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17 a 23 de maio de 2017 | www.arquisp.org.br
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O ato de comer com companhia é uma experiência que vai além de saciar a fome; envolve convivência, partilha e descontração Nayá Fernandes
É
nayafernandes@gmail.com
domingo e, um a um, filhos, netos, primos, cunhados e amigos vão chegando. O cheirinho, vindo da cozinha, desperta atenção, olhares e estômagos. O almoço em família foi e continua sendo um dos momentos marcantes e esperados para muitos, principalmente para as crianças. Para Fernando Tadeu Marco Teixeira, 36, e Carolina Fiorientino, 35 (confira a entrevista na página 11), por exemplo, o interesse pela cozinha começou a partir das experiências vividas em casa, com seus pais e avós. Tadeu, que trabalha como analista na Reitoria de Cultura e Relações Comunitárias da PUC-SP, lembra-se ainda hoje quando, aos 8 anos, com o caderno de receitas da sua mãe e acompanhado por ela, fez uma receita de pizza, que “ficou horrível”, disse ele, rindo da própria trapalhada. Mais velho entre dois irmãos, Tadeu esquentava a comida que a mãe deixava para os dois quando ela ia para o trabalho, mas não se contentava com isso. “Eu sempre incrementava o que ela deixava, com algum molho ou acrescentando algo que meu irmão e eu gostávamos de comer, e assim, percebi o quanto era bom criar receitas diferentes na cozinha”. Ele e a esposa, Noelle Lali Marco de Teixeira, dividem em casa a tarefa de cozinhar, mas é ela quem acaba fazendo “a comida que sustenta a família durante a semana”, enquanto Tadeu gosta de preparar pratos mais elaborados e ter liberdade para inventar novas combinações, até mesmo para ensiná-las depois no “Rango”, canal no YouTube que inaugurou em setembro de 2013, depois que deixou o trabalho que tinha como disc-jóquei (DJ). Tadeu também gosta de cozinhar com a filha e, para ele, é sempre oportunidade de descontração e convivência. “É bonito quando a família participa de todo o processo, desde a preparação do alimento, até o comer à mesa, e todos desligam o celular ou a televisão e engatam uma boa conversa”, afirmou o youtuber, que tem mais de 120 mil seguidores.
Na panela, nossa humanidade
“Ao lado dos afetos, nada melhor do que a comida para revelar a nossa humanidade”. A afirmação é de Oscar Maldonado, 46, graduado em Filosofia e mestre em Teologia, que mora atualmente no Paraguai. Ao O SÃO PAULO, ele explicou que o alimento, o ato de cozinhar e o de comer, tornaram-se objetos de estudo de várias ciências e resultaram atrativos para a Antropologia, pois “a comida como símbolo é riquíssima, uma vez que expressa a criatividade humana de significar a realidade”. Nesse sentido, pode-se afirmar que há no alimento elementos que ultrapassam a dimensão do saciar-se, e que o comer vai além da necessidade humana de sobrevivência. É comum as pessoas sentirem saudade da comida da avó ou da mãe, por exemplo. Isso acontece não simplesmente porque aquela determinada comida não pode ser encontrada em um restaurante ou mesmo refeita com os mesmos ingredientes, mas porque na família a descoberta dos sabores e dos gostos preferidos de cada um, ou mesmo a recorrência de determinado alimento, acaba-se por tornar-se uma demonstração de
carinho e um caminho realizado em conjunto. Ali acontece a partilha de experiências que deram certo ou errado, de segredos, medos e decisões importantes, como um pedido de casamento ou a chegada de um novo membro. A mesa é, ao mesmo tempo, guardiã de alegrias e dores, e é isso que a torna tão preciosa para a trajetória humana. “Sem o alimento, o ser humano morre, de modo que a princípio ele se alimenta para sobreviver, mas acontece que somos criaturas que não se contentam apenas com a saciedade. Nós humanizamos os nossos atos, procuramos significar o que fazemos. O simples saciar-se exige algo mais, isto é, um significado que ultrapasse o ato de comer. Somos seres rituais, de modo que a mesa ganhou um simbolismo afetivo de extraordinária riqueza. Eis a comensalidade, cujo significado provém justamente do estar à mesa, não apenas em vista da nutrição, mas da alegria do encontro que a mesa propicia. Assim, a cozinha e a mesa passam a ser lugares de relações afetivas”, comentou Oscar. E é também por isso que há, na cozinha, segredos que são guardados ‘a sete chaves’ e que, em geral, não pertencem a quem teve mais oportunidade de estudar ou cursar uma faculdade. Quando o assunto é cozinha, quem dita as regras é a experiência, é o suceder dos anos e, como diz o ditado popular, ‘a barriga de quem se esquenta a beira do fogão’, que pode, com mais propriedade, ensinar uma receita e os caminhos para que ela dê bons resultados, seja na comida em si, seja em outras questões do dia a dia. Tadeu, por exemplo, disse que mudou sua relação com a cozinha depois do canal no YouTube e percebeu que seu comprometimento com a receita aumentou significativamente. “Hoje me preocupo com as pessoas que querem aprender comigo, me preocupo se os ingredientes indicados são de fácil acesso em todo o país e também em manter uma linguagem simples”, contou ele, que começou a gravar os vídeos de maneira muito espontânea e só depois, a partir do retorno do público, percebeu que podia ampliar o projeto.
Cozinhar é fácil
No YouTube, Carol Fiorentino começou um canal há cerca de dois anos, ao mesmo tempo em que foi convidada para ser jurada no programa
Luciney Martins/O SÃO PAULO
Quando a vida é
colocada à mesa que formou-se em gastronomia na Universidade Anhembi Morumbi. Essa tendência de tornar a cozinha “gourmet”, ou seja, de apostar na alta culinária, tem ganhado cada vez mais adeptos e, se por um lado, pode despertar as pessoas para o ato de cozinhar, por outro, pode também afastá-las. Oscar recordou que, historicamente, as mudanças acompanharam os diferentes estágios evolutivos da humanidade. “Os nossos antepassados, antes da domesticação das sementes ou da revolução da agricultura, eram essencialmente caçadores. A caça exigia o fogo, e o fogo sempre foi excelente aliado do ser humano, pois ao redor dele aconteciam as grandes festas e eram narradas extraordinárias histórias sobre a vida, a morte, Deus e as origens. Mais tarde, o agricultor procurará transferir esse espaço simbólico para a cozinha, onde assará os pães e os demais produtos do seu esforço. Com o advento da vida urbana, é impossível ter um fogão à lenha dentro de um apartamento. A vida moderna nos obriga à adequação, e desse modo surgem as comidas rápidas, enlatadas, instantâneas. Infelizmente, fomos perdendo cada vez mais o significado da mesa partilhada.”
Cultivar, conhecer e comer
“Bake Off Brasil”, do SBT, que começará sua terceira temporada em agosto. Para ela, o canal foi também uma tentativa de aproximar a cozinha das pessoas e mostrar que cozinhar não é uma tarefa só para chefes renomaFernando Tadeu/Rango
dos. “Os chefes são essenciais quando se trata da cozinha profissional, mas é importante que as pessoas compreendam que é possível cozinhar com o que se tem em casa, sem utensílios especiais ou sofisticados”, disse Carol,
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Existe hoje a preocupação de que as pessoas tenham consciência do que estão consumindo e invistam em uma alimentação o mais saudável possível. Multiplicam-se instituições, blogs e páginas nas redes sociais que incentivam o cultivo de hortas em casa e ensinam como plantar e colher legumes e verduras em pequenos espaços. Tais atividades podem colaborar para que se mantenha uma dieta equilibrada, bem como as propriedades nutritivas dos alimentos. “Sempre que posso, cozinho, pois para mim tanto a cozinha quanto a mesa são um ritual, um modo de humanização. O lado bom da moda gastronômica que estamos vendo é a possibilidade de resgatar a importância da cozinha como espaVeja a receita ço familiar e da mesa como lugar de encontro. deste bolinho Contudo, a comida não pode passar por um da vovó, processo de glamourização, pois tudo o que é de Carol glamour acaba por ser fonte de lucro desmediFiorentino, na do”, lamentou Oscar. página 11 Outra característica interessante é a diversidade de receitas e diferentes tipos de frutas e verduras que dependem do clima e que mudam em cada região. No Brasil, por exemplo, o alimento oferece identidade. São Paulo é conhecido pelo pastel, Minas Gerais pelo pão de queijo e a Bahia pelo acarajé, enquanto o chimarrão é típico do Rio Grande Sul. Mas, existem ainda culturas desconhecidas e um vasto campo a ser estudado e divulgado no que se refere à culinária brasileira. Fernando Tadeu/Rango
As receitas da coxinha e do sushi burger (hambúrguer de sushi) podem ser vistas no canal do YouTube “Rango” do Tadeu (novas receitas são colocadas às quintas-feiras, às 19h)
Uma ceia mais que especial “Quem já teve que comer só, sabe que a comida perde o gosto, mesmo que tenha sido preparada com cuidado e o sabor seja muito bom. Sem alguém para partilhar, a refeição resulta insossa e sem graça. Mas, poder compartilhar o alimento com um ser amado, por mais simples que seja, torna o momento extraordinário. A mesa é uma experiência maravilhosa”, disse Oscar na entrevista à reportagem. Ele explicou que, além disso, a comida tem relação direta com as religiões: “Para o Cristianismo, a mesa é essencial. Não esqueçamos que Jesus Cristo quis nos deixar a sua maior herança numa ceia. Chama a atenção que o Senhor tenha desejado celebrá-la numa casa e não na sinagoga ou outro recinto religioso. Ele privilegiou uma casa com uma cozinha e um refeitório. E alguém deve ter preparado o banquete, pães, cordeiro assado, saladas, frutas secas e vinho. Não é muito comum pensarmos nas mãos que prepararam tais iguarias. E a comunhão foi completa. O Senhor disse ‘comam, bebam, sirvam uns aos outros, e amem, assim como eu vos amo’. Tudo isso aconteceu durante uma ceia. Até hoje, fazemos memória daquele gesto, e ainda nos alimentamos daquele espírito, ao afirmarmos com fé que comungamos o Corpo e o Sangue de Cristo. A mesa é sagrada, merece reverência. Comer em companhia é certamente uma experiência de comunhão. Quanta alegria numa mesa partilhada num domingo qualquer, espaço de encontro, diálogo, partilha e amor fraternal”.
Comida invisível
Um grande desafio quando o assunto é comida é a distribuição dos alimentos de maneira justa – há hoje no mundo quase 800 milhões de pessoas que ainda passam fome. Por outro lado, estima-se que haja um desperdício de mais de 40 mil toneladas de alimentos por ano no Brasil. Uma possível solução seria, portanto, distribuir os alimentos ainda bons para consumo, porém inaptos para comercialização. Na prática, entretanto, isso pode ser um problema para hortifrútis ou restaurantes. Pensando nessa realidade, e após uma experiência que fez com o filho adolescente numa visita até a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), foi que Daniela Leite começou o projeto “Comida Invisível”, que pretende ajudar as pessoas e negócios a se conscientizarem sobre o desperdício de comida no Brasil. Entre os focos do “Comida Invisível” está o de conectar possíveis doadores de alimentos a organizações não governamentais e instituições que precisam de doações para projetos sociais, bem como ajudar as pessoas a mudarem seus hábitos no dia a dia, como o de utilizar também as cascas de determinadas frutas e dos legumes.