher e Vânia Motta, “essa abordagem gramsciana do intelectual não é subjetiva, mas sim, coletiva: são os intelectuais como massa – e não como indivíduos – cuja função é produzir e difundir ideologias que os interessam” (Leher; Motta, 2012, p. 426). Dessa forma, apresentaremos um inventário crítico de ideologias que se tornaram hegemônicas sobre a questão da violência urbana, seguindo a acepção de Antonio Gramsci.
Para o filosofo sardo, inventariar é confrontar os principais pressupostos que ancoram as concepções de mundo hegemônicas, difundidas e irradiadas em determinado ciclo histórico. Nesse sentido, destaca-se que as trajetórias dos autores aqui analisados são atravessadas por processos comuns. Entre eles, podemos destacar o impacto da militância na juventude católica ou protestante e a aproximação com redes internacionais, seja durante
o exílio em países do centro capitalista ao longo da ditadura empresarial-militar ou através do sistema de bolsas para pesquisas de mestrado/doutorado.
Outros pontos semelhantes foram a ruptura com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o “Partidão”, e a adesão às teses eurocomunistas, além de novas referências teóricas liberais e/ou vínculos com redes de atuação com forças divergentes com a política de segurança pública do governador Leonel Brizola (PDT) no Rio de Janeiro.
Dessa forma, busca-se reconstruir o processo de associação entre intelectuais, aparelhos privados de hegemonia e corporações policiais, ou seja, um elo de conexão entre sociedade civil e sociedade política, na forma de Estado Ampliado – conceito gramsciano que buscou apreender o conjunto complexo de mediações que tornam o Estado “ao mesmo tempo mais denso e mais poroso” (Fontes, 2010, p. 134). Aquilo que Gramsci denomina sociedade civil, conjunto dos aparelhos privados através dos quais uma classe ou um bloco de classes luta pela hegemonia e pela direção político-moral, não pode ser entendido de forma descolada ou oposta à sociedade política (os aparelhos militares e burocráticos de dominação e de coerção, em síntese, o Estado em seu sentido restrito).
Assim, a sociedade civil não é apartada do Estado para Gramsci, mas “atua por meio de aparelhos hegemônicos”, cuja função é o de educar um consenso. Em outras palavras, “o Estado tem e pede o consenso, mas também ‘educa’ este consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (Liguori, 2007 p.49). Esses aparatos da sociedade civil são denominados também de aparelhos privados de hegemonia e são
[...] a vertebração da sociedade civil, e se constituem das instâncias associativas que, formalmente distintas da organização das empresas e das instituições estatais, apresentam-se como associatividade voluntária sob inúmeros formatos. Clubes, partidos, jornais, revistas, igrejas, entidades as mais diversas se implantam ou se reconfiguram a partir da própria complexificação da vida urbana capitalista e dos múltiplos sofrimentos, possibilidades e embates que dela derivam. Não são homogêneos em sua composição e se apresentam muitas vezes como totalmente descolados da organização econômico-política da vida social. Clubes, associações culturais ou recreativas tendem a considerar-se como desconectados do solo social no qual emergem e como distantes da organização política do conjunto da vida social. (Fontes, 2010, p. 131-133).
Destacamos que os intelectuais orgânicos da violência urbana atuam nas articulações/fundações de aparelhos privados de hegemonia (doravante, APHs) que são tentáculos das classes dominantes que visam ocupar posições no Estado Restrito, incorporando demandas desses setores. As teses e pressupostos desses autores legitimam, disputam e direcionam as políticas públicas na área de segurança, sobretudo nas caracterizações e reformas policiais.
Formação e atuação dos intelectuais orgânicos da violência urbana
Como já mencionamos, Alba Zaluar, Luís Eduardo Soares e Rubem César Fernandes compartilham trajetórias comuns, marcadas não só pela ruptura com o “Partidão” e/ou com outras organizações marxistas, mas também pela crítica a uma percepção contrária à revolução pela via armada ou a qualquer ação violenta como resposta à ditadura empresarialmilitar Passaram por autoexílios em países do centro capitalista, no qual seriam incorporadas visões de mundo eurocomunistas ou reformistas e teses liberais sobre o Estado e a sociedade civil, a partir da historiografia inglesa, no caso de Zaluar; e norte-americana, no caso de Soares e Fernandes. Por fim, os três possuem atuação entre militância e luta por direitos civis a partir de redes católicas ou protestantes, que culminaram na participação de todos no ISER. No final da década de 1980, o Instituto se tornaria um local protagonista na formação de especialistas em segurança pública e na realização de pesquisas, publicações e seminários sobre o tema, criando clivagens no debate público sobre violência. Além disso, contava com subsídios de redes internacionais católicas e protestantes que transitavam entre múltiplos espaços do Estado Restrito ao Ampliado, ocupando com mais protagonismo os espaços acadêmicos formais ao ser incorporado como um Grupo de Trabalho (GT) da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), em 1987. Tanto o GT quanto o ISER seriam presididos durante décadas por Rubem César Fernandes, uma espécie de sócio fundador de grandes APHs no Rio de Janeiro e que também se destacaria como um elaborador de concepções sobre a atuação de ONGs. O ISER se tornaria referência na produção de pesquisas e diagnósticos da violência a partir de diversas formas de financiamento e “cooperações” com o Estado, inclusive, com a Secretaria de Segurança, atuando na criação de indicadores estatísticos e em uma sociologia urbana de viés aplicado, reproduzindo no Rio de Janeiro um modelo que foi inaugurado pelo sociólogo Antônio Paixão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1981. Segundo Alba Zaluar (1994, pp. 70-73), os estudos de Paixão foram precursores na perspectiva quantitativa de análise da violência e na crítica das políticas propostas com base na premissa de que a criminalidade se explicava por crises gerais, sobretudo o desemprego e a pobreza.
O ISER seria o ponto de encontro entre a sociologia aplicada de Antônio Paixão e os estudos etnográficos de Alba Zaluar (1983;1985;1994) sobre a sociabilidade entre trabalhadores e bandidos (termo da autora) na Cidade de Deus, favela localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, formada a partir da remoção de 26 comunidades. Tal articulação geraria um novo campo de estudos nas Ciências Sociais sobre a relação entre o tráfico de drogas e o crescimento da criminalidade na década de 1990, fornecendo a base para as teorias da causalidade da violência, que unificaria esses autores e serviria como baliza para atuação de APHs. Nesse contexto,
O princípio explicador da conduta criminosa não seria a pobreza, mas os diversos processos simultâneos, de causalidade complexa, envolvendo a territorialização do tráfico de drogas, a estruturação de uma sociedade de consumo e a exclusão social, que incluiria não somente o desemprego ou razões econômicas, mas o afastamento da escola, a diluição dos laços sociais com o enfraquecimento do associativismo local e a situação de “privação relativa” na busca por prazer e poder, que reforçariam a
motivação para o ato desviante. As crianças e jovens não atrelados ao mercado de trabalho, vivendo entre a casa e a rua e infensas à autoridade educadora dos adultos, tornar-se-iam vulneráveis às “técnicas de amedrontamento” da polícia e à sedução do poder da arma e do dinheiro fácil. (Vasconcellos, 2014, p. 172).
Zaluar, inaugurou uma perspectiva de “organização social da delinquência”, linha temática construída a partir da oposição “bandido” versus “trabalhador” na Cidade de Deus. Nesse caso, a delinquência é, portanto, o abandono total ao mundo do trabalho. Essa teoria é lastreada no ISER, onde os autores trabalharam juntos na década de 1980-1990.
A autora (1985) descreve um processo de violência que se inicia em uma “delinquência convencional”, com o tráfico de drogas, mas gera um quadro de “anomia social difusa” que envolve grupos de extermínio e/ou sustenta a corrupção policial e de agentes penitenciários. Gerando um cenário de muitas arbitrariedades e de “exclusão da lei”, a venda de drogas aparece como principal causa da violência policial e das práticas de justiçamento que envolvem ora traficantes, ora policiais.
Consideramos que Zaluar foi a precursora dos estudos sobre a criminalidade a partir do tráfico de drogas, lançando um olhar restrito sobre esses grupos nas favelas do Rio de Janeiro que serviram como base para diversos estudos nas periferias urbanas brasileiras. A caracterização dos “comandos” ou “facções” cariocas incitou um campo das Ciências Sociais e os APHs da segurança a justificar o desenvolvimento de alianças com as polícias, gestando uma atuação policial que precisava reconstruir sua legitimidade nas favelas e “reconquistar” a confiança dos moradores.
Esses foram os pressupostos seminais para a justificativa de construção de policiamentos comunitários, no qual o papel da polícia não podia se restringir à coerção, forma explicitada no policiamento ostensivo, mas devia atuar para assegurar sua legitimidade e confiança junto aos moradores, sobretudo às crianças e adolescentes, combinando ações ostensivas com ocupação preventiva do território e o desenvolvimento de ações assistenciais, filantrópicas e clientelistas.
Em linhas gerais, esses intelectuais orgânicos, organizados em múltiplos APHs, produziram consenso indicando quais recursos públicos deveriam ir para polícia, que tipo de armamento, dispositivos e normas aumentariam a vigilância e o controle social, incidindo na policialização da sociedade. Ao inventariarmos esses pressupostos, identificamos uma iniciativa ocorrida no Rio de Janeiro em 1984, o seminário “Rio contra o crime”, que pavimenta a construção de um consenso de militarização da segurança.
O Rio contra o crime e o Viva Rio
Em 1984, Alba Zaluar foi contratada pelo jornal O Globo para coordenar uma pesquisa de opinião do Ibope que se chamou “Rio contra o crime”. À época, a autora demonstrava bastante otimismo com essa iniciativa:
Neste país dados estatísticos sobre a criminalidade são poucos e quase exclusivamente oficiais. E, quando existem, nem sempre ficam disponíveis aos pesquisadores que se dedicam à criminologia, nem aos jornalistas que
esclarecem a opinião pública. Foi, portanto, duplamente louvável a iniciativa de realizar essa pesquisa “O Rio contra o crime” – por ter sido uma consulta aos habitantes da cidade e pela possibilidade de reflexão que os resultados oferecem a todos interessados na solução do problema da violência urbana. No meio da insegurança generalizada que se observa no Rio de Janeiro, em alguns casos de pânico diante de uma situação que parece estar fugindo do controle, uma nota de esperança: o morador desta intranquila cidade ainda acredita que algo pode ser feito e se dispõe a participar” (Zaluar [1984], 1994, p. 36).
É no sentido de checagem, constatação e incorporação que a sociedade civil foi convidada pelo jornal para opinar sobre a violência urbana no Rio de Janeiro. Seria essa a maior pesquisa de opinião sobre violência já feita até aquele momento no país. Com colaboração “espontânea”, O Globo montou banquinhas com um questionário com 10 questões referentes ao medo e à insegurança, perguntando se as pessoas já haviam sido assaltadas, suas percepções sobre o trabalho da polícia, sobre a corrupção etc. E o mais interessante, deixava um longo espaço livre do questionário para propostas voluntárias sobre segurança pública. Ao final da pesquisa, 20.28.027 mil pessoas responderam ao questionário, contabilizando um total de 1. 271.709 de sugestões, com uma média de 5,6 por participante (Zaluar, 1994, p. 37).
A pesquisa se concentrou na Zona Sul da cidade, a partir da percepção do públicoalvo do jornal – setores burgueses e da classe média. A participação de moradores de favelas foi reduzida, ocultando a posição dos subalternos. “Enquanto quase 9% da população de Copacabana e Ipanema responderam ao questionário, apenas 1,2% dos moradores da Rocinha participaram e 2% dos moradores da Mangueira e menos de 1% na Cidade de Deus” (Zaluar, [1985], 1994 p. 38). A justificativa da autora para essa baixa participação dos moradores de favelas era a descrença nas instituições e na justiça.
Outra percepção desse processo de insegurança social seria a desconfiança com as polícias e demais instituições de segurança e justiça. Nesse caso,
[...] mais de 60% não confiam na justiça e um pouco mais não confia nas polícias. (...) As imagens da polícia são muito negativas: uma instituição que humilha, reprime trabalhadores pobres e se envolve em crime, percepção mais forte entre os jovens, 20% que responderam ao questionário” (Zaluar [1985] 1994, p. 38).
Para a autora, ambos os casos revelaram um quadro de “insegurança” sinônimo de um “estado fraco” o que evidenciava uma “inércia estatal” na solução dos problemas dos cidadãos e no despreparo das polícias.
Através da pesquisa, O Globo e a corrente liberal da segurança pública se anteciparam, buscando disputar, intervir e dirigir a sociedade civil nesse processo, ao incorporar de maneira subalterna entidades e associações populares, que seriam convocadas a legitimar um programa comum de intervenção pública na área de segurança. Como desdobramento desses dados da pesquisa de opinião, o jornal e esses intelectuais organizaram um seminário com duração de três dias no auditório de O Globo, com o mesmo título “Rio contra o crime”.
A partir do evento foram propostas diversas iniciativas de intervenções na segurança pública, por meio de uma “carta compromisso” assinada por representantes das classes dominantes via aparelhos privados de hegemonia empresariais (doravante, APHEs), como a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) e a Fundação Roberto Marinho, “braço mercantil filantrópico da Rede Globo” (Cunha, 2020).
Um dos encaminhamentos do seminário foi a construção de campanhas “cívicas” contra a violência, com ações de cidadania que congregavam acadêmicos, empresários e policiais, buscando dar uma direção intelectual e moral na sociedade civil. Essas campanhas foram os embriões da criação da ONG Viva Rio, fundada em 1993 por representantes da FIRJAN, da Fundação Roberto Marinho e do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), coordenada por pesquisadores especialistas em segurança do ISER, como Luís
Eduardo Soares e Rubem César Fernandes. Vale ressaltar que o Viva Rio foi criado após as chacinas policiais da Candelária e de Vigário Geral, ocorridas naquele mesmo ano. Episódios que fomentaram a defesa de programas de policiamentos comunitários que visavam reconstruir a imagem desgastada da polícia.
Entendemos o Viva Rio como um APHE ancorado no capital científico de Luís Eduardo Soares, que à época já despontava como um policy maker da segurança pública, coordenando pesquisas sobre o tema através do ISER e que falava como especialista em segurança ao lado de Rubem César Fernandes, o “líder” da sociedade civil. Os dois contribuíram com a formação de policiais para atuar nos programas de policiamento comunitários.
Criando a possibilidade de construir consensos entre um agregado de classes, credos, projetos e valores, o que teria facilitado a abertura de espaços de parceria entre classes dominantes, governo, intelectuais e mobilização popular, o Viva Rio seria incorporado ao Estado Restrito durante o governo de Antony Garotinho (PDT) – entre 1999-2002. Na ocasião, Soares assumiu a Subsecretaria de Segurança Pública e desenvolveu no ano 2000 o Grupo de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), programa de policiamento comunitário que visava construir uma “nova imagem” da polícia e do policial, transformado em agente social.
Nesse sentido, trata-se de uma tentativa de construir uma hegemonia policial nas favelas, alargando as atribuições policiais que não podem se resumir à “coerção”, mas devem agir como mediadoras e reguladoras da vida social nesses territórios. Metamorfoseando-se em um aparato da civilização, transcrito com o significante da cidadania – reduzida a ações filantrópicas – e legitimando uma gestão policial nesses locais como forma de dominação que congregou interesses de setores da classe dominante, especialistas em segurança pública e policiais “cidadãos”. Como sintetiza a antropóloga Sabrina da Silva,
Esta é a tarefa que o GPAE julga ter dentro das favelas, levar cidadania, junto das ONGs, para estes lugares carentes, onde o Estado sempre esteve ausente. [...] A inovação é a tutela Estatal, agora praticada pela polícia, tutela esta que não se caracteriza por proporcionar autonomia para os moradores do Morro, e sim como uma forma de compensar a desigualdade e assim dar opções para que os moradores destes lugares não se tornem bandidos (Da Silva, 2006, p. 17).
O primeiro comandante do GPAE foi o sociólogo e major Antônio Carlos Carballo Blanco, que fez especializações e pós-graduações em programas universitários voltados à formação de líderes policiais, e foi descrito “como o principal assessor do Luís Eduardo Soares” (Fernandes, 2003, p. 94).
A primeira favela a receber este “novo” policiamento foi o Cantagalo/PavãoPavãozinho, que se situa nos bairros de Copacabana e Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Nesse sentido, é importante destacar que o GPAE atuaria em “Áreas Especiais”, um eufemismo semântico para designar as favelas que estão localizadas majoritariamente em bairros nobres do Rio de Janeiro e de Niterói.
Os policiais, após cursos, aulas e palestras fomentadas pelo Viva Rio, atuariam inclusive em escolas e associações de moradores, prestariam serviços de primeiros socorros e desenvolveriam projetos de inclusão. Além disso, em algumas localidades, a partir de APHs como a Fundação Roberto Marinho e doações empresariais, distribuíram brinquedos no Dia das Crianças e no Natal para jovens dos territórios ocupados. Contudo, o GPAE jamais abdicou da coerção, do controle social e do policiamento repressivo. Todo o processo de instalação, estabelecimento e permanência desse policiamento comunitário perpassa a violência estatal, uma vez que sua implantação foi sempre precedida por uma enérgica ação policial, levada a cabo pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) (Blanco, 2002, p. 28-29).
De maneira geral, esse “novo” policiamento, após uma ação abrupta e violenta do Batalhão Especial, visava se instalar nas favelas e instituir ações “preventivas”, buscando construir consensos entre a polícia e os moradores, como a natureza dúplice do “centauro maquiaveliano, metade fera, metade homem; força e consenso; autoridade e hegemonia; violência e civilidade” (Gramsci, 2000, p. 33).
O GPAE condensa a prática da policialização com inclusão cidadã, forjado pelas teses liberais da corrente hegemônica e da necessidade estratégica de democratizar a polícia, encarando a corporação como um agente social parte de um processo civilizador de áreas empobrecidas nas quais reside uma sociedade “incivil” – termo Hobbesiano, onde o Estado está ausente.
É sobre essa suposta ausência do Estado que teria sido gerada uma “cidade partida” (Ventura, 1994). Um Rio dividido ao meio, que deixou de ser a imagem da capital do Brasil “Bossa Nova”, tranquilo e paradisíaco, se tornando o signo da violência urbana nos anos 1990 ao ser atravessado por chacinas, por arrastões, pela onipresença do tráfico de drogas e pela polícia corrupta.
Em seu livro, Ventura daria voz a Rubem César Fernandes, então presidente do Viva Rio, que mobilizaria e organizaria a sociedade civil com apoio midiático da mídia patronal e de setores empresariais, atuando para superar a cisão entre favela e Zona Sul, através da promoção de atividades de convívio e diálogo entre moradores dessas áreas com a Polícia Militar.
Fernandes despontaria nesse momento como o “paladino da sociedade civil”, onde se cumpre a vocação das “ONGs”. Sua atuação específica era o de unificar a cidade a partir da “pacificação” da Zona Sul, pressuposto que seria a base de programas de policiamentos comunitários, geridos a partir de parcerias público-privadas entre entidades empresariais e a Polícia Militar. Nesse cenário, o aparato coercitivo desenvolveria projetos filantrópicos articulados com a ocupação preventiva e permanente das favelas, primeiro no caso do GPAE
e, posteriormente, das Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs). Em ambos os casos, o Viva Rio treinou e formou policiais para atuarem nesses programas de segurança.
Esse APH também desenvolveu iniciativas de mediação de conflitos em favelas e territórios periféricos no Rio de Janeiro, legitimadas como uma forma de integração entre segurança e direitos civis. Tais iniciativas justificaram um convênio internacional firmado com a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2004 para atuar na Missão para a Estabilização do Haiti (Minustah), programa apresentado como a reconstrução do país por intermédio do Exército brasileiro e que seria denunciado por diversas violações de direitos humanos. A participação brasileira na Missão teve profundos desdobramentos na política de segurança no país, como discutiremos mais adiante.
Em síntese, nossa hipótese central que vem sendo desenvolvida em tese de doutoramento é que esses intelectuais orgânicos, através desses APHs, forjaram consensos de novas formas de policialização da sociedade civil, constituindo um “consenso para coerção” sob diferentes nomenclaturas policiais, comunitária, cidadã, integrada – alargando a função policial para outras esferas do conjunto da vida social, como as universidades, escolas, associações de moradores, trabalhos filantrópicos com igrejas e outras formas associativas.
Esses projetos e processos auxiliaram a ampliação do poder policial sobre esses territórios e a política de forma geral. Além de justificarem o investimento cada vez maior de recursos nos aparatos repressivos do Estado, gerando a ampliação de um “Estado de polícia”, cujo ápice foram as UPPs – com a ideologia disseminada de controle territorial policial “comunitário”, com o apoio do capital multinacional e com a colaboração de diversos especialistas em segurança pública.
A cidade e a espacialização da luta de classes
Associado à reconfiguração econômica e social da cidade a partir do final dos anos 1980, o processo de transição da ditadura militar para o regime democrático desde a Lei da Anistia (1979), ao negar a apuração dos crimes cometidos durante a ditadura e preservar a estrutura organizacional e os protocolos de ação das instituições policiais e das Forças Armadas, acedeu às condições ideais de fortalecimento das corporações.
Além da manutenção da mesma estrutura organizacional da ditadura militar, vale dizer que a especialização das polícias previstas na Constituição de 1988 também atribui agravantes à sua atuação, estando elas divididas a nível governamental entre civil, militar (incluindo a rodoviária) e penal; e a nível federal entre polícias federal, rodoviária federal e penal.
Em relação às polícias estaduais, as sociólogas Letícia Maria Schabbach e Melissa de Mattos Pimenta chamam atenção para a “organização bipartida”, que implica em problemas para a formulação e implementação de políticas de segurança pública:
[...] enquanto a militar exerce o papel de polícia ostensiva, a civil atua na apuração das infrações penais. Essa organização bipartida, pouco encontrada em outros países, traz inúmeras implicações sobre o modo como as políticas de segurança pública são formuladas e implementadas. Entre elas, a separação entre uma organização que patrulha e outra que
investiga inviabiliza o chamado “ciclo completo de polícia”, o qual prevê que uma única instituição executaria a prevenção, a investigação e a repressão das ações em desconformidade com a lei – civil, federal e militar –, na definição e especificação de suas competências. (Pimenta e Schabbach, 2021)
Soma-se a isso o treinamento, a estrutura e a hierarquia militar da PM que, além de contribuir para um caráter cada vez mais ostensivo e violento da corporação, abre as prerrogativas de sua autonomização.
Mobilizadora de uma “economia do medo”, que tão fortemente alimenta o mercado de segurança e a indústria bélica, a imposição do imperativo da segurança como princípio básico de atividade do Estado marcou os anos 1980 e 1990 a nível global. Em seu importante trabalho a respeito do que categorizou como “novo urbanismo militar”, o geógrafo Sthephen Graham observou a materialidade das políticas estatais de segurança pública e seus efeitos no conjunto da vida social:
Não é por acaso que complexos de segurança-industriais floresçam em paralelo com a difusão de ideias do fundamentalismo de mercado para organizar a vida social, econômica e política. As hiperdesigualdades, a militarização urbana e a securitização mantidas pela expansão do neoliberalismo se reforçam mutuamente. (Graham, 2017, p. 130)
Nesse período, a acumulação urbana reconfigurou-se no padrão clássico da modernização conservadora que presidiu a nossa inclusão na economia-mundo, como analisaram Luiz César Queiroz Ribeiro e Orlando Alves Santos Junior (2013). Os autores reforçam que para o Brasil inserir a acumulação urbana nos circuitos financeiros globalizados foi necessário a construção de novos padrões de gestão do território – e de seus conflitos.
A década de 1990 foi testemunha da organização de uma gestão militarizada e ofensiva do espaço urbano. Tropas do Exército, que já haviam ocupado as ruas da cidade do Rio de Janeiro por ocasião da realização da conferência da ONU, a Rio-92, fizeram parte da Operação Rio I e Rio II (em 1994 e 1995, respectivamente). Na primeira, foram dois mil militares das três Forças Armadas acionados para atuação nos morros do Dendê e da Mangueira, tendo sido denunciada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em razão de prisões sem flagrante e sem mandados. Em abril do ano seguinte, a pedido de Marcello Alencar (PSDB), então governador do estado, a Rio II contou com o apoio da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária, com a mobilização de vinte mil homens.
Além da Rio I e II, episódios de assassinatos coletivos provocados pelas forças policiais foram registrados ao longo da década, muitos dos quais concentrados na cidade do Rio, como a Chacina de Acari (1990), da Candelária (1993), de Vigário Geral (1993), de Nova Brasília (1994 e 1995) – uma das doze favelas que compõe o Complexo do Alemão; além do Massacre do Carandiru (1992), em São Paulo. Foi o momento de recrudescimento de uma cultura de guerra aos pobres declarada, que ao contrário de guardar em seu cerne a “paz” enquanto finalidade busca um adiamento dos tempos de paz e o ajuste de um estado de guerra permanente (Deer, 2007, p. 1).
Prevista no artigo 142 da Constituição Federal de 1988, regulada por lei complementar de 1999 e utilizada sob o pretexto de esgotamento da capacidade de resposta das forças policiais ordinárias, a garantia da lei e da ordem (GLO) é uma operação policial realizada pelas Forças Armadas por tempo determinado e o estado do Rio foi o que mais recebeu operações desse tipo em toda história, totalizando vinte e uma GLOs desde 1992 –quando a primeira foi realizada, no contexto da Rio-92, como já mencionamos.
Nessa mesma direção foi criada, em 2004, a Força Nacional de Segurança Pública, que representou a disponibilidade, por parte do governo federal, de enviar tropas policiais de intervenção sempre que solicitadas pelos governos estaduais em prol da manutenção da lei e da ordem – mesmo ano de instituição da Minustah. Tais marcos imputaram à lógica de segurança pública nas cidades elementos que flagram o modos operandi do Estado de exceção permanente, dentro e fora das fronteiras nacionais.
Estabelecida até 2017, a Minustah, segundo consta na coletânea de artigos sobre a missão organizados pelo Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB) e o Instituto Igarapé, foi fundamental para o aperfeiçoamento do país na atuação em missões de paz, tornando-se referência mundial1. Como afirma Marcelo Badaró de Mattos (2020), a Minustah funcionou como treinamento de tropas para a intervenção com sentido policial em áreas urbanas favelizadas, tendo oficiais comandantes e militares de postos intermediários empregados nas várias intervenções militares em áreas urbanas.
Isso ficou expresso na fala do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, que em 2007 insinuou que aquela experiência serviria de base para futuras operações das Forças Armadas em solo brasileiro, desempenhando missões de preservação da “ordem pública”2. Naquele contexto, reverberando a retórica da necessidade de preservar favelas e periferias do controle do tráfico, grupos paramilitares autonomizaram-se intensamente. Além da prestação de serviços de segurança para comerciantes e moradores contra “bandidos”, passaram a operar sistematicamente negócios através do controle sobre regiões e suas populações, imiscuindose ainda mais na esfera política.
Naquele mesmo ano, o então deputado Marcelo Freixo (PSOL) requereu a instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das “milícias” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), no contexto de afastamento do inspetor Félix Tostes dos Santos do cargo de assessor de gabinete da chefia da Polícia Civil por suspeita de comandar a milícia na favela Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade. O inspetor foi morto a tiros e o depoimento do delegado Pedro Paulo na CPI, instaurada em junho de 2008, expôs parte da imbricada rede de disputas e interesses de parlamentares e grupos paramilitares que levou à morte do inspetor:
O que aconteceu ali [o assassinato do inspetor], e já está muito bem definido, é que o vereador Nadinho [Josinaldo Francisco da Cruz, do exDEM] quis dominar Rio das Pedras e fez uma parceria com o pessoal de
1 “A participação do Brasil na MINUSTAH (2004-2017)”: percepções, lições e práticas relevantes para futuras missões. Organizadores: Dra Eduarda Passarelli Hamann e Cel Carlos Augusto Ramires Teixeira. Edição Especial: Coletânea de Artigos. Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil e Instituto Igarapé, outubro, 2017. Disponível em: AEXX_MINUSTAH.indd (eb.mil.br)
2 Anos depois, em 2010, os homens da Brigada Paraquedista que apoiaram a “reconquista” do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro haviam servido no Haiti. SOUZA, Marcelo Lopes de., “A “reconquista do território””, ou: Um novo capítulo na militarização da questão urbana. In: Passa Palavra, 3 de dezembro de 2010. Disponível em: https://passapalavra.info/2010/12/32598/, Acessado em: 28 de fevereiro de 2021.
Campo Grande, que é o deputado Natalino [Natalino Guimarães, exDEM] e o vereador Jerominho [Jerônimo Guimarães Filho, do PMDB], no sentido de eliminar o Félix e ele, Nadinho, dominar Rio das Pedras e assim formarem um grande complexo. [...] Acontece o seguinte: com a morte do Félix, Dalmir [Dalmir Pereira Barbosa] – que é PM –, Dalcemir [Dalcemir Pereira Barbosa], que é o irmão dele, e vários outros lá dentro (Beto Bomba, Major Dilo, oficial da ativa da PM e tal) não permitiram que o Nadinho assumisse Rio das Pedras, porque eles eram fiéis ao Félix e sabiam quem tinha matado o Félix, a mando de quem o Félix foi morto. Então, eles não permitiram. Isolaram o Nadinho num canto e assumiram o comando do grupo em Rio das Pedras3
A CPI levou ao indiciamento de 225 políticos e deflagrou elementos importantes para a compreensão da atuação e formação daqueles grupos. Um deles é o fato de que, até aquele momento, as milícias haviam se expandido majoritariamente nas regiões da Baixada Fluminense e Zona Oeste, mais fortemente ruralizadas até os anos 2000. Das 171 comunidades onde registrou-se a presença de milícias, 119 comunidades não pertenciam diretamente a nenhuma facção criminosa, o que representa quase 70% do total apurado. As que anteriormente seriam dominadas por facções criminosas totalizariam 52%4 Na esteira de preparação da cidade para os grandes eventos, como foi o caso dos Jogos Pan Americanos de 2007, o projeto político-econômico esboçado a partir do esquema de segurança pressupôs uma dilatação do controle militarizado oficialmente instituído sobre as áreas mais vulneráveis da cidade. De acordo com José Cláudio Alves Souza, 2007 é um marco central para o estabelecimento da execução sumária como política de segurança:
A política de segurança, visando a realização dos jogos Pan-Americanos, transformou-se, progressivamente, no tubo de ensaio que permitiu, ao seu cabo, a transformação da execução sumária em política de segurança. Essa alquimia só foi possível a partir dos vários elementos da conjuntura do Rio de Janeiro nesse período. (Souza, 2008, p. 34)
O autor demonstra que, para a reconfiguração do controle do crime organizado na cidade, foi necessário um movimento coordenado entre a reestruturação do controle militar e o aporte financeiro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), gestado durante o segundo governo Lula. A reconfiguração da estrutura urbana promovida pelos R$ 3,8 bilhões de reais destinados a projetos de urbanização e saneamento no estado do Rio de Janeiro –com mais da metade desse valor destinados às favelas –, associada à militarização progressiva do território ensejou uma massa eleitoral receptiva à polícia e aos militares, com “votos clientelisticamente controlados e disponibilizados para eleições futuras” (idem).
A estratégia de segurança para os Jogos aprimorou a política de guerra promovida através de megaoperações policiais, com o massacre de favelados e periféricos. No ano do evento, a declaração do coronel Marcus Jardim, comandante do 16º Batalhão da PM sobre a
3 Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar “A ação de milícias no âmbito do Estado do Rio de Janeiro”. Resolução 433/2008, p. 52.
4 Os dados são da Subsecretaria de inteligência e constam no relatório da CPI, disponível em: CPI das Milícias | Marcelo Freixo. Acessado em: 05 de maio de 2021.
“retomada” de comunidades pobres para a entrada do PAC, do governo federal, e a estratégia de segurança para a realização dos Jogos é tão sintomática, quanto hedionda: “Dará um pouco mais de trabalho porque precisaremos de mais homens, mas isto não vai impedir a retomada dessas comunidades. Este será um ano marcado por três pês: Pan, PAC e Pau” (Ribeiro, Dias e Carvalho, 2008, p. 11).
Em jargão militar, favelas e periferias deveriam ser reconquistadas, o que implicava a desterritorialização (Haesbaert, 2003) e a execução sumária de traficantes. A esse respeito,
José Cláudio Souza Alves lembra das produções audiovisuais desse período, como o longa nacional Tropa de Elite 1 (2007) e a novela da Rede Globo, Duas Caras, que endossaram a negação e a violação do direito à vida à população favelada e periférica.
Em seu primeiro mandato como governador do Rio de Janeiro, entre 2007 e 2010, Sergio Cabral (MDB) lançou o modelo de segurança pública das UPPs, que alterou a geografia do crime organizado em todo o estado, com um cinturão de segurança estendido principalmente sobre favelas da Zona Norte e da Zona Sul da capital. Foi registrado um aumento das violações de direitos humanos e das execuções sumárias cometidas pela polícia, demonstrado no relatório preliminar da visita ao Brasil do Relator da ONU para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Philip Alston (Maricato e Ferreira, 2001). O relatório analisa algumas declarações públicas de Sergio Cabral e do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, e evidencia as estratégias para efetivar “ações de guerra” que foram responsáveis pelo aumento significativo dos chamados “autos de resistência”. 5
Dentre os principais aspectos norteadores da política de polícias pacificadoras, é possível destacar: i) Manter uma tropa fixa, inspirada na estratégia de policiamento comunitário, ou policiamento de proximidade, em territórios de favelas anteriormente dominados por grupos armados; ii) Aplicar a lógica de policiamento de saturação, em que a razão do número de policiais pelo número de moradores era, em média, quatro vezes maior do que a proporção da cidade do Rio de Janeiro; iii) Assegurar a presença física em campo de um oficial comandando a tropa com autonomia e que também servisse de ponto de contato com a população; iv) Compor a tropa com policiais predominantemente recémformados e não viciados em práticas antigas da PM nas favelas; vi) Valorizar o policial de UPP por meio de pagamento de gratificação; vii) Incentivar forte apoio de mídia nos primeiros anos, insistindo na ideia de que se tratava de um programa de governo e não apenas de um programa de polícia.
Até 2012, os números de homicídio reduziram pela metade, bem como o número de mortos causados pela polícia. Além da retribuição e premiação aos policiais que poupassem vidas, a UPP impulsionou um deslocamento da mancha criminal sobre o território da cidade, promovendo um rearranjo na dinâmica de grupos criminosos, de acordo com a antropóloga e cientista política, Jaqueline Muniz. Contudo, esses aspectos se mostraram residuais e provisórios, tendo o número de homicídios voltado aos marcos anteriores em 2017.
Na esteira de tais projetos, a questão da violência urbana no Rio de Janeiro aliada a outros fatores, como a precarização do trabalho de policiais, criou as condições de autonomização de forças policiais e paramilitares na cidade. Esses agentes expandiram-se
5 Termo utilizado para registrar casos de civis mortos durante suposta resistência à prisão seguida de confronto. Procedimento inicialmente regulamentado durante a ditadura militar pela Ordem de Serviço n.º 803, de 02/10/1969 e publicado no Boletim de Serviço do dia 21/11/1969. Justiça Global, 2008, p. 2.
sobremaneira nas últimas três décadas a partir do Estado Restrito, fortalecendo-se através de políticas públicas de segurança e programas sociais, leis e projetos de lei promovidos institucionalmente.
Considerações Finais
As teses e análises hegemônicas realizadas sobre a violência e a gestão urbana carioca, tendencialmente, desconsideram ou secundarizam a participação do Estado na produção e gestão da violência e simultaneamente na conformação do espaço. A atuação desses intelectuais orgânicos por meios de APH´S, ajudaram a consolidar um processo de proliferação de novas polícias – comunitárias, sociais ou cidadãs, na década de 1990. Na época neoliberal, observou-se uma resultando em um aumento vertiginoso do que se pode chamar de "estado de polícia", conforme destacado por Malaguti Batista (2001). Nos anos 2000, o auge desse estado policial se manifestou no Rio de Janeiro com a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que evidenciaram um salto de qualidade na ideologia voltada para o controle territorial de favelas. Essa estratégia foi apoiada tanto pelo capital multinacional quanto por intelectuais orgânicos e sociólogos colaboracionistas, que contribuíram para a legitimação dessa abordagem.
Vale ressaltar que, desde a retomada da eleição direta para governador no Rio de Janeiro, em 1983, todos os governos expandiram a presença policial nas favelas da cidade, com exceção de Leonel Brizola (PDT), que adotou uma postura diferenciada em relação ao tema, tentando conter a polícia. Essa trajetória revela um longo processo de (re) militarização por meio de projetos neoliberais de “segurança” que atravessam o Estado ampliado no Rio de Janeiro.
A perspectiva dualista entre favela e asfalto na obra cidade partida é permeada pela ausência de antagonismos de classes, como se os distintos espaços se constituíssem como lócus quase natural de desigualdade.
Nessa perspectiva liberal a saída para a superação da desigualdade entre as “duas cidades” dentro de um Rio partido é a ação social, condensada na atuação de entidades da “sociedade civil” – angelical, dócil e obediente, distante e separada das tensões sociais. Em sua oposição aos liberais, Gramsci demonstrou que a sociedade civil não está isolada da produção, nem muito menos do Estado. Ao contrário, é a partir da atuação de APHs que se trava a luta cotidiana em torno da direção e da organização social em processos que podem se tornar hegemônicos.
Em que pese o período analisado, de implementação da agenda neoliberal, a apreensão do Estado em seu sentido ampliado é, para nós, um meio de refutar o isolamento de aspectos econômicos e sociais. Ao jogarmos luz sobre o todo social, faz-se premente avaliar em que medida e de quais maneiras o aumento de massas trabalhadoras desprovidas de direito modifica e tensiona a relação capital versus trabalho. É nesse sentido que buscamos coadunar projetos de segurança pública gestados na cidade aos seus efeitos no tecido e na cultura urbana carioca.
O advento das contrarreformas neoliberais promoveu a desregulação do sistema financeiro, o estrangulamento da gestão e financiamento públicos de variados setores produtivos, bem como da “materialidade urbana”, isto é, habitação, equipamentos, infraestrutura, regras de uso do solo e de serviços urbanos coletivos.
Tal processo potencializou sobremaneira a cidade como valor de troca, ocorrendo em vários circuitos da produção do espaço urbano construído, desde o mercado imobiliário até os espaços relativos à realização de obras públicas e concessão de serviços coletivos, além de programas sociais, promovendo a financeirização do direito à cidade aliado ao empoderamento de forças policiais, transformados em agentes mediadores dessa “cidadania policialesca”.
O processo de concentração do capital e a atuação crescente das burguesias e de seus APHs são os sintomas de que não houve, a partir da década de 1990, uma “redução do Estado”, mas sim um ganho de importância do mesmo no processo de deseducação das massas trabalhadoras, através da difusão de práticas filantrópicas, do bloqueio das lutas populares e do cooptação de trabalhadores através da filosofia da filantropia mercantil, desorganizadora das formas de organização da classe trabalhadora. As expropriações contínuas promovidas pelo Estado, especialmente de direitos universais (saúde, educação e moradia), se converteram em fronteiras de expansão do capital, tutelada por forças policiais. Expandindo os seus meios de ação e qualificando sobremaneira o processo incessante de valorização do valor do “capital criminal” (Valdéz, 2016) através do controle territorial e do aparelhamento político, as forças de segurança, cada vez mais, passaram a constituir a anatomia urbana da cidade do Rio – e do Estado brasileiro.
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Capítulo 7
A Segurança Pública como Expressão Máxima da Gestão Racista das Políticas Sociais no Conjunto de Favelas da Maré
Barros
Introdução
O presente capítulo propõe explorar o debate acerca das políticas sociais no Brasil, com um enfoque específico sobre a política de segurança pública como um direito social e o impacto da gestão racista dos espaços favelados, tomando como estudo de caso a realidade do conjunto de favelas da Maré. Partindo dos resultados da pesquisa da minha tese de doutorado e da experiência prática no eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, este trabalho busca evidenciar como as políticas públicas refletem e perpetuam as desigualdades estruturais de nossa sociedade. As políticas sociais, longe de serem neutras e objetivas, historicamente refletem as desigualdades de classe, raça e gênero. Segundo Behring e Boschetti (2011), às concepções de política social são sempre mediadas por uma perspectiva teórico-metodológica, que está intrinsecamente ligada às visões sociais do mundo. A análise das políticas sociais deve, portanto, ir além dos dados técnicos e considerar suas causas e contextos históricos, econômicos e políticos.
Dessa forma, a política de segurança pública é particularmente significativa, pois deveria ser entendida como um direito social fundamental. No entanto, na prática, a gestão racista dos espaços favelados revela uma profunda contradição: em vez de garantir segurança, a atuação do Estado frequentemente perpetua a violência e a desigualdade, especialmente em favelas como a Maré. Essa gestão racista se manifesta não apenas através da violência policial, mas também na precarização das políticas sociais destinadas a esses lugares.
A análise deste capítulo busca conectar essas dimensões, evidenciando como a lógica colonial e racista persiste nas políticas públicas contemporâneas. Ao tratar da política de segurança pública como um direito social, é essencial compreender como as estruturas de dominação e opressão racial moldam a vida nas favelas, impactando diretamente a efetividade das políticas sociais.
Assim, ao longo deste trabalho, serão exploradas as nuances da política social brasileira, suas contradições intrínsecas e a maneira como a gestão racista dos espaços favelados contribui para a perpetuação das desigualdades estruturais. Por meio da análise da realidade da Maré, buscaremos ilustrar essas dinâmicas e oferecer uma compreensão mais profunda da interseção entre política social, segurança pública e racismo no Brasil.
Política Social e as particularidades da questão social no Brasil
As políticas sociais não são neutras e objetivas; historicamente, elas refletem e perpetuam as desigualdades existentes. Segundo Behring e Boschetti (2011), às concepções da política social pressupõem sempre uma perspectiva teórico-metodológica, ou seja, têm
Camila
uma relação com as perspectivas e visões sociais do mundo. O debate das políticas sociais frequentemente se baseia exclusivamente em dados técnicos, que não falam por si só; eles necessitam da investigação de suas causas, suas razões históricas, econômicas e políticas subjacentes aos dados. Behring e Boschetti (2011) sugerem em seu livro uma análise das políticas sociais a partir do método materialista histórico e dialético de Marx. Dessa forma, as autoras afirmam que as políticas sociais não podem ser analisadas a partir de sua expressão imediata como fato social isolado. Ao contrário, devem ser situadas “como expressão contraditória da realidade, que é a unidade dialética do fenômeno e da essência” (Behring e Boschetti, 2011, p. 39).
Behring e Boschetti (2011) criticam as análises unilaterais das políticas sociais no capitalismo, argumentando que são insuficientes porque se limitam a uma única perspectiva. Por exemplo, as abordagens que veem as políticas sociais apenas como iniciativas exclusivas do Estado para atender às demandas da sociedade ou, em outro extremo, como resultado exclusivo da pressão da classe trabalhadora são consideradas limitadas. Essas visões não levam em conta a complexidade das políticas sociais no contexto da luta de classes e da acumulação capitalista. Além disso, as análises que consideram as políticas sociais apenas como ferramentas para a redução dos custos de reprodução da força de trabalho e para a manutenção da ordem capitalista, tanto economicamente quanto politicamente, também são criticadas por serem unilaterais. As autoras argumentam que essas perspectivas não conseguem capturar as contradições inerentes aos processos sociais e não reconhecem o potencial das políticas sociais como elementos centrais nas lutas dos trabalhadores e em suas vidas diárias, quando tem a possibilidade de garantir benefícios para os trabalhadores e impor limites aos ganhos do capital. Portanto, é necessário considerar uma gama mais ampla de contradições para uma análise completa das políticas sociais no capitalismo.
Nessa perspectiva:
O estudo das políticas sociais deve considerar sua múltipla causalidade, as conexões internas, as relações entre suas diversas manifestações e dimensões. Do ponto de vista histórico, é preciso relacionar o surgimento da política social às expressões da questão social que possuem papel determinante em sua origem [...] Do ponto de vista econômico, faz-se necessário estabelecer relações da política social com as questões estruturais da economia e seus efeitos para as condições de produção e reprodução da vida da classe trabalhadora. [...] Do ponto de vista político, preocupa-se em reconhecer e identificar as posições tomadas pelas forças políticas em confronto, desde o papel do Estado até a atuação de grupos que constituem as classes sociais e cuja ação é determinada pelos interesses em se situam. Essas dimensões - história, economia, política e cultura - não podem e não devem ser entendidas como partes estanques que se isolam ou se complementam, mas como elementos da totalidade, profundamente imbricados e articulados. (Behring e Boschetti, 2011, p. 43)
As políticas sociais, dessa forma, refletem a relação dinâmica entre o Estado e a sociedade, constituindo uma abordagem para lidar com as diversas manifestações da questão social. Nesse sentido, é relevante realizar uma breve contextualização da categoria questão
social, relacionando-a com o histórico de suas formas de enfrentamento, especialmente considerando as particularidades do contexto brasileiro.
A questão social, no contexto do sistema capitalista, emerge como resultado das contradições fundamentais entre o capital e o trabalho. Essas contradições, inerentes ao modo de produção capitalista, são impulsionadas por uma tendência intrínseca ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas. No contexto da área de conhecimento do Serviço Social, a questão social está intimamente ligada à luta de classes e à forma como o Estado enfrenta as suas várias expressões ao longo da história. As diretrizes curriculares da profissão analisam a categoria "questão social" a partir da apreensão do processo social como totalidade, reproduzindo o movimento do real em suas manifestações universais, particulares e singulares, em suas dimensões econômicas, políticas, éticas, ideológicas e culturais, fundamentadas em categorias que emanam da teoria crítica (ABESS, 1997, p. 152).
Pensando inicialmente a partir dos países de capitalismo central, tomamos como referência, a primeira Revolução Industrial, que representou um aumento significativo do pauperismo, um fenômeno novo e sem precedentes na história. Embora a desigualdade entre as classes sociais não fosse nova (com a polarização entre ricos e pobres), a dinâmica da pobreza generalizada era uma novidade. A pobreza cresceu à medida que aumentou a capacidade social de produzir riquezas. Se antes a pobreza estava ligada a um contexto geral de escassez (junto com os processos de distribuição de renda), agora ela estava associada a um contexto geral que tendia a reduzir a escassez. O pauperismo, como resultado do trabalho, é uma especificidade da produção baseada no capital (pobreza não apenas como resultado da distribuição de renda, mas relacionada à própria produção). O pauperismo é tratado como "questão social", pois os pauperizados não se conformam, representando uma ameaça à ordem burguesa.
A partir da segunda metade do século XIX, a expressão "questão social" começou a ser amplamente utilizada pela burguesia, a partir da separação positivista, no pensamento conservador, entre o econômico e o social, dissociando as questões tipicamente econômicas das "questões sociais" (cf. Netto, 2001, p. 42). Assim, o "social" pode ser visto como "fato social", como algo natural, a-histórico, desarticulado dos fundamentos econômicos e políticos da sociedade, portanto, dos interesses e conflitos sociais. Nesse sentido, se o problema social (a "questão social") não tem fundamento estrutural, sua solução também não passaria pela transformação do sistema.
Começou-se a pensar, então, na "questão social", na miséria, na pobreza e em todas as suas manifestações, não como resultado da exploração econômica, mas como fenômenos autônomos e de responsabilidade individual ou coletiva dos setores por elas atingidos. A "questão social", portanto, passou a ser concebida como "questões" isoladas, e ainda como fenômenos naturais ou produzidos pelo comportamento dos sujeitos que os padecem.
Para pensar as particularidades da questão social no Brasil, Josiane Santos (2012) alerta para a necessidade de diferenciação entre “modo de produção” e “formação social”, com o intuito de garantir a compreensão brasileira a partir da articulação de mediação desses dois níveis. Nesse sentido, dentro de uma perspectiva ontológico-social, o modo de produção é uma categoria reflexiva manifestada pelas mediações entre a organização da vida material e da sociabilidade, enquanto modos de vida que englobam os aspectos políticos, jurídicos, morais, ideológicos, culturais etc. Nessa mesma linha, a “formação social” pode ser entendida a partir de sua concretude nas relações sociais e políticas determinadas.
No modo de produção capitalista, além da produção de mais valor, há também a reprodução das relações sociais. A produção capitalista não se limita à produção de mercadorias e de mais-valia, mas também à reprodução das relações sociais antagônicas entre trabalhadores e capitalistas. A cada ciclo de produção, surgem duas classes distintas: uma que detém os meios de produção e continuará a detê-los, e outra que possui apenas a força de trabalho e continuará a dispor apenas dela. Dessa forma, o modo de produção capitalista não gera apenas coisas, mas principalmente relações sociais de dominação e opressão. Nessa lógica, o valor da força de trabalho é atribuído não individualmente, mas sim coletivamente. Portanto, se na sociedade brasileira existem marcadores sociais da desigualdade(Saffioti, 2013) que vão além da classe social, como raça e gênero, a interseção desses marcadores intensifica os mecanismos de exploração e dominação.
No Brasil, o capitalismo não se estabeleceu apenas devido às suas estruturas econômicas e sociais. Ele ganhou significado interno após a ruptura com o antigo regime colonial, mantendo condições semelhantes à organização social anterior, que ainda sustentava o poder econômico dos grandes proprietários rurais, mesmo após o fim oficial da escravidão. A falta de uma sucessão de eventos impactantes, de uma revolução propriamente dita, não impediu o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, mas determinou um ritmo e uma condição particulares. A ideia de revolução burguesa é útil para compreender as etapas desse processo e, principalmente, para entender a modalidade de capitalismo predominante no país.
Toda essa realidade consolidou uma forma específica de dominação capitalista, que se particulariza no aprofundamento da barbárie social, da opressão patriarcal, da violência contra a mulher, das dimensões do mundo do trabalho, das formas de opressão e exploração, da relação do Estado com a sociedade brasileira e, sobretudo, do racismo originado no período de escravidão. Esses fatos impactam diretamente o movimento das políticas sociais no país.
Saffioti (2013) destaca a influência mútua entre o capitalismo, o racismo e o patriarcado, criando uma relação indissociável de exploração, opressão e dominação. Segundo a autora, o sexo e a raça funcionam como marcadores sociais que permitem a hierarquização das pessoas na sociedade. Esses marcadores sociais, de acordo com Saffioti, são fundamentais para compreender a hierarquização na sociedade, especialmente nos processos de produção. Ao considerar a dominação e a exploração como um mesmo processo inseparável, podemos entender como elas ocorrem nos processos de produção e reprodução das relações sociais.
Gonçalves (2018) aponta que as características históricas da “questão social” no Brasil se entrelaçam de forma significativa com a questão racial, que é fundamentalmente baseada na dimensão de raça em todas as suas expressões. Nesse sentido, como afirmou Gonçalves (2018) “a questão racial se constituiu (e se constitui) como o nó que amarra a questão social” no Brasil” (Gonçalves, 2018).
Renata Gonçalves (2018) analisa que:
[...] quando nos debruçamos sobre o que ocorreu nos dias posteriores ao congraçamento de 13 de maio de 1888, percebemos que as correntes formais deixaram de existir, mas o salto para que os(as) trabalhadores(as) negros(as) fossem reconhecidos(as) como parte constitutiva da insipiente
nação brasileira tornou-se um longo e intolerável cortejo. O Estado brasileiro não implementou políticas que impulsionassem a inclusão destes(as) no universo da cidadania, até porque isto implicaria profundas mudanças nas relações sociais, especialmente no campo. Ironia das ironias, finalmente libertos(as) e aptos(as) a venderem livremente sua força de trabalho ao capitalista, a almejada liberdade não garantiu condições para que se integrassem de fato ao proletariado, não puderam sequer compor o exército industrial de reserva, a não ser, parafraseando Florestan Fernandes (2008), como escória da escória do operariado em formação. A história, concordamos com Emília Viotti da Costa (1998), não se desenrola no mesmo nível de abstração que suas teorias. Ao contrário das regiões que foram berço do capitalismo, não houve para os(as) trabalhadores(as) negros(as) daqui a etapa em que se tornariam classes laboriosas para depois, em razão da pouca disposição do capital em atender às demandas geradas por sua própria dinâmica predadora (falta de moradia, saneamento básico, melhores salários etc.), se tornarem as classes perigosas (Chevalier, 2002). Foram imediatamente tratados como um perigo à ordem burguesa. (Gonçalves, Rev. katálysis 21 (03) • Sep-Dec 2018)
As assistentes sociais Mirla Cisne e Silvana Mara dos Santos (2018) investiram em uma produção para o Serviço Social onde afirmam que a sociedade brasileira é síntese de um passado de dominação e exploração com raízes na escravidão, no colonialismo e no patriarcalismo. “A nossa formação é acompanhada por características históricas de nossa cultura, como o autoritarismo, o patrimonialismo, o clientelismo, o racismo, o patriarcalismo, a privatização do público, que se combinam entre si” (Cisne & Santos, 2018, p. 99). Fatos que imprimem particularidades as expressões da questão social no Brasil, ainda que a contradição entre o capital e o trabalho e seus enfrentamentos seja o fundamento, a exploração de classe no Brasil é forjada pela expropriação da população negra e indígena e se destaca em relação as mulheres, logo, uma história de colonização e escravidão patriarcal.
O patriarcado, o racismo e o capitalismo são componentes estruturais da questão social no Brasil, são sustentados na formação econômico-social brasileira pois determina as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. Na divisão sexual e racial do trabalho no Brasil, o patriarcado e o racismo são os elementos que estruturam a divisão, é uma conexão material que organizam homens e mulheres em diferentes funções e remunerações, ao mesmo tempo que organizam não-brancos e pretos em outras, uma repartição do trabalho completamente desigual. (Cisne & Santos, 2018, p. 99)
Portanto, o racismo não é apenas uma expressão da questão social, mas a sua base fundamental, porque estrutura e perpetua as desigualdades sociais, econômicas e políticas de maneira sistêmica e histórica, tal como a contradição entre capital e trabalho. Enquanto a relação entre capital e trabalho gera exploração e desigualdade material, o racismo adiciona uma camada de opressão que segmenta e hierarquiza a sociedade com base em construções sociais de raça. Isso significa que a experiência de exploração econômica é inseparável da discriminação racial, formando um sistema de dominação que se reforça mutuamente. Dessa
forma, o racismo não é um problema adicional, mas um pilar estruturante das desigualdades que compõem a questão social, moldando as oportunidades de vida, acesso a recursos e as relações de poder de forma indelével.
Os reflexos do colonialismo nas políticas sociais e a defesa da segurança pública como direito social
A construção das cidades brasileiras é fundamentada pela herança colonial, e foi caracterizada pela concentração de terra, renda e poder, pela política do favoritismo, conhecida como coronelismo, e pela aplicação discricionária da lei. Com o processo de urbanização, surgem espaços diferenciados que definem seus moradores de forma distinta, resultando na divisão entre bairros elitizados e populares.
Conforme analisado por Fanon (1961), a dinâmica colonial delineia uma evidente separação entre duas zonas inconciliáveis e totalmente opostas: o território ocupado pelo colonizador e aquele habitado pelo colonizado. A esfera do colonizador:
[...] é uma cidade iluminada, asfaltada, onde as latas de lixo transbordam sempre de restos desconhecidos, nunca vistos, nem mesmo sonhados. Os pés do colono nunca se mostram, exceto talvez no mar, mas nunca se está bastante próximo deles. Pés protegidos por sapatos fortes, enquanto as ruas da sua cidade são limpas, lisas, sem buracos, sem pedriscos. A cidade do colono é uma cidade empanturrada, preguiçosa, seu ventre está sempre cheio de coisas boas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. (Fanon, 1968, p. 28)
Em contraste, a zona do colonizado é retratada por Fanon (1961) como:
[...] um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Ali, nascese em qualquer lugar, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer lugar, de qualquer coisa. É um mundo sem intervalos, os homens se apertam uns contra os outros, as cabanas umas contra as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, esfomeada de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade agachada, uma cidade de joelhos, uma cidade prostrada. (Fanon, 1968, p. 29)
Fanon (1961) analisa o Estado a partir de uma lente pós-colonial e anticolonialista. Ele vê o Estado como uma instituição que perpetua as relações coloniais de poder e exploração, mantendo estruturas de opressão sobre os povos colonizados. Para o autor, o Estado é frequentemente um instrumento de subjugação e dominação, perpetuando a alienação e a desumanização das populações colonizadas.
A derrocada, em boa medida, porém não totalmente, do arraigado colonialismo jurídico-político do passado, forjado ao longo de séculos de imperialismo, não implica o encerramento das tramas coloniais. Com o declínio dos impérios europeus, os Estados-nação incorporaram a responsabilidade de preservar instituições, valores e estruturas sociais que perpetuam e/ou alargam as mesmas lógicas raciais que marcaram a era do colonialismo ocidental moderno. Essas lógicas raciais continuam reverberando no discurso da civilização
ocidental contemporânea. A definição (e tratamento) dispensado às populações indígenas e “racializadas” na Europa – englobando negros, judeus, ciganos e muçulmanos – prefigurou a ascensão de um novo modelo de poder global que se sedimentou como o cerne dos recémformados Estados-nação nas ex-colônias. A narrativa do “descobrimento” e da civilização, legitimando numerosos genocídios, desapropriações e a escravidão racial, solidificou o pensamento racial europeu, constituindo os fundamentos para o nascimento das novas nações.
A conexão entre as análises de Fanon (1961) e o “desenvolvimento geográfico desigual” (Harvey, 2006) marcante no Rio de Janeiro, bem como as disparidades na implementação das políticas sociais em várias regiões geográficas, é prontamente identificável. Para ilustrar esse ponto, tomemos o bairro do Leblon como um exemplo representativo da "zona do colonizador" e o Conjunto de Favelas da Maré como uma ilustração da "zona do colonizado".
O Leblon (zona do colonizador) é um bairro nobre localizado na zona sul do Rio de Janeiro, conhecido por sua atmosfera sofisticada, praia deslumbrante e infraestrutura bem desenvolvida. Situado entre os bairros de Ipanema e São Conrado, o Leblon é frequentemente associado a uma alta qualidade de vida. Tem um dos metros quadrados mais valorizados do Brasil, segundo pesquisa da Secovi Rio lançada em 20231, “com uma alta 0,4% o preço do m² residencial para venda no Leblon chegou a R$ 22.276 e segue sendo o mais caro da cidade”2. A área é marcada por edifícios residenciais de alto padrão, muitos dos quais oferecem vista para o mar e possuem serviços e comodidades exclusivas. Segundo dados do Censo (2010), o Leblon possui uma população relativamente pequena em comparação com sua extensão territorial e o rendimento nominal médio mensal das pessoas de 10 anos ou mais de idade (com rendimento) era de R$ 6.844,63 em 2010. O bairro é bem conectado ao restante da cidade por meio de avenidas importantes e transporte público, facilitando o deslocamento para outras áreas do Rio de Janeiro. Ainda segundo o Censo (2010) sua composição étnico-racial era de 87% brancos, 8% pardos e 3% pretos. A política de segurança pública é caracterizada pela presença de policiamento comunitário que comumente traz a sensação de segurança para os moradores.
A Maré, por sua vez, abrange um conjunto de 16 favelas, sendo reconhecida como a maior concentração populacional em favelas no Rio de Janeiro, contando com 139.073 residentes que ocupam 47.758 domicílios em uma extensão territorial de 4,3 km², segundo o Censo Maré (2013). Sua geografia é atravessada pela Baía de Guanabara e por três vias expressas cruciais da cidade do Rio de Janeiro: a Linha Vermelha, a Linha Amarela e a Avenida Brasil. Com essa estrutura, a área da Maré ultrapassa em tamanho 96,4% das cidades do Brasil. O Censo Maré (2013) aponta que há diferentes perfis na identificação étnico-racial dos moradores, onde 62% se declararam como pretos ou pardos. Assim como ocorre em outras favelas do Rio de Janeiro e do Brasil, a Maré constituise como um espaço habitacional para segmentos da classe trabalhadora que historicamente enfrentam a falta de reconhecimento de seus direitos por parte do Estado. A precarização das políticas sociais na Maré se manifesta em diversas esferas essenciais para a qualidade de vida dos moradores, incluindo saneamento básico, mobilidade urbana, saúde e outros
aspectos fundamentais. No que diz respeito ao saneamento básico, a falta de infraestrutura adequada de esgoto e tratamento de resíduos resulta em condições insalubres e riscos à saúde pública. Além disso, a deficiência na mobilidade urbana dificulta a acessibilidade interna e o acesso aos demais espaços da cidade, restringindo o acesso aos serviços, oportunidades de trabalho e educação. Quanto à saúde, a falta de investimento em unidades e serviços de qualidade contribui para agravar os problemas de saúde da população.
Neste cenário a política de segurança pública emerge como o cerne do principal desafio na Maré, permeando e afetando o acesso a todos os demais direitos. A abordagem voltada para a "guerra às drogas" resulta não apenas em uma escalada da violência armada, mas também limita o acesso dos moradores aos serviços essenciais. A presença recorrente de operações policiais, caracterizada pelo uso excessivo de força e violações de direitos, cria um ambiente de instabilidade que prejudica a vida cotidiana e inibe a efetivação dos direitos básicos. Fato que revela a interconexão entre a política de segurança e a precarização dos serviços públicos.
É inegável que o Estado não se encontra ausente nesses territórios, para além da política repressiva de segurança, os moradores de favelas e áreas periféricas têm consistentemente travado batalhas para viabilizar muitos dos serviços e recursos públicos atualmente presentes nessas regiões.
No contexto da Maré, por exemplo, existem 48 escolas que, segundo a Secretaria Municipal de Educação em 2023 atendiam a mais de 16 mil crianças e adolescentes, número que ultrapassa a população de algumas cidades inteiras. O problema é a maneira pela qual o Estado estabelece sua presença e a abordagem adotada em relação às pessoas que moram em espaços periféricos. Os esforços dos moradores por melhores condições de vida na Maré resultaram em avanços notáveis na realização do direito à educação. Contudo, as interrupções nas aulas persistem devido à precariedade e falta de manutenção das instalações, à escassez de recursos humanos e, principalmente, aos confrontos armados frequentes e sistemáticos que assolam as favelas.
A suspensão das aulas em decorrência de operações policiais afeta de maneira significativa a trajetória educacional das crianças e adolescentes das 16 favelas da Maré. Além das notícias amplamente difundidas sobre a violência letal, essas disputas afetam negativamente o funcionamento das instituições, sejam elas públicas ou privadas, na região da Maré. No que diz respeito à educação, a violência armada frequentemente leva à suspensão das atividades escolares, prejudicando não só o aprendizado dos estudantes, mas também afetando a saúde mental dos profissionais e dos familiares. Entre 2017 e 2023 foram identificados pelas Redes da Maré 118 dias sem aula devido a operações policiais. No quadro abaixo identifica-se o número de dias sem aula na Maré por conta das operações policiais de 2017 até 2023.
Quadro 1: Dias sem aulas nas escolas na Maré
Ano
Dias Sem Aula
% de aula perdida em relação aos 200 dias letivos anuais Observações
Fonte: Elaboração própria. Fonte: Boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2017, 2018, 2019, 2020,2021,2022 e 2023.
Em 2017, a Maré enfrentou um total de 35 dias sem aulas nas escolas locais, o que representa uma redução de 17,5% em relação aos 200 dias letivos exigidos anualmente. Essas estatísticas revelam uma séria ameaça ao direito à educação das crianças e adolescentes da Maré. O Boletim Direito à Segurança Pública na Maré (2017) fez uma estimativa que se a tendência de fechamento de escolas devido a conflitos armados continuasse no mesmo ritmo deste ano, ao final dos 14 anos de escolaridade obrigatória, que englobam a Pré-Escola, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, os estudantes da Maré terão perdido um total de 490 dias letivos, o equivalente a cerca de dois anos e meio de educação. Um agravante nessa situação é que as escolas públicas na Maré têm um horário de funcionamento diário que encerra 1 hora mais cedo do que a maioria das escolas públicas na cidade. A justificativa para essa medida está diretamente ligada ao grau de violência armada na região. Com base em informações fornecidas pela Secretaria Municipal de Educação, em média, durante os dias de confronto armado, cerca de 8.466 estudantes ficam sem aulas. Isso estabelece uma desigualdade evidente em termos de qualidade da educação pública oferecida na Maré em comparação com o restante da cidade do Rio de Janeiro.
A violência armada também impacta o acesso à saúde dos moradores, levando as unidades de Atenção Primária localizadas em favelas a seguirem um protocolo semelhante ao de países em guerra, criado pela Secretaria Municipal de Saúde e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Esse protocolo prevê quatro estágios que mudam de acordo com as ações de violência na região, demonstrando o impacto cotidiano da violência armada na vida dos moradores das favelas da Maré.
De acordo com a pesquisa “Recursos da Saúde Básica na Maré: Análise de dados sobre o orçamento municipal e a estrutura das Unidades de Saúde da Maré”, realizada pela Redes da Maré e publicada em 2023, as unidades de saúde da região atenderam, em 2022, 157.052 pessoas, com o apoio de 545 profissionais da saúde, entre médicos, enfermeiros, dentistas, entre outros. São sete unidades de saúde no total, sendo cinco Clínicas da Família e dois Centros Municipais de Saúde, que cobrem as 16 favelas da região. Além disso, há duas
equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) responsáveis por integrar e apoiar os profissionais de todas as unidades da região. O mapa a seguir, retirado da pesquisa mencionada, ilustra as unidades de saúde que atendem à Maré por área de abrangência. Entre 2017 e 2023 por 133 dias as unidades de saúde sofreram algum impacto por conta das ações policiais. Seja o fechamento total da unidade, ou a interrupção das atividades externas. Isso teve um impacto significativo no atendimento e acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, no pré-natal das futuras mães, no programa domiciliar de atendimento aos idosos e nos programas de prevenção e promoção à saúde, incluindo esquemas vacinais. A falta de medicamentos para pacientes crônicos, que só podem ser retirados em farmácias específicas, também impacta a rotina de quem já precisa lidar com um quadro sensível de saúde.
A partir desses dados, é possível analisar que apesar da formação comunitária da Maré ser marcada por lutas e resistências, resultando em conquistas de políticas públicas nas áreas da educação e saúde, a violência armada persiste, sobretudo em operações policiais que interrompem o cotidiano e dificultam o acesso a essas políticas. A segurança pública, diferente das outras políticas sociais, permaneceu isolada da participação da sociedade civil, resultando em um modelo focado no enfrentamento bélico, que não condiz com os princípios democráticos. No entanto, ao longo dos últimos 40 anos, diversas organizações sociais e movimentos têm lutado por direitos na Maré. Fato este que tem relação direta na redução de violações de direitos individuais e coletivos. O Estado, por sua parte, não implementa políticas públicas eficazes capazes de romper com o ciclo da violência armada na região. A abordagem conhecida como repressiva, manifesta-se como uma ideologia que criminaliza a pobreza, agravando a tendência de militarização das operações policiais na Maré. Dentro deste cenário, todas as transgressões de direitos ocorridas durante as intervenções policiais contra os residentes são legitimadas por meio de um discurso que enfatiza o combate ao tráfico de drogas e à criminalidade. A violência armada assume a forma mais flagrante de nossas disparidades sociais, já que se fundamenta em uma perspectiva das favelas e de seus habitantes como elementos "perigosos" ou até mesmo um "exército inimigo", como apontado anteriormente por Silva (2015).
O exemplo das barreiras ao acesso à educação ilustra a fronteira geográfica delineada por Fanon (1968) que coincide com a divisão presente no espaço urbano característico do Rio de Janeiro. Nesse espaço, em um raio de poucos quilômetros, o funcionamento da democracia sofre uma inibição, os direitos se evaporam e a violência se manifesta de maneira incontornável. Para Fanon (1968) a importância reside não apenas na constatação dessas divisões, mas na análise mais profunda de suas implicações. Ao examinar detalhadamente a dinâmica dessa divisão, o autor acredita que é possível identificar as forças subjacentes que a moldam. Ao adotar essa perspectiva em relação ao mundo colonial, incluindo sua disposição espacial e geográfica, o autor acredita que será possível definir os contornos a partir dos quais uma sociedade descolonizada deve ser reconfigurada.
A partir da perspectiva analítica de Fanon (1968), emerge a compreensão de que a influência do período colonial perdura na ideologia estatal, servindo como alicerce para suas práticas nas favelas, especialmente no âmbito da política de segurança pública. Elementos dessa herança colonial, como o racismo estrutural e a desigualdade social, encontram-se entranhados nas abordagens governamentais voltadas para esses espaços criminalizados.
Esse reflexo do passado colonial se manifesta de forma substancial na forma como a política de segurança pública é conduzida, perpetuando um sistema de controle que historicamente subjuga e discrimina os moradores, reforçando desigualdades e violências que remontam aos primórdios da colonização.
Nesse contexto, Oliveira (2015) destaca que a gestão da cidade do Rio de Janeiro tem revelado critérios racistas nas diversas facetas das políticas públicas. Conforme Oliveira (2015) observa, aspectos como os "autos de resistência", as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e o racismo ambiental evidenciam a política como um mecanismo de gerenciamento da morte. Infelizmente, essa é uma característica profundamente enraizada na história de formação da cidade (Oliveira, 2015, p. 9).
A análise de Araújo (2015) oferece uma visão das nuances da gestão racista dos territórios favelados, e como essa abordagem impacta diretamente ou indiretamente a configuração da violência armada nesses espaços, notadamente no conjunto de favelas da Maré. Através de uma análise teórica e política centrada no genocídio da juventude negra na cidade do Rio de Janeiro, o autor sustenta que a violência urbana resulta de uma "gestão racista do espaço urbano", que isola a população negra em condições precárias de moradia, transporte e serviços públicos. Araújo (2015) descreve como a segregação espacial e a criminalização da pobreza operam como dispositivos empregados pelo Estado para manter um controle sobre determinados espaços da cidade, especialmente com a juventude negra. Ao analisarmos o impacto dessas ideias no contexto do conjunto de favelas da Maré, é possível identificar como o legado histórico de desigualdade e racismo estrutural se perpetua na atualidade. A gestão racista dos espaços favelados reflete uma continuidade do controle sociorracial sobre populações historicamente subjugadas, perpetuando um ciclo de violências e violações. A concentração da violência armada nessas áreas se conecta diretamente a essa gestão discriminatória, pois a falta de acesso a serviços essenciais e a estigmatização dos moradores amplificam os riscos e ampliam a vulnerabilidade à violência.
Considerações Finais
Este capítulo buscou incluir a política de segurança pública no bojo do debate das políticas sociais, reconhecendo suas contradições inerentes às dimensões de raça, classe e território. Exploramos a complexa relação entre as políticas sociais e a gestão racista dos espaços favelados no Rio de Janeiro, utilizando o conjunto de favelas da Maré como estudo de caso. A análise revelou que as políticas públicas, longe de serem neutras, refletem e perpetuam as desigualdades estruturais de nossa sociedade, especialmente em contextos marcados pela desigualdade.
As políticas sociais, analisadas sob a perspectiva teórico-metodológica de Behring e Boschetti (2011), mostram-se impregnadas de contradições inerentes ao capitalismo, refletindo uma multiplicidade de causas e interconexões históricas, econômicas e políticas. No caso específico da segurança pública, considerada um direito social fundamental, a gestão racista dos espaços favelados evidencia uma profunda contradição. Em vez de garantir segurança, a atuação estatal perpetua a violência e a desigualdade, revelando a persistência de uma lógica colonial e racista nas políticas públicas contemporâneas.
Dessa forma, a política social brasileira, em suas nuances e contradições, não pode ser dissociada das questões de raça, classe e gênero. A interseção desses marcadores sociais
intensifica os mecanismos de exploração e dominação, evidenciando que o racismo não é apenas uma expressão da questão social, mas um pilar fundamental que estrutura e perpetua as desigualdades. Dessa forma, é imperativo que a análise e a implementação de políticas sociais considerem essas complexidades, buscando não apenas a mitigação dos efeitos da desigualdade, mas a transformação estrutural das relações de poder que a sustentam. O texto destaca a profunda desigualdade que permeia a construção urbana e social do Rio de Janeiro, evidenciando a persistente divisão entre os bairros elitizados, como o Leblon, e as favelas, como a Maré. As análises de Fanon (1961) sobre a dicotomia colonial continuam relevantes para entender essa separação geográfica e social, onde a "zona do colonizador" contrasta fortemente com a "zona do colonizado." A Maré exemplifica como a gestão racista do espaço urbano perpetua condições de precariedade e violência, afetando profundamente a qualidade de vida e o acesso a direitos básicos como educação e saúde.
Apesar das conquistas comunitárias dos moradores da Maré nas áreas de educação e saúde, a violência armada, especialmente em operações policiais, continua a interromper o cotidiano e dificultar o acesso a esses direitos. As estatísticas mostram a gravidade da situação, com interrupções frequentes nas aulas e nos serviços de saúde devido à violência. Essa realidade reforça a necessidade de uma abordagem diferente na política de segurança pública, que atualmente, mesmo com todo o ativismo e incidência dos movimentos de favela, continua isolada da participação da sociedade civil e focada na repressão. Existe uma necessidade de conceber a segurança pública em uma perspectiva que vá além da atuação da polícia e do presídio, reconhecendo a violência e a criminalidade como expressões da desigualdade sócio racial. Deve haver uma abordagem mais ampla, que inclua a participação da sociedade civil. Essa necessidade se estende a uma mudança no paradigma punitivo da segurança pública, propondo uma abordagem mais democrática e participativa. O processo de mudança de paradigma deve ser sustentado por princípios e diretrizes que promovam uma abordagem que esteja minimamente em consonância com o Estado Democrático de Direito. O princípio central deve ser a proteção integral dos direitos humanos, onde o direito à segurança seja entendido como parte desse conjunto de direitos. Isso implica em abandonar o paradigma da segurança "contra" a criminalidade e adotar uma abordagem de segurança cidadã, focada no sujeito e não apenas na ordem pública.
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PARTE III
Capítulo 8
Questão Urbana, direito à moradia: o que as assistentes sociais têm a dizer
Francine Helfreich
Introdução
O espaço urbano vem sendo “lido” por diferentes manifestações artísticas como o cinema, a música, a pintura, a literatura, assim como pelas múltiplas áreas do saber, para além das ciências sociais. Quem nunca se deparou com uma canção, sobretudo, no hip hop ou nas rodas de samba, em que os intérpretes em suas letras se referem às cidades, quase sempre retratando o subúrbio, as periferias e os espaços populares? A música Nomes de Favela, de forma sonora, apresenta, através das percepções de Paulo César Pinheiro, os sabores e dissabores da dureza da vida cotidiana na favela. Já na fotografia, as câmeras retratam as luzes da cidade, suas paisagens e formas de viver, que são expostas sobre os mais diferentes prismas e perspectivas.
Na literatura brasileira, por sua vez, Aluísio de Azevedo, no romance O Cortiço, trouxe nessa consagrada e conservadora obra o cotidiano das habitações pobres do início do século XX. No Jornalismo, João do Rio, importante escritor e jornalista, expressava, através de seus textos críticos, a realidade e os costumes da sociedade carioca no mesmo período. Atualmente, diferentes coletivos de favela a retratam tal como ela é, e expressam de forma fidedigna a vida nos subúrbios para além da violência predominantemente apresentada pela grande mídia.
Por sua parte, o diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus, que deu origem ao livro O quarto de despejo, expôs a sua forma de sentir a cidade de São Paulo, mais especificamente a favela do Canindé entre os anos de 1955 e 1959, período em que viveu com seus filhos em um pequeno barraco de madeira.
No que toca à poesia, o modernista Carlos Drummond de Andrade em Favelário Nacional, através de versos livres, expôs suas críticas aos problemas sociais de sua época, assim como através de 21 poemas que abordam a vida periférica.
Na pintura, o espaço urbano é retratado não só nos ambientes considerados hegemônicos e típicos, tal como na insigne tela Morro da favela de Tarsila do Amaral, mas também em espaços distintos e distantes dos museus e galerias de arte. Viadutos, pilastras e paredes comuns igualmente retratam a vida e a cultura urbanas que, por muito tempo, ficaram lateralizadas.
Decerto, nas diferentes expressões artísticas e nas distintas profissões o espaço urbano brasileiro vem sendo pensado e problematizado. É muito comum, por exemplo, encontrarmos na Geografia, sobretudo, com relação àqueles que se debruçam a entender as dinâmicas humanas no espaço geográfico, a construção de reflexões sobre as cidades, os territórios e a complexidade de questões que envolvem a temática. Arquitetos e Urbanistas também se expressam acerca dos diferentes aspectos e reflexões sobre o urbano. Cada qual à sua maneira, o fato é que o espaço urbano e as cidades são analisados a partir das influências do tempo, da conjuntura e da vertente teórica às quais as profissões são tangenciadas.
Embora não seja tão comum quanto nas demais profissões citadas, o Serviço Social brasileiro também vem tecendo suas análises sobre o “urbano”. Sua aproximação se articula com a inserção profissional nas políticas urbanas. Diante do desenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil, mais especificamente após a década de 1930, a profissão se inseriu nos espaços urbanos, cujo desenvolvimento foi impulsionado pelo processo de industrialização, que trouxe consigo a necessidade de uma intervenção sistemática nas expressões da questão social que nelas se faziam presente.
Dito isso, no intuito de partilhar os resultados da pesquisa realizada, de modo que os mesmos possam de alguma forma contribuir para evidenciar a importância do trabalho profissional, a proposta desse capítulo é aprofundar algumas reflexões teóricas sobre a questão urbana, em especial no que se refere às análises que possam problematizar a atuação do Serviço Social nas políticas urbanas brasileiras.
A pesquisa é impulsionada por estudos anteriores que se originaram das experiências concretas da autora como assistente social em favelas, bem como por reflexões que se agregaram no período em que a mesma atuou como investigadora visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/Portugal.
Nesse caminhar, em que os estudos mais amplos se agregam à particularidade do fazer profissional de quem maneja a política, partimos da premissa de que as assistentes sociais brasileiras atuam nas diferentes políticas urbanas, ininterruptamente, e seu trabalho é tangenciado pelas perversas condições laborais para a reprodução social da totalidade da força de trabalho, que, no Brasil, diferentemente dos países centrais, não garantiu direitos sociais ao conjunto da classe trabalhadora, excluindo muitos do acesso ao trabalho protegido e das condições de reprodução social.
Neste sentido, o capítulo se debruça sobre a forma como os profissionais de serviço social direcionam suas ações, mais especificamente em torno do direito à moradia, do direito à regularização fundiária e do acesso à assistência técnica de interesse social (ATHIS).
Assim, perguntamo-nos: como garantir acesso a direitos se, atualmente vivenciamos um processo de amplo retrocesso e de supressão dos mesmos? Quais são as estratégias elaboradas para o fazer profissional, considerando que há um conjunto de valores e princípios nos quais a profissão se fundamentou, tais como, defesa da liberdade, da democracia, da igualdade e da justiça social, mas que, nesses tempos de desassossego - como nos dizia Guimarães Rosa, nos limita, nos dificulta e nos causa tantos atravessamentos? Tempos que são marcados pela explicitação do conservadorismo, quase sempre vinculado às ideias e comportamentos moralistas, irracionalistas e fascistas, que se fazem presentes no dia a dia da profissão.
Diante dessas questões, o objetivo do presente capítulo é apresentar justamente os resultados da pesquisa “Questão Urbana e o lugar dos subalternos: reflexões sobre o Trabalho profissional e direito à moradia” expondo a maneira como a profissão vem se apropriando dos debates que versam sobre o urbano e o direito à moradia e, mais particularmente, sobre o fazer profissional das assistentes sociais. Quase sempre, tais reflexões são oriundas das experiências vivenciadas mediante a inserção profissional nos distintos espaços populares e favelas e/ou contratações via poder público, empresas ou instituições não governamentais. Metodologicamente, o capítulo decorre de estudos bibliográficos e apresenta os dados quantitativos da pesquisa elaborada através do levantamento realizado nos Anais dos Congressos Brasileiro de Serviço Social (CBAS) e nos Anais dos Encontro Nacional de
pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) no período compreendido entre 2013 e 2022. Trata-se de eventos científicos da profissão da mais ampla visibilidade e interlocução, que propiciam trocas de saberes, acúmulos teóricos e fortalecimento da organização coletiva de assistentes sociais no Brasil. São eventos considerados os principais e mais relevantes encontros científicos da área do Serviço Social. Ambos registram reconhecida importância nacional, onde se discutem as particularidades da profissão no atual cenário latino-americano e, especialmente, o brasileiro, marcado pelos impactos da crise econômica. Os eventos recebem assistentes sociais, docentes, pesquisadores, estudantes de graduação e de pósgraduação do curso de Serviço Social e de áreas correlatas, que têm interesse na troca sobre o trabalho profissional, linhas teóricas e na organização política da categoria.
Elementos sócio-históricos para pensar o trabalho social de assistentes sociais
A atuação dos profissionais do Serviço Social nos espaços urbanos brasileiros tem apresentado, ao longo de sua trajetória histórica, diversas configurações. Esse desenvolvimento está profundamente articulado às perspectivas teóricas, metodológicas e ético-políticas adotadas pela profissão em diferentes períodos. O movimento de acumulação de capital e as diversas configurações das políticas sociais do Estado influenciaram profundamente os processos de transformação da profissão. Entre 1965 e 1975, período que ficou conhecido como o movimento de Reconceituação, a profissão passou por significativas etapas de mudanças, das quais destacamos, a última, denominada Renovação, em que a profissão reorientou suas diretrizes éticas, políticas, teóricas e técnicas. Nesse período, houve uma importante evolução na análise da chamada “prática”, que passou a ser reconhecida como um tipo de trabalho especializado, inserido em processos e nas relações laborais (Iamamoto, 2007, p. 93).
Para além das mudanças intrínsecas à profissão, foi possível compreender com mais propriedade, a partir da leitura marxista, a questão urbana. Com tal aproximação teórica, foi possível coadunar a caracterização do espaço urbano capitalista com uma arena privilegiada de lutas de classes, bem como entender que, como ponto de partida, o marxismo nos ajuda a compreender o papel do Estado em todo o processo de urbanização, já que, pela ótica da totalidade, essa teoria é capaz de correlacionar a análise do espaço com as lutas sociais e os processos políticos (Castells 2000- 1981: 11).
Nesse sentido, a profissão também pode acumular elementos suficientes para compreender os vínculos sociais presentes na cidade: de gênero, raça, habitabilidade, de etnia, e de geração, os quais vão moldando as relações de poder e de desigualdade nas cidades.1Inclusive, dentro desse contexto, entendemos que a questão urbana, pode ser considerada como um desdobramento da Questão Social, esta amplamente discutida por Iamamoto (2007) e José Paulo Netto (2001) nos meios profissionais.
1 Para mais informações sobre esse debate ver a produção da Geografa feminista canadense Leisle Kern. (2021).
1 - Da formação social brasileira aos elementos importantes para pensar o espaço urbano
Para abrirmos esse estudo, é importante, primeiramente, refletirmos sobre a construção do espaço urbano no país. Tal reflexão se coloca como elemento fundamental na medida em que concebemos a industrialização - e por que não a desindustrialização - como chave analítica para compreendermos a construção do espaço urbano e as problemáticas que se desdobraram no processo de produção desigual dos territórios (Harvey: 2004).
O período correspondente à Primeira República (1889-1930) foi, de modo geral, o marco da expansão inicial da “forma urbana” favela, a exemplo do que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro (Abreu, 1994). Com o crescimento desenfreado desta, enquanto alternativa de residência à população menos favorecida, temor e pânico foram instaurados naqueles que nela não viviam. É justamente a partir dos anos subsequentes que a nossa profissão é chamada a intervir na questão “urbana”.
O período entre as décadas de 1930 e 1980 registrou profundas alterações na sociedade brasileira. Fernandes (1975, p. 203), afirma que nele desenvolveu-se a Revolução Burguesa no Brasil, que teve como cerne a transição da economia agroexportadora para a industrialização. As indústrias, ao se instalarem nas cidades, alteraram toda a sua dinâmica a partir das necessidades mais urgentes voltadas para o acúmulo de capital. Simultaneamente, ela ensejou uma progressiva ocupação desordenada do solo urbano acompanhada por diversas formas de moradia precária. Tal fenômeno vai ao encontro das reflexões de Harvey (2004), que compreendem a organização do espaço urbano como um aspecto fundamental para a reprodução do capitalismo. Assim, o espaço urbano no capitalismo espelha as relações desiguais entre as classes sociais, dinâmica essa que se expressa através da desigualdade dos territórios2
Nesse contexto, os territórios desiguais passam a se tornar comuns no espaço urbano. Harvey (2004), em um instigante trabalho produzido, apoiando-se na teoria do desenvolvimento desigual e combinado (Trotsky: 1985) e nas suas reflexões sobre os territórios, entende que, para que o atual sistema avance, é preciso combinar o moderno com o arcaico. Ou seja, é imperioso conciliar, simultaneamente, a existência de territórios com boa infraestrutura e aportados por grandes investimentos, com áreas sem infraestruturas, destituídas de políticas públicas de qualidade. Em outra produção teórica sobre a dinâmica desse processo, Harvey (2012) nos diz que:
Vivemos progressivamente em áreas urbanas divididas e tendentes ao conflito. [...] Os resultados são indelevelmente cáusticos sobre as formas espaciais de nossas cidades, que consistem progressivamente em fragmentos fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados mantidos sob constante vigilância. No desenvolvimento mundial, a cidade está se dividindo em diferentes partes separadas, com aparente formação de muitos “microestados” (Harvey, 2012, p. 81).
2 O Território é compreendido a partir do materialismo histórico como o que i) privilegia sua dimensão material, sobretudo, no sentido econômico, ii) está historicamente situado e iii) se define a partir das relações sociais nas quais se encontra inserido, ou seja, tem um sentido claramente relacional”. (Haesbaert 2007, p. 45).
Castells (1971), ao refletir sobre a questão urbana, desvenda a ideologia produzida pelas classes dominantes, que procuram ocultar a dominação e a exploração ancoradas também na distribuição desigual dos serviços públicos e dos equipamentos de consumo coletivo. Para ele, boa parte do que se configura a questão urbana é o fato de que a cidade é o espaço de reprodução da força de trabalho, e isso ocorre por meio de equipamentos e serviços públicos, como escolas, creches, hospitais, centros culturais e políticas públicas habitacionais. O espaço da cidade é conformado para viabilizar trocas, tendo o Estado como referência para garantir as condições de vida e reprodução das classes subalternas3 .
Brasil: país de Capitalismo dependente
Ao considerarmos os elementos estruturais do sistema capitalista, partimos da remissa de que a formação social brasileira é marcada pela exploração do trabalho, pelos altos índices de desigualdade e pela subalternidade geopolítica e cultural. De acordo com Fernandes (1975), há especificidades na forma como o Brasil se insere no sistema capitalista mundial. Distintamente das burguesias “clássicas”, que empreenderam esforços para a construção de nações autônomas, a lógica da inserção brasileira no capitalismo global é permeada pelos interesses da burguesia nacional em associação subalterna com as suas congêneres dos países do centro capitalista, sendo marcada também por um longo processo de colonização e pelo regime escravocrata.
Assim, a burguesia brasileira defende uma proposta de sociedade heteronômica4 , que se articula de forma subordinada aos países hegemônicos. Para tanto, vinculou-se a um projeto de capitalismo dependente, no qual existe uma imbricação do moderno com o arcaico e em que, muito embora se consiga produzir riquezas, acarreta proporcionalmente muita pobreza e desigualdade. Esse cenário se desdobra no Fernandes (1975), ao analisar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil a partir da integração do país na economia internacional, advertia que essa associação não foi concebida como uma “imposição” de fora para dentro, mas articulada aos próprios interesses das classes dominantes brasileiras de modo a reproduzir internamente as relações de dominação ideológica e exploração econômica.
Todavia, um dos pilares dessas desigualdades de temporalidades históricas é o caráter antidemocrático da revolução burguesa no Brasil. As grandes decisões têm sido orientadas “de cima para baixo”, limitando a participação das classes subalternas de nos processos decisórios que, de fato, tenham importância para o desenvolvimento do país, o que Coutinho (2011) analisa, a partir da categoria teórica gramsciana “revolução passiva”.
Trata-se de um processo de transformação que ocorre “pelo alto”, o que se traduz numa revolução sem revolução, ausente de participação popular e do protagonismo das classes subalternas. Fernandes (1975), caracteriza esse processo como uma transição marcada por uma democracia restrita aos membros das classes dominantes. Estes universalizaram
3 Sua análise é marcada pela conjuntura da França em tempos de um estado de bem-estar social.
4 A caracterização de sociedade heteronômica para Fernandes (1975) revela a sujeição à qual o Brasil se coloca em relação aos demais países. Cardoso, em suas análises, aponta que “Fernandes, desde 1959-1960, rompendo com a ideologia dominante e, a partir do par conceitual autonomia/heteronomia, caracteriza a situação heteronômica: externamente, enquanto dependência econômica, social, política, ideológica e moral; e internamente, através do sistema das classes sociais, classes que apoiam aquela dependência, mas que, em determinadas condições, podem opor-se a elas” (Cardoso, 1996, p.127).
seus interesses pela mediação do Estado e pelos aparelhos privados de hegemonia5. O país transitou da democracia dos oligarcas à democracia do grande capital, com dissociação entre desenvolvimento capitalista e democracia, o que aponta o desafio de consolidar uma “cultura pública democrática” (Iamamoto, 1998) mediante o reconhecimento e a efetivação de condições necessárias ao exercício da participação crítica de todos na vida pública.
A dependência do país em relação aos países centrais possibilitou a manutenção da herança colonial, marcada pela subordinação da produção agrícola à exportação e pela permanência das formas de propriedade que, agora redimensionadas, passam a ser incorporadas pela expansão capitalista.
Desse modo, pode-se dizer que a característica fundamental da sociedade brasileira é a coexistência entre uma sociedade industrial, que se moderniza e ascende no ranking da economia no mundo ocidental, e aquela que mantém parcelas significativas da sua população em situação de pobreza absoluta e/ou relativa, em que as necessidades elementares dos indivíduos estão longe de serem atendidas o que, não por acaso, promove a exclusão das massas do direcionamento da vida social.
Nesse cenário, à luz do pensamento de Ianni (1992), a tensão entre o arcaico e o moderno pode ser considerada uma tônica constante na formação sócio-histórica brasileira.
Tal dinâmica definiu a posição subalterna e dependente do Brasil na divisão internacional do trabalho, em que os setores considerados "atrasados" desempenharam um papel fundamental na modernização do núcleo integrado ao capitalismo global. Consequentemente, o país se constituiu, nas palavras do autor, como “uma vasta fábrica das desigualdades e antagonismos que constituem a questão social”6. Nessa toada, Ianni entende, ainda, que:
A prosperidade da economia e o fortalecimento do aparelho estatal parecem em descompasso com o desenvolvimento social. As dificuldades agudas da fome, a falta de habitação digna, e as precárias condições gerais de saúde são produtos e condições dos mesmos processos estruturais que criam a ilusão de que a economia brasileira é moderna (Ianni, 1992, p. 92).
Logo, se temos a caracterização de um país como sendo de capitalismo dependente, suas cidades seguem na mesma linha argumentativa. Castells (1971), em uma das suas mais célebres obras, quando ainda se filiava ao pensamento marxista, ao se debruçar sobre os estudos da Questão urbana, trazia a seguinte caracterização sobre as aglomerações urbanasou o que ele chamava de “formas concentradas de população e atividades” - nas situações de dependência:
A aglomeração espacial resulta de boa parte do processo de decomposição da estrutura produtiva, em particular, agrária e artesanal. Ela explica a concentração de
5 Para uma maior compreensão sobre os aparelhos privados de hegemonia, Coutinho elabora a seguinte síntese, a partir dos estudos de Gramsci: “(...) são organismos sociais privados, o que significa que a adesão aos mesmos é voluntária e não coercitiva, tornando-os assim relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito; mas deve-se observar que Gramsci põe o adjetivo “privado” entre aspas, querendo com isso significar que – apesar desse seu caráter voluntário ou “contratual” – eles têm uma indiscutível dimensão pública, na medida em que são partes integrantes das relações de poder em dada sociedade. (Coutinho, 1994, p. 54).
6 A compreensão da “questão social” é resultado das contradições entre capital e trabalho no modo de produção capitalista, cujos diferentes estágios de desenvolvimento produzem diversas manifestações da “questão social”. Também deve ser concebida a partir do ingresso da classe trabalhadora como sujeito político nas lutas por emancipação política e humana (Netto, 2001).
desempregados mais ou menos estruturais, a não necessidade o sistema em reproduzir sua força de trabalho, sua não rentabilidade como mercado para o consumo de mercadorias e, portanto, a ausência de produção de meios de consumo coletivo ou serviços urbanos [...] as cidades das sociedades de capitalismo dependente são o resultado também de outro pólo na dinâmica do desenvolvimento desigual. Isto é, são expressões espaciais da concentração dos meios de produção de unidades de gestão e de meios de reprodução das forças de trabalho necessárias. Assim como de distribuição de mercadorias solicitadas pelo mercado que se desenvolve a partir deste processo de acumulação capitalista (Castells: 2001: 18-19).
Nas análises do autor, a urbanização na América Latina não é a expressão de uma modernização, mas refere-se à manifestação das relações socioespaciais, enfatizando as contradições sociais que são características do seu modelo de desenvolvimento, o qual é influenciado por uma dependência particular dentro do sistema capitalista como um todo.
Destarte, suas reflexões se coadunam com os estudos de Kowarick (1981): o modo como se desenvolve a formação social da América Latina, aos olhos do autor, precisa ser entendida não só pela vinculação entre centro e periferia, mas também pelas determinações concretas que a particularizam.
No caso do Brasil, Kowarick (1981) elucida que já em 1960 o país havia atingido um grau razoável de desenvolvimento em comparação com os demais países latino-americanos em razão da sua industrialização que avançava, porém, simultaneamente, esse quadro se ancorava em uma acentuada dependência externa.
Com o advento da industrialização, cidades se expandiram, alteraram sua estrutura e passaram a expressar as contradições decorrentes do processo de desenvolvimento de seu espaço. Entendemos que essa dinâmica é fundamental para a compreensão do cenário contemporâneo brasileiro que, atingido pelas mudanças no mundo do trabalho, pelos novos padrões de sociabilidade e pelas formas do Estado gerir suas políticas públicas - restrita, seletiva e focalizada nas parcelas mais pauperizadas – afetou também o espaço urbano e, consequentemente, as cidades.
Em linhas gerais, as transformações societárias a partir da década de 1990 alteraram sensivelmente as cidades. O surgimento do neoliberalismo, somado à reestruturação produtiva e aos novos padrões de sociabilidade7 fez com que as cidades brasileiras segregassem ainda mais as pessoas. Concomitantemente, instaurou-se no país um amplo processo de desindustrialização que, por sua vez, também afeta as cidades.8
Na medida em que o Estado se desobriga de garantir o direito à moradia ao não construir casas para os trabalhadores, enseja o aumento exponencial do número de favelas e espaços populares. Embora não seja um processo mecânico, podemos inferir que há uma relação direta entre esses dois fatores, haja vista que é nítida a ampliação da autoconstrução de casas com a realização de mutirões, e da verticalização das formas de habitar nas favelas, quase sempre destituídas dos padrões mínimos de segurança e higiene que uma moradia digna requer.
7 Para uma compreensão mais aprofundada sobre as transformações societárias ver (Netto:1996)
8Podemos exemplificar tal processo a partir de cidades que foram consideravelmente modificadas com a saída das indústrias, tal como em Flint, no Michigan, quando, no fim da década de 1980, onze fábricas da General Motors foram fechadas. No Brasil, temos vários exemplos, como o do eixo Niterói – São Gonçalo no Estado do Rio de Janeiro com o declínio da indústria naval e o fim do COMPERJ, que devasta toda a região no entorno desses empreendimentos.
Há em jogo novas formas de estratificação da periferia e maneiras distintas como esse espaço se potencializa e se insere no processo de produção e valorização do valor. Nesse sentido, mercado e Estado atuam juntos, servindo aos seus próprios interesses, e onde a moradia deveria ser compreendida e garantida como um direito social, onde as “casas deveriam servir para se viver”, na cidade capitalista os imóveis são mais uma mercadoria a serviço do lucro. Assim, dialogando com Rolnik,
Na nova economia política centrada na habitação como meio de acesso à riqueza, a casa transforma-se em bem de uso em capital fixo – cujo valor é a expectativa de gerar mais valor no futuro, o que depende do ritmo do aumento do preço dos imóveis no mercado. (2005, p.33)
Isto posto, é nesse processo amplo e contraditório que assistentes sociais atuam no âmbito das políticas urbanas, em sua maioria, geridas pelo Estado, seja no planejamento, na gestão e/ou na execução das políticas, visando garantir o direito à moradia, à segurança da posse, à assistência técnica ou a qualquer outro acesso às políticas sociais que façam parte dos espaços urbanos.
2 - A Questão urbana e a produção teórica na área do Serviço Social
O trabalho de assistentes sociais no espaço urbano, assim como todas as formas de sua interação profissional, é balizado pela sua inserção nas estruturas institucionais prestadoras de serviços e políticas sociais. Trata-se de uma profissão que se insere predominantemente na esfera de atividades que não estão vinculadas diretamente à produção material, mas à regulação das relações sociais, à criação de requisitos necessárias ao processo de (re)produção social, por meio de ações que intervenham sobre as condições de vida, prioritariamente, dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. Conforme Iamamoto (2009), podemos afirmar que o Serviço Social não é uma profissão estática; ela acompanha o movimento da totalidade social, o movimento da realidade que se altera junto com a conjuntura e vai agregando novos conhecimentos, atribuições e competências. A profissão, que possui contornos específicos em cada país, tem suas profissionais desafiadas a cada momento, já que atuam na perspectiva da garantia de direitos, ancorada num conjunto de valores e princípios, tais como liberdade, democracia, emancipação humana e justiça social9 que reiteram o compromisso com a classe trabalhadora.
9 Conforme o Código de Ética profissional de 1993, a profissão tem como valores e princípios os seguintes elementos: (i) reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes, autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais, (ii) defesa, intransigente, dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo, (iii) ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda a sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis, sociais e políticos da classe trabalhadora, (iv) defesa do aprofundamento da democracia enquanto socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida, (v) posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso a bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática, (vi) empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças, (vii) garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais democráticas existentes e suas expressões teóricas e compromisso com o constante aprimoramento intelectual, (viii) opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero, (ix) articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem os mesmos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores, (x) compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o exercício do Serviço Social sem ser discriminado
As assistentes sociais, de forma privilegiada, estabelecem contato e proximidade, bem como interagem junto à vida dos sujeitos sociais nos diferentes territórios que se inserem. De acordo com Helfreich (2023), a questão urbana no Brasil engloba uma complexidade de problemas articulados entre si: a ausência de regularização da posse da terra, o crescimento das favelas, a insuficiente e ineficaz mobilidade urbana, a falta de assistência técnica de interesse social, e o crescimento das milícias, que mediam a vida nos territórios, as guerras dos grupos civis armados, a política de segurança pública belicista e, por fim, a negação do direito à cidade, nos termos usados por Henri Lefebvre. É, pois, justamente no conjunto dessas expressões da questão social que os assistentes sociais brasileiros atuam.
Para tanto, é de fundamental importância nos debruçarmos a estudar o espaço urbano, e é nessa amálgama de questões que se encontra o cerne das reflexões contidas nos artigos que as assistentes sociais produzem. Aqui nos deteremos às produções relativas ao Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) e ao Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), oriundas dos trabalhos publicados no eixo da “Questão Agrária, Urbana, Ambiental e Serviço Social” e do “Serviço Social: fundamentos, formação e trabalho profissional”. Importante salientar que foram mapeados os 10.603 trabalhos publicados na última década (2012-2022) nos anais de ambos os Congressos, sendo no CBAS dos anos de 2013 a 2022 e no ENPESS dos anos de 2012 a 2022.
A natureza dos estudos sobre o “urbano” versa acerca (i) da sistematização do trabalho profissional (reflexão das demandas/ações/atividades/respostas desenvolvidas no trabalho de assistentes sociais), (ii) do relato de experiências, (iii) do resultado de pesquisas e reflexões teóricas, mas, sobretudo, (iv) dos acúmulos de estudos sobre as políticas sociais e as lutas sociais nos espaços urbanos.
Em geral, trata-se de síntese de pesquisas, de resultado de trabalhos de conclusão de curso de graduação, de projetos de Extensão, de dissertações e teses. Portanto, esta teve como universo o quantitativo de 953 (novecentos e cinquenta e três) trabalhos na modalidade oral oriundo do 14º CBAS, realizado em 2013, e 1.425 (mil quatrocentos e vinte e cinco) trabalhos advindos do 15º CBAS, realizado em 2016. Já em 2019, ano em que ocorreu o 16º CBAS, foram apresentados 1.741 (mil setecentos e quarenta em um) trabalhos e no ano de 2022, o 17º CBAS contou com 1.293 (mil duzentos e noventa e três) trabalhos. Assim, foram catalogados 5.414 (cinco mil quatrocentos e quatorze) textos.
No que se refere às publicações oriundas do ENPESS, no ano de 2012, foram apresentados 1.243 (mil duzentos e quarenta e três) trabalhos. Já em 2014, foram apresentados 1.097 (mil e noventa e sete) e em 2016 um total de 1.031 (mil e trinta e um) trabalhos. Em 2018, foram contabilizados 999 (novecentos e noventa e nove) trabalhos, totalizando 5.189 (cinco mil cento e oitenta e nove) textos catalogados nos ENPESS para posterior leitura sobre os eixos escolhidos.
Como se verifica por meio do levantamento realizado, percebe-se que houve um gradativo aumento de trabalhos produzidos sobre a Questão Urbana, conforme ilustra o quadro a seguir.
nem discriminar por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física (Código de Ética Profissional, 1993).
Figura 1. Evolução da quantidade de trabalhos sobre questão urbana (fonte: elaborada pela autora)
Esse aumento deriva do fato de que a requisição profissional, especialmente no âmbito das políticas habitacionais, vem crescendo. As experiências decorrem da inserção profissional também nas áreas de mobilidade urbana, trabalho social em favelas, saneamento, assessorias técnicas a movimentos sociais urbanos nos espaços públicos, nas autarquias, nas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), entre outros.
Cumpre, ainda, destacar que a ampliação da requisição profissional nas políticas urbanas, foi impulsionada pelo avanço legal na história das políticas de habitação, que tem como marco importante o artigo 6º da Constituição Federal de 1988, que tornou explícito o direito à moradia como direito social a ser garantido, e os artigos 182 e 183 do referido Texto Constitucional, que versam sobre os direcionamentos para a aplicação da política urbana. Posteriormente, o Estatuto da Cidade, aprovado no início do século XXI (Lei Federal n.º 10.257/2001), constituiu-se também como notável referência legal ao estabelecer diretrizes gerais da política urbana e, em seguida, tivemos a criação do Ministério das Cidades que, em 2003, buscou articular as políticas de habitação, mobilidade e transportes urbanos, saneamento e programas urbanos.
Poderíamos, ainda, apresentar aqui várias outras legislações pertinentes, contudo, entendemos por listar apenas as mais importantes: a Lei n.º 11.124/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS); a Lei Federal n.º 11.888/2008, de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social, que estabelece diretrizes e incentivos para a promoção do acesso à moradia digna, especialmente para a população de baixa renda, através da oferta de assistência técnica gratuita e da promoção da autoconstrução assistida; a Lei Federal n.º 13.089/2015 - Estatuto da Metrópole - que, em linhas gerais, visa integrar políticas e ações para o desenvolvimento urbano sustentável e, por fim, a complexa Lei Federal n.º 13.465/2017 - Lei de Regularização Fundiária Urbana -, que busca garantir o direito à moradia e à posse digna, especialmente em áreas ocupadas por população de baixa
renda, mas que apresenta ambiguidades e contradições em suas análises e interpretações, o que implica em uma dificuldade de sua aplicação prática.
Salientamos, ainda, que há um amplo vasto arcabouço legal no que se refere às políticas urbanas e à moradia, legislações estas que decorrem dos processos de mobilização social e que foram aprovados ao longo dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (20032011) e Dilma Rousseff (2011-2016).
Ao trazermos a particularidade da profissão nas políticas urbanas e dialogarmos com a produção do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), podemos elencar algumas das competências profissionais das assistentes sociais, quais sejam, atividades articuladas às ações de caráter educativo, organizativo e de mobilização popular; supervisão, formação, planejamento, gestão e coordenação de políticas e projetos e, por último, ações de assessoria política.
Em artigo recente, Helfreich; Leite; Costa e Ventura (2023) apontam que o crescimento dos estudos na área possa estar relacionado à substantiva ampliação das políticas habitacionais nos governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (20112016). Com a implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e, principalmente, de um dos maiores programas habitacionais do país, o “Programa Minha Casa Minha Vida” (PMCMV), a ação profissional ganhou amplitude. O PMCMV, que traz em suas normativas a exigência do trabalho técnico social, contratou centenas de profissionais no país, tendo o mesmo sido realizado a partir de orientações técnicas, organizadas pelo principal administrador, a Caixa Econômica Federal, instituição que define a execução do Trabalho Técnico Social (TTS) sistematizado no Caderno de Orientação do Trabalho Social (COTS) e em diferentes normativas.
Se no período em comento percebemos uma ampliação do exercício profissional, o que se expressa em um alargamento do mercado de trabalho, simultaneamente o período foi marcado pela financeirização da habitação no país10. Embora muitos avanços tenham sido registrados no período, diferentemente, entre 2018 a 2022, no governo de Jair Messias Bolsonaro, os programas habitacionais do país ficaram relegados às administrações municipais, o que interferiu diretamente nas requisições profissionais, já que muitos municípios não possuem dotação orçamentária para tanto. E, ao tratar da profissão de assistente social, nela temos a figura de um funcionário público, atuante nas diferentes esferas do poder, que trabalha predominantemente na formulação, planejamento e execução de políticas sociais (Iamamoto, 2009: 345), dentre elas, a política de habitação, que tem como prerrogativa o financiamento público, o que não deslanchou no período do Governo de Bolsonaro.
Das produções analisadas, as ações mais desenvolvidas pelas assistentes sociais apontadas na figura abaixo assemelham-se àquelas que estão relacionadas com as atribuições estabelecidas pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS).
10 No Brasil, os estudos de Rolnik (2015) explicitam como o processo de financeirização da habitação articula diversas instituições econômicas e atravessa dimensões políticas e sociais, dentre elas, a ideologia da casa própria, a ampliação do crédito e a internacionalização dos investimentos. Ampliando um pouco as lentes desse estudo para além do Brasil, Tulumello (2021) expõe a maneira pela qual o Estado “permitiu, promoveu e moldou a financeirização da habitação” em Portugal, na Espanha, na Itália e na Grécia. O autor identifica a existência de seis formas de financeirização da habitação, quais sejam: dívida hipotecária, titularização hipotecária, habitação social para arrendamento, habitação para arrendamento mercantil, empresas de habitação e “habitação não-habitativa”.
Figura 2 - Atividades mais realizadas no trabalho de assistentes sociais (fonte: elaborada pela autora)
Embora as ações sejam amplas e diversificadas, os obstáculos apontados pelas profissionais são grandes. O agravamento da pobreza e das desigualdades, nos últimos anos, associados ao permanente corte dos investimentos sociais, tem fragilizado as políticas públicas e tornado precárias as condições de trabalho das assistentes sociais. As profissionais têm se defrontado com a ausência de infraestrutura adequada e insuficiência de recursos humanos para atendimento às demandas, além de se depararem constantemente com tutelas de lideranças políticas locais e com a interferência dos grupos armados que atuam no cotidiano dos territórios, a fim de disputá-los.
Figura 3 - Principais desafios do trabalho profissional
Fonte: elaborada pela autora
Observando a autoria dos textos por Estados do Brasil, ficou nítida a predominância das produções sobre a questão urbana na região sudeste do país, com uma expressiva presença desse debate nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Pará, conforme revela o gráfico abaixo:
Figura 4. Número de artigos sobre questão urbana por Estados.
Fonte: elaboração própria (2024).
Compreendemos que, além do fato de que as primeiras escolas de Serviço Social do Brasil terem sido criadas nestes Estados, sendo em 1936 em São Paulo e em 1937 no Rio de Janeiro, há uma concentração de escolas de Serviço Social e de profissionais na região sudeste, correspondendo a 39,45% do total de assistentes sociais ativas no país, sendo 47,28% localizadas em São Paulo e 24,20% no Rio de Janeiro (CFESS, 2022, p. 19).
Outrossim, os principais programas de pós-graduação do país também estão localizados no eixo Rio-São Paulo.
O Pará, por sua vez, também se sobressai, haja vista que o Estado possui movimentos sociais urbanos fortes e combativos. Ademais, os governos progressistas, a destacar a prefeitura de Belém nas gestões do geógrafo Edmilson Rodrigues (PSOL), vêm investindo em experiências de habitação social, mesmo considerando que os programas e recursos habitacionais se encontram distribuídos de forma desigual.
Para avançarmos na pesquisa, realizamos uma divisão por eixos temáticos, conforme o gráfico abaixo:
Figura 5. Número de artigos sobre questão urbana por eixo temático.
Fonte: elaboração própria (2024).
Diante do levantamento realizado, verificou-se que a maioria dos trabalhos publicados possuem em seu conteúdo o debate sobre o Direito à Moradia. O enfrentamento do déficit habitacional do país, estimado em torno de seis milhões de domicílios, conforme os dados da Fundação João Pinheiro referentes ao ano de 2022, é uma questão de extrema relevância.
Não há dúvidas de que o problema da moradia atinge os segmentos mais pauperizados, dentre eles, as famílias monoparentais, as mulheres, a população LGBTQIA+ e o povo negro, que compõe 55,5% da população, segundo dados do IBGE. Trata-se de um direito expresso em tratados internacionais e, na Constituição Federal brasileira é, sem dúvida, a política pública mais sensível nos governos. O acesso a uma moradia digna deve contemplar não apenas uma edificação, mas um espaço que atenda às necessidades das famílias, no qual seja possível o desenvolvimento biopsicossocial dos seus membros r e o acesso aos demais direitos sociais.
Os estudos sobre Moradia se relacionam àqueles que tratam do processo de assessoria técnica pública e gratuita às famílias pauperizadas. Desde 2008, foi estabelecida na Lei nº 11.888/2008, conhecida como a lei da Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS). Ela resulta de um amplo processo de mobilização, para que a assessoria técnica tornasse um direito expresso. Trata-se da assistência técnica para habitação de interesse social que garante o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para a formulação do projeto e a construção de habitação de interesse social, como parte integrante do direito social à moradia.
A referida lei pressupõe a ampliação do acesso à moradia adequada e planejada, em que devem estar envolvidos os profissionais de Arquitetura, Urbanismo e Engenharia. Muito
embora não esteja explícito no texto legal a participação de Assistentes Sociais em ATHIS, esta se tornou um campo no qual o Serviço Social pode atuar. No caso, em particular, encontramos 38 (trinta e oito) textos sobre o assunto. Naqueles que se relacionavam diretamente sobre o fazer profissional, identificamos alguns fragmentos que merecem destaque para compreender as atribuições das profissionais que atuam nos diferentes programas e projetos, a saber:
● potencializar o processo de organização sociopolítica do sujeito popular na construção e efetivação do “Direito à Cidade”;
● oportunizar espaços na universidade pública que articulem o conhecimento científico e práticas acadêmicas com o saber popular; e fomentar o debate sobre as formas de organização e de gestão democráticas participativas de controle social da coisa pública;
● desenvolver atividades de formação sociopolítica, com vistas a fortalecer e qualificar a participação nos espaços públicos de decisão e a consolidação da democracia;
● ampliar a criação de espaços de discussão entre os moradores na busca do fortalecimento coletivo e resolução das alternativas em conjunto, articulando com as demais políticas públicas na elaboração de propostas construtivas que atendam às necessidades da população em sua totalidade;
● promover a integração das famílias com o bairro, tendo como resultado a melhoria das condições de vida, a efetivação dos direitos sociais dos beneficiários e a permanência das famílias nas unidades habitacionais;
● articular as demais políticas públicas, contribuindo no atendimento às necessidades das famílias em sua totalidade, promovendo a adaptação ao “novo morar” e melhoria da qualidade de vida, fatores estes pressupostos para a elaboração das ações do Trabalho Social;
● proporcionar a execução de um conjunto de ações de caráter informativo e educativo junto aos beneficiários, que promova o exercício da participação cidadã, favoreça a organização da população e a gestão comunitária dos espaços comuns;
● conhecer a realidade das famílias, sua historicidade, conhecimento acerca da comunidade e ter compromisso com a garantia do acesso à cidadania dos beneficiários, unidos a valores da equidade e justiça social, atributos condizentes com a atuação do Assistente Social;
● viabilizar a sustentabilidade dos empreendimentos e a habitabilidade indispensáveis à melhoria na qualidade de vida e à reversão da histórica exclusão dos mais pobres;
● apoiar à organização social e incentivo aos processos participativos;
● incentivar a autonomia da população por meio da utilização de metodologias participativas;
● atuar de forma integrada em equipes multidisciplinares;
● estimular às ações em parceria com outras instituições públicas, governos, entidades sem fins lucrativos e/ou empresas privadas;
● viabilizar o acesso aos direitos sociais, principalmente à questão da moradia, fundamentando-se em bases democráticas elucidadas pela participação social;
● promover a participação da população na execução das obras de urbanização, habitação e ações sociais, com vistas à apropriação das benfeitorias e a sustentabilidade dos serviços implantados, destacando o papel das comunidades como protagonistas do processo, conforme consta no documento Subprojeto de Trabalho Técnico Social (2007);
● contribuir para a população lutar por políticas públicas mais condizentes com as necessidades sociais;
● contribuir no sentido de esclarecer como se dá a relação do Estado com o mercado, da explicitação das contradições e as expressões da questão social, incentivando a organização autônoma popular;
● preparar a população de baixa renda para as lutas contra o capital imobiliário, que faz da construção da cidade a sua principal fonte de lucro e espoliação da moradia da população
● romper com a perspectiva assistencialista da profissão, reconhecendo o direito da população de baixa renda em acessar aos direitos constitucionais;
● buscar fortalecer os princípios ético-políticos da profissão ao se orientar pela garantia da universalidade do acesso a bens e serviços fundamentais à reprodução da vida social e pela ampliação e consolidação da cidadania através do acesso ao direito à moradia digna;
● apreender as múltiplas determinações da realidade social, posta no território, buscando apreender as particularidades assumidas pela questão social, a fim de planejar e executar ações estratégicas para minimizar os impactos do novo morar e dar respostas às diferentes demandas apresentadas;
● reduzir os impactos dos processos de segregação social visando atuar sobre o agravamento da pobreza, da desigualdade social, garantindo o acesso à moradia adequada e a efetivação de uma política habitacional capaz de atender a camadas mais empobrecidas da população.
Analisando os fragmentos textuais, merece destaque o fato de que as ações desenvolvidas se coadunam com os princípios éticos e políticos da profissão. Tem-se uma predominância de uma reivindicação da prática ancorada na valoração ética que a profissão forjou nos últimos anos, assim como uma intencionalidade que visa à mobilização social em prol de um processo de formação de consciência crítica. Tais ações estão em alinho ao entendimento de David Harvey (2004, p. 98), que nos mostra que “condições desiguais oferecem abundantes oportunidades de organização e ação política”. Assim, fica nítido nos citados recortes o compromisso de um fazer ancorado em uma dimensão política reivindicatória, em que se pressupõe a socialização do acesso a direitos e informações que sejam capazes de municiar a população para resolver seus problemas imediatos, e paralelamente, avançar na compreensão do problema habitacional dentro de uma totalidade mais abrangente. Tal questão nos remete às reflexões de Abreu (2002) sobre
a dimensão pedagógica da profissão, que pode vir a apontar também para processos emancipatórios:
[…] a solidariedade e a colaboração intraclasses subalternas, bem como a mobilização, a capacitação e a organização das mesmas classes apresentam-se como elementos constitutivos de um novo princípio educativo – base de uma pedagogia emancipatória – na medida que, em condições históricas 3 determinadas, contribuem para subverter a maneira de pensar e agir, isto é, a ordem intelectual moral estabelecida pelo capital, e plasmam novas subjetividades e condutas coletivas indicativas de uma nova cultura (Abreu, 2002, p. 135).
Quanto aos desafios encontrados nos trabalhos, muitos se assemelham aos já descritos, porém destacamos alguns que mais nos chama a atenção:
● o agravamento das expressões da questão social;
● as disputas partidárias dentro das secretarias de habitação dos municípios e como isso implica na atuação do assistente social;
● a multiplicidade de projetos;
● as dificuldades relacionadas a possíveis mudanças de domicílio por parte da população;
● falta de preparo para atuação na área;
● equipe insuficiente para atendimento às demandas profissionais;
● o fim do contrato dos profissionais anterior à concretização das políticas sociais;
● a sensação de ambiguidade por parte dos moradores no que se refere ao tráfico de drogas (ora proteção, ora medo);
● normativas e orientações técnicas que reeditam práticas conservadoras e disciplinadoras;
● interferência dos grupos armados que dominam o território;
● redução da autonomia profissional frente à exigência de uma atuação mais alinhada às métricas e procedimentos das normas e dos sistemas de controle da Caixa Econômica Federal;
● gasto com a taxa condominial e adequação a uma realidade de moradia que se distancia do que as famílias vivenciaram mesmo em condições precárias), e
● engessamento e padronização do trabalho social.
Por fim, no eixo temático sobre o direito à cidade, é inexpressiva a produção que problematiza o trabalho profissional. Predominam as reflexões teóricas mais amplas que não dialogam com o labor em si. Consideramos que isso ocorre em função do direito à cidade
ser um direito difuso, não pertencendo a uma política consolidada com a especificidade da habitação, da assistência social e da saúde, ainda que haja uma correlação entre ambos.
Sendo assim, o direito à cidade não corresponde a um espaço sócio-ocupacional, o que reverbera em uma baixa produção referente aos relatos de experiência que discutem, como os demais eixos, as relações sociais produzidas nos espaços sócio-ocupacionais, as condições de trabalho e os desafios cotidianos do exercício profissional. focando apenas sobre análises que articulam conjuntura, elementos estruturantes do capitalismo, mobilizações e resistências através de revisão bibliográficas. São artigos que versam, sobretudo, acerca da sociabilidade burguesa, do aprofundamento da “questão social” em tempos de neoliberalismo, partindo da articulação com autores marxistas que são referências nessa área de conhecimento, e que não se renderam aos ditames pós-modernos, efêmeros e às análises mais superficiais da totalidade da vida social.
Lançando luz aos dados sobre Regularização Fundiária, as produções recentes publicadas no ENPESS e no CBAS, de menor expressividade, já que foram identificados apenas 10 artigos, evidenciam profissionais atuando no poder executivo municipal e em empresas contratadas para execução de projetos de REURB-E11 nos Institutos de Terras, como o Instituto de Terras do Rio de Janeiro (ITERJ) e o Instituto de Terras do Mato Grosso (ITERMAT).
As informações obtidas nos permitiram conhecer mais a fundo a realidade de trabalho de assistentes sociais diante desta demanda. As atribuições, em geral, se referem à realização de orientações sobre o processo da regularização em si - que ocorre em âmbito do executivo e nos cartórios - ou à busca do estabelecimento de diálogos com a população a respeito dos projetos de urbanização.
Diferentemente das áreas da saúde, da assistência social e da própria política de habitação, as questões que envolvem o fazer profissional nos processos de regularização fundiária ainda não possuem tantos estudos. Embora a sociedade brasileira tenha forjado um arcabouço legal progressista sobre as políticas urbanas, os debates que versam sobre a particularidade do exercício profissional em espaços sócio-ocupacionais relacionados aos processos de garantia da posse ainda são insuficientes. Em paralelo, os problemas sobre a grilagem de terras12, a apropriação indevida das mesmas, principalmente nas capitais, com auxílio das milícias, cresce consideravelmente e requer estudos mais acurados sobre a temática.
Outro elemento de síntese que nos parece fundamental para avançar na reflexão quanto à apropriação teórica sobre a questão urbana é que no cômputo dos textos percebemos que as formulações de autores estrangeiros como Henri Lefebvre e David Harvey aparecem, respectivamente, em 30 e 20 estudos. Entre os intelectuais brasileiros, por sua vez, que tratam sobre a temática, a arquiteta e urbanista Ermínia Maricato teve seu registro em 20 citações e o geógrafo Milton Santos foi citado em 11 produções. Já os trabalhos produzidos pelas intelectuais da categoria profissional têm destaque nas obras de
11Regularização Fundiária Urbana (REURB) é o procedimento por meio do qual se garante o direito à moradia daqueles que residem em assentamentos informais localizados nas áreas urbanas. A aprovação da Lei n.º 13.465 de 2017 trouxe os procedimentos, normas e critérios para promover regularizações fundiárias urbanas e rurais, e a distinção entre regularização onerosa e gratuita, que, respectivamente, são: a Regularização Fundiária Urbana de Interesse Específico (REURB-E) e a Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social (REURB-S).
12 A grilagem de terras é o termo coloquial utilizado no país para se referir à apropriação indevida de terras com utilização de documentação falsa.
Tânia Diniz, Joana Valente, Rosangela Paz e Isabel Cardoso, as quais estudam as mais variadas vertentes da questão urbana.
Assim, o que há de comum entre todos esses autores, sejam eles os mais reconhecidos ou os jovens pesquisadores é a capacidade de reflexão crítico-analítica dos mesmos sobre a realidade urbana que passa ao largo das influências positivistas e/ou pós-modernas, afastando-se de análises superficiais e fragmentadas, que ofuscam a essência da realidade por trás de uma aparência fetichizada.
Considerações Finais
Finalizando essas reflexões, foi possível atribuir relevo a algumas sistematizações, mesmo que não inéditas, mas de grande importância sobre a formação social brasileira, no sentido de compreender como se deu o processo de produção dos territórios desiguais no país - locus de atuação dos assistentes sociais.
Logo, é sobre a aspereza do cotidiano, não isenta de um conjunto de adversidades, que assistentes sociais fazem história. Muito embora atuem desprovidas de condições ideais, Marx nos mostrou que “os homens não fazem sua história a partir de suas escolhas, mas a partir da realidade material, da qual são, ao mesmo tempo, produto e produtores” (2007: 44 )Portanto, é em meio às contradições da realidade social que a profissão forja as táticas e estratégicas para sua atuação profissional, já que “[…] o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual” (Marx, 2007, p. 45).
Em suma, é na imersão do espaço urbano, tão analisado por distintos campos de saber e por diversas categorias profissionais, que assistentes sociais, consumidos pela imediaticidade de suas práticas (Coelho, 2012), tecem reflexões e constroem suas pesquisas, a partir da aproximação com o marxismo, afastando-se de análises empiristas e conservadoras, em uma área que permitiu uma apreensão da realidade na sua concretude, na sua processualidade e na sua contraditoriedade, com base nas determinações históricas, sociais, políticas e econômicas.
De fato, conforme exposto, há uma ampliação de produções teóricas a respeito do tema expressas nos artigos dos ENPESS e CBAS, que revelam que a área vem se debruçando a estudar e analisar as particularidades do trabalho profissional.
De um lado, são observadas situações típicas dos problemas que circunscrevem as políticas habitacionais, que estão expressas na sua precariedade, na degradação e na pouca qualidade dos empreendimentos habitacionais públicos, na existência de grupos armados que incidem sobre os empreendimentos e na dinâmica do cotidiano, além da segregação socioespacial marcante em países de capitalismo dependente como o Brasil. De outro, a condição de assalariamento às quais as profissionais estão submetidas, seja como funcionárias públicas ou contratadas por empresas privadas, nem sempre são adequadas, tendo em vista que esbarram com equipe insuficiente para cumprir as metas exigidas e com relações entre profissionais nem sempre exitosas, entraves estes que compõem as suas condições de trabalho
Mesmo diante de uma limitação metodológica que um levantamento documental como este imputa, foi possível verificar que as tensões, os desafios e as estratégias construídas pelas profissionais nos artigos publicados revelando fecundas e inspiradoras experiências.
Por fim, com todas as adversidades enfrentadas, há uma intencionalidade demarcada nos textos que mostram que ainda há a hegemonia de uma racionalidade que reverbera em práticas com o horizonte emancipatório, em que a dimensão educativa da profissão é ressaltada junto às classes subalternas. Assim, há nas produções analisadas a defesa dos direitos sociais tal como a profissão registra em projeto ético-político forjado coletivamente, ainda que cientes de sua incompatibilidade já que todos nos assistentes sociais estamos submersos às determinações do neoliberalismo vigente.
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Capítulo 09
Trabalho Social na Habitação: trajetória, resistências e afirmação do direito à cidade
Joana Valente Santana Rosangela Dias Oliveira da Paz
1. Introdução: o lugar do Trabalho Social na política urbana e habitacional
Inicialmente, explicitamos que o Serviço Social, enquanto profissão regulamentada, que se define pelo seu de caráter sociopolítico, crítico e interventivo, que atua nas diversas expressões da questão social, não se confunde com o Trabalho Social na política habitacional, um lugar específico de atuação profissional a partir de requisições da política pública. Historicamente, os profissionais de Serviço Social têm sido requisitados para atuação em projetos habitacionais e urbanísticos, compondo equipes de trabalho social que dialogam com outras profissões das áreas de humanas e exatas, em especial, arquitetos, engenheiros, advogados, sociólogos e pedagogos.
No cotidiano dessas requisições das políticas públicas configura-se o dilema de um trabalho profissional, que, contraditoriamente, defende o direito à cidade e à moradia digna da grande maioria da população brasileira, ao mesmo tempo que é pressionado a responder aos interesses do mercado imobiliário e da construção civil. As concepções conservadoras do passado, que demandaram intervenções higienistas, posturas disciplinadoras e autoritárias na cidade, como as que privilegiam remoções e a segregação urbana, persistem e se reatualizam no presente, e ao mesmo tempo, convivem com uma perspectiva do direito à cidade e à moradia digna, nos marcos da Constituição de 1988, do Estatuto das Cidades (2001) e da construção de políticas democráticas e inclusivas.
O contexto histórico e espacial das relações sociais que mediatiza as condições de existência do Trabalho Social na política de habitação, é caracterizado pelo aprofundamento das desigualdades sociais, raciais e de gênero que se expressam sobre o crescimento da pobreza e da fome, o desemprego, precarização e a informalidade do mundo do trabalho, a ausência e precariedade das moradias nas cidades e no campo, os deslocamentos e as remoções, o baixo acesso aos serviços públicos, o racismo estrutural, as opressões de gênero, os desmatamentos e devastamentos ambientais, a expulsão dos/as trabalhadores/as do campo e dos indígenas de suas terras e a criminalização dos movimentos sociais nas lutas pelos direitos.
Os resultados das políticas urbanas e de habitação implementadas no Brasil configuraram cidades marcadas pela expansão das taxas de urbanização que transformam as formas de uso e ocupação do território, avançando sobre a biodiversidade dos biomas brasileiros e transformando áreas naturais em formações precárias e desigualmente urbanizadas. A produção e reprodução do espaço urbano subordina o uso e a ocupação da terra, as necessidades sociais dos/as trabalhadores/as e moradores/as dos bairros periféricos
e os direitos regulamentados aos interesses da industrialização, do mercado e da circulação do capital.
Nesse contexto, a convocação do trabalho social nas políticas urbanas e habitacionais precisa ser compreendido na constituição das cidades brasileiras e de suas dinâmicas locais e regionais, de interseção dos espaços urbanos, periurbanos e rurais, na qual a disputa pela terra, a produção social do espaço e as impossibilidades de inserção e acesso à cidade são centrais para o avanço do capital.
Nesse sentido, o Trabalho Social afirma-se a partir de condições históricas estruturais determinadas e das convocações e requisições das políticas públicas, atuando na prestação de serviços sociais, na reprodução material e social da força de trabalho e em particular na organização e participação social dos grupos de população envolvidos nos projetos habitacionais, em territórios específicos, investindo na construção de uma outra sociabilidade (Diniz; Paz, 2020, p. 34).
Estamos de acordo com Diniz e Paz (2020, p. 35), de que o Trabalho Social na habitação é um campo de disputa de projetos, concepções e recursos no cotidiano das gestões públicas, dos programas habitacionais e dos territórios populares onde a vida cotidiana se processa na sua complexidade. É permeado pelas contradições presentes na sociedade e nas políticas públicas, pressionado pelos diferentes interesses dos atores envolvidos nos processos de implementação da política urbana e de habitação. A tensão entre os interesses do mercado da construção civil e imobiliário e o direito à moradia, defendido pelos movimentos de moradia, ou ainda entre interesses das diferentes gestões públicas e mesmo eleitorais e o direito à cidade e acesso à moradia digna têm atravessado os projetos e equipes de trabalho social, exigindo posicionamentos e estratégias, em especial, em uma conjuntura histórica de ataque à ainda frágil democracia do país e à esfera pública dos direitos, através do exercício do poder de Estado, de governo e de manifestações materiais e simbólicas da sociedade civil.
Assim, a compreensão da trajetória e construção do Trabalho Social na política urbana e habitacional deve considerar a estruturação do espaço nas cidades brasileiras, sob as bases do capitalismo global; as implicações dessa dinâmica nas convocações e contradições do Trabalho Social na política de habitação. É nessa chave teórica e histórica, em particular no cenário das transformações do capitalismo e do mundo do trabalho, com os avanços da terceirização, que as concepções e pressupostos para o trabalho social em programas habitacionais, bem como suas estratégias, metodologias, recursos devem ser compreendidos e analisados.
Nos períodos dos governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Roussef (2011-2016) houve um conjunto de avanços institucionais no Ministério das Cidades, que reconheceu o Trabalho Social como um componente da política habitacional, mas que não foram acompanhados de investimentos no desenvolvimento institucional dos municípios, de suas capacidades gerenciais e de estrutura. Assim, em muitos municípios, as competências do Trabalho Social estão locadas nas secretarias de assistência social e as ações são reduzidas à prestação de alguns serviços e atendimentos individualizados e imediatistas, atendendo as formalidades contratuais e distanciando-se dos objetivos propostos. Há uma agenda de desafios para estruturar e efetivar o Trabalho Social nos municípios.
No período recente, pós golpe parlamentar de 2016, que destituiu a presidenta Dilma Rousseff, as condições e vida se agravaram, com o aprofundamento da desigualdade social
brasileira, o desmonte e desfinanciamento das políticas públicas, que escalaram outro patamar com a crise sanitária da Covid-19 e a crise política e ameaças a democracia brasileira no governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022). Foi possível observar uma paralisação das obras e uma “desidratatção” do Trabalho Social, equipes foram diminuídas ou desmontadas, remanejadas para outras áreas, mas, ao mesmo tempo, observou-se resistência de profissionais que se somaram às lutas dos movimentos sociais.
Moradia é uma bandeira de luta dos movimentos populares que tem um sentido amplo de direito à cidade e a cidadania, não se restringe a casa. Quando falamos sobre política habitacional, para além da construção de unidades habitacionais, envolve acessos à serviços e inserção urbana. Da mesma forma, a realização do Trabalho Social que não se restringe ao trabalho com moradores de um conjunto habitacional ou a uma unidade habitacional, mas é voltado ao direito à moradia, que envolve o acesso à cidade, saneamento, aos equipamentos sociais, transporte público, ao trabalho, a sociabilidade e convivência. Portanto, os princípios que norteiam o Trabalho Social nas políticas urbana e habitacional devem afirmar o direito à cidade; o direito à moradia digna; o direito à organização e participação da população em todos os momentos do processo construtivo e no controle democrático da política habitacional.
As reflexões do capítulo, com base em levantamento bibliográfico, estão divididas em duas seções, além desta introdução. A primeira seção discute sobre a centralidade do Trabalho Social em habitação - com ênfase na discussão do território, a participação e a intersetorialidade - e a segunda, apresenta algumas proposições para o Trabalho Social, seguida das considerações finais.
2. Centralidades do Trabalho Social em habitação: territórios, participação e intersetorialidade
2.1. Centralidade do Trabalho Social nos territórios
A compreensão relacional e crítica da produção social do espaço e, em particular, do conceito de território, não se reduz à dimensão normativa ou administrativa das formas de fragmentação e classificação do real e da vida social por parte do Estado e das políticas sociais. Defende-se a importância do conhecimento sobre a vida cotidiana da classe trabalhadora partindo-se dos territórios de vida, onde se insere a moradia.
Nosso ponto de partida é entender o território e as dinâmicas socioterritoriais como o chão da política habitacional e do Trabalho Social. É preciso ajustar as lentes e o foco para a realidade. Essa compreensão não está deslocada do seio das contradições inerentes ao processo de disputa pela terra e pelo valor produzido nas cidades, pelo contrário, implica em interpretar as contradições a partir do lugar de vida da população e das relações que se constroem para a sobrevivência e resistência.
Milton Santos (2000) é o autor da compreensão do espaço territorial a partir da noção de seu uso, das vivências cotidianas, que expressam, ao mesmo tempo, os sentidos construídos nas relações sociais e os sentidos das relações econômicas, sociais, políticas e culturais do contexto social em que os sujeitos produzem e reproduzem a vida. Essa
perspectiva é desenvolvida por Koga, Arregui e Diniz (2018), que ao dialogarem com a política de assistência social afirmam:
É no lugar territorial, no chão das relações sociais, que a vida se produz e se reproduz, onde é possível perceber as capacidades protetivas, as mediações arquitetadas para a vivência e sobrevivência. É o espaço de ocorrência das vulnerabilidades, ameaças, violência, potencialidades, sociabilidades e outras múltiplas expressões das relações humanas e sociais. (p. 1410).
Silva e França (2020) discutem que, em geral, o conhecimento sobre o território é produzido pelo Estado, mediado pelos interesses do mercado. Os/as autores/as chamam a atenção de que os profissionais devem valorizar o conhecimento sobre o território em que atuam, desvelando as diversas formas de vida que existem nos territórios e interpretando as contradições sociais. Assim, além das informações institucionais sobre os serviços públicos, é importante que se reconheçam as movimentações locais de proteção, produção de informações, redes de solidariedade, as resistências e lutas. “Este reconhecimento nos aproxima dos sujeitos coletivos e das redes do território de um outro ponto de vista; isto significa uma mudança de lógica, na qual os usuários dos serviços deixam de ser objetos para serem sujeitos na produção do conhecimento” (p. 269).
Na mesma perspectiva, Santana et al (2020) referindo-se ao trabalho de assistentes sociais que compõem as equipes de Trabalho Social, afirmam que estes têm a possibilidade de se aproximar da realidade local nas diferentes territorialidades no Brasil, valorizando os processos de participação social, com a incorporação dos sujeitos que vivenciam as condições precárias de vida em seu processo de produção e reprodução social. E afirmam:
[...] os assistentes sociais têm contato direto com os moradores pobres, realizam estudo sobre a situação socioeconômica das famílias, visitam ‘residências precárias’ de norte a sul do país e têm a possibilidade de trazer à luz o que as pesquisas oficiais deixam obscuro e/ou invisível mas que, em realidade, está inscrito na realidade brasileira: as condições subhumanas em que vive a classe trabalhadora no país, este que, do ponto de vista das condições urbanas e habitacionais da grande maioria dos habitantes, é um “Brasil Precário”. (p. 248)
Desta feita, parece importante que os/as profissionais possam fomentar estratégias de leitura territorial, que incorpore as leituras das trajetórias de vida dos sujeitos em consonância com a história do lugar. A análise territorial requer atenção para as dinâmicas, anseios, concepções coletivas das localidades, o uso e as relações dos diferentes sujeitos, das experiências estabelecidas e que se tecem nas relações sociais, na gramática da vida do lugar. Essas estratégias pressupõem que se trate o Trabalho Social no campo público, social e político, ultrapassando a lógica privatista, focalizada e individualizadora de atenção e proteção social e privilegiando estratégias coletivas que respeitem as especificidades regionais, a história e cultura local dos moradores dos territórios das cidades brasileiras.
2.2. Centralidade da participação social e da organização política no Trabalho Social em habitação
Pode-se afirmar que participação social e organização política é o “coração” no Trabalho Social em programas da política habitacional no Brasil e em territórios marcados pela desigualdade social. Ao trabalhar em territórios marcados pelas desigualdades sociais e por precariedades urbanas a perspectiva é investir e fortalecer na organização coletiva dos seus moradores, trabalhadores.
Nas diversas sociedades vivenciadas pela humanidade, há uma limitação da participação social dos sujeitos por conta das sociedades de classes, onde os/as escravos/as, os/as servos/as e os/as trabalhadores/as tiveram e têm (no caso, os/as trabalhadores/as assalariados/as) pouca possibilidade de decisão sobre a vida individual e coletiva devido à divisão social do trabalho. Conforme demonstra Coutinho (2010), na particularidade da sociedade capitalista, há a construção de uma racionalidade formal abstrata e/ou uma irracionalidade que limitam e/ou impedem os sujeitos de compreenderem seu lugar na produção da riqueza, na produção dos bens materiais e imateriais produzidos pela humanidade.
Assim, no modo de produção capitalista, no cotidiano da vida, além do inerente processo de alienação (Marx; Engels, 1989), são forjados processos de dominação que sustentam as diversas racionalidades hegemônicas (dominação de classe, étnico-racial e de gênero).
Por sua vez, se a racionalidade hegemônica se constrói para a conservação da sociedade, também são construídos diversos processos de lutas em defesa da vida humana e da natureza, materializada em diferentes formatos de organizações políticas (sindicatos, partidos políticos, movimentos sociais, intelectuais, coletivos, dentre outros). São grandes e pequenos enfrentamentos dos/as dominados/as, onde a participação social se expressa como um componente das lutas sociais na história.
No Brasil, as disputas em torno da democratização do país foram a expressão de lutas políticas de vários setores da sociedade, a exemplo do Movimento de Reforma Urbana, como expressão de disputa do direito à cidade, com a centralidade nos processos participativos.
No caso, da política habitacional, observa-se que no âmbito da gestão pública, a participação tem uma perspectiva instrumental e visa o aceite de programas e projetos habitacionais, que, em geral, são orientados por concepções e práticas conservadoras, pois os projetos habitacionais ofertados para a classe trabalhadora apresentam problemas de várias ordens como a qualidade construtiva, distância dos serviços urbanos e do trabalho, cômodos menores do que a necessidade da família, projetos construtivos que não respeitam as particularidades regionais, dentre outros. Nessa perspectiva os profissionais, particularmente os/as assistentes sociais, que trabalham em equipes de Trabalho Social, são requisitados a intervir com base em uma direção conservadora de participação. No entanto, as equipes de trabalho social se movimentam nos espaços contraditórios das políticas habitacionais na perspectiva da democratização e do acesso à direitos, se posicionando e trabalhado sob a orientação de um projeto profissional que valoriza os processos democráticos e o protagonismo dos sujeitos nos territórios, com o estímulo à participação social (Santana; Santos, 2021).
Santana e Santos (2021) apresentam reflexões sobre as principais requisições e respostas profissionais de Serviço Social no âmbito da política urbana/habitacional, em diferentes momentos na conjuntura brasileira. Discutem as autoras que na trajetória histórica da política urbana e habitacional as requisições aos/às profissionais de Serviço Social estiveram voltadas ao “acompanhamento da vida dos moradores com uma perspectiva de adequação ao novo espaço residencial, com práticas higienizadoras e controladoras, mediante o recurso da participação instrumental” (p. 106), onde os/as moradores/as são chamados a consentir e/ou aderir os projetos habitacionais, ainda que estes projetos apresentem variados problemas construtivos, de inserção na malha urbana, distância dos serviços públicos etc.
Ao mesmo tempo, demonstram que houve no contexto das políticas habitacionais, experiências democráticas onde foi possível experimentar a participação de base democráticas pela mediação do Trabalho Social. Para as autoras: As respostas profissionais das equipes técnicas, onde se incluem as/os assistentes sociais, estão mergulhadas no conjunto das mediações contraditórias constitutivas das políticas urbanas e habitacionais, das desigualdades do acesso da classe trabalhadora à moradia adequada, da lógica mercantil do espaço urbano e inúmeras carências existentes nos territórios populares. Por sua vez, as respostas profissionais também estão carregadas de contradições – especialmente quando a/o profissional se orienta pelo denominado projeto ético-político do Serviço Social, visto que na relação entre as demandas de controle da vida social das/os moradoras/es também são desenvolvidas possibilidade de experiências de trabalho que incentivam a participação de base democrática. (Santana, Santos, 2021, p. 107).
É fundamental que os profissionais busquem reconhecer quais as lutas sociais estão presentes na sociedade em vista do direito à cidade, percebendo a desigualdade social existente nas diferentes territorialidades no Brasil, nos sentido de que a inserção profissional na questão da habitação seja articulada a um posicionamento contrário a todas as formas de exploração e opressão e contra todas as desigualdades que comparecem a vida dos/as trabalhadores/as, dos negros, mulheres, pessoas com deficiências, pessoas LGBTQIA+, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, trabalhadores rurais no Brasil. Nessa direção, a aproximação e aliança política com os movimentos sociais organizados nas cidades é o caminho para a construção de alternativas criativas e inovadoras no campo da moradia popular.
2.3. Trabalho social e a intersetorialidade das políticas públicas
Duas referências subsidiam o debate que articula o desenvolvimento do Trabalho
Social na política urbana e habitacional e a necessária intersetorialidade das políticas públicas, como estratégia da gestão pública: as múltiplas determinações que atravessam o Trabalho
Social que se realiza sob referências teóricas, metodológicas e ético-políticas que são plurais, e a intersetorialidade no exercício cotidiano de implementação das políticas públicas que deve considerar as contradições, confrontos e conflitos que não se encerram na formulação – a implementação também é um campo de tensões (Netto, 1992).
Nessa direção, reflexões emergem dos debates que apontam as transformações históricas, sociais e culturais que têm alterado a face do capitalismo e da sociedade do capital nas últimas cinco décadas, ou seja, a mundialização do capital e a centralidade alcançada pelo capital financeiro, que provocaram mudanças nas condições de vida e de trabalho da classe
trabalhadora com a intensificação da precarização, caracterizando uma ofensiva burguesa sob uma ideologia neoliberal, tendo em vista reverter a crise sistêmica do capital e renovar as condições de exploração do trabalho.
O que impõe a indagação sobre o significado das políticas públicas em tempos de concentração e centralização do capital, mesmo porque as entendemos necessariamente referidas à política econômica. Ou seja, na defesa da habitação como política social e responsabilidade do Estado e da moradia como direito com orçamento público atribuído, as políticas públicas navegam em um campo amplo de contradições, podendo ser apreendidas como resposta governamental de intervenção nas relações sociais que, numa perspectiva liberal, objetivam conceder aos indivíduos a satisfação de certas necessidades não atendidas no contexto do mercado capitalista e, numa perspectiva histórico-crítica, fazem parte da estratégia da classe dominante, tendo em vista o controle da classe trabalhadora. Portanto, é importante considerar na produção das cidades e de moradias, no exercício cotidiano de implementação das políticas públicas, as formas de intervenção que entrelaçam e interseccionam relações sociais de classe, raça e gênero.
E, nesse sentido, é fundamental articular a intersetorialidade com a interdisciplinaridade, aquela entendida como um tipo de intervenção social, uma qualidade necessária ao processo de intervenção (Koga, 2003), uma “estratégia de gestão pública democrática, que pressupõe decisão política, articulação entre os setores e complementariedade das ações buscando um olhar para a totalidade das manifestações da questão social e dos cidadãos que demandam atendimento público” (Wanderley, Martinelli e Paz, 2020).
A interdisciplinaridade pode potencializar as articulações e integração das ações desenvolvidas pelos agentes públicos no desenvolvimento do trabalho social, ao considerar saberes e práticas de profissionais de outras áreas de conhecimento, ao estabelecer uma interlocução necessária para superar a fragmentação e parcialização de saberes, com vistas a assegurar as condições de acesso às políticas e aos direitos e à apropriação do espaço público, de forma participativa.
Contudo, a intersetorialidade não se reduz a uma estratégia técnica, no âmbito do trabalho profissional ou uma ação pontual de iniciativa individual, é uma dimensão do trabalho essencialmente política, onde a decisão política e institucional, o planejamento e a disponibilidade de recursos estabelecem as bases para sua implementação e potencialização de uma ação integrada que rompa com a fragmentação setorial das políticas públicas.
3. Proposições para o Trabalho Social
O Trabalho Social, sendo um componente da política habitacional, embora tenha limites pela própria natureza da política social em sociedades do capitalismo periféricocomo é o caso do Brasil -, é considerado como um lugar de disputas políticas, ancoradas em princípios teóricos e metodológicos, os quais dão suporte para as proposições do exercício profissional. O Brasil experimentou um largo campo de formulações e práticas democráticas pelo direito à moradia que, embora derrotadas pela força do capital, materializadas nas políticas neoliberais, estas que recuam os direitos sociais, podem servir de base para proposições no cotidiano profissional. Nesta direção, concorda-se com Santana e Santos (2021), de que:
A base da proposta deve levar sempre em conta a radical defesa dos interesses da classe trabalhadora, com atenção a todas as manifestações de dominação e de desrespeito às pessoas (crianças e adolescentes, mulheres, pretos e pretas, LGBTQIA+, idosos, indígenas, quilombolas, migrantes) que são mais segregadas em sociedades de classe e, especialmente, na sociedade brasileira. (p. 107-108).
Assim, uma proposição central é que os/as profissionais possam conhecer as normativas orientadoras para as equipes de Trabalho Social, a fim de ter um domínio sobre as requisições do Estado na proposição das políticas habitacionais. Conhecer as normativas é importante para que os/as profissionais possam analisar criticamente e responder às requisições na sua condição de trabalhador/a assalariado, e ao mesmo tempo, atentarem às demandas da sociedade estas, que em sua grande maioria, não estão previstas nas normativas, isso porque nos territórios onde se insere a política habitacional, existem inúmeras carências materiais e imateriais que podem ser incorporadas no Trabalho Social.
Outra proposição importante é o reconhecimento de que o Trabalho Social não deve ser desenvolvido posteriormente ou a reboque das equipes responsáveis pelas obras dos projetos habitacionais. As casas ou apartamentos a serem construídos serão habitados por sujeitos da classe trabalhadora que tem demandas particulares de vida. A força do mercado imobiliário e da construção civil se impõe na definição dos locais da construção das moradias, da qualidade construtiva, do cronograma da execução da obra etc. Por isso, é fundamental que no campo da disputa política com os gestores públicos, as equipes de Trabalho Social possam estar presentes antes, durante e depois do processo da produção habitacional, contribuindo com o levantamento ao máximo as demandas presentes nos territórios – aliás, com a perspectiva de se considerar as diferenças regionais do país - e pautando e disputando o atendimento dessas demandas sociais, mesmo que as respostas sejam mínimas, considerando a conjuntura de crise do capital e aumento da desigualdade social.
Parece importante pensar também que os/as profissionais que vivenciam ou vivenciaram experiências em equipes de Trabalho Social têm muito a contribuir com as proposições das políticas públicas na área urbana e habitacional, tendo em vista que estão no chão da materialidade da vida social nos territórios e conhecem as demandas e anseios dos sujeitos da classe trabalhadora. Nesse sentido, a importância da organização política dos/as profissionais para que possam trocar experiências entre si e entre outros sujeitos interessados na formulação da política habitacional que se voltem aos interesses da sociedade (movimentos sociais, universidades etc.), visando a construção de propostas que possam incidir na política. Nesta direção, um espaço de proposição refere-se à participação dos profissionais em eventos acadêmicos, onde podem ser sistematizadas as reflexões e as propostas no âmbito da política pública, a partir das experiências adquiridas no cotidiano profissional.
Nessa direção, é necessário investir na formação permanente e continuada para o Trabalho Social, nas suas dimensões políticas e metodológicas, qualificando para o enfrentamento das novas exigências da política pública e para a construção de alternativas coerentes com os princípios e diretrizes da política urbana e habitacional e do direito à moradia e à cidade.
Na história das requisições do Trabalho Social no Brasil, a demanda pela participação social dos/as moradores/as atendidos nos projetos habitacionais se manteve recorrentemente presente nas diferentes conjunturas no país. Assim, uma proposição é que independente da lógica participativa demandada pelo Estado, o Trabalho Social deve levar em consideração a importância dessa demanda de participação para as equipes profissionais, as quais podem construir estratégias referentes aos instrumentais técnicos-operativos no exercício profissional, que fortaleçam os processos participativos dos sujeitos na luta pelo direito à moradia. E aqui, mais uma vez, se destaca a necessária aproximação com as diversas organizações populares presentes nos territórios das cidades, sejam associações, grupos, coletivos, movimentos sociais para fortalecimento desses sujeitos coletivos que sobrevivem, resistem as péssimas condições de vida e propõem estratégias de lutas e formulam propostas para as políticas habitacional e urbana.
Considerações finais
As reflexões apresentadas neste capítulo, com base em levantamento bibliográfico e na experiência profissional, buscaram refletir sobre a importância do Trabalho Social, o qual é considerado um componente da política habitacional no âmbito das desigualdades sociais presentes na vida cotidiana.
Argumenta-se que o Trabalho Social construiu na particularidade histórica brasileira, um lugar na política urbana e habitacional, visto que os profissionais, particularmente os de Serviço Social, são requisitados para intervenções em projetos habitacionais e urbanísticos e compões as equipes de Trabalho Social. Essas requisições encontram-se inseridas em determinações contraditórias da política social, onde os/as profissionais são chamados a desenvolver práticas que atendam aos interesses do mercado e da preservação da legitimidade do Estado e ao mesmo tempo, desenvolvem atividades profissionais que se articulam à luta pelo direito à cidade.
O avanço da crise estrutural do capital que amplia a desigualdade social, racial e de gênero, o desemprego estrutural, o alto padrão da destrutividade ambiental, a piora nas condições de reprodução da vida social, a minimação do atendimento à sociedade pela via das políticas sociais e a precarização da condição salarial dos/as trabalhadores/as, dentre os/as quais, os profissionais de Trabalho Social, são a expressão dos enormes desafios que se impõem àqueles que se somam no campo das lutas sociais para a construção de uma sociedade emancipada humanamente.
Diante dessas determinações estruturais e conjunturais, afirma-se a centralidade do Trabalho Social no contexto das políticas habitacionais e urbanas, considerando-se a possibilidade das disputas de projetos, das concepções e dos recursos financeiros públicos. Para tanto, sugere-se que se pense a centralidade do Trabalho Social a partir da aproximação dos/as profissionais ao território de vida, da premência da intersetorialidade das políticas e do reconhecimento da importância dos processos participativos, na luta pelo direito à moradia.
Desta feita, as proposições ao Trabalho Social ratificam o lugar de centralidade do Trabalho Social como um campo de disputas em torno de direitos sociais, valorizando o conhecimento das normativas que orientam as equipes não só para a execução qualificada
das demandas profissionais, mas como uma possibilidade de ampliar o conhecimento das demandas sociais, não previstas nas normativas, dialogando com as carências e necessidades materiais e imateriais presentes nos territórios. Além disso, uma proposição importante é que o Trabalho Social esteja presente antes, durante e após a execução das obras e intervenções urbanas, como forma de buscar atender ao máximo as reivindicações dos moradores/as. Ratifica-se a importância de que as experiências profissionais no âmbito do Trabalho Social possam ser impulsionadoras da organização política dos/as trabalhadores/as em Fóruns de Trabalho Social, no fortalecimento das lutas sociais dos movimentos de moradia e que as experiências que contenham as reivindicações dos/as moradores/as possam ser sistematizadas como produção de conhecimento e como documentos que contenham propostas de defesa do Trabalho Social e que possam incidir na formulação de políticas públicas, além de contribuir com a organização dos movimentos de moradia pelo direito à moradia e à cidade.
Referências
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FATTORELLI, Maria Lucia; ÁVILA, Rodrigo; MULLER, Rafael. Gastos com a dívida pública cresceram 33% em 2020. 25.01.2021. Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gastos-com-a-divida-publica-cresceram-33-em2020/ Acesso em: 08 maio 2021.
KOGA, D. H. U. , ARREGUI, C. C. ; DINIZ, R. A. . Dinâmicas socioterritoriais e práticas profissionais: entre chãos e gestão. Revista de Politicas Publicas (UFMA) , v. 22, p. 1407-1429, 2018. Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/9872
KOGA, Dirce. Medidas de cidades entre territórios de vida e territórios vividos. São Paulo: Cortez, 2003.
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SILVA, Caroline Rodrigues da; FRANÇA, Bruno Alves de. Território e exercício profissional: o que conhecemos sobre o território onde trabalhamos?. In: PAZ, Rosangela Dias Oliveira da; DINIZ, Tânia Maria Ramos de (Orgs.). Serviço social e trabalho social em habitação: requisições conservadoras, resistências e proposições. 1. ed. – Rio de Janeiro: Mórula, 2020.
WANDERLEY, M. B.; MARTINELLI, M.L.; e PAZ, R.D.O. Intersetorialidade nas políticas públicas. Editorial. Revista Serviço Social e Sociedade, no. 137, São Paulo. Ed. Cortez, 2020.
Capítulo 10
Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social: reflexões sobre as contribuições do serviço social
Aline Rocha
Desde a formação das primeiras turmas do curso de Serviço Social pela Escola de São Paulo na segunda metade dos anos 1930, a atuação de algumas assistentes sociais esteve relacionada aos problemas habitacionais vividos por segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora.
De acordo com Gohn (1985) e Silva (2002) a pauta central dos primeiros movimentos sociais populares urbanos era a reivindicação pela posse da terra e condições para permanência dos moradores no território, viabilizados principalmente por meio do acesso à água, saneamento e energia elétrica. No entanto, a partir de experiências de resistência às remoções, sugiram novas demandas por parte dos moradores no sentido de Assessoria/Assistência1 Técnica à Habitação de Interesse Social – ATHIS.
Diante da ínfima produção bibliográfica sobre o tema do Serviço Social na política de ATHIS, o presente capítulo tem por objetivo contribuir por meio de subsídios históricos, teóricos e metodológicos, para reflexões no interior da própria categoria sobre as contribuições de assistentes sociais na referida área temática. Nada obstante, este trabalho pretende demostrar às demais categorias envolvidas em equipes de ATHIS as potencialidades e limites de nosso fazer profissional.
Em tempo, quer-se registrar que as informações e análises que integram este capítulo resultam de pesquisas científicas promovidas ao longo de meus processos de pós-graduação, a saber: mestrado em Serviço Social/UFRJ e doutorado em Arquitetura e Urbanismo/UFF. Somam-se a estes, minhas experiências profissionais vivenciadas em favelas e comunidades urbanas ao longo dos últimos vinte anos.
Para alcançar os objetivos pretendidos, inicialmente será conceituado e caracterizado o déficit habitacional total no Brasil, conforme metodologia utilizada pela Fundação João Pinheiro. Posteriormente, será realizada uma contextualização histórica da política nacional de ATHIS, destacando questões no escopo da Lei 11.888/2008. Em seguida, será apresentado e analisado o contexto de surgimento e desenvolvimento do Trabalho Social em Habitação como elemento obrigatório da política pública nacional. Por fim, considerando as conceituações, caracterizações e análises prévias, serão apresentadas as demandas e perspectivas para o Trabalho Social em ATHIS, sobretudo, para o Serviço Social.
Déficit Habitacional Total no Brasil
De acordo com a Fundação João Pinheiro (FJP, 2021) o déficit habitacional total é o conceito que embasa indicadores que buscam estimar a falta de habitações e/ou existência
1 É necessário registrar que existe um debate, rico e inacabado, sobre a utilização dos termos Assessoria Técnica ou Assistência Técnica, que pode ser encontrado em Baltazar e Kapp (2016), Cardoso e Lopes (2019), Demartini (2016) e Santo Amore (2004). O debate não está apenas no campo semântico, mas fundamentalmente acerca do formato técnico e político das ações de ATHIS
de habitações em condições inadequadas. Assim, admite-se como déficit habitacional total a soma da quantidade de unidades habitacionais que se encontram inadequadas (componente inadequação habitacional) com a quantidade de novas unidades habitacionais necessárias (componente déficit habitacional), conforme o quadro a seguir.
Quadro 1: Caracterização de Déficit Habitacional Total
Carência de infraestrutura urbana
INADEQUAÇÃO
HABITACIONAL
DÉFICIT
HABITACIONAL TOTAL
DÉFICIT
HABITACIONAL
Fonte: Autora, a partir de FJP (2021)
Adensamento de domicílios
Energia elétrica
Abastecimento de água
Esgotamento sanitário
Coleta de lixo
Inexistência de banheiro exclusivo
Número total de cômodos do domicílio igual a número de cômodos servindo de dormitório
Armazenamento de água inadequado
Piso inadequado
Cobertura inadequada
Inadequação fundiária urbana
Habitação precária
Coabitação
Domicílios rústicos
Domicílios improvisados
Unidade doméstica convivente déficit
Domicílio cômodo Ônus excessivo com aluguel urbano
Em 2019, o Déficit Habitacional Total calculado pela FJP ultrapassou a marca de 30 milhões de domicílios. Deste total, foram estimadas 24.893.961 unidades com uma ou mais característica da componente Domicílios Inadequados, o que significa 33% do total de domicílios brasileiros; somado ao Déficit Habitacional que refletia a necessidade de 5.964.993 novas unidades, especialmente por parte daquelas famílias cujo pagamento do valor do aluguel ultrapassa 30% do orçamento doméstico, ou seja, ônus excessivo com aluguel urbano (FJP, 2021). Em 2022, no contexto da pandemia de COVID-19, o cenário habitacional brasileiro agravou-se. O quantitativo de Domicílios Inadequados aumentou para 26.510.673 e o Déficit Habitacional subiu para 6.215.313 unidades. No que diz respeito às regiões brasileiras com maiores índices de Déficit Habitacional Total, estão Norte e Nordeste (FJP, 2024).
A supracitada conceituação e caracterização do Déficit Habitacional Total no Brasil visam contribui para o entendimento aprofundado a respeito da importância da operacionalização da Lei Federal 11.888/2008 que visa assegurar:
[...] o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, como parte integrante do direito social à moradia previsto no art. 6o da Constituição Federal [...] Art. 2º[...] § 1º. O direito à assistência técnica
previsto no caput deste artigo abrange todos os trabalhos de projeto, acompanhamento e execução da obra a cargo dos profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia necessários para a edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária da habitação (Lei Federal nº 11.888/2008, Art.1º e Art. 2º. Grifos meus).
Contextualização histórica da política nacional de ATHIS
Antes de discorrer sobre a Lei 11.888/08, é preciso registrar que, de fato, a assistência/assessoria técnica realizada por grupos com múltiplos saberes, como sinônimo de auxílio para planejamento e execução de melhorias habitacionais ou mesmo para a construção de novas moradias destinadas àquelas famílias economicamente desfavorecidas, é uma prática centenária no Brasil. Ao longo da história, em diferentes cidades, é possível identificar registros de assistência/assessoria técnica, especialmente, como atividade religiosa e caritativa ou, ainda, no âmbito da resistência popular e militância político-social. Isto é, no âmbito das políticas sociais para habitação de interesse social, registram-se experiências em diversos municípios brasileiros desde a primeira metade do século XX: ações locais, financiadas ou não pelo Estado, envolvendo profissionais de diferentes áreas do conhecimento com o objetivo de promover alternativas à regra remocionista e ao autoritarismo, hegemônicos à época. Entretanto, existe algum consenso na literatura relacionada às origens da ATHIS sobre o fato de que, tanto a experiência na favela de Brás de Pina no Rio de Janeiro durante os anos 1960, quanto a movimentação sindical e partidária realizada no estado do Rio Grande do Sul em meados dos anos 1970, são marcos no estabelecimento destas ações como direito social no Brasil.
A respeito da experiência da favela Brás de Pina, localizada na zona norte da capital carioca, resgata-se que em 1965 o Estado anunciou o processo de remoção desta. Frente à ameaça, os moradores se organizaram em torno da Associação local para desenvolver um Plano de Urbanização autofinanciado, que passou a contar com a Assessoria Técnica do Grupo QUADRA, cujo maior representante foi o arquiteto e antropólogo Carlos Nelson Ferreira dos Santos, um defensor da construção dos espaços urbanos “de baixo para cima”, ou seja, a partir de uma prática dialógica e reflexiva, o que requer um exercício pedagógico, gradual e democrático (Santos,1984). Entende-se que a relevância da experiência de Brás de Pina/RJ se dá tanto pela excepcionalidade de um processo popular participativo e autogerido para urbanização de uma favela dentro do contexto ditatorial, quanto pela frustração dos planos de remoção autoritária por parte do Estado daquelas famílias moradoras. Ao contrário, o que ocorreu em 1969 foi a execução do referido Plano Popular de Urbanização financiada pelo Estado e executado pela Companhia de Desenvolvimento de Comunidade2 - CODESCO.
A segunda experiência mencionada, considerada vanguarda da ATHIS no Brasil, ocorreu em 1975, quando a ideia de Assistência Técnica começou a ser pautada por arquitetos e urbanistas no âmbito do respectivo Sindicato em parceria com Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do estado do Rio Grande do Sul - CREA/RS. Na
2 A Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO) era um dos agentes promotores da política habitacional no Estado da Guanabara – atual Rio de Janeiro –, vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação do Banco Nacional de Habitação (SFH/BNH)
ocasião, foi criada uma comissão temática responsável pela construção e execução do Programa de Assistência Técnica à Moradia Econômica - ATME. Entre os profissionais envolvidos na referida comissão temática, estava o arquiteto Clóvis Ilgenfritz da Silva que, posteriormente, foi eleito vereador em Porto Alegre pelo Partido dos Trabalhadores. Em seu mandato como vereador (1989-2000), Clóvis Ilgenfritz promoveu ações pioneiras no campo da Assistência Técnica. Nos anos 1990, Clóvis ocupou o cargo de Deputado Federal, quando integrou o grupo que formulou e registrou na Câmara Federal o projeto de lei que serviu de base para a Lei Federal 11.888/2008, apresentado por Zezéu Ribeiro, também arquiteto e urbanista, eleito Deputado Federal pelo Partido dos Trabalhadores, pelo estado da Bahia em 2003. Neste sentido, entende-se que a importância histórica dessa movimentação sindical e partidária se dá, pois, foi a partir desta que decorreu o processo legislativo que culminou na Lei Federal 11.888 sancionada em 2008.
Apesar de sancionada, atualmente a Lei Federal 11.888/2008 não está regulamentada na maioria dos municípios brasileiros. Observa-se isto a partir de uma iniciativa do Conselho de Arquitetura e Urbanismo nacional (CAU/BR), com colaboração do coletivo Arquitetos pela Moradia, que construiu o Mapa da Arquitetura Social no país (figura 1). Esta inciativa reuniu sistematicamente informações sobre cidades que já dispunham de legislação própria e/ou programas específicos que regulamentassem a 11.888/2008 em questão. Em 18 de junho de 2021 o levantamento havia identificado 24 municípios, dos 5.570 existentes no país, com legislações alinhadas à Lei Federal3. Há ainda que se afirmar que, destes 24 municípios, alguns não possuem recursos para efetivação da ATHIS pública e gratuita.
Figura 1. Municípios brasileiros com legislações alinhadas à Lei Federal 11.888/2008
Fonte: CAU/BR,2021
A baixa aderência e regulamentação da Lei 11.888/2008 pelas prefeituras brasileiras reflete, principalmente, a sequência de uma reestruturação forjada nos anos 1980 e intensificada nos anos 1990, que reformatou a política pública para Habitação de Interesse Social – e, consequentemente, o Trabalho Social em Habitação – conforme afirmam Paz e Diniz (2020):
Os anos 1990 chegam intensificando processos de reestruturação produtiva e do Estado [...] As privatizações e a transferência de
3 Para acesso ao mapa virtual https://caubr.gov.br/moradiadigna/?page_id=772. Acesso em 18/06/2021.
responsabilidades estatais para o setor privado implantaram a terceirização como um modelo de gestão perverso, no qual o projeto, a obra, o trabalho social, a fiscalização, o gerenciamento de todas as ações passam a ser contratados por meio de processos licitatórios. As consequências desse modelo de gestão foi uma fragilização dos órgãos estatais na sua competência de controle estratégico das políticas, como agente regulador das relações que se estabelecem na sociedade (Paz e Diniz, 2020, p. 40, grifos meus).
Trabalho Social em Habitação
No final dos anos 1990, ocorreram alterações metodológicas nos programas federais para Habitação de Interesse Social. Para fins desta publicação, destacam-se as mudanças ocorridas no programa Habitar Brasil, promovidas logo após a realização de avaliações governamentais dos primeiros anos de seu funcionamento, avaliações estas orientadas, em parte, por indicadores apresentados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. Somaram-se a essas avaliações, reivindicações de movimentos sociais populares urbanos e instituições representativas de categorias profissionais. Enfim, toda esta pressão, fez com que em 1999 o Programa – que passou a se chamar Habitar Brasil-BID – incluísse nos custos de cada contrato também os recursos para o desenvolvimento do Trabalho Social, isto é, para desenvolvimento de ações de fortalecimento da mobilização, de capacitação profissional e educação sanitária4 . O Manual de Instruções do Habitar Brasil-BID (HBB) – elaborado em 1998 e atualizado em 1999 – definiu três objetivos para o Trabalho Social realizado no escopo de suas ações: “a) mobilização e organização do aglomerado; b) educação sanitária e ambiental; e c) geração de trabalho e renda”. Para tal, era demandado dos profissionais que integravam as equipes de Trabalho Social, que a metodologia fosse planejada e executada de modo que as intervenções sociais acompanhassem as etapas de intervenção física, isto é, “antes das obras; durante as obras; e após as obras e durante o pós-ocupação”, sendo cada qual com características próprias (HBB. Ministério das Cidades, s/d. p.57-58).
Por exemplo, para a etapa anterior às obras, isto é, para a elaboração do Trabalho Social, o Manual de Instruções do HBB orientava que a população fosse “estimulada a conhecer e opinar sobre as propostas para aquela área, inclusive decidindo quanto aos equipamentos públicos necessários”. Essa pactuação com a população se daria mediante “Termo de Adesão, Compromissos e Obrigações, a serem assinados por, pelo menos, 80% dos chefes-de-família.” (Op.Cite. p.57-58). Esse estímulo à participação da população, quer fosse via comissões temáticas ou por grupos representativos de segmentos populacionais, se tornou algo bastante emblemático nas ações do HBB, assim como o contato permanente dos profissionais (assistentes sociais, engenheiros, arquitetos e especialistas em meio ambiente) das Unidades Executoras com as populações atendidas, considerando que os escritórios do HBB se localizavam no interior dos territórios, a exemplo do programa FavelaBairro/RJ
4 Uma característica relevante das políticas, programas ou projetos de habitação para a população de baixa renda é que, “historicamente, foram locados nas secretarias ou departamentos de assistência social ou similares (promoção social, bemestar, ação social etc.), não vinculados aos programas de habitação e ao planejamento urbano” (Paz e Diniz, 2018, p. 07).
As ações do Trabalho Social no âmbito do HBB, desenvolvido por técnicos/as sociais, incluindo assistentes sociais, eram as seguintes (CFESS, 2016, p.39):
Mobilização e organização comunitária, Capacitação de lideranças, Educação popular,
Apoio à educação formal e combate ao analfabetismo, Qualificação e requalificação de mão de obra, Incentivo a grupos de produção, Constituição de cooperativas e/ou associações de produção, Preparação das famílias para a adequada apropriação dos serviços de infraestrutura e equipamentos sociais.
Ao observar as ações elencadas é possível caracterizá-las como importantes para o fortalecimento de ambientes democráticos, mas ao mesmo tempo, esta transferência de responsabilidades para a sociedade civil cria bases amplas para consolidação e aprofundamento da ideologia neoliberal. Neste sentido, Draibe (2002) entende o Trabalho Social como:
[...] o desenvolvimento de atividades de caráter informativo, educativo e de promoção social, visando ao desenvolvimento comunitário e à sustentabilidade do empreendimento, cumprindo uma agenda reformista nacional “sob a dupla chave da democratização e da melhoria de sua eficácia e efetividade” (Draibe, 2002 apud CRESS, 2016, p.39).
A partir de 2003, diante da criação do Ministério das Cidades, “a política urbana e habitacional ganhou robustez, alterou paradigmas, assentou-se nos pressupostos do planejamento, da integração das políticas voltadas ao desenvolvimento urbano” (Paz e Diniz, 2018, p. 01), incorporando os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e estabelecendo uma nova Política Nacional de Habitação. A concepção do Programa de Aceleração do Crescimento, em 2007, e do Programa Minha Casa Minha Vida, em 2009, impactaram profundamente sobre as redefinições do TSH. Assim, ocorreram mudanças no campo da normatização e regulamentação do TSH, com o objetivo de balizar as intervenções sociais no âmbito dos referidos programas. Entre essas, encontram-se a IN nº27/2007; a IN nº50/2008; a IN nº08/2009 e a Portaria nº21/2014 que, apesar de estabelecerem mudanças operacionais, reafirmaram o Trabalho Social como componente fundamental e obrigatório na Política Urbana, da Habitação e do Saneamento.
Sobre a composição da equipe técnica responsável pelo planejamento, execução e avaliação das ações inerentes ao TSH, a Portaria nº21/2014 – principal marco jurídico do TSH – estabelece que esta equipe deva ser multidisciplinar, constituída por profissionais com experiência na área, sob coordenação de assistente social ou socióloga(o), preferencialmente. Portanto, o TSH nessa esfera governamental é compreendido como serviço público que viabiliza o acesso a direitos e que não é uma atribuição exclusiva das assistentes sociais, e por isso mesmo, estas profissionais “precisam reconhecer e qualificar-se para a interlocução com diferentes sujeitos que interagem e disputam esse lugar” (Paz e Diniz, 2020, p.08).
Prestes à extinção do Ministério das Cidades (2003-2019) foi publicada a Portaria nº464/2018, que dispõe detalhadamente sobre o Trabalho Social nos Programas e Ações do referido Ministério (incluindo o PMCMV-Entidades), conceituando-o como:
[...] conjunto de estratégias, processos e ações, realizado a partir de estudos diagnósticos integrados e participativos do território, compreendendo as dimensões: social, econômica, produtiva, ambiental e político institucional do território e da população beneficiária. Esses estudos consideram também as características da intervenção, visando promover o exercício da participação e a inserção social dessas famílias, em articulação com as demais políticas públicas, contribuindo para a melhoria da sua qualidade de vida e para a sustentabilidade dos bens, equipamentos e serviços implantados (Ministério das Cidades, Portaria nº 464/2018, grifos meus)
As exposições realizadas sobre o TSH no escopo do HBB e outras ações do Ministério das Cidades nos revelam a ocorrência de mudanças no escopo do Trabalho Social em Habitação. Respectivamente, de um Trabalho focado na participação cidadã, gestão democrática dos recursos implantados, transparência das informações e intersetorialidade das políticas públicas, “sob os eixos da mobilização e organização comunitária, educação sanitária e ambiental e geração de trabalho e renda”; para um Trabalho Social focado na sustentabilidade dos empreendimentos, “reduzindo-o a um produto que deve responder às exigências do mercado” (Paz e Diniz, 2018, p. 12).
Há, portanto, que se atentar ao fato de que, a depender da natureza da iniciativa que contrata a/o profissional para elabora o TSH (natureza governamental, não-governamental, movimentos sociais, construtoras, imobiliárias etc.), o perfil do TSH pode variar entre menos ou mais conservador ou progressista. Assim, quando o TSH segue uma perspectiva mais conservadora, por exemplo, é campo de ação que ora se expressa como ajuda aos mais pobres, ora como disciplinamento das camadas populares, à favor da manutenção da ordem burguesa. Contrapondo-se a esta perspectiva, resiste o TSH comprometido com a mediação, propulsão da participação e organização autônoma da população beneficiária. Havendo entre esses, muitas nuances (Paz; Diniz, 2018; 2020).
Perspectivas no TSH: subsídios para o debate sobre Serviço Social na ATHIS
O Trabalho Social em Habitação realizado por meio de equipes multidisciplinares no âmbito da ATHIS tem sido alvo de importantes discussões promovidas por especialistas no tema. Neste sentido, cabe ressaltar algumas participações ocorridas na Oficina sobre Assistência Técnica e Direito à Cidade, importante realização da FNA que durou doze dias em março de 2014 e que, posteriormente, foi transcrita e sistematizada em publicação igualmente intitulada.
Durante a Oficina, Regina Bienenstein, Profa. Dra. na EAU/UFF, afirmou que é preciso envolver outros profissionais nas práticas de ATHIS. Segundo ela, “além de arquiteto e do engenheiro, [é preciso] o assistente social e o advogado. Com isto, é possível tratar integralmente da questão da habitação” (in Salazar; Stroher; Grazia, 2014, p.64, grifo meu).
Igualmente, Edilson Mineiro, assessor jurídico da União dos Movimentos de Moradia em São Paulo disse que a ATHIS “precisa ser multidisciplinar com os conhecimentos da Engenharia, da Arquitetura, do Trabalho Social [...]” (ibidem, p.83, grifo meu).
Neste mesmo evento, a Profa. Dra. Isabel Cardoso, da Faculdade de Serviço Social da UERJ, afirma que sob o ponto de vista legal (Lei 11.888/2008) o trabalho da assistente social em ações de ATHIS não está integrado. Entretanto, “ o Serviço Social, enquanto profissão, tem significado histórico, teórico e prático que justifica sua integração no trabalho interdisciplinar no campo da Assessoria Técnica” (Op. Cit., p.92, grifo meu).
Além das afirmativas supracitadas, que estão registradas em publicação oficial, ao longo de minha atuação como assistente social em ações em campo para ATHIS e durante participações em eventos relacionados à temática, por diversas vezes, pude ouvir profissionais de Arquitetura afirmando sobre a necessidade de ter assistentes sociais nas equipes. Neste sentido, resgata-se a declaração da Arquiteta Leslie Gonzales, especialista em ATHIS, a seguir:
O assistente social é essencial numa equipe de ATHIS, pois é impossível realizar os trabalhos sem um olhar, cuidado, conhecimento das dinâmicas sociais da população envolvida. Coisa que para o arquiteto não há formação adequada (Arquiteta Leslie Gonzales – especialista em ATHIS, 2022 apud Rocha, 2022, p.191).
Apesar do reconhecimento da importância do Serviço Social em ATHIS, há também relatos sobre a dificuldade de encontrar assistentes sociais com conhecimentos específicos sobre ATHIS e/ou experiência na área. Embora as diretrizes curriculares para o curso de bacharelado em Serviço Social oriente para formação de profissionais capazes de atuar nas “expressões da questão social, formulando e implementando propostas de intervenção para seu enfrentamento” (CFESS, 2002, p.01), a ATHIS não chega a ser um tópico de estudo previsto.
Sempre trabalhei com assistentes sociais. Em alguns momentos, tivemos dificuldade de encontrar assistentes sociais com experiência para trabalhar com ATHIS, moradia ou questões urbanas (Arquiteta Sandra Kokudai –especialista em ATHIS, apud Rocha, 2022, p.191).
Durante o IV Seminário de Habitação de Interesse Social-UFJF, a Profa. Dra. Letícia Maria de Araújo Zambrano, da Faculdade de Arquitetura da UFJF, afirmou:
[...] a gente sempre tem que estar em projetos interdisciplinares [...], justamente porque os olhares se complementam. Quem faz a melhor interlocução com os moradores são as pessoas do Serviço Social, quem nos orienta do que pode ou o que não pode, de caminhos possíveis, é o pessoal do Direito, tem o pessoal que entende dos mapeamentos, do campo, que é da Geografia. Cada área vai complementando nessa costura, então quanto mais áreas a gente consegue envolver é melhor [...] (Letícia Zambrano, 2021 apud Rocha 2022, p.191).
As declarações apresentadas apontam para a relevância do Trabalho Social em ATHIS, sobretudo, quando este é integrado por assistentes sociais comprometidas com a participação e o protagonismo das populações atendidas nas ações, sabidamente pilares da Educação Popular. Por este motivo, a dimensão educativa do trabalho do Serviço Social também merece abordagem.
Farage e Helfreich (2020) afirmam que a dimensão educativa historicamente é presente nas ações de assistentes sociais. Ao caracterizar Educação Popular, as autoras apresentam algumas acepções que também devem ser consideradas nos debates acerca das contribuições do Serviço Social em ações para ATHIS, sobretudo junto aos coletivos:
1-como investimento político que constrói um lugar voltado para o processo de conhecimento da realidade. 2-como espaço que vai possibilitar o trânsito do senso comum ao bom senso. Lugar de apropriação individual e coletiva, no qual está presente uma dimensão ideológica fundamental: a de compreender a base de estruturação da vida social sob o capitalismo e da conformação possível de alternativas de organização da vida social, sob outras bases. 3-como espaço das classes trabalhadoras a conformar outro NÓS, antagônico ao hegemônico, este último constituído sob a égide do individualismo, da ausência de solidariedade etc. Portanto, espaço no qual possam ser experimentados novos valores, novos pensares, numa dimensão de práxis na qual ativamente se busca a elaboração da realidade a partir de uma perspectiva humano-social. 4-Finalmente, um espaço no qual os sujeitos possam exercitar o singular exercício de suas próprias sínteses, redefinindo e recriando referências de vida, sentidos novos à sua existência individual e coletiva (Silveira, 2004, p. 122 apud Farage; Helfreich, 2020, p.54).
Registra-se, assim, que a dimensão educativa do Serviço Social em ATHIS não deve se limitar às questões sanitárias e ambientais, mas sempre que possível estendê-la para a totalidade e complexidade da vida humana e das relações sociais inerentes a essa, portanto, na perspectiva da Educação Popular.
No que diz respeito ao quantitativo de assistentes sociais inseridas no TS em ATHIS, a pesquisa intitulada Levantamento nacional de agentes que atuam em prol da assistência técnica em habitação de interesse social5, apresentada pelo Observatório das Metrópoles-IPPUR/UFRJ durante o Seminário Nacional de ATHIS, realizado no Rio de Janeiro em novembro de 2019, revelou que o Serviço Social constitui a terceira categoria profissional mais atuante nas ações de ATHIS identificadas no Brasil, ficando atrás apenas da Arquitetura e Engenharia, profissões que possuem protagonismo declarado na Lei 11.888/2008.
Embora a presença de assistentes sociais seja marcante e relevante nas ações para ATHIS, não existem orientações específicas para atuação dessas profissionais inseridas em projetos/programas em ATHIS (individual ou coletiva) no âmbito das políticas públicas. A Profa. Dra. Isabel Cardoso, durante evento sobre Assistência Técnica, afirmou acerca da necessidade de debates que tomem como referência as atuais normativas para que se avance,
5 A pesquisa é fruto da Cooperação IPPUR/UFRJ/Observatório das Metrópoles/GT Habitação e Cidade-CAU/RJ, Seminário Nacional de ATHIS-CAU/RJ e BR Cidades.
sobretudo, no sentido das especificidades do Trabalho Social em ATHIS. A clareza e relevância da análise justifica a longa citação a seguir:
No Habitar Brasil-BID tivemos uma metodologia do Banco para o trabalho social que passou a valorizar a chamada ação social como um componente obrigatório. Vejam que quem falava dessa obrigatoriedade era o Banco e isto não estava na Lei no campo da Política de Habitação. Somente depois, com a criação do Ministério das Cidades, é que o trabalho social vai compor a Política Urbana, da Habitação e do Saneamento. Neste componente social, o lugar do Serviço Social, até dezembro de 2013, garantia que ele coordenasse e fosse o responsável técnico, junto com sociólogos, das equipes e projetos do trabalho social. Com a Portaria 21/2014, do Ministério das Cidades, nós perdemos esta prerrogativa e a minha fala não é corporativa. O lugar que nós estamos perdendo não é apenas um lugar profissional. No lugar de assistentes sociais e sociólogos pode entrar qualquer outro profissional que comprove experiência em trabalhos sociais em comunidades. O texto da referida portaria passou, então, a tratar a responsabilidade desses profissionais, logo a sua contratação na qualidade de responsáveis técnicos, como algo facultativo, não mais obrigatório. É uma nova normativa do trabalho social que com certeza vai ser também uma referência necessária para a discussão da Assistência Técnica (Cardoso apud Salazar; Stroher; Grazia; 2014, p.101, grifos meus).
Além disso, também são poucas as referências bibliográficas que abordam a temática do Serviço Social na ATHIS. Portanto, com objetivo de fornecer subsídios ao debate, serão apresentados e comentados a seguir os conteúdos de duas publicações que tratam especificamente sobre o Trabalho Social em ATHIS, enfatizando a presença do Serviço Social.
A primeira publicação trata-se da cartilha intitulada Assistência técnica e direito à cidade em instituições de ensino superior, produzida pela Defensoria Pública do Estado da Bahia, que apresenta como objetivo o incentivo “às Instituições de Ensino Superior (IES) e estudantes a se engajarem na causa, apontando caminhos práticos para fazer acontecer de forma organizada, eficiente e legal” (Bahia, 2020, p.12). Esta cartilha afirma, de modo bastante objetivo, sobre a necessidade da participação do Serviço Social nas ações para ATHIS. O texto chama atenção para algumas diretrizes inerentes ao fazer profissional das assistentes sociais inseridas em equipes multidisciplinares para ATHIS:
[...] destacam-se as diretrizes no campo da participação e mobilização social: Comunicação aproximativa, acolhimento, organização de documentação, pactuação de responsabilidades, orientação às famílias sobre atividades e prazos; Mediaçãodeconflitos, dimensão dialógica e cultura de paz; Comunicação social, esclarecimentos, atendimentos, retornos, manutenção de fluxo contínuo de informações, entre famílias e equipe de profissionais, gestores, etc.; Encaminhamentos diversos das famílias a órgãos públicos e organizações em relação a outros campos dos direitos sociais (Bahia, 2020, p. 35, grifos meus).
Bahia (2020) afirma ainda que, no âmbito do trabalho multidisciplinar, envolvendo os cursos de Serviço Social, Direito, Arquitetura e Urbanismo e Engenharia, “a porta de entrada é o Serviço Social, que desde a comunicação aproximativa, a triagem, a orientação às famílias, a mediação de conflitos, prepara a entrada no campo dos demais profissionais” (Bahia, 2020, p.36, grifos meus).
A segunda publicação em questão é o Guia da Assistência Técnica para Habitação Social: o passo a passo. Como fazer? elaborado pelo CAU/SC em parceria com o Instituto Educacional para Conscientização e Realização de Políticas Públicas (ICPP). Este Guia afirma que o “trabalho social no Programa de ATHIS tem que focalizar a mobilização e comunicação social, com vista a promoção contínua de ações de informação, conscientização, organização e capacitação da população beneficiária” (CAU/SC, 2019, p. 70). Para destacar a importância da mobilização social como prática comum ao Trabalho Social em ATHIS, o Guia apresenta o conceito a partir da ótica de distintos autores.
[...] uma mobilização ocorre “quando um grupo de pessoas, uma comunidade, uma sociedade decide e age com um propósito, um objetivo comum, buscando, quotidianamente, os resultados desejados por todos (Toro e Werneck, 1997, p.11 apud CAU/SC, 2019 p.71).
[...] a mobilização social “é a reunião de sujeitos que definem objetivos e compartilham sentimentos, conhecimentos e responsabilidades para a transformação de uma dada realidade, movidos por um acordo em relação a determinada causa de interesse público” (Henriques, 2004 apud CAU/SC, 2019 p. 71).
Mobilizar é movimentar pessoas em direção a um objetivo comum. Comover, emocionar, sensibilizar um grupo de pessoas para a importância de uma causa ou problema de sua realidade. Construir com elas uma nova visão sobre essa realidade, objetivos compartilhados e ações para alcançálo. A mobilização social, portanto, é práxis educativa que conjuga teoria e método, saberes e técnicas da ciência e da arte, para transformar pessoas em sujeitos conscientes e ativos da transformação da sua realidade” (MCIDADES/PROJETOS DEMONSTRATIVOS COM+ÁGUA, 2008, p.10 apud CAU/SC, 2019, p. 71).
Sobre a dimensão da comunicação social, o Guia afirma que implica na “dinâmica de compartilhamento de informações através de estratégias e ferramentas diversas, viabilizando o diálogo com a sociedade e o fortalecimento do processo de mobilização social” (CAU/SC, 2019, p. 73). Entende-se que a comunicação com a população envolvida nas ações de ATHIS deve ir além do aspecto racional e meramente formal do repasse de informações. Portanto, essa comunicação deve partir da compreensão da realidade local, hábitos, nomenclaturas e construção de vínculos afetivos. Será essa comunicação, baseada em questões que atravessam o cotidiano dos moradores, fundamental para o estímulo à participação popular emancipatória.
Considerações finais
Este capítulo admite a ATHIS como espaço profissional da/do assistente social, ainda que a Lei Federal 11.888/2008 não o mencione. O Trabalho Social realizado por assistentes sociais na política de ATHIS encontra respaldo tanto no significado sóciohistórico da profissão, quanto nos atuais debates teóricos e metodológicos sobre Trabalho Social em Habitação.
A partir das exposições realizadas neste trabalho, admitem-se três sentenças a respeito da referida atuação profissional. A primeira delas é o fato de que, apesar da atuação de assistentes sociais em equipes de ATHIS apresentar pertinência e, inclusive, ser desejável por parte de profissionais de Arquitetura e Urbanismo especialistas na temática, ainda é escasso o referencial bibliográfico sobre Serviço Social em ATHIS. Portanto, faz-se mister a ampliação do debate no interior da categoria e para fora dela, quer seja por meio de incentivo à produção de pesquisas científicas ou atividades de extensão acadêmica, no sentido da construção de uma práxis consonante ao projeto ético-político hegemônico do Serviço Social brasileiro. Igualmente, é urgente a movimentação política para que a atuação de assistentes sociais na ATHIS esteja legalmente respaldada6
A segunda constatação é sobre a necessária atenção às variações contratuais e laborais colocadas às assistentes sociais no campo da política de ATHIS. Isto porque as demandas e resultados do Trabalho Social em ATHIS tentem a se modificar, basicamente, a partir de três aspectos:
Natureza institucional: variações relacionadas à natureza da empresa contratante (governamental, não-governamental, movimentos sociais, construtoras, imobiliárias etc.) das/dos assistentes sociais para elaboração, execução e avaliação do TS em ATHIS, materializando projetos menos ou mais progressistas, intersetoriais e emancipatórios. Assim, a depender da natureza institucional, o TS em ATHS pode se expandir além das questões relacionadas à triagem e atendimento das famílias moradoras dos domicílios beneficiários das intervenções físicas, e incluir alguns elementos importantes da Educação Popular, que vão desde a mobilização para formação de grupos focais (comunicação, obras, resíduos/ambiente, compras, etc.) até a promoção de ações coletivas para reivindicar do Estado os serviços, infraestrutura e outras questões relacionadas ao Direito à Cidade e cidadania. Esta dimensão se sustenta na medida em que a profissão se inscreve no campo das atividades que incidem na formação da cultura, podendo contribuir para atenuar, conformar ou avançar o processo de formação da consciência (Farage e Helfreich, 2020). Isto é, ora reforçando a ideologia dominante, ora apresentando elementos para o fortalecimento de ideias e princípios contra hegemônicos.
Perfil demandatário: variações relacionadas ao perfil de quem pleiteia as ações de ATHIS, ou seja, o perfil beneficiário. Em ações para atendimento à unidade habitacional as contribuições de assistentes sociais tendem a ser mais limitadas,
6 Em 8 de março de 2024, o Grupo de Trabalho Social da iniciativa +ATHIS emitiu uma Nota Técnica indicando todos os pontos da Lei 11.888/08 que necessitam de revisão para inclusão do Trabalho Social realizado por assistentes sociais e categorias afins.
especialmente se esta unidade habitacional estiver em área não urbanizada/processo de urbanização. Sob essas circunstâncias, a atuação do Serviço Social aproxima-se mais das vertentes conservadoras do que aos objetivos de transformação social contidos no projeto ético-político profissional – PEP, pois não conseguem realizar atividades em escala. Enquanto na ATHIS coletiva, quer seja junto aos movimentos sociais populares urbanos ou populações politicamente não-organizadas, as contribuições das assistentes sociais tendem a se tornar mais amplas e afinadas com o PEP do Serviço Social.
Fase projetual: variações relacionadas às etapas em que as intervenções físicas se encontram, ou seja, antes, durante ou depois do Projeto/Obra7. A depender do momento em que se inicia a participação de assistentes sociais no TS em ATHIS, alteram-se os resultados, podendo impactar, por exemplo, dos níveis de participação popular e qualidade das ações formativas junto aos moradores e equipes de trabalho. Esta última questão pode (e deve) ser superada através da participação ativa e não subalterna – que restringe a atuação à dimensão técnico-operativa, em detrimento das dimensões teórico-metodológica e ético-política – de profissionais de Serviço Social, desde a fase de concepção do projeto/programa de ATHIS, permanecendo até o pósobra, incluindo monitoramento e avaliação dos resultados.
A terceira constatação é que as contribuições realizadas por assistentes sociais no âmbito do Trabalho Social em ATHIS tornam-se mais eficazes para transformação social, quando focadas na melhoria das condições de acesso à moradia adequada e serviços públicos básicos de maneira articulada e sob a perspectiva do direito, não da caridade. Igualmente ocorre, quando a atuação e encaminhamentos realizados por assistentes sociais respondem às demandas comunitárias no sentido do apoio e fortalecimento da organização popular.
Neste sentido as contribuições de assistentes sociais inseridas em equipes multidisciplinares de ATHIS podem ser agrupadas em quatro eixos principais:
Eixo I – Comunicação e articulação intersetorial: contato permanente com atores sociais locais (ONGs, associações, institutos, postos de saúde, escolas e outros equipamentos públicos), tanto para planejamento metodológico e início das ações no território, quanto para legitimar a permanência das equipes e desenvolvimento da ATHIS. Ressalta-se que na interação com demais membros da equipe técnica durante o atendimento às populações beneficiárias (sobretudo na presença física desses moradores) para que a comunicação se torne profícua, deve-se orientar a comunicação pelas premissas do diálogo e da problematização, por meio de vocabulário acessível e humildade epistemológica.
Eixo 2 – Construção de Instrumentos: desenvolvimento de elementos técnico-operativos (estudos sociais, pesquisas, entrevistas, outros) objetivando planejamento metodológico das ações, bem como a triagem e seleção das famílias com perfil para ATHIS; além da produção de relatórios inerentes às etapas dos projetos. Por certo, o Serviço Social possui especificidades em sua instrumentalidade, mas destaca-
7 A ATHIS pode significar a oferta pública e gratuita de projetos arquitetônicos, acompanhados ou não da execução das obras igualmente subsidiadas pelo Estado.
se que na interação com demais profissionais é possível desenvolver materiais (cartografias afetivas, dinâmicas juntos aos moradores, grupos temáticos etc.) importantes para potencialização dos resultados positivos da ATHIS.
Eixo 3 – Visita domiciliar8 (multidisciplinar ou sigilosa): consiste em atividade de reconhecimento da realidade social de determinada família. No formato multidisciplinar, a visita objetiva o diálogo in loco sobre ATHIS; o entendimento do contexto familiar e do modo de vida e respectivas subjetividades; e a compreensão das inadequações da moradia e, sobretudo, suas potencialidades. Durante a visita domiciliar, a profissional do Serviço Social é capaz de construir um fluxo dialógico com os moradores acerca daquela realidade, das necessidades e desejos, tudo isso contribui significativamente para a construção do projeto personalizado, elaborado por profissionais de arquitetura e/ou engenharia. Sob o formato sigiloso, privativo do Serviço Social, a visita permite ao profissional o aprofundamento de demandas familiares/individuais mais sensíveis.
Eixo 4 - Mobilização e Estratégias para obras: na interação com demais membros da equipe técnica e atores sociais locais, as/os assistentes sociais podem mobilizar moradores que, juntos, são capazes de problematizar a realidade territorial e contextos familiares, em busca de alternativas (estratégias individuais ou coletivas) para execução das obras projetadas, sobretudo, considerando a pluralidade nas conformações familiares em um mesmo território; a existência de segmentos populacionais em condições de extrema pobreza (por exemplo, para substituição de telhado deve-se buscar o abrigamento temporário de família/indivíduo); as dificuldades de acesso à força de trabalho especializada; organização de mutirões etc.
Dada materialidade dos fatos e análises expostas, acredita-se que as constatações deste trabalho contribuem com futuros debates e servem para balizar o TS em ATHIS realizado por assistentes sociais. Por fim, destaca-se que as contribuições de assistentes sociais – agrupadas neste capítulo sob quatro eixos principais – podem constar em Termos de Referência para atuação de profissionais de Serviço Social, a fim de romper com a reprodução de uma racionalidade burguesa (positivista) que se limita a pragmatismos. E, desta forma, buscar evitar que a eficácia e eficiência do Trabalho Social em ATHIS realizado por assistentes sociais sejam medidas exclusivamente pelo alcance das metas quantitativas contidas em Termos de Referência de programas/projetos de ATHIS [por exemplo, número de intervenções físicas realizadas]. Essas metas quantitativas “são ações necessárias para responder a um nível da realidade (o do cotidiano) mas são insuficientes para responder às complexas demandas do exercício profissional” (Guerra, 2000, p. 10).
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8 Apesar da visita (domiciliar ou institucional) ser considerada pela disciplina do Serviço Social como instrumento técnicooperativo direto, para fins deste trabalho, considerando a importância da visita multidisciplinar, esta recebeu o destaque.
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Capítulo 11
Trabalho profissional em favelas: cotidiano e particularidades na assistência social carioca
Carla Cristina Marinho Piva
Introdução
O presente texto é resultado de um estudo para elaboração da tese de doutorado e teve como proposta principal, analisar como se configura o trabalho profissional de assistentes sociais na Política Pública de Assistência Social, que atuam nas favelas de Rollas e Antares, ambas localizadas no Bairro de Santa Cruz na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Buscou-se compreender a organização dos processos de trabalho e nesta tônica, trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com assistentes sociais da gestão da Proteção Social Básica (PSB), Proteção Social Especial de Média Complexidade (PSE), Coordenadoria de Assistência Social (CAS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS/RJ). As favelas como processo social-econômico do capitalismo, as formas pelas quais o Estado intervém nas conformações dos territórios desiguais, o desenho da gestão municipal nas relações com esta classe de trabalhadores e as reflexões sobre alguns aspectos da sociabilidade das favelas de Rollas e Antares, constituíram bases centrais para as reflexões e análises críticas. O Estado e os grupos milicianos compõem uma “dupla regência” no que concerne ao poder e ao controle, estabelecendo “regras” para esses territórios. Ao adentrar o tema da violência urbana e suas distintas expressões no Rio de Janeiro, constata-se que o fenômeno dos conflitos armados se materializa pelas relações de disputas entre diferentes grupos nos territórios. A partir da análise do capitalismo de desenvolvimento desigual e combinado, o Estado e a formação do espaço urbano na cidade, discute-se o trabalho profissional nos cenários da violência. O estudo suscitou conhecer a gestão do trabalho de assistentes sociais da SMAS-RJ e suas particularidades nas unidades dos CRAS e CREAS que atendem as favelas de Rollas e Antares. Pesquisar as formas de interferências dos conflitos armados nos territórios e as respostas profissionais para a organização planejamento e execução do trabalho nestas favelas na cidade, identificar como se apresentam as alianças e organizações das(os) assistentes sociais com outros trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), instituições e lideranças de moradores,, am, pressupõe entender os desafios impostos ao trabalho e as respostas de mobilização, organização coletiva e resistências desta categoria , considerando uma conjuntura marcada por políticas públicas regressivas, cunhadas pelos efeitos destrutivos do capital financeiro na fase mundializada neoliberal.
Entre o cotidiano e a interface com os estudos
A necessidade de compreensão das determinações políticas e econômicas da política pública de Assistência Social brasileira, numa perspectiva crítica, impulsionou a elaboração
deste texto. No que tange à perspectiva do trabalho profissional, a pesquisa apoiou-se na compreensão de que, além das requisições profissionais estabelecidas pela política pública em suas normas e documentos sistematizadores, também sofre interferência direta das relações de poder que se estabelecem nos territórios.
Entende-se que, nesse cenário de disputas, o exercício profissional integra processos de trabalho coletivos, a partir de estratégias para o enfrentamento do cotidiano marcado por dominação e por disputas nas favelas. Refletir sobre o exercício profissional pressupõe localizar as determinações fundantes para o trabalho e “[...] suas medições em relação à esfera dos serviços que prestam diretamente serviços sociais ou atuam nos processos de assessoria, planejamento, controle e intermediação dos mesmos” (Almeida; Alencar, 2015, p. 163).
Para explicitar o trabalho nas diversas dimensões das favelas, buscar entender o cotidiano e suas particularidades é importante, como forma de superar uma perspectiva homogeneizada desses territórios. A apropriação do cotidiano das favelas sugere atribuir visibilidade às contradições e às relações sociais mediatizadas pelas condições materiais de existência dos moradores, além de identificar as estratégias articuladas pelas(os) assistentes sociais. Na resistência à criminalização das classes subalternas no cenário ultraliberal, a pesquisa centrou-se na aproximação com o cotidiano de assistentes sociais, sujeitos coletivos que, representando a política pública de Assistência Social carioca, atuam nessas favelas, trabalhadoras(es)es inseridas em desafios configurados pela lógica produtiva do trabalho, a segregação dos territórios e a violência armada.
O complexo processo de reestruturação produtiva do capital, ancorado na financeirização, na inércia especulativa e na precarização do trabalho, tem desnudado seu potencial destrutivo sobre a classe trabalhadora e sua subjetividade. Conforme Santos (2012), a não superação da perspectiva criminalizante distancia-nos das raízes de classe presentes e dificultam uma opção consciente frente a elas. O trabalho constitui-se como representante da força dos impulsos empregados para execução, abrindo possibilidades de construção de subjetividades, correspondentes a cada época histórica e tem por domínio uma forma de produção.
O movimento de análise suscitou uma reflexão histórico-crítica, que envolveu debates sobre temas como as determinações do capitalismo de desenvolvimento desigual e combinado, a interposição do Estado na produção dos territórios desiguais e a formação do espaço urbano. Foi realizada uma alusão ao processo de constituição histórica das favelas cariocas, apresentadas informações empíricas sobre a estrutura, agenda e sujeitos que protagonizam o elenco da política de Assistência Social no Rio de Janeiro na última década. O cotidiano de Rollas e Antares é apreendido a partir de sucessivas inserções com o campo de pesquisa.. Com o intuito de conhecer a dinâmica de circulação dos moradores e trabalhadores, ocorreram trajetos reiterados do Centro Urbano da Cidade para o Bairro de Santa Cruz na Zona Oeste, em diferentes modalidades de transportes coletivos. Constatouse que essas favelas são marcadas pela ausência de políticas públicas e pela presença de grupos que controlam esses territórios.
O estudo partiu da ideia de que é preciso que a categoria de assistentes sociais que atuam na política pública de Assistência Social, compreenda que a baixa qualidade de intervenção do Estado possibilita o surgimento de grupos que buscam controlar e organizar o espaço, partindo de uma lógica particular. Reafirma-se a importância do compromisso da categoria profissional com a leitura crítica do cotidiano do trabalho. Recuperando Iamamoto
(2000, p. 151): “[...] desvendar a prática profissional cotidiana supõe inseri-la no quadro das relações sociais fundamentais da sociedade, ou seja, entendê-la no jogo tenso das relações entre as classes sociais, nas frações e das relações destas com o Estado Brasileiro”.
É apropriado resgatar que a Assistência Social1 adquire visibilidade como política pública no Brasil, ao ser incluída como uma das políticas que compõem o sistema de Seguridade Social brasileiro na Constituição Federal2 de 1988, formando a tríade com a Saúde e a Previdência Social. No entanto, apesar dos esforços para implementar seus dispositivos durante os anos 1990, somente em 2003, com a eleição do Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente, foi regulamentada pela Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS (1993). A primeira década dos anos 2000 foi cadenciada por uma perspectiva de reestruturação da política de Assistência Social como um sistema descentralizado e participativo. Os novos sujeitos na conjuntura nacional “[...] conseguiram dar sustentação a uma nova institucionalidade para esta política, ao incluí-la na agenda do Governo e aprovar o novo sistema de gestão, chamado SUAS” (Paiva, 2014, p. 18).
Na política de Assistência Social inaugurada em 2004, normas e resoluções compuseram a agenda do primeiro Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Esse recondicionamento da assistência implicou também uma profissionalização da área, com organização dos serviços, procedimentos e processos. A implementação descentralizada da Assistência Social no Rio de Janeiro na gestão César Maia na Prefeitura da cidade, trouxe uma série de conflitos com o meio profissional do Serviço Social, incluindo os organismos representativos da categoria das(os) assistentes sociais. Ainda que tenha aumentado o número de técnicos concursados, os procedimentos para qualificação e estudos, bem como o conjunto do aparato técnico de exercício do trabalho, evidenciou-se uma assistencialização da profissão, burocratização da ação profissional e tensionamento das relações de trabalho pelo excessivo controle de produtividade e pela intensificação do trabalho.
Em 2016, identifica-se o aumento expressivo das múltiplas desigualdades, perdas dos direitos trabalhistas, acirramento da violência armada, entre outros dilemas societários. Foi sob a regência de Jair Messias Bolsonaro no Governo Federal, que se constituiu um governo ultraliberal de características autoritárias. Localiza-se um duplo desafio: a involução política de um governo conservador e a pandemia da Covid-19. As perdas das vidas e adoecimento de muitos trabalhadores são constatadas pelas estatísticas do MS (Ministério da Saúde) e estudos de autores como Calil (2021) e a conjuntura ultraliberal com Demier (2020).
Particularidades do trabalho nas favelas: entre cenários de dominação e disputas
O fenômeno da violência urbana nas cidades é uma questão aqui destacada, não somente pelo resultado das mortes por conflitos armados entre a segurança pública e os grupos que controlam as favelas, mas por representar um cenário para o trabalho de assistentes sociais que atuam nas favelas e periferias da cidade. As experiências vivenciadas e as leituras trouxeram indagações sobre as formas do exercício profissional nas favelas, por
1 O SUAS foi aprovado pela IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, e se constituiu por meio da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de 2004 e a Norma Operacional Básica (NOB) de 2005.
2 Os artigos 203 e 204 delimitaram a política no Capítulo II, que trata da Seguridade Social. A Constituição caracterizou a organização da política de assistência social, com financiamento da Seguridade Social.
vezes descolado de uma análise de conjuntura e um processo de reflexão crítica em conexão com a teoria que orienta o trabalho. Nessa realidade complexa, ressalta-se a importância de compreender algumas dimensões que lhe dão forma:
● Política nas relações com o Estado;
● Institucional que transita nas atividades das(os) assistentes sociais;
● A organização dos processos de trabalho;
● Gestão de recursos humanos;
● Ideias representadas que atravessam o cotidiano formal das normas e regulamentos.
Fazendo um balanço com a atualidade, a partir de inquietações e questões reiteradas no cotidiano profissional, o diálogo com a Academia pela participação em grupos de pesquisa e o aprofundamento das leituras e estudos concretizados no Mestrado, possibilitaram reunir lentes para realizar novas leituras da realidade e interpretar criticamente o espaço do trabalho a partir do acúmulo de observações e análises conjunturais. Essa acuidade no campo da dimensão teórico-metodológica e política conduziu a algumas pontuações.
Preliminarmente, a compreensão de que, apesar dos avanços representados pela Política de Assistência Social por meio do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) implantado em 2005 no território brasileiro e toda a “engenharia” regulatória no sentido da normatização dos direitos conquistados, identificou-se que este aparato não produziu um eco capaz de interferir efetivamente para mudanças nas condições objetivas de trabalho das(os) assistentes sociais na política pública de Assistência Social no município do Rio de Janeiro. A configuração do trabalho das(os) assistentes sociais na política pública de Assistência Social na última década (2010-2020), aponta para um revisionismo do gerencialismo produtivista na SMAS-RJ, plasmado pelas metas produtivas como resultado das ações dessa classe de trabalhadores. Para além das contradições de naturezas políticas e técnicas enfrentadas no cotidiano do exercício profissional, na última década eclode uma questão que se tornou desafiadora para atuação das(os) assistentes sociais na Assistência Social carioca: o acirramento da violência urbana3 nas favelas, materializada pelos conflitos armados nos territórios.
Considerando a teoria necessária para apreender o ser social na sua constituição e desenvolvimento histórico-dialético, denotam-se veredas que ensejam incorporações à atividade profissional, resistindo à concepção própria e funcional à sociedade do capital Marx e Engels (2007) afirmam a importância do entendimento da natureza histórica do Estado e seu papel destinado ao processo de reprodução social. Entram em cena as relações com a classe dominante a partir
[...] da forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições comuns passam pela mediação
3 Em 2016, fui transferida de lotação do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Nelson Mandela que atendia o Complexo da Maré, para compor a equipe técnica da Gerência de Desenvolvimento e Educação Permanente (GDEP) da Coordenadoria de Geral de Gestão do Sistema Municipal de Assistência Social (CGSIMAS) da Secretaria Municipal de Assistência Social SMAS (Secretaria Municipal de Assistência Social) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
do Estado e recebem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade, e, mais ainda, em uma vontade livre, destacada da sua base concreta (Marx; Engels, 2007, p. 74).
No que tange à produção, ela não surgiu por formulações improvisadas. Utilizando a decodificação de manuscritos históricos como metáfora, a compreensão das notações permite localizar o tempo provável de sua formulação exigindo do pesquisador um rigor para análise. Entre apogiaturas e ritornellos, o capitalismo desenvolveu métodos aperfeiçoados em muitas versões. O capitalismo internacional é fundamentalmente manipulador, “[...] pois nos obriga declinar, no plano afetivo e prático das possibilidades das estratégias laborais e incentiva as individuais (Torres, 2020, p. 14).
O fenômeno dos conflitos armados se materializa pelas relações de disputas entre distintos grupos.. Nesse elenco, situam-se as organizações milicianas, as facções e o Estado. Esse cenário difuso de múltiplos poderes sugere decifrar os desafios impostos ao trabalho das(os) assistentes sociais que trabalham nas favelas. A questão da gestão do trabalho na SMAS/RJ emerge para ser pensada, considerando o interesse de compreender a organização do trabalho durante os episódios dos conflitos armados nas favelas de Rollas e Antares, percebendo o espaço técnico da ação profissional, relações de trabalho e a qualidade dos serviços nesses territórios. O tema da produção do protocolo ganha relevância face o objeto de estudo, em função da inexistência de uma diretriz da gestão para as assistentes sociais durante os conflitos armados. A mudança na configuração dos grupos que controlam as favelas de Rollas e Antares na última década, possibilitou a retomada da circulação das assistentes sociais nestes territórios.
A dimensão da organização coletiva se configura como um campo de perspectivas de mudança dos processos de controle e apassivamento das(os) trabalhadores. A sociabilidade burguesa forjada pelo modo de produção capitalista desigual e combinado, está ancorada no individualismo, na competitividade e em distintas formas de dominação da classe trabalhadora. Sob essa égide, o capitalismo de desenvolvimento desigual e combinado e a formação histórica do espaço urbano, se constituem a partir de múltiplas segregações. O colonialismo e a escravidão expressam a configuração desigual dos interesses das classes sociais e ancoram a produção dos territórios desiguais. A hegemonia na lógica da produção de mercadorias e formação de consensos, aponta para a configuração de uma política pública de Assistência Social amalgamada por bases conservadoras que se reflete no trabalho profissional. A SMAS na última década (2010-2020) é demarcada por várias mudanças no elenco de sujeitos que representam a política pública de Assistência Social na cidade. Movidos por pactuações e disputas no campo político-partidário, reeditam o gerencialismo produtivista inaugurado na gestão de Marcelo Garcia no Governo de Cesar Maia. Essa reedição se materializa pelo intitulado “acordo de resultados” que produz um acirramento da cadeia produtiva da classe de trabalhadores. Com este estudo, pretende-se contribuir com o debate atual sobre o trabalho das(os) assistentes sociais na política pública de Assistência Social nas favelas da cidade, no sentido de apresentar algumas mudanças significativas que se vêm constituindo para a Assistência Social carioca e as problematizações que o cotidiano de acirramento da violência nos territórios determina. Procurou-se denotar a importância dos sujeitos nos processos de trabalho, constituído como campo de disputas de poderes e saberes. Além disso, a
configuração de uma gestão ancorada pelo gerencialismo produtivista que, por meio das metas produtivas, interfere na organização do trabalho profissional, no planejamento e na execução do trabalho
Como resultante da lógica do desenvolvimento desigual e combinado, as contradições da cidade como expressão da divisão de classes, apresentam-se como explicação para entender o trabalho profissional nas favelas. O território da atuação profissional não é entendido somente como espaço físico, mas como espaço de múltiplas determinações em diferentes sujeitos que constroem seu cotidiano. Para a configuração da cidade, o Estado exerce importante papel no atendimento dos interesses do desenvolvimento capitalista, considera as exigências da industrialização e da urbanização e atende a algumas das demandas das(os) trabalhadores necessárias à sua manutenção como força de trabalho.
. É na regência dessa política que se produz e se reproduz o trabalho das(os) assistentes sociais, compreendidas(os) aqui como sujeitos inseridos em um contexto permeado pelas contradições. A leitura e a explicação dos processos sociais sob a ótica da totalidade social representam a possibilidade de apropriação do significado social da profissão, potencializando o pensamento, no que se refere às condições e relações de trabalho, assim como a construção de canais para avaliar as estratégias de enfrentamento das questões impostas pelas particularidades do trabalho nesses territórios.
O urbano e o espaço são identificados como conteúdo da problemática urbana em um mundo dominado pela lógica da acumulação orientada pela hegemonia do industrial. Nessa perspectiva, a constituição histórica do espaço e sociedade urbana brasileira, configuram uma cidade e o seu desenvolvimento como produto e como produtora de desigualdades. A segregação espacial urbana, a organização, a divisão espacial dos territórios na cidade e como as favelas se configuram são elementos constitutivos da problemática urbana. Sob essa égide, as favelas se tornaram importantes temas de estudos e pesquisas tanto no âmbito nacional quanto no plano interno. É no campo da reprodução da desigualdade social e das contradições históricas que envolve a luta pelas condições materiais de existência, que as favelas se constituíram como espaço social, um conjunto de transformações que têm ocorrido nos campos econômico, político, social e cultural desde o avanço da ideologia neoliberal nos anos 1970, tanto na conjuntura mundial quanto na brasileira.
A processualidade econômica, política e cultural referida à dinâmica capitalista, tecida em âmbito mundial com incidências particulares na realidade brasileira, delinearam novos contornos para o mercado de trabalho das(os) assistentes sociais. As mudanças na organização da produção material e nas modalidades de gestão e consumo da força de trabalho têm efeitos no conjunto das profissões que historicamente intervêm no processo de reprodução da força de trabalho. Situam, pois, mediações históricas e teóricas importantes para a reconstrução da dinâmica social que colocam exigências para um leque de profissionais que, no marco da divisão social e técnica do trabalho, legitimam-se para o desempenho de atribuições por meio das quais se articulam as formas de preservação e controle da força de trabalho.
Com as bases de sustentação do projeto ético-político do Serviço Social, particularmente em torno na defesa da democracia, da liberdade, da luta contra todas as formas de opressão e da garantia do pluralismo teórico sem se negar a construção de uma direção social no processo de formação e nas condições postas ao exercício profissional, o debate sobre processos de trabalho e Serviço Social revela as nuances próprias das opções
intelectuais da profissão, em sintonia com a realidade social e com a afirmação de um determinado projeto societário.
O território não é somente campo de circulação das(os) assistentes sociais na execução dos processos de trabalho, mas espaço de expressão de poder e disputas. O histórico dos diferentes sujeitos que compõem o elenco de gestores na política de Assistência Social no Rio de Janeiro, aponta para um conjunto de pactuações político-partidárias que interferem na coordenação técnica do trabalho nas favelas. Eclode a bancada neopentecostal na Secretaria por meio de Marcello Crivella, com um histórico de mudanças sucessivas de vários Secretários da pasta. Além dos desafios da pandemia, identifica-se um acirramento nas metas produtivas para os trabalhadores da SMAS/RJ. O histórico de interlocução da gestão municipal com as favelas, suscita uma ação de projetos pontuais e um movimento descontinuado de investimentos e infraestrutura local.
Como terceiro mais populoso da cidade, Santa Cruz integra memórias e histórias como bairro imperial. Contudo, sofre, na última década, com o processo de consolidação e de controle dos grupos milicianos. É uma área da Zona Oeste com expressão dos conflitos armados e nele se localizam as favelas de Rollas e Antares. Essas favelas possuem particularidades e sociabilidades distintas com relação ao processo de constituição histórica. Todavia, a pesquisa permitiu constatar que, embora com acesso mais complexo, ressaltando Rollas, a nova configuração dos grupos que controlam esses territórios viabilizou a retomada da circulação das(os) assistentes sociais que, até início da pandemia, não podiam entrar nelas. Evidenciou-se uma mudança na lógica de poder. Os conflitos armados se constituem a partir dos confrontos entre Estado com as milícias, entre diferentes grupos milicianos de lideranças opostas e facções do tráfico. A conquista dos territórios e mercado, está no vértice das disputas.
A compreensão da realidade do trabalho profissional nas favelas requer relacionar suas reconfigurações recentes ao amplo padrão de reorganização das esferas da produção e reprodução social. O conjunto de mudanças no padrão de respostas à questão social implicou uma recomposição do espaço socioprofissional, à medida que reconfigura o campo das políticas sociais. Em síntese, o mercado profissional de trabalho sofre impactos diretos e indiretos das transformações operadas na esfera produtiva e na estatal com repercussões na concepção, na organização, na administração e gestão das políticas sociais.
Quanto às formas de organização dos processos de trabalho, as metas produtivas implantadas pela atual gestão municipal da SMAS/RJ e materializadas pelo “acordo de resultados”, inserem-se na centralidade do trabalho. O acirramento desta lógica de “eficiência produtiva” associada ao processo de precarização do trabalho, interfere diretamente no cotidiano profissional das(os) assistentes sociais (infraestrutura, recursos, logística, recursos humanos), nas relações no espaço de trabalho com outros segmentos de trabalhadores e a organização coletiva da categoria.
Embora a gestão da SMAS não possua um protocolo e/ou mesmo tenha produzido diretrizes face à questão dos episódios de conflitos armados nos territórios, em 2023, publicizou a Cartilha de Integridade para as(os) agentes públicos, implementada na atual gestão de Eduardo Paes (2021-2024). Apresenta princípios, direitos e deveres do agente público. Entre as instruções, aponta eficiência, integridade e ambiente de trabalho. Em seu texto aparece “[...] cumprir as atribuições com eficiência e rapidez" (Cartilha de Integridade, 2023) . Como pensar formas de resistência e estratégias possíveis para o trabalho nas favelas
durante os conflitos armados? As(os) assistentes sociais se referenciam pelo protocolo do Acesso Mais Seguro (AMS) da saúde (articulação intersetorial), solicitando providências da gestão quanto ao fechamento das unidades dos CRAS e CREAS durante os episódios de conflitos armados. A questão da implantação de orientações e/ou o “protocolo” aparece em todas as entrevistas com as informantes.
Considerações Finais
O estudo demonstrou que o trabalho das(os) assistentes sociais está circunscrito a um modelo de gestão pautado em reedições de acordos de resultados que se configuram como um “jogo” da gestão municipal. No que concerne às formas de interferências dos conflitos armados, as(os) trabalhadores respondem a esses episódios, por meio de estratégias que transitam desde comunicações internas com a gestão até a interface com as unidades públicas da saúde que utilizam um protocolo formal. Revelou, ainda, que, em geral, esses profissionais estão distanciados da participação em organizações políticas como movimentos sindicais, sociais, partidos e das entidades de representação da categoria como o CRESS e o CFESS. Eles não se restringem à autarquias, mas se constituem atualmente como espaços de resistência, de luta e de fortalecimento da categoria profissional. o. As favelas cariocas, consideradas como consequência do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, conformam-se nas cidades em territórios hierarquizados, intrínsecos à desigualdade própria do modo de produção capitalista. A ampliação do poder dos grupos que controlam esses territórios e disputas entre o Estado, suscita problematizar o trabalho profissional possível nas relações sociais de produção vigentes no cotidiano das favelas.
Entende-se que esse recuo das(os) trabalhadoras(es), possivelmente, concorre para o enfraquecimento do processo de luta da classe nas unidades de trabalho. Parte-se do entendimento de que a mudança é precedida pela consciência e leitura crítica da realidade inspirada e movida pela lógica revolucionária. As(os) assistentes sociais atuam em cenários com distintas interferências, ou seja, diferentes “naipes” em que o poder não é unívoco. O Estado e os grupos milicianos compõem uma “dupla regência” nos territórios e estabelecem a “regras” das pactuações. As assistentes sociais circulam em um cotidiano de densidade política soturna.
Entre o braço armado do Estado e os grupos que dominam os territórios, evidenciase que o controle não é homogêneo. Sujeitos e pactuações em disputa produzem e reproduzem poder. As favelas aqui elencadas na pesquisa, são subsumidas por esse reiterado processo de dominação. Durante as experiências com os conflitos armados, o medo e o controle produtivo são aparentes. Entre o medo que impõe silêncio aos assistentes sociais e as metas circunscritas na tríade da organização dos processos de trabalho, nas relações e experiências no cotidiano da violência armada, configura-se um amálgama entre objetivos, atribuições, competências profissionais e sofrimento.
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Capítulo
12
Serviço Social e questão social no adoecimento emocional de jovens mulheres faveladas
Viviane Carmen da Conceição Santos
Introdução
A proposta desse texto é problematizar como jovens mulheres faveladas têm recorrido à automutilação e a ideação suicida para amenizar e ou finalizar o sofrimento emocional. Parte-se da hipótese de que marcadores de Gênero, Sexualidade, Raça e Etnia, Território, Condições Socioeconômicas, Violências, dentre outros, são elementos que devem ser levados em consideração na compreensão do adoecimento emocional de grupos socialmente vulnerabilizados. A partir da apresentação resumida de quatros casos de jovens mulheres moradoras do Complexo da Maré é exposto como as violações de direitos protagonizadas pelo Estado; Marcadores sociais e precarização dos Serviços de Atenção básica incidem diretamente na experiência da saúde mental de jovens mulheres faveladas.
O Serviço Social se gesta e se desenvolve como profissão reconhecida na divisão social do trabalho, tendo por pano de fundo o desenvolvimento capitalista industrial e a expansão urbana, processos esses aqui apreendidos sob o ângulo das novas classes sociais emergentes – a constituição e expansão do proletariado e da burguesia industrial – e das modificações verificadas na composição dos grupos e frações de classes sociais que compartilham o poder de Estado em conjunturas históricas especificas. É nesse contexto, em que se afirma a hegemonia do capital industrial e financeiro, que emerge sob novas formas a chamada “Questão Social”, a qual se torna a base de justificação desse tipo de profissão especializada. A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e da repressão. O Estado passa a intervir diretamente nas relações entre o empresariado e a classe trabalhadora, estabelecendo não só uma regulamentação jurídica do mercado de trabalho, através de legislação social e trabalhista específicas, mas gerindo a organização e prestação dos serviços sociais, como um novo tipo de enfrentamento da questão social. (Iamamoto & Carvalho,1985, p.77)
Com a citação de Iamamoto e Carvalho (1985) foi apresentada uma breve contextualização sobre o conceito de questão social, o qual se refere ao objeto de o trabalho do Serviço Social e se manifesta de variadas maneiras no trabalho profissional. O tema saúde mental, por exemplo, é presente na atuação profissional de assistentes sociais e demais áreas, contudo, este texto destaca que há alguns anos e - para ser mais precisa no ano de 2019 -
vem se materializando com mais intensidade na rotina profissional em projetos sociais no Complexo da Maré, a partir de casos de violência autoprovocada.
A definição de saúde proposta pela OMS como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças" tem sido alvo de inúmeras críticas, pois defini-la desta forma faz dela algo ideal, inatingível. Alguns autores sustentam que a definição teria possibilitado uma medicalização da existência humana, assim como abusos por parte do Estado a título de promoção de saúde. (OMS, 2001; Caponi, 2003; Carvalho, 2005 apud Gama et all, 2013, p. 05)
Os autores acima fazem provocação sobre a forma como o termo saúde é apresentado em documentos oficiais, pois segundo eles estagna a saúde mental em dois blocos opostos – de um lado a saúde como sendo um estado permanente para alguns grupos e de outro lado, como se o adoecimento fosse um estado permanente para outros grupos, sendo o sofrimento mental um exemplo. Este olhar binário não garante a inclusão de momentos de oscilação entre as condições da saúde dos indivíduos.
A existência de uma pessoa inclui os erros, os fracassos, as privações, as opções de vida, os desejos, as angústias existenciais, os desafios e as contradições. Quando criamos um conceito de saúde que impede uma conexão com a vida cotidiana, que exclui as oscilações, as possíveis aventuras e as escolhas singulares, relacionando qualquer afastamento da regra a uma espécie de crime e merecedor de um determinado castigo, estamos, ao contrário de produzir saúde, normatizando o comportamento. Assim, o conceito de saúde necessitaria ser reformulado englobando as oscilações da vida, inclusive a própria possibilidade de adoecimento. A análise poderia ficar mais centrada na capacidade de enfrentamento dos problemas. (Gama et all, 2013, p. 05)
E quando Gama et al (2013) mencionam a capacidade do enfrentamento de problemas, podemos acrescentar a soma de recursos que acionem a possibilidade de desenvolvimento das dimensões da vida como acesso à educação, lazer, moradia, direito de ir e vir, emprego e renda etc., a partir das políticas sociais. Iamamoto (2005) chama atenção:
É no contexto da globalização mundial sobre a hegemonia do grande capital financeiro, da aliança entre o capital bancário e o capital industrial, que se testemunha a revolução técnico-científica de base microeletrônica, instaurando novos padrões de produzir e de gerir o trabalho. Ao mesmo tempo, reduz-se a demanda de trabalho, amplia-se a população sobrante para as necessidades médias do próprio capital, fazendo crescer a exclusão social, econômica, política, cultural de homens, jovens, crianças, mulheres das classes subalternas, hoje alvo da violência institucional. Exclusão social esta que se torna, contraditoriamente, o produto do desenvolvimento do trabalho coletivo. Em outros termos, a pauperização e a exclusão são outra face do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, dos meios de comunicação, da produção e do mercado globalizado.
Estes novos tempos reafirmam, pois, que a acumulação de capital não é parceira da equidade, não rima com igualdade. Verifica-se o agravamento das múltiplas expressões da questão social [ ] (Iamamoto,2025, p.18)
Os relatos de tristeza associados às múltiplas violências às quais as jovens são submetidas estão sendo acrescidos de depoimentos de violências autoprovocadas como: cortes e ingestão de medicamentos em excesso, tentativas de suicídio quando narradas para profissionais atuantes nas instituições atuantes no Complexo da Maré. O cenário demonstra que as profissões que trabalham na linha frente da escuta das (os) usuárias (os) dos serviços - em especial as áreas que atuam em organizações não governamentais - necessitam aprofundamento dos estudos sobre o fenômeno; aprofundamento da análise sobre os limites e possibilidades de atuação.
Esta questão foi citada na minha dissertação de mestrado intitulada: Atuação profissional em território afetado por múltiplas violências: Uma experiência na Favela Nova Holanda, Município do Rio de Janeiro, na qual faço um breve resumo da articulação com o Centro de atenção Psicossocial (CAPS) e Centro de atenção Psicossocial Infanto-Juvenil CAPSI, responsáveis pelos acompanhamentos de crianças e adolescentes e adultos do território da Maré.
1. Um pouco sobre o Complexo da Maré
O Complexo da Maré é um bairro composto por 16 favelas com 139.073 habitantes e localizado na Zona Norte da Capital Fluminense. Seu território foi delimitado pelo Decreto nº 7.980, de 12 de agosto de 1988 e a lei nº 2.119, de 19 de janeiro de 1994, incluiu-o na região administrativamente da Maré. Está situado às margens da Bahia de Guanabara e delimitado pela Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil, as quais são as três principais vias de acesso.
[...] A Maré possui uma forte presença no imaginário social, fazendo parte do cotidiano de milhares de pessoas que diariamente cruzam essas vias em direção a diversas localidades na cidade. Em especial pelo fato de ser constituir como caminho obrigatório para todas as pessoas que acessam o Rio de janeiro através do aeroporto internacional em direção às zona Sul e Oeste da cidade. Por essa razão, a Maré está presente no discurso e no debate sobre os problemas urbanos. (Farage, 2023, p.276 e 277)
O território é alvo de sistemáticas operações policiais, as quais interferem diretamente no funcionamento das instituições e principalmente no direito de ir e vir das pessoas que lá habitam.
As favelas têm sido historicamente alvo de um conjunto de intervenções endereçadas ao tema da pobreza e da marginalidade urbana. Ao longo das últimas décadas torna-se alvo de intervenções massivas no campo da segurança pública. O lugar das favelas na cidade tem sido permeado por forte estigma e representações sociais pautadas nas noções de ausência, carência e homogeneização.
A relação entre a Maré e a linha Vermelha é reveladora das tensões sociais na cidade e é atravessada por uma série de discursos e argumentos que polarizam a relação favela e cidade. Observa-se um reforço das noções de separação entra a favela e o “asfalto”, expondo as cisões presentes em pensamentos e práticas que permeiam a vida na cidade. Todavia, essa aparente separação não é capaz de dar conta da complexidade que envolve favela e “asfalto”, especialmente porque não reconhece a favela como parte constituinte da cidade, mas um problema que deve ser eliminado ou senão escondido e controlado. (Farage, 2023, p.276)
De janeiro de 2024 a 16 de setembro de 2024 o Complexo da Maré foi atingido por 37 operações policiais1 que tiveram como consequência o fechamento de escolas, unidades de saúde, projetos sociais etc.
Assim, considerar o quilombo (espaço transmutado), o cortiço e a favela como formas espaciais de resistência ao poder constituído é restabelecer a lógica das classes populares, tornando os ocupantes desses espaços como sujeitos responsáveis pela história socioespacial das cidades. Para contraporem tal situação, as classes dominantes percebem os grupos pobres como indivíduos que vivem no limite da marginalidade, passíveis de serem tratados como uma questão de polícia e nunca como uma questão social (Campos, 2005, p. 66).
A lógica de guerra às drogas do governo do Estado do Rio de Janeiro preconiza o uso da força e se fundamenta pelo estigma de que os espaços favelados são naturalmente violentos. O fato de existirem trabalhadores, estudantes, crianças, cultura e diversas formas de construção de estratégias para garantia de direitos é desprezado. Essa visão fragmentada que se torna única e impregna uma grande parcela do imaginário social que percebe os/as moradores/as de favelas e periferias como não dignos/as de direitos e respeito.
O principal aspecto que marca as favelas, especialmente no Rio de Janeiro, diz respeito à separação favela-cidade. Essa relação é fundamental para se compreender a relação histórica do poder público com essas áreas e, mais que isso, as representações que vêm pautando essa relação. Historicamente, a forma com que a favela é vista e representada tem um papel preponderante na intervenção pública. Tais representações, construídas pelos grupos hegemônicos da cidade, têm relegado as favelas e seus moradores a uma condição de subalternidade no espaço urbano, em especial no que se refere ais investimentos em equipamentos públicos e políticas públicas para atendimento das demandas da população. (Farage, 2023, p. 277)
1MARÉ DE NOTÍCIAS - Operações e remoções impactam vida dos moradores e geram múltiplas de violações Disponível em https://mareonline.com.br/operacoes-e-remocoes-impactam-a-vida-dos-moradores-e-geram-multiplas-de-violacoes/ Acesso em 15 de setembro de 2024 às 19:13.
Todavia, importante salientar que passados anos as favelas representam uma das maiores possibilidade de as camadas pobres acessarem o sonho de morar, pois as políticas públicas de habitação são precárias. Logo percebemos que o movimento de fincar moradia em áreas de localização estratégica e que não fazem parte da grande especulação imobiliária é uma realidade permanente.
Yazbek (2009) citando Kowarick et al (1990) sinaliza que o autor chama esse movimento de “diminuição perversa da segregação socioespacial”, a qual é descrita da seguinte forma:
[...] caracterizada pelo “deslocamento dos grupos pauperizados” rumo às áreas centrais e pela “multiplicação de bairros nos quais se misturam as camadas pobres e intermediárias” da população, atenuando limites antes definidos e que aglutinavam níveis de renda bastante diferenciados. (Yazbek, 2009, p. 124)
Considerando que grande parte da população brasileira vive com o equivalente a um salário-mínimo percebemos que o sonho de ter uma casa própria se torna a cada dia mais distante para as famílias pobres, fato que dá visibilidade à condição de subalternidade da população.
A autora argumenta:
A subalternidade faz parte do mundo dos dominados, dos submetidos à exploração e à exclusão social, econômica e política. Supõe, como complementar, o exercício do domínio ou da direção através de relações político-sociais em que predominam os interesses dos que detêm o poder econômico e da decisão política. Neste sentido, não podemos abordar indivíduos e grupo subalternos isolando-os do conjunto da sociedade. (Yazbek, 2009, p. 26)
Com a soma dos diversos fatores elencados acima que vão desde as questões econômicas e ligadas ao racismo estrutural, as favelas são uma realidade na rotina dos Estados do Brasil. O termo foi popularizado e utilizado como um conceito para definir de todas as localidades erguidas a partir da ocupação alternativa de pessoas oriundas das classes subalternas.
Favela atualmente é um conceito que reúne em volta de si duas amarras ligadas ao preconceito de ser analisado como um lugar de faltas e desorganização, ou o chamado aglomerado subnormal, e por outro lado que é colocado no mesmo bolo de interpretações de todas as favelas sem levar em consideração as diversidades.
Silva (2009) critica a forma como as favelas são lidas pela sociedade:
[...] é apreendido, em geral, como um espaço destituído de infraestrutura urbana (água, luz, esgoto, coleta de lixo); sem arruamentos; globalmente miserável; sem ordem; sem lei; sem regras, sem moral, enfim, expressão de caos. Outro elemento peculiar da representação usual das favelas é a sua homogeneização. Presentes em diferentes sítios geográficos – em planícies, em morros, às margens de rios e lagoas – e reunindo algumas
centenas de moradores até alguns milhares, possuindo diferentes equipamentos e mobiliários urbanos, sendo constituídas por casas e ou apartamentos, com variadas características socioambientais, as favelas constituem-se como territórios que se expressam em paisagens consideravelmente diversificadas. A homogeneidade, no entanto, é a tônica quando se trata de identificar esse espaço popular. (Silva, 2009, p. 10)
A questão da identificação da necessidade de melhorias para os aspectos de infraestrutura serviu como argumento para os movimentos de reivindicação de melhorias os quais tivessem êxito na implementação de serviços públicos.
Importante mencionar também que a engenharia das favelas é um ponto que transgride o modelo de cidade comerciável almejada pelos grupos empresariais do ramo imobiliário que investem em condomínios para garantir a proteção dos “cidadãos de bem” que estão sendo marinados na cultura do medo.
Sobre a cultura do medo Bauman (2009) argumenta:
Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo na constância e na regularidade da solidariedade humana. Castel atribuiu a culpa a esse estado de coisas ao individualismo moderno. Segundo ele, a sociedade moderna – substituindo as comunidades solidamente unidas e as corporações (que outrora definiam as regras de proteção e controlavam a aplicação dessas regras) pelo dever individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo – foi construída sobre areia movediça da contingência: a insegurança e a ideia de que o perigo está em toda a parte são inerentes a essa sociedade. (Bauman, 2009, p 16)
Neste sentido, é necessário também destacar que a despeito dos rótulos de cunho negativo predominantes sobre as favelas, existem movimentos paralelos que buscam localizar as favelas e sua população como molas propulsoras fundamentais da vida nas cidades. O conceito de Aquilombamento da autora Beatriz Nascimento (1989) toma notoriedade como argumentação teórica na defesa da leitura dos quilombos como locais de resistência; ressignificação de uma existência; construção de afetos, sociabilidade e tranquilidade. E, mais do que isso, ele extrapola a sua localização para uma determinada dimensão temporal datada do período escravocrata para ser associado às articulações permanentes e atemporais que pessoas negras, pobres, favelas e periféricas vem utilizando para a garantia da existência.
Então, nesse momento, a utilização do termo quilombo passa ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta como se reconhecendo homem, como se reconhecendo pessoa que realmente deve lutar por melhores condições de vida desde o momento em que faz parte dessa sociedade. (Nascimento (1989) apud Ratts, 2007, p. 53)
3. Questão Social e o adoecimento emocional de jovens mulheres faveladas
O cenário de violações de direitos que atinge diretamente a população da Maré contribui significativamente para o processo de adoecimento das juventudes no território.
Zanello (2018) argumenta que é fundamental associarmos os sintomas de saúde mental e suas expressões ao tempo histórico e as particularidades locais de cada grupo social, indagando qual é o sentido daquele sintoma. As jovens e pessoas que fazem parte dos relatos abaixo estão sendo identificadas por nomes de flores para manutenção das suas identidades.
Margarida, 26 anos, preta.
Jovem frequenta projeto de corrida e rodas de conversa semanal que disponibiliza acolhimento com profissionais nas áreas de serviço social; psicologia; nutrição, fisioterapia, médico e monitoria de crianças para as jovens mães. Importante salientar que é um projeto de instituição Terceiro Setor que depende da renovação de financiamentos para continuidade de suas ações. Neste caso, a articulação com as instituições locais de áreas diversas é permanente.
Relata que em dias de operação policial sua casa é invadida pela polícia. Quando acontece esta situação a jovem fica com nível de ansiedade elevado e como trabalha como autônoma vendendo doces que ela mesma produz, tem sua renda atingida diretamente.
Margarida foi selecionada para compor projeto de formação de jovens mulheres que ocorreu em 2022/2023 na mesma instituição. O objetivo deste projeto foi à criação de grupo com características liderança para o fortalecimento, compartilhamento de informações, promoção de discussões sobre quais os atravessamentos, desafios e conquistas que enfrentavam.
Em umas das rodas de conversa a jovem deu depoimento sobre o preconceito que sofria por parte da família e principalmente da mãe pelo fato de ter ganhado peso depois que deu a luz.
Disse que quando estava angustiada se mordia e após o relato, as profissionais que conduziam a atividade pediram suporte para psicóloga da instituição para realização de acolhimento e encaminhamento para a rede especializada. A jovem foi orientada sobre a importância do acompanhamento no CAPS, visto que a Clínica da Família do território não possui serviço de acompanhamento de psicologia. Foi acompanhada pela psicóloga da ONG na primeira consulta no CAPS, uma vez que o mesmo não é próximo, requer dinheiro de passagem com o acréscimo que, em muitos casos, as usuárias têm receio do equipamento. Na primeira consulta, Margarida ouviu da recepcionista do equipamento que estava passando por aquela situação porque não havia aceitado Jesus. A profissional da ONG ouviu o comentário e o fato foi notificado para a coordenação do equipamento. No livro Saúde Mental Gênero e dispositivos, Zanello (2018) analisa a parcialidade das decisões médicas e ou demais áreas que atuam em saúde mental e que, no caso de Margarida, mesmo sendo uma recepcionista, sua ação profissional em um equipamento da rede especializada pode interferir significativamente na condução da proposta de acompanhamento.
Margarida chegou a frequentar algumas consultas no CAPS, mas depois não deu continuidade porque conseguiu um trabalho e teve dificuldade de liberação para as consultas. Passado um tempo, aluna disse para o médico que atende de forma pontual na ONG, que no dia anterior havia tentado se enforcar. O profissional acionou as profissionais do projeto e as mesmas entraram em contato com a jovem que compareceu na instituição anônima e se mordendo. O companheiro de Margarida e a equipe do CAPS foram acionados. Sendo que a instituição de saúde passou a orientação de que era necessário encaminhar a jovem para emergência do Hospital de referência do território e o marido relatou que não podia acompanhar a esposa à emergência porque não tinha com quem deixar o filho.
Margarida foi conduzida pela equipe da ONG para unidade de saúde mental onde passou por avaliação médica e permaneceu em observação. O marido foi acionado novamente e de novo relatou que não tinha com quem deixar o filho.
No dia seguinte, a mãe da jovem dona Tulipa, que morava há 3 horas do Município do Rio de Janeiro, chegou na ONG e gritava que a filha não era maluca e que tinham levado ela para hospital de maluco. Ameaçou acionar os grupos civis armados e exigiu que a instituição a levasse para o hospital.
A definição de saúde mental ou saúde psíquica é ainda mais complicada, pois além de estar diretamente vinculada à questão do normal e do patológico envolve a complexa discussão a respeito da loucura e todos os estigmas ligados a ela. A atribuição de um diagnóstico psiquiátrico a uma pessoa significa, na maioria das vezes, colocá-la num espaço que pode ser iatrogênico. (Gama et all, 2013, p. 05)
Chegando ao hospital margarida não havia passado por nova avaliação com equipe do hospital e a equipe do CAPS sinalizou que não teria condições de se dirigir para a emergência para fazer avaliação da jovem.
Dona Tupila queria tirar a filha a revelia do hospital e foi combinado de que as profissionais da ONG conduziriam a jovem e a mãe ao CAPS para passar por avaliação. Chegando no equipamento não havia psiquiatra de plantão e Margarida e a mãe foram atendidas por duas psicólogas e tiveram que voltar no dia seguinte para consulta com psiquiatra. Foram conduzidas em transporte da ONG para a consulta no CAPS no dia seguinte.
A genitora dizia que “maluca da família era ela Tulipa” logo a jovem não tinha nada. Após a prescrição das medicações, conduziu Margarida para sua casa, pois era a certeza da administração dos remédios e suporte ao filho de Margarida. Reclamou muito do marido da filha e do pai de Margarida seu ex-companheiro. A jovem ficou dois dias na casa da mãe e voltou para a Maré. Parou de fazer acompanhamento e de tempos em tempo passa por crises.
Cravo, 21 anos, parda.
Cravo também é inscrita no projeto de esporte citado cima. Começou a frequentar as atividades deste projeto e 2023 por intermédio da irmã Bromélia, que também é aluna, e foi encaminhada por um dos equipamentos da rede de atendimento às mulheres vítimas de violência do território.
Cravo e sua irmã foram vítimas de violência sexual por parte do genitor, contudo quando Bromélia passou a fazer parte do projeto estava em acompanhamento em instituições da rede socioassistencial. Cravo oscila nas presenças nas atividades, pois as situações de automutilação e uso de medicações interferem na rotina. Passou por crises durante a realização de atividades esportivas - desmaiou durante a corrida que acarretou na condução da jovem para emergência hospitalar; ingestão de medicação um pouco antes do treino que resultou que ficasse sonolenta; automutilação no rosto durante participação em roda de conversa em que colega de turma verbalizou ter sofrido violência sexual quando criança; sangramento nos pontos dos pulsos ao iniciar atividade esportiva, visto que o ferimento era recente.
Além das irmãs, outras mulheres da família sofreram violência sexual por parte do genitor delas. Contudo, Cravo o denunciou e por isto é acusada de ter causado a situação de privação financeira que a família vem enfrentando. A mãe Girassol e a irmã Bromélia são de religião neopentecostal e Cravo é de religião de matriz africana e tem orientação sexual dissidente, elementos que aumentam a vulnerabilidade e estigmatização de Cravo na família. Vivencia momento de sofrimento emocional grave, pois os cortes nos pulsos e pescoço são profundos e exigem que seja encaminhada para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com frequência. Realiza acompanhamento no CAPS, contudo a relação é principalmente para buscar medicação.
A equipe do projeto de esporte buscou realizar reuniões de estudo de caso com os profissionais do CAPS para construção de projeto terapêutico conjunto, mas a relação não avança. E, em conversa interna na ONG, analisamos que para além da precarização dos recursos de várias naturezas que os equipamentos de saúde padecem, transparece que há um distanciamento das histórias das (os) usuárias (os) e das demais instituições do território.
Recentemente em reunião entre equipe da Clínica da Família, equipe técnica da ONG e que também contou com a participação de representantes do CAPS, a agente de saúde revelou que a relação da jovem com a unidade de saúde é para fazer curativo nos cortes. Destacou a dificuldade de aproximação com Cravo, e o Serviço Social e Psicologia da unidade desconheciam o caso. A equipe do CAPS por sua vez ficou surpresa pela jovem não ter relação mais profunda com a Clínica da Família, pois ela “deveria” fazer exames de sangue para avaliar se a medicação controlada que utiliza está causando mudança no sangue. Mas admitiram que o tema não foi falado no CAPS e logo iriam orientá-la de ir na Clínica da Família fazer exames.
B- Lírio, 16 anos, preta.
Lírio participou do projeto voltado para jovens líderes detalhado no caso Margarida. Uma das fases do processo seletivo foi a realização de rodas de conversa com as candidatas. Elas tiveram que indicar e falar sobre um dos temas que indicaram na ficha de inscrição como sendo relevante para ser discutido nas atividades do projeto.
Adolescente foi incluída em subgrupo que elegeu o tema Abuso Sexual. No momento da defesa do mesmo, as candidatas citaram exemplo de um caso que estava sendo falado pelas ruas da favela: um homem idoso foi assassinado por grupos civis armados, em razão de ter abusado da neta. Lírio ficou transtornada e disse que as colegas não sabiam o que estavam falando, pois o homem não tinha sido assassinado do jeito que estavam falando e
revelou que o falecido era seu avô. Foi encaminhada para sala de acolhida e solicitada o apoio de psicóloga de outro projeto.
A equipe conduziu a discussão refletindo sobre como é importante a noção de todos os lados das histórias, do entendimento que existem famílias envolvidas que sofrem as consequências das diversas violências que atingem indivíduos e grupos sociais.
Lírio e as demais jovens que estiveram neste processo seletivo momento foram aprovadas, contudo a equipe conversou com a adolescente para falar sobre os temas que seriam abordados nas oficinas, fato que poderiam causar algum tipo de sofrimento, logo, que ficasse a vontade de pedir ajuda para a equipe. No primeiro dia do projeto, durante a construção do contrato de convivência, foi acordado de que o caso do homem assassinado na favela não seria pauta nas discussões.
A psicóloga do projeto foi tomando conhecimento de que a adolescente vivenciava situações de violência intrafamiliar, pois não somente ela, mas a mãe dela Hibisco também havia sido vítima de violência sexual pelo genitor e que a avó materna Ixora não acreditava nelas. A religião de Dona Ixora fazia com que não visualizasse as situações vivenciadas pela filha e neta como violência. Foi relatado também que a Lírio estava canalizando as suas energias no relacionamento com o namorado e sonhava em sair de casa.
Durante as atividades do projeto Lírio passou a dividir sobre o incômodo com seu corpo, as crises de ansiedade, que não se alimentava para não ganhar peso e ficava o dia todo sem comer, das agressões e cobranças da sua mãe para que arrumasse a casa e cuidasse dos irmãos e ao mesmo tempo a mãe sofria violência do padrasto. Em uma das oficinas verbalizou a visão negativa da autoimagem e sobre a automutilação que era uma ação recorrente.
A jovem concluiu o projeto, contudo sobre a adesão ao acompanhamento em serviço de saúde mental, tivemos notícias de que não se efetivou porque para acessar a rede de saúde mental precisaria do acompanhamento da mãe ao CAPSI do território, mas como já foi mencionada a relação não era boa, o projeto em questão não possuía equipe específica para acompanhamento e a rede local é localizada em local distante do território, fato que exige dinheiro de passagem e que um adulto a acompanhe. Porém, o conselho tutelar de referência na ocasião da situação com o avô foi acionado, mas o desfecho do abusador foi conduzido pela dinâmica do território.
D- Cosmos, 19 anos, branca.
Cosmos também foi do projeto voltado para a formação de jovens mulheres liderança. O diferencial é que já conhecia a jovem de outra edição deste projeto aplicada nos anos de 2020-2021, na ocasião da pandemia de COVID19 com atividades on-line. Cosmos era uma adolescente na edição online e se destacava porque era muito propositiva e fazia análises precisas para seus 17 anos na época. Durante as atividades apresentou reflexão sobre o tema da pobreza menstrual de mulheres encarceradas, tema que era a primeira vez que eu tinha acesso.
Importante destacar que o projeto aplicado na pandemia objetivava refletir como gênero e sexualidades interferiam na saúde mental das jovens, logo, não eram incomuns os relatos de sofrimento emocional e crises de ansiedade.
O projeto implementado de forma presencial em 2023 trouxe à tona uma realidade angustiante em relação ao nível de adoecimento e negligenciamento sofrido por alguns grupos sociais em relação à precarização das políticas públicas.
Da mesma maneira que na dinâmica realizada no processo seletivo que nos deparamos com o sofrimento de Lírio, em uma das primeiras dinâmicas ministradas após a escolha das 40 participantes, as alunas em sua maioria verbalizaram suas dores.
Cosmos falou sobre o desejo de morrer, das sucessivas tentativas e da sensação de fracasso por não conseguir. Compartilhou sua técnica de guardar remédios que tomava para tentar suicídio em uma latinha de balas e da frustração de não ter conseguido. Falou também da violência física que sofria da mãe e das cobranças por levar sustento para casa.
Foi acolhida pelas demais jovens ao término da atividade e lembro que falei com ela que queria conversar em particular, mas pelo avançar da hora podíamos falar no dia da próxima atividade. Cosmos pediu para tirar cópia de alguns documentos para fazer inscrição em um curso que havia sido aprovada e foi embora. Não compareceu na atividade seguinte e passado dois dias recebemos a notícia que ela havia cometido suicídio.
Passado o enterro, a equipe realizou momento de acolhida com as demais jovens para falar sobre saúde mental e suicídio. Em visita domiciliar com a psicóloga da instituição parceria para fazer acolhida da mãe de Cosmos, foi observado uma moradia precária, a mãe com questões de saúde emocional anterior a dor da perda da filha. A genitora Orquídea disse que Cosmos havia tentado suicídio algumas vezes. Na última internação tentou se enforcar na enfermaria do hospital. Saiu da unidade de saúde com encaminhamento para a Clínica da Família e para o CAPS, mas quando foi na Clínica da família ficou esperando muito tempo e teve uma crise, saindo correndo do local e deixando um dos chinelos para trás. Quando foi ao CAPS na primeira vez, não foi atendida porque era dia de reunião e na segunda vez estava tendo operação policial no território e por isto a unidade estava fechada. Neste meio tempo foi alcançado o ponto final.
3.1 Semelhanças nos casos:
Os casos relatados têm semelhança porque tratam de jovens mulheres com históricos de vida marcados por violações de direitos sociais. Nas descrições, observamos manifestações das diversas violências, as quais as mulheres são expostas, com destaque para o fato de as personagens relatadas serem mulheres faveladas, a maioria pretas e pardas e todas as representantes de uma mesma classe social e de um território que é permanentemente violentado.
Pedrosa e Zanello (2016) apontam que a exposição às situações de violências experimentadas pelas mulheres tem se tornado um forte aliado para o adoecimento emocional. Por outro lado, salientam que esta constatação deve ser uma aliada para que profissionais e dão destaque aos profissionais da área de saúde que atuam na escuta e atendimento nas unidades de acolhimento, pois devem se apropriar desta informação para realizar interlocução com as demais políticas públicas, visto que o pano de fundo observado na manifestação dos sintomas é a violência contra a mulher. As autoras por sua vez destacam que este movimento de análise não é natural em grande parte das áreas que compõem as instituições de saúde. (Pedrosa e Zanello, 2016, p. 1-2)
Em todos os quatro casos observamos que o acesso aos serviços públicos de saúde está sendo limitado - seja pela escassez de oferta de serviços em locais próximos da residência - seja pela escassez de políticas públicas que garantam acesso e a continuidade do tratamento. Em outros casos, carecem de profissionais que realizem a troca em rede para fortalecer o acompanhamento e apoio as pessoas atendidas nas unidades.
4- Considerações finais:
O tema da violência autoprovocada e o suicídio de jovens mulheres merece uma ênfase por parte de profissionais e pessoas que se dedicam à pesquisa, visto que é um fenômeno concreto que está vitimando jovens e, se fizermos um esforço de análise mais ampliada, vamos perceber que não se manifesta somente neste território descrito neste capítulo.
Zanello e Silva (2012) sinalizam a importância do entrecruzamento dos fatores de adoecimento emocional atrelados as interseccionalidades que marcam os grupos sociais, sendo gênero e raça elementos fundamentais de análise.
[...] a corrente sócio-histórica, preocupada com materiais e existenciais que favorecem o sofrimento psíquico e seu agravamento, tem demonstrado que os fatores de risco relacionados à depressão são engendrados e sociais. Referem-se a maior pobreza, menores índices de alfabetização, rendas ínfimas, violência (física, sexual e verbal), etc. – viés que tem sido adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). (Zanello e Silva, 2012, p. 268269)
É necessário que o tema seja abraçado por diversas alas da sociedade desde os movimentos feministas, movimentos sociais e criadores de políticas públicas, visto que o fato de uma jovem mulher não querer mais viver significa que o patriarcado e todas as mazelas da sociedade estão tirando mais uma de nós de ação. Carecemos de políticas efetivas que possibilitem que jovens pobres, periféricas e favelas tenham acesso a terapias diversas que atendam as suas formas e expressões de estar o mundo sem serem julgadas e ou cerceadas. De acordo com Zanello (2018) o desestímulo presente nas relações sociais vivenciados por determinados grupos, principalmente os que são atingidos diretamente pelas desigualdades estruturais, padecem de adoecimentos emocionais, os quais são formas de respostas ao contexto. (Zanello, 2018, p.30 e 31)
Cenários de violências e opressões, a impossibilidade de ampliação do cuidado, afetos e tomadas de decisão causam adoecimento e este contexto está sendo vivenciado por um grupo específico de jovens mulheres, logo, mais do que uma geração é uma ênfase em um grupo de uma geração marcado por violações ligadas aos fatores classe sociais, cor e raça, gênero e outros marcadores sociais.
É mister a ampliação de políticas públicas que garantam atendimento para jovens periféricas e faveladas que contemplem políticas de cuidado em saúde e saúde mental, mas também acesso a escolarização, emprego e renda, rompimento de ciclos de opressão, acesso ao lazer e ao esporte e tantas outras ações que possam devolver e ampliar as potencialidades em contextos sem violências.
O suicídio é um fenômeno que marca várias sociedades, mas no contexto analisando, onde as ausências de acessos, negligências e debilidade na troca e articulação intersetorial gera uma reflexão de que estas jovens estão experimentando uma expressão da violência contra as mulheres, racismo e a pergunta que fica são: quem abraça esta causa?
Por outro lado, o contato com as jovens nos grupos de discussão fez com que observasse que a oferta de atividades esportivas, troca entre jovens com histórias similares e moradoras do mesmo território, equipe engajada e troca a rede socioassistencial pode ser uma ferramenta fundamental no acompanhamento.
“Eu amei o evento hoje. As mulheres falando das dificuldades que tiveram até chegarem ao pódio e alcançarem suas metas. Me deixou tão empolgada e motivada. É como se elas tivessem me dizendo “Você também é capaz” só que em outras palavras E eu gostei de me ver nesse lugar De alguém que pode sim ultrapassar seus próprios limites! Obrigada por me permitir ter vivenciado esse dia incríveeeel!” (Cravo, 21 anos, parda)
As possibilidades de suporte e apoio são fundamentais para que jovens mulheres não sejam lidas como pacientes fixas dos equipamentos de saúde mental, ao mesmo tempo dá luz para a necessidade da ampliação das redes de apoio advindas de políticas públicas. Para finalizar veremos uma reflexão de Iamamoto e Carvalho (1985) que fazem reflexão sobre a razão da atuação do Serviço Social é a sua inserção na sociedade:
Afirmar que a instituição do Serviço Social é produto ou “reflexo” da realidade social mais abrangente, expressa apenas um ângulo da questão, se considerado isoladamente. Por outro lado, reduzir a análise dos elementos constitutivos “internos – que supostamente, peculiarizam à profissão um perfil específico: seu objeto, objetivos, procedimentos e técnicas de atuação etc. – significa extrair, artificialmente, o Serviço Social das condições e relações sociais que lhe dão inteligibilidade e nas quais se torna possível e necessário. Significa privilegiar a visão focalista e ahistórica que permeia muitas das análises institucionais. A tentativa de superação dessas orientações metodológicas implicou considerar que a apreensão do significado histórico da profissão só é desvendada em sua inserção na sociedade, pois ela se afirma como instituição peculiar na e a partir da divisão social do trabalho. Como a profissão só existe em condições e relações sociais historicamente determinadas, é a partir da compreensão destas determinações históricas que se poderá alcançar o significado social desse tipo de especialização de trabalho coletivo (social), mais além da aparência em que se apresenta em seu próprio discurso, e, ao mesmo tempo, procurar detectar como vem contribuindo, de maneira peculiar, para a continuidade contraditório das relações sociais, ou seja, do conjunto da sociedade. (Iamamoto & Carvalho,1985, p.15-16)
Referências
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Sobre os autores
Aline Rocha. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela UFF, Mestra e Bacharela em Serviço Social pela UFRJ com formação em Educação Popular pela Pró-reitoria de Extensão da UFRJ. Atuante em Pesquisas e Projetos de Extensão Acadêmica com ênfase em Favelas e Comunidades Urbanas, principalmente nos temas: Cooperativismo Popular, Economia Solidária, Tecnologia Social, Direito à Cidade e Habitação Popular. Possui experiência como consultora para o desenvolvimento metodológico e implementação de processos participativos inerentes aos Planos Locais para Habitação de Interesse Social e como coordenadora de projetos socioambientais. Entre 2009 e 2017 exerceu a vice-presidência e diretoria financeira da ONG Soluções Urbanas, responsável pelo Projeto Arquiteto de Família, premiado pela FINEP na categoria Melhor Tecnologia Social da Região Sudeste2013. aline_rocha@id.uff.br
Bruno Jose Cruz Oliveira é Graduado em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense, possui Mestrado e Doutorado em Serviço Social pelo Programa de PósGraduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Pesquisador Visitante do ISCTE/ Portugal e Professor Associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro lotado no Departamento de Serviço Social. Tem experiência na área de Serviço Social, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, territórios, participação e movimentos sociais. Correio eletrônico: brunojcoliveira@yahoo.com.br
Camila Barros Moraes é Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestre em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, atua como Professora Substituta na Escola de Serviço Social da UFF e Assistente Social no município de Maricá. Email. camila.barrosm@yahoo.com.br
Carla Cristina Marinho Piva é assistente social, Doutora em Serviço Social pela PUC-Rio; Mestrado em Serviço Social pela UERJ; Especialização em Serviço Social e Saúde pela UERJ; Especialização em Políticas Sociais pela UERJ. Assistente social, servidora-pública da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, compõe a equipe técnica da Gerência de Desenvolvimento e Educação Permanente (GDEP). carla10marinho@gmail.com
Caterina Di Giovanni é doutorada em Estudos Urbanos pelo ISCTE-IUL e pela FCSHUNL. É arquiteta pela Universidade de Palermo, com pós-graduação em Urbanismo na Administração Pública, da Universidade Sapienza de Roma. A sua investigação de doutoramento incidiu na temática da habitação pública em Portugal e Itália, através de uma abordagem interdisciplinar entre arquitetura e ciências sociais. Foi investigadora visitante na Universidade de Camerino e na Universidade de Roma Tre. Por fim, ganhou prémios individuais de investigação e prémios de arquitetura em equipa, e teve experiência de apoio à docência. Em 2023, foi contratada pelo ICS-UL no âmbito do projeto LOGO – A
governança local das políticas de habitação. Uma investigação das estratégias locais de habitação – coordenado pelo Marco Allegra. teri.digiovanni@gmail.com
Daniel Mendes Mesquita de Sousa. Arquiteto e urbanista formado pela UFRJ. Doutor e mestre em Planejamento Urbano pela UFF. Pesquisador associado do NEPHU-PROEXUFF. Membro da Comissão de Assistência Técnica e Habitação de Interesse Social do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro. Arquiteto e Urbanista da Equipe Técnica do NUTH/DPERJ. danielmendesms@yahoo.com.br
Edson Diniz é historiador. – Graduado em história (UERJ). Mestre em Educação Brasileira (PUC-Rio). Doutor em Educação Brasileira (PUC-Rio). Integrante do Complexo de Formação de Professores (UFRJ)Criador do Núcleo de História, Memória e Identidade da Maré (NUMIM)cofundador da Redes de Desenvolvimento da Maré. Email: edsondiniznobrega@gmail.com
Francine Helfreich. Assistente Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense/Niterói(UFF) e do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em ServiçoSocial e Desenvolvimento Regional (PPGSSDR). Coordena o Núcleo de Estudos ePesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE) e integra o Núcleo de Estudos ePesquisas Habitacionais e Urbanos (NEPHU/UFF). Email: francinesantos@id.uff.br
Glauco Bienenstein. Arquiteto e Urbanista formado pela UFF. Mestre em Geografia pela UFRJ. Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR da UFRJ. Pós-Doutor em Economia pela Unicamp-SP. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF. Professor associado ao NEPHU- PROEX-UFF glaucob01@gmail.com
Joana Valente Santana. Assistente social, professora Doutora da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará/UFPA. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Cidade, Habitação e Espaço Humano (GEP-CIHAB/PPGSS/UFPA). Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará (1992), mestrado em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará (1997) e doutorado em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). Pós Doutorado na Universidad de Buenos Aires (Argentina) no Centro de Investigaciones Habitat y Municipio, Facultad de Arquitectura, Diseo y Urbanismo. Bolsista Produtividade em Pesquisa PQ, nível 1D. Email: joanavalentesantana@gmail.com
Regina Bienenstein. Arquiteta e urbanista formada pela UFRJ. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Syracuse. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF. Coordenadora do NEPHU-PROEX-UFF. bienenstein_regina@id.uff.br
Rosangela Dias Oliveira da Paz. Assistente social, professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais (NEMOS/PPGSS/PUCSP). Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP (2002), mestre em Serviço Social pela PUCSP (1996). Membro do Fórum sobre Trabalho Social em Habitação de São Paulo e da Articulação BrCidades. Email: rosangpaz@gmail.com
Vitoria Gouveia. Arquiteta e Urbanista graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Habitacionais e Urbanos (NEPHU/UFF). Email: vitoriagouveia@id.uff.br
Viviane Carmen é Assistente Social formada pela Universidade Federal Fluminense. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGSS). Mestre em Políticas Públicas e Direitos Humanos pelo NEPP- DH/UFRJ. Especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Especialista em Gênero e SexualidadeUniversidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes - Universidade de São Paulo Atua há 16 anos no Complexo da Maré/RJ – Brasil. vivianecarmen@gmail.com