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PEÇAS TEATRAIS DE NAZARENO TOURINHO
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AGRADECIMENTOS
Ao dramaturgo Nazareno Tourinho, pelas lições de vida e de escrita para a cena; pelas longas conversas e entrevistas para falar sobre sua obra; pela confiança e honra que me concedeu para organizar e apresentar as quatorze peças aqui reunidas; pela amizade iniciada em maio de 2010. Agradecimento extensivo à família Tourinho. À Josefa Magalhães, estudiosa e pesquisadora da obra de Nazareno, colaboradora incansável desde o início do Projeto de Pesquisa Memórias da Dramaturgia Amazônida: construção de acervo dramatúrgico. Ao Fábio Limah, meu orientando – Programa de PósGraduação em Artes, do Instituto de Ciências da Arte (ICA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) – cuja dissertação tratará de parte da obra de Nazareno Tourinho. Aos bolsistas de iniciação científica, Alyne Góes e Enoque Paulino, pela leitura atenta e montagem da peça Nó de 4 pernas, em 2012. Ao bolsista Mailson Soares pela leitura apaixonada dos textos de Nazareno. Agradecimento especial à Assembleia Legislativa/Estado do Pará, na pessoa do Deputado Estadual Edmilson Rodrigues, pelo apoio amigo e financeiro, sem o qual esta publicação não viria a público.
BENE MARTINS (Organizadora)
BENE MARTINS (Organizadora)
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PEÇAS TEATRAIS DE NAZARENO TOURINHO
SUMÁRIO PREFÁCIO ......................................................................................................
BENE MARTINS
PALAVRAS DO AUTOR .....
(Organizadora)
PALAVRAS DO EDITOR .... PALAVRAS DO PATROCINADOR.....
Colaboração: Josefa Magalhães & Fábio Limah
PERFIL BIOGRÁFICO DO AUTOR.... CRÍTICAS REFERENTES À DRAMATURGIA DO AUTOR....
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
NÓ DE 4 PERNAS (1961) ........................................................................................... SEVERA ROMANA (1970) ...................................................................................... O HERÓI DO SERINGAL (1976) ............................................................................
MARTINS, Bene Peças Teatrais de Nazareno Tourinho / Martins Bene. 2013.
FOGO CRUEL EM LUA DE MEL (1976) ............................................................. AMOR DE LOUCO NUNCA É POUCO (1976) ....................................................
XXXp.
LEI É LEI E ESTÁ ACABADO (1984) ....................................................................... A GREVE DO AMOR (1986) ..................................................................................
Editora ?????????
PAI ANTÔNIO (1989) ..............................................................................................
ISBN- 978.85.338.0540-8
A ESTRANHA LOUCURA DE LORENA MARTINEZ (1997) ........................ 1. Teatro. 2. Artes-Pesquisa. 3. Dramaturgia. I. Título. CDD - 22. ed. 792.098115
CAPRICHOSA LIÇÃO DOS ESPÍRITOS (1997) .............................................. CABANAGEM (2012) ................................................................................................ QUINTINO BOM DE BRIGA DEFENSOR DOS SEM TERRA (2013) .............. SONHO DE UMA NOITE DE INVERNO (Inédita) ........... A LOUCURA DE UMA ATRIZ (Inédita)..........................
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APRESENTAÇÃO
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dramaturgia, apresentam conflito, peripécia, agilidade, verossimilhança, diálogos bem estruturados, surpresa, resolução inesperada para os impasses, nem sempre com final
Nazareno Tourinho como dramaturgo
considerado feliz, a exemplo da peça Nó de 4 Pernas, em cujo término os casais ficam com filhos trocados. Esses são alguns dos requisitos para que haja empatia entre autor e
Sei que existem pessoas acreditando que as peças, assim como partituras musicais, não servem para leitura silenciosa. Diferentemente da música, no entanto, a dramaturgia é concebida e gravada em palavras. Como cada leitor de peças é um diretor autonomeado, com todo um teatro na cabeça, parto da premissa de que o leitor bem equipado seja capaz de experimentar e avaliar uma peça em seus estudos e, ainda, que uma peça que não seja boa para ser lida, não deva ser uma boa peça. (BENTLEY, E. O Dramaturgo como Pensador).
leitor/espectador. Nazareno é mestre nesse ofício da escrita para a cena. E, naturalmente, seus textos sugerem ou exigem interpretação adequada. Essas qualidades são comuns em todas as peças do autor, cujas temáticas abordam desde a exploração dos seringueiros, à época áurea da extração do látex; revolta dos caboclos contra o poder estabelecido; escravidão em foco; greve de amor entre casais ribeirinhos; religiosidade; ética; censura; repressão. Não há como negar as referências pessoais do autor – sem biografismo, a constatação é evidente – na coerência com que ele
Após breve contextualização da existência do autor nos aspectos poético-sócio-
traça entre seu modo de interpretar o mundo, seus princípios, sua filosofia e maneira de
político-culturais buscar-se-á apresentar a obra completa de Nazareno Tourinho, composta
viver, suas crenças. Estas facetas são recorrentes na sua obra, cuja produção escrita,
por quatorze peças, doze publicadas entre os anos de 1961 e 2013, mais duas inéditas. As
localizada geograficamente, extrapola espaços, porque fala das gentes para as gentes
tramas textuais contêm, em sua escrita, elementos da cultura popular, do vocabulário
amazônidas ou não. Eis outra razão que reflete na recepção, remontagens e circulação das
amazônico, dos problemas sociais, psicológicos, entre outros temas. A partir de
suas peças encenadas por grupos de teatro amadores e profissionais, pelo Brasil afora,
acontecimentos históricos ou totalmente ficcionais, Nazareno Tourinho põe na escrita
desde a publicação do primeiro texto, em 1961.
cênica traços dos povos que aqui habitam. Essas especificidades da escrita são trabalhadas
Uma das críticas mais coerentes sobre as primeiras peças deste dramaturgo foi a
pela temática abordada, pela linguagem clara e bem articulada, pela importância que
do acadêmico Ápio Campos, escrita em 1969, quando Nazareno Tourinho foi empossado
imprime à memória coletiva. São esses e outros cuidados com os textos que garantem a
na cadeira n. 2, da Academia Paraense de Letras. A vida literária de Nazareno Tourinho é
comunicabilidade do autor com o público. Suas peças são apreciadas tanto pela leitura
um nó de quatro pernas, em cujas pontas estão o Povo, a Terra, Deus, o Teatro. Para Ápio
quanto pela encenação, conforme epígrafe de Bentley, Nazareno escreve excelentes peças.
Campos, Nazareno é homem do povo sim, principalmente,
Conheci Nazareno Tourinho em 2010 – já havia lido algumas peças de sua autoria – Nazareno foi o dramaturgo homenageado no Primeiro Seminário de Dramaturgia
Porque amou o povo, sentiu o povo, viveu o povo e apreendeu-lhe o gosto, a linguagem, os anseios e as paixões, as dores e os desesperos. (...) Foi o povo que o marcou em definitivo para a vocação literária e foi o povo que determinou e condicionou a sua predestinação para o texto cênico. Nenhum outro gênero poderia seduzi-lo mais do que o teatro, justamente pelo seu caráter dialogal e vivencial e através dele V. Exa. pode recriar as personagens que conheceu na vida real, e por isso que o teatro de V. Exa., antes de ser um diálogo com o público, é um diálogo íntimo, seu com a sua vida, seu com o seu mundo, seu com a sua consciência (CAMPOS, 1969, p. 124)2.
Amazônida. Este evento, ação do Projeto de Pesquisa Memórias da Dramaturgia Amazônida: construção de acervo dramatúrgico, sob minha coordenação, é anual. A partir desse encontro, estreitamos relações no sentido de estudar, montar e, principalmente divulgar sua obra. As novas gerações merecem conhecer os textos desse autor amazônida que, desde o início de sua carreira, escreve, principalmente, sobre as mazelas sociais dos povos, com ênfase na crítica reflexiva. “Eu escrevo pensando no efeito social das minhas peças”1. Seus textos, para além da cena, se prestam à leitura individual ou dramatizada, eles têm fluidez, têm leveza, senso de humor, ironia e, acima de tudo, como requer a boa 1
Entrevista realizada por Fábio Limah em 24 de novembro de 2012.
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Revista da Academia Paraense de Letras, 1969.
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imaginação corta as correntes do impossível e nos solta no espaço azul do horizonte... Abre a porta da imaginação com chave da loucura, rebenta, Elza, rebenta!!! (Gil, em Fogo Cruel em Lua de Mel, 1976).
Além do genuíno interesse e envolvimento com as questões sociais comuns a toda humanidade, ou como afirma Ápio Campos, com as quatro pontas fundamentais da existência – o ser humano, as condições materiais para a sobrevivência, a fé e a arte – Nazareno, ao escrever suas peças, é de extrema generosidade; tudo está demarcado,
Além das qualidades inerentes ao texto literário escrito para o teatro, os diálogos
indicado pelas rubricas em todas as cenas: da caracterização psicológica à física das personagens, do conflito principal às ações e reações possíveis, do cenário ao figurino, ele delineia os pormenores e passos encadeados de tal maneira que, mesmo jovens encenadores podem montá-las. Seus textos são elaborados a partir de uma concepção
dos personagens primam pela clareza, pela reflexão filosófica, pela crítica ao sistema e às injustiças ainda hoje em voga no cotidiano dos nossos povos. A exemplo do diálogo do casal da peça Amor de Louco Nunca é Pouco, quando discutem suas idiossincrasias:
poética muito particular, cuja visão de estética ultrapassa a contemplação do belo, no
ELA Você me deixa confusa, embaraçada; me diga uma coisa: além de arte dramática você estudou Psicologia, Psicanálise?
sentido tradicional do termo, ou melhor, seria o belo no sentido mais amplo, no sentido de expor vilezas e grandezas do ser humano enredado em conflitos e situações diversas. Esse
ELE Estudei. Só que não estudei as pessoas em livros, estudei nelas mesmas... Não estudei por fora, estudei por dentro... Aliás, eu não estudei, eu vivi. Quase todos os tipos humanos eu já vivi no palco. Já senti na minha pele, nos meus nervos, nas minhas emoções, no meu cérebro (Amor de Louco Nunca é Pouco, 1976).
jogo de opostos é tratado pelo autor com delicadeza, elegância, beleza e, acima de tudo, respeito às fraquezas humanas. Seus textos, por mais intrincados que sejam, acenam para a esperança, para a confiança no crescimento do ser homem, podem apresentar assuntos trágicos com humor. Severa Romana é exemplar nesse aspecto. Nazareno, no entanto, adverte:
A dramaturgia de Nazareno é pensada e escrita de maneira visceral, não é aquela Não sei se tecnicamente, literariamente, é lícito a um autor fazer comédia com um tema trágico. Eu fiz. Fiz porque minha intenção, com esta peça, foi documentar de forma alegre e agradável a antiga vida suburbana de minha terra, com suas crenças ingênuas e poéticas, suas superstições e velhos costumes que vão desaparecendo à sombra dos edifícios de concreto. Ao escrever esta comédia “sui generis” agi com a maior honestidade intelectual. Procedi uma rigorosa pesquisa a fim de apurar como de fato ocorreu a história de Severa Romana, que até hoje muitos consideram SANTA, e coloquei na peça todos os detalhes encontrados, estruturei mesmo o enredo de acordo com tais detalhes, fazendo concessões à literatura, o que não é bom para um autor teatral (TOURINHO, 1970).
escrita de gabinete, é o traçar de linhas pautadas na pesquisa, na observação e nas vivências de pessoas envolvidas em situações críveis. Ainda se pode afirmar que, à semelhança de Bertolt Brecht, Nazareno também comunga da ideia de que “o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo suscetível de modificação”. (BRECHT, 2005, p. 21)3. As peças de Nazareno apresentam um tom de aposta no ser humano. Essa é uma das razões da boa acolhida e recepção, as pessoas identificam-se de tal maneira que cada re-encenação é prestigiada pelo público em geral, a exemplo das remontagens das peças: Fogo Cruel em Lua de Mel e Nó de Quatro Pernas, em 2012.4
Para Nazareno teatro é também expressão de nuances da realidade, da imagística,
Outra tônica dos textos de Tourinho é o jogo com as tradicionais oposições entre
é espaço de divergências, experiências, ensinamentos, pesquisa documental, ficção e
bem e mal; pureza e pecado; vício e virtude; sagrado e profano; lucidez e loucura. Em
exercício da imaginação. O ser humano tolhido em sua capacidade de imaginar seria um
Fogo Cruel em Lua de Mel, o protagonista afirma que loucura é revelação, conforme
ser menos feliz. Uma das características da imaginação, para o autor e um dos seus
fragmentos do diálogo do casal em noite de núpcias, ele considerado bom vivant; ela
personagens, seria a de que ela
extremamente conservadora:
Despreza o raciocínio, o raciocínio é traiçoeiro, só serve para enredar a gente da teia do artificial, do calculado, não conduz a nada de grande e de belo (...) a imaginação é diferente. Elza, a
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BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. Fogo Cruel, dirigida por Cláudio Marinho. Nó de 4 Pernas, dirigida por Enoque Paulino e Alyne Góes.
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(...) ELZA De fato, que diria, vendo você afiançar que jamais botaria na boca um pingo de álcool.
suportou? Ninguém sabe. E ninguém mais saberá... Eu posso contar a minha história, o senhor pode me fazer ter piedade, falando da repreensão do seu chefe e da promoção perdida. Porém este mendigo morto já não tem história e nem sequer terá sepultura: seu destino é a vala comum do cemitério. E como não tem história não é ninguém, é apenas um cadáver que vai dar trabalho pro médico legista e incomodar o dono da loja aí do lado...
GIL (Encosta a garrafa na imagem.) Eis aí dois símbolos, para você que admira simbolismos: o santo e a garrafa... a virtude e o vício... a pureza e o pecado... o céu e a terra... O teu santo e a minha garrafa... juntos, nos separando.....
POLICIAL Puxa! Como você fala. Está nervosa. (Lei é Lei e Está Acabado, 1984).
(...) ELZA Você é um maluco, ouviu? Um maluco!
Além de tecer os temas vivenciais, ou de perceber o ser humano em todas as condições
GIL Sou. Mas a minha loucura é mais honesta que a tua impostura. Experimenta você também enlouquecer, experimenta. A loucura é uma revelação. (...) Enlouquece você também, enlouquecer é sublime. Enlouquece comigo (Gil, em Fogo Cruel em Lua de Mel, 1976).
peça Pai Antonio. Nesta, além de dialogar com o público e explicar um pouco sobre o que
Para Gil a loucura liberta. Elza, até então devota e recatada, em situação de desespero, à
de outro recurso para esta peça, além dos tradicionais elementos cênicos. Ninguém poderá
iminência da morte, induzida por seu marido, começa a refletir sobre o tempo investido em
sociais, numa referência a Brecht, o autor ainda recorre à metalinguagem, especialmente na
verão, há a sugestão ou exigência da mistura de linguagem teatral e cinematográfica, hoje tão em voga. Nazareno, para além das tendências contemporâneas, já antevia a necessidade encenar Pai Antonio sem recorrer às técnicas da filmagem.
devoção e recato apenas. Gil, ao contrário, sempre aproveitou as coisas boas da vida. Mas,
O texto escrito a partir de pesquisa bibliográfica tece a trajetória da lendária
paradoxalmente, ele também em situação limite, demonstra o quanto o ser humano pode
personagem de um escravo, o Pai Antonio, "história do último escravo condenado à morte
surpreender quando se dispõe a tirar as máscaras, a olhar para si sem receio do que verá. Este casal
no Pará". Pai Antonio viveu em uma fazenda de Santarém, foi condenado à morte por ter
passa por uma transformação, ou melhor, uma inversão de comportamentos ante a morte que os
assassinado o carrasco patrão que a todos maltratava. Assim inicia-se a peça sobre o sábio
aproxima de si mesmos.
escravo Pai Antonio
Assim, as peças de Nazareno tecem as histórias das personagens/espelhos de vivências e todas as personagens têm razões justificadas para suas existências, não há julgamento, nos textos do autor, há espaço para vozes ignoradas, todos são elevados à categoria de humano com suas qualidades e defeitos, independente de classe social ou profissão. O embate entre a prostituta, o
(Espaço vertical do palco dividido em dois planos distintos. Ambos se demoram sem qualquer iluminação depois que o pano sobe. Quando a plateia começa a revelar sinais de impaciência ouve-se uma voz metálica, impessoal).
policial e o mendigo morto, em Lei é Lei e Está Acabado é aviltante e bem familiar naquele antigo jogo de quem manda é a autoridade e o resto obedece. A prostituta tratada como um traste de rua, ao defender um mendigo, é aviltada pelo policial com os costumeiros maus tratos aos considerados ninguém. A prostituta protesta e argumenta sobre as razões de cada um levar a vida que leva. Mas a reação do policial é de indiferença apenas, vejamos: PROSTITUTA E a minha história? Não lhe passou pela cabeça que tenho uma história, que cada uma das mulheres que passeiam pelas ruas, madrugada a dentro, têm uma história? E este mendigo morto, imagina que não teve uma história? Olhe pra ele, não sente nada? Quem sabe um dia este velho também não quis ser investigador da Polícia? Quem sabe não se tornou Mendigo por causa de desgosto, de uma traição. Quem sabe não teve posses e não foi enganado pelos amigos, pelos parentes? Quem sabe das humilhações que ele
VOZ Calma, calma, calma. É cedo para vos sentirdes incomodados, pois a representação ainda nem teve início... Sabei logo o seguinte, a peça que ireis assistir é diferente, não se encaixa no modelo de teatro convencional, aliás, tem uma ação dramática “esquizoflâmica”, isto é, esquizofrênica inflamada. Melhor dizendo: uma ação dramática incoerente e contraditória, ora densa, ora rarefeita, sempre pontilhada de quebras e curvas, nunca linear, por motivos brechtianos, confessadamente panfletários. Ostentando um caráter documental tão minucioso quanto critico, com sabor jornalístico-livresco não devia talvez ser encenada por que o palco, diz-se e pensa-se, não é o lugar para literatura. Mas o que se há de fazer se a arte cênica, como todas as outras, está permanentemente renascendo para novas formas??? Bem, chega de explicação, prestai atenção (Pai Antonio, 1989).
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Após essa espécie de introdução que serve para situar o espectador, a peça toda é
Não se pode ler a peça Pai Antonio de maneira indiferente, o texto faz refletir e,
perpassada pelos ensinamentos do velho escravo, há o repassar, o revitalizar das histórias
muito, sobre esse período injusto e violento em que viveram os povos negros. Para reiterar
antigas aos jovens. Pai Antonio, à semelhança do antigo contador de causos, conta e
a importância da trama da peça contada por um anônimo, representante da história não
reconta as suas vivências e as de outros. Assim mantém a tradição dos seus antepassados e
oficial, o historiador francês Jacques Le Goff nos lembra que
a recria ao contar ao seu modo, infelizmente, ainda sob o regime da escravidão. Regime que tudo controlava, menos a imaginação e a memória dos escravizados, para eles, o apego e cuidado com a memória era estratégia de sobrevivência acima de tudo. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, no poema Nosso Tempo, invocamos o velho preto: conta velho preto, conta o que resta na memória, tudo tão difícil, “e muitos de vós nunca se abriram” (ANDRADE, 1984, p.32). E Pai Antonio assim o faz, “(...) Foi filho, pode acreditar. Escutei do meu pai, que escutou do pai dele, que escutou do pai do pai dele. Faz um tempão, porém aconteceu, juro
É preciso lutar pela democratização da memória social. Tal luta se faria, como propôs Triulzi, resgatando conhecimentos não-oficiais, não institucionalizados, que ainda não se cristalizaram em tradições formais... que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou de indivíduos (recordações e experiências pessoais), contrapondo-se com o conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos (LE GOFF, 1984, p. 477). Pai Antonio, ao narrar suas lembranças e as de seus antepassados escravos socializa uma memória que a todos pertence, que paira viva nas vozes e recordações individuais, somente quando
por está luz que me alumia. Aconteceu e não deve ser esquecido, vocês têm de botar tudo o
são contadas tornam-se memória social, constituinte da história dos povos. O professor de
que eu disse na cabeça dos filhos que tiverem”. (Pai Antonio, 1989). A preocupação, o zelo
literatura, cinema e semiótica, Joel Cardoso, assim se refere à peça Pai Antônio.
com a lembrança dos velhos, sempre que vêm à tona, vem de maneira re-elaborada, pois que A função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável, alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, o trivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total, novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo (BOSI 1995, p. 68).
Um texto de registro e resgate de uma página negra do nosso passado; um contundente texto de denúncia; um texto que nos leva à reflexão; um texto que, ao nos percebermos como personagens da história, faz com que nos sintamos senão cúmplices, pelo menos, meio culpados pelos desmandos que tiveram lugar nesses perdidos rincões paraenses; um doloroso grito de revolta ecoando no marasmo do nosso comodismo (CARDOSO, 2012).
Embora todas as peças de Nazareno sejam dignas de estudos mais aprofundados, Ecléa Bosi refere-se à atualização que o indivíduo faz ao interpretar suas lembranças encobertas ou latentes, os silêncios da história, os fios da memória ou dos flashes do passado em texto falado, no caso do Pai Antonio. Ele seria, numa referência a Eduardo Galeano, um caçador/portador de vozes perdidas e verdadeiras vozes que andam esparramadas por aí. No caso da escravidão, tema da peça, restam ecos das tristes histórias, geralmente contadas pelo registro da história oficial. Nazareno Tourinho traz as vozes de
aqui destacamos somente alguns fragmentos de poucas peças. Todas serão analisadas na pesquisa a ser desenvolvida no meu projeto de pós-doutorado em 2015. Vale ressaltar ainda que, para além do compromisso com as problemáticas do povo, o autor é mestre em tecer diálogos intimistas, por assim dizer, seja entre casais, seja entre pais e filhos. Em A Estanha Loucura de Lorena Martinez, destacam-se vários momentos de diálogo franco entre mãe e filho, por exemplo:
quem protagonizou essa época. É como se o autor concordasse plenamente com a visão de Brecht sobre teatro. Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto (BRECHT, 2005, p.142).
BRUNO Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, você ia me cobrar isso. Depois fica posando de mãe moderna, liberal. LORENA E de fato sou. Desde que completaste vinte e um anos que brigo com o Bertolo defendendo o direito que tens de viveres a tua vida sem a nossa interferência. Não me arrependo disso, nem pretendo
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te impor nada; somente não consigo compreender a situação porque a bebida jamais foi o teu fraco, costumavas até criticar os amigos por jogarem fora nos bares o tempo que poderiam aproveitar lendo. De repente te puseste a fazer o mesmo (A
Estanha Loucura de Lorena Martinez,1997).
as tentativas de uma outra história que fracassou (GAGNEBIN, 1993, p. 56).
Segundo Nazareno Tourinho, “na História do Brasil a Cabanagem figura como a única revolução armada em que o povo pobre de uma região, no caso a Amazônia,
A capacidade de estabelecer a empatia entre os personagens e a plateia é mais
derrubou o governo legalmente constituído e assumiu de fato o poder político”. Não
uma referência nos textos de Nazareno Tourinho. Estudioso das artes cênicas, nunca se
importa o quanto durou essa tomada de poder, importa é demonstrar o gesto e a capacidade
contentou em escrever apenas, sempre estudou autores importantes do teatro. Ele escreve
de organização que as lideranças demonstraram à época. Em Quintino Bom de Briga,
numa linha considerada mais clássica, aristotélica em certos aspectos e, no que se refere à
Defensor dos Sem Terra, é o poeta-cantador quem narrará a saga de Quintino, até a sua
empatia, há que se concordar com Bertolt Brecht, ao se referir à Poética de Horácio,
morte. Neste texto, Nazareno dramatiza a versão do ponto de vista do perseguido pelos que
quando este formula de uma forma linda, segundo Brecht, uma teoria referente ao teatro
detêm o poder. São outras histórias até então soterradas que o autor traz à tona para, no
praticado por ele, e que foi proposta por Aristóteles!
mínimo arranhar a textura daqueles textos considerados portadores da única versão dos que lutaram na Cababagem, neste caso.
Tens de encantar e prender O coração do leitor. Sempre quem ri nos faz rir, E a tristeza, quando a vemos, Aos nossos olhos traz lágrimas. Deves, pois, se queres que eu chore, Teus olhos mostrar primeiro Todos molhados de pranto. (BRECHT, 2005, p.200). Somente quem entrevistou Nazareno Tourinho percebe esse envolvimento de rir e de
Aqui, outra referência se faz presente a do escritor francês Patrik Chamoiseau: “Oh, Sophie, meu coração, você diz ‘a História’, mas não quer dizer nada, há tantas vidas e tantos destinos, tantas trilhas para fazer nosso único caminho. Você, diz a História, eu, eu digo as histórias, aquela que você acredita ser a raiz de nossa mandioca é apenas uma raiz entre um bocado de outras” (CHAMOISEAU, 1993, p. 87). Nazareno ramifica as raízes e expõe outros galhos, outras vozes, outros cantos para encenar a mesma história, mas com outras roupagens.
chorar, de se divertir e de sofrer com seus personagens. Nazareno, ao falar sobre sua dramaturgia é
Por todas as características e importância da dramaturgia de Nazareno, é que
contagiante. Ele não só explica como surgiu a ideia para escrever determinada peça, como dá uma
aceitei a proposta de reunir as suas quatorze peças neste volume. A obra será distribuída
aula de composição textual, ou melhor, ao falar sobre, ele dirige a peça, vive os personagens;
para universidades, escolas, teatros, sociedade em geral; espero que o público aprecie,
contagia quem o ouve, fala com paixão, interesse e prazer. Outra característica da escrita de
estude, divulgue os textos, todos com sabor e vozes amazônidas, em diálogo com vozes e
Nazareno é a pesquisa sobre acontecimentos históricos, a exemplo da Cabanagem e
anseios de todos os povos.
Quintino Bom de Briga, Defensor dos Sem Terra, publicadas em 2012. O autor tece outro
Bene Martins
lado da história registrada até então. É como se Nazareno – ao ouvir e expor outras vozes, outros atores sociais – concordasse com a crítica que Walter Benjamin faz ao historicismo: O historiador burguês não questiona nem sua posição, nem a maneira pela qual ela se realizou. A história não é - como seu nome, no entanto, parece indicar! - uma história possível entre outras, mas o relato incontestável e edificante das múltiplas manifestações da vida humana. (...) A historiografia descreve o vasto espetáculo da história universal, mas não o questiona (...) está bem longe de poder discernir por detrás da história dos vencedores
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PALAVRAS DO AUTOR
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ela é um ser coletivo, uma entidade heterogênea, incapaz de decodificar os diálogos para extrair deles a essência dos signos mais abstratos ou sutis porque as falas se sucedem,
Como não poderia deixar de ser, abrimos espaço, neste volume, para que Nazareno Tourinho desse um depoimento sobre sua produção intelectual no campo da arte
vertiginosamente, ora voltadas para a caracterização psicológica dos personagens, ora empurrando a trama para o seu desfecho natural, lógico ou absurdo.
cênica. Ele, porém, achou que não ficaria bem falar a respeito das próprias criações
E, ainda, diversamente do romancista, que constrói a sua narrativa sem limitação
teatrais, pois para tanto julga-se suspeito. E assim pensando nos pediu que transcrevesse,
de tempo e espaço, como um pássaro voando em liberdade plena, o autor teatral é escravo
no lugar do depoimento, um texto de sua autoria divulgado há muito tempo, em 1987, em
de uma pequena área de representação e, no máximo, de uns cento e cinquenta minutos de
uma antologia da Academia Paraense de Letras. Ei-lo:
espetáculo. Afora isso, enfrenta o problema de compatibilizar o estilo literário com a
O DRAMA DO DRAMATURGO Dentre os escritores dos vários gêneros literários clássicos, nenhum é mais desafortunado do que o autor teatral. Pode-se até admitir que o grande drama de um dramaturgo, ou dramatista, é o vivido por ele mesmo, relativamente à criação e ao destino de sua obra. Dificilmente uma pessoa que não tenha passado pela sofrida experiência de produzir peças para a ribalta avaliará as dificuldades, e as decepções, de quem cultiva a gloriosa arte de Ésquilo, Shakespeare e Molière. Para começar, escrever um texto teatral honesto e íntegro em sua unidade estética não é somente uma tarefa intelectual complexa, pelos componenetes plásticos, estruturais e dinâmicos a serem considerados, é, sobretudo, um exercício emocional doloroso porque, sem entrar na pele dos personagens, sentindo intensamente todas as suas reações íntimas diante do conflito que sustenta a ação cênica, o mais hábil autor não conseguirá ser convincente. Ao contrário do poeta e do romancista, por exemplo, que interrompem o seu trabalho para dormir e, no dia seguinte, após o café da manhã, têm condição mental de dar continuidade ao mesmo imediatamente, o dramaturgo precisa concentrar-se, às vezes, por horas, antes de retomar o labor criativo, recompondo na tela da imaginação “mil” detalhes da derradeira cena em conexão com as cenas precedentes para reviver o clima da ação em seu exato ritmo, sem o que deixará de desenvolver o enredo de forma satisfatória. Diferentemente do poeta que, manejando a técnica do verso, brinca com imagens sugestivas e, valendo-se de uma única figura verbal (metáfora), pode dizer muitas coisas infinitamente belas, majestosamente significativas, o autor teatral necessita utilizar a palavra, acima de tudo, como instrumento de informação para a plateia, sem esquecer que
linguagem coloquial (estamos nos referindo ao autor teatral realmente dramaturgo e não aos escribas culturalmente despersonalizados, que escrevem peças para serem alteradas e adulteradas por alguns encenadores tão pretensiosos quanto incompetentes), além de defrontar-se com problemas outros comuns à composição dramática: cenários, efeitos de luz, sonoplastia, atmosfera ambiental, indumentária etc. Elementos esses que, modernamente, devem ser, pelo menos em parte, indicados nas rubricas, se o autor de fato se preza como tal (Tennessee Williams e Eugene O’Neill fornecem edificante lição nesse sentido). Finalmente, depois de tanto esforço, o risco da frustração: é raríssima a possibilidade da obra ser editada, por falta de leitores para o gênero dramático, e não maior a probabilidade de ser ela encenada, a menos que satisfaça o gosto do grande público afeito à vulgaridade. Como se não bastassem todos esses percalços, o dramaturgo ainda corre o risco de ver as suas poucas peças que sobem ao palco, melancolicamente, liquidadas por erros na concepção do espetáculo ou pela falta de talento interpretativo, em uma época como a atual, quando frequentemente escutamos os minigênios de província afirmarem que o texto cênico é um mero roteiro para representação, julgando-se o diretor de cena no direito de fazer com ele o que bem entende e achando os atores que o teatro se resume unicamente na expressão corporal. Que drama, o do dramaturgo!....
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PALAVRAS DO EDITOR
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PALAVRAS DO PATROCINADOR POR AMOR À VIDA Na manhã de 29 de dezembro de 2011 fui-me aconselhar com o Nazareno Tourinho. Da poltrona da sala de sua casa, que por coincidência fica localizada em frente à praça “Bruno de Menezes”, fiz-me só ouvidos para sua voz potente e vibrante entoada como canto de esperança de um menino quase octogenário. Entre outros relatos, Nazareno disse-me: – Em 2009 passei dezoito dias em coma em um leito de hospital. Quando todos achavam que eu não mais recobraria os sentidos, eis que acordei. E como se não tivesse “adormecido” durante tanto tempo perguntei: Qual foi o resultado do jogo? Lembrei-me que tivera um sonho no qual via algumas estrelas muito brilhantes formarem a letra “V”. Em seguida percebi que outras estrelas agregaram-se as primeiras constituindo a palavra “VIDA”. Hoje tenho certeza de que não estava na hora de morrer. Reacordei porque ainda tenho coisas muito importantes a realizar neste mundo. Quem conhece o Nazareno sabe o quanto ele é imprescindível; o quanto de bem ele ainda faria e o muito que ainda fará nesta vida e eternamente. Basta lembrar que nos últimos anos, para além das milhões de estrelinhas por ele instaladas para tornar visíveis as veredas da VIDA de muitos seres humanos, nosso irmão Nazareno nos brindou com duas novas peças teatrais simplesmente belas. Uma sobre a Cabanagem como revolução vitoriosa e, outra, uma epopeia sobre a saga libertária de Quintino. Nazareno e Ariano Suassuna estão inquestionavelmente entre os mais importantes timoneiros da literatura contemporânea transecular. Este um pensa o Brasil e o mundo desde o semiárido nordestino; aquele um, por através dos bravios rios do amanhã, desde a nossa Flor das Águas – Belém, a metrópole da Amazônia, tão querida quanto sofrida. Ambos celebram a vida de forma magistral, como esperança em dias mais humanos que virão. A dramaturgia tourinhiana é temporalidade transcendente. É rio navegado que nos trouxe a um porto seguro fugaz, porque submetido às vicissitudes das pororocas. É rio sendo navegado pela consciência de que o amanhã belo e feliz vive porque a humanização da humanidade é uma possibilidade em concreção pela práxis transformadora. Por isso a obra de Nazareno Tourinho porta uma intencionalidade assumida de produzir o futuro.
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PERIFL BIOGRÁFICO DO AUTOR
Nazareno é sujeito histórico consciente de que sua obra, longe de servir ao mercado, é e deve ser apreendida e compreendida como um bem social. Sua produção intelectual, por ser fruto de uma alma luminosa, se expressa como instrumento poeticamente moldado para incentivar o ousado desafio de navegar rios do amanhã feliz.
Nazareno Tourinho conquistou diversas premiações em concursos de dramaturgia, uma delas fora do Brasil: sua peça Pai Antônio obteve a primeira Mención del Concurso
Por ser manifestação de fé na vida, fé no homem, fé no que virá, a dramaturgia de
Latinoamericano de Dramaturgia “Andres Bello”, realizado em 1985 em Caracas, na
Nazareno Tourinho é a própria transcendência entre o sujeito da produção e o objeto
Venezuela, pelo C.E.L.C.I.T. (Centro Latinoamericano de Creacione e Inverstigación
produzido. Sua dramaturgia não se contenta em apreender o mundo como se apartado da
Teatral);
história, do movimento real da vida social. Sua obra é também obreira. Ela prediz e produz possibilidades. E como parte desse esforço é imbuída da reflexão sobre a nova racionalidade desse mundo possível alternativo ao que ora é movido pela racionalidade do lucro. Traduz-se na voz, na resistência e na luta dos pobres, dos famintos, dos sem terra, dos oprimidos por sua condição sexual, étnica ou de classe social.
Foi citado em livro por gente importante como Zora Seljan, a esposa de Antônio Olinto, que fez crítica de teatro e o colocou, na década de sessenta, ente os novos autores teatrais brasileiros, ao lado de Ariano Suassuna, Dias Gomes e outros (volume Teatro Vivo, p.361, Ed. Fundo de Cultura S.A., Rio de Janeiro, 1962);
Parafraseando seus Versos para os pobres e oprimidos, pode-se dizer que Nazareno é
Teve peças de sua autoria encenadas por Companhias de teatro profissionais, sob
um escritor popular que aos brasileiros e em especial aos paraenses honra e orgulhece. É um
a direção de figuras de renome no cenário teatral brasileiro (Cláudio Correa e Castro
pensador de mente e coração abertos, mas crítico contundente da sociedade capitalista. É um
dirigiu a peça Nó de 4 Pernas no Rio de Janeiro e Wolff Maia dirigiu Fogo Cruel em Lua
ser humano incansável, um escravo da liberdade, como um pássaro cantando incessantemente
de Mel, em São Paulo tendo no elenco Vic Militelo, a “Dakinha” na novela Estúpido
a justiça, mesmo que se professe um poeta vagabundo. É apegado à verdade, é um pensador
Cupido);
que aprendeu a pensar com o povo. Por ser humilde e grandioso pode parecer pinto dentro do ovo, mas sabe como galo cantar. Nazareno Tourinho é beleza que produz beleza. A eternidade de sua obra o imortaliza para que ele continue a acordar vendo constelações e escrevendo VIDA. Vivamos a obra dramatúrgica reunida de nosso querido irmão Nazareno Tourinho!
Foi consagrado em sua terra como escritor teatral, tendo sido eleito, com menos de trinta e cinco anos, membro efetivo e perpétuo da Academia Paraense de Letras; Pagou o preço da dignidade como escritor de arte cênica: na época da ditadura o ministro Alfredo Buzaid proibiu a circulação em todo o território nacional do livro contendo sua peça Lei é Lei e Está Acabado, mandando a polícia federal apreender os
Edmilson Brito Rodrigues
exemplares, fato noticiado em manchete de primeira página do jornal O Liberal, de Belém do Pará, edição de 26/06/1971; Teve 12 peças teatrais de sua autoria divulgadas em livro (5 pela UFPA, em volume de mais de 400 páginas editado em 1976); Teve uma peça – Nó de 4 pernas – sua publicada pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT (Revista de Teatro, edição nº 457, janeiro/fevereiro/março de 1986) e pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo (Caderno Teatro da Juventude, ano 2, nº 3, agosto de 1997);
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PEÇAS E PRÊMIOS
Recebeu de instituições respeitáveis na capital paraense reconhecimento público pela importância da sua obra dramática: o IAP – Instituto de Artes do Pará denominou Prêmio Nazareno Tourinho, o prêmio de seu concurso literário anual; a TV CULTURA
Eis os títulos das peças publicadas até fevereiro de 2013 por Nazareno Tourinho:
fez todo seu programa REGATÃO CULTURAL do dia 14/04/2009 sobre as peças teatrais
Nó de 4 Pernas; Fogo Cruel em Lua de Mel; O Herói do Seringal; Severa Romana;
do autor em foco, e a UNAMA tem no seu Projeto Memória um vídeo de uma hora de
Amor de Louco Nunca é Pouco; Pai Antônio; A Greve do Amor; Caprichosa Lição dos
duração sobre a vida e a obra de Nazareno Tourinho;
Espíritos; Lei é Lei e Está Acabado; A Estranha Loucura de Lorena Martinez;
Em 2010 o Primeiro Seminário de Dramaturgia Amazônica, organizado na
Cabanagem e Quintino Bom de Briga Defensor dos Sem Terra.
ETDUFPA pela Profª. Dra. Bene Martins – ação do Projeto de Pesquisa: Memória da dramaturgia amazônida: construção de acervo dramatúrgico – escolheu Nazareno como
Algumas premiações em concursos de dramaturgia obtidas por Nazareno Tourinho:
autor homenageado; Prêmio “Governo do Estado do Pará” (1º lugar, Belém, 1961); Através do Decreto nº 16 de 27/07/2012 a Assembleia Legislativa do Estado do Pará criou a Comenda do Teatro Paraense Nazareno Tourinho.
Prêmio “Elmano Queiroz” (1º lugar, Belém, 1969); Menção de destaque no concurso “Coroa de Teatro” (Rio de Janeiro, 1969); Primeira Menção do IV Concurso LatinoAmericano de Dramaturgia “Andres Bello (Caracas Venezuela, 1985); Menção Honrosa no 2º Concurso Nacional de Peças Brasileiras (Rio de Janeiro, 1985); Prêmio “Intercâmbio” (1º lugar no Concurso Nacional de Dramaturgia Espírita, São Paulo, 1990).
Alguns títulos honoríficos de Nazareno Tourinho: Medalha cultural “Olavo Bilac”, alusiva 50º aniversário de falecimento do poeta (concedida pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Pará, em 1969); Medalha cultural “Pedro I”, comemorativa Sesquicentenário da Independência Política do Brasil (concedida pelo Conselho Estadual de Cultura do Pará, em 1972); Medalha comemorativa do DIA DO LEGISLATIVO (Concedida pela Assembleia Legislativa do estado do Pará, em 1973); Diploma de Honra ao Mérito (concedida pela Câmara Municipal de Belém, em 1988);
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Medalha do Mérito “Francisco Caldeira Castelo branco” (comenda outorgada pela
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CRÍTICAS REFERENTES À DRAMATURGIA DO AUTOR
Prefeitura Municipal de Belém, em janeiro de 2002); Medalha de Honra ao Mérito – homenagem aos que lutaram pela democracia no país (concedida pela Câmara Municipal de Belém em 2004); Medalha da Ordem do Mérito Legislativo Newton Miranda (comenda outorgada pela
A seguir transcrevemos, na íntegra, por ordem de publicação, críticas feitas em jornal relativas a algumas peças de Nazareno Tourinho.
NÓ DE VÁRIAS PERNAS
Assembleia Legislativa do Estado do Pará em 2004). Nazareno Tourinho é um comediógrafo do Norte, natural do Pará. Esteve há dias
DETALHES
nesta capital e ofereceu-nos sua última peça, intitulada Nó de várias pernas (ou Nó de quatro pernas). O original obteve o Prêmio “Governador do Estado” no 1º Concurso Literário do
Nazareno Tourinho, que ainda é autor de uma obra didática editada pela IBRASA,
Norte do Brasil, promovido pela “Página Artística” da “Folha do Norte”. A comissão
de São Paulo, na coleção Livros que Constroem (Chefia, Liderança e Relações Humanas) e
julgadora foi constituída por Benedito Nunes, Eneida e Pascoal Carlos Magno. A edição foi
de outra com poesia de crítica social dada a lume pela Prefeitura Municipal de Belém em
feita a expensas do governo do Estado do Pará.
2004 (Versos para Pobres e Oprimidos), nasceu em Belém no dia 06 de dezembro de
A peça é bem escrita e teatralizada, mas com certeza incidiria, aqui, nas mesmas
1934, filho do bombeiro Aristóbulo da Costa com Jarina Bastos Tourinho. Foi aprendiz de
iras que incriminaram de irreverente e, até de anticlerical, “A semente” de Gianfracesco
marceneiro, cobrador de ônibus, balconista de loja de ferragens, marítimo, professor
Guarnieri e “O testamento do cangaceiro”, de Francisco de Assis. A começar pelo cenário
autodidata de cursos livres e jornalista profissional. Seu nome completo é Nazareno Bastos
único: “sacristia de uma paróquia, de interior. Porta e janela para a rua, à D. e porta para o
Tourinho. Casado com a funcionária federal Miryam Zagury Tourinho, possui três filhos,
interior do templo, à E. Estante com livros, carteira larga tendo em cima um volume da
todos já com livro de sua autoria publicado: Helena Lúcia Zagury Tourinho, arquiteta,
Bíblia, papéis, lápis e uma imagem de Cristo. Quadro de santos nas paredes. Um oratório
professora universitária com doutoramento, Emmanuel Zagury Tourinho, psicólogo,
todo decorado, onde se vê Jesus pregado no madeiro da crucificação. Quatro cadeiras para
também professor universitário doutorado e Tânia Regina Zagury Tourinho, igualmente
visitas. Tudo muito precário”. Pela descrição acima, o leitor imaginará, certamente, que se
psicóloga, pós-graduada em administração recursos humanos.
trata de uma comédia de fundo religioso, ou de um drama repleto de pecadores à procura de remissão, pois que a sacristia, com seus santos e o Cristo, impõe meditação e sacrifício. Pois quem imaginar isso engana-se redondamente. Quem esperar, ao se abrir o pano, uma ação assim, terá surpresas. Levará sustos, pois o enredo é dos mais comezinhos e versa sobre problemas... pouco cristãos. Para acioná-lo, o Autor colocou em cena um padre, o prefeito da cidade, sua esposa (pouco virtuosa), um sacristão hipócrita, a zeladora da igreja, que tenta seduzir o sacristão; um operário comunista muito mulherengo e uma prostituta, dona de um lupanar. Ora, com essa gente, é claro que se não poderá esperar um ambiente de pureza ou santidade... Considerada, entretanto, sob moldes comuns, Nó de várias pernas, tendo bons intérpretes e diretor, tornar-se-á um espetáculo de êxito fácil e popular. Diário Popular, 28/07/1961. São Paulo.
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NÓ DE QUATRO PERNAS
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suficiente rendimento dos intérpretes. Faremos restrição apenas à excessiva cafajestização do padre que o tornou absolutamente inaceitável. Bom, o cenário é de Édio Guerra. Em resumo, “Os Associados” estrearam bem, com um espetáculo bastante
Um novo grupo teatral vem de se formar e sua estreia se deu no Teatro Tijuca com a comédia de Nazareno Tourinho, Nó de quatro pernas. “Os Associados”, denomina-se o referido grupo e tem como principais responsáveis, Ribeiro Fortes, Paulo Gonçalves e Luís Mota. Segundo afirmam, pretendem montar, “de preferência”, originais brasileiros – e aí está uma louvável iniciativa. Precisamos, de uma vez por todas, acabar com o tabu de que os autores brasileiros dão prejuízo – daí o receio das grandes companhias em montá-los. Deem
agradável e divertido – não obstante as opiniões em contrário que, certamente, surgirão, dos snobs da crítica teatral. Se conseguirem manter um repertório nacional eclético, vencerão, sem dúvida – já que contam com muitos bons elementos. E isso já é mais de meio caminho andado. Almir Azevedo. A Noite, 14/10/1961. Rio de Janeiro.
oportunidade aos bons autores nacionais – que os temos, sem a menor dúvida – em vez de
NÓ DE 4 PERNAS
encenarem pecinhas inferiores, de procedência estrangeira e os novos grupos estarão trabalhando, como devem, em prol do desenvolvimento do nosso teatro. Jamais ouvimos falar de Nazareno Tourinho e como, inexplicavelmente, o programa
O jovem paraense Nazareno Tourinho, primeiro prêmio do concurso da FOLHA DO
nada esclarece a seu respeito, ficamos sabendo, apenas, de início, que tem méritos, este seu
NORTE, parece que quebrou o encanto do pequeno Teatro da Tijuca, com a apresentação da
original, escolhido pelos “Associados”. Penetrando com bastante força de expressão nos
sua comédia Nó de 4 Pernas, já levada à cena há mais de uma quinzena.
problemas característicos não, apenas de “qualquer cidadezinha do interior do Brasil”, mas
Dificilmente qualquer companhia se equilibra nessa casa de espetáculos, porque, na
de qualquer país – pois aparentemente regionalistas, universais são os tipos que nela
linha os que acreditam em lendas, esta casa de espetáculos tenha caveira de burro. Só duas
pontificam – Nazareno Tourinho dá-nos uma obra, sob certos aspectos, meritória. Não será,
companhias, que eu saiba, até agora conseguiram vencer as suas temporadas, Alda Garrido,
evidentemente, algo extraordinário – mesmo porque, afigurou-se-nos trabalho feito às
conhecida cômica e os “Atores Associados”, com a atual peça do nosso inteligente
pressas, no qual não chegou a utilizar todos os recursos da carpintaria teatral de que parece
conterrâneo Nazareno Tourinho.
dispor – mas oferece motivos suficientes de agrado para o chamado grande público. Na
Teve uma magnífica estreia, aplaudida pela plateia escolhida, que reclamou, duas
verdade, o interesse maior da peça reside, exclusivamente, na figura excêntrica do Padre
vezes, a sua presença ao palco. Mais tarde, no espetáculo dedicado aos críticos teatrais,
Elias. Ao seu redor, os demais personagens carecem de maior importância. Isso, porém, não
conseguiu pular as barreiras dos mais exigentes, vez que a comédia foi classificada “boa”
invalida a obra cujo “nó” foi bem dado pelo autor e melhor “desfeito” pelos intérpretes. O elenco esteve bastante homogêneo. No papel principal, Ribeiro Fortes teve
(bonequinho d’O Globo batendo palmas) apenas com ligeiros comentários de ordem técnica, mas também de incentivo ao jovem autor, para novas produções.
excelente desempenho – em que pesem os exageros na composição do tipo, tornando-o um
É bem verdade, e faça-se justiça, que o autor teve sorte na escolha do elenco teatral
padre excessivamente acafajestado. Acreditamos que um pouco mais de sobriedade
que a representa, nomes “cartazes” do rádio e da TV, do Rio, com todas as perspectivas de
valorizaria bastante sua criação. Outro expressivo trabalho foi o de Valdir Maia, em que
sucesso. Ainda assim, se o trabalho intelectual não tivesse mérito dificilmente esses
todos reconhecem, sem favor, um dos nossos melhores intérpretes cômicos. Lêda Maria deu
excelentes comediantes o aceitariam, arriscando os seus nomes numa aventura cênica.
bastante realce ao seu engraçado personagem, enquanto os demais – Paulo Gonçalves,
Como primeira peça teatral de um jovem que inicia seus passos, Nó de 4 pernas,
Teresinha Moreira, Elza Martins e Luís Mota – em papéis menores, direção de Cláudio
está acima de qualquer expectativa, verdadeiro estímulo para quem, como Nazareno
Corrêa e Castro valorizou o espetáculo. Todos contribuíram eficientemente para a
Tourinho , tem à sua frente uma mocidade cheia de ilusões, idealismo e vivacidade.
homogeneidade do conjunto, a direção de Cláudio Corrêa e Castro valorizou o espetáculo
Não desejamos entrar na apreciação do mérito do trabalho intelectual e filosófico
dando-lhe bom ritmo, distanciando-o inteligentemente da chanchada e conseguindo o
do nosso companheiro de jornal, Nazareno Tourinho, porque esta modalidade de crítica não
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caberia nesta crônica, à base apenas de uma ligeira reportagem. Quando a floresta dos
A peça não é nenhuma maravilha, é escrita nos moldes antigos do teatro brasileiro,
desenganos, que são os nossos cabelos brancos, nos chegam no caminho comum da
mas traz à baila alguns problemas filosóficos, inquire sobre fatos comuns da vida moderna,
existência, já as nossas observações sobre homens, atos, fatos ou acontecimentos político-
que nos obrigam a meditar... situações da existência que nos deixam na dúvida de como deve
sociais, são feitas através de lentes bem realistas, fruto seguro das nossas vividas
conduzir-se a moral em certos casos... Torna-se assim uma comédia interessante, que chegou
experiências.
a merecer um prêmio.
E isso não agrada muito, nesse tempo de excessivo futurismo das artes da música e
O 1º ato iniciando com motivos simplórios vai pouco a pouco agradando o
da evolução das escolas literárias modernas, para as quais não passamos de um produto do
espectador. E mesmo com o teatro vazio como estava (fato lamentável) ouvia-se gargalhadas
passadismo superado.
espontâneas.
Nada temos a dizer da excelente comédia do nosso jovem paraense, depois que foi dissecada pelo bisturi dos mais exigentes críticos teatrais do Rio, de sorte que o nosso papel é apenas de juntar as nossas palmas às que recebeu na estreia, de uma assistência bem escolhida.
O cenário de Edio Guerra é bom, mas pobre, de acordo com o local onde se passa a ação: uma paróquia de uma igreja do interior... As atrizes em teatro são todas quase desconhecidas. Terezinha Moreira e Elza Martins sem serem nenhumas notabilidades, representam de maneira bastante satisfatória os
Por outro lado, temos o dever sincero, como paraenses, de dizer que nos sentimos contentes, quando um papa-chibé vem ao Rio, cérebro do Brasil e vence, como o nosso
seus papéis. Leda Maria, na criada, está muito à vontade e marca.
Nazareno Tourinho. É sempre um prazer espiritual constatar que o nosso Pará, de quando
Dos homens: Paulo Gonçales, que já vimos trabalhar com Alda Garrido e achamos
em quando, manda um embaixador das letras à cidade maravilhosa, para exaltá-lo, como
muito natural, nesta peça está um tanto forçado. Luiz Mota, no galã, sem muito físico para
está acontecendo com a peça Nó de 4 Pernas, em cena no Teatro Tijuca.
tal, pois é um tipo gordinho, está muito bem e até dominador nas cenas de violência, mas nas
Já agora nestes últimos dias, fomos encontra-lo, todo embandeirado, com cartazes
mutações, quando se intimida, fica com um ar demasiado infantil para o tipo que interpreta.
vistosos, onde se lia: “Venham assistir a Nó de 4 pernas, primeiro Prêmio FOLHA DO
Waldir Maia apreciável, mas repete-se nas suas intermináveis criações de velho.
NORTE, instituído pelo Governo do Pará, peça consagrada pela crítica, como magnífico
Este ator, que é moço, podia ser mais aproveitado em papéis de acordo com a sua idade, pois
trabalho intelectual e de excelente desempenho pelos “Atores Associados.”
é um artista talentoso.
Depois disso, só nos resta baixar o pano de boca e dar por findo o espetáculo, com a
Agora o que estranhamos e não nos deixa elogiar a direção de Cláudio Corrêa e Castro é que Ribeiro Fortes, um ator sóbrio, com passado artístico, esteja completamente
vitória do jovem Tourinho. Martins e Silva. Folha do Norte, 08/11/1961. Belém.
falso, acafajestado no na criação do papel principal: o padre. Quando surge em cena dá a impressão de um ladrão fazendo-se passar por sacerdote. Se fosse isso realmente diríamos que a sua criação foi perfeita. Nunca pensamos que o discreto Ribeiro Fortes tivesse tanto
NÓ DE QUATRO PERNAS
jeito para encarnar um malandro. Mas padre como ele faz, não existe nem aqui, nem na Conchinchina.
A peça Nó de Quatro Pernas, comédia premiada do escritor Nazareno Tourinho, paraense, e montada pelos Associados, grupo formado por conhecidos artistas de televisão, deixou o Teatro Tijuca para ir instalar-se no Teatro do Rio no Catete, agora dirigido por um novo e esforçado empresário, Walter Duarte, e foi lá que nós fomos assistir ao espetáculo.
Acreditamos que o autor tenha querido fazer do pároco um personagem como Don Camilo, dos filmes italianos, ou como aquele vigário que cantava e jogava futebol num filme americano, interpretado por Bing Crosby, interpretação que lhe valeu até o “Oscar”. Assim como Ribeiro Fortes está fazendo, anarquiza a peça e transforma-se numa criatura ridícula, em desacordo com o texto que o torna um homem preocupado com as
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incógnitas que os pecados dos homens oferecem. E cuja conclusão nos faz pensar naquela
está, a nosso ver, ainda absorvida pelos ensinamentos que o palco oferece aos atores ou,
frase popular e às vezes até amoral: “Deus escreve direto por linhas tortas”...
talvez, não tenha recebido essa iluminação por parte da equipe diretora. Uma decaída se
Nó de quatro pernas para chegar a ser um espetáculo completo entre os
caracteriza pela forma habitual como conduz a bolsa, brandindo-a infatigavelmente, pois é o
“Associados”, tem muita coisa para ser polida. E merece, pois é uma peça com muitas
seu cartão de visita, onde não se encontram as letras do seu triste nome, mas os utensílios de
qualidades.
sua triste profissão. Uma dama traz a bolsa simplesmente pendida do antebraço ou mesmo
Walter Sequeira. Marcha, 16/11/1961. Rio de Janeiro.
entre as mãos, sem que oscile ou cresça às vistas alheias. Uma prostituta autêntica será incapaz de assim proceder, a não ser que seja aprendiz ou deliberadamente se disfarce. O
CORAJOSA AVENTURA NO TEATRO SÉRIO
policial vai bem, muito bom mesmo. Sua exclamação ao verificar que o mendigo não havia morrido é espontânea, clara, justa. Deve progredir, à medida que se apresentar outras, vezes,
Todos os paraenses devem ir ao Teatro da Paz assistir à peça de Nazareno
pois, como todos sabemos, o teatro é uma escola permanente.
Tourinho. É uma corajosa realização genuinamente nossa: intérpretes, direção, cenografia,
Se não fosse exagero, lembraria ainda ao autor aquele trecho do livro “FOME”, de
luz, sonoplastia, maquilagem, autoria e assunto. Repita-se que “Teatro Adulto de Belém
Knut Hamsun que, assim descreve a fome: “Nenhum pesar me atormentava, a fome sepultara
Adulta” – TABA – apresenta a fotografia linear de um fato autêntico, adjetivo que o autor
em mim todo o mal-estar; sentia-me agora pelo contrário leve, aéreo, separado de todo o
transfere inteligentemente para a cena. Não se pode dizer que há uma arrogante
contacto com a matéria; pus as pernas sobre o banco, reclinei a cabeça, e, nessa posição,
originalidade, pois o próprio autor diz ao público, antes do espetáculo, das diferenças (ou
ausente de mim mesmo, sentia uma verdadeira beatitude. Nem uma sombra escurecia o meu
semelhanças) entre “Lei é Lei e Está Acabado” e “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos.
espírito, nem o menor sentimento de inquietação, e não recordo a mais leve impressão de
Enquanto nesta o autor “fotografa” um fato escabroso, real, doloroso e permanente entre os
mágoa ou de prazer. Com os olhos abertos alheei-me de tudo, num abandono total, como se a
infelizes que se deixam vencer pelas brutais solicitações do sexo e do vício, naquela,
minha consciência se projetasse para fora de mim, a uma distância infinita”.
Nazareno Tourinho vê mais um aspecto social, que nos envergonha e nos diminui como entes
Esta é a reação com que a fome favorece um intelectual, que não é o caso do
humanos: a ignorância e a prepotência que, afinal, é tudo a mesma infelicidade. Sem
esfomeado proletário de Tourinho, mas, assim mesmo, Barradas apresenta, em várias
apresentar a vivência máxima de “basfond”, como Plínio, nem a grandeza de caráter da
ocasiões, um vigor inesperado para quem tem fome, febre e pânico.
“Prostituta Respeitosa”, de Sartre, o paraense enfrenta o fato com maior superficialidade realística, porém com as mesmas arte e segurança do sulista. Acreditamos, ainda, que sua
De qualquer forma, os queridos confrades fazem uma corajosa experiência: teatro sério, ao mesmo tempo poético e realista, limpo e atual, o que não é empresa fácil entre nós.
modéstia consentiu em dar à peça um título realmente não merecido pelo seu texto, pelo seu
O Governo e o Povo não devem consentir que a semente sucumba em terreno estéril.
desempenho. Gostaríamos que Tourinho tivesse preferido denominá-la “O Homem e a
Cândido Marinho Rocha. O Liberal, 08/11/1968. Belém.
Fome” ou “A Lei e a Fome”, títulos que diriam melhor e mais de relevante trabalho, de boa
IMPLOSÃO CRIADORA
crítica aos nossos costumes. Os atores desempenham corretamente seus papéis, destacando-se Cláudio Barradas como mendigo, numa excelente caracterização e valorizando o monólogo, que é a cena do
No teatro de Nazareno Tourinho o campo de batalha é o seu “alter ego” mitológico.
delírio. As outras intervenções de Barradas são prejudicadas pela posição em que se
Observando-se bem, trata-se de um caleidoscópio de temas e de ideias correlatos a propor
apresenta no palco, num ângulo ao qual não chegam às vistas dos que se encontram nos
uma transposição ideal do fato.
camarotes pares mais aproximados do proscênio. De um modo geral, realiza a sugestão que
O autor desfia, antes de mais nada, uma aguda visão documental, segundo a qual os
o papel encerra, num desempenho consciente e comovedor. A jovem que faz a prostitua não
hábitos e os costumes da comunidade são produto de linguagem específica. Menos forma que
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fundo (“o fundo da forma é a forma” diria Julio Cortazar), tais textos buscam ultrapassar o
sua obra literária: a honestidade inflexível que caracteriza a forma de expressar a sua
limite que separa da realidade a sua inspiração.
maneira de sentir. Não teme debates, até mesmo, quando necessário, se torna agressivo, na
Tourinho chega aos 50 anos como criador de “Nó de 4 Pernas”, “Severa Romana”,
defesa de sua verdade, sempre voltada para o engrandecimento do bem comum. Daí se
“O Herói do Seringal”, “Fogo Cruel em Lua de Mel”, “Amor de Louco Nunca é Pouco” e,
perceber essa “inteira fidelidade às alterações do universo urbano e rural”, marcante,
afinal, proibido em 1971, pelo ministro da justiça, Alfredo Buzaid, “Lei é Lei e Está
principalmente, na literatura que Nazareno Tourinho nos proporciona, como dramaturgo de
Acabado”. São peças deflagradas a partir de pequenos eventos de inteira fidelidade às
incontestáveis méritos.
alterações do universo urbano e rural que descaracterizam valores que, basicamente, são pura transparência.
Em Nó de Várias Pernas, comédia em três atos (1º lugar, por votação unânime, no 1º Concurso do Norte do Brasil – Prêmio Governo do Estado do Pará “Teatro”, promoção
Peças que, como configura Nazareno, acreditam na “verdade”, nascida desde
da “Página Artística”, da “Folha do Norte”, editado pela Falangola, Belém, 1961), o autor
Pausânias, da obsessão de se refazer o cotidiano. É como que “um nó de quatro” (ou
nos apresenta Padre Elias, personagem central da peça, transmitindo uma compreensão
múltiplas) pernas a contextualizar aquela especificidade, na extensão, de corpo e espírito, de
profundamente humana dos ensinamentos religiosos para harmonizar conflitos de
matriz geradora do texto. De “Severa Romana” ao “Herói do Seringal”, o nosso dramaturgo
paroquianos que sofrem as naturais carências de uma comunidade rural. O êxito alcançado,
acende um fogo cruel em “lua de mel”, a explicar que amor de louco nunca é pouco, já que
por certo, conduziu Nazareno Tourinho a nos oferecer Severa Romana, O Herói do Seringal,
lei é lei e está acabado: o mundo, que o habita, não é nem estranho nem hostil ao mundo que
Fogo Cruel em Lua de Mel, O Amor de Louco Nunca é Pouco e Lei é Lei e Está Acabado que,
o tem como habitante. "Mesmo entre os equívocos, o medo, a solitude mais solita" (Carlos
em 1968, no Teatro da Paz, obteve expressivo sucesso, levada à cena pelo Taba, contando
Drummond de Andrade), a pedra da memória se liberta e, implodindo, se materializa como
ainda com o talento de Cláudio Barradas, no papel principal, integrando um elenco de
dizer. Nesse sentido é que se pode afirmar que Nazareno Tourinho põe no papel – ou em cena
artistas paraenses, dirigido pelo próprio autor.
– o que carrega consigo em sangue e em nervos. Diga-se, até, que ele é a matéria-prima,
Lei é Lei e Está Acabado se baseia numa notícia, veiculada na antiga “Folha
mesma, da textualidade que escreve e, eventualmente, encena. Não sei de outro teatrólogo
Vespertina”, informando o abandono de um mendigo enfermo, encontrado na calçada da
que, no Pará, pelo menos de que se tenha notícia ao longo destes últimos anos, tenha mais
Avenida Presidente Vargas, em Belém. Apesar das providências solicitadas por um guarda
coerência ou se expresse com menos impessoalidade particularizada. Trata-se de um caso
noturno, tanto a Polícia como o Pronto Socorro se manifestam indiferentes ao fato, ocorrido
exemplar em que o ato criado reflete, substantivamente, o seu criador.
em abril de 1968. O autor, motivado pelo triste acontecimento, elaborou o texto, cujo
Acyr Castro. Diário do Pará, 11/12/1982. Belém.
conteúdo revela uma vibrante crítica social. No enredo estão envolvidos uma prostitua, um mendigo e um policial. Os diálogos, entre os personagens, trazem a autenticidade de
O TEATRO DE NAZARENO TOURINHO
expressões, comumente utilizados por pessoas do mais carente nível de convivência. Não poderia ser de outra forma para que a mensagem do autor chegasse à sensibilidade do
Com referência ao teatro de Nazareno Tourinho, eu concordo com a opinião de que: “O autor desfia, antes de mais nada, uma aguda visão documental, segundo a qual os hábitos e os costumes da comunidade são produto de linguagem específica. São peças deflagradas a partir de pequenos eventos de inteira fidelidade às alterações do universo urbano e rural que descaracterizam valores que, basicamente, são pura transparência”. (Acyr Castro). Considero oportuno ressaltar um importante e persistente traço da personalidade de Nazareno Tourinho, que faz inalterável presença em tudo o que realiza e que se reflete em
espectador, face a um drama que se repete, aliás com relativa frequência, nas avenidas e ruas das cidades. Deparamo-nos com um tema a reclamar os mais sérios debates a caminho das providências adequadas. Por tais motivos, Lei é Lei e Está Acabado entra para a história da Censura Federal. Embora lamentável, é compreensível que, em 1971, o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, tenha proibido a circulação do livro, determinando ainda, ao departamento da Polícia Federal, que fossem apreendidos os exemplares. Nos regimes chamados de autoritários, o obscurantismo intelectual oblitera a compreensão e,
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consequentemente, o julgamento dos assustados censores, sob o pretexto de defenderem a moral e os bons costumes.
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O elenco comporta-se bem, embora o “Prefeito” e sua “mulher” precisem mais atenção da direção e de seus intérpretes para corrigir deslizes que estão reforçando o
Em dezembro último, Nazareno Tourinho teve a oportunidade de oferecer, ao
estereótipo. Os dois atores volta e meia sobreatuam até porque lhes falta o physique du role
público, Lei é Lei e Está Acabado, numa edição da Grafisa. Felizmente, uma nova esperança
que as personagens exigem, observação extensiva ao intérprete do “Sacristão”, o qual
conduz o país, num processo de redemocratização, assegurando condições de liberdade e
concentra o personagem nas mãos e nos pés, vício de interpretação que está sujando sua
aprimoramento intelectual.
postura em cena. De qualquer maneira, o espetáculo prossegue apoiado nas duas belas
Pádua Costa. Província do Pará, 21/04/1985. Belém.
performances de Paulo Mariano e de Josineide Sarrazin que construíram solidamente o “Padre” e a “Beata”. Os dois têm a exata noção de tempo e espaço e, por utilizarem muito
NÓ DE 4 PERNAS
bem o timing da comédia, empurram o espetáculo para cima a quando de suas intervenções. Duas boas revelações que tendem a crescer, pois têm talento para tanto.
De Nazareno Tourinho. Direção: Ruy Guilherme. Grupo Em Cena Ação. Teatro do
Excelente a iniciativa da AEPA ao criar o Grupo de Teatro, exemplo que deveria ser seguido por outras empresas. O Grupo Em Cena Ação estará seguindo para o Rio Grande do
Sesi. NÓ DE 4 PERNAS volta à cena mais uma vez. O texto de Nazareno Tourinho
Sul a fim de participar do III Festival Nacional de Representação Teatral (que acontecerá em
remoça-se a cada montagem pela universalidade dos temas abordados. Teatrólogo de ampla
seguida ao Festival Internacional de Teatro ora acontecendo em Canela-RS), a exemplo do
visão, sua discussão em torno do adultério, greves, socialismo, religião e política permanece
que fez na segunda versão do evento e, a julgar pela amostra que tivemos, deverá estar
atualíssima frente a uma realidade crua de distensões sociais como a que vivemos, já
nivelado a outras montagens presentes por lá. Pelo texto de Nazareno Tourinho e pelo
antecipada 30 anos atrás quando o texto foi escrito. Além disso, a forma como foi escrita
exercício cênico nivelar-se-ão por cima, certamente.
torna degustável a complexidade e gravidade da situação sem nunca enveredar por soluções
José Maria Viana. O Liberal, 28/10/1990. Belém.
fáceis e alienadoras, não obstante o happy end. A peça é um delicioso exercício de fino
PERNAS E PERNAS
humor, recheado de gags sutis e muita irreverência, apoiada na clássica estrutura do quiproquó, o que faz a plateia esquecer até mesmo pequenos defeitos que se observa em certas falas demasiadamente longas ou na esteriotipia de algumas personagens.
Pode ser chamada de Nó de várias pernas ou Nó de 4 pernas, tanto faz... o mérito é
A presente versão vem, através do Grupo Em Cena Ação formado por empregados
o mesmo. Comédia em três atos... a edição que tenho em mãos, e que guardo com carinho, é
da Caixa Econômica em projeto da AEPA (Associação do Economiários do Pará), e revela-
de 1961, publicada pela gráfica Falângola Editora, Belém, gritantemente a exigir uma
se uma grata surpresa. Embora acostumados à rotina burocrática, mostram incomum
segunda edição. Por todos os motivos, inclusive para que as novas gerações tomem
identidade com o palco para grupos deste nível. A direção de Ruy Guilherme (único do grupo
conhecimento do trabalho de Nazareno Tourinho.
com larga experiência cênica, nome dos mais conhecidos no metier) valoriza o texto e
Trata-se de uma comédia que obteve o prêmio do governo do Estado do Pará, no 1º
gerencia com habilidade a carpintaria teatral. A ambientação cênica de Carlos Nélson é
Concurso Literário do Norte do Brasil “Teatro”. Se fosse preciso uma apresentação,
funcional e compõe bem o espaço. Igualmente, a iluminação de Ruy e Rodolfo Evangelista
bastaria lembrar que obteve o 1º lugar com a votação unânime de Benedito Nunes, Eneida e
ajudaram a imprimir o tom certo à narrativa se forem corrigidas as óbvias falhas, debitadas
Pascoal Carlos Magno (Promoção da “Página Artística” da Folha do Norte).
ao frisson da estreia, principalmente durante o transcurso do tempo da ação marcado por
A edição referenciada foi feita a expensas do Governo do Estado do Pará, e vem
intervalos entre atos originalmente escritos e suprimidos no intuito de não quebrar o ritmo, o
resistindo bravamente ao implacável tempo. Destaque-se que é uma publicação de 1961:
que acabou acontecendo inapelavelmente.
mais de três décadas passadas...
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Apesar do tempo, o “nó”, vivo e atual, nos faz rir e pensar. Reunião de qualidade e de bom gosto que só um teatrólogo da expressão de Nazareno Tourinho poderia nos presentear. Certa madrugada, ouvindo o informativo de uma TV nacional, ouvi a notícia que o Nó de Várias Pernas estava sendo exibida em um teatro do Recife, com destaque. Feliz da vida, esperei o dia nascer para repassar a noticia ao autor. O texto não precisa ser revisto. O tempo decorrido só fez consolidar a arte teatral impregnada na comédia de três atos. O texto é seco, no bom sentido, isto é, não é discursivo, que é uma de suas boas qualidades. Sob vários ângulos pode ser examinada a comédia. Dentro do panorama nacional, é preciso destacar que se trata de conflitos que antecederam o ano de 1964, portanto, seus personagens refletem a problemática da época. E lá estão o Padre Elias, o coronel Menacê com sua esposa, o operário comunista e uma prostituta, formando um quadro agradabilíssimo, ligado pelas quatro pernas, por todas as
NÓ DE 4
pernas que transitam pela comédia. Disseram que as peças teatrais do velho e querido Joaquim Maria Machado de Assis devem ser lidas e não representadas. Com o Nó de Várias Pernas acontece exatamente o contrário: é uma obra de arte teatral para ser representada e também para ser lida, com prazer. Agildo Monteiro. O Liberal, 25/11/1992. Belém.
PERNAS
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INFORMAÇÃO Esta peça, que conquistou o primeiro lugar no I Concurso Literário do Norte do Brasil, realizado em Belém no ano de 1961, estreou no Rio de Janeiro em outubro do mesmo ano, dirigida por Cláudio Correa e Castro tendo no papel principal o ator Ribeiro Fortes. A seguir foi representada em São Paulo pelo Teatro Jambaí de Comédia, em Minhas Gerais pelo Movimento Universitário de Cultura e Assistência Popular (MUCAP, Juiz de fora), nas capitais do Nordeste pela Companhia profissional de Milton Carneiro e
CENÁRIO Sacristia de uma paróquia modesta. Porta e janela para a rua, à Direita e porta para o interior do templo, à Esquerda. Estante com livros, carteira larga tendo em cima um volume da Bíblia, papeis, lápis e uma imagem de Cristo. Quadros de santos nas paredes. Um oratório todo decorado, onde se vê Jesus pregado no madeiro da crucificação. Quatro cadeiras para visitas. Tudo muito precário.
no Festival Nacional de Teatro de Estudante que Pascoal Carlos Magno realizou no Arcozelo por um grupo de amadores de Natal-RN. Foi traduzida para o alemão pela Sra. Lilian Berley-Bering.
PERSONAGENS
Em Belém foi à cena, pela primeira vez, no Teatro da Paz em novembro de 1970. PADRE ELIAS, 30 anos. CORONEL MENACÊ, Prefeito municipal, 55 anos. D. IRANEIDE, esposa do Coronel Menacê, 40 anos. Euzébio, sacristão, 60 anos. D. NAZARÉ, zeladora da igreja (serviçal), portuguesa, 40 anos. ZÉ PEDRO, operário, líder classista, 28 anos. LUDOVINA, prostituta, dona de um lupanar, 25 anos.
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PRIMEIRO ATO
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D. NAZARÉ Toda ataviada, a se requebrar...
Ao subir do pano encontra-se Euzébio em cena, todo de preto. Tira a imagem de cima da mesa, beija-a, limpa a mesa, repõe a imagem no lugar, benzendo-se. Vai ao oratório e executa o mesmo jogo. Espana os quadros, cadeiras etc.
EUZÉBIO Não critique, D. Nazaré. Jesus recomendou que não notássemos os defeitos dos outros. Mateus, capítulo sete, versículos um a cinco.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
(Entrando à direita, de luto fechado.) Bons dias, “seu” Euzébio. (O sotaque
Arra! O senhor não cansa de fazer sermões!?... D. Iraneide esteve a dizer para
português não deve ser exagerado.)
minha vizinha que ando a caçar marido.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Litúrgico) Bom dia, com a graça do Pai Celestial e da Mãe Santíssima.
(Escandalizado) Virgem Maria!
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
A igreja trancada?
Não tenho eu o direito de lhe pagar na mesma moeda?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
É a nossa homenagem ao padre Tadeu. Pobrezinho, tão bom e puro ele era... se durasse mais acabaria fazendo milagre...
Palavras de Cristo a S. Pedro: “Deveis perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes”.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Tivesse vindo outro padre para substituí-lo e não haveria de morrer. Por que é que
Ela está a espalhar que o senhor...
deixam tanto trabalhar um sacerdote?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Interessado) O quê?
Não sei.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Não, não digo. Pois Nosso Senhor não proibiu também o fuxico?
Ele não estava já a carregar seus oitenta anos?
EUZÉBIO
EUZÉBIO Oitenta e dois.
Conversa mole. Há trinta e cinco anos que leio a Bíblia e nunca deparei com uma proibição ao fuxico. Eu é que sou um cidadão sério e não me intrometo na vida alheia.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
A igreja não dá aposentadoria?
Então, homem, não venha se intrometer na vida de D. Iraneide.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
A aposentadoria é no céu... No céu ninguém faz nada... todo dia é feriado. É só
O que foi que aquela pirua choca falou de mim?
contemplar a face de Deus e escutar as sinfonias sacras...
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
É grave...
Viu a faceirice da mulher do prefeito no enterro?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Desembuche.
Não reparei.
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D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Não. É pecado. O senhor a pensar que eu não quero ir pro céu? Falar dos outros é
Que por outra se apaixonou?
desobediência a Deus. Qual é mesmo o número do capítulo?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Que outra?
Eu rezo um terço pra Deus lhe dispensar esta faltazinha.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Eu é que sei?
Sei lá eu do seu prestígio com Ele...
EUZÉBIO
EUZÉBIO (Categórico) Muito bem, não diga.
Mas que confusão! A senhora embaralha tudo numa salada dos diabos. (Constata, repentinamente, que se referiu ao Diabo.) Perdoai-me, Pai Celeste. (Benze-se)
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
(Meditativa) Bom... como não deseja mais saber não adianta guardar eu segredo...
O pior é que os boatitos prejudicam-me.
Surpreendi D. Iraneide propalando, aos quatro ventos, que o senhor me quer namorar.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Por quê? A senhora devia era estar orgulhosa.
(Horrorizado) Oh! Minha nossa Senhora do Perpétuo Socorro, será que no Inferno
D. NAZARÉ
aceitam uma alma tão cretina???
Orgulho? O senhor a se considerar um cobiçado galã? Um gostosão?
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
No meu quarteirão não cessam um momento de comentar. O senhor está mesmo apaixonado?
(Áspero) Psiu!... Isto é uma casa de respeito e orações... Não use este vocabulário de ralé.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Quem, eu???
Ai! Ralé uma ova! Ralé uma...
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Sim.
Por tudo quanto é mais sagrado, não prossiga.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Pela senhora?
O senhor não deu corda? Aguente agora o rojão.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Ué! O senhor a se apaixonar por outra??? O senhor teve a petulância de se enfeitar para
Não se agite. Quais são os prejuízos que os boatos têm lhe acarretado?
qualquer macaquinha???
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Isto também é um segredinho. Tenho vergonha de contar.
Quem disse isso?
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Vergonha? Eu estou no meio?
Não terminou de dizer?
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
E por que não haveria de estar?
Dizer o quê?
EUZÉBIO Do que se trata?
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D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
É melhor calar. “Em boca fechada não entra mosca”.
Tá danadinho pra ouvir os palavrões, hein? Acho eu que o senhor, com esta
EUZÉBIO
carinha de Eucaristia, há-de de findar num reformatório para velhos pervertidos.
Calar por quê?
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
(Exaltado) D. Nazaré, eu sou um homem sério, um homem idoso e idôneo. Não
Achará o senhor um bocadito imoral. EUZÉBIO Não tem importância.
abuse de minha consideração. D. NAZARÉ Hum... como esperneia por qualquer coisita... Todo “não me toque”... todo...
D. NAZARÉ
histérico. Até parece milionário... Em todo o caso vou eu desabafar. Mas não fique
Tem, sim. Isto aqui “é uma casa de respeito e orações”...
contente, não, que não tem palavrões. Conhece o leiteiro?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Depois desses boatos a senhora se encheu de dengos...
Conheço.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
(Resoluta) Quer mesmo vir a saber?
Vive a me galantear, a me perseguir...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Quero.
Como? A senhora de namoriscos com o leiteiro?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Se disser algum palavrão não terá o senhor uma tremedeira?
Julga que uma atraente viuvinha, como eu, somente pode simpatizar com um
EUZÉBIO Palavrões... Em toda a parte, atualmente, se ouvem coisas obscenas. Imagine que
sacristão como o senhor, que não dá mais nada?... EUZÉBIO
na semana passada dois garotos com menos de cinco anos, discutiam baixinho sobre
E a senhora simpatiza comigo?
mulheres, dentro da igreja, antes da comunhão. Um se gabava de ter visto a irmã despida
D. NAZARÉ
no banheiro, olhando pela fechadura. O outro garantia que quando crescer será um famoso
Ai! Que ridícula pergunta!
transviado.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Ridícula por quê?
Que barbaridade.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Porque esta pergunta cabe à mulher fazer. Deus meu! Quanta ignorância!
Pois é. Pode desabafar.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
(Encabulado) Nesta matéria eu ando atrasado.
Desabafar o que, os palavrões?
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
É... consome o tempo todo a ler a Bíblia...
Sim.
EUZÉBIO E o leiteiro?
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D. NAZARÉ
rezas e mais rezas... Como é que consegue viver solteiro? Sem... sem... sem uma
Ao saber que o senhor se enamorou de mim passou quatro dias sem me levar
companheira?
leite...
EUZÉBIO EUZÉBIO
Companheira para quê?
D. Nazaré, ou a senhora está variando ou está querendo brincar comigo. Quem
D. NAZARÉ
lhe convenceu que eu me enamorei?!... D. NAZARÉ
Para quê??? Para quê?! Oh! Quanta ingenuidade a se misturar com estupidez! Não sabe o senhor para que serve uma mulher?...
O senhor declarou indagorinha.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Eu tenho lavadeira e como de hotel.
Eu??? Como???
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Ô besta! E mulher apenas serve para cozinhar e lavar?
Não lhe compreendo...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Não... Serve também para comprar roupas caras, para adoecer, para desencavar as
Compreenda que sou um homem profundamente religioso. A minha grande
amantes que o homem não tem...
vocação é para pastor de almas. Há dezenas de anos que vivo para Cristo, enfurnado nesta
D. NAZARÉ
Igreja. Tenho um palpite que o Sr. Arcebispo me aproveitará como padre.
E para mais nada?... Quando o senhor acorda, de madrugadinha, e se mexe de um
D. NAZARÉ
lado para o outro na cama, a tiritar de frio, não sente uma...
Padre??? O senhor???
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Eu durmo em rede.
A escassez de sacerdotes é alarmante. No futuro a Santa Madre Igreja convocará
D. NAZARÉ
os leigos para a ativa; os leigos como eu, que tenham devoção e sejam solteiros. D. NAZARÉ
(Explodindo) Dorme em rede eu sei. Porém depois de visitar, sorrateiramente, a pensão da Ludovina...
Ah! O seu negócio é não casar?!
EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Benzendo-se) D. Nazaré, isto aqui é uma casa de respeito e orações...
Se Deus pedir o meu sacrifício...
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ Deus pede nada, seu presunçoso. Tem tanto bispo, tanto padre formado, tanta
E daí? Cochicharam nos meus ouvidos que o senhor tem um chamego com uma mulher na pensão da Ludovina. É por isso que não resolve a nossa situação.
freira a se oferecer para Deus, que ele nem vai se lembrar dos sacristãos de paróquia do
EUZÉBIO
interior. Não seja carola. Deus deve é andar chateado com tanta bajulação da Humanidade.
Que situação? Que situação? Tenho porventura alguma dívida consigo? E qual foi
EUZÉBIO
o demônio que murmurou nas suas orelhas de abano esta calúnia? Eu seria um devasso,
O meu maior sonho era vestir uma batina...
para me comprometer com uma prostituta? Eu sou algum prostituto?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Eu lhe empresto a minha saia. O mesmo efeito há de fazer. O seu maior sonho é
É o que vejo correr por aí...
nunca ter a responsabilidade de sustentar uma família. E haja sombra e água fresca. Rezas,
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EUZÉBIO
EUZÉBIO
Não espalhe estas injúrias. Se até amanhã o Sr. Arcebispo não responder o meu
Quando?
telegrama, avisando que virá alguém para o lugar do padre Tadeu, comprarei uma batina e
D. NAZARÉ
o domingo não passará sem Missa. Darei bênção a todos...
Não me posso recordar.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
E acertará o senhor a recitar Missa?
Jamais lhe toquei em casamento. Não sou leso nem demente.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Faz mais de dezoito anos que sei todo o Missal, de cabo a rabo. Verá a minha
Se não tocou pensou em tocar. EUZÉBIO
pose. D. NAZARÉ
Como tem certeza disso?
Verei é o senhor envolvido na pororoca de um escândalo.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Semana retrasada o senhor não quis se atracar com o leiteiro, aos murros?
Como?
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
É um salafrário.
Se virar padre darei uma escabrosa notícia às amigas minhas. Aliás, é suficiente
D. NAZARÉ
dar a uma delas; em trinta minutos todas as demais terão na pontinha da língua.
É não. O senhor é que está roído de ciúmes porque ele escreve bilhetinhos e
EUZÉBIO
madrigais para mim, a cantar o meu juízo com seus mimos. Aliás o seu Joaquim é um
Esta notícia escabrosa é a meu respeito?
lusíada garboso e bem apessoado. (Suspirando) Ah! Como seria delicioso se a minha
D. NAZARÉ
próxima lua de mel fosse com um patrício. (Desdenhosa) Um patrício que gostasse mais de
É.
costela do que de rosário...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Inquisitorial) Explique a sua ameaça.
Afinal, o que tem a senhora contra a minha dignidade eclesiástica?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
O senhor esteve a me empatar durante treze anos.
É o senhor se aboletar na batina e eu ir me queixar ao delegado.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Eu??? Acaso lhe fiz propostas de amor? (Transição) Virgem Mãe Santíssima!
Se queixar de quê?
(Benze-se) Acaso lhe disse que tencionava me amasiar consigo? D. NAZARÉ Amasiar se fosse eu a sua avó. Casamento com véu e luvas...
D. NAZARÉ Depende. Alegarei lastimosa que nos encontrávamos sozinhos, nesta “sala de respeito e orações”, e o senhor...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Eu lhe prometi isso?
(Cortante) O senhor o quê? Complete!
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Prometeu.
O senhor tentou... violentar-me. (Euzébio cai numa cadeira e D. Nazaré abana-o com o espanador.)
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EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Recobrando os sentidos.) Arranje depressa um copo d’água...
Chantagem é uma patifaria deslavada, como esta que deseja fazer comigo. Pecado
D. NAZARÉ
mortal.
(Olhando para os lados.) Não tem. Engula cuspo.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Por que pecado?
(Arquejante) Na pia batismal... água benta...
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Porque a senhora enlameia a minha honra.
(Saindo à esquerda.) Ai! Que desta vez até as suas tripas vão se sacramentar.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
E o senhor ainda tem honra?
(Levanta-se vagarosamente, dirigi-se ao oratório, ajoelha-se.) Pai supremo,
EUZÉBIO
livrai-me desse satanás de porta-seios. Por que é que todo homem, ainda que seja sacristão,
(Apoplético) Verá!
há de ter uma D. Nazaré no seu caminho?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ (Entra com uma vasilha – ou castiçal – transbordante de água.) Tome.
Tomara que não demore... Não tenha medo, homem, que não darei parte ao delegado. (Palmas da rua.)
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
(Bebe e lambe os lábios.) É saborosa. Tem um gostinho de santificação.
(Entrando, à direita.) Licença! (Traja uma batina branca, talhada de forma
D. NAZARÉ
diferente da tradicional, tem aspecto jovial e segura uma maleta.) Bom dia. Como vão,
Todo esse aparato, todo esse lero-lero somente porque ia eu revelar uma coisita
tudo azul?
que o senhor esconde.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Tudo o quê? Azul? V. Excia. Quem é?
O que é que eu escondo? D. Nazaré, não ofenda a minha fé!
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ
Um reverendo, uai. Não estão vendo?
Fé... isto mesmo: fé... O senhor busca esconder a vontade que tem de fazer uma
D. NAZARÉ
fezinha comigo. EUZÉBIO Tenha compostura! A minha fé é uma fé banhada de pureza, não é uma “fezinha”
Vendo... revendo... reverendo... reverendo é nome de padre protestante. V. Excia. Equivocou-se, aqui é a paróquia da Imaculada Conceição. EUZÉBIO
indecente. E mude de conversa. Violentar uma mulher é algo muitíssimo delicado e
E adventista excomungado não pisa debaixo deste teto. É fineza se retirar.
perigoso.
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ Ai! Que besteira. Eu sou viúva...
Calma, meu chapa. Que zelo franciscano é esse? O senhor não é fiscal da Alfândega!... Eu sou um sacerdote católico, na batata.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Não me interessa. A senhora é uma chantagista.
É?... Eu sou o sacristão Euzébio...
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Nem sequer sei o que é “chantagismo”.
(Para D. Nazaré.) E a senhora, o que é que é?
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D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Zeladora... D. Nazaré Coimbra...
O senhor não veio para suceder a padre Tadeu? Coitadinho, era um homem bom e
PADRE ELIAS
puro; se durasse mais acabaria fazendo milagre...
Satisfação em cumprimentá-los. (Aperta a mão de ambos.) Irmão Elias, à vossa
PADRE ELIAS
inteira disposição... EUZÉBIO
Vim por determinação do Arcebispado, acolitar o irmão Tadeu. O navio atrasou três dias, encalhado. O que aconteceu?
Deste quando padre veste batina desse tipo?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Padre Tadeu a estas horas jaz entregue às minhocas.
Que esquisitice!
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Bronquite crônica temperada com pneumonia galopante...
(Reparando a indumentária deles.) Sacristão e zeladora é que não deveriam se
PADRE ELIAS
vestir assim, carnavalescamente. Para que toda esta escuridão? Estão fazendo propaganda
Morreu??? Ora viva!!!
de uma agência funerária ou pensam que religiosidade é como resina de laranja, que se
EUZÉBIO
concentra na casca? O Mestre ensina que nos compete cuidar primeiro do interior, para
(Espantado com a euforia do padre Elias.) Miserê...
não sermos como os sepulcros caiados.
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Está biruta...
Lucas, capítulo onze, versículo trinta e nove.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
O Senhor percebeu o desastre que nós anunciamos? O Padre Tadeu hospedou-se
É o defeito de D. Iraneide, que não tem pejo de pintar toda a venta com um batom
na cova 415 do cemitério Bom Sossego, empacotado numa mortalha roxa... PADRE ELIAS
vagabundo, a se encher de brincos e anéis e a entupir a consciência de sovinice e despeito. PADRE ELIAS
E a extrema-unção?
Deixemos em paz o próximo que não está próximo. Por que não abriram a igreja?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Pedante) Eu ministrei!...
Não lhe comunicaram?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Formidável! Extraordinário! Este sim, ganhou passaporte para o céu.
Não. O quê?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Por que o senhor afirma com tanta convicção?
E o telegrama?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Distante) Afirmo o quê?
Que telegrama?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Que o padre Tadeu foi para o céu?
Não lhe comunicaram nada do telegrama?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Porque a morte dele, para mim, caiu do céu. E na hora agá, safando-me duma
Nem um grama...
arapuca.
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EUZÉBIO
EUZÉBIO
Arapuca?
Para perder de vez a liberdade?
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ
Escreverei sem demora a D. Floriano. Sopa no mel. Não arredo mais o pé daqui. D. NAZARÉ (Para Euzébio, à parte.) Esse palavreado dele é de beira de praia. Igualzinho ao de um político pedindo votos em subúrbio.
Padre Elias, é o senhor um iluminado, um missionário que Deus escolheu para trazer sabedoria a estas bandas. Nunca ouvi um conselho tão providencial. EUZÉBIO (Para o padre Elias.) Observou a cidade?
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
O senhor não voltará?
Efetuei um voo de reconhecimento da pista logo depois do desembarque.
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Não. Preencherei a vaga do padre Tadeu.
Não possui mais de vinte mil habitantes.
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
É uma deslealdade. A vez é minha...
Mentira: vinte e dois mil fora os cachorros e os gatos...
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Vez de quê? Como quer desempenhar as funções de sacerdote? Não é um
O mercado é uma porcaria, uma sujeira.
sacristão?
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Isto é normal.
(Desnorteado) Sim... Sim... sacristão... antes do senhor nascer já era sacristão...
EUZÉBIO
um mero sacristão que não aprendeu o latim... contudo, eu esperava que me aproveitassem
As mulheres não seguem a lei divina e levantam falso testemunho.
para o cargo.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
É animador.
Se aquiete, meu caro. A igreja católica não é Autarquia. A carreira clerical é
EUZÉBIO
rígida. Às vezes, a promoção mais certa é a que nos transfere diretamente para o paraíso.
Animador?
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Eu me esforcei tanto...
Sim. A mão que a inveja faz atirar pedras, a compaixão obriga a lançar lírios.
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
(Paternal) Continue esforçando-se. Podemos servir a Deus sem ostentar o hábito.
(Para D. Nazaré.) Agora ele não falou como político.
O senhor é solteiro?
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
Falou como o leiteiro que me quer namorar.
Felizmente. Adoro a castidade.
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ
(Para D. Nazaré.) É solteira?
Castidade!...
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Viúva, às suas ordens...
Não seja antiquado. Não estrague a sua liberdade: se case.
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58
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
(Fulo) Esse leiteiro é um cafajeste. Em cada litro de leite ele põe um pouco
Desgosto recolhido?
d’água. (Para o padre Elias.) Na sua terra é assim? PADRE ELIAS Não. Lá em cada litro d’água eles botam um pouco de leite.
PADRE ELIAS Desgosto, não, gosto. Gosto dos ambientes como este de gente simples e laboriosa. Além disso, me armarem uma cilada...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Neste vilarejo temos apenas um ônibus desconjuntado, um tabelião cachaceiro e
Cilada?
um médico materialista.
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Uma emboscada?
Se não tivesse nenhum veículo, melhor. Movimentar as pernas é um ótimo
PADRE ELIAS
exercício: revitaliza os músculos e mantém em segurança os nossos ossos. A embriaguês do tabelião pode ser produto de um drama íntimo; talvez seja uma necessidade fisiológica:
Mais ou menos. Um dos meus superiores chegou à conclusão sumária de que devia me “corrigir”.
determinados órgãos do corpo humano se conservam melhor no álcool. Quanto ao médico,
D. NAZARÉ
o essencial é a sua cultura e abnegação. É preferível ser ateu com sinceridade do que
Por quê?
religioso com hipocrisia.
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ
Porque eu tenho ideias que ele não endossa. Sobretudo porque eu falo na gíria.
Apoiado, apoiado.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
E falar na gíria não é pecado?
(Para Euzébio.) É por tudo isso que na minha opinião o senhor deveria se casar.
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ
Neste país pecado é não falar na gíria. O sacerdote para ser amado, para esclarecer
Aprovado. O senhor, padre, é um colosso.
os humildes, tem que se expressar na linguagem do povo. Falar na gíria é falar o idioma
EUZÉBIO
dos pobres, dos analfabetos, e são estes os que mais necessitam da religião.
O meu sonho é ser pastor de almas...
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
E que armadilha lhe prepararam?
Conforme-se. Há muitos padres frustrados, que dariam excelentes pais de família.
PADRE ELIAS
E existem pais de família que são verdadeiros padres sem se ausentarem do lar. EUZÉBIO O senhor não me convence. Afinal de contas, por que tem tanto interesse em ficar aqui?
Estou na iminência de ser designado para uma luxuosa capela em Brasília, onde deverei lidar com políticos importantes... D. NAZARÉ (Com imensa comiseração.) Coitadinho.
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Há um motivo especial...
(Compadecido) Nesse caso, eu sou forçado a admitir que o senhor tem razão.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Qual é?
Em face desta sentida e comovente manifestação de apreço, eu me declaro, solenemente, vigário desta paróquia.
59
60
D. NAZARÉ
EUZÉBIO
(Beijando-lhe a mão.) Com a graça do Altíssimo.
Tenho até acanhamento.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
E da Virgem Mãe Santíssima. (Noutro tom.) Espere, e o decreto do Arcebispado?
(Pilheriando) Não é o capeta, não?
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
É... depois eu quebro este galho. Festejemos o acontecimento com um brinde.
Não, não é o capeta mas é um instrumento dele...
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Doravante o senhor é o chefe. (Tira da parte de baixo da estante, ou de uma das
Um saxofone?
gavetas da carteira, três copos, e os entrega à D. Nazaré.)
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
Uma mulher... (Para fora.) Desapareça! Isto é uma casa de respeito e orações...
Novamente água benta?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Deixe entrar.
(Para ela.) Traga o vinho da Missa.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
É... é.... a Ludovina.
Que heresia! (Benze-se)
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Ludovina era o nome de minha mãe.
“O que mata não é o que entra pela boca. O que mata é o que sai pela boca,
EUZÉBIO
porque procede do coração...”
Uma prostituta...
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Marcos, capítulo dez, versículo dezenove.
(Transtornado, batendo na mesa.) O senhor connheceu minha mãe?
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Desta feita deu uma fora. Isto está em Mateus, capítulo quinze mais ou menos.
Eu?...
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Não acredito. Por mais de trinta anos que leio a Bíblia e por mais de dez que
Se não provar que ela foi prostituta...
gravei quase todo o Novo Testamento. Verifiquemos. (Tira da estante um volume de capa
EUZÉBIO
negra e o manuseia; D. Nazaré sai, à esquerda.; ouvem-se palmas; Euzébio dirige-se à
Minha Nossa Senhora das Agonias, acuda-me. Prostituta é a Ludovina que está aí.
porta da rua e o padre Elias senta-se.)
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Retemperado) Mande entrar.
O que mata é o que sai pela boca... as palavras... Oh! Se todas as pessoas fossem
EUZÉBIO
mudas...
Pois não. (Para fora.) Entre. EUZÉBIO
LUDOVINA
(Para fora.) Que atrevimento! Que desaforo!
(Entrando: decote espalhafatoso, saia ultracurta.) Buenas!
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Quem é?
Bom dia, senhorita.
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LUDOVINA
PADRE ELIAS
O senhor é o novo padre?
Sei.
PADRE ELIAS
LUDOVINA
Parece...
Tenho uma fama péssima.
LUDOVINA
PADRE ELIAS
O senhor é o tipo do artista de cinema.
Eu vi.
PADRE ELIAS
LUDOVINA
E você é um pedaço de perdição. (Nesta altura D. Nazaré vem entrando, à
A culpa é minha; sou proprietária de um cabaré.
esquerda, estanca e deixa cair os copos com o vinho, que se quebram.) Algum fantasma? D. NAZARÉ (Esfregando as pálpebras.) Não é possível...
PADRE ELIAS A proprietária é certamente a estrela mais disputada... Sim senhor, até neste quase sítio tem meretrício organizado.
EUZÉBIO
LUDOVINA
Uma profanação do recinto...
É...
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Que pieguice é esta?
A polícia não proíbe?
D. NAZARÉ
LUDOVINA
É ela uma... prostituta.
Não possuímos o alvará de autorização.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
E Maria Madalena era virgem?... E para que existem as igrejas, não é para os
Autorização de quem?
pecadores? Ou vocês liquidam este puritanismo meloso ou eu demito todos dois. E vamos
LUDOVINA
começar a por as coisas nos eixos. (Para Euzébio.) Abra as portas da igreja.
Da polícia...
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
É uma homenagem ao finado padre Tadeu...
A polícia ao invés de proibir fornece autorização por escrito?
PADRE ELIAS
LUDOVINA
Reverencie a memória dele seguindo os seus exemplos. Também se homenageia os mortos trabalhando pela fraternidade entre os vivos. Escancare todas as portas. (Euzébio sai à esquerda.) D. Nazaré, providencie moradia para mim. (D. Nazaré sai à direita, resmungado.) LUDOVINA
O delegado escalou uma patrulha de soldados para nos vigiar; à menor arruaça, prendem. PADRE ELIAS Resumindo: a polícia não proíbe, dá autorização por escrito e ainda colabora vigiando para que tudo corra às mil maravilhas...
É um padre bacana...
LUDOVINA
PADRE ELIAS
É o destino...
Obrigado.
PADRE ELIAS
LUDOVINA
Da polícia?
Eu sou a Ludovina.
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LUDOVINA
PADRE ELIAS
Não, nosso.
Desde que não seja o meu sacristão...
PADRE ELIAS
LUDOVINA
O destino é geralmente fruto de sementes que plantamos.
É o coronel Menacê.
LUDOVINA
PADRE ELIAS
Vim pedir a sua cooperação.
Quem é esse coronel Menacê?
PADRE ELIAS
LUDOVINA
Em que, para que e por quê?
É o prefeito, marido de D. Iraneide.
LUDOVINA
PADRE ELIAS
Eu...
Hum... hum... você me entregou uma arma poderosa...
PADRE ELIAS
LUDOVINA
(Indulgente) Dispense os rodeios e fale sem constrangimento. LUDOVINA
Quando espocar o escândalo ele não terá coragem de negar porque sabe que sou espoletada.
Estou grávida...
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
E o que resultará disso?
Isto é da profissão.
LUDOVINA
LUDOVINA
Resultará que D. Iraneide é uma mulher recatada, refinada, mas essas sonsinhas
O jeito é abortar...
quando se espinafram são de morte... (Displicente) Ela dará um tiro nele, ou ele dará um
PADRE ELIAS
tiro em mim, ou eu darei um tiro nela...
Não consinto!
PADRE ELIAS
LUDOVINA
Em qualquer hipótese terei que benzer um caixão... Muito lindo...
O senhor fala como se fosse o pai! E as despesas do parto? E a educação da
LUDOVINA
criança? E a irmã aleijada que eu sustento?
É esta a sua cooperação?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Se você suplica cooperação é porque me aceita como guia espiritual. Aceita ou
Confie em Deus e não se precipite. Advogarei a sua causa.
não aceita?
(Ludovina despede-se e sai, à direita.)
LUDOVINA
D. NAZARÉ
Aceito.
(Entrando pela mesma porta.) Chamo um carregador para conduzir a sua maleta?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Ouça: esta criança vai nascer de qualquer jeito. Se ela desaparecer
Não precisa. Onde é o correio?
misteriosamente de seu ventre eu atiçarei uma campanha para fechar o seu cabaré.
D. NAZARÉ
LUDOVINA
Nesta travessa, segunda esquina da direita. (Gesticula mostrando.)
De acordo. O grilo é que este filho tem um pai...
PADRE ELIAS Vou telegrafar para o Arcebispo. Um instante que iremos juntos. (Sai à direita.)
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SEGUNDO ATO
EUZÉBIO (Entrando à esquerda.) Cadê ele? D. NAZARÉ Foi ao correio. Bons lados o levem.
Cena vazia. Padre Elias entra da rua, à direita, senta-se à mesa e examina a papelada.
EUZÉBIO Não tem porte de um ministro de Deus. D. NAZARÉ É pintoso... EUZÉBIO Chi... a senhora já está falando na gíria??? Dê licença. (Sai à esquerda.) D. NAZARÉ Bossa nova. Esse padre pode não ser bom e puro, mas vai acabar fazendo milagre...
EUZÉBIO (Entrando, à esquerda.) Bom dia. Como suportou a noite? Os mosquitos não perturbaram o sono? PADRE ELIAS Não. Os mosquitos daqui são mais civilizados do que as pulgas do Rio de Janeiro EUZÉBIO (Olhando os documentos remexidos.) Que tal as dívidas? PADRE ELIAS Quilométricas. Falência total. Assumir uma paróquia nesta pindaíba é pior do que presidir um Instituto de Previdência. EUZÉBIO E qual a solução? PADRE ELIAS “Dolorosa interrogação...” (Levanta-se, passeia.) O senhor tem cigarros? EUZÉBIO (Aturdido) Cigarros para fumar??? PADRE ELIAS E por eu não? EUZÉBIO Padre fuma??? PADRE ELIAS Se fuma? Nas grandes cidades padre fuma cigarros, cigarrilhas, charutos e cachimbos; padre monta em lambreta, salta de paraquedas e joga futebol. É a evolução... O que me sugere para equilibrar as nossas raquíticas finanças? EUZÉBIO Regresse para a sua terra que eu descasco o abacaxi. PADRE ELIAS O que é descascar o abacaxi? O senhor já aderiu à gíria?
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EUZÉBIO
EUZÉBIO
(Desconcertado) É influência sua...
(Discordando) É o fim... (Continua escrevendo.)
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Olha para cima, estala os dedos.) Encontrei! Tome nota com atenção. (Euzébio
Artigo terceiro: Casamento de moça de mais de vinte anos, grátis.
pega lápis e papel.) Estas são as medidas preliminares para a salvação de nosso barco.
EUZÉBIO
Artigo primeiro: Todos os débitos da paróquia da Imaculada Conceição, feitos pelo
Curtiremos fome...
falecido padre Tadeu, não serão saldados. O vigário atual da paróquia toma esta
PADRE ELIAS
deliberação a fim de cumprir um axioma, que diz que, duas vezes que... que quem... EUZÉBIO
Casamento de moça de menos de vinte anos, tabela especial: em lugar de trezentos cruzeiros, mil novecentos e noventa e cinco cruzeiros.
Assim são quatro quês fora o quem.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
(Radiante) Agora sim. Nesta igreja nunca uma noiva teve mais que dezenove
(Pausadamente) Um axioma que diz que quem compra fiado é que deve pagar.
anos.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
A palavra pagar é sobra. Chega o deve. Para que deve pagar? Aquele que deve é que deve pagar.
Observação: para o ato de matrimônio pede-se a certidão de idade somente do noivo.
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Leia o que rabiscou.
Positivo.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
O vigário da paróquia atual...
Artigo quarto: As famílias católicas que viverem em plena harmonia, sem rusgas e
PADRE ELIAS
sem arengas, formarão na primeira, segunda e terceira filas da procissão; para compor
O vigário atual da paróquia. (Euzébio emenda.)
essas filas contribuirão com cem cruzeiros. Nota: a procissão sairá quatro vezes na próxima
EUZÉBIO
Semana Santa.
(Repetindo) O vigário atual da paróquia toma esta deliberação a fim de cumprir um axioma, que diz que quem compra fiado é que deve.
EUZÉBIO Nadaremos em dinheiro. Tenho notado que em todo o trajeto da procissão os
PADRE ELIAS
casais se derretem de amores.... As três filas não chegarão; os nossos fiéis são uns
Ponto e vírgula. (Lento) Consequentemente, os fiados do padre Tadeu nós não
querubins: quando alguém aparece de queixo inchado é sempre “dor de dentes”...
resgataremos. Parágrafo único: as reclamações dos que se presumirem lesados, em vez de
PADRE ELIAS
serem formuladas às autoridades públicas deverão ser endereçadas ao Criador, que
Artigo quinto: Quem obtiver uma graça difícil, em vez de fazer jejum, ou
recompensará a todos com sua inesgotável Misericórdia... Artigo segundo: O preço do
qualquer outra mortificação, agradará o santo protetor depositando quinhentos cruzeiros
batizado não será mais duzentos cruzeiros.
sobre a toalha do altar-mor.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Um batizado vale quinhentos cruzeiros. Com elogio aos padrinhos, setecentos.
Bravos. Bravíssimo.
PADRE ELIAS Preço do batizado: quarenta cruzeiros. Operário desempregado não paga.
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PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Artigo sexto: A paróquia agradece, sensibilizada, os cinco mil cruzeiros que a
Genial, genial. Neste município o único casal que não tem filhos é o coronel
Prefeitura lhe destinará, mensalmente, como subvenção.
Menacê com D. Iraneide. Os outros, se têm poucos, têm três ou quatro.
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Aposto que isso o senhor não conseguirá. O coronel Menacê é um prefeito
Artigo décimo: Revogam-se as disposições em contrário. Copie à máquina e
ranzinza.
distribua cópias para os frequentadores da igreja. São os meus “dez mandamentos”.
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
(À parte.) Abençoada gravidez, a da Ludovina... (Para Euzébio.) Artigo sétimo:
Por estes dez mandamentos nota dez para o senhor.
Convidamos os protestantes e os espíritas a prestigiarem a fundação de um colégio para
PADR ELIAS
alfabetização de adultos; aceitamos qualquer donativo; os protestantes poderão nos enviar
Quantas velas grandes acendemos diariamente?
meia dúzia de dólares, com os quais nos será fácil adquirir vários milheiros de tábuas,
EUZÉBIO
pacotes de pregos, latas de tinta, carradas de areia, e mais alguma coisa; os espíritas
Uma dúzia à tarde e duas à noite.
poderão nos mandar mensagens mendiúnicas de incentivo: em retribuição, mão
PADRE ELIAS
apontaremos os protestantes que possuem retratos de santos atrás da porta, nem
Trinta e seis. Quanto cobram por uma vela?
deixaremos de batizar os filhos dos espíritas.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
As grandes custam cada uma cinco cruzeiros.
Uff! Mais compassado.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Cinco vezes seis trinta, vão três, cinco vezes três, quinze e três dezoito. Cento e
Artigo oitavo: As madames chiques desfrutarão da livre entrada no templo, aos
oitenta cruzeiros. Multiplicados por trezentos e sessenta e cinco dias perfaz... (Efetua a
domingos, na Missa das dez, para o costumeiro e inevitável desfile de modas. É permitido
operação a bico de lápis e exclama com ênfase.) Sessenta e cinco mil e setecentos
virem com modelos aerodinâmicos, super funcionais, desde que não ultrapassem os limites
cruzeiros em um ano. Que esbanjamento faraônico.
da decência e ponham cento e cinquenta cruzeiros na bandeja das esmolas. Para evitar
EUZÉBIO
esquecimentos o vigário fará pessoalmente a coleta.
E a iluminação dos santos?
EUZÉBIO Não mereço a sua confiança?
PADRE ELIAS Para que dispomos de luz elétrica? Não se gasta mais nenhum centavo em cera;
PADRE ELIAS
adaptaremos lâmpadas de cores em todos os nichos; para ornamentá-los usaremos flores
Comigo elas darão mais, por exibição. Artigo nono: A paróquia informar-se-á, no
artificiais, que não secam nem murcham.
Cartório, quanto à data do nascimento de todos os meninos e meninas filhos de pais
EUZÉBIO
católicos. Quando um deles aniversariar, o vigário irá apresentar-lhe os seus parabéns,
D. Nazaré sabe fazer. (Palmas da rua.)
levando-lhe um catecismo com gravuras em tecnicolor. Esta vista de cortesia não custará
PADRE ELIAS
nada; todavia, do sermão domingueiro, constará a quantia que os pais do nataliciante
Atenda.
oferecerem ao padre, espontaneamente...
EUZÉBIO (Na porta.) Salve! Um momentinho. (Para dentro.) É a D. Iraneide, esposa do prefeito. Quando encontro com esta mulher de manhã cedo, o dia todo é azarado.
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PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Isto é superstição. Não alimente crendices. Mande entrar.
Eu não sei datilografar.
EUZÉBIO
D. IRNANEIDE
(Introduzindo D. Iraneide na sala.) Seja bem-vinda, minha senhora.
Peça à secretária dele.
D. IRANEIDE
EUZÉBIO
Bom dia, padre.
Eu não sei quem é.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Bom dia.
É a D. Miguelina, uma que tem as pernas tortas...
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
(Apresentando-a solícito.) Esta é a virtuosíssima esposa do nosso venerável
Vá logo, seu Euzébio. EUZÉBIO
Prefeito. PADRE ELIAS
Com licença. (Sai à direita.)
Satisfação em conhecê-la. Padre Elias, ao seu dispor.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Sou todo ouvidos, D. Iraneide.
(Com visível nervosismo.) Obrigada.
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
É um problema melindroso... o senhor é tão jovem...
Sente-se, por gentileza.
PADR ELIAS
D. IRANEIDE
Idade não é garantia de retidão moral. Existem homens que quanto mais
O senhor... poderíamos conversar reservadamente?
envelhecidos mais sem vergonhas...
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
(Para Euzébio.) Abriu as portas da igreja?
E mulheres também...
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Abri. PADRE ELIAS
As mulheres se regeneram com mais antecedência, por falta de preparo físico; mulher depois dos quarenta é como automóvel de segunda mão...
Deu uma varridela no assoalho?
D. IRANEIDE
EUZÉBIO
(Prescrutadora) Como o senhor define a senvergonhice?
Isso é com a D. Nazaré. Ela chegou e saiu: na certa foi atrás do leiteiro.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS É preciso datilografar os meus “dez mandamentos”.
Senvergonhice não se define, pratica-se. É uma fatalidade na vida das pessoas ditas normais; entretanto, subordina-se a circunstâncias atenuantes ou agravantes.
EUZÉBIO
D. IRANEIDE
Máquina só na prefeitura.
Como assim?
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Vá à prefeitura e diga ao Menacê que...
Senvergonhice tanto pode ser o rapazola gazetar uma aula, como o velho professor cheirar o pescoço de uma aluna. Depende tudo da intenção.
73
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D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Adultério é senvergonhice?
Não, não julgaria.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
(Impassível) O adultério é uma das modalidades mais dolosas da senvergonhice.
Como interpretaria a minha doidice?
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Uma das modalidades mais gostosas?... PADRE ELIAS Dolosas... É uma senvergonhice, infelizmente, vulgarizada em todo o universo. E aliás está na moda.
Não interpretaria... São muitas as categorias de adultério, e os especialistas na classificação desse gênero de pecado “falham mais do que isqueiro molhado”. D. IRANEIDE Por quê?
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Quer dizer que é uma senvergonhice mas não é uma SENVERGONHICE.
Porque também são adúlteros em potencial.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Se o Cristo recomendou que não julgássemos os semelhantes foi porque sabia que
O senhor é um homem inteligente.
somos incapazes de devassar o coração alheio. O adultério, em essência, é mais fraqueza
PADRE ELIAS
do que maldade. O adultério da mulher, diga-se de passagem, porque o do homem não é
Obrigado.
fraqueza, é praxe. E o curioso é que sendo o homem um adúltero no mais alto grau,
D. IRANEIDE
revolta-se, sedento de vingança, quando é traído pela esposa, como se a mulher também
Cometi uma horrível imprudência...
não fosse sujeita aos desequilíbrios do sexo.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Sim?
Por que a sociedade condena tão rudemente adultério?
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
O senhor já “pescou”, não é? (Pausa.)
Os homens possuem acentuada inclinação para combater nos outros as suas
PADRE ELIAS
próprias iniquidades. É uma forma suave de autocondenação. No fundo, cada um
Quantos anos de casada?
reconhece as suas deficiências mas não tem coragem de admiti-las.
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
Vinte e um. (Pausa.)
Se eu lhe revelasse que enganei o meu marido, o que o senhor diria?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
“Incompatibilidade de gênios”?
Nada. Que tenho a ver com isso?
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
Não. Embora o Menacê seja um boêmio frequentador assíduo da pensão da
E o que pensaria?
Ludovina. Sai depois do jantar e só retorna ao amanhecer.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Pensaria que a senhora é infeliz e, sendo infeliz, merece a minha solidariedade.
A senhora mantém relações cordiais com a Ludovina?
D. IRANEIDE O senhor não me julgaria uma...
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D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Quem, eu??? Não... Não poderia manter relações cordiais com uma prostituta...
Algum legionário da Congregação Mariana?
Sou a presidente do Clube Municipal...
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
O senhor chegou ontem, não?
As prostitutas profissionais, D. Iraneide, são as mais honestas; pelo menos não
PADRE ELIAS
encobrem as suas ações com o véu do fingimento. Não menospreze a sua colega.
Sim.
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
Colega??? PADRE ELIAS Exatamente. Traindo o seu esposo a senhora se transformou numa prostituta. A diferença é que a Ludovina tem uma outra justificativa...
Ainda não foi apresentado a ele... o Zé Pedro detesta se aproximar da Igreja e de padre. PADRE ELIAS Por quê?
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
Qual?
Porque ele acha que é o único líder do povo pobre daqui.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Ela aluga o corpo porque não dispõe de meios para cuidar da irmã enferma. No
O único?
meu parecer isso é uma prostituição altruística, elogiável até... D. IRANEIDE O senhor insinua que comigo se deu o inverso?... Que tendo bastante recursos aluguei um corpo masculino para satisfazer um capricho cínico?...
D. IRANEIDE No dia dois de fevereiro o Zé Pedro, que é empregado na olaria do meu marido, veio à minha casa, às nove horas da noite, rogar um vale de duzentos cruzeiros para comprar umas injeções; sua mãe gemia com uma crise de asma. O Menacê tinha saído para
PADRE ELIAS
o habitual serão na Prefeitura, que se encerra, invariavelmente, na pensão da Ludovina. Eu
Que raciocínio! Não se martirize à-toa. O seu remorso é um atestado de que não
cedi ao Zé Pedro uma cédula de mil cruzeiros; não tinha miúdo. Mais tarde, umas onze
perdeu a dignidade. D. IRANEIDE Se o Menacê souber é provável que me dê um tiro. Sua noção de honra é muito avançada.
horas, ele voltou para trazer o troco. Os vizinhos dormindo... eu sozinha.... Oh!...meu Deus... (Chora copiosamente.) PADRE ELIAS Suspenda a narração... Qual foi o móvel da ação?
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Não creio... Como são imbecis os homes que assassinam friamente para “lavar a
A cama. Que importância tem o móvel?...
honra com sangue”!... É o cúmulo da covardia! Eles ensaiam a palhaçada frequentemente
PADRE ELIAS
por cabotinismo: para verem a fotografia nos jornais, aureolada com a coroa dos heróis, e
Toda prevaricação, todo adultério, origina-se de uma causa substancial. Em suma,
porque se escudam na certeza de serem absolvidos no Tribunal do Júri, onde rareiam os votos das mulheres. Mas... vamos à sua epopeia. Quem a seduziu? D. IRANEIDE Um moço inexperiente...
por que fez concorrência com a Ludovina? D. IRANEIDE A tentação do momento... O desejo de me vingar do Menacê... Um outro desejo... carnal... dominador... e depois... depois... o meu ideal é ter um filho!...
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PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
E o coronel Menacê?...
Tenho a impressão de que o senhor brevemente rezará num velório... Se o Menacê
D. IRANEIDE
souber fuzilará Zé Pedro ou a mim.
A princípio eram os nossos germes que não combinavam. Submetemo-nos a um
PADRE ELIAS
tratamento longo e dispendioso... PADR ELIAS
Talvez apele para o suicídio como melhor solução... A senhora quer mesmo este filho?
Não deu resultado?
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
O senhor não me aconselha abortar, não?
No anos passado o médico garantiu que eu estava pronta para conceber, podia até
PADR ELIAS
ter mais de um filho... porém o Menacê... cinquenta e cinco anos... PADRE ELIAS
Acha-me com cara de infanticida? Para que fez a senvergonhice com o “inexperiente” Zé Pedro?
Esse Zé Pedro, quantos anos tem?
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
Como lhe disse... para... para ter um filho...
Uns vinte e cinco.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS Casado?
Quem sabe se perante Deus isso não é também uma prostituição altruística e elogiável?!
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
Solteiro.
Eu não sei. O senhor sabe?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Vou lhe receitar uma penitência. Advertindo, entretanto, o seguinte: as
Não, não sei. De qualquer maneira CRIAR uma vida é algo meritório. Vá para
penitências que eu prescrevo só são eficazes estando a pessoa no propósito de não recair no
casa e comece a costurar as fraldas. (Entram abruptamente, à direita, Euzébio e o
mesmo pecado.
Prefeito.)
D. IRANEIDE
CORONEL MENACÊ
Isto eu afianço com absoluta convicção.
(Colérico) Isto é um ultraje à minha honorabilidade.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Está tão segura de si?
(Estática) Nossa Mãe!
D. IRANEIDE
EUZÉBIO
Sim... já tenho o que queria... PADRE ELIAS
(Servil) Padre Elias, este é o coronel Menacê, prefeito de incomparável tirocínio administrativo.
A senhora?...
CORONEL MECANÊ
D. IRANEIDE
(Gritando) Que farei diante desta ignominia?!
Estou grávida... Gravemente grávida... Grávida do Zé Pedro.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Diminua o tom de voz que isto aqui não é a casa da sua sogra.
Esta não! E o seu marido?
79
80
D. IRANEIDE
CORONEL MENACÊ
Padre... eu vou orar umas ave-marias por conta da penitência. (Trata de escapulir
A nojenta subvenção da paróquia. (Para D. Iraneide.) Você?...
para o interior do templo.)
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Vim fazer penitência para alcançar uma graça...
Espere. (D. Iraneide senta-se.) Inicialmente, seu Prefeito, cientifico-o que não
CORONEL MENACÊ
possui um pingo de educação e de que esta sala...
Que graça?
EUZÉBIO
D. IRANEIDE
De respeito e orações...
É... depois... depois lhe direi.
PADRE ELIAS
CORONEL MECANÊ
Esta sala não é gafieira da Ludovina. O senhor com este derrame de boçalidade
(Para o Padre Elias, sobriamente.) Eu...
não me intimida.
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
Sente-se. As amizades mais duradouras começam com bofetadas.
(Autoritário) Eu exijo...
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Concordo. Não concordo é com a subvenção.
Exige no forró de suas negas. Aqui o senhor pede. Neste terreiro o galo que canta
EUZÉBIO
sou eu.
(Para o padre Elias.) Ele leu e não deixou a secretária datilografar. EUZÉBIO
D. IRANEIDE
(Benzendo-se) Valha-me, minha Nossa Senhora! Padre Elias, o senhor é um
Padre Elias, em que santuário devo rezar a penitência?
pastor de almas... PADRE ELIAS (Indignado) Feche esta boca fofoqueira! Porque eu sou sacerdote devo ser
PADRE ELIAS Penitência de mulher casada é na cozinha, enquanto a panela ferve... reze oito salve-rainhas, até o feijão amolecer.
efeminado? Acaso Jesus dói um molongó, um palerma? Não consta dos Evangelhos que
CORONEL MENACÊ
ele deu uma surra de chicote nos vendilhões do templo? (Para Menacê.) Ou o senhor se
É, vá indo. (D. Iraneide despede-se e sai, à direita.)
comporta como deve ou eu lhe aplico o Evangelho do cacete!!!
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
O senhor não dá a subvenção, hein?
Isto é uma cachorrada! É uma afronta às minhas imunidades.
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Não. A prefeitura atravessa um período deficitário. Regime de compressão de
Essas imunidades em homens da sua laia se prestam unicamente para estimular o roubo, a corrupção, as falcatruas de toda espécie, e para cavar o túmulo da democracia.
despesas. PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
Hum... o velho papo da falta de verbas...
(Taxativo) Pois eu não libero verba, seu padre desordeiro. E...
CORONEL MENACÊ
D. IRANEIDE
E tem mais: eu não tolero imposição.
(Pasma) Que verba?
PADRE ELIAS Tolera, sim...
81
82
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
O senhor graceja? Se é para rir mande o sacristão fazer uma cosquinha no meu
(Em apuros.) O senhor ouviu o que eu disse?
sovaco. (Euzébio dá as costas.)
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Ouvi.
Não é para rir, é para chorar. O senhor dará, prazerosamente, a subvenção; ou as
PADRE ELIAS
subvenções....
Mas eu não disse nada...
CORONEL MENACÊ
CORONEL MENACÊ
Como???
O Zé Pedro não é pilantra. É um rapaz correto, instruído e estudioso. Tem o curso
PADRE ELIAS
ginasial. Dizem que ele veio da capital há três anos porque feriu dois guardas-civis numa
Uma para a igreja, outra para a Ludovina.
arruaça política.
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
(Indeciso) O senhor...
Cada vez me engano mais... O senhor não está propenso a trucidar o Zé Pedro?
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
Seu Euzébio, volte à prefeitura, dê os meus “dez mandamentos” à secretária do
Eu??? Ele é que quando descobrir me retalhará com a sua peixeira.
coronel para ela datilografar em quatro vias, e diga-lhe que o prefeito determinou isso.
PADRE ELIAS
(Euzébio sai à direita.)
Ele... D. Iraneide...
CORONEL MENACÊ
CORONEL MENACÊ
Padre...
Tenho um palpite que um de nós esticará as canelas.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Estou a par da gravidez de Ludovina. O senhor oferecerá a ela a mesada de três
Que embrulhada!
mil cruzeiros, além de arcar com as despesas da parteira e dos medicamentos. E depois do
CORONEL MENACÊ
primeiro ano, já sabe: correção monetária, além da correção moral.
Não entendeu?
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
(Totalmente transformado.) Se souberem estarei arrazado.
“Estou mais por fora do que língua de enforcado”.
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
Ninguém saberá. A menos que a verba da paróquia caia em exercício findo. CORONEL MENACÊ A minha maior preocupação é a Iraneide. Coitadinha, tão dedicada, tão leal... (Lagrimoso) Padre, eu tenho uma pena da minha mulher!...
O Zé Pedro é o xodó da Ludovina; quando ele souber que ela engravidou de mim... PADRE ELIAS Agora clareou... Descanse que eu desmancharei este nó de quatro pernas.
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
(Entre os dentes.) Ah! Zé Pedro pilantra...
Como agirá?
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Pilantra, não.
Não se incomode. Conte com a minha assistência incondicional e desinteressada. Tanto quanto eu conto com as subvenções...
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84
CORONEL MENACÊ
D. NAZARÉ
Obrigado. (Despede-se e sai à direita.)
São para o meu mui querido Santo Antônio.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Em frente do oratório.) Senhor, me arranca dessa. Que hei-de fazer? A Ludovina
Santo Antônio aniversaria hoje?
é o xodó do Zé Pedro e está grávida do Coronel Menacê; a D. Iraneide é esposa do coronel
D. NAZARÉ
Menacê e vai ter uma criança por obra e graça do Zé Pedro. É muita senvergonhice junta!
Não. Sou devota dele há treze anos.
E como é que tu, oh! Deus, crias os teus filhos do mais torpe adultério? Sim, são teus filhos
PADRE ELIAS
e por isso vão nascer nem que “chova canivetes”. Uma existência humana é mais
E o seu Euzébio ainda não caiu na ratoeira?
importante do que um milhão de catedrais... Oh! Senhor, perdoa-me. Tudo é natural... a
D. NAZARÉ
senvergonhice é natural... tu não dissestes que a carne é fraca?... Paciência... Não leves a
“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. (Sai à E.)
mal minha ousadia. Só sei orar expondo a ti os meus sentimentos com franqueza e sem
PADRE ELIAS
subterfúgios. A prece não é uma conversa da criatura com o seu Criador? Por que, então,
Algum quiproquó?
não ser uma conversa sincera?
ZÉ PEDRO
D. NAZARÉ
Desfecharemos uma greve na olaria do coronel Menacê. Centa e oitenta operários.
(Entrando à direita com Zé Pedro e um buquê de flores.) Bom dia, irmão Elias.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
E o que é que o pacato vigário da paróquia tem a ver com a greve dos ilustres
Bom dia. D. NAZARÉ Este é o Zé Pedro.
artistas em confecções de barro? ZÉ PEDRO Vim lhe dizer que não deve jogar o povo e as autoridades contra nós. O Coronel
ZÉ PEDRO
Menacê, com as regalias de prefeito, tentará nos derrotar recorrendo a esse golpe baixo. O
Bom dia.
senhor não deve se intrometer...
PADRE ELIAS Seja bem vindo.
PADRE ELIAS Eu não devo o quê? Quem é você para ditar-me regras de conduta? Nesta igreja
D. NAZARÉ
ninguém faz farol, ninguém alardeia valentia. Se deseja pedir um favor, peça; se não deseja
Ele veio debater com o senhor...
suma desta sala.
ZÉ PEDRO
ZÉ PEDRO
O assunto é uma greve.
Sumo com muito prazer, só vim para avisar. Pensa que eu preciso do senhor? Eu
PADRE ELIAS
sou ateu.
Sente-se (Para D. Nazaré.) Quem é o aniversariante?
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO
Ateu... Por que é ateu?
Por quê?
ZÉ PEDRO
PADRE ELIAS
Porque não creio em Deus.
As flores...
PADRE ELIAS E o que é Deus?
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ZÉ PEDRO
PADRE ELIAS
Não sei. Indague dos católicos praticantes, dos católicos simpatizantes e dos
(Enigmático) Não arrebentará...
católicos farsantes. Pelas descrições que tenho ouvido é um rei gordo, vermelho e barrigudo, que repousa num trono reluzente, todo estufado com espuma de “náilon” americana...
ZÉ PEDRO O senhor me irrita! Já disse que a greve arrebentará e arrebentará nem que eu tenha de derrubar esta igreja reacionária. Em que o senhor se fia?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Que mentalidade tacanha! Está bem.
Na gravidez de D. Iraneide... na espingarda do Coronel Menacê... na aflição de
ZÉ PEDRO Está bem... Está bem... Para os padres tudo está bem... Enquanto nós trabalhamos
Ludovina vendo o seu cadáver... ZÉ PEDRO
como cavalos para ganhar míseros tostões, os senhores ganham milhões para não
O senhor?... ela confessou?... ela...
trabalhar...
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Com todo este nervosismo você é o líder de cento e oitenta homens?
Quem que não trabalha??? (Incisivo) Explique-se senão lhe achato um olho.
ZÉ PEDRO
ZÉ PEDRO
(Completamente mudado.) Padre, evite esta tempestade...
Eu arraso com a saúde, dando duro das sete da manhã às seis da tarde, e no fim da
(Começa a rir de repente.)
quinzena não recebo um níquel; só os vales. O senhor não tem patrão, não suja as unhas,
PADRE ELIAS
não escuta repreensões, não traz os bolsos vazios...
Enlouqueceu? Ou isso é um ataque de hidrofobia?...
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO
Eu não lhe dou um tabefe porque você é um retardado, um débil mental. Quem
Não, não enlouqueci. (Ri mais uma vez.)
lhe informou que padre não trabalha, não se esgota, não traz os bolsos vazios? Encontro-
PADRE ELIAS
me numa apertura mil vezes pior do que a sua. Se no prazo de oito dias não arrecadar trinta
Incorporou algum espírito zombeteiro?...
mil cruzeiros para consertar uma parede rachada deste prédio, eu é que entrarei em greve.
ZÉ PEDRO
Cerro as portas da igreja e o pessoal que reze no meio da rua. ZÉ PEDRO
Não, somente me recordei que o senhor está impossibilitado de revelar minha safadeza com D. Iraneide.
Isso é demagogia...
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Intrigado) Impossibilitado???
É real. E nos selaremos um pacto. Como você não vai mesmo fazer a sua greve,
ZÉ PEDRO
apoiará a minha.
Sim. O segredo da confissão não é inviolável?...
ZÉ PEDRO
PADRE ELIAS
(Reagindo à altura.) Quem não vai fazer a greve???
(Apreensivo) Por esta eu não esperava... Confissão... eu disse confissão?
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO
Você.
Não disse?
ZÉ PEDRO
PADRE ELIAS
Uma joça! A greve arrebentará na próxima semana.
(Ri no mesmo diapasão.) Ora, ora, ora...
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ZÉ PEDRO
ZÉ PEDRO
Incorporou o Espírito Santo?
Eu não gosto de Deus. Se ele de fato existe é o culpado de todas essas desgraças.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Peremptório) Confissão autêntica é no Confessionário. Ela falou comigo nesta sala...
Tenha fé na justiça. A fé na justiça é tão poderosa quanto a fé em Deus. Não desanime.
ZÉ PEDRO
ZÉ PEDRO
Não deixa de ser confissão.
Adeus, padre. (Sai)
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Vencido) É...(Transição) Que confissão? Não houve confissão. O que houve foi confidência. ZÉ PEDRO (Entregando os pontos.) Padre... PADRE ELIAS Elias, às suas ordens, para um entendimento amigo ou uma briga violenta, você é quem decide o que prefere. ZÉ PEDRO (Implorativo) O senhor não empastelará a nossa greve... Estamos com fome, endividados, ao passo que o coronel Menacê faz farras e mais farras na pensão da Ludovina; quase toda noite dorme com ela. PADRE ELIAS E por que você não interfere? Não é o xodó da Ludovina? ZÉ PEDRO Se eu expulsar o prefeito do quarto dela quem aviará as receitas de sua irmã? PADRE É triste... É re-vol-tan-te!... ZÉ PEDRO Prometa que estará conosco... PADRE ELIAS Prometer não prometo. Contudo, vá tranquilo. ZÉ PEDRO O senhor... PADRE ELIAS Não se preocupe. Tenha fé em Deus.
Fé em Deus... Fé na justiça... Qual das duas é a mais verdadeira?
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TERCEIRO ATO
90
EUZÉBIO O Coronel Menacê, o Zé Pedro, a Ludovina, D. Iraneide, todos. O que acontecerá?
A sala apresenta aspecto de geral modificação, como se o padre tivesse modernizado tudo.
PADRE ELIAS É impossível prever. EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Eu queria lhe falar... mas a atmosfera anda tão fumacenta...
(Lendo as Escrituras.) “Quanto a Jesus, foi para o monte das Oliveiras; mas ao
PADRE ELIAS
romper do dia, voltou ao templo e todo o povo veio ter com ele que, sentando-se, entrou a
Prenúncio de furacão.
ensiná-lo. Então os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher, que fora apanhada em
EUZÉBIO
adultério, e a puseram no meio de toda a gente. E disseram a Jesus: – Mestre, esta mulher
O meu caso pode ser adiado.
acaba de ser apanhada em flagrante adultério... Na Lei ordenou-nos Moisés que
PADRE ELIAS
apedrejássemos semelhantes mulheres; tu, pois, que dizes? Com esta pergunta queriam
Não, por quê? Vamos lá, ponha para fora.
experimentá-lo para terem do que o acusarem. Jesus, porém, abaixando-se, pôs-se a
EUZÉBIO
escrever no chão. Como insistissem na pergunta, ele se levantou e lhes disse: – “Aquele
Eu me sinto sem fôlego.
que dentro vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a pedra”. E, tornando a
PADRE ELIAS
abaixar-se, continuou a escrever no chão. Os que o interrogaram, ao lhe ouvirem a
Não desperdice o ensejo, daqui a uns cinco minutos talvez seja tarde...
resposta, foram saindo um por um, a começar pelos mais velhos até os últimos, ficando só
EUZÉBIO
Jesus e a mulher que estava no meio. Erguendo-se, Jesus lhe perguntou: – “Mulher, onde
Por quê?
estão eles? Ninguém te condenou?” Respondeu ela: – “Ninguém, senhor. Disse Jesus: –
PADRE ELIAS
“Nem eu tão-pouco te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais.” Aquele que
Por causa de um defunto.
dentre vós está sem pecado seja o primeiro que lhe atire a pedra... (Suspende a batina, tira
EUZÉBIO
cigarros e fósforos da calça, fuma.) Que sinuca! A Ludovina não pode mais camuflar a
Depois de sepultarem o defunto o senhor me atenderá.
barriga. A D. Iraneide também não pode esconder a gravidez. O nó tem que ser desatado...
PADRE ELIAS
E é hoje. Vou botar tudo em pratos limpos...
E se o defunto for o Padre Elias?
EUZÉBIO (Entrando à direita.) Dei o recado a todos.
EUZÉBIO O senhor???
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Eles virão?
Sim.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Virão.
Virgem, Mãe do Céu. (Benze-se) Estou assombrado.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Todos?
Com tão pouca coisa? Então prepare-se para receber uma enorme emoção. Uma emoção dulcíssima, que arrancará pérolas cintilantes de seus olhos... Uma emoção...
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92
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Já estou emocionado...
O responsável pelo filho.
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Pronto para receber uma bomba?
E não é o senhor?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Bombardeado, já... PADRE ELIAS
Não. Eu permaneço ainda imaculado... Conservo a pureza do batismo... Se morresse hoje seria um anjo...
(Rindo) O senhor ainda não sabe?
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
Se topava com D. Nazaré por que não se declarou?
(Desesperado) Saber como???
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
Isto aqui é uma casa de respeito e orações.
Necessariamente não ignora. É o autor...
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
(Sorrindo) Vou dar uma olhadela no cofre da padroeira. (Sai à esquerda.)
Autor???
EUZÉBIO
PADRE ELIAS Sim. Autor de D. Nazaré. Ou, mais detalhadamente: autor da gravidez de D.
Quem diria que a D. Nazaré me enganaria! Quem diria!... (Soluça compungidamente; D. Nazaré entra à direita; ele, de costas, não a vê.) Oh! Jesus, como é amargo o meu sofrimento!... Como amo a D. Nazaré! Tão bonita!... (D. Nazaré deixa cair
Nazaré. EUZÉBIO
um ramalhete de rosas que traz e ele se espanta com o baque.) A senhora???
(Caindo numa cadeira, comicamente.) Uma vertigem...
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Sim, seu Euzebiozinho. O senhor é também tão bonito!... Tão cavalheiro!... Tão
Não lhe alertei que a emoção seria forte?! Todo homem fica atordoado quando sabe que vai ser pai.
galante!... Tão irresistível... EUZÉBIO
EUZÉBIO
Desapareça da minha vista!!!
Pai??? Pai??? Eu???
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Ué?!...
Não negue.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
A senhora é uma mulher sem pudor.
Nego, nego, nego. Jamais tive tamanha intimidade com D. Nazaré! A prova disso
D. NAZARÉ
é que ia lhe dizer, neste instante, que pretendia noivar com ela no ano que vem. Que
(Inocente) Eu??? Por quê???
decepção! (Contrafeito, choroso.) Tudo por águas abaixo. D. Nazaré foi ingrata para mim.
EUZÉBIO
Tanto tempo convivendo comigo e no fim me abandonar por outro...
Nunca mais desejo vê-la. Não sabia que eu simpatizava consigo?
PADRE ELIAS
D. NAZARÉ
Que outro?
Ai! E o senhor me disse?
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94
EUZÉBIO
EUZÉBIO
E por que eu não disse tratou de arrumar um Adão?
Como???
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Adão???
Suspeito que é o Nizomar, porém não afirmo...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
E o danado desse padre, como se não fosse bastante a sua patifaria, ainda me taxa
E existe a possibilidade de ser outro?
de autor do seu Caim.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
O seu Genivaldo ou o seu Agostinho...
Adão?... Caim?... O que quer dizer?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Três???
(Impiedosamente satírico.) Que a senhora comeu a fruta proibida.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Apenasmente.
Que fruta proibida?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Tarada! A senhora é uma tarada.
A maçã.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Eu???
Que maçã?
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Sim! T-A-R-A-D-A!!!
A maçã da senvergonhice...
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
O senhor me respeite, seu MARICAS!
Isto tanto tempo faz que não mais sei o sabor... Há dezenove anos que meu
EUZÉBIO
maridinho morreu.
Respeitar uma prostituta?
EUZÉBIO
D. NAZARÉ
(Mordaz) D. Nazaré Inocência dos Prazeres..
Prostituta??? (Quase desmaia.) Prostituta é a... é a rapariga da sua irmã com toda
D. NAZARÉ
a parentela.
(Idem) Sr. Euzébio dos Prazeres Inocentes...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
E os diversos pais de seu filho?
Quem é o pai?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Crio o pirralho desde os três aninhos de idade. Pelo que vim a saber a mãe dele
De quem?
viveu amancebada com o seu Agostinho, com o seu Nizomar, com seu Genivaldo...
EUZÉBIO
EUZÉBIO
Do seu filho.
E a sua gravidez?
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Sei não, homem.
Gravidez???
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EUZÉBIO
CORONEL MENACÊ
Sim. Não se faça de boba.
Não. (Vez por outra Euzébio e D. Nazaré se olham com transparente furor.)
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Quebro-lhe a cara! Que gravidez é esta?
(Para D. Iraneide.) Tem tido enjoos?
EUZÉBIO
D. IRANEIDE
O padre Elias me disse que a senhora engravidou. A sua cintura está mesmo
Não.
empinada, saliente.
CORONEL MENACÊ
D. NAZARÉ
Enjoos?
(Mirando-se) Saliente é o senhor, seu atrevido duma figa. Isso é artimanha sua. O
PADRE ELIAS
padre Elias não me difamaria.
Sim, enjoos... por falar em enjoos, ontem o Zé Pedro esteve aqui, bêbado, para
EUZÉBIO
avisar que tinha “enjoado” os afazeres em sua olaria e achava-se disposto a enfrentar uma
Vou chamá-lo para a confirmação. (Sai atarantado e esbarra no padre Elias, que
cadeia...
vem entrando à esquerda.)
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
(Apreensivo) Uma cadeia? E o que fará para ingressar numa prisão?
Que borrasca é esta? (Sorri) Arengando na véspera do casório? (Entram o coronel
PADRE ELIAS
Menacê e a D. Iraneide, desconfiadíssimos.)
Isso ele não avisou.
CORONEL MENACÊ
D. NAZARÉ
Bom dia, padre Elias.
Dê licença, irmão Elias. (Faz menção de sair mas se detém.) Eu que cá estou a
PADRE ELIAS
enjoar esta estória de gravidez.
Bom dia. Como vai, D. Iraneide, alguma anormalidade?
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
A senhora?
Não, graças a Deus e ao senhor.
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Adeus, D. Nazaré, não se atrase.
E o coronel?
EUZÉBIO
CORONEL MENACÊ
Eu também me retiro.
Tudo em paz, graças a Deus e ao senhor; principalmente ao senhor...
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Alto lá! Ninguém foge. Elucidemos a gravidez...
D. Iraneide, tem tido tonteiras?
CORONEL MENACÊ
CORONEL MENACÊ
Padre Elias, tenha dó... a Prefeitura aumentará para dez mil cruzeiros a subvenção.
Tonteiras??? A Iraneide não sofre de tonteiras.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Qual das duas?
Não, padre.
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
A da igreja... não toque na questão...
(Para o Coronel Menacê.) Tem se avistado com o Zé Pedro?
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98
D. IRANEIDE
CORONEL MENACÊ
(Para o padre Elias.) Ia me esquecendo que tenho umas joias para lhe presentear;
Tenho que assinar umas portarias na Prefeitura. (Encaminha-se para a porta da
é o meu óbulo para a paróquia... não toque na questão...
rua, à direita.)
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
O assunto não é pra ser ventilado dessa maneira...
(Interceptando-o) Para que tanta afobação? Fique, coronel, mais um pouquinho
CORONEL MENACÊ
que o bate-papo é convidativo... Depois o senhor assinará as portarias. (Para Ludovina.) O
(Para Euzébio.) Como é que o senhor tem a audácia de meter o bedelho nisso?
parto é para que mês?
EUZÉBIO
D. IRANEIDE
(Retrucando altivo.) Eu é que lhe pergunto. O senhor é que é o pai?
(Absorta) novembro...
CORONEL MENACÊ
LUDOVINA
Eu sou coisa nenhuma!
(Para ela.) A senhora já sabe?
D. IRANEIDE
D. IRANEIDE
(Aérea) Tem que ser você, meu amor...
Como não haveria de saber?
EUZÉBIO
LUDOVINA
(Para D. Nazaré.) Ainda precisa de confirmação?
(Para o coronel Menacê.) Sacripanta.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Vocês estão... invertendo... EUZÉBIO
(Para Ludovina, drástica.) Você qualifica o meu marido de sacripanta simplesmente porque ele fez um filho? Não é uma prerrogativa dele?
Eu não sou o pai.
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
Não se esqueçam, não façam bagunça nem apelem para o tumulto, que isto aqui
Nem eu.
não é Câmara Legislativa.
PADRE ELIAS
LUDOVINA
Pelo que noto o pai serei eu...
Pois se é uma prerrogativa dele a senhora vai criar.
LUDOVINA
PADRE ELIAS
(Entrando à direita.) Bonjour para todos. Mandou-me chamar, padre Elias?
Eu peço a palavra e não concedo apartes. Ponhamos os pontos nos is.
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
Está na cara...
Padre Elias... as portarias... são urgentíssimas...
LUDOVINA
EUZÉBIO
(Olhando de soslaio para o coronel Menacê.) É sobre a mesada para o nenê?
(Dramático) Ausento-me. Prefiro desconhecer uma verdade tão cruel.
Naquela base?
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
Eu deixei o macarrão refogando.
É sobre a gravidez.
PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
Não se afastem sem que eu anuncie a celebração de um matrimônio.
Oh! Que escândalo!...
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100
LUDOVINA
PADRE ELIAS
Matrimônio? O Coronel Menacê não é casado oficialmente com D. Iraneide?
Seu.
PADRE ELIAS
EUZÉBIO
O matrimônio tardio, porém venturoso, do seu Euzébio.
Meu???
CORONEL MENACÊ
D. IRANEIDE
Então foi ele, sua vigarista?
(Descuidada) É do Zé Pedro, isto é, do Menacê...
EUZÉBIO
LUDOVINA
Eu o quê?
Justamente. É do Corone Menacê.
D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
(Para Euzébio.) O senhor, hein?!...(Arremendando) “O meu sonho é ser pastor de
Irmão Elias, que confusão! Que encrenca! Quem é que engravidou?
almas”...Velho saçariqueiro!... E eu a fazer promessas para Santo Antonio de Lisboa...
EUZÉBIO
(Joga um punhado de flores no rosto de Euzébio.)
Pela derradeira vez eu berro: o filho não é meu!
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
(Para ambos.) Não briguem que ainda não estão casados...
(Para Euzébio.) O filho é seu, apenas ainda não foi concebido.
CORONEL MENACÊ
EUZÉBIO
O casamento é deles? E a Ludovina?
Como é isso?
LUDOVINA
PADRE ELIAS
(Debochando) A Ludovina não é reumatismo, portanto não está interessada em
(Contornando, risonho.) Seu Euzébio, eu planejei um ardil para provocar o seu
casar com velho; se contenta com uma mesada polpuda...
casamento com D. Nazaré. Sabia que o senhor gostava dela e me confrangia a alma ver
EUZÉBIO
tantas súplicas a Santo Antonio. Se eu não dissesse que D. Nazaré se achava grávida, o
(Indicando D. NAZARÉ.) Eu vou casar com esta mulher???
senhor não confessaria que a amava. A gravidez de D. Nazaré foi uma farsa que bolei para
PADRE ELIAS
forçá-lo a um pronunciamento. Creio agora que vocês se casarão. Posso marcar a data do
Não se apaixonou por ela?
auspicioso acontecimento?
D. IRANEIDE
EUZÉBIO
Feito, feito, não se discute mais.
Espere, me dê um tempinho para refletir...
LUDOVINA
PADRE ELIAS
(Para D. Iraneide.) Ilusão sua. O caldeirão vai entornar.
Se não casar sem refletir, refletindo é que não casará... Sábado que vem serve, D.
CORONEL MENACÊ
Nazaré?
(Para Ludovina.) Não deposite mais lenha na fogueira.
D. NAZARÉ
PADRE ELIAS
Ai! Que por mim serve até amanhã.
(Para Euzébio.) A sua futura esposa está intacta. Desde que o marido viajou para
PADRE ELIAS
o outro mundo, ela permanece como a Petrobrás: intocável...
Tudo acertado; sem ser este sábado, no outro.
EUZÉBIO
EUZÉBIO
E o filho, de quem é?
E a minha liberdade?
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D. NAZARÉ
D. NAZARÉ
Não hei de prendê-lo, não. Poderá sair todas as noites de novena.
Não fique a tratar-me por dona. Isto não vem muito a calhar. Não sabe pois o meu
D. IRANEIDE
apelido de família?
(Para D. Nazaré.) As minhas felicitações.
EUZÉBIO
CORONEL MENACÊ
Não.
(Para Euzébio.) As minhas condolências.
D. NAZARÈ
PADRE ELIAS
Lindinha.
Via Deus!
(Despedem-se e saem, à direita.)
TODOS
PADRE ELIAS
Viva!
Seu Menacê... D. Iraneide... Zé Pedro... Ludovina...
ZÉ PEDRO
(À medida que os nomes são enumerados, os circunstantes se fitam.)
(Entrando bruscamente, à direita.) Bom dia. (Vira-se, acena com a mão da porta
CORONEL MENACÊ Pois é...
da rua para fora.) PADRE ELIAS
D. IRANEIDE
(Para ele.) Bom dia. Você era indispensável nesta reunião, cujo assunto é uma
Pois é.... ZÉ PEDRO
gravidez... ZÉ PEDRO
Pois é...
(Perturbado) Gravidez?... Que sei eu de gravidez, se sou solteiro?...
LUDOVINA
PADRE ELIAS
Eu danço conforme a música...
Não se lembra de nada?... Um ataque de asma em sua mãe.... os vizinhos
ZÉ PEDRO
dormindo.... o troco dos mil cruzeiros ... onze horas da noite... ZÉ PEDRO
(Vai à porta da rua, faz um gesto para fora e volta-se.) Os meus companheiros estão aí.
Padre Elias, pelo amor de Deus!...
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Os operários?
Não é mais ateu!...
ZÉ PEDRO
ZÉ PEDRO (Para o coronel Menacê.) Temos conta a ajustar.
Sim, os seus escravos; os homens que financiam com o próprio suor as suas bacanais.
CORONEL MENACÊ
D. IRANEIDE
(Tímido) Aqui, nesta casa de respeito e orações?...
Bacanais???
EUZÉBIO
PADRE ELIAS
D. Nazaré, vamos antes que uma bala se atravesse entre nós dois. Namorar treze
Acalme-se, D. Iraneide. Se ele se inflamar em excesso eu requisitarei a sua
anos e morrer nove dias apenas para o casamento, é brabo...
atenção para o problemazinho da gravidez... CORONEL MENACÊ (Para Zé Pedro.) Não admito afronta.
103
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ZÉ PEDRO
agora, a situação tem de mudar porque vamos dar uma lição nesse prefeitozinho
Nem eu serei mais seu lambaio. Consegui um emprego na usina e vim lhe dizer
vagabundo, eleito à custa de corrupção fiananciada pela fábrica que a gente carrega nos
que se não dobrar o ordenado do pessoal... (Ouve-se barulho de tumulto fora.) D. IRANEIDE (Monologando) Dobrar o ordenado, agora que temos um filho para criar?... (O coronel Menacê não ouve.) LUDOVINA
ombros. (Zé Pedro sai falando em voz alta para a rua. Por um instante, ouve-se indistintamente suas palavras inflamadas.) CORONEL MENACÊ Eu já me acostumei com estes movimentos. É o estômago apertar e eles afrouxarem.
(Para o Padre Elias.) Ela pensa que ficará mesmo com a criança.
ZÉ PEDRO
CORONEL MENACÊ
(Retornando, da porta para fora.) O rumo que temos a seguir...
Aumento eu não darei.
VOZES
ZÉ PEDRO
È quebrar! Quebrar todos os tijolos! Quebrar todas as telhas! Quebrar! Quebrar!
(Para o coronel Menacê.) É assim, não é? (Põe-se na porta, com ares de tribuno.)
CORONEL MENACÊ
Companheiros! Trabalhadores sacrificados! O Coronel Menacê não cede às
(Acovardado) Padre Elias, o senhor intervirá, não é?
nossas reivindicações. (Gritos, fogos etc.) Só nos resta a greve. (Aplaudos estrondosos.)
PADRE ELIAS
Farei mais uma tentativa para convencer o espezinhador dos nossos direitos; se o prefeito
Não tenho atribuições para invadir a seara da polícia.
não se curvar, eu vou fazer um discurso e no final vou dizer o que temos a fazer.
ZÉ PEDRO
CORONEL MENACÊ
(Empolado, na mesma posição.) Não, não quebraremos cacos de telha...
Mistificador...
CORONEL MENACÊ
ZÉ PEDRO
Que alívio...
(Para o Coronel Menacê.) O que o senhor decide?
ZÉ PEDRO
CORONEL MENACÊ
Quebraremos o focinho do prefeito...
Grevem. Quando cansarem, como das vezes anteriores, me procurem para uma
D. IRANEIDE
solução conciliatória.
(Para o Coronel Menacê.) O prejuízo será menor....
ZÉ PEDRO
ZÉ PEDRO
(Para a rua.) O prefeito persiste na sua avareza. Ouçam que eu vou fazer um
(No auge.) Não quebraremos, não quebraremos.... Incendiaremos tudo.
discurso.
PADRE ELIAS
VOZES
(Com energia.) Pare!!! Agora basta, com fogo não se brinca.
Muito bem! Muito bem! Faça um daqueles.
ZÉ PEDRO
ZÉ PDERO
(Para ele.) Não se meta...
Companheiros. Chegou o momento da luta, o momento de mostrar que somos
PADRE ELIAS
homens, que temos coragem, que temos dignidade, que não lambemos a sola do sapato de ninguém. O nosso patrão é um inimigo que enriquece sugando o sangue dos empregados e
Como não me meto? Você ameaça transformar tudo em cinza e eu não devo me meter no troço?
só pensa nos seus interesses. O Coronel Menacê sempre nos enganou com a ajuda do velho
ZÉ PEDRO
padre Tadeu que fazia sermão para jogar as autoridades e o resto do povo contra nós. Mas
Troço?
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PADRE ELIAS
não se rebelem. Entretanto, Jesus não aconselhou aos fracos que se conformassem com a
Sim, troço. Esta greve é um troço. Um troço que eu destroçarei.
expoliação dos fortes. Jesus, foi um revolucionário pacífico em sua época, e morreu
CONONEL MENACÊ
crucificado porque agrediu com a sua doutrina os pontentados e os perversos. (Frenéticas
O senhor é fenomenal, padre Elias.
aclamações.)
PADRE ELIAS
VOZES
(Para ele.) Cale-se, seu indolente! Seu gozador repugnante! Seu explorador do
Viva o padre! Viva!
esforço alheio! (Coloca-se na porta e brada para a rua.) Irmãos em Cristo! Eu vos
PADRE ELIAS
conclamo como irmãos, porque somos filhos do mesmo DEUS. Conclamo-vos como
O Cristo elegeu os seus apóstolos no seio dos pescadores; exerceu, em sua
irmãos porque vos consagro afeto, porque participo de vossas vicissitudes, porque não vos
adolescência, a profissão de carpinteiro; percorria os campos empoeirados e os casebres
concito à arbitrariedade... (Vaias, urras, assovios.)
longínquos à cata dos esquecidos para confortá-los; curava os aleijados; abraçava e fazia
D. IRANEIDE
sarar os leprosos; era um infatigável defensor dos oprimidos; e se batia pela igualdade de
(Interrompendo) Não estrague a sua cultura. Eles são analfabetos.
todos os homens.
PADRE ELIAS
VOZES
(Para dentro.) Tem razão, D. Iraneide. Modificarei o estilo de pregação. (Para
Viva o novo padre! Viva Jesus!
fora.) Cegos! Bobalhões! Vocês são uns bestas! Umas vacas quadradas! Aonde já se viu
CORONEL MENACÊ
atear fogo numa fábrica? Por que não ensopam o prefeito de gasolina e não jogam ele no
(Para D. Iraneide.) Este padre é um agente de Moscou.
forno do lixo?! Existe, no entanto, umas labaredas que queimam mais intensamente, que
ZÉ PEDRO
ardem com mais vigor – são as chamas do Inferno. E para alguém ser torrado nas brasas
(Para Ludovina.)
infernais não é preciso que morra. O Inferno se acende, um dia, é na consciência de todo
Se ele não se desdizer eu assistirei uma dúzia de missas.
homem egoísta, de todo ladrão da pobreza...
PADRE ELIAS
VOZES
(Arrematando) Meus irmãos, a greve de vocês triunfou. Vão para os seus lares
Muito bem! Muito bem!
que eu obrigarei o coronel Menacê a aumentar os salários. (As vozes diminuem
PADRE ELIAS
gradativamente e se extinguem.)
Eu me admiro da vossa fibra e me tortura com as vossas privações. É uma
CORONEL MENACÊ
desumanidade o que alguns ricos fazem com vocês. Por que acumulam tanta fortuna
Que anarquia!
enquanto milhões de criaturas vivem na miséria? Feras insaciáveis e insensíveis! Almas de
PADRE ELIAS
gelo! Corações de pedra!!! (Gritos, vivas.) Irmãos! Os operários alimentam,
(Para ele.) O senhor tem que abortar esta majoração de salário.
presentemente, uma indisfarçável aversão aos sacerdotes católicos. Por quê? Porque muitos
D. IRANEIDE
padres, como retribuição ao dinheiro e aos benefícios que recebem dos capitalistas,
(Distraída) Abortar? ... é para abortar?...
auxiliam à política conservadora. Esta política é conter o desespero dos trabalhadores
CORONEL MENACÊ
escravizados, para que eles não tomem, pela violência, o que lhes pertence. Esta política é
(Para o padre Elias.) Não, não e não.
justificar a injustiça, a pretexto de que tudo acontece pela vontade de Deus. Esta política é
PADRE ELIAS
ensinar a resignação para que não haja a revolução. É incutir nas mentes que, no céu,
Pois eu vou dizer...
existem deslumbrantes recompensas para os sofredores da terra, a fim de que as massas
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CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
È uma falsidade!
(Para Zé Pedro.) Aceite os oitenta por cento.
D. IRANEIDE
ZÉ PEDRO
O quê?
Não, não aceito.
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
O que ele vai dizer.
Aceita ou não aceita?
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO
E o que é que eu vou dizer?
Não.
ZÉ PEDRO
PADRE ELIAS
(Para o coronel Menacê.) Nós incendiaremos a olaria numa hora em que o senhor
A D. Iraneide está grávida...
esteja lá dentro.
ZÉ PEDRO
PADRE ELIAS (Para Zé Pedro.) Não cacareje!
(Rápido) Combinado, Coronel Menacê. Oitenta por cento. Aliás, como o senhor anda aperreado, chega setenta por cento...
LUDOVINA
CORONEL MENACÊ Agora sim, Zé Pedro, você provou que é um líder. Um líder setenta por cento,
Quando teremos o derradeiro ato desta comédia? D. IRANEIDE
digo, cem por cento. (Caindo em si.) A Iraneide grávida??? (Zé Pedro recua assustado.)
Que sufocação!...
D. IRANEIDE
PADRE ELIAS
(Tremendo) É...
(Para o coronel Menacê.) Como é, dá ou não dá? (Mutismo e prolongada
PADRE ELIAS É...
espectação.) a Ludovina está grá... CORONEL MENACÊ
CORONEL MENACÊ
Eu dou, padre Elias, eu dou.
Fabuloso!!! Monumental!!! Minha velha, dá cá uma beijoca! (Beija-a) Depois de
PADRE ELIAS
tantos anos, o tratamento deu resultado?! Padre Elias, que coisa espetacular! (Abraça-o)
Já?...
Ludovina, não me parabeniza? (Aperta a mão dela.) Zé Pedro, um abraço para o amigo do
CORONEL MENACÊ
peito (Abraça-o).
Se eu der mais de oitenta faliremos.
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO
(Num desafogo.) Deus seja louvado!
Se não for cem por cento, não aceitaremos.
ZÉ PEDRO
CORONEL MENACÊ
Amém.
Não ponderei que faliremos? A minha falência será ruinosa para todos vocês. Que
CORONEL MENACÊ (Para D. Iraneide.) Organizaremos uma festança do arromba para comemorar o
diferença faz vinte por cento? ZÉ PEDRO Ou cem por cento, ou a olaria acabará como um fogareiro.
evento. D. IRANEIDE (Melíflua) É, meu bem...
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LUDOVINA
CORONEL MENACÊ
Quando será o forrobodó?
(Imitando o padre Elias.) Deus seja louvado!
CORONEL MENACÊ
PADRE ELIAS
Semana que vem.
Por que não casam logo?
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO
E se coincidisse com o casamento de D. Nazaré e seu Euzébio?
(Para Ludovina.) Se lhe agradar...
D. IRANEIDE
LUDOVINA
Magnífico.
(Para ele.) Se lhe convier...
LUDOVINA
PADRE ELIAS
Não haverá esta festa! D. IRANEIDE
Realizaremos os dois casamentos e a comemoração do coronel Menacê em um só dia.
Por quê?
TODOS
PADRE ELIAS
É.
(Para Ludovina.) Não estrague...
PADRE ELIAS
CORONEL MENACÊ
O coronel Menacê batizará o menino.
(Idem) Duplicarei a sua mesada; amanhã receberá seis meses adiantados.
ZÉ PEDRO
LUDOVINA
O nome dele será Stalin.
Estou grávida!
CORONEL MENACÊ
CORONEL MENACÊ
(Para o padre Elias.) Por que não batizará o senhor?
Até logo para todos. Vou assinar as portarias... (Caminha para a porta, à direita.)
PADRE ELIAS
ZÉ PEDRO Grávida??? (O coronel Menacê estanca.)
Não, o padrinho é como um segundo pai. Se a criança ficar órfão, o padrinho tem obrigação de guiar seus passos. Eu não poderia...
LUDOVINA
ZÉ PEDRO
Sim...
Por quê?
PADRE ELIAS
PADRE ELIAS
Sim... ZÉ PEDRO (Tenso, num misto de alegria, ceticismo e angústia.) Por que me escondeu,
O arcebispo certamente escolherá um padre mais amadurecido para dirigir esta paróquia. Sou muito... LUDOVINA
Ludovina? (Corre para o coronel Menacê que retrocede, temeroso.) Venha cá, me dê um
O senhor não irá!!!
abraço que também vou ser pai. (Para Ludovina.) Meu amor, você, sim, é uma santa
D. IRANEIDE
milagrosa. (Beija-a) Ontem me apareceu uma colocação de capataz na usina. Casaremos.
Rogaremos ao Arcebispo.
LUDOVINA
ZÉ PEDRO
(Hesitante) Que bom!... Fecharei a pensão...
Provocarei uma greve monstruosa, de toda a cidade, para reivindicar a sua permanência.
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CORONEL MENACÊ Decretarei luto oficial por três dias e enviarei uma comissão de vereadores ao Arcebispado para protestar. PADRE ELIAS Vocês me comovem com este carinho. ZÉ PEDRO O senhor devia ser sacerdote na Rússia... CORONEL MENACÊ Eu o nomearei Assessor Especial Vitalício da Prefeitura. LUDOVINA
SEVERA
Ajudarei o senhor no Apostolado da Oração. D. IRANEIDE Igualmente eu. PADRE ELIAS Obrigado, obrigado... coronel, pode ir assinar as suas portarias. (Todos se despedem e saem à direita, confraternizando-se.) Meu Deus, o que fiz?... Como viverão eles com os filhos trocados? Eu deveria ter dito a verdade? Devemos sempre dizer a verdade?... (Para a imagem do oratório.) Um dia te perguntaram, Jesus, o que era a Verdade, e tu respondente com o silêncio... Será pecado ocultarmos um pecado para evitarmos mais pecados? ... O pecado!... O que é o pecado?... O pecado existe realmente ou existe apenas em nossa imaginação?... O pecado tem alguma importância para ti?... Oh!, Deus, o que tem importância para ti é que as criaturas sejam felizes!...
FIM
ROMANA
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INFORMAÇÃO Esta peça obteve o Prêmio “Elmano Queiroz” no Concurso Literário da Academia Paraense de Letras em 1968. Foi representada pela primeira vez no Teatro da Paz em março de 1969, sob a direção do próprio autor, dirigente do grupo cênico TABA – Teatro Adulto de Belém Adulta, por ele fundado. Sobre o presente texto dramático o autor escreveu o seguinte:
PERSONAGENS SEVERA ROMANA FERREIRA, 18 anos aparentes, bonita, cabelos longos, lavadeira. PEDRO CAVALCANTE DE OLIVEIRA, marido de Severa Romana, 22 anos, soldado do Exército. ANTÔNIO FERREIRA DOS SANTOS, 39 anos, colega de Pedro, cabo do Exército.
“Esta peça é uma comédia.
JOANA MARIA GADELHA, hospedeira do casal; uns 50 anos, parteira.
Não sei se tecnicamente, literariamente, é lícito a um autor fazer comédia com um
VIZINHA, uns setenta anos.
tema trágico. Eu fiz. Fiz porque minha intenção, com esta peça, foi, acima de tudo, documentar de forma alegre e agradável a antiga vida suburbana de minha terra, com suas crenças ingênuas e poéticas, sua linguagem típica, suas superstições e seus velhos
CENÁRIO
costumes que vão desaparecendo à sombra dos edifícios de concreto. Ao escrever esta comédia “sui generis” agi com a maior honestidade intelectual. Procedi uma rigorosa pesquisa a fim de apurar como de fato ocorreu a história de Severa Romana, que até hoje muitos consideram SANTA, e coloquei na peça todos os detalhes encontrados, estruturei mesmo o enredo de acordo com tais detalhes, fazendo concessões à literatura, o que não é bom para um autor teatral. Um minucioso relatório com os dados da pesquisa que fiz acha-se no arquivo da Academia Paraense de Letras e prova o que digo acima. Enfim, aí está a comédia, e eu feliz porque o povo que amo e para quem escrevo ao assisti-la riu durante quase duas horas, identificando-se com o passado ainda não
Interior de uma barraca paupérrima, paredes sem pintura. Sala à direita, ocupando um terço do espaço frontal do palco; porta e janela para a rua, na lateral; quatro banquinhos rústicos espalhados; uma tábua de passar roupa, ferro de engomar em cima. Quarto ao centro, tomando outra terça parte do espaço frontal do palco, cama velha, uma “malazinha” etc. Cozinha à esquerda, na área restante, saída para o quintal confinando com os bastidores: pequeno fogão a lenha, panelas de barro, mesa para refeição rodeada de bancos, vassoura a um canto e, em lugar destacado, um pote de barro.
esquecido, num reencontro cheio de ternura.”
ÉPOCA A ação se passa no ano de 1900.
115
116
PRIMEIRO ATO
SEVERA (Leva o dedo indicador aos lábios e com ele toca o ferro de engomar, verificando
JOANA
a temperatura do mesmo; queima-se ligeiramente e isto a faz perder o ar introvertido;
(Procura a vassoura na cozinha; caminha sempre com dificuldade, arrastando
recomeça a faina, deixando transparecer na fisionomia acentos de jovialidade; súbito,
uma perna defeituosa; tosse.) – Diacho! Não chegava o reumatismo, ainda mais este
suspende a tarefa, visivelmente acabrunhada.) Comadre, eu preciso de uma opinião sua.
pigarro me azucrinando. (Descobre a vassoura, dirige-se para a sala, faz menção de dizer
JOANA
algo à Severa, que ali se encontra, arrepende-se, inicia a varrição, depois de um tempo
Como então? Que serventia tem o meu fraco pensar, Severa?
interrompe o serviço e fala.) Como vai esta barriga? Tenho um palpite que pego essa
SEVERA
criança muito antes do que vocês esperam. (Severa responde com um gesto vago.)
Preciso de uma orientação e a senhora é a única pessoa a quem posso recorrer.
Conversa alguma coisa, criatura, nunca vi ninguém tão retraída e caladona. Nessa boca não
JOANA
entra mosca...
Tem alguma complicação para deslindar? Pois se está no mato sem cachorro,
SEVERA
desembuche. SEVERA
(Passa roupa a ferro; está grávida de sete meses; desenvolve o trabalho
(Hesitante, depois resoluta.) O Cabo Ferreira... O Cabo Ferreira está apaixonado
nervosamente, com a ansiedade e insegurança de quem se debate, intimamente, num martirizante dilema.) Comadre... comadre, qual é a pior coisa que pode acontecer a uma
por mim... JOANA
mulher?
(Espanta-se; nota-se que a revelação deixa-a descontrolada.) É mesmo??? Nunca
JOANA Ficar viúva como eu. Viúva e doente, dando consumição aos outros, tendo de
bispei isso. E olhe que sou macaca velha... SEVERA
viver atamancando.
Desde anteontem ele vem... me perseguindo. Estou disposta a contar tudo ao meu
SEVERA (Um tanto alheia.) Ficar viúva é triste, mas não é o pior. Outra coisa existe, mais dolorosa...
marido. JOANA
JOANA
Vôte! Não caia nessa asneira. Boca de siri.
Pior do que ser largada neste mundo ingrato, sem nenhum arrimo?
SEVERA
SEVERA
E por quê?
(Em solilóquio.) Pior que a morte do marido, pior que a própria morte...
JOANA
JOANA
Sei lá.
O que pode haver mais horrível do que o abandono e miséria, Severa?
SEVERA
SEVERA
Afinal, o que acha?
A desonra...
JOANA
JOANA
Acho que o escovado do Cabo Ferreira querer namorar você debaixo deste teto,
Com honra ou sem honra Nosso Senhor devia era livrar deste vale de lágrimas toda criatura sem valia, traste inútil como eu. Enfim, vasilha ruim não quebra...
nas ventas do seu marido, vai... SEVERA Não há de ser nada. Pedro saberá como agir.
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118
JOANA
SEVERA
O melhor é não bater com a língua nos dentes. O melhor é se conservar caladinha,
Duma forma ou doutra esta situação terá um paradeiro. (Descontraída) Contarei
não soprar coisíssima nenhuma a seu marido. Se mais tarde ele vier a saber, por portas e
tudo e Pedro tomará uma providência. (Encosta o ferro de engomar e dirige-se à cozinha,
travessas, você nem se dá por achada, alega que não percebeu qualquer saliência da parte
vai ao quintal, de onde retorna com roupas lavadas.)
do Cabo Ferreira. SEVERA Não é meu direito enganar o companheiro que Deus me deu. Tenho de contar tudo.
JOANA (Conclui a varrição da sala cantarolando, numa tentativa de superar ou disfarçar a preocupação.) Sapo cururu,
JOANA
Da beira do rio,
É perigoso. Seu marido pode imaginar que esse coirão se embeiçou por você
Quando o sapo canta
porque... Porque você lhe deu confiança.
Maninha
SEVERA
É porque tem frio.
(Com firmeza.) Pedro me conhece de sobra. Nunca dei motivo para ele duvidar de
A mulher do sapo,
mim.
Deve estar lá dentro JOANA Desculpe, não desejei ofender. É que, pelo sim pelo não, a gente carece ser
Fazendo rendinha Maninha...
prevenida. Seguro morreu de velho, desconfiado ainda vive. Se lembra da Paquita? Aquela
(Sai ao encontro de Severa na cozinha.) Eu sei que quem muito quer saber
que casou atrás da porta? Disque ela quis tirar uma linha com o tapioqueiro, nem lhe digo:
mexerico quer fazer; mas porém... (Titubeia, encabulada.) Você... nunca deu mesmo trela
quando o amante deu em cima foi um fuzuê danado, a infeliz levou uma pisa que passou
pro Cabo Ferreira?
uma semana no azeite de andiroba.
SEVERA
SEVERA
(Estremece, recebendo a inquirição como uma afronta moral.) Eu???
O meu caso é diferente. Que culpa tenho desse homem se apaixonar por mim?
JOANA
JOANA
(Pressurosa) Não é que eu não deposite fé na sua honestidade, compreende? É
Culpa você tem – é bonita...
que... pinóia! Às vezes quanto mais a gente enquizilha com um perna de calça, mais tem
SEVERA
vontade de grudar o olho nele. Tentação do capeta. Eu sei como são essas coisas, sou
(Imperativa) Bem, obrigada pelo conselho. Infelizmente, não posso aceitá-lo.
vivida. Olha, o meu finado marido não era um babaquara, com ele escreveu não leu, pau
JOANA
comeu; pois bem: apesar da afoiteza do Diquito eu sentia uma gana de me por na janela
Aceite, Severa, aceite, eu tenho experiência de vida. Mulher quando se preza não
toda boquinha da noite, quando o minguazeiro passava. Era o danisco do minguazeiro
deve assuntar com o marido certas estórias. Guarde o seu recato até a maré baixar; o Cabo
passar e eu ali na janela, rente como pão quente. Pois o homenzinho não encasquetou que
Ferreira acaba se desvanecendo por obra e graça do tempo.
eu tinha interesse nele?
SEVERA E se ele não desistir? Se abusar de mim dentro de meu próprio lar?
SEVERA Não costumo olhar para o Cabo Ferreira, evito sempre a sua presença, sinto
JOANA
repugnância dele como de uma cobra. (Exaltando-se) Pelo meu gosto esse sujeito não
Abusa nada: formiga sabe o pau que rói...
entrava aqui. (Seus olhos umedecem.) Alguma coisa me diz que ele é portador de uma
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120
desgraça. (Chora, extravasando toda a angústia.) Alguma coisa grita dentro de mim:
JOANA
cuidado com a fera, sai da jaula! ... A jaula é este segredo, preciso me libertar dele. Hoje,
Não disse isto. Você me perdoa, mas é que sou covarde, nasci assim. Prefiro
dê no que der, contarei tudo a Pedro.
perder os cobres do aluguel, prefiro curtir fome, amanhecer e anoitecer o dia com um
JOANA
chibé... (Regressa à sala, apanha a vassoura e efetua a limpeza do quarto; ouve-se um
Conte tudo, tim-tim por tim-tim, bote tudo em pratos limpos, não estou puxando
ruído característico de comida queimando; acorrem as duas ao fogão; Severa retira uma
para trás. Porém se o seu marido resolver tomar as dores com o Cabo Ferreira, se os dois
panela do fogo e esmiúça o seu conteúdo.)
brigarem e um deles esticar as canelas, recorde que eu avisei...
SEVERA
SEVERA
Terá estragado?
(Sem grande convicção.) Não haverá briga. Pedro é de bom caráter, não se altera
JOANA
com facilidade.
Se demora mais um tiquinho esta jabá virava torresmo.
JOANA
SEVERA
Pois é em homem pacato que mulher inteligente não se fia...
(Adiciona água ao alimento.) Descuido.
SEVERA
JOANA
A senhora, comadre, em vez de me ajudar fica me amedrontando?
Vou comprar umas postas de peixe frito? Na quitanda tem piramutaba. O Cabo
JOANA
Ferreira é arisco para comer, não se contentará com esta bóia. Arre! Até parece que
(Judiciosa, convencida.) Não se vexe... Ninguém perde por esperar.
jogaram caninga em cima de nós.
SEVERA
SEVERA
Não é justo eu ter segredos para o meu esposo.
Tolice.
JOANA
JOANA
(Com uma ponta de malícia.) Ora, Severa! Qual é a mulher que não esconde
Você não acredita em pussanga, caçoa muito da Vizinha, porém uma coisa eu lhe
alguma coisa do marido? ... SEVERA
asseguro: se fizer aquele banho de priprioca, receita da Vizinha para descarregar o corpo, o Cabo Ferreira lhe deixa de mão. Dou o meu braço a torcer se ele não deixar
(Raciocina por alguns segundos, confusa; decide-se; sua determinação é
SEVERA
irrevogável.) Nesta casa não se almoça hoje sem que o Cabo Ferreira seja chamado à responsabilidade.
Sem banho de priprioca, sem a pajelança da Vizinha, a partir de hoje o Cabo Ferreira me dará sossego, nem que o mundo desabe.
JOANA
JOANA
(Fita Severa, entendendo que todos os seus argumentos foram ineficazes para
Na minha cabeça não desabará... (Resignada, vencida.) Só penso é os dois se
demovê-la do intento.) Como você está tão cuíra para entornar o caldo, vou fazer uma
emboletarem, se darem pancada... (Súplice) Severa, tome sentido. O tiro pode sair pela
confissão: tenho medo que me pelo de escândalo. Se o seu marido e o Cabo Ferreira
culatra.
virarem a frege esta biboca, eu agarro os meus breguéssos e pernas para quem te quer! Não
SEVERA
tenho meu umbigo enterrado onde haja barulho.
Não acontecerá nada de anormal. Eu falo com o Pedro, ele conversa com o Cabo
SEVERA
Ferreira, diz-lhe para conseguir outro lugar onde fazer refeições, para entregar a roupa a
A casa é sua. Quem tem obrigação de sair sou eu.
uma lavadeira.
121
122
JOANA
Severa lava até a roupa dele. Que mal faz, se Pedro não se importa, se os dois são como
(Sardonicamente) Ninguém será bobo de aceitar, ninguém dará de comer e beber
unha e carne?
ao Cabo Ferreira pelo preço que vocês cobram. É melhor sustentar um burro a pandeló...
VIZINHA
SEVERA
Esse Cabo Ferreira! ...
Tudo será resolvido sem qualquer confusão.
JOANA
JOANA
Não é boa bisca, eu sei, não vale três vinténs. Descobri isso há dois minutos.
Assim seja. Sou um trapo velho, sem eira nem beira, não tenho apego à existência,
VIZINHA
porém desejo morrer tranquila na minha rede de tucum. E lhe confesso, pela derradeira
Tenha cautela com ele.
vez: se houver um furdúncio aqui, do seu marido com o Cabo Ferreira, tenha a santa
JOANA
paciência – a Joana Maria Gadelha vai plantar a sua macaxeira noutra roça, volto somente quando a pororoca tiver asserenado. VIZINHA (Entra à direita, desinibida e espalhafatosa, a despeito da idade avançada; traz
Agora é tarde, Inês é morta. Dei ontem a minha palavra, alugando para o Cabo Ferreira esta sala, desde hoje, e sabe a novidade? Vigie só: ele anda querendo namorar a Severa, entendeu-porque-entendeu de conquistar a coitada, mesmo ela estando barriguda. VIZINHA
uma cuia petinga com açaí e entrega à Severa.) Toma, mulher, está fresquinho, amassei
Patife!
agorinha, mata o teu desejo. Por falta de açaí ninguém perde filho nessa terra. (Vislumbra
JOANA
um tamanco emborcado, endireita-o.) Tamanco ou sapato emborcado chama azar, minha
Para completar, a Severa embirrou com ele e decidiu contar tudo ao marido daqui
gente.
a pouco, quando os dois chegarem para almoçar. O assunto delicado é esse. SEVERA
VIZINHA
Obrigada, Vizinha. Como está vermelho este açaí. Cor de sangue.
Santa Bárbara.
VIZINHA
JOANA
Por falar em sangue, fizeram o que eu mandei? (Inspeciona o lado interno da
O pau vai chinchar.
porta da rua.) Joana Gadelha, Joana Gadelha, deixa de ser desleixada. Corta o pé duma
VIZINHA
galinha e com o sangue dela faz uma cruz atrás dessa porta, pra afastar o Tinhoso. Olha
Se pegue com São Jorge, que é santo forte.
que eu tenho o corpo fechado, chorei na barriga da minha mãe, mas nem por isso me
JOANA
esqueço de resguardar a minha casa contra as influências das trevas. SEVERA Um instantezinho, Vizinha, preciso falar com a senhora, preciso do seu parecer para um assunto delicado. (Sai da sala, levando o açaí para a cozinha.) JOANA Sabe qual é o “assunto delicado”? Vizinha, estou num beco sem saída, metida numa barafunda medonha. Imagine que ontem, depois do jantar, o Cabo Ferreira me falou
A vontade que tenho é de tomar um chá de sumiço antes das coisas ficarem pretas, antes da porca torcer o rabo. VIZINHA E não é pra menos. JOANA Quando um homem cisma de arrebatar a mulher do outro, nem Santo Antônio com gancho dá jeito, o canalha que traz a vara do diabo entre as pernas é capaz de tudo.
pra alugar a ele esta sala. Eu concordei, um dinheirinho a mais não dá frieira, disse cá com
VIZINHA
os meus botões: não faz mal o Cabo Ferreira morar aqui, se já come e bebe conosco e a
Menos de uma coisa: quebrar a força de uma oração minha. Quer aprender?
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JOANA
JOANA
Não, não. (Simulando) Afinal de contas, no frigir dos ovos o capeta não é tão
Experimente seguir. Experimente envenenar o Cabo Ferreira, ou então agarre um
horroroso como se pinta; estou na minha casa, não tenho culpa no Cartório, não coloquei
pedaço de cipó titica e lasque uma surra nele, até a sua cara ficar como folha de jurubeba.
toucinho nessa maniçoba, pode o caldeirão ferver. Quem for podre que se quebre.
Experimente. O que ganhará com isso?
VIZINHA
VIZINHA
Isto. Coragem, mulher. JOANA (Transição) Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Eu estou apavorada, é inútil me iludir a mim mesma... VIZINHA
Experimente, Severa, siga o meu conselho, é o mais acertado. E ainda tem outra: você lava a roupa desse conquistador de meia tigela, não lava? Pois então roube uma ceroula dele e me dê. Arranje uma cueca dele usada e deixe o resto por minha conta – faço um despacho com ela que durante vinte anos o Cabo Ferreira não vai ter sustância pra mulher nenhuma.
Pra todas essas encrencas o remédio infalível é uma defumaçãozinha. Ah! Se você
SEVERA
soubesse o valor dessas bugigangas não vivia assim na pindaíba.
Também assim não, é muito.
SEVERA
VIZINHA
(Volta da cozinha, desmonta a tábua de engomar roupa.) Vizinha, veja se não
Muito nada, minha filha, eu conheço essa raça. Não tem homem sem sustância,
tenho razão: o Cabo Ferreira, desde anteontem, vem procurando me seduzir. Que atitude
que precisa tomar sumo de mastruz pra mostrar na cama que é homem? Do mesmo modo
deve ser a minha? Contar tudo a Pedro, não é?
tem homem assanhado, fogoso, que a gente ou dá um jeitinho nele ou ele dá um jeitinho na
JOANA
gente...
Não...
FERREIRA
VIZNHA
(Entra da rua, trazendo um grande embrulho, acompanhado de Pedro, ambos
Sim. Conte tudo a seu marido e mande o atrevido bugiar.
com farda do Exército.) Quem é fogoso? Aposto que estavam falando de mim. Estavam
SEVERA
não?
Pois é isto que eu vou fazer logo mais. VIZINHA Faça. JOANA Não se precipite, Severa, entregue a Deus. Quando a justiça do Alto tarda é porque...
JOANA É, estávamos falando de você. Falando bem, aliás... (Faz um sinal para ele, comunicando que Severa ainda ignora a sua mudança; sente-se em apuros.) PEDRO Olá, Vizinha. Severa, chegamos atrasados pro almoço. Por causa do Cabo Ferreira: parou em três tabernas pro matabicho; diz ele que a cachaça daqui é melhor do
VIZINHA Essas questões imorais não adianta entregar a Deus que Ele não recebe, devolve, e
que a de Fortaleza. SEVERA
a gente tem de sair da arapuca com as próprias pernas. Diga tudinho ao seu marido, Severa,
E tu, o que dizes?
e se o curubento do Cabo Ferreira, se aquele jagunço fizer pose, sapeque veneno na comida
PEDRO (Conduz Severa ao quarto, com a intimidade de marido.) Eu não conheço
dele. SEVERA (Para Joana.) Ouviu, comadre, como o conselho da Vizinha é diferente do seu?
nenhuma das duas. Só beberei, e pra me embriagar, no dia do nascimento do nosso filho.
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JOANA
PEDRO
Deixem eu ir ver o almoço. (Desloca-se para a cozinha, prepara a mesa da
Tive pena dele. Foi removido pra Belém de supetão, largou a família no Ceará.
refeição; no quarto Pedro e Severa permutam confidências; na sala a Vizinha e o Cabo
SEVERA
Ferreira discutem acaloradamente.)
Esse homem é falso, é mesquinho.
FERREIRA
PEDRO (Risonho) Mulher quando engravida enjoa tudo quanto é homem. Enjoaste o Cabo
Está vendo este embrulho? São os meus terens, toda a minha bagagem. De hoje em diante vou fazer a minha pousada aqui.
Ferreira? Não vai enjoar de mim...
VIZINHA
FERREIRA
Devia ir fazer a sua pousada era no Inferno.
(Na sala.) Não sei aonde estou que não lhe meto a mão no focinho, velha.
FERREIRA
VIZINHA
Por que, velha?
Faça uma malvadeza comigo e você se estrumbica. Estou ciente do seu “assunto
VIZINHA
delicado” com a Severa...
Porque tem parte com o Cão.
FERREIRA
FERREIRA
(Aturdido) O que lhe disseram, velha?
Ô xente! Vosmecê me ofende. Sou um bom cristão.
VIZINHA
VIZINHA
Disseram que você vive atazanando a Sereva, pra namorar com ela.
É um bom salafrário.
FERREIRA
SEVERA
Quem levantou esta calúnia?
(Transfere-se o diálogo para o quarto.) Pedro, tenho um assunto delicado para
VIZINHA Calúnia??? A sua cara não treme? ...
falar contigo. PEDRO
FERREIRA
(Descalçando as botinas.) Tem mesmo?
Eu costumo elogiar a boniteza da Severa, porém sem interesse...
SEVERA
VIZINHA
Tenho. E é urgente.
Eu sei, como diz a Joana: quem não arrisca, não petisca. Elogia e espera pra ver se
PEDRO
ela morde a isca do seu anzol, não é? Pois tomou o bonde errado: Severa é uma mulher
(Brincalhão) Mesmo, mesmo? Jura? Pela fé da mucura? Já sei: fim do mês
honrada.
começo a comprar fraldas, mamadeira...
FERREIRA
SEVERA
Minha mãe também era e eu nasci sem casamento...
Não é isto. Falo sério.
JOANA
PEDRO
(Na cozinha.) Alguém me chamou? Um instante e a gororoba está na mesa.
Eu também. Nosso garoto – será homem, hein? – terá cueiros bordados, pipos de
SEVERA
borracha macia, sapatinhos de lã e até um cordão de ouro. Tu vais ver.
(No quarto.) Pedro, afasta de mim o Cabo Ferreira.
SEVERA
PEDRO
Pedro... por que fizeste amizade com o Cabo Ferreira?
Tens antipatia por ele?
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SEVERA
FERREIRA
Antipatia não, nojo.
Por que não? Vosmecê tem autoridade pra proibir isso?
PEDRO
VIZINHA
Não digo? É da gravidez, mulher no teu estado sente nojo de tudo, por isso vomita tanto.
Eu não apito nada nesta bodega, mas Severa não tem sangue de barata, pra consentir que você se enfronhe no seu lar; quando ela souber da sua intenção você volta
SEVERA
com este embrulho de crista baixa.
Ainda não reparaste como o Cabo Ferreira me olha?
FERREIRA
PEDRO
Ela ainda não é sabedora que aluguei a sala?
Não, como é?
VIZINHA
SEVERA
Não, não é sabedora, e quando for vai dar pinote que nem piranha doida.
Como se quisesse me devorar inteira.
FERREIRA
PEDRO
Porém não pode me expulsar. A casa não é dela.
É o jeitão dele. É olhar de nordestino que já viu muita seca amontoando cadáver
VIZINHA
nas estradas.
Não pode expulsar? Uma joça. Bota-lhe no olho da rua, e eu ajudo.
SEVERA
FERREIRA
Não, é olhar de serpente que busca atrair pra devorar.
Vosmecê não vale um deréis de mel coado.
PEDRO
VIZINHA
Talvez ele olhe pra ti assim lembrando a mulher no Ceará.
Mas tenho sentimento, não sou da sua igualha.
SEVERA
SEVERA
Ao contrário. Quando ele olha para mim esquece a esposa.
(No quarto.) Pedro, se eu te pedir uma coisa tu fazes?
PEDRO
PEDRO
Ora, Severa, como podes adivinhar o que existe no pensamento dele? Ferreira é
Se estiver em meu alcance...
um sujeito rude, mas não tanto pra te querer mal.
SEVERA
SEVERA
Afasta o Cabo Ferreira daqui, de uma vez por todas.
(Desnorteada ante a infantilidade do marido.) Querer mal?
PEDRO
VIZINHA
Por que, Severa?
(Na sala.) A Severa você não desencabeça. Ela tem juízo.
SEVERA
FERREIRA Vosmecê não sabe o que diz, velha. E zombe deu não, pois filho de meu pai não
Porque a melhor coisa que poderá nos acontecer será ele não aparecer mais nesta casa.
esmorece com pouca coisa. O principal já consegui: sou da casa, desde hoje moro aqui,
PEDRO
posso ficar tocaiando Severa o tempo todo. Se ela fraquejar eu dou o bote.
O Cabo Ferreira está sozinho em Belém. Não tem ninguém por ele, Severa.
VIZINHA
SEVERA
Julga que vai mesmo morar aqui? Uma ova.
(Desolada) Eu é que estou sozinha, não tenho nem a ti por mim...
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VIZINHA
FERREIRA
(Na sala.) Neste momento Severa deve estar contando ao marido o tal assunto
(Na sala, colérico.) Velha dos seiscentos diabos, se vosmecê der mais um pio eu
delicado da sua safadeza; se apronte pro que der e vier.
lhe arrebento a carcaça.
FERREIRA
VIZINHA
Cabra do meu sertão não corre doutro homem.
Arrebente seu ordinário!
VIZINHA
SEVERA
Dizer é fácil. Eu quero ver é na hora da onça beber água, como diz a Joana.
(Indo à sala.) O que houve?
JOANA
PEDRO
(Na cozinha, alto.) Somente mais um minuto e eu ponho na mesa o bacobaco.
(Idem) O que é isto?
FERREIRA
JOANA
(Na sala.) Cale esta boca, velha arreliada.
(Na cozinha.) Meu Deus! Será que o mundo começou a desabar? (Dirige-se para
VIZINHA
a sala, sofregamente.)
Cale então primeiro a sua, seu Mapinguari.
FERREIRA
FERREIRA
Esta velha abusada...
Vá cuidar da sua vida.
PEDRO
VIZINHA
Acalme-se, acalme-se.
E você vá pentear o macaco.
JOANA
FERREIRA
O que estão discutindo? É o aluguel da sala?
Velha do diabo eu já estou ficando engasgado com a sua provocação.
SEVERA
VIZINHA
Aluguel de que sala?
E eu também já estou ficando tiririca com a sua presepada, seu indecente duma
JOANA
figa.
É a paixão do Cabo Ferreira? SEVERA
PEDRO
(No quarto.) Pedro... esse Cabo Ferreira é um homem sem escrúpulos... não vês
Que paixão?
como ele me trata? ... PEDRO
JOANA Ai, meu Deus, não acerto uma... (Contornando a situação.) Vamos almoçar
É pra ser agradável a mim que ele te exalta, te elogia a beleza, te bota nas alturas.
enquanto é tempo... (Induz Pedro e Severa a se encaminharem para a cozinha; Ferreira
SEVERA
reluta em entrar.)
Na tua ausência ele não me respeita como deve ...
FERREIRA
PEDRO
Velha imunda, fede mais do que ticaca.
Isso eu creio, mas não é por ruindade. A ignorância é que faz o Cabo Ferreira
VIZINHA
desbocado. (A discussão na sala esquenta, percebe-se o tumulto.) Escuta! Na certa ele travou uma briga com a Vizinha aí na sala. É analfabeto e estúpido que dói.
(Encarando Ferreira e saindo para a rua.) Xô, saracura do lago! ..
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FERREIRA
FERREIRA
(Desloca-se com Joana para a cozinha, onde se encontram Pedro e Severa;
Porque não quis. Vosmecê acha que eu ia me largar pra terra estranha com toda
senta-se à mesa, juntamente com Pedro; Joana e Severa servem a comida, tensas, qual se
aquela filharada da moléstia?
aguardassem o desencadear de uma tempestade; Ferreira prova o alimento, cospe.) Chi,
JOANA
danou-se! Esta carne seca está mais queimada do que capim da minha terra no verão.
E a sua mulher não reclama?
JOANA
FERREIRA
Para variar hoje não tem cozido, é guisado sem molho... no meu paladar está
Sei lá. Faz um tempão que não ligo pro meu povo.
ótimo, não fica devendo nada a um quitute de primeira qualidade... (Há um silêncio
JOANA
forçado; os quatro se entreolham, comem.) Gostoso como pato no tucupi...
Não tem saudade da sua Zefina?
FERREIRA
FERREIRA
Comida péssima. Mais péssima do que rapadura mole com farinha mofenta.
Zefina está envelhecida. É uma peitica.
JOANA
JOANA
Não se zangue; depois eu mato um frango de Nossa Senhora do Ó que está
E daí? Coco velho é que dá azeite. Mande buscar a sua Zefina.
mesmo dizendo: me comam! ... Teremos um senhor jantar.
FERREIRA
PEDRO
(Intencional) O meu bem-querer já pertence à outra...
(Para Severa.) Quase não comeu. Doente?
JOANA
SEVERA
Quem não te conhece que te compra...
Preocupada.
SEVERA
JOANA É do estado. Com sete meses de gravidez toda mulher se enche de quindim. Na
(Para o marido, erguendo-se do banco, taciturna.) Vamos dormir a sesta?! Não estou gostando da conversa.
janta ela come mais, a boiosa será uma especialidade...
FERREIRA
PEDRO Sete meses, hein, Severa? FERREIRA Barriga bonita, essa da tua mulher, Pedro. PEDRO Daqui a um mês é que ela estará uma lindeza. FERREIRA (Mirando Severa, sensual.) Formosura aí é língua de mosquito. Faz lembrar a Zefina há quinze anos atrás.
Pedro, és um felizardo. Tens uma mulher bonita, nem flor de moleque duro é tão bonita. JOANA (À parte, considerando a insistência dos galanteios de Ferreira.) Vai ser audacioso assim na caixa-prego... PEDRO Concordo. A minha Severa é uma linda esposa. Linda e boa. Tive a maior sorte em casar com ela. JOANA
JOANA
Teve, sim. Casamento é sorte. Casamento e mortalha, no céu se talha.
(Para o Cabo Ferreira.) Por que não trouxe sua família consigo?
FERREIRA Eu invejo a tua sorte. Dei um azar da peste no casório, podia ter arrebanhado coisa melhor... era um moço de fama... me vestia igual a dono de engenho quando conheci a
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Zefina... ganhava bem, viajando no rio Parnaíba como marinheiro do navio “Piauí”...
JOANA
naqueles tempos as mulheres me adulavam pra dançar com elas...
(Para Ferreira.) Não seja saído. A comida está saborosa, eu é que ando
JOANA
empazinada. (Desarruma a mesa.) Tão panema tenho andado que tomo a bênção a
Pavulagem!
canhorro e chamo gato de tio...
FERREIRA
FERREIRA
Depois que entrei no Exército então é que me tornei um cabra mais afamado...
Minha roupa enxugou, Severa?
nunca ouviu falar no quartel das minhas proezas na campanha de Canudos? PEDRO Dizem que você foi um herói.
SEVERA Acho bom contratar uma lavadeira. (Sai para o quarto, contrafeita, separa algumas roupas de Ferreira, o qual nesse interim corta toda a cena em direção à sala.)
FERREIRA
PEDRO
(Pedante) Um herói, nem mais nem menos, eu sou.
Essas bravatas do Cabo Ferreira não são invenção. Ele já matou pelo menos um,
JOANA
todos sabem no quartel.
Um gabola...
JOANA
FERREIRA
Tome cuidado consigo.
(Rememorando) E em Grajaú? ... O alferes Guapindaia apanhou uma cacetada, eu
PEDRO
saquei da minha lambedeira de palmo e meio e gritei no terreiro: quem encostar no homem
Somos amigos; amigos e colegas.
fica com o bucho destripado nesta meleca!
JOANA
PEDRO Todo mundo correu...
Com um pouco mais, nós saberemos até onde ele preta ou não presta. É morando junto que a gente se conhece.
FERREIRA
PEDRO
Não, ninguém se avoou. Eu tornei a xingar. Aí formou-se o banzé. Partiu o
Sim?
primeiro pra riba do Alferes e eu, olhe, faca nele! Partiu o segundo e eu: faca no pé do
JOANA
umbigo dele...
Pois é.
JOANA
PEDRO
Que moleza, que macacoa, vamos cochilar? (Para Ferreira.) Chega de potocas.
Não compreendi.
FERREIRA
JOANA
Tudo o que eu digo é realidade, acreditem. Se digo que sou valente é porque sou
O negócio é que eu fiz um negócio com o Cabo Ferreira ... Ontem ele me pediu
mesmo. (Outro tom.) Se digo que Severa é bonitona, não estou fazendo favor.
para alugar a sala; sabia que vocês dormem no quarto e eu aqui na cozinha...
PEDRO
PEDRO
(Para Joana.) A senhora também não almoçou. É o reumatismo?
A senhora alugou a sala daqui de casa pro Cabo Ferreira?
FERREIRA
JOANA
O reumatismo uma droga! Ela não almoçou porque deixou a comida queimar.
Aluguei, por que não haveria de alugar? As coisas andam vasqueiras, tenho precisão de mais uns cobres para comprar aquelas pílulas do reumatismo.
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PEDRO
FERREIRA
Eu concordo com a hospedagem. Combinou com a Severa?
Resolvi me mudar... não aguentei a tristura de viver só, dia e noite. Minha
JOANA
bagagem está ali. (Mostra o embrulho.) Maleta de nordestino é um saco ou um embrulho, o
Ainda não disse nada e não sei como dizer. Ela agora impinimou com o Cabo
cadeado é um nó.
Ferreira...
SEVERA
PEDRO
(Fazendo menção de retirar-se.) Dê licença e pode levar a sua roupa.
É da gravidez. Mulher quando fica grávida pega uma porção de manias, enjoa as
FERREIRA
pessoas, nem o marido escapa.
Levar pra onde, se desde hoje moro aqui?
SEVERA
SEVERA
(Dirige-se do quarto para a sala, e secamente entrega a Ferreira roupas
Mora onde?
dobradas e limpas.) Mês que vem não posso continuar lavando.
FERREIRA
FERREIRA
Nesta sala.
Está com raiva de mim?
SEVERA
SEVERA
Não gosto de gracejos.
O resto está no coradouro.
FERREIRA
FERREIRA
Eu aluguei esta sala ontem. Não lhe disseram?
Não lhe fiz nada pra vosmecê amarrar a cara. Que bicho lhe mordeu?
SEVERA
SEVERA
Esta sala???
Eu sou assim mesma.
FERREIRA
FERREIRA
Pois não foi? Aluguei sim senhora. Ontem.
É não.
SEVERA
SEVERA
É mentira!!!
Sou.
FERREIRA
FERREIRA
É não. Vou me agasalhar neste canto. Em boa companhia...
Tenho uma novidade...
SEVERA
SEVERA
Eu não permito!
Não me interessa.
FERREIRA
FERREIRA
Cadê autoridade pra dar ordem?! A casa não é sua.
Cansei de passar as noites no quartel como preso ou renegado da família.
SEVERA
SEVERA
A comadre não tinha o direito de fazer isso sem me consultar.
Não tenho porque me importar com isso.
FERREIRA Não tinha o direito e não tinha o dinheiro pra comprar remédio. Vosmecês pagam uma ninharia pelo quarto... Eu aluguei esta sala, está alugada, quero ver quem vem no meu gogó...
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SEVERA
JOANA
Obrigarei a comadre Joana a desfazer a transação. (Mais uma vez ensaia a
(Para Severa.) Alguma coisa grave? Você está nervosa como quem tem bicho
retirada.)
carpinteiro.
FERREIRA
SEVERA
(Obstando-lhe a passagem.) Severa... vosmecê compreende, não é?
Comadre, a senhora alugou a sala para ele?
SEVERA
JOANA
(Briosa) Compreende o quê?
Eu explico, eu explico, não sou mulher de engabelar ninguém. Aluguei porque...
FERREIRA
SEVERA
Que eu... eu... não resisto ficar distante de vosmecê... Sem amor não há cristão
Mas comadre, a senhora não sabe que este homem...
que suporte a desgraceira desta vida...
JOANA
SEVERA
Sei, sei, sei, você está enfezada com ele, porém sei disso desde quando? Não foi
Está louco?
indagora que me rezou a ladainha? Ontem, quando o Cabo Ferreira me propôs a mudança,
FERREIRA
eu não sabia patavina do “assunto delicado”; não maldei nada, não me passou pela telha
Sim, louco... Ah! Paixão da peste que me queima até os ossos. Veja, Severa, como
que a vinda dele ia lhe aperrear tanto.
estou queimando de amor por vosmecê... ponha a mão na minha pele: está mais quente do
PEDRO
que lombo de jumento puxando cangalha debaixo do sol...
(Conciliador) Severa, estás aborrecida, é natural... sete meses de gravidez...
SEVERA
JOANA
(Com asco.) Não chegue perto de mim.
Mulher quando fica barriguda, por qualquer me dá cá aquela palha se zanga.
FERREIRA
PEDRO
Ponha a mão na minha pele e veja como está em fogo vivo. É a febre do amor.
Que importância tem o Cabo Ferreira morar aqui? Durante a noite ninguém ocupa
(Esbarra em Severa, ela recua.) A pele de vosmecê não está comichando de ardume, como a minha; ela é macia que nem pena de juriti...
a sala. SEVERA
SEVERA
Que importância tem??? Puxa, como és cego.
(Volta-se energicamente.) Não bula comigo!
PEDRO
FERREIRA Vosmecê tem de me compreender... Sou capaz de me arrastar de joelhos, duzentas léguas, pra angariar o seu carinho... SEVERA Suma-se! (Gritando) Pedro!
Ele não faz parte da nossa mesa todo dia? Tu enjoaste o Cabo Ferreira porque vais dar a luz, Severa. Depois do menino nascer essa murrinha desaparece. JOANA É o que penso, mas a Severa não se convence: tem uma cabeça dura como ouriço de castanha.
JOANA
FERREIRA
(Ouve o grito, na cozinha.) Valha-me, minha Nossa Senhora de Nazaré.
Posso falar?
PEDRO
JOANA
(Segue apressado até a sala, com Joana.) O que é?
(Impedindo-o) Não, não abra a boca. Feche esta latrina senão estraga tudo.
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PEDRO
FERREIRA
Afinal, estamos em paz, o que passou, passou, é preferível a paz do que a guerra,
(Retorna da rua, atravessa a sala e o quarto, atinge a cozinha e dirige-se à
todo soldado sabe disso.
Joana.) Palavra é palavra, negócio desfeito, punhal no peito.
JOANA
JOANA
Justamente, é preferível a paz, principalmente dentro do lar. Boa romaria faz que
(Para ele.) Vá-se embora, não me atente mais. A sala é sua, pode dormir nela,
em sua casa chega em paz ou quem em sua casa está em paz. SEVERA Pedro, a partir deste momento tu vais saber de tudo. A partir deste minuto tu vais saber porque não admito a morada do Cabo Ferreira aqui, porque detesto este homem.
mas agora desinfete, volte somente à noite. SEVERA (Para Ferreira, altiva.) Acho melhor não sair já-já. Vou dizer a meu marido toda a verdade a seu respeito, a respeito da sua falta de compostura.
JOANA
FERREIRA
Meu Deus, dessa vez espoca o escândalo... (Dramática) Severa, basta de falatório,
Eita! O que lhe deu nos miolos, bichinha?
mais tarde você discursa sobre o tal assunto. (Súplice) Cabo Ferreira, dê uma voltinha antes
SEVERA
que a casa caia. (Empurra-o para a rua.) Pedro, jogue uma pá de cal nesta lenga-lenga,
Vou mostrar a meu esposo o perigo que você representa nesta casa.
encha o pote pra mim na cacimba (Conduz Pedro à cozinha, coloca-lhe nas mãos o pote de
JOANA
barro, fazendo- sair para o quintal.)
(Assustada) Severa de minha alma, se contenha.
PEDRO
SEVERA
(Saindo) O pote está quase cheio.
Vou desmascará-lo, ouviu?!
JOANA
JOANA
É... Mas... a água ficou choca... ponha outra. (Pedro sai; Severa chega da sala.)
Severa, Severinha, se aquiete.
SEVERA
SEVERA
Comadre, não adianta.
Vou exigir de Pedro uma providência à altura da minha honra de mulher casada.
JOANA
JOANA
Severa, por tudo quanto é mais sagrado, se cale.
(Trêmula)
SEVERA
Está me dando um chilique...
É impossível.
PEDRO
JOANA
(Entra do quintal distraído, o pote no ombro.) A água.
Pelo menos espere uns dias. Quem espera sempre alcança.
SEVERA
SEVERA Alcança o quê? A desgraça? Ah! Esta eu sinto que alcançarei, esta eu sinto que vem se aproximando, só peço a Deus que salve meu filho. JOANA Que é isto, Severa? Que desgraça?
(De chofre.) Pedro, o Cabo Ferreira está apaixonado por mim. (Com o choque da surpresa Pedro larga o pote, que se quebra ruidosamente no chão.)
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SEGUNDO ATO
JOANA Essa coisa esquisita é o medo, ora se é. Toda mulher prenha, inteirou oito meses,
É noite, os três aposentos do casebre são iluminados por fumacentas lamparinas.
começa com dengo. Tenha fé e o medo se evapora. Sabe a estória da oração costurada? SEVERA
Transcorreram algumas semanas. Severa está no oitavo mês de gestação.
Ouvi dizer que existem orações poderosas, para casos como o meu, mas não VOZ DE MOLEQUE, FORA.
acredito muito. JOANA
Velha coroca, nariz de taboca...
A estória da oração costurada é esta: alguém enrolou uma oração num pedaço de
JOANA (Entra da rua gesticulando, como se repreendesse o moleque; vai ao quarto, onde
couro, costurou bem costurada e deu para certa mulher que ia ter filho, garantindo que, na
se encontra Severa, semideitada numa rede.) A Vizinha não tarda; tinha ido ao Teatro
hora do parto, se ela segurasse e apertasse a bolsinha de couro com a oração, a criança
Politeama, com a filha e o futuro genro. A velha ainda gosta dos seus fandangos, eu queria
nascia como um anjo. A mulher, quando teve a dor, tacou a oração na mão direita e haja a
que você visse como ela chegou toda empiriquitada, toda perequeté. Aquela negra tem
apertar – pois não é que o parto foi de rainha? Aí o boato se espalhou e toda mulher das
alma de branco.
redondezas, na hora de ter filho, apertava a bolsinha da oração entre os dedos e a criança
SEVERA
nascia logo, lépida e faceira.
Comadre, estou tão indisposta... Será que perco esta criança?
SEVERA
JOANA
Uma oração dessas contra perseguição de homem me servia, porém não creio
Não perde não. Dou o meu pescoço a cutelo. Conheço gravidez como a palma da
nisso...
minha mão, e por falar em mão sou parteira de mão cheia e com estas mãos já peguei mais
JOANA
de uma dúzia de crianças.
É o seu erro. Se tivesse fé talvez se livrasse da caipora. A fé faz milagre, criatura.
SEVERA
SEVERA
Sinto a barriga pesada...
Fé é uma coisa, superstição é outra.
JOANA
JOANA
Isto é a falta de prática, primeiro filho é assim, depois acostuma. Não banque a “cabôca” do sítio.
No fundo tudo é o mesmo, tudo é crença, o principal é ter crença. A estória da oração costurada prova isso, deixe eu acabar de contar. Por mais melindroso que o parto
SEVERA
fosse, toda mulher, apertando a bolsinha, descansava logo; era água fira na fervura. Um
Comadre, tenho tido uns pesadelos...
dia, quando a mulherada já havia apelidado a bolsinha da oração do “pacotinho
JOANA
milagroso”, um velhote embriagado descosturou o couro, abriu a bolsinha e leu a oração;
Tudo é resultado do medo. Você está temerosa de... com perdão da palavra –
sabe o que estava escrito no papel?
temerosa de parir.
SEVERA
SEVERA
O que era?
Não, comadre, é uma coisa esquisita dentro de mim...
JOANA O que estava escrito, a tal oração do “pacotinho milagroso” só tinha estas três palavras: “PÁRI LOGO, BESTA ”...
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SEVERA
JOANA
(Com profundo abatimento.) A Vizinha está demorando. Ela vem mesmo?
Então repouse, vou tomar um caribé. (Desloca-se para a cozinha, onde um pote
JOANA
novo substitui o que foi quebrado; lá defronta Pedro, fumando, cismarento.)
Vem. E na oração dela pode confiar, a velha entende do riscado. Aquilo é
PEDRO
curandeira de nascença, e ainda por cima formada com o pagé Procópio, de Vigia.
E a Vizinha?
SEVERA
JOANA
Será que ela me cura mesmo deste mal-estar?
Não tarda.
JOANA
PEDRO
Cura. Ela cura qualquer urucubaca. Em dois dias você fica toda sagica.
Problema...
SEVERA
JOANA
Ah! Comadre, a senhora até me anima com seu entusiasmo.
Gravidez avançada é assim, seu tio-bimba.
JOANA
PEDRO
Você está mais murcha do que pinto gouguento. Desperte, criatura, gravidez só é
Tenho pra mim que isso da Severa não é só gravidez, é desgosto porque eu não
doença em rico, para nós é saúde.
pus o Cabo Ferreira para fora de casa.
SEVERA
JOANA
Tem razão. Nada de bom se consegue sem luta ou sem sacrifício.
É bem possível.
JOANA
PEDRO
Assim é que se fala, mas não basta falar: endireite esta cara desenxabida e penteie
A senhora acha que eu deveria ter enxotado o Cabo Ferreira?
este cabelo.
JOANA
SEVERA
Não sei... sei é que ele é um cínico de marca maior, cinismo ali é mato.
(Prende os cabelos com um “pente de coque”.) Pedro não me permite aparar estes
PEDRO
cabelos, estão enormes, cresceram mais que a barriga.
O que a senhor acha que eu devia ter feito, sendo ele meu amigo e colega?
JOANA
JOANA
Os homens tem cada capricho tolo, não é? O meu finado marido não deixava eu
O que devia ter feito também não sei. Mas que você é um pamonha, é.
me empoar, porque o pó para ele era novidade extravagante. Coitado, tão cedo o Diquito é
PDERO
que virou pó...
Pamonha por quê?
SEVERA
JOANA
(Move-se na rede, faz uma careta.) Viu, comadre? Fui me entusiasmar com a senhora, as pontadas voltaram. JOANA Levante e caminhe um bocadinho para criança se acomodar no lugar dela. Ande, andar faz bem, cobra que não anda não enfole sapo. SEVERA Prefiro continuar nesta posição. Sinto um cansaço!
No princípio eu era favorável à moradia do Cabo Ferreira aqui. Quando aluguei a sala não imaginei que ele premeditava namorar a Severa, quero morrer de gota serena se sabia... PEDRO Esse namoro é invenção da Severa. Ela criou isso na cabeça porque o Cabo Ferreira elogia muito a beleza dela.
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JOANA
JOANA
“Menas” verdade. O Cabo Ferreira persegue mesmo a Severa, não é implicância
O povo aumenta, mas não inventa... Pedro, o que você tem a fazer, e fazer
dela com ele não.
depressa como quem rouba, é convidar o Cabo Ferreira para ir cantar noutra freguesia.
PEDRO
PEDRO
Persegue nada. Ele faz os elogios como prosa e a Severa leva a mal.
Não posso.
JOANA
JOANA
Seja como for, no princípio eu era pela moradia do Cabo Ferreira conosco, agora
Pode. E deve, porque não é justo Severa amanhã ser difamada, e talvez o pelo
não. E sou de opinião que você deve reagir. Quem muito se abaixa...
próprio Cabo Ferreira, que adora contar vantagem.
PEDRO
PEDRO
Sendo expulso daqui ele não tem para onde ir. Está desarranchado no quartel.
Vou refletir, sou um homem prudente.
JOANA
JOANA
Que se lixe!
Prudente não, covarde. Mais covarde do que eu.
PEDRO
PEDRO
Com mais vinte ou trinta dias Severa tem a criança, o nervoso passa – tudo é
Já tomei as minhas precauções.
nervoso dela – e as coisas se modificam.
JOANA
JOANA
Você tomou foi caldo de preguiça, para ser tão molongó.
Fique nessa fiuza e não estranhe depois a desmoralização.
PEDRO
PEDRO
Quer me ofender?
Desmoralização?
JOANA
JOANA
Quero lhe dar um chá de coragem, antes que seja tarde.
Sim. Os “filhos da Candinha” não demoram a murmurar...
PEDRO
PEDRO
Coragem eu tenho. Sou apenas cauteloso.
O quê?
JOANA
JOANA
Tem coisíssima nenhuma. Tem é medo. Tem mais medo de afrontar o Cabo
Pedro, não se faça de embasbacado. Daqui a pouquinho toda a vizinhança começa a falar que o Cabo Ferreira procura namorar a Severa nas suas barbas e você nem seuSouza...
Ferreira do que o diabo da cruz. Por que não passa debaixo de um defunto para perder esse medo? PEDRO
PEDRO
O meu defeito é ser educado.
Alguém falou isso?
JOANA
JOANA
Educado não, zuruó. Parece um cachorrinho acorrentado, lambendo os pés cheios
Por enquanto não, porém mais dia menos dia... essa gente tem a língua ferina.
de chulé do Cabo Ferreira. O seu nome, em vez de Pedro Cavalcante de Oliveira, devia ser
PEDRO
Pedro Cavalcante de COLEIRA...
Sei como enfrentar essa injúria. Existe a Polícia.
PEDRO (Com um murro na mesa, agastado.) Basta! Eu vou resolver este caso.
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JOANA
PEDRO
Até que enfim. Salvou-se uma alma...
Desta forma eu não posso proceder. O Cabo Ferreira é meu superior.
PERDO
JOANA
A senhora me auxiliará... JOANA
Superior em que, um bestalhão daquele. Ele se gaba de muitas bravuras porém é tudo lambança.
Eu não. Eras!
PEDRO
PEDRO
O Ferreira é cabo e eu sou soldado raso; desacatando ele vou preso.
Eu peço para o Cabo Ferreira se mudar e a senhora diz o motivo.
JOANA
JOANA
Não digo que é um bocó?
Eu? Se enxergue, Pedro.
PEDRO
PEDRO
Não me avacalhe...
Não se toca no assunto da Severa. A senhora alega que precisa da sala para
JOANA
abrigar uma conhecida. JOANA Vamos ser frouxo, mas assim é demais. Por que tem tanto pavor do Cabo Ferreira, hein?
Um palerma. Com um marido do seu tipo, coitada da Severa. Ela que passe pena de jurutaí por baixo da cama para proteger a honra, senão está frita... PEDRO Severa tem moral de sobra para zelar pela honra dela.
PEDRO
JOANA
Não é pavor. É que na minha frente ele sempre foi um sujeito respeitador.
Tem, contudo não se fie muito... o Cabo Ferreira é matreiro, desencava um olho
JOANA
de boto...
Pois vá remediando a situação, vá remancheando e depois não se arrependa.
PEDRO
PEDRO
O que a senhora quer dizer com isto?
Se houvesse um recurso...
JOANA
JOANA Para mandar às favas o Cabo Ferreira? Há, sim: hoje mesmo você está com a faca e o queijo na mão. PEDRO
Duas coisas. Primeiro: mulher alguma, por mais fiel que seja, resiste a um homem que traga consigo olho de boto. Segundo: o Cabo Ferreira, com toda a liberdade dentro de seu lar, sujigando a sua esposa todo santo dia, sujigando, sujigando, sujigando... o que poderá acontecer?
Como?
PEDRO
JOANA
Eu é que lhe pergunto.
Ele ainda não chegou e sabe como ele chega aos sábados, não sabe?
JOANA
PEDRO
E eu respondo: ou ele agride ela, ou ela agride ele...
Embriagado.
PEDRO
JOANA
Ou ele se decepciona...
Adivinhou, passarinho verde... Aproveite a ocasião, berre que o seu lar não é antro de cachaceiro, e se o dito cujo estrebuchar, pau na moleira dele.
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JOANA
JOANA
Ou ela dá com os burros n’água e você não pode nem se queixar, tem que ser
Porém antes você pega uma acha de lenha maraximbé e sapeca nele. É pá casca.
corno manso.
PEDRO
PEDRO
E depois?
(Ruborizado) Não fale deste modo.
JOANA
JOANA
Depois feijão com arroz.
Falo, porque estou até aqui consigo. Então o Cabo Ferreira tem a petulância de
PEDRO
perseguir a Severa e você não se dá por achado? PEDRO
Somos militares, eu subalterno, disciplina é disciplina, se bater no Cabo Ferreira é xadrez na certa. Talvez expulsão.
Ele não persegue, é o nervosismo dela.
JOANA
JOANA
Francamente, nunca houvera de pensar que você fosse tão boboca.
Tomara que dê na veneta da Severa lhe enganar. Quando você menos esperar,
PEDRO
pronto: acabou-se o que era doce...
Hei de dar baixa da caserna com o meu nome limpo.
PEDRO
JOANA
Quando menos esperar o quê?
Ouça, Pedro, a mim ninguém toma por lesa. Qual é a verdade?
JOANA
PEDRO
Quando você menos esperar, babau! Estará mais chifrudo que boi do Marajó!
Que verdade?
PEDRO
JOANA
(Explodindo de irritação.) Pare! Pare!
Nessa sua recusa de despachar o Cabo Ferreira há dente de coelho. Ou você é
JOANA
muito medroso mesmo ou está mal intencionado com a sua mulher, ou esconde alguma
(Noutro diapasão, fraternalmente.) Pedro, eu sei, jamais Severa cairá em desonra.
coisa.
Estou-lhe cutucando dessa maneira para sacudir seu tino, para você tomar uma providência
PEDRO
enquanto é tempo. O Cabo Ferreira pode reinar com a sua mulher, ela pode ter um abalo e
Bom, a verdade...
perder o filho. Sou parteira há mais de dez anos neste Umarizal e tenho visto muita mulher
JOANA
abortar em consequência de susto e de ser magoada. PEDRO
É o medo. Você não tem tupete de botar as cartas na mesa com o cabo Ferreira, não é?
O Cabo Ferreira não tira do bolso a navalha...
PEDRO
JOANA
Mais ou menos....
Grandes coisas! Por causa de uma navalha você vai ficar tremendo que nem vara
JOANA
verde na frente daquele tratante? PEDRO Numa refrega do Cabo Ferreira comigo ele pode machucar a Severa, por vingança.
Eu bem desconfiava. PEDRO O medo me paralisa, não adianta negar. Medo do Cabo Ferreira me prejudicar no quartel e medo dele fazer uma arte com Severa, despeitado. Mas a senhora se encontra noutra posição é a dona da casa, podia resolver o problema.
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JOANA
JOANA
Quem, eu? Uma osga!
Não, Pedro, grave é outra coisa, você bem sabe...
PEDRO
VIZINHA
Por que não?
(Encerrando o exame.) O que ela tem é doença chinfrim: espinhela caída.
JOANA
JOANA
(Num rasgo de sinceridade.) Porque também tenho medo...
Ela tem espinhela caída?
PEDRO
VIZINHA
E fica me criticando, me ridicularizando... JOANA
Na batata, mas eu curo isso em três tempos. Ponham um grelo de malvarisco no peito e nas costas, depois me informem o resultado.
Não estava mangando de você não. Estava só alertando, porque a mulher cobiçada
SEVERA
é sua. De mais a mais, não queira se comparar comigo, uma pobre aleijada pelo
Vizinha, a criança está no lugar?
reumatismo.
VIZINHA Isto a Joana vê, minha filha. A parteira é ela. Eu só entendo de doenças caseiras,
VIZINHA (Entra da rua, dando o primeiro passo com o pé esquerdo, retrocede e retifica a
mal e porcamente.
passada, a fim de penetrar na sala com o pé direito.) Custei, mas cheguei, e cheguei com o
JOANA
pé direito. (Invade o quarto para onde igualmente se dirige Joana, saindo da cozinha.) O
A criança está no lugar, Severa. Não tenha dúvida. Este coirão nasce direitinho.
que é isto, Severa? Puseram mandinga em você?
VIZINHA
SEVERA
Ainda é pra êste mês?
Umas tonteiras, pontadas, palpitações, tanta coisa reunida...
JOANA
VIZINHA
Olhe como a barriga dela empinou, Vizinha. Com toda certeza é homem.
Bebeu o chá de erva-cidreira?
VIZINHA
JOANA
(A Pedro.) Comprou uma tesoura nova?
Não, ontem ela se alagou no tacacá, eu pensei que fosse fígado, dei o chá de
PEDRO
sucuba.
(Para Joana.) A senhora não tem? VIZINHA
JOANA
Vai ver que é a mãe do corpo. Deixe examinar. (Apalpa Severa demoradamente; Pedro chega da cozinha, intervém, solícito.)
O quê? Tesoura nova para cortar o umbigo do curumim? Não, sou parteira mas não tenho: casa de ferreiro, espeto de pau.
PEDRO
SEVERA
Ela está nervosa. Fica tranquila, Severa.
Basta o malvarisco para me aliviar, Vizinha? Eu padeço também de uma falta de
VIZINHA (Detendo a destra sobre o músculo cardíaco de Severa.) Chi!... Vejam o baticum do coração.
ar... VIZINHA Minha filha, eu vou convocar os meus caruanas pra fazerem uma descarga no teu
PEDRO
lar. Se não houver melhora no prazo de dois ou três dias é porque existe algum trabalho de
É grave?
macumba feito contra ti, trabalho de inveja. Aí somente um tajá curado resolve.
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JOANA
PEDRO
Como se prepara esse tajá curado? Ensine logo porque além da mofineza da
Deus lhe recompense, Vizinha. Amanhã eu falo com a senhora sobre o tajá...
Severa... (olha significativamente para Pedro.) nós aqui em casa estamos com um
VIZINHA
problema do tamanho de um elefante...
Vou indo, é tarde, a noite está um breu.
VIZINHA
JOANA
Não tem o que errar: mata-se um gavião caipira, ensopa-se uma blusa ou um
Espere o cafezinho.
qualquer pano no sangue dele, queima-se a fazenda suja de sangue e com as cinzas alimenta-se o pé de tajá. Curado deste modo o tajá atrai a felicidade pro lar. SEVERA
VIZINHA Não, Matinta-Perera tem aparecido cedo, não quero topar com visagem. (Encaminha-se para a sala, seguida por Joana e Pedro. Severa permanece no quarto.)
Obrigada, Vizinha, mas eu confio mesmo é nas minhas preces.
JOANA
JOANA
Ainda ontem eu acordei de madrugada com um assovio de Matinta-Perera.
(Para a Vizinha.) Ela gosta de rezar. Reza à bessa. E quando reza se compenetra
VIZINHA
tanto que, mal comparado, parece uma santa... VIZINHA Minha filha, tu gosta de rezar? Então vou te ensinar a “Oração da Força do
Não era ela, não, era um rasga-mortalha. Mau agouro. Rasga-mortalha deu sinal, pode anotar, alguém entregará a alma a Deus por estas bandas. JOANA
Credo”. Tenho copiada lá me casa, trago no papel, pra não esqueceres. É curtinha, diz
Tomara que seja o maldito do cabo Ferreira.
assim:
VIZINHA Meu amantíssimo Jesus
Ele não se endireitou? Não deixou de perseguir a Severa?
Eu vos ofereço este credo
JOANA
Que rezo em tenção de Nossa Senhora do Desterro
Já viu pau que nasce torto se endireitar? Continua atucanando a Severa.
Pra desterrar todos os meus inimigos
VIZINHA
Pra que me livre da ponta de faca
E Pedro não sabe? JOANA
Da boca de espingarda
(Sarcástica) Paresque...
De todo instrumento cortante
PEDRO
De todo malefício
A história não é bem assim...
De morrer afogada
VIZINHA
Nosso Senhor Jesus Cristo no rio Jordão salvou a Pedro
JOANA
(Para Joana.) E você acoita na sua casa gentinha dessa espécie? Na barca de Noé eu me tranco Eu me fecho
Quando aluguei a sala para o cabo Ferreira, já lhe disse, não pesquei a tramóia que ele arquitetava. Se arrependimento matasse...
Nosso Senhor Jesus Cristo me acompanha na vida e na morte
VIZINHA
E com três palavras eu me benzo.
Ele não respeita nem a barrigona da Severa?
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JOANA
VIZINHA
Não tem a menor consciência, é um esganado por mulher.
E você, vá mundiar desta casa, seu desavergonhado.
VIZINHA
FERREIRA
Quem diria! Um sujeitinho encarquilhado daquele, feio como a necessidade...
(Procura algo no bolso em vão.) Ah! Se eu estivesse com aminha navalha, velha.
JOANA
VIZINHA
Metido a conquistador, se julga mordido de formiga taoca.
E ah! Se eu tivesse aqui com a minha muxinga, seu Curupira.
VIZINHA
FERREIRA
(A Pedro.) E você não se mexe?
O que, velha? Vosmecê me surrava de rebenque? Era mulher capaz disso?
PEDRO
VIZINHA
A história não é bem essa.
Sou mulher até pra lhe por um sapo na barriga.
JOANA
JOANA
Eu cansei de dizer a Pedro para reagir. A senhora reagiu? Assim foi ele.
Vizinha, não gaste a sua vela com defunto tão ruim.
VIZINHA
PEDRO
É... Esse costume de conquistar mulher dos outros está entrando em voga...
Ele está embriagado, não adianta discutir.
JOANA
JOANA
Porque existe muito marido com sangue de barata. Não vê este aí? Acha que para
É malhar em ferro frio.
enfrentar o cabo Ferreira deve aguardar primeiro a mulher ter criança, acha que deve
PEDRO
esperar quase um mês, acha que isso não é sangria desatada.
Vá dormir, Vizinha, eu lhe acompanho, deixo a senhora na porta de sua barraca.
VIZINHA
VIZINHA
O único jeito é vocês, sempre quando o Cabo Ferreira entrar em casa, virarem a
Vou mas jogo uma praga pra ele, não levo desaforo pra casa.
vassoura pro ar e jogarem um pouco de sal no fogo.
FERREIRA
FERREIRA
Cale a boca, velha arreliada.
(Entra alcoolizado.) Chegou eu. (Cambaleia, mira Joana de cima a baixo,
VIZINHA
provocadoramente.) JOANA
(Imponente, para Ferreira.) Tenho fé em Deus, e na Virgem Santíssima, que você há de acabar os seus dias coberto de lepra num hospital ou coberto de ódio numa prisão.
Por que me olha com estes olhos de seca pimenteira?
FERREIRA
FERREIRA
(Gargalhada boçal.) Ora, ora, velha espevitada.
Fedorenta.
VIZINHA
JOANA
Te desconjuro. (Sai).
Fedorento é quem chama.
PEDRO
VIZINHA
Que praga!...
Apoiado. Apoiado.
JOANA
FERREIRA
Muito merecida: os anjos do céu digam amém.
(Volta-se para a Vizinha.) Vá se coçar, velha feiticeira.
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FERREIRA
JOANA
(Trôpego) Estou tonto... tonto...
Severa está deitada.
JOANA
FERREIRA
(A Pedro, num sussurro.) Aproveite a ocasião, escorrace ele. Quer que eu apanhe
Deitada? (Entra no quarto.)
uma acha de lenha?
JOANA
PEDRO
Não disse? E agora, seu degas?
Não forme um escarcéu, a Severa pode ouvir e piorar.
PEDRO
JOANA
(Sem iniciativa.) É duro ter juízo.
Aproveite, ele está desarmado. Não viu que quando xingou a Vizinha ele
JOANA
vasculhou o bolso e não encontrou a navalha.
Mais duro é ter um marido paspalhão. Faça alguma coisa, homem! Se de fato é.
FERREIRA
PEDRO
(Totalmente dominado pela embriaguez, fala sem atinar o que diz.) Dancei no
Estou refletindo.
boi-bumbá... dancei e briguei.. Foi cacete que nem Nosso Senhor em dois anos remenda os
JOANA
feridos...
Não há o que refletir, seu. Ou você veste calça por informação? JOANA
PEDRO
Aproveite, Pedro. Quem tem medo morre cedo. Morre na véspera, que nem porco.
Não me afobe.
FERREIRA
JOANA
Estou tonto... e vou beber mais até endoidecer... hoje, eu mando um pro inferno...
Será que você não gira bem da bola?
PEDRO
PEDRO
Ouviu? É bom ter paciência, é bom ter paciência. Ele fica possesso aqui, Severa
Venha comigo sem zuada.
desmaia, tem um passamento, aborta. FERREIRA
JOANA Inda mais esta! (Entram os dois no quarto; Severa ressona na rede, indiferente à
Hoje eu faço uma arruaça, hoje eu viro cangaceiro.
presença de Ferreira, este, postado ante Severa, balança o corpo silenciosamente, ébrio;
JOANA
há uma pausa; Pedro e Joana, sem ação, prolongam a expectativa do que poderá ocorrer
Você não bota cobro nas impertinências dele, é isto, está escutando? Cangaceiro!
em tal circunstância.)
Não toma uma decisão, não ata nem desata.
FERREIRA
PEDRO
(Baixinho) Severa...
Eu sei o que faço.
PEDRO
JOANA
Psiu... ela está adoentada, não perturbe.
E eu sei o que digo. Você termina ficando sem a Severa. Deus só dá asa a quem
FERREIRA
não sabe voar; uma mulher tão virtuosa e um marido tão... deixa eu me calar, o melhor é
(Suspende a voz.) Severa...
meter a viola no saco...
JOANA
FERREIRA Severa... onde se socou a Severa?...
Saia, seu inconsciente; não ouviu Pedro dizer que ela está malacafenta?
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FERREIRA
FERREIRA
(Inflexão mais forte.) Severa!
Se volto?... Minha cabeça está rodando... mas ainda vou pra um forró...
SEVERA
JOANA
(Erguendo-se) O que é isto?
Vá. Deus lhe leve e não lhe traga mais.
PEDRO
FERREIRA
Não é nada não, ele se embriagou.
Vou a uma festança do arromba... na Pedreira ...
SEVERA
JOANA
(Impetuosa) Com autorização de quem invadiu o meu quarto?
Pois o que espera? Vá logo senão eu me espoleto. (Puxa-o para a porta da rua.)
PEDRO
FERREIRA
Calma, Severa, calma.
Que braveza é esta?
SEVERA
JOANA
(Contundente) Não me respeita? Sou sua cativa? Sou sua amante?
Estou a pique de me engalfinhar consigo, seu caraquento.
JOANA
FERREIRA
Isto, dê uma lição em regra nele.
Não me desfeiteie... não me achincalhe...
SEVERA
PEDRO
(Vibrante) Não tem pudor?
Tenha calma, tenha calma.
PEDRO
JOANA
Severa, não acorde os vizinhos.
(A Pedro.) E você, tudo o que sabe dizer é “tenha calma, tenha calma” – uma
JOANA
besta quadrada!
O que tem os vizinhos? Dê uma banana para eles.
FERREIRA
SEVERA
Por que deseja que eu me arribe?
(Recosta-se na rede.) Ai! A minha fronte...
JOANA
PEDRO
Porque você não tem um cuí de vergonha.
(Aparando-a e fazendo-a deitar-se.) Eu previ, eu previ.
PEDRO
JOANA
Não complique a situação.
(A Ferreira.) Puxe já daqui! (Empurra-o para a sala.)
JOANA
PEDRO
Quem complica tudo é você. Não passa de um tapado. Fique no quarto com a sua
(À Severa.) Melhorzinha?
mulher e me deixe sozinha, sei onde tenho o nariz.
SEVERA
PEDRO
Passou. Só uma sonolência.
Concordo, mas tenha cuidado com o seu nariz. (Vai para o quarto.)
PEDRO
FERREIRA
Cochile, adormeça. (Sai para a sala.)
Perneta levada da breca... eu lhe dou uns bofetes...
JOANA
JOANA
(A Ferreira na sala.) Volte pra rua. Volte pra sua gandaia.
Só se for dia de São Nunca.
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FERREIRA
PEDRO
E vosmecê não ganha mais o aluguel da sala... pra comprar as suas pílulas...
(Procura encher um caneco d’água, constata que o pote está vazio.) Devolveu o
JOANA E eu tenho precisão de me sujeitar à sua patifaria por causa de dinheiro? Axi! Porcaria.
balde emprestado? JOANA Não.
FERREIRA
PEDRO
Vosmecê quer me despedir de vez daqui?... É?...
Ótimo, vou encher o pote. (Apresta-se para executar a tarefa.)
JOANA
JOANA
É.
Não torne a me quebrar o pote, por favor. Este pote é novo, custou caro e eu tenho
FERREIRA
de pagar uma promessa com ele.
Pra onde quer que eu vá? ... Pro quartel?
PEDRO
JOANA
(Aludindo ao pote.) Bojudo como a barriga de Severa.
Para qualquer parte, até para onde o diabo perdeu o cachimbo.
JOANA
FERREIRA
Se o Cabo Ferreira se mudar, sem espalhafate, levarei este pote para o largo de
Eu sei o que vosmecê está maquinando... pago o aluguel dobrado, serve?
Nazaré, no dia do Círio. Promessa é promessa, eu prometi distribuir água pra quem
JOANA
acompanha a procissão descalço. (Pedro sai para o quintal.)
Não. Quem tem nariz furado é índio.
SEVERA
FERREIRA
(Gemendo no quarto.) Comadre, venha cá.
Vosmecê acha que fez um mal negócio?
JOANA
JOANA
(Atendendo) O que é?
Pior que uma ferrada de arraia.
SEVERA
FERREIRA
(Exibindo o ventre.) Repare, repare, a criança está pulando, não está apenas se
Vosmecê é ranzinza, hein?
mexendo, está pulando.
JOANA
JOANA
Pela luz que me alumia, se você não sair já eu pego uma acha de lenha e lhe
Isto é comum, Severa. (Rindo) Marinheiro de primeira viagem é assim mesmo.
achato (Coloca-o para a rua tranca a porta.)
quiser.
162
SEVERA
SEVERA
Corra, chame o Pedro para ele ver.
(A Pedro, no quarto.) Estou com sede...
JOANA
PEDRO
(Desce para a cozinha, até o limiar da porta do quintal.) Pedro! Pedro!
Não se levante, eu trago água. (Desce para a cozinha ao lado de Joana.)
PEDRO
JOANA
(Entra esbaforido, com o pote na mão.) Severa piorou?
Graças, ele se foi para farra. Por hoje dorme-se em paz, manhã seja o que Deus
JOANA A criança está pulando na barriga dela.
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TERCEIRO ATO
PEDRO Eu não disse? Eu bem que avisei! (Dirige-se para o quarto atarantado, deposita o pote em falso sobre a mesa, o pote cai e quebra-se ruidosamente, repetindo o acontecido
É hora do crepúsculo. A cena está fracamente iluminada e a claridade que a envolve
no ato anterior.)
vai esmaecendo com o pôr do sol. Severa, à porta do quintal, admira o firmamento; o volume de seu ventre, mais dilatado, denuncia os últimos dias de gestação. JOANA (Abastecendo as lamparinas.) Matutando, Severa? SEVERA (Olhando o céu.) Como as nuvens estão mimosas, comadre. Amarelas, róseas, esverdeadas, roxas... JOANA (Observando) É, diversas cores. Porém, aquela nuvem escura ali... nuvem escura como aquela à tardinha, é chuva. Pode esperar o aguaceiro. Eu só penso nas goteiras, ontem surgiu uma em cima da minha rede. SEVERA Chuva grossa, a de ontem. JOANA Um pampeiro. E estamos em julho, é verão. Como chove nesta terra. SEVERA Tem chovido até com sol. JOANA É, chuva com sol, casamento da raposa com o rouxinol... SEVERA Olhe, comadre, em cima daquela mangueira, parece um monte de brasas... JOANA (Olhando) Parece um incêndio, um fogareiro escritinho. SEVERA E veja aquela nuvenzinha, deslizando como uma canoa no igarapé. JOANA Em riba dela está... se formando... não é uma tartaruga? SEVERA Não, lembra mais uma criança de colo.
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JOANA
SEVERA
Você agora só pensa em criança.
Não sinto medo. Sinto um desalento...
SEVERA
JOANA
Dentro de uma semana, se as minhas contas não falharem, terei a minha nos
Nervoso, como diz o Pedro.
braços. Que alegria!... Olhe ali, comadre, a lua vem aparecendo, igualzinha a uma bola de
SEVERA Nervoso também não é. Uma coisa esquisita... não posso explicar. Como se uma
algodão. JOANA
desgraça estivesse para me acontecer.
Cheia como o seu bucho.
JOANA
SEVERA
Não fale nisso que amanheci com o olho esquerdo tremendo.
Olhe aquela estrela perto dela, como brilha.
SEVERA
JOANA
Não sei se foi a prisão de Pedro que me afundou nessa tristeza.
Não aponte para estrela que dá verruga.
JOANA
SEVERA
O que Pedro lhe disse quando você foi deixar o almoço? A prisão dele custa a
Olhe, olhe a criança de nuvem vai-se desfazendo. Que pena!
terminar?
JOANA
SEVERA
Pena por quê? Era apenas de ilusão.
Mais uma semana... se a criança nascer antes...
SEVERA
JOANA
Podia durar mais...
Veja como são as coisas: Pedro não expulsou o Cabo Ferreira temendo uma
JOANA
confusão e cadeia – acabou indo para o xilindró por causa de uma insignificância. Castigo.
Se deseja uma criança de mentira, assim branquinha, eu fabrico uma para você de
Deus tanto castiga os valentes como castiga os covardes. VIZINHA
espuma de sabão.
(Entra com os seus modos extrovertidos.) Boa tarde, pessoal; ou boa noite.
SEVERA Não, desejo de verdade. De mentira já tenho, quando durmo e sonho. Sabe, comadre, às vezes fico pensando que não há dentro de mim uma criança real, de carne e
(Atravessa o quarto, atinge a cozinha.) Severa, eu soube que você vai dormir fora; já é para ter o bebê? SEVERA
osso... JOANA
Não, vou dormir na casa da Maria Antônia porque Pedro está preso no quartel.
Ainda bem que este filho pula na sua barriga que nem bode na chuva.
JOANA E o Cabo Ferreira anda farejando ela, como é do seu conhecimento. Não se pode
SEVERA Às vezes tenho a impressão de que esta criança não se criará... É uma sensação estranha que me assalta. JOANA Já deixou escapulir para mim, que ando bicorando o seu comportamento: é o medo do parto. É você com medo do parto e o seu marido com medo do Cabo Ferreira.
facilitar. SEVERA Hoje, quando fui levar o almoço, comuniquei a Pedro que não suporto mais essa situação. Tive até uma crise de choro. Como não há meio de fazer o Cabo Ferreira me respeitar, Pedro aconselhou que eu dormisse fora uns dias.
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JOANA
JOANA
Pelo sim pelo não, é melhor.
Abria a boca que nem jacaré quando engole piranha...
VIZINHA
VIZINHA
Estou de pleno acordo, minha filha, abra o olho.
Juro pela luz divina.
JOANA
JOANA
Ela está com a barriga tal qual uma camaleão ovada, porém assim mesmo é
Olhe que quem jura falso...
possível que o devasso tente lhe possuir. O Cabo Ferreira não tem escrúpulo com mulher.
VIZINHA
Para ele o que cair na rede é peixe...
Não sou de lesco-lesco, Joana.
VIZINHA
JOANA
Por que ele não se amiga com uma mulher da vida?
Pudera! Com três homens parrudos em casa... Vantagem fiz eu, que descompus o
VIZINHA
Cabo Ferreira de corpo presente, na sala, enquanto o Pedro catava piolho da Severa no
Devia era trazer a família do Ceará.
quarto.
JOANA Com que grana? Todo o dinheiro que sobra do ordenado ele bebe de cachaça: não tem o que o periquito roa...
SEVERA Não esqueça de dizer, comadre, que o Cabo Ferreira se encontrava tão embriagado que quase não se aguentava em pé.
SEVERA
JOANA
É um irresponsável. Sabe lá as privações sofridas pela sua esposa.
É, com ele no juízo perfeito e a navalha no bolso eu não tinha a ousadia não.
JOANA
VIZINHA
Quem manda ela ser parada? Eu como ela tinha embarcado num vapor, no rumo
Pois eu tinha.
daqui, há muito tempo, com parentes e aderentes. SEVERA Ah! Se ela viesse.
JOANA Morda aqui! Duvido. O cabo Ferreira é um assassino perigoso, já matou gente em Grajaú, não se farta de fazer propaganda disso. É assassino por vocação.
JOANA
SEVERA
(Jocosa) Quando a parentela do Cabo Ferreira der as caras, como essa casa é gita
Ele está demorando para o jantar.
para acomodar muitas pessoas, a gente informa que a Vizinha hospeda todinha a família...
JOANA
VIZINHA
E esse atraso... Acho que tem boi na linha...
Sabe o que eu fazia?
SEVERA
JOANA Se fechava em copas...
Será que ele soube da minha dormida fora e está retardando a chegada de propósito?
VIZINHA
JOANA
Não, recebia todos no meu taperí e em meia hora descascava as palhaçadas do
O bandido é astucioso.
Cabo Ferreira, punha ele mais raso que o chão.
VIZINHA E se o Cabo Ferreira chegar bêbado e proibir a Severa de sair?
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JOANA
SEVERA
Se vier bêbado eu perco as estribeiras e baixo a acha de lenha maraximbé na
Sinto uma sufocação... um aperto na garganta... (Soluça em um pranto reprimido.)
ilharga dele. Sou mulher para isso, quando o meu medo se transforma em coragem. Ele que
VIZINHA
venha com marmota.
Minha filha, não se aflija.
VIZINHA Que pilintra. Tão safado quanto ignorante. JOANA Se espremerem o Cabo Ferreira num tipiti, depois de escorrer todo o caldo da safadeza e da ignorância só resta bagaço.
JOANA (Confortando Severa, que começa a chorar copiosamente.) É da gravidez, Severa, esse nervosismo. SEVERA Qualquer coisa me acontecerá...
VIZINHA
JOANA
Quantos ele já matou?
Não seja esmorecida.
JOANA
VIZINHA
Sei lá. Se a senhora ouvisse ele falar nisso... conta coisas do arco da velha.
Amanhã sem falta eu consigo o seu tajá curado.
SEVERA
JOANA
Esta demora dele para o jantar me preocupa.
De hora em hora Deus melhora.
JOANA
SEVERA
Dá para cismar. Hoje, na hora do almoço, o cínico me pagou o aluguel da sala e deu dinheiro a mais. Quando a esmola é grande o santo desconfia.
(Refazendo-se) Obrigada; sem vocês eu desanimaria. VIZINHA
SEVERA
Este desespero da Severa me recordou a Maria Bárbara.
Perguntou alguma coisa a meu respeito?
SEVERA
JOANA
Maria Bárbara?
Ora si-si. Indagou um bocado de coisas sobre o passado de você e de Pedro.
VIZINHA
SEVERA E o que a senhora revelou?
Sim, ela devia ter uma criança, como você, e como você era mulher de um soldado. Foi no ano de 1800.
JOANA
JOANA
Nada, me fiz de esquecida, como quem comeu casca de queijo.
Coincidência, há cem anos certinho.
SEVERA
VIZINHA
(Leva a mão à testa, acabrunhada.) Essa impressão... essa angústia... qualquer coisa me acontecerá...
De fato, quanta coincidência: ela também lavava roupa pra ajudar o marido a sustentar a casa e era muito correta.
VIZINHA
SEVERA
Não se deixe abater, minha filha. Abaixo de Deus aquela oração lhe resguarda
Costumava ter os meus pressentimentos?
contra todo o mal. JOANA Ih!... meu olho esquerdo começou a tremer novamente... Mau sinal.
VIZINHA Isto eu desconheço. Um dia, quando Maria Bárbara caminhava por uma estrada deserta, pra ir lavar roupa no Marco, foi atacada.
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SEVERA
SEVERA
Grávida?
A senhora decorou os versos?
VIZINHA
VIZINHA
Grávida. Um canalha quis bulir com ela, a pobrezinha não consentiu.
Como não, se ouvia todo dia?
SEVERA
SEVERA
Tinha de defender a honra.
Diga pra nós.
VIZINHA
JOANA
Pois é. Defendeu e findou degolada.
Eita! Seu mano. Vamos ter uma representação de poesia.
SEVERA
VIZINHA
Degolada? VIZINHA
(Para Joana.) Minha educação não tem parecença com a sua. Sou um pouquinho letrada, neta de professora.
Sim.
JOANA
SEVERA
Então desemboque os versos; estou cuíra-cuíra para escutar, ô coisa ruim para eu
(Põe instintivamente a mão no pescoço.) Que horror!
achar boa...
JOANA
SEVERA
Criminoso como esse nem Satanás aceita no Inferno.
Não faça cerimônia, Vizinha.
SEVERA
VIZINHA
Quanta crueldade.
(Declama com extraordinária riqueza de mímica; a iluminação, mais fraca,
VIZINHA
obriga Joana a acender as lamparinas durante a recitação.)
Tem gente pra tudo, minha filha. JOANA
Se acaso aqui topares, caminhante,
O Cabo Ferreira é dessa laia.
Meu frio corpo já cadáver feito,
SEVERA
Leva piedoso com sentido aspeito
Pedro afinal tomou uma providência; dormir fora é mais segurança para mim.
Esta nova ao esposo aflito, errante.
VIZINHA Durma. Eu não quero aumentar o seu temor, mas hoje ainda é dois de julho, falta
Diz-lhe como de ferro penetrante
uma boa lasca pro fim do ano e eu sempre ouvi dizer que todo o século termina com uma
Me viste por fiel cravado o peito
grande desgraça.
Lacerado, insepulto e já sujeito
SEVERA
O tronco feio ao corvo altivolante.
Esse caso de Maria Bárbara é impressionante... VIZINHA
Que dum monstro inhumano, lhe declara,
E bastante ilustrativo, como afirmava minha avó, que era professora e não se
A mão cruel me trata desta sorte;
cansava de recitar os versos escritos pelo poeta Tenreiro Aranha em homenagem ao sacrifício de Maria Bárbara.
Porém que alívio busque à dor amara,
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Lembrando-se que teve uma consorte,
VIZINHA
Que, por honra da fé que lhe jurara,
O mundo então ficaria entregue aos maus.
À mancha conjugal prefere a morte.
JOANA Os maus se entendem uns com os outros. Os bons é que quando se misturam com
JOANA
eles pagam o pato.
(Bate palmas, zombeteira.) Meus parabolas, Vizinha.
VIZINHA
SEVERA
Isto é verdade. Não vê a Maria Bárbara? Minha avó afiançava que ela era “nobre e
Formidável.
bela”.
VIZINHA
JOANA
Não carece exaltações.
A coincidência do caso de Maria Bárbara com Severa Romana é curiosa.
JOANA
VIZINHA
Carece, sim, sois merecedente, como dizia o meu pai, que não era professor, mas
Todas duas mulheres de soldado, todas duas barrigudas...
era o homem mais inteligente em Cametá, depois da Cabanagem.
JOANA
SEVERA
Todas em fim de século...
Deem licença um instante; preciso ir comunicar a Leonor que a partir desta noite
VIZINHA
não durmo mais aqui. (Corta o quarto e a sala, sai para a rua.)
Todas duas lavavam roupa pra ajudarem os maridos...
VIZINHA
JOANA
(Referindo-se a Severa.) Tão boazinha e tão atribulada.
Todas duas desejadas por serem bonitas...
JOANA
VIZINHA
É mesmo boa, essa menina. Boa que dói.
Todas as duas fiéis aos maridos...
VIZINHA
JOANA
Tanto é virtuosa como é vistosa.
Meu Deus! Para ser tudo igual...
JOANA
VIZINHA
E caprichosa.
Só falta o Cabo Ferreira degolar a Severa... Vôte! Cruz, credo.
VIZINHA
JOANA
Tem um jeitinho meigo.
Nossa Senhora! Sinto até um calafrio na espinha. Há coincidência até nos nomes:
JOANA
Antônio Ferreira dos Santos, que é como se chama o Cabo Ferreira, e Severa Romana
Simpatia chegou ali, parou. Não existe curiboca mais graciosa neste quarteirão.
Ferreira que é o nome de batismo de Severa.
VIZINHA
VIZINHA
Na idade dela, tão novinha, é raro encontrar moça casada com tamanho senso.
Temos que providenciar o tajá curado o quanto antes.
JOANA
JOANA
Perece que caiu do céu por descuido. Sabe o que eu penso? Pessoas assim não deviam nascer.
Agora quem está com os maus pressentimentos sou eu. E o Cabo Ferreira não tarda.
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VIZINHA
JOANA
O perigo é tão grande que talvez somente a oração não dê conta do recado.
É... o marido mandou...
JOANA
FERREIRA
O meu olho esquerdo continua tremendo...
Aquele peste desconfia de mim?
VIZINHA
JOANA
Se eu disser uma coisa você não se apavora? JOANA
Não sei, ele deve estar organizando alguma coisa, Pedro não mete prego sem estopa. Tiro a sua janta?
Dizendo ou não dizendo, apavorada já estou.
FERREIRA
VIZINHA
Tire não. Espero Severa.
Como se não bastasse aquele rasga-mortalha, hoje de manhãzinha xincuã cantou
VIZINHA
triste mais de uma vez.
Até amanhã, Joana. Vou indo porque quem com porco se mistura, farelo come...
JOANA
(Passa por trás de Ferreira, faz o sinal da cruz, exorcizando-o, afasta-se; Joana a segue,
Xincuã cantou triste?
sorrateiramente.)
VIZINHA
JOANA
Cantou.
(Na sala.) Que azar, o cretino não bebeu.
JOANA
VIZINHA
Se xincuã cantou triste...
Viu como ele me tratou?
VIZNHA
JOANA
É morte na certa...
Deve estar se mordendo, por causa da dormida fora da Severa.
JOANA
VIZINHA
Roguemos a Deus que o escolhido seja o cabo Ferreira FERREIRA
A minha satisfação é que nunca uma praga minha falhou. Ou ele termina os dias coberto de chagas num leprosário, ou termina coberto de ódio nas grades duma cadeia.
(Entra da rua, dirige-se à cozinha; não está embriagado.) Cadê Severa?
JOANA
JOANA
O meu olho esquerdo ainda não parou de tremer.
Saiu. Foi avisar a Leonor.
VIZINHA
FERREIRA
Fique com Deus e com o Divino Espírito Santo. (Sai para a rua.)
Avisar o quê?
JOANA
JOANA Ela vai...
(Desce para a cozinha, destampa uma panela no fogão, volta-se para Ferreira; este se conserva sentado à mesa de refeição, impassível.) Ponho a comida?
VIZINHA
FERREIRA
Dormir na casa da costureira Maira Antônia.
Já disse: espero a Severa.
FERREIRA
JOANA
(Para a Vizinha.) Cale a boca, velha; ninguém lhe chamou na conversa. (Para
Está emburrado?
Joana.) Ela vai dormir fora?
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FERREIRA
JOANA
Estou não.
Gosto, porém não sou carrapato para viver pregada nos outros. Cada um que
JOANA
procure suas melhoras, cada macaco no seu galho.
Quer um gole de café?
FERREIRA
FERREIRA
A dormida fora é só por hoje?
Quero não.
JOANA
JOANA
Acho que é toda noite, enquanto eles não se mudam.
Falou com o Pedro no quartel?
FERREIRA
FERREIRA
Mudança de Pedro com Severa?
Falei não.
JOANA
JOANA
Claro. A criança nascendo os dois vão morar noutra casa. Um casal sem filho é
Se você se sente triste, zangado, por que não faz uma farra daquelas? Encha os
uma coisa, com filho necessita de um cantinho isolado.
bofes de cachaça, isso espanta as mágoas. Pode chegar aqui caindo de bêbado que eu cuido
FERREIRA
de você...
Eles não estão bem aqui?
FERREIRA
JOANA
Chame Severa.
Por enquanto. Porém depois do parto a situação é diferente. Criança
JOANA
choramingando, criança fazendo xixi em toda parte, criança mamando... Já imaginou?
Ela risca já aí. Ainda soltam Pedro esta semana?
Severa com os peitos de fora dando leite para o filho, de repente você aparece...
FERREIRA
FERREIRA
Sei não. Por que ele mandou a Severa dormir fora?
E o que é que tem?
JOANA
JOANA
Desta vez sou eu quem diz: “sei não”...
O que tem mostrar os peitos? Pergunte se a sua mãe lhe amamentava na frente de
FERREIRA
qualquer marmanjo.
Vosmecê não deu palpite nesse assunto?
FERREIRA
JOANA
No sertão não se liga pra isso.
Eu? Não tenho nada com o peixe.
JOANA
FERREIRA
Não estamos no sertão, seu cínico, estamos numa capital. Em Belém do Pará
Por que não arrancou da cabeça da Severa a ideia de dormir fora?
“peito de mulher casada é joia sagrada”.
JOANA
FERREIRA
Em questão de marido e mulher não convêm meter a colher.
Vosmecê quer entrar num acordo comigo?
FERREIRA
JOANA
Mas vosmecê não gosta tanto de estar junto dela?
Depende da combinação. FERREIRA Sairá lucrando.
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JOANA
JOANA
Depende do lucro.
Cadela é...
FERREIRA
VIZINHA
É somente pra dar uns conselhos à Severa.
(Surge à porta da rua, com um tajá num vaso.) Joana, vem cá.
JOANA
JOANA
Que conselhos? Hum... compreendo porque me deu dinheiro a mais quando pagou o aluguel... (Dirige-se para a sala, Ferreira em seu rastro.)
(A Ferreira, saindo da cozinha.) Comigo é assim: pão-pão, queijo-queijo. (Na sala, para a Vizinha.) O que é isso? O seu tajá de estimação?
FERREIRA
VIZINHA
Se vosmecê cochichar nas oiças de Severa ... falando pra ela arribar da companhia
Justamente o de estimação, curado numa sexta-feira treze.
de Pedro e...
JOANA
JOANA
Para Severa?
Não sou alcoviteira.
VIZINHA
FERREIRA
Emprestado, enquanto não se consegue o dela. Trouxe logo porque com xincuã
Severa tem de viver comigo.
não se brinca.
JOANA
JOANA
E sua Zefina com a filharada, no Ceará, vai ficar comendo banha?
Meu olho esquerdo continua tremendo...
FERREIRA
FERREIRA
Que se dane.
(Avança da cozinha para a sala, ao deparar com a Vizinha tem um gesto de
JOANA Não se acanha de perseguir uma mulher prenha? FERREIRA Já fiz coisa mais escabrosa.
repulsa.) Por aqui novamente, coruja velha? VIZINHA (Para Ferreira, profética.) Deixa-te estar. Um dia ainda vejo o teu fim, com estes olhos que a terra há de comer.
JOANA
FERREIRA
Olhe que um dia a casa cai. Quem com muitas pedras bole, uma lhe dá na cabeça.
Pra que é esta planta?
FERREIRA
JOANA
Vosmecê rejeita a minha proposta?
Para... embelezar a sala...
JOANA
FERREIRA
Ainda pergunta! (Retorna à cozinha, seguida por Ferreira.)
Pode levar daqui.
FERREIRA
VIZINHA
Vosmecê é péssima.
Não volto com ela não. (Acomoda o tajá em um canto.) Fica neste cantinho.
JOANA
FERREIRA
E você é uma boa bisca! Um patifão!
Fica não.
FERREIRA
JOANA
Não me afronte, sua cadela.
Fica porque a casa é minha.
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FERREIRA
JOANA
Fica não porque esta sala está alugada pra mim e eu não vou dormir cheirando
Homem macho? Um assassino chué... (Sai para o quintal; Ferreira enrola um
mato.
cigarro.) JOANA
SEVERA
Fica porque, aqui, este tajá é mais importante do que você. Aliás, ele foi trazido
(Entra da rua, dirige-se à cozinha, ao vislumbrar Ferreira diminui
por sua causa. FERREIRA
automaticamente o ritmo de seus movimentos, contraindo-se; aproxima-se do fogão.) Posso servir o jantar?
Por minha causa?
FERREIRA
VIZINHA
Vai dormir fora?
Ora se foi.
SEVERA
JOANA
Vou. (O diálogo é arrastado e reticencioso.)
Porque se você não quisesse conquistar a Severa, não corria o risco de haver um
FERREIRA
desastre nesta casa nem carecia o tajá para proteger o ambiente...
A que horas vai?
FERREIRA
SEVERA
(À Vizinha, violento.) Esta planta é pra desmanchar a minha paixão por Severa?
Agora. (Serve a comida.)
VIZINHA
FERREIRA
Não grite assim comigo que não sou sua rapariga.
(Inicia a refeição; “come pouco ou não come nada”.) Comida sem gosto...
FERREIRA
SEVERA
Responda, velha macumbeira.
Não sei fazer melhor.
JOANA
FERREIRA
(Para ele.) Não faça tanto barulho.
Sente e coma comigo.
FERREIRA
SEVERA
Pois eu arrebento esta porcaria em cima de vocês. (Suspende o vaso com o tajá,
Não tenho fome.
faz menção de atirá-lo sobre elas: Joana corre capengando pela sala, a Vizinha também corre, atrapalharam-se comicamente as duas, Ferreira desiste de atingi-las e lança o vaso para a rua.) JOANA
FERREIRA Pedro continuará preso até não sei quando. E hoje mesmo que fosse solto, não poderia aparecer por aqui, porque está de sentinela. Esta noite temos toda a liberdade... eu... você...
Com licença, Vizinha, que vou lá dentro coisá...
SEVERA
VIZINHA
Vou arrumar a minha bagagem. (Entre no quarto, embrulha alguns pertences
Boa noite, Deus se apiede de você e de Severa. (Joana recolhe-se à cozinha, a Vizinha sai.) FERREIRA (Desce para a cozinha.) Não se zomba de homem macho, ouviu?
numa rede.) FERREIRA (Desloca-se para o quarto, bruscamente, agarra Severa pelo braço, objetivando conduzi-la à cozinha.) Jante comigo, sua geniosa.
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SEVERA
SEVERA
(Desvencilhando-se dele.) Seu indigno, me largue.
Nunca!
FERREIRA
FERREIRA
Que mal tem isso? Jante comigo.
Eu lhe dou tudo o que vosmecê quiser... todos os luxos... vestidos de seda...
SEVERA
SEVERA
(Ríspida) Não. (Gritando) Joana!
Nunca!!!
FERREIRA
FERREIRA
Mulherzinha de natureza opiniosa. Quanto mais pirracenta, mais bonita... (Tenta
Tem medo? Se vosmecê não for minha eu...
beijá-la.)
SEVERA
SEVERA
Tenho nojo de você! Nojo!!!
(“De sua fraqueza tira a pobre criatura forças para eximir-se à peçonha do
FERREIRA
ósculo criminoso”.) Não!!!
(Espalma a navalha.) Severa eu lhe mato (Parte para subjugá-la, lutam os dois.)
JOANA
SEVERA
(Entra do quintal com uma acha de lenha, penetra no quarto.) Respeita a mulher,
(Alto) “Comadre, me acuda”...
seu malino, senão... FERREIRA (Saca de uma navalha diante de Joana.) Está vendo? Navalha afiada como esta não foi feita pra minha goela. JOANA
FERREIRA (Desvairado, derruba Severa, que se esforça para levantar-se com volumosa barriga, somente logrando permanecer de joelhos.) Vou decepar o pescoço de vosmecê. SEVERA (Em pranto compulsivo.) Não, por Deus, não faça isso... (Mostra o ventre
(Terrificada) Endoideceu?
intumescido.) Poupe a vida deste inocente que ainda não nasceu... Eu lhe suplico, não por
FERREIRA
mim, pelo meu filho, tenha piedade...
Desapareça da minha frente. Nós não estamos brigando, é só um acerto que vamos fazer e vosmecê não tem nada a ver com o nosso trato. (Joana obedece, retorna ao quintal com a acha de lenha, humilhada.)
FERREIRA (Desfere o primeiro golpe, ao lado direito do tórax de Severa, em direção ao abdômen.) Vosmecê não será minha, não será de outro... (Severa sangra, reúne as
SEVERA
energias, ergue-se, corre para sala e para a rua, Ferreira em seu encalço: a cena fica
(Com a trouxa da bagagem.) Saio eu também, e amanhã me queixo no quartel
vazia; ouve-se um grito agudo de dor.)
para o comandante.
VOZ DA VIZINHA
FERREIRA
“Não mata a mulher, desgraçado”!...
Não! (Impede-a de ausentar-se.)
VOZ DE FERREIRA
SEVERA
“O que eu fiz com ela faço contigo”... (Silêncio; Ferreira reaparece, compondo a
Arrede daí, ande!
farda, junta algo que deixou cair na sala ao sair correndo; limpa na calça a navalha suja
FERREIRA
de sangue, as luzes apagam.)
Hoje nós dorme juntos...
FIM
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Esta peça conquistou MENÇÃO DE DESTAQUE no concurso “Coroa de Teatro”, realizado em 1969 no Rio de Janeiro. Foi encenada pela primeira vez, em abril de 1976, no Teatro da Paz, pela Federação de Teatro Amador do Pará-FETAPA. A ação se passa por volta de 1920, no interior da Amazônia.
PERSONAGENS
O HERÓI DO
“CORONEL” POLIDORO. Proprietário e senhor absoluto do seringal. Uns 60 anos de idade. Veste-se sempre de linho branco, usa anel de ouro saliente e chapéu panamá de vistosas abas. GUARIBÃO. “Criado” do seringal. Negro. Já velho, ostenta na cabeça, em vez de
SERINGAL
chapéu, alva cabeleira que torna a sua figura de ancião não apenas simpática, mas sobretudo solene. CAPATAZ. Homem de meia idade com função de carrasco. Veste-se à caráter: botas de cano longo, chicote e revólver na cintura. GUARDA-LIVROS. Burocrata. Uns 55 anos. Roupa sóbria e diferente, à moda da capital em 1920. ESPOSA. Mulher do “Coronel”. Pouco mais nova que ele. Traje doméstico característico da época. CABOCLA. Morena, baixa, gorda. Uns 45 anos. Moradora das redondezas do seringal. Roupa paupérrima, rasgada. SERINGUEIRO-BRABO. Nordestino. Calça de brim escuro e blusa de riscado com mangas compridas. Chapéu de palha. Uma bolsa de couro onde guarda fumo e cachaça. Nos pés, tamanco ou galocha rústica de borracha feita no próprio seringal, como era costume. Sua condição de novato reflete-se na cor da roupa ainda não desbotada. SERINGUEIRO-VETERANO. Também nordestino. Mesma indumentária, mesmos pertences. A qualidade de veterano é denunciada pelo envelhecimento da roupa em relação aos demais seringueiros. SERINGUEIRO-CULTO. Seus traços físicos, tanto quanto os modos, contrastam com a aparência de todos os outros seringueiros. Apesar de barbado tem aspecto aristocrático.
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PRIMEIRO ATO
SERINGUEIRO-DOENTE. Como os restantes, é nordestino e enverga o traje comum aos seringueiros, já descrito. Difere dos companheiros pela excessiva magreza e palidez.
CENÁRIO SERINGUEIRO-VALENTE. Idem, idem. Ao contrário do Seringueiro-Doente
Floresta de seringueiras.
destaca--se por ser musculoso e sanguíneo. SERINGUEIRO-COVARDE
Em algumas árvores vê-se pequenas tigelas de alumínio espetadas; uma das
SERINGUEIRO-INDECISO
seringueiras tem um “jirau”, espécie de escada feita com cipós entrelaçados por onde seria
SERINGUEIRO-DELATOR
possível uma pessoa subir: nela as tigelinhas acham-se fincadas bem em cima, perto dos
Idem, idem. Nada de especial a observar. Definem-se pelas atitudes.
galhos. Nota: Quando abre o pano a área de representação está vazia. Tanto neste ato, como nos seguintes, são atores que, já devidamente caracterizados para o espetáculo e bastante descontraídos, armam o cenário. Enquanto o trabalho é executado poderão ser utilizados, a critério da Direção, recursos técnicos (gravações, “Slides” etc.) para informar a plateia sobre o caráter documental da peça. Cartaz: REGIME DE TRABALHO EM SERINGAL, ANO DE 1920, AMAZÔNIA LEGAL... Cena deserta. Barulho de passos e vozes. Entra à esquerda o Capataz seguido pelos seringueiros Brabo e Veterano. Postam-se os três diante da árvore que contém o “jirau”. CAPATAZ Então é verdade, hein, seu cretino? Há quanto tempo você faz isto? SERINGUEIRO-BRABO Não faz tempo não... É que ainda não sei trabalhar... Cheguei a coisa de um mês... CAPATAZ Mas já aprendeu que ferindo a seringueira lá em cima dá mais leite, não é? Quem lhe ensinou esta safadeza? Foi este aí? SERINGUEIRO-VETERANO Eu não, afianço ao senhor que não. Nós moramos juntos, porém eu só boto sentido na minha obrigação. Sou pela honestidade, o senhor me conhece. CAPATAZ Conheço sim, seu conversa-mole, você mente mais que o Guaribão. Já foi um seringueiro regular dez anos atrás, hoje não vale três vinténs. Já deu produção, agora é um vadio como os outros.
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VETERANO
CAPATAZ
Não fui eu que fiquei amorrinhando não, os paus é que secaram e a seringa
Pois continue abusando e quando rebentar a pororoca não peça perdão que é pior.
começou a minguar. As minhas seringueiras estão todas cansadas, o senhor precisa ver.
Seringueiro que chora no tronco apanha mais pra não ser frouxo. (Sai à esquerda.)
BRABO
VETERANO
Olhe, seu Capataz, as minhas seringueiras...
Filho duma cadela...
CAPATAZ
BRABO
Cale-se! Eu não sei onde estou que não lhe queimo todo o costado, que não lhe
Será que... será que vão me açoitar?
esquento o lombo com o chicote. Não sabia que é proibido fazer o que fez? Não sabia que
VETERANO
cortando a seringueira lá em cima sai muito leite, mas depois a árvore fica estragada?
Não se avexe. Só entra no chicote quem procura fugir ou quem desfeiteia o
BRABO
“Coronel”. Cuidado, quando o “Coronel” lhe passar o carão aguente firme de boca
Sabia não...
trancada. Banque o carneirinho, se perder a calma está frito.
CAPATAZ
BRABO
Sabia sim, seu desavergonhado duma figa. Sabia e não está arrependido, não é?
Eu não devia era ter me arribado da minha terra. O sujeitinho que nos arrebanhou
BRABO
prometeu mundos e fundos, garantindo que num ano nós enriquecia na Amazônia. Puro
Não sabia não, porém estou arrependido, sim senhor.
iludimento. Bandido da peste! Eu que gosto tanto do meu sertão... o capim verdinho,
CAPATAZ
molhado, no inverno... o gado no curral e o requeijão... a sanfona roncando e o pagode
Sabe qual é a sua punição? Ninguém lhe disse o que acontece com fregueses que
animado... as crianças brincando...
fazem trapaça com o patrão?
VETERANO
VETERANO
Quantos filhos?
Pelo amor que o senhor tem na sua mãe, não conte nada pro “Coronel”. O meu
BRABO
companheiro é brabo. CAPATAZ
Por enquanto seis, mas vou dobrar a conta quando voltar. Não me demoro neste seringal não, estou danado de saudade da Severina.
É brabo, é brabo, e o que tem isso? Todo seringueiro novo é avisado logo que
VETERANO
chega. Não lhe avisaram? BRABO
Eu não tenho lembrança da Filomena... Era uma diaba tão pirracenta que não servia nem pra tirar cafuné. Acabou morrendo de enfezamento.
Avisaram, sim senhor... É que na primeira quinzena só entreguei quarenta quilos
BRABO
de borracha... O “coronel” me peitou falando que diminuía a minha ração se eu não melhorasse.... tive medo... porém, arrenego o que fiz, juro que não faço mais não...
É por isso que vosmecê vive aqui há tanto tempo. Não sente vontade de se arribar?
CAPATAZ
VETERANO
Experimente fazer, experimente. A lei aqui é chibata, errou, pagou, não tem
Sinto não. Pra quê? Não tenho ninguém por mim em parte nenhuma...
escapação. Em todo o alto Tapajós nenhum cabra ladino se livra da justiça do “Coronel”
BRABO
Polidoro. Ouviu? Ouviu???
Se acostumou nesta budega? Eu não me acostumo não.
BRABO
VETERANO
Ouvi, sim senhor.
Acostuma sim. Como eu me acostumei. Como todos tem de se acostumar.
191
192
BRABO
VETERANO
E a barriga? Vosmecê não enjoa essa comida que dão pra nós?
Vosmecê não tem tutano pra isso. Ninguém tem.
VETERANO
BRABO
De tanto comer conserva e carne seca parece que me viciei. Quando mato uma
O ódio transforma o cristão.
paca ou uma cotia o bucho até desanda. (Tira da bolsa de couro uma garrafa de cachaça, bebe; o outro imita-o.) Cartaz: O PROBLEMA DA MULHER, QUE SEMPRE EXISTE, QUANDO ELA FALTA O HOMEN NÃO RESISTE... BRABO Depois duma cachacinha como é gostoso um pedaço de rapadura...
VETERANO Não bote banca nem conte vantagem não, que na hora do pega pra capar vosmecê se ajoelha como os outros e beija o pé do “Coronel”. BRABO Não seja besta! Eu não beijo o rosto da Severina, pra não parecer que sou boboca, vou beijar o pé do “Coronel”?!
VETERANO
VETERANO
Com a falta de comida a gente se acostuma. Não se acostuma é com a falta de
Fale baixo que o Capataz pode estar tocaiando nós. Vamos trabalhar?
mulher-fêmea. BRABO Eu me acostumo. Só não me acostumo com a falta da minha Severina...
BRABO Hoje não trabalho mais não, vou me embebedar pra esquecer... esquecer o demônio desse Capataz...”coronel”... o chicote...
VETERANO
(Bebem mais, os dois.)
Não faz questão de mulher-fêmea? Então, bichinho, vosmecê não é macho, veste
VETERANO
calça por informação... BRABO Olhe lá, seu. Se me desrespeitar outra vez toro as suas tripas com a minha lambedeira. VETERANO Vosmecê foi quem disse que não faz questão de fêmea. Não tem o direito de ficar arreliado.
É cedo pra se amedrontar. Já lhe disse que só entra no chicote seringueiro que tenta fugir ou que faz como o “cospe brasa”. BRABO O que ele fez? Cuspia brasa? VETERANO Cuspia não. “Cospe brasa” era apelido, porque ele bebia tanto que se alguém passava por cima do cuspe dele ficava embriagado... Duma feita o “Coronel” foi mordido
BRABO
por uma cascavel e o “cospe brasa”, que estava perto, retalhou a cobra e chupou o sangue
Pois arrepita o insulto e lhe mando pros infernos. Homem da minha terra é
envenenado do patrão. Depois disso caiu no agrado dele e um dia o “Coronel” mandou o
homem de verdade. No sertão do Ceará se liquida qualquer atrevido por um deréis de mel
“cospe brasa” comprar burros pro seringal da ilha do Marajó. Porém, o “Coronel” não
coado.
apreciou a compra; todo burro que “cospe brasa” apresentava ele punha defeito. Tudo o VETERANO
que era defeito ele punha. Aí pareceu um burro com beiço partido; o “Coronel” reclamou e
É melhor esquecer esta desavença que filho do meu pai também não leva desaforo
o “cospe brasa”, que tinha tomado umas lapadas de cachaça com pólvora, falou assim: O
pra casa. E guarde a sua braveza pra quando tiver necessidade dela... pra quando o
senhor espezinha o burro porque ele tem o beiço partido? O senhor quer burro pra carga ou
“Coronel” arresolver fustigar o seu costado com chicote.
pra tocar flauta?...
BRABO
BRABO
Se o “Coronel” me bater eu me vingo.
Engraçado...
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VETERANO
VETERANO
O “Coronel” não teve dúvida: mandou o Capataz atar o “cospe brasa” no tronco e
No seringal não tem casamento de tinta e papel não. Nós leva a fêmea pro
sapecar vinte chicotadas. BRABO
“Coronel” abençoar os dois e pronto: está feito o casório. É difícil porque quase sempre nós não tem saldo e não tendo saldo nas contas do “Coronel” ele não dá permissão.
É... engraçado...
BRABO
VETERANO
Vosmecê tem saldo?
Eu não acho não. E se vosmecê provar um dia da chibata não vai achar nada
VETERANO
engraçado.
Parece... já nem sei...
BRABO
BRABO
(Absorto, olhos fechados.) Engraçado...
Não estava se gabando, dizendo que se acostumou com esta vida?
VETERANO
VETERANO
Engraçado o que, seu? Onde está pondo a ideia?
Acostumei.
BRABO
BRABO
Na Severina... engraçado, quando fecho os olhos vejo ela direitinho... com vestido
E por que não se casa então com a serigaita dessa Andreza?
novo, sem remendo.. até a fita que ela tinha no cabelo no dia que nós se conhecessemos eu
VETERANO
vejo... engraçado, ela está tão longe e tão pertinho...
Por causa do seu Mendes. Ele também anda esganado atrás dela. Porém quem vai
VETERANO Ih! seu Zé, tome jeito que por estes lados homem com juízo fora do lugar leva à
fazer o trato sou eu, logo que o marido da Andreza morrer. BRABO
breca. Se acautele, esqueça essa sua Severina. Tem mulher com fartura na Amazônia, o
Ela tem marido???
negócio é que elas vivem distante; quando os rios sobem alagando tudo e empatando o
VETERANO
trabalho da seringa o “Coronel” consente que nós desça do centro atrás delas. Aquele que tem expediente se arruma.
Tem e não tem: o coitado está com béri-béri, morre não morre, coisa de mais dois ou três meses.
BRABO
(O seringueiro-culto entra à direita.)
Vosmecê já se arrumou?
SERINGUEIRO-CULTO
VETERANO
Bom dia. Não almoçam?
Mais ou menos. Tenho uma em vista.
VETERANO
BRABO
É mesmo, vamos comer, está na hora da xepa.
É bonita?
BRABO
VETERANO
Eu não quero, não sinto prazer.
Boniteza por aqui é luxo... A Andreza é feiosa, porém é carnuda. O principal é ser
VETERANO
forte, ter sustança, não se entregar com facilidade pro impaludismo.
Vamos almoçar, seu. Comer é coisa de muito agrado.
BRABO
CULTO
Por que não se casa com ela?
Realmente, comer é uma das poucas coisas agradáveis que nos restam.
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VETERANO
CULTO
Eu só penso em comer e em mulher.
Apaixonado não é bem o certo. Digamos que eu estou... desesperado... Há dez
BRABO
meses que faço jejum de mulher, não aguento mais. Se vocês soubessem os pesadelos que
O meu pensar é pra Severina. Oh! saudade da peste!...
me assaltam de noite.
VETERANO
VETERANO
Homem, se é tão agarrado na sua Severina por que se despregou dela?
Que azar!...
BRABO
CULTO
A seca... a seca foi pavorosa, nunca vi tanta caveira de boi... nunca vi tanto urubu
Azar por quê? Sorte minha.
voando em riba de cearense moribundo... caminhamos duas semanas sem pouso certo...
VETERANO
tive que me apartar do meu povo e aventurar o destino...
A Andreza é feiosa pra xuxu...
CULTO
CULTO
Você tem razão. Não conheço o nordeste, mas posso imaginar o que seja o flagelo
Mas tem uma saúde de ferro.
da seca numa região árida, sem rios, sem lagos.
VETERANO
BRABO
Ela é burra que dói. O senhor, um homem tão letrado...
Como a secura maltratou as crianças... E a Severina, com os peitos mirrados, sem
CULTO
poder amamentar, tadinha... Não esqueço ela, aquilo não é mulher, é uma santa... CULTO Não fale em mulher que ando indócil para conquistar a única que mora próximo daqui, no estirão da jabota, a Andreza. VETERANO
Na minha situação uma cabocla rude, por mais ignorante que seja, vale mais do que todas as bibliotecas de Paris. VETERANO O senhor está certo, seu Mendes, a falta de mulher é horrível. Eu me amigava até com uma velha aleijada. Tinha pensado na Andreza... Ela já lhe deu o sim?
Gosta mesmo dela, seu Mendes?
CULTO
CULTO
Não, porque existe mais alguém interessado... (Entram à direita os seringueiros
Que jeito, meu caro? A Andreza, com o marido quase morto, é a única mulher
Valente, Doente, Indeciso e Covarde.)
disponível nesta brenha e eu não posso me afastar do meio do mato: a polícia do Acre
Cartaz: A GRANDE VONTADE DE FUGIR E O MEDO DE NÃO CONSEGUIR...
fareja o meu rastro e com a polícia do Acre não se brinca.
SERINGUEIRO-VALENTE
VETERANO
Ei, estão farreando no serviço?
Pra obrigar um homem de estudo como o senhor a se socar nestes cafundós só
CULTO
mesmo uma polícia espigaitada. CULTO
Um pouco de cachaça ajuda a suportar o peso da miséria. (Oferece bebida, todos aceitam menos o Seringueiro-Doente.)
Desgraçadamente fui vítima de uma cilada. Mas vamos mudar de assunto...
SERINGUEIRO-DOENTE
VETERANO
Obrigado, se tocar nisso fico jururu, o fígado piora, incha, a boca amarga que nem
Quer dizer que o senhor, como não pode escapulir do seringal, está apaixonado pela Andreza? Eu...
folha de araracanga, é uma semana inteirinha que passo amunhecado.
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VETERANO
VETERANO
Beba uma golada, seu. Um tico de pinga, apenas um tiquinho, não destrói a saúde
Durante mais de dez anos que tenho neste seringal nunca vi ninguém ter o tupete
não.
de atirar no “Coronel” ou no Capataz. Vi não. DOENTE
VALENTE
A minha destrói. Sou um infeliz condenado que só vive porque ainda não
Pois eu sou três vezes macho pra matar o “Coronel” e todos os seus lambaios. Na
morreu... VALENTE
Paraíba já fiz um cangaceiro acomodar nos bofes palmo e meio da minha peixeira. Furei o cão até ele esticar as canelas e não tenho um farelo de remorso.
Nós vem discutir um assunto melindroso: fugir.
INDECISO
VETERANO
Se nós tivesse a certeza de que tudo ia dar certinho...
Fugir do seringal?
VALENTE
VALENTE
Chega de conversa fiada. Quem está disposto? Quem foge comigo?
Sim.
BRABO
SERINGUEIRO-INDECISO
Homem, pra tornar a abraçar a minha Severina eu me meto em qualquer
Eu não sei se fujo. Será que vale a pena?..
enrascada.
SERINGUEIRO-COVARDE
DOENTE
Só em maginar o perigo, sinto calafrio no espinhaço...
Eu vou. Sei que não duro mesmo, é preferível morrer na esperança...
VALENTE
INDECISO
Vosmecês preferem apodrecer nesta pinoia?
Eu... amanhã, conforme for, arresolvo.
COVARDE
CULTO
É que... se nos pegarem no momento da fugida... Deus me livre!
Lamento não poder acompanhar vocês. Preciso ficar escondido nesta selva alguns
VALENTE
anos. VETERANO
Se alguém quiser nos prender pode deixar que eu sangro o jagunço.
Eu também não vou. Não tenho família, ninguém me conhece lá fora, já estou
INDECISO Antes de arresolver é preciso pensar muito. O tiro pode sair pela culatra...
aqui há tanto tempo, já sofri tanto que a liberdade pra mim não tem mais serventia...
CULTO
COVARDE
Preparem cuidadosamente um plano de fuga.
Eu não vou. Vou o quê?
VALENTE
VALENTE
Por mim, nós começava fuzilando o “Coronel” e o Capataz.
Vosmecê é um leso.
COVARDE
COVARDE Leso? Sou precavido, isto sim. Leso é vosmecê que está tentando uma coisa
Égua! Eu é que não tomo parte em tamanha doidice. INDECISO
impossível. Magina que é fácil fugir? VALENTE
Será que dava certo?...
Nós rouba umas das canoas. Tenho uma lima pra serrar a corrente que prende elas.
199
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INDECISO
INDECISO
E nós arresiste remar até Santarém? Pode ser, porém acho difícil. Não sei não,
Será que ele ouviu?...
estou meio escabreado...
COVARDE
COVARDE
Eu não disse que a coisa ia feder?...
E eu apavorado...
DOENTE
VALENTE
Chí!... Já começou o enjoo no estômago e o tremor nas pernas...
Vosmecê é um bestalhão, eu já disse.
BRABO
COVARDE
Este preto é fiscal?
Sou, nasci assim, não tenho culpa.
VETERANO
INDECISO Se nós pudesse adivinhar o resultado... Se tivesse a garantia de engabelar a
É não. É mateiro e faz outros serviços pro “Coronel”. Mente um bocado, porém é uma boa alma, este Guaribão.
vigilância do “Coronel”... O diabo é que pode dar certo e pode dar errado... Meu pai
VALENTE
sempre dizia que macaco velho não mete a mão em combuca...
(Para Guaribão.) Vosmecê não responde?
VALENTE
GUARIBÃO
Pois eu não sou macaco, sou um Homem. E por isso vou fugir, nem que seje
Não carece te consumir, meu branco. Eu não tava bicorando tu.
sozinho.
VALENTE BRABO
Filho duma égua, se vosmecê fuxicar de nós...
Estou do lado de vosmecê. Quero fugir. São dois homens.
CULTO
DOENTE Vosmecês contem comigo. Eu fujo também, apesar de estar com o pé na sepultura. São dois homens e um defunto... (Guaribão entra à esquerda em tempo de ouvir as últimas falas; entrega um envelope ao Seringueiro-Indeciso e dirige-se aos outros seringueiros humildemente.) Cartaz: AGORA PRESTEM ATENÇÃO QUE CHEGOU O GUARIBÃO E TALVEZ A SALVAÇÃO...
Calma, calma, dessa maneira a situação se agrava. Guaribão, você percebeu o assunto que nós tratávamos? VETERANO Não percebeu, não é? GUARIBÃO É. VALENTE
GUARIBÃO
É o quê? Vosmecê ouviu ou não ouviu a nossa combinação?
Carta pelo navio do mês só veio esta.
GUARIBÃO
VALENTE
Não te espoleta, filho. Guaribão é amigo de todo mundo.
Vosmecê ouviu a nossa conversa?
VALENTE
GUARIBÃO Não sou abelhudo, filho.
Eu perco a paciência e amasso o miolo deste peste. Vosmecê ouviu ou não ouviu???
VALENTE
CULTO
Ouviu ou não ouviu?
Claro que ele ouviu. Mas não irá dizer nada ao “Coronel”, não Guaribão?
201
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GUARIBÃO
VALENTE
É, filho, não bispei quase nadinha, sou meio surdo.
E vosmecê ainda se põe nesse foge-não-foge, quero-não-quero, como moça
CULTO
donzela com namorado?
Não, Guaribão, surdo você não é que eu sei. Acontece que não irá nos denunciar
INDECISO
porque é nosso amigo como assegurou, não é mesmo?
Agora eu acho que vou, sei não...
GUARIBÃO Não bato com a língua nos dentes não, filho, também já fui escravo...
VALENTE (Referindo-se ao Guaribão.) Tomara que este São Benedito à paisano não estrague a festa.
CULTO
CULTO
Justamente. Você conheceu a senzala, compreende a situação. Aliás, você tem
Ele não fará isso. Não é, Guaribão?
jeito de quem enfrentou e venceu a crueldade de algum senhor de engenho. Sou capaz de
GUARIBÃO
apostar que você fez qualquer proeza quando escravo e salvou os seus companheiros do
Não faço intriga não, filho, juro pela bênção da minha mãe.
sofrimento.
VETERANO
GUARIBÃO
Ele não tem mãe, até jurando mente...
Ah!, meu branco, se o Guaribão te contar... Um dia eu fiz uma proeza de arrepiar
GUARIBÃO
o cabelo...
Não é mentira não, filho, juramento é coisa sagrada.
VETERANO
DOENTE
(Para o Seringueiro-Valente.) Vosmecês estão salvos, o fraco do Guaribão é
Se vosmecê afiança que não bota o “coronel” atrás de nós dê uma prova.
mentira. Deixe ele contar as lorotas dele, finja que acredita e pronto: ganhou um amigo pro
GUARIBÃO
que der e vier.
Que prova, filho?
GUARIBÃO
DOENTE
Um dia agarrei uma faca, filho, amolei numa pedra, mostrei pra toda a negralhada da senzala e gritei: “Independência ou morte!”...
Empreste pra nós a chave do cadeado da corrente que prende as canoas. Nós precisa de uma canoa pra fugir.
CULTO
GUARIBÃO
(Sem poder controlar o riso.) Se não me falha a memória eu conheço esta frase...
Não tenho, filho, que chave?
GUARIBÃO
DOENTE
Então, filho, já te contaram essa minha proeza?
Tem, sim senhor. Vosmecê é quem guarda as canoas na corrente, semana passada
CULTO
eu vi, quando o calor da febre, à boquinha da noite, me obrigou a ir me banhar na beira do
Talvez...
rio.
GUARIBÃO
GUARIBÃO
Olha, tem outra maior daqui do seringal, quando eu taboqueei uma onça e segurei
O Guaribão não carrega a chave com ele, filho.
ela sozinho... INDECISO (Lagrimoso, após ler a carta entregue pelo Guaribão.) Minha Nossa Senhora... Meu pai ficou cego e minha mãe tuberculosa.
VETERANO Eu conheço este preto como a palma da minha mão. Dou o meu pescoço a cutelo se ele não tiver a chave no bolso.
203
204
VALENTE
“CORONEL”
Precisamos dela. Possa ser que a lima não serre bem, a corrente é grossa.
Corja de mal agradecidos. Eu faço a caridade de contratar vocês pra não morrerem
BRABO
de fome no nordeste e é este o pagamento que querem me dar: fugir. Cambada de patifes!
Cadê a chave do cadeado da corrente, seu Guaribão?
CULTO
DOENTE
“Coronel”, me dê a oportunidade de um esclarecimento...
Cadê?
“CORONEL”
CULTO
Não pedi a sua opinião, a conversa ainda não chegou pela cozinha. Quem é mais
Não adianta negar, Guaribão. Dê a chave.
que ia fugir?
COVARDE
COVARDE
Guaribão, vosmecê dá a chave se quiser, eu não tenho nada com isso.
Eu não tomei parte nisso, “Coronel”, quero ser um cego da gota serena se tomei.
VALENTE
INDECISO
Vamos com a chave pra cá, seu pilantra, antes que nós lhe dê uma surra e tome
Eu jamais fugirei “coronel”. Será que o senhor não bota fé na minha pessoa?
ela.
DOENTE GUARIBÃO
Ai! que dor na testa, que tonteira, vou ter uma desmaiada...
(Ajoelha-se, aflito.) Minha Santa Bárbara valei-me...
VETERANO
(Entra à esquerda o “Coronel” Polidoro ladeado pelo capataz e pelo
O senhor sabe de sobra como eu sou, “Coronel”. Estou satisfeito no trabalho da
Seringueiro-Delator.)
borracha, me acostumei, não fujo nem pra ir pro céu.
“CORONEL”
CULTO
Que brincadeira é esta? Não minta, Guaribão. Eles estavam lhe forçando a fazer
Eu, perseguido pela polícia, mesmo que desejasse não poderia.
palhaçada?
BRABO
GUARIBÃO
Eu cheguei não faz nem duas quinzenas...
Não, padrinho, juro pela luz divina. Eu é que tava ensinando eles como se agarra
“CORONEL”
onça...
Agora, como viram que a porca vai torcer o rabo, são todos uns santinhos do pau SERINGUERO-DELATOR É aquele. (Aponta o Seringueiro-Valente.) “CORONEL”
oco. DELATOR (Insistindo em relação ao Seringueiro-Valente.) Os outros eu não sei, mas este
É você o chefe dos que desejam fugir?
queria fugir. Ontem ele me convidou, exibindo uma lima pra serrar a corrente que prende
VALENTE
as canoas. (O “Coronel” revista o Seringueiro-Valente, encontra a lima.)
Não... eu...
“CORONEL”
“CORONEL”
Ah! você é o cabeça, hein? Pois vai se arrepender de ter nascido.
Quem são os seus parceiros?
CAPATAZ
VALENTE
Levo ele pro tronco, patrão?
É invenção dele, “Coronel”. Nós não ia fugir não.
205
206
“CORONEL” Amarra o safadão ali, junto daquela sumaumeira. (O Capataz segura o
Nova expectativa; reaparece o Seringueiro-Valente, ensanguentado e trôpego; repete-se o estalar do chicote complementado pelos gemidos agudos do Seringueiro-Culto.
seringueiro-Valente e o arrasta para fora de cena, à esquerda; há uma pausa; ouve-se o
GUARIBÃO
estalo das chicotadas e gemidos que vão aumentando de intensidade até se transformarem
Padrinho, pelo amor que o senhor tem na sua esposa...
em gritos lancinantes; Guaribão e os seringueiros, à exceção do Delator, contraem
“CORONEL”
sucessivamente a face, penalizados.) GUARIBÃO
(Para o Seringueiro-Valente.) Agora vai desembuchar: quem é que ia fugir com você?
Padrinho, chega... Ele não foge...
VALENTE
“CORONEL”
“Coronel”... compaixão... nós...
(Alto, para o Capataz.) Pare!
“CORONEL”
VOZ DO CAPATAZ
Quer que eu lhe arrebente com outras chicotadas? Seringueiro não foge sozinho;
O molongó está pedindo pro senhor perdoar, patrão.
quem é que ia fugir com você? Diga ou lhe quebro o pescoço.
“CORONEL”
VALENTE
Está pedindo perdão, é? Pois castigo é castigo. Seringueiro assanhado que na hora
Era... era...
da peia se acovarda apanha mais pra não ser frouxo. Sapeque outras chibatadas.
DOENTE
CULTO
Era eu! Era só nós dois que ia. Ele e eu.
“Coronel”, por gentileza, ouça a minha ponderação. Isto é uma... desumanidade...
“CORONEL”
“CORONEL”
Você, seu pamonha?
Desumanidade é o que você praticou no Acre, seu patifão. Feche a latrina desta
DOENTE
boca e não dê mais um pio.
Pamonha é a sua mãe.
CULTO
“CORONEL”
Não é direito, “Coronel”, o que o senhor está...
O quê???
“CORONEL”
DOENTE
Ah! você quer se salientar, é? (Empurra-o para fora na mesma direção.)
Pamonha é a sua mãe!!!
BRABO
VETERANO
O homem está com a moléstia..
Endoideceu...
“CORONEL”
INDECISO
(Para o Capataz, que ainda se encontra ausente de cena.) Desamarre o fujão e
Será que a doença dele atacou o juízo?...
lasque o chicote no lombo deste acreano assassino.
“CORONEL”
VOZ DO CAPATAZ
Eu ouvi direito???
Quantas chicotadas?
DOENTE
“CORONEL” Por enquanto, seis.
Ouviu. Pamonha é sua mãe, seu Satanás. (O Seringueiro-Doente avança alucinado para agredir o “Coronel”; este aplica-lhe violento pontapé, derrubando-o e dirige-se ao Seringueiro-Delator.)
207
208
“CORONEL”
“CORONEL”
Vá buscar uma enxada. Depressa.
Basta de bajulação. Como preciso no barracão de um caixeiro, vou aproveitar a
DELATOR
sua sapiência. Aceita o emprego?
É pra já. (Sai à direita.)
CULTO
CAPATAZ
Aceito, sim, com prazer. Entendo de contabilidade, posso até auxiliar na escrita do
(Entrando em cena com o Seringueiro-Culto.) Acabou, patrão?
barracão.
“CORONEL”
“CORONEL”
Não, o melhor da festa ainda não começou. (Para o Seringueiro-Culto.) Gostou?
Apareça lá amanhã.
É assim que amanso quem me falta com o respeito.
CULTO
CULTO
Obrigado, o senhor é muito generoso.
O senhor me interpretou mal, “Coronel”. Nem de leve tive a intenção de
DELATOR
desrespeitá-lo.
(Retornando com a enxada.) Pronto, “Coronel”.
“CORONEL”
“CORONEL”
Ah! não teve?
(Para o Seringueiro-Doente a quem entrega a enxada.) Implora perdão?
CULTO
DOENTE
Espero que o senhor me releve a ousadia, se por acaso se sentiu ofendido. Espero
Não!
que me perdoe...
“CORONEL”
“CORONEL”
Quem é pamonha?
Está com medo que eu mande avisar à polícia que você se escondeu aqui, não é?
DOENTE
CULTO
A sua mãe. A mãe, a mulher, a sua avó torta e toda a parentela.
Seria o meu fim, “Coronel”...
“CORONEL”
“CORONEL”
Sabe que vai morrer, miserável?
Pois eu vou mandar avisar. Você é inteligente e metido a corajoso, detesto gente
DOENTE
dessa qualidade. CULTO
Sei. Uma semana mais, uma semana menos, não faz diferença... “CORONEL”
Eu me expressei daquele modo porque fiquei nervoso, “Coronel”, burrice minha,
Caminha com a enxada, desgraçado; vai cavar a tua sepultura. (Silêncio
isto prova que não sou inteligente. Também não sou corajoso, pelo contrário, sou muito
prolongado; O Seringueiro-Doente fita cada um dos companheiros, especialmente o
tímido, tanto assim que mais uma vez imploro perdão ao senhor...
Seringueiro-Delator; encara o “Coronel” e o Capataz com altivez; empurra a enxada,
“CORONEL”
desloca-se para o fundo da cena e de costas gesticula como se estivesse abrindo uma
Implora, não é? E só? ... Como é que se pede perdão neste seringal?
cova; enquanto dura essa operação o “Coronel” passeia de um lado parao outro, o
(Há uma pausa significativa.)
Capataz prepara o revólver, os seringueiros entreolham-se desolados e Guaribão parece
CULTO
rezar; o Seringueiro-doente termina a tarefa e larga a enxada, mantendo-se de costas; o
Eu me sujeito... (Olha encabulado os outros seringueiros que baixam a fronte
Capataz aponta a arma; Guaribão, em gesto mudo e patético pede clemência ao
constrangidos; hesita; a seguir beija os pés do “Coronel”.)
209
210
“Coronel”; este faz um sinal para o Capataz que, obedecendo, dispara o tiro; o
COVARDE
Seringueiro-doente dobra-se lentamente; outro tiro; ele tomba.)
Puxa, ainda estou entalado.
CAPATAZ
CULTO
Acertei na nuca.
De revolta?
“CORONEL”
COVARDE
Aprenderam a lição?
De medo...
COVARDE
CULTO
Sim senhor... INDECISO
Eu, sinceramente, lastimo tudo o que aconteceu. Lastimo, sobretudo, porque minha posição delicada me levou a uma atitude indigna.
Sim senhor...
VALENTE
VETERANO
Atitude indígna foi a deste Judas.
Sim senhor...
VETERANO
CULTO
A falta de mulher transtorna o vivente...
Aprendemos...
VALENTE
BRABO
Nós devia agora era enforcar este bandido.
Sim senhor...
COVARDE
VALENTE
Vôte! Quando o “Coronel” descobrisse nos esfolava vivo.
Sim senhor...
INDECISO
“CORONEL”
Será que um amaldiçoado como este não morre leproso?...
Pois então façam bom proveito.
DELATOR
(O “Coronel” sai à esquerda junto com o Capataz, Guaribão desaparece à
Se vosmecês continuam a me xingar eu me queixo pro “Coronel”.
direita, de onde volta trazendo dois pedaços de pau e um curto cipó, com o que improvisa
VALENTE
uma cruz; os seringueiros acercam-se do colega Delator.)
Suma da minha frente, seu imundo!
VALENTE
CULTO
Traidor nojento!
Controle-se, senão é pior.
BRABO
VETERANO
Vosmecê fede de podre.
Vá embora, seu. (O Seringueiro-Delator retira-se à esquerda; Guaribão enxuga
INDECISO
os olhos úmidos; olha para onde está o morto, olha para a cruz.)
Por que vosmecê fez isto? Será que foi por dinheiro...?
BRABO
VETERANO
Pelo que vi, este preto velho é a única pessoa que presta neste seringal.
Foi não. Foi por causa de mulher. Dou o meu braço a torcer se ele não fez essa
VALENTE
sujeira pra angariar as boas graças do “Coronel” e conseguir uma fêmea. Este corno é mais mulherengo do que eu.
Vosmecê ainda está disposto a fugir?
211
212
SEGUNDO ATO
BRABO O “Coronel” não carregou a lima que vosmecê tinha pra serrar a corrente das canoas? (Guaribão tira do bolso uma chave e a entrega ao Seringueiro-Valente.)
Cenário: Barracão do seringal.
GUARIBÃO – Toma, filho, a chave do cadeado da corrente que prende as canoas. Fujam. Deus guia vocês. Deus não gosta de escravidão.
À esquerda, pequeno escritório com escrivaninha e duas ou três cadeiras, cercado por um gradil. À direita, compartimento maior, também delimitado por gradil, onde se espalham muitas garrafas de cachaça, algumas de champanha, fardos de fazenda, latas de conserva, carne seca, paneiros de farinha, sacos de feijão, terçados, lamparinas etc. Ao fundo portas. Cartaz: A FUGA FINALMENTE REALIZADA FOI PIOR QUE A PLANEJADA... Em cena Guaribão e o Seringueiro-Culto, este no seu posto de caixeiro do barracão, ocupando-se em arrumar os mantimentos. GUARIBÃO Pois é, coragem não é piolho, filho, que todo mundo tem... Quando eu, sem mais aquela, pulei no igarapé, todos ficaram abismados, vermelhos que nem pena de ararapiranga, não acreditavam que o Guaribão ia fazer mais uma braveza. Todo mundo se apinhou na beira do igarapé, num aperta-cunha medonho. Ninguém se mexia, ninguém dizia uma palavra, o quiriri era completo; e eu entrando cada vez mais no igarapé. Tava já no meio, com água pelo queixo, quando escutei um fragoído; levantei umas canaranas e vi o jacaré de bubuia: um pajureba, comprido que só ele. Fui me chegando devagarinho, devagarinho e tibum! Me atraquei no bruto; o bichão deu uma rebanada, mergulhou, e o Guaribão ali, firme, escanchado nele. Tu sabe, filho, que jacaré no fundo não abre a boca pra não se afogar. Pois é, quando nós tava debaixo d’água eu enrolei a corda na boca fechada dele, nas patas, e quando nós veio à tona o serviço tava feito. CULTO Isto é o que se chama heroísmo, Guaribão, você é um HERÓI... Pela descrição verifica-se que com o jacaré a coisa foi mais difícil do que com a onça... GUARIBÃO Olha, filho, pra falar a verdade verdadeira não foi não, foi fácil. Difícil foi eu me atracar com um porco espinho do tamanho de um boi... (O Seringueiro-Valente entra; Guaribão, ao deparar com ele, interrompe a narrativa com ares de estranheza.) VALENTE Bom dia. Eu vim...
213
214
VALENTE CULTO
Não perderam tempo; fugiram esta madrugada.
Não fugiram?
GUARIBÃO
VALENTE
Eles não eram mais de dois, não filho?
Nós desistiu.
VALENTE
GUARIBÃO
Um punhado... de... zoito...
Com a faca e o queijão na mão..
CULTO
CULTO
Quantos? Oito?
Mas por quê? Não tinham a chave do cadeado?
GUARIBÃO
VALENTE Nós não teve a coragem.
Minha Santa Bárbara! Quando o padrinho souber, filho, que o Guaribão deu a chave, arranca a minha pele.
GUARIBÃO
VALENTE
É o que eu digo, filho, coragem não é piolho...
Ninguém diz nada não.
CULTO
CULTO
Você estava tão decidido? E o outro, não queria tanto rever a Severina dele?
Você alega que perdeu a chave, Guaribão.
VALENTE
GUARIBÃO
É, porém nós pensemos, pensemos.... e nos amedrontemos.
É?
GUARIBÃO
CULTO
Mais amedrontado tava o Guaribão, filho; se o padrinho descobre que dei a chave
Exatamente. Pôs a chave no bolso e ela desapareceu.
pra ti...
GUARIBÃO CULTO
É?...
Vocês me decepcionaram. Francamente.
CULTO
GUARIBÃO
Claro.
Dá cá a chave, filho.
GUARIBÃO
VALENTE
E o padrinho acredita?
Não tenho não. Emprestei pro pessoal do Laguinho.
CULTO
GUARIBÃO
Ele estima muito você, não estima? Geralmente a gente acredita em quem estima.
Pra que, filho?
GUARIBÃO
VALENTE
É..
Pra eles fazerem o que nós não fez.
CULTO
GUARIBÃO
Você enfeita a coisa, como naquela estória do jacaré... Por via das dúvidas faz um
Fugir?
buraco no bolso da calça.
CULTO
GUARIBÃO
Ora viva! E se eles se foram? A turma do Laguinho?
Pra que, filho?
215
CULTO Para o “Coronel” ver por onde a chave caiu. GUARIBÃO É, filho, tu tem razão, deixa eu furar o bolso... (Ouve-se a voz estridente do “Coronel” Polidoro que se aproxima falando com alguém; pânico; os três se dispersam,
216
Cartaz – COMO ERA EXPLORADO O POBRE SERINGUEIRO QUE SÓ GANHAVA RAÇÃO, NÃO VIA DINHEIRO... COVARDE Bom dia, “Coronel”. Já é hora de aviamento? (O “Coronel” não responde a saudação; olha o seringueiro, escreve algo em uma papeleta e entrega a ele.)
atarantados; Guaribão começa a limpar o escritório, excitado, o Seringueiro-Culto
“CORONEL”
arruma desastradamente alguns mantimentos e o Seringueiro-Valente corre ao fundo da
Pode apanhar a sua ração.
cena, escondendo-se atrás de uma porta; entram o “Coronel” e o Guarda-livros, dirigem-
COVARDE
se ao escritório.)
“Coronel”, o senhor pode botar na minha nota umas pílulas de quinino? Ainda
“CORONEL” Comigo é no chicote ou na bala. Anteontem o pau cantou e o resultado é que os fujões se acachaparam.
tenho um saldozinho, não tenho?... “CORONEL” Tem, mas ultimamente sua produção diminuiu muito. O que vale é que é
GUARDA-LIVROS
obediente, se não fosse eu fazia você roer uma pupunha. (O “Coronel” reescreve a
Fujões? Seringueiros? Quantos fugiram?
papeleta e a devolve ao Seringueiro-Covarde; este desloca-se para o outro lado e entrega
“CORONEL”
a papeleta ao Seringueiro-Culto que, mediante a apresentação da mesma, passa a servi-lo
Fugiram uma joça! Estavam maquinando isto, mas eu baixei a ripa e duvido que
de mantimentos; o Seringueiro-Covarde acomoda os volumes dentro de um saco; o mesmo
tenham a audácia de tentar fugir. (O Seringueiro-Valente põe o rosto fora do esconderijo,
jogo será executado pelos outros seringueiros.)
olha para o Guaribão e para o Seringueiro-Culto; a fisionomia dos três exprime maior
BRABO
angústia à medida que o “Coronel” enfatiza não ter havido fuga.)
Bom dia, ”Coronel”.
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Faço uma ideia do castigo que o senhor infligiu a eles.
Bom dia, não, mau dia pra você. Mau, ouviu?
“CORONEL”
BRABO
É preciso energia, seu Moreira. Comigo eles se estrumbicam. Duvido que fujam.
Sim senhor...
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
A época não é para facilitar, depois quero conversar com o senhor sobre a situação
Não tem um cuí de vergonha na cara?
da borracha. Se deixar que os seringueiros fujam...
BRABO
“CORONEL”
Tenho, sim senhor, sou um homem de sentimento.
Deixo uma ova! Daqui nenhum espertalhão escapole. Dou um doce. (Entram os
“CORONEL”
seringueiros Covarde, Brabo, Veterano e Indeciso; aproveitando a oportunidade o Seringueiro-Valente sai do esconderijo e mistura-se aos outros; o “Coronel” e o Guarda-
É um preguiçoso e safado, isto sim... Por que feriu a seringueira perto dos galhos?...
Livros permanecem no escritório, sentados frente à escrivaninha, consultando papelada;
BRABO
os seringueiros, em fila, vão até ali com naturalidade, como se estivessem habituados
Eu... quer dizer... eu...
àquele ritual.)
217
218
“CORONEL”
VETERANO
Da próxima vez que fizer “mutá” vai pro tronco, por hoje a punição ainda é
Talvez seje a falta de mulher... Tenho uma em vista ... Se o “Coronel” desse
pequena.
permissão..
BRABO
“CORONEL”
Punição, “Coronel”?
A borracha que produziu este ano não paga a boia que comeu e ainda vem me
“CORONEL” Sim, e não adianta estrebuchar. Seringueiro que desobedece às ordens no trabalho perde toda a produção da quinzena e só rebece a metade da ração. (Entrega a papeleta.)
falar de mulher? Se enxergue! (Entrega a papeleta.) INDECISO Bom dia, “Coronel”... Será que eu posso ter um particular com o senhor?...
VALENTE
“CORONEL”
Bom dia...
O que deseja?
“CORONEL”
INDECISO
Tenho uma novidade pra você. É valentão, não é? VALENTE
Recebi uma carta. Notícias malfadadas. Meu pai cegou e minha mãe ficou tuberculosa...
Não senhor...
“CORONEL”
“CORONEL”
E eu que é que tenho com isso?
É, sim. E por isso vai trabalhar nas “estradas” do Laguinho.
INDECISO
VALENTE
Não suporto mais a tristura, “Coronel”. Até chorar eu já chorei. Será que é feio
Onde, “Coronel”?...
homem chorar?.. Quando acordei de manhãzinha e alembrei da minha mãe me deu uma
“CORONEL”
apertura na guela e a água começou a pingar do olho...
La-gui-nho.
“CORONEL”
VALENTE
De que mês é a carta?
“Coronel”, eu... tenha piedade. Não há seringueiro que demore ali; ainda não faz
INDECISO
uma semana que os índios mataram o Juventino... “CORONEL” Pois quando os índios aparecerem você convida eles pra fugir... (Entrega a papeleta.)
De setembro do ano passado. Nós recebe as cartas com um atraso tão grande... “CORONEL” Então sua mãe já morreu. A tuberculose é terrível, o máximo que um tuberculoso dura é seis meses. Sua mãe já virou bagaço, o melhor que você faz é rezar.
VETERANO
INDECISO
Bom dia, “Coronel”.
Eu agradeço ao senhor, “Coronel”.
“CORONEL”
“CORONEL”
Você está indo de mal a pior, hein?
Não tem de quê.
VETERANO
INDECISO
Bem que eu puxo pelas árvores, “coronel”. Elas foram secando....
Porém eu queria o meu saldo pra ir embora... Será que o senhor?..
“CORONEL”
“CORONEL”
Esta desculpa é velha, alguma coisa há com você.
Quanto tempo faz que chegou no seringal?
219
220
INDECISO
INDECISO
Quatro anos e um pedacinho.
Isto quer dizer o quê?
“CORONEL”
“CORONEL”
Não tem cinco anos? Está difícil, difícil...
Quer dizer que você ainda me deve quase um conto de réis.
INDECISO
INDECISO
Eu preciso ir, “Coronel”. Uma coisa me diz que minha mãezinha me chama pra se
Eu não tenho saldo?...
despedir antes de morrer. Ela só tem eu de filho...
“CORONEL”
“CORONEL”
Não, não tem. E daqui ninguém sai devendo.
(Coloca uma pasta nas mãos do Guarda-Livros.) Seu Moreira, leia a conta-
INDECISO
corrente dele. GUARDA-LIVROS
Será que o senhor não me adiantava trezentos mil réis? Eu ia ver a minha mãe e depois vinha trabalhar, pagava o senhor.
O nome todo?
“CORONEL”
INDECISO
Não empresto um tostão. Pensa que sou besta?
Antônio... Antônio das Mercês.
INDECISO
“CORONEL”
Meu “Coronel”, o senhor tenha paciência, porém eu não posso desprezar a minha
Se eu lhe solto com menos de cinco anos é um péssimo exemplo pros outros.
mãe tuberculosa...
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Antônio... das Mercês. Diversos: uma passagem de terceira classe... uma
O quê??? Está se rebelando contra mim? Está ameaçando fugir? Pois vai
machadinha... duas meias arroubas de tabaco... garrafas de cachaça.. xarope e pílulas para
experimentar uma dúzia de chicotadas.
maleita... querosene... latas de conservas... calça e camisa...um boião e uma bacia para
INDECISO
seringa...caixas de fósforos e outras miudezas... Preço total: um conto, oitiocentos e
Eu não pensei não em fugir, “Coronel”. Não sou maluco.
quarenta e seis mil réis. Produção: borracha fina, cinco contos de réis... sernamby,
“CORONEL”
novecentos mil réis... Total da produção nos quatro anos de serviço: cinco contos e
Não pensou mesmo?
novecentos mil réis. Descontos: um conto, oitocentos e quarenta seis mil réis de passagem,
INDECISO
compras etc., mais quatro contos e oitocentos mil réis de ração para comer durante
Pensei não.
quarenta e oito meses, à razão de cem mil réis por mês...
“CORONEL
INDECISO
Então dispenso as chicotadas.
Não estou entendendo essas contas não. Será que o senhor não podia tirar os nove
INDECISO
fora?...
Obrigado. GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Até o mês passado o movimento geral era o seguinte. Receita: cinco contos e
Em todo caso, pra não pensar, recebe a terça parte da ração. (O “Coronel”
novecentos mil réis. Despesa: seis contos, seiscentos e quarenta e seis mil réis. Débito:
entrega a papeleta e o Seringueiro-Indeciso, cabisbaixo, vai juntar--se aos outros; o
setecentos e quarenta mil réis.
“Coronel” o segue atravessando a cena para inspecionar os aviamentos.)
221
222
CULTO
GUARIBÃO
Estou pegando a prática, “Coronel”.
Gostoso, chega faz coceirinha no céu da boca. (O “Coronel” esvazia o copo e
“CORONEL”
manda abrir outra garrafa.)
Levem a ração, comam, mas trabalhem, seus malandros. Tirem da caixola a mania
“CORONEL”
de fugir e façam como a turma do Laguinho: produzam! (Ao ouvir a referência ao pessoal do Laguinho Guaribão estremece.) “CORONEL” Está com frio, Guaribão? GUARIBÃO
Viva a borracha da Amazônia, que há de transformar o Brasil no país mais rico do mundo! GUARDA-LIVROS É sobre este assunto, “Coronel”, que eu desejo conversar com o senhor. A borracha, a crise...
Não, padrinho...
“CORONEL”
“CORONEL”
Crise coisa nenhuma, seu Moreira. Isto são boatos da Capital.
Que tremedeira é esta?
GUARDA-LIVROS
GUARIBÃO
Não, não, a crise é um fato consumado. A cotação da borracha, o preço que as
É... a falta duma cachacinha... ainda não matei o bicho hoje...
nações compradoras estão pagando por ela continua baixando cada vez mais. Quero
“CORONEL”
informar o senhor da realidade porque nos últimos meses fechei o balanço de sete
(Ao Seringueiro-Culto.)
seringais: cinco estão praticamente falidos. O senhor sabe que em 1876 um inglês chamado
Dê cachaça a ele. (Guaribão é servido, engole um trago, joga fora um pouco da
Henry Wickham furtou setenta mil sementes das nossas seringueiras, não sabe?
bebida como que oferecendo a uma entidade invisível.)
“CORONEL”
GUARIBÃO
Foi? Como?
Saravá!...
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Ele empaneirou as sementes e embarcou em um navio que era brasileiro. Quando
Toma alguma coisa, seu Moreira? Em casa tenho champanha e vinho.
o tal navio atracou no porto de Belém, para os despachos de carga, ele visitou a Alfândega
GUARDA-LIVROS
e disse que os paneiros continham espécimens vegetais destinadas ao Jardim Botânico da
Obrigado. Mais tarde aceitarei, no almoço.
Rainha Vitória.
“CORONEL”
“CORONEL”
Comece logo, homem, você ainda não triscou em nada. Vamos festejar a sua
Mas o que tem isso?
chegada que demorou tanto. Cartaz: A CRISE DA BORRACHA QUE ABALOU A REGIÃO NESTA CENA LIGEIRA TEM A EXPLICAÇÃO...
GUARDA-LIVROS O que tem é que em 1903, há quase vinte anos, já existiram na Ásia vinte e três mil e quatrocentos acres de terra cultivados com as sementes das nossas seringueiras. E
“CORONEL”
agora essa borracha do Oriente está fazendo concorrência com a borracha da Amazônia,
Um brinde à sua saúde, seu Moreira.
acarretando a sua desvalorização no mercado internacional.
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
E a prosperidade deste seringal. (Bebem)
Nós ganhamos qualquer concorrência. (Bebe mais.)
223
224
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Tenho minhas dúvidas, a menos que o Governo interfira na produção da borracha,
Eu não digo? São uns burroides. Por que não inventam um líquido milagroso pra
oriente, fiscalize, dê o seu apoio...
conservar a borracha? Pra fazer que os pneus nunca se gastem? Pavulagem!
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
O Governo meter o bedelho na minha propriedade???
O senhor fala como se não tivesse a menor preocupação com a crise...
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
É preciso, “Coronel”. Os donos de seringal devem mudar o seu procedimento. Por
E eu me preocupo? Sou dez vezes milionário, seu Moreira. Não vê a fartura do
exemplo: quando o senhor mandar recrutar homens no Nordeste permita que os casados
meu seringal? Dinheiro aqui é mato. Já viu como é que eu acendo charuto?
tragam suas famílias. Eles trazendo a esposa e os filhos trabalharão com regularidades,
GUARDA-LIVROS
com mais interesse e sem a preocupação de fugir.
Naturalmente.
“CORONEL”
“CORONEL”
Ora, seu Moreira, cada seringueiro trazendo todos os parentes e aderentes por
Como é?
quanto não sairá a despesa da viagem? (Bebe, insistindo para que o Guarda-livros faça o
GUARDA-LIVROS
mesmo; os sintomas iniciais de embriaguez já se manifestam no “Coronel”; manda ele
Com fogo..
abrir outra garrafa de champanha e, a partir daí, beberá com mais sofreguidão; Guaribão
“CORONEL”
o imitará, muito compenetrado da sua importância eventual.)
Não, não viu não... Um homem das minhas posses não acende charuto como
GUARDA-LIVROS
qualquer pé rapado. É até diminuir o prestígio. Quando vou a Belém o povo fica se
O custo da viagem do seringueiro com a família será maior, mas, em
babando com a minha pose. Faço de propósito. Convido amigos e um monte de artistas pra
compensação, ele com a moradia fixa, certa, quando tiver que interromper o trabalho da
um anoitada e no meio do furdunço começo a acender meus charutos. É um sucesso, seu
seringa, durante o rigor do inverno, poderá aproveitar o tempo e fazer a sua roça. Cessando
Moreira, um sucesso. As artistas batem palma e se esfregam em mim. Aquelas bailarinas
as chuvas ele voltará ao serviço da borracha e a família cuidará da pequena agricultura,
louras são umas teteias; não se compreende nada do que elas dizem, mas mulher como
colhendo arroz, o feijão...
aquilo não precisa mesmo nem falar...
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
Esta é boa! Vou empregar um dinheirão em passagens pra nordestino fazer horta
São estrangeiras. Francesas, italianas. Belas artistas.
nas minhas terras? Pois não vê que além disso ser uma estupidez eu ia perder o lucro que tenho vendendo toda a comida pros seringueiros?
“CORONEL” E eu sou um apreciador das belas artes... Sabe que quando estou em Belém não
GUARDA-LIVROS
perco uma representação no Teatro da Paz? Falou em apoiar a cultura eu compareço pra
São pontos de vista de pessoas ilustradas, “Coronel”. Sempre leio artigos na
me divertir...
imprensa...
GUARIBÃO
“CORONEL”
Esqueceu do charuto, padrinho. Não ia fumar um?
Esses escrivinhadores de jornal são tios bimbas, seu Moreira.
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
Quer a bagana, não é?
Uma das coisas que eles aconselham é ferir as seringueiras com facas apropriadas para o corte e não com machadinhas.
225
226
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
(Desinibido, por obra e graça do champanhe.) O padrinho me desculpa, porém
Muito obrigado. Se bebo mais agora não trabalho hoje e não apronto a escrita
depois de beber uma bebida dessa o Gauribão não pode fumar um enrolado... (Guaribão
antes do navio passar. (O Capataz entra.)
revira as gavetas da escrivaninha, encontra uma caixa de charutos, tira um e dá ao “Coronel”, este puxa do bolso um presumível maço de dinheiro, risca fósforo e faz arder
Cartaz: NOVAMENTE PRESTEM MUITA ATENÇÃO NA FIGURA DO GUARIBÃO DE QUEM TANTO GOSTA O PATRÃO...
uma cédula; com a chama acende o charuto.)
CAPATAZ
“CORONEL”
Bom dia, patrão. Bom dia, seu Moreira.
Viu, seu Moreira? Viu só?
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
Não dá bom dia pro Guaribão? Também tô bêbado...
Estou vendo...
CAPATAZ
“CORONEL”
Patrão, não amanheceram todas as canoas na corrente.
Dono de seringal que se preza acende charuto com nota de quinhentos mil réis.
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
(Distancia-se do “Coronel” e sussurra para o Seringueiro-Culto.) Deu-se a flor,
Quantos charutos o senhor fuma por semana acendendo desse jeito?..
filho..
“CORONEL”
CULTO
Depende da ocasião, não faço isto sem necessidade. Faço quando quero quebrar a
Controla-se senão complica tudo. (Aproximam-se os dois do “Coronel”, atentos
castanha na boca de quem duvida da minha riqueza.
às palavras do Capataz.)
GUARDA-LIVROS
CAPATAZ
Não foi da sua riqueza que eu duvidei, “Coronel”. Duvidei da riqueza que sustenta
Duas canoas sumiram. Duas.
a Amazônia.
“CORONEL”
“CORONEL”
Vá procurar.
Bobagem, a Amazônia vai pra frente. Ou vai ou racha.
CAPATAZ
GUARDA-LIVROS
Mas se elas sumiram é porque...
Se depender da borracha parece que vai rachar... E depois de rachada os países
“CORONEL”
poderosos tomam conta dos pedaços, como alertou um jornalista. E a nação perde a metade
Vá procurar e não me azucrine que estou festejando a chegada do seu Moreira.
do seu território. A coisa é séria, já houve até quem dissesse que o Brasil devia dar de
CAPATAZ
presente o Acre para a Bolívia e pedir desculpa pela demora. É preciso que o Governo
O pessoal do Laguinho já chegou pro aviamento?
tome uma providência.
“CORONEL”
“CORONEL”
Não.
Deixe o Governo em paz, homem. Vamos é esvaziar outra garrafa.
CAPATAZ
GUARIBÃO
Não é de estranhar, patrão?
Vamos...
CULTO (Interferindo, intencional.) Os seringueiros de outras partes igualmente ainda não chegaram.
227
228
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
Tá todo mundo atrasado, filho, hoje quando vierem é duma vez; com um
Estou vendo.
pouquinho mais isto fica atupetado de seringueiros. CULTO A demora é normal. A turma do Laguinho, principalmente, costuma chegar tarde.
“CORONEL” Este negro é a única pessoa que não pede a Deus a minha morte... a única neste seringal que não me joga praga... a única pessoa que me tem amor...
CAPATAZ
GUARDA-LIVROS
Como é que você sabe disso se começou a trabalhar de caixeiro esta semana?
Não esqueça a sua esposa...
GUARIBÃO
“CORONEL”
Tu tá espigado, filho. O que te deu na veneta?
Aquilo é uma vasilha ordinária. Orgulhosa. Abusada. Uma jararaca.
CAPATAZ
(O “Coronel” cambaleia, Guaribão o ampara.)
Este negócio das canoas sumirem não me cheira bem.
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
“Coronel”, repouse uma meia hora para descansar os músculos...
Vá procurar as canoas, não mandei?
“CORONEL”
GUARIBÃO (Empertigado) Vá procurar as canoas, o padrinho não mandou? CAPATAZ
Este negro é a única pessoa que botou amizade em mim sem interesse... a única pessoa incapaz de me fazer uma traição... CULTO
Pode ser que eu me engane... (Sai)
(Espirituoso) E a turma do laguinho não chega...
GUARIBÃO
GUARIBÃO
Padrinho, não esqueça a bagana.
Padrinho, já que nós se gosta tanto, o Guaribão troca esta bagana por um charuto
“CORONEL”
inteiro. (Serve-se de um charuto ostensivamente, como que respondendo ao gracejo
Toma, negro. (Levado pela embriaguez lança o charuto de encontro ao Gauribão,
irônico do Seringueiro-Culto.)
atingindo-o com o fogo.)
CULTO
GUARIBÃO
Choveu no seu roçado...
O senhor me queimou, padrinho. Arra! Como tá ardendo.
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
Tá com inveja, filho? Pode tirar um charuto pra ti.
Coitado.
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
O senhor necessita de um cochilo, “Coronel”.
Não foi por querer. (Apanha o charuto e o coloca nos lábios do Guaribão.) Fuma,
CULTO
fuma, não foi pela minha vontade. (Com certa ternura.) Não vê que eu não maltrato o meu xerimbabo de estimação?
Vamos levá-lo para sentar (Conduzem o “Coronel” e o instalam em sua cadeira no escritório.)
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Isto acontece, “Coronel”.
Não estou tonto.
“CORONEL”
CULTO
Não vê que eu gosto de você, Guaribão? Gosto deste negro, seu Moreira.
Claro que não...
229
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“CORONEL”
DELATOR
Estou meio pau, meio tijolo...
(Divisando o “Coronel”.) Vou falar com ele.
GUARIBÃO
CULTO
Eu protejo o padrinho.
Por que tamanha afobação?
“CORONEL”
DELATOR
Não quero ama seca. Desinfetem. (O Guarda-Livros senta na outra cadeira e põe-
Fugiu um mangote de seringueiros do Laguinho.
se a consultar um livro contábil, tranquilamente; o “Coronel” cerra os olhos,
GUARIBÃO
semiadormecido, do que se aproveita Guaribão para se afastar com o Seringueiro-Culto, oferecendo-lhe charutos e champanhe.)
Depois tu diz, filho, não te agonia, bebe primeiro uma champanha... (Tenta servilo.)
GUARIBÃO
DELATOR
Fuma, filho, e bebe que o Guaribão garante.
Oxente! Eu estou sonhando?
CULTO
GUARIBÃO
(Aceitando somente o champanhe.) Garante mesmo?
É que o padrinho, filho, tá festejando o aniversário do seu Moreira...
GUARIBÃO
DELATOR
Garante, filho, tira a barriga da miséria.
Vou logo dizer pra ele que seringueiros do Laguinho se arribaram.
CULTO
GUARIBÃO
Está feliz da vida não?
Quantos???
GUARIBÃO
CULTO
Filho, Guaribão tá é com pavor.
Não foram uns oito?
CULTO
DELATOR
Pensando bem, a situação é crítica.
Vosmecês sabiam?
GUARIBÃO
CULTO
Nós se metemos numa arapuca!
É... o “Coronel” já sabe do desaparecimento das canoas..
CULTO
GUARIBÃO
Nós, não. Eu nada tenho com isso, você emprestou a chave porque quis.
Pode voltar, filho, e leva pra ti estes charutinhos...
GUARIBÃO
DELATOR
Mas tu foi quem ensinou pro Guaribão a mentira do bolso furado, filho.
Antes vou falar com o “Coronel”.
CULTO
CULTO
Ensinei com pena de você, depois do problema criado. (O Seringueiro-Delator
No momento ele não atende, deu ordem para eu não deixar ninguém perturbá-lo.
entra agitadíssimo.)
DELATOR
DELATOR
Atende sim. Pra isso atende.
Bom dia, cadê o “Coronel”?
CULTO
CULTO
Absolutamente. Não atende para nada.
O que deseja?
231
232
GUARIBÃO
CULTO
Não atende, filho, tu sabe que o Guaribão não mente.
Botes, botes não, que canoas largas como aquelas não são botes, aqueles batelões
DELATOR
são preciosos, é preciso ir procurar logo.
Vosmecês estão amarelos como sebo de Holanda. Alguma coisa houve por aqui...
GUARDA-LIVROS
CULTO
Por que esse tumulto todo para recuperar duas canoas? Não há pressa. Se elas se
Uma comemoração em homenagem ao Guarda-Livros, nada mais.
desprenderam de onde estavam guardadas, na certa encalharam ou estão rodopiando no
DELATOR
remanso.
Vou perguntar pro “Coronel”.
DELATOR
CULTO
As canoas estavam cheias de...
Por uma questão de disciplina não posso deixar.
CULTO
DELATOR
Isto não! Estavam vazias, eu afirmo porque assisti o Guaribão acorrentá-las no
Arrede da minha frente, seu!
barranco... Nenhuma canoa estava cheia d’água...
“CORONEL”
“CORONEL”
(Abrindo os olhos.) Que diacho é isso aí?
Basta de conversa mole!
DELATOR
DELATOR
“Coronel”, o senhor escuta duas palavrinhas?
“Coronel”...
“CORONEL”
“CORONEL”
Fale, seu espevitado.
Basta!!! Pediu pra dizer duas palavrinhas e disse cinquenta. Vá ajudar a procurar
CULTO O assunto é aquele das canoas, “Coronel”. “CORONEL” Duas canoas, não foi? CULTO (Para o Seringueiro-Delator.) Eu não disse que ele sabia? DELATOR Sim, “Coronel”, duas canoas e das maiores, pra caber... (O Seringueiro-Culto passa a cortar as frases do Seringueiro-Delator, a fim de que o “Coronel” não entenda o sentido real da comunicação.)
as canoas. DELATOR Morrendo e aprendendo... (O Seringueiro-Delator diz estas últimas palavras já transpondo a porta de saída ao fundo.) Cartaz: ÀS VEZES QUANDO O “CORONEL” BEBIA VEJAM SÓ VOCÊS O QUE ELE FAZIA... GUARDA-LIVROS Agora quem diz duas palavrinhas sou eu, “Coronel”. O senhor precisa de uma rede, precisa dormir um pouco. “CORONEL”
CULTO
Eu? Rede? Pensa que estou embriagado? Eu nunca fico coçado, seu Moreira.
É indispensável localizar essas canoas sem perda de tempo.
GUARDA-LIVROS
DELATOR
Embriagado não é bem o termo. Um tanto quanto tocado...
“Coronel”, aqueles...
“CORONEL” Estou no meu juízo perfeito. Não estou, Guaribão?
233
234
GUARIBÃO
“CORONEL”
Tá, padrinho.
Um... dois.... três... quatro. (Ouve-se o tiro; Guaribão agacha-se, contorcendo-se.)
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
Então vamos fazer aquela experiência pro seu Moreira ver como nunca fico
Guaribão, você está ferido?
embriagado.
GUARIBÃO
GUARIBÃO
Não...
Aquela... aquela da garrafa?
CULTO
“CORONEL”
Não está mesmo?
Sim, aquela mesma.
“CORONEL”
GUARIBÃO
Levanta, negro.
(Alamardo) Não, padrinho, pelo amor de DEUS... Noutra hora..
GUARIBÃO
“CORONEL”
Não posso, padrinho.
Se ponha na posição. Ali.
“CORONEL”
GUARIBÃO
Por que, seu presepeiro?
Ai, minha Santa Bárbara, desta vez o teu Guaribão se esborracha... (O “Coronel”
GUARIBÃO
vasculha as gavetas da escrivaninha, pega um revólver e balas.) “CORONEL” Seu Moreira, eu lhe mostro já-já como não estou coçado. GUARDA-LIVROS Para que esta arma, “Coronel”? “CORONEL” Espere um instante. (O “Coronel” carrega o revólver, coloca uma garrafa vazia na cabeça do Guaribão.) GUARIBÃO Padrinho, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo... “CORONEL” Vou lhe mostrar a minha pontaria, seu Moreira, pra ver que não estou tonto. (Guaribão, com os braços em forma de crucificado, equilibra a garrafa na cabeça verdadeiramente aterrorizado; o “Coronel”, corpo balançando, prepara-se para disparar com extrema dificuldade, apontando o revólver em direção à garrafa.) GUARDA-LIVROS Isto é uma temeridade. CULTO “Coronel”...
Tenho vergonha... me molhei todinho de xixi...
235
TERCEIRO ATO
236
ESPOSA Ainda está danado com os seringueiros que fugiram, não é? Se enraivece e vem
Cenário: residência do “Coronel”
desforrar em mim. Por que não descarrega em cima do Guaribão? “CORONEL”
Tomando a metade do palco, sala com porta à esquerda para o interior da casa;
Guaribão não tem nada com isso.
à direita janela larga e porta com escada que desce para o terreiro, ou seja, a metade
ESPOSA
restante do espaço cênico. A sala, em nível bem mais alto, a fim de possibilitar a escada,
Ele guardava a chave do cadeado da corrente, não guardava?
ostenta na parede uma coleção de espingardas.
“CORONEL”
Cartaz: NO DIA SEGUINTE O “CORONEL” CURTE A RESSACA BRIGANDO COM A ESPOSA... “CORONEL” (Entrando da porta à esquerda com a Esposa.) Enquanto eu me escangalho dia e noite numa trabalheira dos seiscentos diabos, aqueles marmanjos vivem folgados no rio de Janeiro.
Guaribão é um pobre coitado. ESPOSA Coitado? Morda aqui! Ele emprestou a chave ou deixou as canoas fora da corrente de propósito. “CORONEL”
ESPOSA
Ele perdeu a chave. Caiu do bolso.
Agora impininou com os meninos, não é? Eles têm que estudar pra ser gente.
ESPOSA
“CORONEL”
E como a chave foi parar tão depressa nas mãos dos seringueiros do Laguinho?
E é só quem estuda pra doutor que é gente? Eu não sou gente? Responde: não sou
Esta pílula eu não engulo. “CORONEL”
gente? ESPOSA
E por que não?
É gente, mas não é gente fina.
ESPOSA
“CORONEL”
Guaribão é useiro e vezeiro em arquitetar mentiras.
Sou mais gente do que muito figurão de fraque e cartola. GENTE, ouviu?
“CORONEL”
ESPOSA
Está despeitada?
Gentinha...
ESPOSA
“CORONEL”
Eu? Por que despeitada?
Gentinha é você, sua vaca. É você que não tinha eira nem beira quando casou
“CORONEL”
comigo. Eu tenho os meus haveres, tenho posses, tenho fortuna.
Você tem ciúme do Guaribão?
ESPOSA
ESPOSA
Queria seus filhos sem educação, era?
Ciúme?
“CORONEL”
“CORONEL”
Era. Queria eles aqui, pra cuidar da escrita do seringal, pra dispensar as vindas
Então por que embirra com ele?
desse Guarda-Livros cabuloso, que sempre chega com notícias ruins. Queria eles ajudando
ESPOSA
a vigiar os seringueiros...
Porque o Guaribão é um fingido de marca maior.
237
238
“CORONEL”
GUARIBÃO
É porque eu agrado ele e não agrado você. Porque ele sempre foi meu amigo e
Socorro! Socorro!
você sempre foi minha inimiga...
GUARDA-LIVROS
ESPOSA
O que foi?
E eu ligo pra isso? Eu dou trela pro seu chamego com aquele preto agourento? (O
“CORONEL”
Guarda-Livros, trazendo uma maleta, aparece à direita, sobe a escada, entra na sala.)
Alguma visagem?
GUARDA-LIVROS
GUARIBÃO
Dá licença?
Não, padrinho, é os índios que vêm nos atacar.
“CORONEL”
“CORONEL”
A casa é sua.
Uma hora desta? Índio ataca de noite.
GUARDA-LIVROS
GUARIBÃO
Estou pronto para embarcar. Creio que dentro de meia hora ouviremos o apito do
Eu vi, padrinho, agorinha, os índios ali do lado do barracão. ESPOSA
navio. ESPOSA
Se não for mais uma mentira...
Seu Moreira, o senhor não acha que o Guaribão emprestou a chave pros
“CORONEL”
seringueiros furigem? GUARDA-LIVROS
Cala-te, mulher faladeira, língua de trapo. (Barulho abafado, fora; o “Coronel” retira da parede as espingardas; expectativa; ruídos um pouco mais fortes.)
Que chave? Ah, sim... Não, não acho.
GUARIBÃO
“CORONEL”
É eles, padrinho...
Ela cismou com ele.
“CORONEL”
GUARDA- LIVROS Guaribão é ingênuo demais para uma atitude dessa natureza.
Se preparem. Dedo no gatilho. (De espingarda em punho aguardam, nervosos; novos rumores.)
“CORONEL”
GUARIBÃO
Um tapado.
Escutaram? É o grito de guerra dos Caiapós...
ESPOSA
ESPOSA
Um astucioso é o que ele é. GUARDA-LIVROS
Grito de guerra coisa nenhuma. Isto não é índio, é a porca que está fuçando no chiqueiro.
Inofensivo.
“CORONEL”
ESPOSA
Desde que os Caiapós desceram as cabeceiras do Iriri não se teve mais sossego.
Perigoso. (Guaribão entra à direita, correndo, galga os degraus da escada e invade a sala, ofegante.) Cartaz: MOMENTO PERIGOSO: OS ÍNDIOS VÃO ATACAR E GUARIBÃO SUA CORAGEM VAI DEMONSTRAR...
São umas feras. GUARDA-LIVROS Feras não, “Coronel”. Os índios são criaturas como nós, embora primitivas. “CORONEL” Na sua opinião.
239
240
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Convenientemente instruídos eles se modificariam.
Dantes a gente derrubava índio à bala pra se distrair...
“CORONEL”
GUARIBÃO
Vá se fiando nisso. Uma vez prenderam um indiozinho em Calama, no rio
Uma vez o senhor arrasou uma tribo inteira, não foi, padrinho?
Madeira. Criaram o Curumim com todo o conforto a fim de que ele, quando crescesse e
“CORONEL”
voltasse pra maloca, falasse a favor dos civilizados. Ele cresceu e voltou pra maloca, de
Hoje são eles que nos afrontam em pleno dia.
fato; mas voltou fugido e levou, como troféu, a cabeça de um branco que andou dando
GUARDA-LIVROS
umas bordoadas nele.
Bom, ou se foram ou recuaram para organizar outra investida.
ESPOSA
GUARIBÃO
É melhor pendurar as espingardas porque este ataque de índios é pura invenção.
Se avoaram com medo do meu tiroteio.
“CORONEL”
ESPOSA
Dê uma olhada lá fora, Guaribão.
Deixa de lambança, negro confiado.
GUARIBÃO
“CORONEL”
Eu???
Podemos largar as espingardas.
“CORONEL”
ESPOSA
Sim. Vá.
Tanto espalhafate sem a menor necessidade.
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
E se os índios me flechar, padrinho?
E se os Caiapós nos apanhassem desprevenidos?
“CORONEL”
ESPOSA
Vá logo, seu coirão. (Guaribão move-se vacilante e, ao atingir o limiar da porta,
Não eram os índios.
escorrega, cai com parte do corpo para fora, detonando involuntariamente a espingarda.)
GUARIBÃO
GUARIBÃO
O tiro da minha espingarda é que afugentou eles.
Acudam!!! (O “Coronel” arrasta o Guaribão para dentro pelas pernas.)
“CORONEL”
“CORONEL”
Você viu mesmo os índios quando atirou?
Se bateu?
GUARIBÃO
GUARIBÃO
Vi, padrinho. Um até se acocorou detrás duma raiz quando o Guaribão...
(Recompondo-se). Viram a minha valentia? Acertei na carcuruta dum índio.
ESPOSA
ESPOSA
Ele não viu coisíssima nenhuma.
Acertou nada, preto desastrado.
GUARIBÃO
GUARIBÃO
Vi. Juro que vi. Eu reinei, apertei o gatilho da espingarda de supetão, fazendo uma
Acertei, juro que acertei.
careta e aí eles esbugalharam os olhos e correram. O mais parrudo falou pros outros assim:
ESPOSA
“Vamos que aquele é o Guaribão, preto maneiro e forçudo que só uma anta acuada”...
Mentira. A tua cara não treme?
241
242
ESPOSA
GUARIBÃO
Não quero debochar do Polidoro nem do senhor, seu Moreira, mas fizeram papel
Padrinho, os índios vieram...
de bobos com as espingardas em punho.
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
Basta! Não sei aonde estou que não lhe castigo por essa mentira tão descarada.
Será?
ESPOSA
ESPOSA Ora! Tudo foi artimanha deste negro...
O tempo que nós passamos em alvoroço ele devia passar no formigueiro, só assim deixava de ser cínico.
“CORONEL”
“CORONEL”
É... desta vez parece que você tem razão...
Devia mesmo.
GUARIBÃO
GUARIBÃO
O senhor tá contra eu, padrinho?
Padrinho, eu disse a verdade.
“CORONEL”
“CORONEL”
Você mentiu.
Cale-se, seu gorila duma figa! Agora quem está enfezado sou eu.
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
Não, isto não. Eu vi! “CORONEL”
Confesse que mentiu, Guaribão. Depois daquela do anjo Gabriel não há outro recurso...
Tem a petulância de discutir comigo?
GUARIBÃO
GUARIBÃO
(Brioso) Hoje foi a primeira vez na vida que o Guaribão fez uma proeza na frente
Eu vi... GUARDA-LIVROS (Já incrédulo, troçando.) Ele viu, “Coronel”, e além de ver, ouviu...
de todo mundo. E querem que eu desfaça a minha proeza? Pois eu não desfaço. “CORONEL” Cala a boca, negro doido.
GUARIBÃO
GUARDA-LIVROS
Sim senhor. Quando disparei a espingarda e encarei os índios como quem diz:
(Conciliador) Errar é humano. Confesse a sua mentira e peça perdão.
“Vou quebrar os ossos de vocês” eles, oh! babau... Fugiram pulando e gritando: “É o
GUARIBÃO
Guaribão, mulato espritado e destemido como o anjo Gabriel”...
Não me desdigo não. Vocês tão é com inveja, porque a valentia foi minha.
ESPOSA
ESPOSA
Negro gabola.
Eu é que nunca me iludi com essa bisca.
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
E índio sabe o que é anjo Gabriel, Guaribão?
(Com exaltação crescente.) Quem é que está com inveja?
GUARIBÃO
GUARIBÃO
Não, não sabe não; eles falaram isso pra me bajular...
Todos. Até o senhor, padrinho. Tão com inveja porque de hoje em diante eu sou o
“CORONEL” Basta de potocas.
“Herói do Seringal”. “CORONEL” Cachorro! (Esbofeteia Guaribão.)
243
244
GUARDA-LIVROS
VALENTE
(Contendo o “Coronel”.) Calma, “Coronel”, calma.
Não era nenhum segredo não.
ESPOSA
VETERANO
Há muito tempo que ele precisava de uma boa pisa. GUARIBÃO
O senhor me conhece há anos, “Coronel”, sabe que eu não sou homem de enganação.
Padrinho, o senhor espancou a minha cara...
BRABO
“CORONEL”
Eu ainda não fiz nenhum mês de trabalho...
E daí?
INDECISO
ESPOSA
Será que o senhor não confia em nós, “Coronel”?...
Bem feito.
CAPATAZ
GUARIBÃO
Eles sabem qualquer coisa sobre o pessoal do Laguinho.
Em cara de homem não se bate, padrinho... (Transpõe a porta, desce a escada.)
VETERANO
Em cara de homem não se bate... (Atravessa o terreiro.) Em cara de homem não se bate...
Eu não sei patavina.
(Some)
BRABO GUARDA-LIVROS
Eu sei não.
Um tipo original, esse Guaribão.
VALENTE
“CORONEL”
Nem eu.
A única pessoa neste seringal que me tinha amizade... (A Esposa sai, à esquerda;
INDECISO
o Capataz surge à direita, acompanhado pelos seringueiros Valente, Brabo, Veterano e
E eu, o que posso saber?...
Indeciso; sobem a escada.)
“CORONEL”
Cartaz: O PROBLEMA DA FUGA AINDA NÃO FOI RESOLVIDO E O “CORONEL” CONTINUA BASTANTE ABORRECIDO... CAPATAZ Dá licença, patrão?
Preferem umas chicotadas pra soltar a língua? Como é, falam ou não falam? VETERANO “Coronel”, eu já vi muitas vezes como o senhor castiga os seringueiros fujões. Não sou desatinado pra me meter nisso.
“CORONEL”
INDECISO
Entrem.
Que culpa temos nós do pessoal do Laguinho fugir?...
GUARDA-LIVROS
CAPATAZ
Eis os Caiapós...
Alguém ajudou eles.
CAPATAZ
VALENTE
Estes cabras estavam cochichando um segredo sobre os seringueiros que fugiram,
Nós não ajudemos.
escondidos do lado do barracão.
BRABO
“CORONEL”
Ajudemos não.
O que era o segredo?
CAPATAZ Com meia dúzia de chibatadas, patrão, eles destrincham o segredo.
245
246
GUARDA-LIVROS
CAPATAZ
“Coronel”, uma pergunta: há motivos para o senhor considerar estes seringueiros
Foi um destes canalhas.
suspeitos?
“CORONEL”
CAPATAZ
É, foi mesmo. Esperem lá fora que nós vamos conversar baixinho.
Eles tramaram fugir esta semana. Como não puderam, instigaram o pessoal do
CAPATAZ
Laguinho.
Amarro logo eles no tronco, patrão?
GUARDA-LIVROS
BRABO
Não existe mais ninguém suspeito?
“Coronel”, eu quero ficar todo encarangado se tomei parte nessa fugida...
“CORONEL”
VALENTE
Bem... O Maxico era o caixeiro do barracão, fez uma besteira, eu despedi; quem
Eu já estou com o lombo assado de chicotada...
sabe se ele não achou a chave que o Guaribão perdeu? Quem sabe se pra se vingar não levou a chave pra turma do Laguinho? CAPATAZ
VETERANO Eu não boto ninguém no mal caminho, “Coronel”, o senhor sabe que me acostumei no seringal...
Patrão, pois não é que o Maxico também sumiu?
INDECISO
“CORONEL”
Ai, meu Jesus, será que nunca vai chegar o dia de nós acabar de padecer?..
Então foi isso: ele fugiu com os outros.
CAPATAZ
GUARDA-LIVROS
Vamos, seus ratuínos. (Saem à direita, o Capataz e os seringueiros; a Esposa
Neste caso, os seringueiros que estão aqui são inocentes.
retorna com uma bandeja, serve café, aparecem à direita os seringueiros Delator e
“CORONEL”
Covarde com a Cabocla; detendo-se no terreiro eles começam a questionar, enquanto
É...
dentro da casa, após beberem o café, o Guarda-Livros examina o conteúdo da sua maleta,
GUARDA-LIVROS
a Esposa limpa um móvel e o “Coronel” reflete , denotando profundo acabrunhamento.)
(Para os seringueiros.) A coisa melhorou. Estão contentes? VETERANO
Cartaz: POR MAIS INCRÍVEL QUE PAREÇA A VOCÊS, JÁ HOUVE NA AMAZÔNIA CASAMENTO A TRÊS...
Estemos triste.
COVARDE
GUARDA-LIVROS
Reclama mais do que bode na chuva...
Esta eu não entendi...
DELATOR
VETERANO
Se era tão apegada no seu marido por que veio pro nosso poder? Largou ele na
O Maxico não fugiu. CAPATAZ Como você sabe?
sepultura ontem, devia ainda está chorando... CABOCLA Ara, ara. Vim porque vocês me trouxeram aos emboléus, esfregando o focinho na
VETERANO
minha ilharga como tamanduá cheirando formigueiro. Eu nunca andei em capoeira com
Nós encontremos ele morto. Duas flechadas.
penca de homem. Axi!
“CORONEL”
DELATOR
Se não foi o Maxico que ajudou a turma do Laguinho a fugir...
Ah, mulherzinha geniosa.
247
248
CABOCLA
CABOCLA
Vim na fiúza de ter um amparo, mas-porém, já me arrependi. Antes tivesse me
Assinzinho.
ajuntado com seu coisinha... seu Mendes. Ou com aquele outro seringueiro antigo. Vocês
CULTO
são uns escovados, matreiros que nem carará.
Não me quis, hein?
COVARDE
CABOCLA
Nós não lhe trouxe a pulso, vosmecê veio porque quis. Veio pela precisão.
Paresque...
DELATOR
CULTO
Porque, como disse, não tinha mais nem uma cuia de farinha pra comer. Eu acho
O que ele lhe prometeu? CABOCLA
até que vosmecê não é gorda, é inchada... CABOCLA
Casamento...
Mas quando?! Vigie só... Eu não estava de tanga, vim porque vocês me adularam,
CULTO
mansos que nem jacamim. Se calhá eu abandonava o meu tapiri sem a sujigação de vocês?
Vão conversar com o “Coronel” a esse respeito?
Pra me entocar no matagal? No meu sítio da beira do rio não se adoece de impaludismo...
DELATOR
DELATOR
Não é da conta de vosmecê.
Não se adoece de impaludismo, porém se adoece de béri-béri que é mil vezes
CULTO E têm esperança que o “Coronel” case vocês?
pior.. CABOCLA
DELATOR
Axi! porcaria. O Paquito era um baita de homem, morreu de béri-béri porque
Tenho certeza. CULTO
fizeram pussanga pra ele. Nas minhas bandas todos têm saúde, só se morre de três doenças. COVARDE
Logo hoje que ele está de mau humor. Eu não arriscaria.
Só se morre de três doenças? Ah! Mulherzinha mentideira.
DELATOR
CABOCLA
Vosmecê quer que nós atrase o casório pra ter tempo de desencabeçar a Andreza,
É, sim, só se morre de três doenças: febre, inflamação e falta de ar... (O Seringueiro-Culto entra à direita, defronta-se com os três no terreiro.)
não é? CULTO
CULTO
Bem, vou falar com o “Coronel”.
Olá, o que fazem aí? Você, Andreza?
DELATOR
COVARDE
Do nosso casório?
Estemos criando coragem pra falar com o “Coronel”.
CULTO
DELATOR
Não, o ambiente hoje não está para assuntos matrimoniais... (Sobe a escada,
Vosmecê está, eu não preciso de coragem porque ele tem simpatia por mim.
penetra na sala, os três se acotovelam no terreiro, combinando algo em voz baixa.)
CULTO
“CORONEL”
(Para o Delator, com desprezo.) À custa de tanta traição você tinha que ganhar a
Entra sem pedir licença?
simpatia do “Coronel”. (Para a Cabocla.) Como vai?
CULTO Perdoe, “Coronel”, é que estou desorientado.
249
250
“CORONEL”
CABOCLA
O que houve. Por que largou o barracão?
Nunca viu, seu cara de pavio?
CULTO
CULTO
Não posso fazer nada. O Guaribão não deixa.
Comigo você lucraria mais.
“CORONEL”
CABOCLA
Não deixa como? CULTO
Ara hum... A modo que agora já foi tudo por águas abaixo... (O Seringueiro-Culto sai à direita, os três se aproximam da escada.)
Exigindo cachaça e mais cachaça.
DELATOR
“CORONEL”
Vamos subir?
Dê.
COVARDE
CULTO
Vosmecê é que fala, eu fico calado.
Já bebeu dois litros.
DELATOR
“CORONEL”
“Coronel”, dá licença? (Entram na casa.)
O que ele diz?
“CORONEL”
CULTO
Abandonaram o trabalho? Quem deu ordem?
Não diz nada, além de exigir cachaça. Tem os olhos vidrados, como quem sofre
DELATOR
alucinação.
Abandonemos só por umas horinhas....
“CORONEL”
“CORONEL”
Dê bebida até ele emborcar, dormindo. Coitado do Guaribão está sentido.
O que vieram fazer? E esta caboca?
ESPOSA
DELATOR
É manha.
Ela... é a Andreza...
“CORONEL”
“CORONEL”
Dê mais cachaça, Guaribão precisa de esquecimento.
E o que querem?
ESPOSA
DELATOR
Precisa duma boa sova.
É um assunto que... que nós entrega ao senhor...
CULTO
“CORONEL”
E se ele tiver uma indigestão? Indigestão alcoólica pode matar.
Se expliquem sem gaguejar. Não tolero gaguice.
ESPOSA
DELATOR
Se morrer não se perde nada.
“Coronel”, é um assunto que nós entrega ao senhor....
“CORONEL”
“CORONEL”
Acomode o Guaribão por lá com todo o cuidado. E não aperreie ele.
Sei. Está repetindo o que já disse, seu jumento.
CULTO
DELATOR
Pois não, vou fazer o que for possível. (O Seringueiro-Culto sai da casa, para no
(Para o Covarde.) Vosmecê não diz nada?
terreiro, fita a Cabocla.)
251
252
COVARDE
GUARDA-LIVROS
Digo não.
Vão casar os dois com esta mulher? Os três em um só casamento?
“CORONEL”
COVARDE
Finalmente, por que vieram aqui???
Sim, casamento é coisa tão boa que quanto mais gente melhor...
DELATOR
ESPOSA
“Coronel”, nós... o assunto é um casório...
São uns animais.
“CORONEL”
“CORONEL”
Casamento de quem com quem?
Querem casar os dois com esta caboca, não é?
DELATOR
DELATOR
É o seguinte: ele tem um saldozinho e contratou casar... (Vira-se para o Covarde
Se o “Coronel” não negar pra nós a graça...
e a Cabocla.)
“CORONEL”
“CORONEL”
Se ajoelhem.
Tem um “saldozinho”. Uma migalha de saldo, menos de cem mil réis. E eu nem
CORVADE
sei como ele pode ter esse saldo.
Sim senhor... (Os três se ajoelhem.)
COVARDE
“CORONEL”
É que não fumo, quase não bebo e como pouquinho.
Estão com sorte. Mereciam era uns tabefes. Mas como hoje eu fiz uma maldade
“CORONEL”
pro Guaribão, vou fazer o contrário com vocês pra me livrar do remorso. Repitam: nós
Se não tem prazer na vida, pra que mulher?
suplicamos...
COVARDE
COVARDE
Como eu tenho aquele saldozinho e o meu companheiro aí me convidou pra fazer
Nós suplicamos
companhia a ele...
DELATOR
GUARDA-LIVROS
Nós suplicamos
O quê? Os dois se casarem?
CABOCLA
DELATOR
Nós supliquemos...
Sim senhor...
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
Que o “Coronel” Polidoro nos case...
Homem com homem?
COVARDE
COVARDE
Que o “Coronel” Polidoro nos case...
Não, epâ! Nós dois casa com ela.
DELATOR
DELATOR
Que o “Coronel” Polidoro nos case...
“Coronel”, nós veio implorar pro senhor fazer o nosso casório. O senhor abençoa
CABOCLA
o nosso ajuntamento e eu prometo desencavar o nome do lugar pra onde o pesoal do
Que o “Coronel” Polidoro nos case...
Laguinho fugiu.
“CORONEL” Em nome dele mesmo...
253
254
COVARDE
“CORONEL”
Em nome dele mesmo...
Não se preocupe com isso. Eu estou preocupado é com Guaribão...
DELATOR
GUARDA-LIVROS
Em nome dele mesmo...
Eu gostaria de saber como os dois vão repartir os privilégios de marido.
CABOCLA
DELATOR
Em nome dele mesmo...
Repartir o que, a comida?...
“CORONEL”
COVARDE
Já que não existe igreja aqui...
Passou a comida, eu não faço questão, quase não tenho fome.
COVARDE
GUARDA-LIVROS
Já que não existe igreja aqui...
Não, privilégios de marido quer dizer... como vocês vão repartir a mulher?
DELATOR
DELATOR
Já que não existe igreja aqui...
Nós já combinemos.
CABOCLA
COVARDE
Já que não existe igreja por aqui...
Um dia pra cada um.
“CORONEL”
DELATOR
Assim seja. Assim tem que ser.
É não. Um dia pra vosmecê, dois pra eu.
COVARDE
“CORONEL”
Assim tem que ser.
Viu como são espertos?
DELATOR
GUARDA-LIVROS
Assim tem que ser.
Tem outra: quando nascer o filho, quem será o pai? (Os três entreolharam-se,
CABOCLA
confusos.)
Assim seja. Assim tem que ser.
DELATOR
“CORONEL”
Danou-se! Nisso nós não pensemos...
Pronto, estão casados. De hoje em diante são maridos e mulher...
CABOCLA
GUARDA-LIVROS
Filho? E esta uma aqui vai ter filho? Pois sim!...
Este casamento vai dar em complicação. Como é que vocês se arrumarão?
GUARDA-LIVROS
COVARDE
Mas se por acaso nascer?
Arrumando...
DELATOR
GUARDA-LIVROS
Nós se arresolve vendo com quem o moleque se parece.
“Coronel”, como será a vida deles?
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
É, não deixa de ser uma solução inteligente...
Coisa muito pior a gente vê nestas brenhas, seu Moreira.
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
São ou não são espertos.
Acontece que...
255
256
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Quem diria... (O Capataz reaparece empurrando os seringueiros Veterano,
Calem!!! São todos uns patifes. Todos!
Brabo, Indeciso e Valente; entram na sala.)
CAPATAZ
Cartaz: PELA DERRADEIRA VEZ PRESTEM ATENÇÃO: O FIM DESTA PEÇA GUARDA UMA LIÇÃO...
Isto, patrão, todos. (Referindo-se ao Covarde e Delator.) Estes dois também devem ter culpa.
CAPATAZ
DELATOR
Patrão, patrão, descobri que estão mesmo metidos na tramoia. Levei eles pro
Eu não, sou do lado do “ Coronel”, sempre fui.
tronco, fingi que ia buscar a corda pra amarrar, dei meia volta e me escondi atrás duma
COVARDE
castanheira. Os canalhas, com medo da chibata, começaram a discutir se contavam ou não
Pelo amor de Deus, seu Capataz, não levante falso.
a verdade. Este aqui (mostra o Valente), mais peitudo, ameaçou matar aquele que falasse.
GUARDA-LIVROS
“CORONEL”
Confesso que me enganei. Para mim eram inocentes.
Ah! continua valente, hein?
“CORONEL”
CAPATAZ
São uns bandidos. Inocente sou eu, seu Moreira. Eu que até o casamento destes
Foi ele que entregou pra turma do Laguinho a chave do cadeado das canoas.
dois canalhas acabei de fazer.
“CORONEL”
CAPATAZ
Ôpa! Vai se arrepender do dia em que foi parido.
Se eu tivesse descoberto antes do senhor fazer o casamento avisava, patrão,
CAPATAZ
porque sei que casamento não pode ser desmanchado.
Só não sei como ele conseguiu a chave, mas os outros sabem. Este (indica o
GUARDA-LIVROS
Veterano) dizia, na discussão, que não tinha nada com o peixe. Este (designa o brabo) dizia que estava comichando de saudade duma tal de Severina e não aguentava mais o
Pode ser anulado. E, aliás, esse casamento deve ser tornado sem efeito, não tem valor.
seringal. E este (segura o Indeciso) fazia uma porção de perguntas duvidando se era
DELATOR
melhor ficar calado ou abrira boca pra contar o segredo.
Não diga isso... Por quê?
“CORONEL”
GUARDA-LIVROS
Cretinos!
Porque há um marido sobrando...
COVARDE
“CORONEL”
(Para Delator, em surdina.) A situação está preta. Por Deus que está. DELATOR
O casamento está desfeito e vocês vão pro tronco com os outros, seus desgraçados.
Vosmecê sabia da estória?
COVARDE
COVARDE
Que horror!...
Sabia. Porém não ajudei não, Deus me livre.
“CORONEL”
“CORONEL”
E vão já. Tiro o couro de todos enquanto não souber de tudo.
Eu não disse, seu Moreira, que esta raça não vale nada? Só bala!
DELATOR
VALENTE, BRABO, VETERANO
“Coronel”, o senhor tem razão, porém de nós dois o culpado é só ele.
(Quase simultaneamente.) Será que? Há anos.... Eu...
257
258
COVARDE
ESPOSA
Vosmecê está me acusando?
Minha Nossa Senhora de Nazaré!!!
DELATOR
CAPATAZ
Estou.
O patrão morreu?..
COVARDE
CULTO
Meu Deus, o que eu fiz?
Não há dúvida, está morto!..
DELATOR
VALENTE
Sei não, vosmecê é que sabe: não acabou de me dizer que conhecia a estória da
Bem feito.
fugida?
DELATOR “CORONEL”
Que coisa desastrosa...
Ele disse isto?
COVARDE
DELATOR
Virgem!...
Sim senhor. De mansinho. Eu até me espantei.
VETERANO
“CORONEL”
Depois de tantos anos nunca que eu podia pensar...
Muito bem. Então é somente ele que entra no chicote com os outros...
BRABO
DELATOR
Coisa assim só no sertão...
“Coronel”... agora é só eu de marido... o senhor não desfaz o casório, não é?...
CABOCLA
(Ouve-se um apito, longo.)
Morte pior que béri-béri..
GUARDA-LIVROS
GUARDA-LIVROS
É o navio, felizmente. (O Guarda-Livros apanha a maleta e inicia
Contando na cidade ninguém vai acreditar...
apressadamente as despedidas: nesse ínterim em que trocam votos de “saúde”, “boa
INDECISO
viagem” etc., irrompe o Guaribão no terreiro, completamente desvairado, com as mãos
Será que ele morreu mesmo?... (As luzes se apagam.)
cruzadas para trás; ao pisar o primeiro degrau da escada Guaribão depara com o “Coronel” que vai saindo na frente dos outros; o “Coronel” abre os braços em um gesto amplo de alegria a fim de confraternizar com o Guaribão.) “CORONEL” Guaribão, não precisava pegar um porre tão grande, perdoei a mentira, você é o meu único amigo, você é mesmo o “Herói do Seringal”... (Guaribão descruza as mãos e quando o “Coronel” o abraça ele crava-lhe uma faca no peito, vigorosamente.) GUARIBÃO Em cara de homem não se bate... (O “Coronel” rola pela escada, agonizando; Guaribão afasta-se lambendo o sangue da faca e repetindo, até sumir, a frase: EM CARA DE HOMEM NÃO SE BATE...; todos descem a esscada correndo; o Seringueiro-Culto desponta à direita; acercam-se do corpo do “Coronel”.)
FIM
259
260
AMOR DE LOUCO NUNCA É POUCO5 (Comédia em dois atos)
PERSONAGENS
AMOR DE
ELE. Ator que resolve se matar de maneira muito especial. ELA. Suposta diretora de uma instituição de combate ao suicídio.
CENÁRIO
LOUCO
Lugar ermo do alto de uma montanha. Precipício ao fundo.
NUNCA É POUCO
5
Pará.
Esta peça foi encenada pela primeira vez em novembro de 1976, no Teatro da Paz, em Belém do
261
PRIMEIRO ATO
262
Lá vêm elas... nuvens brancas, alvas, como eu sempre quis... Um grande ator merece uma grande morte... Em segredo, sem olhares curiosos e sem o rumor de palmas...
(Ele entra em cena com uma pequena maleta; inspeciona o local, se detém com
Um grande ator merece ao menos fazer uma grande cena para si: a derradeira... Morrer...
interesse à beira do abismo, olha o céu que está sem nuvens, colorido, denunciando o
Lançar meu corpo neste abismo, de encontro às nuvens... bendito seja o DEUS que fez esta
entardecer.)
montanha tão alta... Bendito seja o sujeito que teve a ideia de fazer a estrada por aqui...
ELE
Bendito seja o gênio de Shakespeare que não imaginou uma cena tão original como esta
Só falta a nuvem... Ventos que soprais dos oceanos longínquos, varrendo cidades
que marcara o meu adeus do mundo... Bendito seja o sol que vai sumindo para não ver o
e florestas, trazei um colchão de nuvem para o meu primeiro e último repouso!... (Vira-se, abre a maleta, apanha vistosa indumentária e um toca-discos equipado. Põe o toca-discos em funcionamento; ouve-se música clássica. Veste a indumentária; seu rosto se ilumina, o porte toma um ar solene e trágico: é um personagem de Shakespeare. Caminha lentamente para o despenhadeiro declamando falas do REI LEAR.) “A natureza neste caso está acima da arte... Sim, rei da cabeça aos pés. Quando assumo um ar severo todos os vassalos estremecem!...
meu gesto final... (Ajeita a indumentária. Retorna à postura dramática, toma posição para saltar no precipício.) “Morrerei corajosamente, como um noivo que se vai casar...” (Barulho de carro freando com violência. Ele espanta-se. Por um instante hesita sem saber como agir. Corre para o toca-discos, desliga-o. Ela aparece.) ELA Boa... Boa tarde... Ou boa noite... (Ele a encara interrogativamente.) Desculpe...
Perdôo a vida a esse homem...
Desculpe incomodá-lo... (Espera em vão que ele lhe diga algo.) É que... sabe... meu carro
Qual foi o seu crime?...”
acabou de furar o pneu... encostei bem atrás do seu... aquele outro carro é seu, não é?
(Voltando-se para o lado da plateia.)
Lindo carro... será que o senhor faria a gentileza de me ajudar a trocar o pneu?...
“Vede aquela senhora que está ali embaixo, toda convencida, cujo rosto faz crer
ELE
que o seu temperamento é de neve, que se põe muito séria e abana a cabeça ao ouvir falar
Não. (Acende um cigarro com ostensiva indiferença.)
em prazer. Pois bem: nem a doninha, nem o cavalo são mais ardentes do que ela!...”
ELA
(Mirando um espectador.)
O senhor está brincando?
“Como? Estás doido? Um homem pode ver sem os olhos como vai o mundo.
ELE
Olhai com as vossas orelhas: vede como aquele juiz se zanga com aquele ladrão simplório?
Não.
Prestai atenção: trocai-os de lugar e adivinhai qual é o juiz e qual é o ladrão...”
ELA
(Fitando o espectador.)
Está aborrecido?
“Esbirro truculento, detém a tua mão sanguinária. Por que açoitas assim essa
ELE
devassa? Castigas as tuas próprias costas: estás morto por praticares com ela o ato pelo
Sim.
qual a chicoteias. É o usurário que enforca o falsário. Através das vestes esfarrapadas é que
ELA
se vêem os pequenos vícios; mas os vestidos de calda e os mantos de pele, esses escondem
Por favor, não leve a mal, eu sou uma pessoa distinta. Não poderia prever que ia me acontecer isto. O carro é novo, o senhor está tão sério!... (Ele continua fumando,
tudo...” (Pausa. Reflexão. Dirige-se, vagaroso, para a borda do abismo. Contempla o horizonte. Sua expressão e voz mudam, passam a ser naturais.)
indiferente à presença dela.) Eu... perdoe se o senhor se encontra acompanhado... se vim interromper... (Ele a examina com breve olhar.) O senhor está sozinho?...
263
264
ELE
ELE
Sim.
Este detalhe lhe interessa?
ELA
ELA
Não quer mesmo me dar uma ajudazinha?
Ah! Então o senhor se encontra acompanhado? Não precisava negar.
ELE
ELE
Não.
Como foi que...
ELA
ELA
Mas por quê?... Não entendo. Também estou sozinha... Na minha situação a sua ajuda é uma obra de caridade... Não gostaria de praticar neste momento uma boa ação?... ELE
Eu compreendo, é natural, mas pode ficar tranquilo, pelas minhas maneiras o senhor verifica que sou uma mulher educada, uma mulher de excelente posição social e, portanto, discreta.
Não.
ELE
ELA
Como foi que me desco...
Será possível que o senhor não gosta de ser humano?
ELA
ELE
Lamento muito ter aparecido numa ocasião imprópria.
Não.
ELE
ELA
Como foi...
O senhor só aprendeu a dizer sim e não, foi?
ELA
ELE
Agora compreendo o seu aborrecimento. É justo.
Sim.
ELE
ELA
(Ríspido) Como foi que me descobriu aqui?
Paciência. Nem todo homem é um cavalheiro...
ELA
ELE
O pneu furou, não ouviu o barulho do freio? Parei do lado da pista. Vi o outro
Adeus, boa sorte. Felicidades.
carro, a princípio julguei que o dono tinha ido embora, porém aí tive a impressão de
ELA
escutar música. Para ser sincera a impressão que tive foi de estar ouvindo o coro da igreja...
O senhor está brincando, certamente está brincando. Olhe, não brinque desse
O senhor sabe, o susto me deixou abalada. Imagine se eu derrapasse nessa curva e o carro
modo comigo, eu me sinto tão aflita! (Pausa) Vai escurecer, a estrada está deserta...
caísse no abismo. Nossa Senhora!... Seria pior que um desastre de avião... Que horror... Foi
(Pausa mais demorada.)
um grande choque que tomei, o senhor não avalia. Então... o que era mesmo que eu ia
ELE
dizendo?
Como foi que me descobriu aqui?
ELE
ELA
Como veio parar aqui.
Bom, eu... eu explico, já que o senhor resolveu conversar. Juro que não pensei em
ELA
lhe desagradar tanto, não pensei em lhe criar qualquer problema. É por isso que perguntei se o senhor se encontra acompanhado com alguém...
Pois sim, quando saí do carro, ainda com a cabeça rodando, julguei que o susto tinha afetado o meu cérebro e por isso eu estava com uma espécie de alucinação, ouvindo o coro da igreja. Aí desligaram a música, de repente, e então comprovei que não estava
265
266
delirando. A música só podia vir daqui. Como havia um pouco de terra pisada, bastou eu
ELE
seguir pelo rastro.
E tem mais. Além da senhora ser muito antipática, parece que é um tanto quanto...
ELE
irresponsável.
Você não acha que...
ELA
ELA
O senhor está me ofendendo moralmente e isto eu não admito.
O senhor me perdoe mas eu ficaria muito agradecida se me tratasse por senhora
ELE
em lugar de você. ELE A ilustre madame não acha que, para mim, está sendo inconveniente, inoportuna, isto é, em linguagem mais apropriada, não acha que está me enchendo todas as medidas?
Como é que anda sozinha quase à noite numa estrada perigosa como esta? Por que não trouxe o seu motorista, ou seu marido, ou seja lá quem for? ELA Não costumo ter motorista. E sou solteira.
ELA
ELE
Eu esperava que o senhor fosse menos deselegante. Aliás, em linguagem mais
Ainda?...
apropriada, menos grosseiro...
ELA
ELE
O que o senhor está querendo dizer?
E eu esperava que a nobre dama, depois de já ter demonstrado ser um precioso
ELE
exemplar da alta sociedade, desaparecesse da minha vista. Simplesmente isto:
Nada. Estou querendo perguntar...
desaparecesse!!! (Pausa)
ELA
ELA
Pois pergunte com boas maneiras.
Dá vontade de não acreditar. É impossível que o senhor não esteja brincando.
ELE
ELE
Não lhe parece esquisito que numa estrada tão longa, uma estrada que atravessa
Ouça, madame, eu não desejo espinafrar a senhora, também tenho educação, até de sobra para lhe dar de presente. Agora acontece o seguinte: não é por acaso que estou
três montanhas, o seu carro venha furar o pneu exatamente no lugar que eu escolhi para não ser perturbado?
neste lugar a esta hora. Preciso que me deixe em paz. O problema do pneu furado no seu
ELA
carro não é meu, é seu. Não tenho a menor inclinação para mecânico, detesto sujar as mãos
Mas que lógica! Então não existe coincidência?
de graxa, não pretendo prestar socorro hoje a quem quer que seja e penso até que você, que
ELE
a senhora, não merece auxílio porque é muito chata.
Há um limite para tudo.
ELA
ELA
É um direito seu me considerar desta forma.
O senhor não está sendo razoável.
ELE
ELE
É um direito seu, não, um direito do senhor. Também não lhe permito
E a senhora não está sendo agradável.
intimidades. ELA Tenha a bondade de me desculpar.
ELA Se me releva a sinceridade, mais esquisito é o senhor aqui uma hora desta, fazendo pic-nic só... Se é que não está mesmo acompanhado...
267
268
ELE
ELA
Vai indagar novamente se escondi alguma mulher quando a senhora se
Ah!... Era o senhor aquele que quis me dar passagem? Muito obrigada, foi gentil
aproximou?
da sua parte.
ELA
ELE
Absolutamente.
Por que não ultrapassou o meu carro?
ELE
ELA
Mas é este detalhe que está querendo saber, não é?
O senhor não acha que seria imprudência? Uma estrada estreita, toda em curva, do
ELA
lado o precipício tão fundo que a gente não enxerga nem o mato lá embaixo...
Não, o que estou querendo é que o senhor me ajude a trocar o pneu...
ELE
ELE
Agora sou eu que lhe pergunto: a senhora está acompanhada?
A senhora não me engana.
ELA
ELA
Claro que não...
Não engana como?
ELE
ELE
Não está nada claro. Pelo contrário.
O seu carro não é amarelo?
ELA
ELA
Como não está?
Como o senhor sabe?
ELE
ELE
Está tudo bastante escuro, bastante confuso. Quem é a senhora?
De capota preta?
ELA
ELA
O meu nome?
Sim, preta.
ELE
ELE
Não, a sua profissão, o seu trabalho, o seu meio de ganhar a vida.
Durante as duas primeiras ladeiras o seu carro vinha subindo atrás do meu, não
ELA
vinha?
Não preciso de meio de ganhar a vida. Sou rica. ELA
ELE
Não sei, não reparei.
É, de fato a senhora não tem jeito de ladra...
ELE
ELA
A senhora vinha me seguindo.
Ladra??? O senhor disse ladra?
ELA
ELE
Mas que absurdo!
De qualquer maneira, se a senhora veio me seguindo como “isca”, junto com
ELE
alguns bandidos, pode ir logo chamar o resto da quadrilha e começar o assalto. O que eu
Por que não passou à frente quando eu diminuí a marcha de propósito?
tenho está naquela maleta, inclusive a carteira de dinheiro.
269
270
ELA
ELA
Pelo amor de DEUS, não faça um juízo desse a meu respeito. Eu só desejo é que o
Desculpe, mais uma vez peço desculpa. Reconheço que o senhor tem a sua razão.
senhor me ajude a trocar o pneu. Naturalmente, se o outro pneu que tenho na mala do carro
Mas que culpa tenho eu?
não pestar, e o senhor quiser me levar de volta até à cidade, eu ficarei imensamente
ELE
agradecida e saberei recompensá-lo...
É…
ELE
ELA
Interessante. A senhora aproveitou oportunidade para dar a entender que é gente
Há alguma coisa errada comigo?
importante... agora fala em me recompensar... na verdade, vinha me seguindo pela
ELE
estrada... diz que não tem marido...
Sei lá…
ELA
ELA
Espero que não me interprete mal.
Por que o senhor permanece tão desconfiado?
ELE
ELE
Escute, vamos ser honestos, vamos esclarecer logo a coisa.
Há alguma coisa errada com a senhora, sim.
ELA
ELA
Esclarecer o quê?
Comigo?
ELE
ELE
A sua intenção, o seu objetivo. esta história de pneu furado não convence, é papo
Sim, há.
furado...
ELA ELA
O senhor poderia se explicar melhor?
Mas que embaraço! Eu disse a verdade, dou ao senhor a minha palavra de honra.
ELE
ELE
Não, não poderia, não posso. Mas há alguma coisa com a senhora que me soa
Tenho minhas dúvidas…
falso... não sei se é o seu modo de falar, estudado... não sei se é a sua fisionomia,
ELA
artificial... não sei se são os seus gestos... há alguma coisa na senhora que me sugere
Quanto à minha palavra? (Silêncio) Quanto à minha honra?
mentira, mistério... Não dá para explicar, sabe? Não dá.
ELE
ELA
Quanto às duas coisas...
Bem, pelo visto nada mais temos a conversar…
ELA
ELE
Infelizmente sou obrigada a ouvir as suas indiretas. Se tivesse outro recurso já
Isto mesmo. Finalmente estamos de acordo.
teria ido embora. O senhor sabe disso e fica explorando a situação, sua atitude é muito feia.
ELA
Um homem que tem dignidade não age dessa forma. Posso lhe garantir que em toda a
Estamos.
minha vida jamais fui tratada de maneira tão... insolente.
ELE
ELE
Estamos.
Cuidado. Agora a senhora é que está procurando me ofender e eu não lhe dou esta
ELA
liberdade.
Sem a menor dúvida.
271
272
ELE
ELA
Sem a menor dúvida.
O quê???
ELA
ELE
Perfeitamente.
Não sabe o que significa ninfomaníaca, não é?
ELE
ELA
Exato. Adeus, passe bem. (Pausa)
O senhor me respeite!
ELA
ELE
Pois é... (Pausa mais prolongada.) Já que a nossa conversa terminou de vez o
É sempre o mesmo figurino: rica, elegante e burra.
senhor podia me ajudar a trocar o pneu do carro e pronto, eu ía embora.
ELA
ELE
Burro é o senhor. Ignorante, pelo menos.
Puxa vida! A senhora tem cara dura, hein?! Escute, me diga uma coisa: vai ou não
ELE
vai me deixar sossegado? A senhora tem dois minutos para confessar o que está tramando ou para desaparecer da minha frente.
Ouça aqui, madame
analfabeta, ninfomaníaca é uma mulher sexualmente
insaciável... quando tem boa posição social, como a senhora, se maquila de maneira
ELA
extravagante para mudar de cara e sai pela rua ou pela estrada em busca de qualquer
O que o senhor quer que eu confesse em dois minutos?
homem...
ELE Dois, não, já só tem um minute e meio. Fale! Fale!!! ELA
ELA Quem não sabe o que é ninfomaníaca? Eu acho bom não medir a minha cultura pela sua falta de compostura! Também já li Freud.
Mas falar o que, meu DEUS?
ELE
ELE
Esta foi a melhor…
Um minuto…
ELA
ELA
Agora que o senhor chegou ao extremo de me igualar a uma prostituta, me
O senhor está no seu juízo normal?
responda uma pergunta: tem certeza de que não está sendo vítima de um desequilíbrio
ELE
nervoso? De uma perturbação mental?
Vinte segundos…
ELE
ELA
Vítima de quê?
Por tudo quanto é mais sagrado...
ELA
ELE
De um desajustamento…
A senhora por acaso é uma... ? Ora se é!...
ELE
ELA
Porventura o meu comportamento é de louco?
Uma o quê?
ELA
ELE
Louco não é bem o termo… Nem tanto…
Ninfomaníaca?!
ELE A minha aparência é de louco?
273
274
ELA
ELE
Bom, sobre a aparência eu diria… mais ou menos.
Vai perguntar pela décima vez se estou acompanhado?
ELE
ELA
Mais ou menos por quê?
Não vou perguntar mais nada.
ELA
ELE
O senhor já observou como está vestido? (Ele nota com certo constrangimento,
Moral da estória: a senhora acha que sou maluco, não é isto?
que esqueceu de tirar a indumentária teatral.) ELE É uma fantasia…
ELA Não. Não é, não. “Mas há alguma coisa no senhor que me sugere mentira, mistério... não dá para explicar, não dá...”
ELA
ELE
Acontece que não estamos em tempo de carnaval...
Aparece cada uma!
ELE
ELA
Eu poderia justificar esta minha roupa mas não é da sua conta.
Bem, como o senhor não me ajuda mesmo a consertar meu carro devo me retirar.
ELA
ELE
Não é, realmente. Porém “soa falso”...
A senhora é um tipo interessante...
ELE
ELA
Bolas, estou vestido com um traje de caça. E daí?
Obrigada.
ELA
ELE
Só falta a espingarda...
Sabe duma coisa? Estou disposto a conversar um pouco com a senhora.
ELE
ELA
Quer fazer gracinha, é?
Tenho pressa, está anoitecendo.
ELA
ELE
Não, apenas estranho que o senhor, para praticar o esporte da caça, não tenha
Não queria conversar? Sente aí. (Oferece a maleta a ela, senta-se no chão.)
escolhido um bosque ou algo parecido. Nunca ouvi dizer que se pudesse caçar em
ELA
montanha...
Vou embora. “Adeus, boa sorte, passe bem.”
ELE
ELE
Pic-nic não se faz com roupa comum.
Por favor, não vá ainda, vamos trocar umas ideias.
ELA
ELA
De fato. A hora é que não é muito indicada para pic-nic...
Agora sou eu que estou sentindo necessidade de ficar em paz. “Felicidades”.
ELE
ELE
Nova gracinha?
Espere um pouquinho mais.
ELA
ELA
E convenhamos que não é muito normal fazer pic-nic sozinho...
Não posso.
275
276
ELE
ELE
E se eu prometer que depois de trocar ideias troco o pneu do seu carro?
Estou falando sério.
ELA
ELA
Não precisa se preocupar. Obrigada. ELE
Não desejo comentar este assunto. Só toquei nele porque o senhor fez uma insinuação maldosa.
A senhora não tem força para afrouxar os parafusos.
ELE
ELA
Desculpe a insinuação. Jamais eu poderia supor que uma mulher esclarecida,
Não é problema, me encosto no carro, quando alguém passar peço colaboração.
madura, como você, aliás, como a senhora, ainda estivesse zero quilômetro... A senhora
ELE
então está em melhor estado do que o seu carro... Sim senhor! Quem tinha razão era um
Zangou-se porque suspeitei da sua honestidade? Desta vez a senhora é que não
colega meu que não se cansava de dizer: “mesmo entre as mulheres cultas e com mais de
está sendo razoável. Analise os fatos, ponha-se no meu lugar. Isto aqui é um local ermo,
trinta anos entre o céu e a terra há uma quantidade de virgens bem maior do que a nossa vã
deserto, um desvio da estrada, perto mas escondido. A senhora me descobre, aparece de
filosofia pode imaginar”... Grande colega... Velho companheiro... Que saudade... (Desloca-
surpresa, dizendo que está sozinha, que é uma mulher solteira, uma mulher livre...
se para o abismo, absorto.) Quanto tempo... quanto tempo... E parece que foi ontem... O
ELA
rato roendo nos bastidores um pedaço do cenário e o autor roendo as unhas na plateia.. A
Mulher livre, não. Uma mulher na minha idade ainda pode muito bem ser solteira
esperança em todos, a esperança... (Olha para o abismo; ela segue os seus movimentos,
e virgem.
atenta.)
ELE
ELA
Isto a senhora não disse...
O que houve com o senhor? (Ele aponta para baixo.)
ELA
ELE
Pois estou dizendo agora.
Vê?
ELE
ELA
Lamento...
As nuvens?
ELA
ELE
Com licença.
(Apressado e áspero.) Adeus, boa viagem para a senhora.
ELE
ELA
Um momentinho somente.
O que há?
ELA
ELE
Bom, se o senhor faz questão fechada de trocar o pneu do meu carro, eu consinto.
Nada. Vá embora.
Apenas para não ser indelicada.
ELA
ELE
E o meu pneu furado?...
A senhora é mesmo virgem? Isto me emociona...
ELE
ELA
Peça ajuda a outro.
Vai começar com as indiretas?
ELA Que outro? A estrada...
277
278
ELE
ELE
Espere até um carro passar!
Saia!!!
ELA
ELA
O senhor me empata tamanho tempo e depois me expulsa sem a menor
Está bem, está bem...
cerimônia? ELE Vá embora!
ELE (Agarrando-a). Olhe, se a senhora não sair já, sabe o que eu faço? Hein? Sabe o que eu faço???
ELA
ELA
Não vou não! Tenha paciência.
O que é que o senhor faz?
ELE
ELE
Vá logo, chega de chateação!
Faço a senhora se esmigalhar neste abismo abraçada comigo, quer ver?
ELA
ELA
Mas...
O senhor está transtornado. O senhor é que devia sair daqui imediatamente e se
ELE
internar num hospital de doenças... nervosas.
(Ameaçador) Vá!
ELE
ELA
Vá embora!!! Suma da minha frente!!! Olhe para mim, olhe: eu estou em crise de
Isso não são modos de tratar uma senhora. ELE (Encostando nela.) Vamos! ELA
raiva!!! Eu estou em crise de ódio!!! Eu estou em fúria!!! (Ele a empurra, ela tropeça.) ELA Meu anel... o senhor me fez perder meu anel de brilhante... Onde caiu meu anel de brilhante?... Onde caiu...(Começa a procurar o anel, apesar de apavorada.)
Não precisa empurrar.
ELE
ELE
Eu não aguento mais, juro que não aguento mais!
Desapareça, ouviu?
ELA
ELA
De todas as minhas jóias, de toda a herança que meu pai me deixou, o que sempre
Que brutalidade!
mais prezei foi este anel de brilhante. Minha Nossa Senhora onde caiu?...
ELE
ELE
Saia logo!
Eu vou estourar, não tem solução, vou estourar!
ELA
ELA
O senhor julga que...? Que...? Julga que me amedronta?
Pelo amor de DEUS, me ajude a achar o meu anel. Não é pelo brilhante, é pelo
ELE
valor estimativo, a minha avó usou esse anel no dia em que casou com o meu avô... (Ela
Não me irrite mais que já estou perdendo o controle!
acha enfim o anel.)
ELA
ELE
Calma, pelo amor de DEUS, se acalme.
Pare!!! Basta!!! Vamos acabar com esta encenação!!!
279
280
ELA
ELE
O que o senhor disse?...
Acha?...
ELE
ELA
Disse que a senhora está representando uma farsa!!!
Assisti diversas peças suas.
ELA
ELE
Ah!... Mas que satisfação!!!
Diversas?
ELE
ELA
(Surpreendido pela reação dela.) O quê???
O senhor é um artista notável.
ELA
ELE
Mas que alegria!
Obrigado.
ELE
ELA
Não entendo mais nada...
Não agradeça, só estou fazendo justiça.
ELA
ELE
Pois não é que eu conheço o senhor?!
Pois é...
ELE
ELA
Conhece???
Pois é.
ELA
ELE
Como não?
Espere aí...
ELE
ELA
Conhece a mim?
Sim?
ELA
ELE
Perfeitamente.
Não é estranho?
ELE
ELA
É?...
O quê?
ELA
ELE
O senhor não é de teatro? ELE
Que somente agora, depois de toda essa discussão, a senhora tenha me identificado?
Sim...
ELA
ELA
Ahn...
Eu sou uma admiradora sua. Como é que não recordei logo?...
ELE
ELE
Como é que explica isso?
Admiradora minha?...
ELA
ELA
Explicar?...
O senhor tem um talento extraordinário. Fabuloso.
281
282
ELE
ELA
Sim.
Como é mesmo o nome que se dá para o processo de funcionamento da memória?
ELA
Associação de ideias, não é?
Ora, muito simples.
ELE
ELE
Vai ou não vai responder???
Não é nada simples não. Aliás, tudo na senhora, desde o início, está complicado
ELA
demais.
Não torne a ficar nervoso, pode entrar em nova crise... ELA
ELE
Por que o senhor é tão desconfiado? Tem medo de alguma coisa?
A senhora é um pudim de enjoo que não tem mais tamanho. Vai explicar ou não
ELE
vai explicar porque somente depois de tanta chateação é que me reconheceu?
Medo de quê?
ELA
ELA
O senhor não me deixa falar...
Não sei, como posso saber?
ELE
ELE
Fale!
A senhora está querendo me embrulhar, é?
ELA
ELA
Quando o senhor disse que eu estava fazendo uma encenação, estava
Com que interesse?
representando, eu pensei em teatro, fiz a ligação. Aí lembrei várias peças suas. Numa delas
ELE
o seu trabalho foi impressionante: até hoje recordo aquele papel de louco que o senhor fez.
A senhora é bem sabida mas não conseguirá me confundir. Responda a pergunta
Antes de entrar naquela peça o senhor esteve internado em algum hospício?
que fiz.
ELE ELA
Hospício???
Que pergunta?
ELA
ELE
Sim.
Ponto final no seu jogo. Por que demorou todo esse tempo para lembrar que me
ELE Eu???
conhecia de teatro? ELA
ELA
O senhor por acaso ignora que a memória funciona de acordo com a
Não esteve?... ELE
oportunidade?...
Se ouvi direito a senhora está querendo dizer, pela segunda vez, que sou doido,
ELE E daí? ELA As lembranças surgem conforme a ocasião, conforme aquilo que a gente vê, ouve.
não é? ELA Mas que coisa! Não continue me interpretando mal. O que afirmei foi que o
ELE
senhor é um ator admirável. Indaguei se antes daquela peça o senhor não andou se
Eu sei, bolas, quer me responder logo?
hospedando em algum hospício, naturalmente para observar a conduta dos loucos. Pensei
283
284
que só assim poderia fazer aquele papel com tanto realismo. Nunca vi em teatro, nem em
ELA
televisão e cinema, uma imitação tão perfeita... Isto é, tão convincente. Não há dúvida, o
Que ideia!
senhor é um artista excepcional.
ELE
ELE
A senhora fala às vezes num tom meio doutrinário... Poderia ser também uma
A senhora acha mesmo?...
fanática testemunha de Jeová... ou até uma freira à paisana... Que diabo mesmo a senhora
ELA
é?
Mas é lógico que acho.
ELA
ELE
Uma pessoa comum, igual a outra qualquer.
Olhe para mim. De frente. Bem nos olhos. Firme. Sem piscar. Não tenha medo,
ELE
olhe bem no centro dos meus olhos. ELA
Não, é uma pessoa diferente, bastante diferente. Ainda não sei, na realidade, o que a senhora deseja de mim.
Para quê? O senhor quer me hipnotizar?
ELA
ELE
Trocar o pneu...
Olhe bem no centro dos meus olhos, sem nenhum receio, a menina dos meus
ELE
olhos também é virgem... (Ela obedece.) A sua opinião a respeito do meu talento não é
A senhora é tão diferente que está começando a me conquistar.
válida... é bondosa...
ELA
ELA
Fico feliz em saber disso.
O senhor tem um olhar penetrante. Gelado, mas queima.
ELE
ELE
Então a senhora acha que, de fato, sou um bom ator?
Gostei da definição. Foi um elogio ou uma crítica?
ELA
ELA
Eu não disse precisamente que o senhor é um bom ator.
O seu rosto, visto muito de perto, parece que tem algo de religioso, de místico.
ELE
ELE
Não?
Tem, é?
ELA
ELA
Disse que é extraordinário. Fabuloso.
O senhor ficaria zangado se eu lhe falasse de certos ensinamentos do Evangelho?
ELE
ELE
Gosta muito de teatro, é?
Ficaria.
ELA
ELA
Adoro.
O senhor não sabe como a religião é fundamental em nossa vida, principalmente
ELE
quando a gente se desespera e...
Entende de dramaturgia?
ELE
ELA
Ah! Já começo a compreender. A senhora é alguma missionária protestante que
Relativamente.
anda fazendo catequese na estrada?
285
286
ELE
ELA
Quais as peças clássicas que mais aprecia?
Nunca ninguém me chamou de ignorante com tanta convicção... E o pior é que o
ELA
senhor está completamente certo...
“O Burguês Fidalgo”, de Molière...
ELE
ELE
Nunca ninguém está totalmente certo a respeito de coisa nenhuma. Talvez até, em
Sim?
determinado sentido, a senhora entenda mais de dramaturgia do que eu. Olhe, quanto a
ELA
isto, o importante é que a senhora me considera um bom ator e eu a considero uma mulher
“As Troianas”, de Aristófanes...
bonita.
ELE
ELA
(Exaltado) Pare!
O senhor também acha?
ELA
ELE
Poderia citar outras...
Que sou um bom ator?
ELE
ELA
Basta! Já disse uma enorme besteira. A senhora pode entender de Evangelho, mas
Não, que sou uma mulher bonita?
em matéria de arte dramática sua ignorância está comprovada. Nem “As Troianas” é de
ELE
Aristófanes nem eu admito que continue desrespeitando a memória dos grandes autores
Acho.
teatrais! (Ela enxuga uma lágrima.)
ELA
ELA
Eu também acho.
Tem razão, sou uma analfabeta.
ELE
ELE
Que é bonita?...
Desculpe, não quis magoar. (Pausa) Todos nós somos analfabetos em algum
ELA Não, que o senhor é um grande ator.
assunto. ELA
ELE
(Humilde) Pois é, e eu não devia me meter a falar de um assunto que está acima
Mais uma vez obrigado.
da minha capacidade.
ELA
ELE
Quem agradece sou eu.
A sua especialidade é outra, ninguém pode saber tudo. Eu, por exemplo, não
ELE
entendo nada de Evangelho.
Bem, a troca do pneu do seu carro...
ELA
ELA
Acho que devo ir embora.
O senhor sabe que uma vez me disseram o contrário?
ELE
ELE
Ainda é cedo. Vamos ver se crio coragem para mexer no pneu do seu carro.
O contrário de quê? ELA Daquilo que o senhor disse: me disseram que sou inteligente e feia...
287
288
ELE
ELE
Gosto não se discute, cada um tem o seu senso estético. Porém para mim a
De um lado para o outro. Vá e venha. (Ela executa encabulada.)
senhora é uma mulher bonita.
ELA
ELA
Assim?
O senhor quer dizer... atraente?
ELE
ELE Não, atraente é outra coisa.
Não. Com mais... despreocupação. Faça de conta que está andando na praia... pisando em areia fofa.
ELA
ELA
Ah, sim... realmente eu nada tenho de atraente...
Não tenho prática... não frequento praia.
ELE
ELE
Não foi bem o que afirmei. A senhora não deixa de ser atraente, de certo modo.
Experimente balançar um pouquinho...
ELA
ELA
De que modo? Espiritual?
Não dá jeito.
ELE
ELE
Espiritual, não. Espere... Não estou compreendendo a sua dúvida. Ser atraente
É pena.
para a senhora é ser uma mulher “séxi”?
ELA
ELA
E sua conclusão, qual é?
Depende do seu conceito de “séxi”.
ELE
ELE
A senhora é bonita.
Parece que agora percebo o que a senhora deseja saber... Deixe eu reparar... É que
ELA
consumimos quase o tempo todo discutindo e nem sequer prestei atenção para o seu
E atraente?
aspecto... como diria... para o seu aspecto puramente físico... Mas isto é fácil, deixe eu me
ELE
concentrar na minha personalidade de homem-homem... na minha personalidade terra a
Bem, tenho alguma dificuldade em me sentir atraído por mulher.
terra, humana.... na minha personalidade não artística, entende?
ELA
ELA
É???
Entendo.
ELE
ELE
Questão de temperamento. Ou condicionamento.
Ande.
ELA
ELA
Depois o senhor diz que eu é que sou esquisita...
Como?
ELE
ELE
A senhora está enganada comigo... redondamente enganada.
Passeie.
ELA
ELA
É possível...
Por onde?
289
290
ELE
ELA
Está duvidando da minha masculinidade?
Porque infelizmente ainda não consegui que o senhor trocasse o pneu do meu
ELA
carro...
Não, não estou duvidando de nada. A esta altura já tenho plena certeza daquilo
ELE
que desejava saber...
Não conseguiu nem vai conseguir, ouviu? E quer saber mais?
ELE
ELA
Certeza de quê??? Vamos, diga! De quê???
Não precisa gritar.
ELA
ELE
Tenho plena certeza de que não sou atraente. Bonita talvez seja, mas de que vale
Já que não resolve mesmo ir embora vou lhe dar o golpe de misericórdia!!!
isto? O essencial na mulher, dizem, é exercer atração sobre os homens. E eu nada tenho de
ELA
atraente, na sua opinião.
(Alarmada) Vai me agredir?
ELE
ELE
E eu já lhe dei minha opinião? Ainda não manifestei opinião alguma.
Vou fazer coisa muito mais eficiente!
ELA
ELA
Às vezes não manifestar opinião nenhuma é muito pior do que dar opinião
Vai me...?
desfavorável...
ELE
ELE Estou apenas querendo ser criterioso. Para dar uma opinião honesta precisaria que a senhora colaborasse... ELA
Vou calar. Silenciar. Permanecer mudo. Adotar, friamente, a política do desprezo. (Pausa) ELA O senhor é espirituoso... (Aguarda que ele fale inutilmente.) E genioso.
De que maneira?
Impiedoso... De qualquer maneira, fico bastante grata por ter achado que sou bonita... De
ELE
qualquer maneira, é um ator fenomenal... Apesar de que como pessoa humana parece
A dificuldade é essa... A senhora está com excesso de roupa... Se tirasse a
desligado do mundo... Como homem parece que vive flutuando perdido no espaço... (Ao
metade... ELA O senhor está levando muito longe a confiança que lhe dei. Quem é que pensa que sou?
ouvir esta última frase ele sente um impacto; desloca-se para a beira do abismo, vasculha com o olhar a linha do horizonte.) ELE Sumiram... as nuvens sumiram... (Ela chega-se a ele, aflita.)
ELE
ELA
Melindrou-se, é?
Por favor. (Ele retrocede, desolado.)
ELA
ELE
Melindrei-me.
A senhora venceu. Escute, fora desse negócio de trocar o pneu do seu carro, o que
ELE
a senhora quer para me deixar em paz? Eu sou um ator de teatro, já sabe, não é? Estou aqui
(Agastado) Bolas, então por que não vai embora?
para ensaiar isolado, trouxe até a roupa de cena e me vesti com ela como está vendo a fim
291
292
de facilitar a concentração; o meu papel é longo e difícil, vou interpretar o REI LEAR, de
ELE
Shakespeare, preciso me preparar, a estreia da peça é depois de amanhã.
(Incrédulo) A senhora não tem a chave para trocar o pneu?
ELA Não é somente na sexta-feira? ELE
ELA Se o senhor, que é homem, não carrega ferramenta no carro eu é que haveria de carregar?
A senhora sabe???
ELE
ELA
Esta é boa!
Sim...
ELA
ELE
Não se preocupe. O senhor acaba seu ensaio e depois me dá uma carona. Pelo
Como??? Ninguém falou no adiamento da estreia. (Ligeira pausa.) ELA Uma coluna de jornal deu... Não me recordo em que jornal, mas li por esses dias... (Pausa maior.)
menos me leva até um posto de gasolina. ELE (Resignado) Está certo, vá para o seu carro e me espere lá. ELA
ELE
Se o senhor não se importa eu espero aqui.
Se a senhora não entende de dramaturgia como se ocupa em ler coluna de teatro?
ELE
ELA
Aqui não!
Eu falei isto?
ELA
ELE
Prometo não incomodar. Garanto que não incomodo. (Senta em um canto.)
Falou.
ELE
ELA
Como não incomoda?
O senhor está equivocado. Eu falei que li em uma coluna de jornal, não disse que
ELA
era coluna de teatro. Se não me falha a memória li em uma coluna social. De vez em
Ora, deixe de modéstia. O senhor é um ator consumado, não vai se prejudicar no
quando nas colunas sociais a gente vê informações e novidades artísticas. O que o senhor
ensaio com a presença de uma simples espectadora. O senhor tem capacidade de se
está pensando? De vez em quando nas colunas sociais sai alguma coisa útil...
concentrar até no meio de uma multidão. Eu fico quieta. Pronto, já estou calada.
ELE É, a senhora ganhou mesmo a batalha. A esta altura dos acontecimentos, se eu me julgasse capaz de trocar o pneu de um carro já não me encontrava mais aqui. (Pausa. Ele dá-se por vencido.) Bem, vamos ao pneu furado, vamos fazer uma tentativa.
ELE Senhor DEUS dos desgraçados, tende compaixão de mim! (Pausa. Ele reflete. Gargalhada.) ELA
ELA
Este riso é da peça ou o senhor está rindo de mim?
O senhor tem chave de roda, não tem?
ELE
ELE
Nem uma coisa nem outra. Estou rindo de mim mesmo, do grande idiota que eu
Eu? Nunca ando com ferramenta.
sou, suportando como um carneiro esta situação. É... a vida não passa de uma
ELA
tragicomédia... Sabe de uma coisa? Cansei de me aborrecer. A senhora é uma criatura
Então nada feito. Eu também não ando.
encantadora, adorável... sua presença aqui é para mim muito simpática, extremamente
293
294
honrosa... esteja tranquila e obrigado pela amabilidade de assistir o meu ensaio... (Passeia
ELE
de um lado para o outro. Fica imóvel, medita, concentra-se. Transfigura-se. Começa a
Voltar... Seguir e voltar... Nunca o passo à frente, definitivo...
representar.)
ELA
“Enquanto espero, quer revelar-vos as mais secretas resoluções...
A noite me dá às vezes uma sensação de medo...
Vamos deixar esses assuntos sobre ombros mias novos, mais fortes, de forma que,
ELE
sem pesadas cargas, possamos caminhar calmamente para a morte...
É... à noite a gente desperta...
Muito bem! Pois que esta fraqueza seja o teu dote. Pela sagrada luz dos sol, pelos
ELA
mistérios de hécate e da noite, por todas as influências dos astros pelos quais aqui vivemos
Eu gosto do dia, sabe? Gosto da claridade...
e deixamos de viver... ” (Ela faz um gesto.) Oh! Não fales que não preciso! Os nossos mias
ELE
vis mendigos... (Esquece o texto, hesita.) Não concedais a natureza mais do que ela exige.
Todo mundo gosta...
A vida humana pode custar tanto quanto a do animal. Tu és uma senhora: se não tivesse
ELA
necessidade senão de vestidos quentes...” (Torna a esquecer o texto.) Oh! Céus! Dai-me
Não é que não goste da noite. Quero dizer que prefiro o dia.
paciência... (À beira do abismo.) Soprai, ó ventos! Até que as vossas faces rebentem!
ELE
Soprai com violência!... (Afasta-se do abismo.) Mais te valeria estar na sepultura do que
Todo mundo prefere... A luz do dia projeta sombras em nosso redor e nós nos
andar assim exposto à inclemência do tempo!... (Diante dela.) O homem sem as
movimentamos atrás delas, distraídos no esquecimento da realidade... e o tempo passa
comodidades da civilização é apenas um triste animal, nu e desprezível como tu. Guerra!
pisando tão de leve que não deixa marcas no chão da consciência... alguém escreveu
Guerra ao que não é verdadeiro!... Deixemo-nos de imposturas... (Fitando-a com firmeza.)
isto?...
Que crueldade! Para que me arrancais da sepultura? Tu és uma alma abençoada, mas eu
ELA
estou amarrado a uma roda de fogo de tal modo que as minhas lágrimas me queimam como
O senhor pretende continuar ensaiando durante muito tempo ainda?
se fossem chumbo derretido... (Ela, sensibilizada, começa a lagrimar.) As vossas lágrimas
ELE
também são úmidas? E é verdade! Não choreis mais, eu vos peço; se tendes algum veneno
Sim e não...
para beber, dai-me.” (Pausa. Ele se descontrai, retoma a postura normal. Acende um
ELA
cigarro, senta-se no canto oposto ao dela. Olham-se. Silêncio.)
Como sim e não?
ELA Anoiteceu... Praticamente já é noite... ELE
ELE Depende de você, digo, da senhora. Se eu ficar só talvez resolva logo o meu problema. Com nuvens ou sem nuvens...
Sempre anoitece...
ELA
ELA
Não seria melhor terminar o ensaio na cidade?
As estrelas começam a aparecer...
ELE
ELE
Não.
Só não aparecem as nuvens...
ELA
ELA
O que há com o senhor?
É hora de voltar...
ELE Nada.
295
296
ELA
ELE
Não creio.
Fiz tudo o que um homem equilibrado e desequilibrado poderia ter feito. Pedi,
ELE
insisti, ameacei.
E com a senhora, o que há?
ELA
ELA
Não precisa se irritar novamente.
Um pneu furado...
ELE
ELE
(Com crescente excitação.) Esgotei todos os recursos que tive para me livrar da
Parece que chegou o instante de colocar as cartas na mesa e decidir o nosso jogo.
senhora e sobretudo para fazer a senhora se livrar de mim.
ELA
ELA
Não entendo. Que jogo?
Escute, não se inflame mais.
ELE
ELE
Da minha parte eu lamento, nunca fiz mal a uma mulher, a senhora vai ser a primeira...
Esgotei, desanimei, saturei, cheguei a um ponto em que não é mais possível falar, dialogar, conciliar.
ELA
ELA
O senhor vai me fazer mal???
Tenha calma, não custa ter um pouco de calma, estou disposta a...
ELE
ELE
Vou.
Eu é que estou disposto a não ser mais chateado, embromado, enfezado,
ELA
azucrinado. (Aproxima-se do abismo, resoluto.) Faz questão de ser testemunha, não faz?
Não, pelo amor de DEUS, eu grito!
(Ela corre para ele.)
ELE
ELA
Vou lhe fazer mal mas não como a senhora está pensando.
Testemunha de quê?
ELA
ELE Como é rica tem dinheiro suficiente para contratar advogado e se defender no
Ah, é?... ELE
inquérito policial, não tem? (Ela se interpõe entre ele e o abismo.)
Vou lhe arrumar complicações com a polícia.
ELA
ELA
O que o senhor tenciona fazer?
Polícia?
ELE
ELE
Tem cara dura para enfrentar o escândalo, não tem?
Quando se arrepender será tarde demais. Eu fiz tudo para a senhora ir embora, não
ELA Por caridade, ouça, o senhor perdeu o juízo? (Ele procura atingir a beira do
fiz? Fiz tudo para não lhe envolver no meu caso, não fiz? ELA Por favor não torne a se descontrolar dos nervos.
abismo.) ELE Pois esta cena ridícula vai chegar ao fim. Já. Sem nuvem lá embaixo, sem solidão, sem beleza... (Ele tenta se lançar ao abismo, ela o segura desesperadamente.)
297
298
SEGUNDO ATO
ELA Meu DEUS do céu, o senhor enlouqueceu? ELE
Momentos depois. Os dois estão deitados, um ao lado do outro, ele fumando
Você é que é uma louca. Saia! Largue! Eu preciso morrer! ELA
ELA
Eu não deixo você fazer esta loucura, não posso deixar!... (Lutam os dois, rolam
E agora?... (Pausa)
pelo chão, atracados; quando param, exaustos, estão com os rostos praticamente colados,
ELE
os lábios se tocam.)
Pois é... (Pausa) ELA O que vamos fazer?... ELE Já fizemos... (Pausa) ELA E a consequência?... ELE Por que haveria de ter consequência?... (Pausa) ELA Você estragou a minha vida... ELE E você estragou a minha morte... (Pausa) Como soube?... ELA Que ia se suicidar?... ELE Foi algum colega de teatro? Eu não falei nada a ninguém. ELA Foi o Diretor da Companhia, Diretor ou Empresário, não sei bem. Contaram a ele o seu plano. Parece que você esqueceu no camarim uma carta pela metade se despedindo de determinadas pessoas. Quando você apanhou a carta no outro dia ele já tinha lido, alguém mostrou. ELE Cretino.
299
300
ELA
ELE
Ele tentou, coitado, salvar a sua vida, e com que desespero. Você acha isso
No meu caso o resultado não foi exatamente aquele que você esperava, hein?
cretinice?
ELA
ELE Tentou salvar a minha vida... O que ele tentou foi salvar a estreia do espetáculo. Bobalhão: podia faturar muito mais em propaganda com a repercussão da minha morte.
É, não foi. Porém na maioria dos casos nós atingimos a nossa meta. No geral as pessoas pensam em se matar pelos motivos mais tolos. Há, naturalmente, os que são levados ao suicídio por falta de meios para superar problemas econômicos graves e
ELA
contrariedades dolorosas. Entretanto a maioria decide largar a existência sem saber bem
Suicídio hoje em dia não causa mais repercussão. São tantas as pessoas que se
porque...
matam... é uma pena.
ELE
ELE
Se está tentando sondar o meu ânimo perde tempo.
Acontece que não sou qualquer pessoa. Um artista de fama quando morre
ELA
tragicamente vira material de publicidade. E atualmente, por desgraça, é a publicidade que
Você deve ter um motivo forte para querer fugir da vida.
sustenta todas as artes. Mas, como foi mesmo que a senhora entrou nessa estória?
ELE
ELA
Não é da vida que quero fugir.
Voltou a me chamar de senhora?
ELA
ELE
Ah, não?
É...
ELE
ELA
Não.
Depois do que fizemos?
ELA
ELE
É de alguma responsabilidade?
De tanta insistência tua acho que me habituei.
ELE
ELA
Não.
Também não precisa me tratar por tu. Você é mais suave.
ELA
ELE
De alguma frustração?
Como foi que entrou nisso?
ELE
ELA
Negativo.
Sou Diretora de uma instituição religiosa de combate ao suicídio... nunca viu o
ELA
nosso anúncio no jornal? Temos um telefone funcionando dia e noite, fazemos plantão
Tédio? Está farto daquilo que faz, que sempre fez e sempre terá de fazer?
permanente. Qualquer pessoa dominada pelo desejo de se matar basta recorrer a nós:
ELE
entramos em ação incontinenti. Damos conselho, conforto, apoio moral e té auxílio
Não.
financeiro, uma vez ou outra. Já conseguimos evitar que centenas de criaturas amarguradas
ELA
metessem uma bala na cabeça. Só queria que lesse as cartas de agradecimento que temos
Câncer?
em arquivo: são comoventes. Nosso trabalho é importantíssimo, embora nem sempre dê os
ELE
resultados esperados.
Não.
301
302
ELA
ELA
Desencanto coma Humanidade?
Um dia uma velha nos telefonou. Tinha oitenta anos porém ainda estava lúcida.
ELE
ELE
Não.
Não insista.
ELA
ELA
Puxa! Não é mesmo fácil penetrar no seu ânimo.
Ouça que dá para uma gostosa risada.
ELE
ELE
Não, não é.
Todo o seu objetivo agora é me fazer rir, é?
ELA
ELA
Eu confesso que gostaria de levantar o seu ânimo.
Bem...
ELE
ELE
Não conseguirá. ELA
Se prometer encerrar a sessão de humorismo por este preço eu passo vinte minutos rindo sem parar e sem necessidade de você contar nenhum caso.
Será que não melhoraria se...
ELA
ELE
Ouça só um instantezinho, vou resumir. A velha, apesar dos noventa anos...
Se o quê?
ELE
ELA
Quantos anos?
Se eu pudesse lhe dar um pouquinho de bom humor?
ELA
ELE
Noventa.
Bom humor?
ELE
ELA
Em dois minutos já envelheceu dez anos?...
Sim, falando coisas engraçadas.
ELA
ELE
Eu não falei antes que ela tinha noventa anos?
Você não tem cara disso.
ELE
ELA
Não, oitenta. Erro de imprensa...
Concordo. Acontece que em minha atividade tenho tido oportunidade de tomar
ELA
conhecimento de casos engraçadíssimos.
Acha que estou inventando?
ELE
ELE
Neste mundo não existe nada engraçado, existe apenas o grotesco e o ridículo.
Eu não acho mais nada a seu respeito...
ELA
ELA
Ouça este caso e veja se não é para rir.
O caso foi real, ouça o resto...
ELE
ELE
Não adianta.
Já não sei nem se você é real...
303
304
ELA
ELE
Então, como ia dizendo, a velha de oitenta anos nos telefonou e...
Este poderia ser um cientista, um gênio. Que fim levou?
ELE
ELA
Comunicou que pretendia se matar. ELA
De início ele esclareceu que só podia se encontrar conosco no alto do Pão de Açúcar, às dez horas da noite.
Eu falei isto?
ELE
ELE
Foram?
Não, falei eu. É o seguimento natural da estória.
ELA
ELA
Não. Nós primeiro resolvemos que devíamos ir porque ele se identificou e logo
Ela não avisou que ia se suicidar não.
apuramos que não se tratava de um “trote”, o homem era um professor de Física que sofreu
ELE
uma fratura no crânio em um desastre. Depois desistimos porque ele voltou a nos telefonar
Ah, não?
recomendando que levássemos guarda-chuva ou sombrinha. Quando indagamos o porquê
ELA
do guarda-chuva ou sombrinha, ele alertou que a conversa seria longa e talvez o bondinho
Ela telefonou e apenas disse, com o maior charme, que tinha o máximo prazer em
do Pão de Açúcar não estivesse funcionando lá para as quatro horas da madrugada: o jeito
nos convidar para o seu enterro...
seria nós descermos de paraquedas...
ELE
ELE
E você foi?
(Impassível) Acabou?
ELA
ELA
Conversar com ela?
O que, a vida dele?
ELE
ELE
Não, no enterro?!
Não, o seu esforço para me fazer rir?
ELA
ELA Deixe eu terminar o caso da velha. Você não me deixa falar, desvia sempre o
Deixe de ironia, preste atenção. Ela fez o convite com tamanha seriedade que eu pensei: coitadinha, está com artérioesclerose, está caducando. Porque você também sabe que um grande número de pessoas se mata devido a distúrbios mentais, não é? De vez em
assunto. ELE
quando nos defrontamos com malucos de toda espécie. Certa feita um nos telefonou
Já falou até demais.
alegando que precisava morrer porque o mundo estava ficando cada vez mais redondo e ele
ELA
estava ficando cada vez amis quadrado...
Posso ao menos terminar o caso da velha?
ELE
ELE
(Quase rindo.) Este não era um suicida, era um gozador.
De sessenta anos?
ELA
ELA
(Entusiasmada) Ouro nos telefonou informando que tinha descoberto uma
Não, de oitenta. Onde era mesmo que eu estava?
fórmula química para fabricar bomba atômica com pó de gelo moído...
ELE No cemitério...
305
306
ELA
ELA
Não, no convite para o enterro. Ela nos convidou com muita classe, era uma velha
Desde que o padre da nossa confiança, na ocasião de sepultarem o corpo dela,
do soçaite, milionária, riquíssima. ELE
fizesse um violento sermão condenando ao Inferno, pelos séculos e séculos, todos os filhos que escravizam os pais na velhice proibindo-os de satisfazer suas vontades.
O que vale esta vida... Você enche a boca e diz: “riquíssima, milionária”; eu
ELE
penso: “e no entanto, velha”...
A velhinha estava lúcida mesmo...
ELA
ELA
Nós indagamos se ela não desejava ter uma entrevista conosco antes do enterro.
E desde que, no final do sermão, o padre lesse alto, para todos os presentes
Ela respondeu que daria a metade da fortuna para isto, mas que infelizmente era impossível
ouvirem, o testamento “moral” dela. Este testamento é que me pareceu engraçadíssimo. A
porque se encontrava proibida, pelo médico e pelos parentes, de receber visitas, se afastar
velha era metida a filósofa e havia escrito, ou escreveram para ela, mais ou menos assim:
do quarto, comer chocolate, fumar um cigarrinho e fazer todas as outras coisas de que
“Depois de legar a uma instituição caridosa as propriedades que constituíram os meus bens
gostava. Então, como a filha única, que tanto ela estimava, tinha se transformado em sua
e também os meus males, lego à família, aos que habitam a Casa do Cão onde morei, o
algoz, governando-a com mais rigor do que governava o cachorro, que podia até fazer pipi
patrimônio constituído pelos meus objetos de uso pessoal. A cadeira de rodas ficará para o
na sala, havia a pobre velha chegado a duas conclusões...
meu genro, a fim de que ele continue rodando como piru leso enquanto a mulher manda
ELE
nele. A bengala ficará para o meu neto, a fim de que pelo menos ele tenha alguma utilidade
A primeira, se matar.
depois da sua lambreta se arrebentar num poste. Os óculos de grau ficarão para a minha
ELA
filha, que me azedou o fim da existência, a fim de que ela enxergue um palmo diante das
Certo. E a segunda...
ventas”.
ELE
ELE
Se vingar.
Corte aí que não vejo nada engraçado nessa estória. Embora ela seja, sem dúvida
ELA
nenhuma, produto da sua imaginação, para me fazer rir, tem um conteúdo bastante
Exato. Como adivinhou?
humano, é mais triste do que cômica...
ELE
ELA
Raciocínio lógico.
É isto, você não deixa eu acabar nada do que começo a dizer. Assim não é
ELA
possível nós nos entendermos.
Pois aí é que entra o pitoresco, o engraçado. Sabe como a velha queria se vingar?
ELE
ELE
Não é possível nos entendermos porque você tem o péssimo defeito de enrolar
Isto eu não posso saber, uma atitude de vingança nunca é lógica.
todos os assuntos. Se está pensando que me embrulha perca as esperanças. Eu lhe
ELA
perguntei, um momento atrás, como foi que entrou nisso, isto é, como foi que entrou no
Imagine. Ela queria que providenciássemos um advogado para alterar em Cartório
meu plano de suicídio. Como foi que cruzou o meu caminho, como foi que veio parar aqui.
o seu testamento, doando à nossa instituição as suas propriedades.
Você informou apenas que é Diretora de uma instituição de combate ao suicídio, informou
ELE
apenas que eu esqueci uma carta de despedida no camarim do teatro e não informou mais
Uma boa vingança para ela e um bom negócio para você...
nada, embaralhou tudo.
307
308
ELA
ELE
Deixe então eu terminar de lhe contar. Realizo esta obra humanitária há anos,
E o seu noivo?
desde que meu noivo morreu.
ELA
ELE
Por que insiste nesse assunto?
Amava muito o noivo? Ficou apaixonada?
ELE
ELA
Fale nele. Morreu de quê?
Não convém falar disso para não enrolar o assunto... Então, hoje de manhã, nosso
ELA
telefone tocou e o Diretor ou Empresário da sua Companhia suplicou que nós vigiássemos
Desastre de automóvel.
você. Deu todas as orientações nesse sentido, explicando direitinho como deveríamos
ELE
proceder.
Estava com ele na ocasião?
ELE
ELA Estive minutos antes... Brigamos, eu desmanchei o noivado... O carro dele saiu da
Patife. Estava pensando no dinheiro que ia perder com o atraso da estreia. ELA
estrada, deu de encontro com a rocha, incendiou... Agora a vez de perguntar é minha. Por
Posso lhe fazer uma pergunta?
que sendo um artista famoso, e um homem ainda relativamente jovem, bonito, ia se matar?
ELE
ELE
Pode. Mas antes vou lhe fazer várias. Para começar: por que se arriscou a vir
Bonito? Eu bonito? O que você havia dito é que eu era um ator extraordinário,
sozinha até aqui? Não é tão ingênua para não ter avaliado o perigo.
notável.
ELA
ELA
Ele nos alertou que não adiantaria doutrinar você diretamente, que tínhamos de
Faz anos que não entro em um teatro...
agir com extrema habilidade senão seria pior. Geralmente o nosso trabalho é de equipe.
ELE
Quando saímos para atender alguém, o que é muito raro, quase sempre as pessoas é que
Pensa que eu acreditei? (Pausa)
vêm a nós, depois de ouvirem no telefone umas palavras de consolo que temos gravadas
ELA
em fita magnética, quando saímos para atender alguém eu vou junto com um psicólogo ou
Perdoe.
uma assistente social. No seu caso, porém era necessário que eu viesse sozinha e
ELE
enfrentasse o problema de frente... À princípio fiquei temerosa. Criei coragem quando me lembrei que afinal de contas era a primeira vez que estava tendo a oportunidade de salvar uma vida unicamente com o meu sacrifício próprio. ELE Espero que o sacrifício não tenha sido dos maiores... (Pausa)
Perdoar a sua mentira é fácil, era caridosa. O difícil é esquecer. Você é uma mulher muito inteligente, sabe? ELA E você também só agora falou a verdade afirmando que sou inteligente. Faltou completar: inteligente e sem o menor atrativo como mulher. (Pausa)
ELA
ELE
Achei maravilhosa a possibilidade de me sacrificar para salvar uma vida. Uma
É... finalmente tiramos as máscaras... A gente sempre acaba tirando as máscaras
sensação que não posso definir tomou conta de mim. Algo que eu jamais tinha sentido, mas que sentia que precisava sentir...
quando faz o mesmo com as roupas... (Pausa) ELA Por que ia se matar?
309
310
ELE
ELE
Por que viver?
Casei, vivi com uma mulher leviana meia dúzia de anos, durante esse tempo
ELA
cumpri com todos os meus deveres conjugais, e depois do bom cumprimento do dever dei
Ora, a vida é a vida.
o grito do Ipiranga, declarei a minha independência. Serenamente. E legalmente.
ELE
ELA
Belo argumento.
Então é desquitado.
ELA
ELE
Eu tinha muitos argumentos para mostrar a você a insensatez do suicídio. Mas depois do que houve entre nós perdi a graça... ELE Perdeu porque quis e não pode nem se queixar. O seduzido fui eu. (Pausa) ELA É casado?
Não, sou quitado. Paguei à esposa tudo o que ela me deu, não lhe devo nada, somos até amigos. Aliás, ela é que está me devendo um dinheiro emprestado para socorrer o amante. ELA Quer dizer que você, como eu, não tem compromisso?... (Silêncio) E nós, agora, como vamos ficar?...
ELE
ELE
Não.
Quem vai ficar sou eu. Você vai embora...
ELA
ELA
Solteiro?
Quer dizer que...
ELE
ELE
Não.
Lastimo. Porém a vida para mim não tem sentido.
ELA
ELA
Viúvo?
Mas eu... embora não fosse pura quando cheguei aqui, já não sou a mesma,
ELE
compreende?
Não.
ELE
ELA
Eu continuo igualzinho, não mudei nada.
Amasiado?
ELA
ELE
Você é um cínico!
Não.
ELE
ELA
Obrigado.
Ah! É divorciado.
ELA
ELE Não.
Uma última pergunta, porém vai ter que me responder: por que me possuiu fisicamente se não sente nada de especial por mim. Por quê? (Pausa)
ELA
ELE
E então é o quê? (Pausa)
Honestamente, não sei. (Pausa)
311
312
ELA
ELA
Foi simplesmente por gratidão? (Pausa)
Você me deixa confusa, embaraçada; me diga uma coisa: além de arte dramática
ELE
você estudou Psicologia, Psicanálise?
Acho que não. Não foi por um sentimento tão humano...
ELE
ELA
Estudei. Só que não estudei as pessoas em livros, estudei nelas mesmas... Não
Realmente o seu sentimento é desumano.
estudei por fora, estudei por dentro... Aliás eu não estudei, eu vivi. Quase todos os tipos
ELE
humanos eu já vivi no palco. Já senti na minha pele, nos meus nervos, nas minhas
Também não é assim. Creio que... veja se dá para entender: eu estou aqui a fim de
emoções, no meu cérebro...
me suicidar e me suicidar como deve se suicidar um verdadeiro ator, isto é, representando... quando eu ia me lançar no abismo você interferiu alucinadamente, tornando-se personagem da minha tragédia... interferiu e interpretou com tanta paixão o
ELA Não entendo como um homem que conhece tanto os sentimentos humanos não sente o menor afeto por uma mulher que arriscou a vida para salvá-lo.
papel de salvadora que eu, instintivamente, me envolvi no clima da ação e completei a
ELE
cena romântica... É... foi exatamente isto que aconteceu...
Se tudo o que me disse é verdade, não sei até onde as suas palavras merecem fé,
ELA
já lhe disse, pressinto nelas falsidade, mistificação, alguma coisa em você me soa falso,
Escute, você tem certeza de que é uma pessoa lógica?...
repito, se tudo o que me disse é verdade, também não lhe devo nada, estou quitado.
ELE
ELA
Tenho. Absoluta. E é nesta certeza que reside todo o meu drama sem solução. Eu
Como pode ser tão ingrato?
sei pensar. Eu raciocino. E, infortunadamente, sou lógico. ELA Já consultou um psiquiatra?...
ELE Pela lógica você não veio aqui para me salvar do suicídio e sim para me salvar de um complexo de culpa.
ELE
ELA
Já.
Que infâmia!
ELA
ELE
Não deu resultado?
No fundo deve se considerar culpada pela morte de seu noivo. Sabe que é possível
ELE
ele ter guiado o carro desastradamente em consequência da briga e do noivado desfeito.
Deu. Até hoje de vez em quando ele me procura para contar os seus problemas...
Inconscientemente, deve admitir que o seu noivo tenha até se suicidado por sua culpa.
ELA
Então, para compensar o remorso inconsciente, você entrou nessa de fazer campanha
Experimentou conversar com um padre?
contra o suicídio...
ELE
ELA
Conversei com dois, tornaram-se meus amigos. Sempre que posso ajudo um e
Você é um perverso.
outro a resolver questões de consciência. Infelizmente, ou felizmente, não conseguiram ainda coragem para largar a batina e casar...
ELE Pelo contrário, sou um sujeito boníssimo e a prova disso é que, antes de me matar, estou praticando a boa ação que me pediu logo quando chegou com a história do pneu furado. Eu, em nome de mim mesmo e não de qualquer instituição religiosa, por iniciativa
313
314
voluntária e não por impulso inconsciente, é que estou tentando salvá-la. Salvá-la da
ELA
mentira contra si própria, a pior forma de suicídio...
Vou me jogar no abismo com você.
ELA
ELE
Está querendo é desnortear o meu juízo para me arrastar à morte consigo.
Comigo???
ELE
ELA
Não, estou procurando acordá-la para que comece a viver. O seu problema é
Você merece.
diferente do meu, ainda pode ser feliz, não porque seja mais atraente do que pensa, e sim
ELE
porque é menos inteligente do que julga... Acredite em mim: ainda pode ser feliz, comece a
Que estupidez!...
viver.
ELA ELA
Só queria uma coisa.
Começar como?
ELE
ELE
Escute...
Vivendo de fato e não de fantasia. Sendo o que é: uma pessoa igual às outras e,
ELA
portanto, sujeita a fraquezas, contradições e erros. Talvez tenha provocado a morte do seu
Só queria que nós pulássemos para a morte abraçados.
noivo. E daí? Não provocou porque desejasse provocar, fez uma coisa que na ocasião
ELE
achava certo, não poderia adivinhar o que iria acontecer. Experimente se sentir quitada
Escute, deixe eu falar, sim?...
consigo mesma e veja como isto faz bem!
ELA
ELA
Já falou demais. E infelizmente disse o que precisava ser dito.
Nunca ninguém me falou como você está me falando.
ELE
ELE
Deixa ou não deixa eu falar?
É o raciocínio lógico.
ELA
ELA
Para quê? Para tentar me convencer a ir embora como digna Diretora de uma
Tem razão, todo ser humano deve ser lógico, vou seguir a orientação do seu exemplo.
instituição de Combate ao Suicídio? Agora é tarde... (Caminha para o abismo; ele a acompanha.)
ELE
ELE
Fico muito satisfeito.
O que vai fazer?
ELA
ELA
Também vou me suicidar. (Ele espanta-se.)
Vamos...
ELE
ELE
O quê???
Vamos o quê?
ELA
ELA
Vou me matar.
Morrer, é lógico.
ELE
ELE
Está brincando.
Eu não...
315
ELA
ELE
Não??? (Pausa)
Se a minha presença lhe incomoda retire-se você.
ELE
ELA
Claro que não vou me suicidar dessa maneira. Fiz um programa para minha morte de acordo com o meu temperamento, com o meu caráter, com a minha vocação.
(Explodindo) Desapareça da minha frente!!! ELE
ELA
Está louca???
Você me decepcionou. Francamente.
ELA
ELE
Bem, você fica, não fica? Eu avisei, não avisei? Pois quem vai ter complicações
E você, francamente, me surpreendeu...
com a polícia é você, ouviu? (Ela ensaia o pulo para o abismo, ele a segura, atracam-se os
ELA
dois, rolam pelo chão como na vez anterior. Param, exaustos. Olham-se. Ele aplica-lhe
Então depois de tudo o que houve, me nega a sua compreensão e a sua
uma bofetada.)
solidariedade?
ELE
ELE
Pronto!
(Buscando afastá-la do abismo.) Você não está no seu juízo perfeito.
ELA
ELA
O que fez, seu covarde?!
Faça o favor de se retirar!
ELE
ELE Por quê?
Fiz você esfriar a cabeça com o melhor remédio. Não fez a mesma coisa comigo me beijando?...
ELA
ELA
Também não quero testemunha.
Você é um débil mental! (Começa a chorar.)
ELE
ELE
Ouça: quer mesmo que eu saia para se matar?
E você, sinceramente, é uma doida dessas que nenhum médico cura...
ELA
ELA
Que pergunta inocente! Não, quero que saia para que eu possa mascar chiclete!...
Um monstro!
ELE
ELE
Ainda vem com ironia, hein? ELA
Sim, senhor, era só o que faltava me acontecer na vida e tinha de acontecer na hora da morte...
Como é? Vai ou não vai embora?
ELA
ELE
É um sujeito sem escrúpulos. Mas eu me vingo!
Não vou. Cheguei aqui primeiro, a vez é minha.
ELE
ELA
Vingue-se, que me importa? Vou acabar com a vida não faz diferença.
Ai, minha Nossa Senhora, dai-me paciência porque eu vou estourar, juro que vou estourar!
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318
ELA
ELE
Faz diferença, sim. Vai se matar sozinho mas quem perderá com o escândalo não
Afinal, no fim da vida, ouvi uma frase honesta... de significação para mim...
sou eu, isto lhe garanto. É você mesmo, depois de morto, quem vai se prejudicar com o
(Silêncio. Ele reflete, põe o toca-discos em funcionamento; música solene, a mesma do
escândalo!
início.)
ELE
ELA
Está totalmente maluca.
Linda, esta música, me lembra não sei o que da infância.
ELA
ELE
Maluca? É aí que se engana redondamente. O meu mal é também saber raciocinar.
A infância... é o cúmulo eu não poder nem ter saudade da infância...
Vou tirar toda a roupa e sair daqui nua gritando pela estrada. Há de passar um carro para
ELA
me recolher nua em pelo e levar a notícia aos jornais. Sua morte terá realmente enorme
Foi uma criança infeliz?
repercussão, é pena que não lhe sobre tempo para ler a manchete: O SUICÍDIO DO ATOR
ELE
TARADO...
Não sei... Tudo o que me recordo é que estava olhando pela janela do avião as
ELE
nuvens lá embaixo... brancas como ondas de neve... De repente o clarão do fogo... O
Com esse golpe não me impressiona. Sei que não teria a audácia de realizar tal
barulho.. O hospital... Os braços e pernas no gesso... A operação na cabeça... O sorriso
proeza.
forçado da enfermeira, escondendo piedade, quando disse que eu já era um rapazinho e por ELA
isso podia saber que os meus pais haviam morrido no desastre...
Ah! Duvida que eu tenha coragem? Pois muda já de opinião... (Começa a se
ELA
despir, ele a impede, vexadíssimo.)
Que horrível!
ELE
ELE
Enlouqueceu mesmo?
Tem razão, sou um doente mental...
ELA
ELA
Arrede, me solte, seu puritano carola!
Não diga isto. Você sofreu um trauma mas ficou bom, faz tanto tempo.
ELE
ELE
Por DEUS, que diabo é isto? (Ela se recompõe.)
Não... o choque, a operação na cabeça, sei lá! Alguma coisa dividiu a minha
ELA
personalidade, fragmentou o meu íntimo... Não consigo unir os pedaços do eu... Numa
Com que facilidade você fala ao mesmo tempo no nome de DEUS e do diabo!
hora me sinto uma pessoa, noutra hora me sinto como se fosse outra pessoa... Entende?
Você é um anjo ou um demônio, hein? Responda! (Pausa)
ELA
ELE Por que esta pergunta?
Entendo. Todo artista, principalmente todo ator, tem mais ou menos este problema.
ELA
ELE
(Calma) Porque há momentos em que vejo no seu rosto a figura de Satanás... e há
Eu sei, até certo ponto é normal em qualquer criatura humana, porém em mim
momentos em que vejo a imagem de Cristo... (Pausa)
sempre passou do limite máximo... E a cada dia vai piorando... É terrível, não aguento mais!...
319
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ELA
ELA
É possível que tenha de fato um problema psíquico mas isso não é motivo para
Eu disse que acho que já o amo. Olhe dentro dos meus olhos. Não tenha medo. A
suicídio. Existe muita gente neurótica e esquizofrênica que suporta o peso da vida. O que
menina dos meus olhos também não é virgem... (Ele a fita demoradamente.)
talvez esteja agravando o seu caso é o excesso de trabalho, estafa, esgotamento. A
ELE
profissão de ator acarreta um grande desgaste de energia nervosa. A técnica da criação
É desconcertante. Você não está mentindo...
dramática, o processo de interiorização do personagem...
ELA
ELE
E então? Vamos?
Espere aí, está falando como quem possui uma cultura...
ELE
ELA
Vamos. (Ele segura a mão dela e dirige-se para o abismo.)
Talvez eu não seja tão ignorante quanto supõe.
ELA
ELE
Ué! Vamos para onde?
É, bem notei que alguma coisa em você soava falso...
ELE
ELA
Para a morte. Morrer abraçados.
(Rindo) Soava? Não soa mais?
ELA
ELE
Morrer???
Vai ver que não é Diretora da instituição antisuicida, é a Psicóloga.
ELE
ELA Você está precisando tirar mas férias para repousar a mente, antes de mais nada. E está precisando de alguém que lhe dê amor, um amor capaz de ser correspondido. ELE Amor? Agora quem ri sou eu. ELA Por quê? Quem sabe se não surgirá em seu caminho uma mulher que lhe ofereça um grande amor, com a compreensão profunda de que tanto necessita?
Sim. Você realmente está me amando. E o seu sentimento é tão verdadeiro que me toca, me contagia. Por mais incrível que pareça neste instante eu estou me sentindo atraído por você. Física, intelectual e emocionalmente. ELA E isto não é formidável? É isto que é o amor, não tenha vergonha de dizer! Vamos embora. Vamos viver! ELE Como, sua imbecil? Não percebe que agora complicou tudo de uma vez por
ELE
todas? Você jamais poderia me dar a compreensão de que tanto preciso. É uma mulher
É impossível. Um doente mental só pode ser compreendido profundamente por
culta, certamente especialista em doenças mentais, inteligente, generosa, altruísta, porém
outro doente mental...(Pausa) ELA Quando eu cheguei aqui trazia apenas simpatia... Mas nós vivemos em comum
todas essas qualidades o que fazem é separá-la de mim. Não entende isto? (Ele dá uma gargalhada.) ELA
uma experiência tão imprevista e tão autêntica, e vivemos tão intensamente, tão
Que engraçado!
espontaneamente, que acho... acho que já o amo... (Silêncio)
ELE
ELE
Por que ri assim, Meu DEUS, será que estou ficando mais louco?
Sabe o que está dizendo? (Ela aproxima-se dele.)
ELA Vê este anel de brilhante? (Atira fora o anel, no abismo.)
321
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ELE
Vamos, vamos que são horas, o carvalho de Herne nos espera!”
O louco serei eu ou será ela?...
ELE
ELA Não se preocupe que não era brilhante, era vidro. Vê estes cabelos? Estas
Confesso que em momento algum me ocorreu que você fosse uma atriz. Também já representou Shakespeare, hein?
sobrancelhas, os cílios, o batom?... É peruca, pintura... (Despoja-se de todos os elementos
ELA
de maquilagem, revelando outra expressão fisionômica.)
Ex-atriz. Talvez atriz novamente se você quiser juntar sua loucura com a minha...
ELE
ELE
Tenho a impressão que lhe conheço de algum lugar...
Valeria a pena tentar.
ELA
ELA
Conhece. Embora jamais tenhamos tido sequer um diálogo, embora eu tenha sumido do ambiente artístico há anos, depois que desequilibrei e tentei o suicídio.
Puxa! Que alegria!
Quando o pessoal souber vai ser uma festa. Você não
imagina, foi todo o elenco na minha casa, não sei como descobriram o endereço. Ninguém
ELE
tinha mais esperanças de ver a peça estrear no dia marcado, aí um que me conhecia e sabia
Eu bem que desconfiava...
da minha experiência em matéria de suicídio, resolveu me procurar.
ELA
ELE
Agora, sente-se ali, quieto. (Ele obedece intrigado e curioso.) “Você é uma pessoa
E quem lhe disse que a peça vai estrear no dia marcado? Comigo não estreia.
adorável, encantadora, sua presença para mim é muito simpática, extremamente honsora”.
ELA
Caladinho, hien? (Ela concentra-se. Transfigura-se. E começa a interpretar, em poses
Como??? Não vai voltar???
diversas, com ar descontraído e coquete, trechos da comédia AS ALEGRES COMADRES
ELE
DE WINDSOR, de Shakespeare, falas da Sra. Ford.)
Não!
“Está aí, meu querido Frank? Que melancolia é essa?... (Ele começa a refletir no semblante, acentuada transformação psicológica.)
ELA Não???
Juro que tens na cabeça algumas minhocas... (Ele sorri.)
ELE
Então, meu passarinho, que notícias há?... (Ele balança a cabeça.)
De maneira nenhuma.
Eu, vossa esposa!? Pobre de mim! O que era eu senão uma simples burguesa?...
ELA
(Ele demonstra mais vivo interesse.) Só DEUS sabe como vos amo e vós haveis de sabe-lo um dia... (Ele baixa a fronte.)
Mas... ELE Vou sair daqui direto para uma estação de repouso. E não vou sozinho. (Olham-
Que hei de fazer? É certo que está aqui um cavalheiro que me é querido; eu não tenho tanto medo à minha própria vergonha como ao perigo que ele corre... (Ele reflete.) DEUS vos faça melhor do que são os vossos pensamentos... (Ele olha fixamente para ela.) Tomo o céu por testemunha em como as vossas desconfianças são falsas... (Ele vai até à beira do abismo, contempla o horizonte.) É impossível que não tenha um grande medo... (Ele vira-se para ela.)
se. Ele a beija na testa.) ELA Graças a DEUS. Graças a DEUS que de fato existe e não esquece da gente, embora a gente esqueça Dele. ELE Acha que dará certo?
323
324
ELA
ELE
Acho. Tenho certeza. Conseguiremos viver. Viver muito. (Ele livra-se da
DEUS existe, já sei, a esta altura não duvido de coisíssima nenhuma.
indumentária teatral que guarda na pequena maleta juntamente com o toca-discos.)
ELA
ELE
O probleminha é que o meu carro furou mesmo um pneu...
Você é sempre assim, doidinha?
ELE
ELA
Fica aí na estrada, depois a gente manda buscar.
Não, em época de lua cheia costumo piorar...
ELA
ELE
Talvez não seja necessário deixar o carro abandonado.
Não haverá para nós lua cheia, nem vazia. Haverá somente lua nova...
ELE
ELA Então vamos de vez? (Ele pega a maleta.)
Como não? Você é uma mentirosa incorrigível mas eu falo a verdade. Jamais peguei em qualquer ferramenta para mexer em automóvel.
ELE
ELA
Vamos.
A turma do elenco, que veio noutro carro atrás de mim, já deve ter trocado o
ELA
pneu... (Ele volta a largar a maleta no chão.)
De mãos dadas, poeticamente.
ELE
ELE
O pessoal também veio???
De corações dados, malucamente.
ELA
ELA
(Sorrindo) Apenas todo mundo...
Sabe da maior?
ELE
ELE
Bolas! E meu repouso?
Não quero saber de mais nada, vamos embora antes que me apareça com outra
ELA
novidade. ELA Talvez tenha ainda um probleminha desagradável para solucionar... ELE Não me diga que é casada?! (Ele larga a maleta, na expectativa da resposta.)
Depois da estreia você tira férias, um colega se prepara e lhe substitui dentro de uma ou duas semanas. (Pausa) ELE Pensando bem é melhor... Podemos fazer uma estação de águas com a consciência lavada...(Ele apanha a maleta.)
ELA
ELA
Que bobagem! Nunca fui nem noiva, muito menos casada. (Ele pega novamente a
Estação de águas, não. Lua... ELE
maleta.) ELE
Cheia?
Vamos e não dê mais uma única palavra nas próximas duas horas.
ELA
ELA
Não...
O probleminha é que, embora pareça incrível...
ELE Nova?
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326
ELA Não... ELE Então o quê? ELA Lua de mel... ELE É, tudo muito bonitinho, mas acontece que eu estou arrasado de esgotamento nervoso, como você disse. Talvez não aguente mais nem a metade de uma semana.
FOGO
ELA Aguenta, sim! ELE Por que afirma com tanta segurança? (Ela reproduz o gesto dele, tomando a iniciativa em beijá-lo na testa, carinhosamente.)
CRUEL EM
ELA Por isto. ELE Você está certa de que este amor vai durar, sua maluca?... ELA Estou! E sabe por quê? Porque AMOR DE LOUCO NUNCA É POUCO!!! (Dão-se as mãos. Saem lentamente enquanto a lua vai aparecendo no céu claro.)
FIM
LUA DE MEL
327
328
Esta peça foi encenada pela primeira vez em janeiro de 1976, no Teatro da Paz,
PRIMEIRO ATO
em Belém. Dois anos depois, em 1978, estreou em São Paulo, sob a direção de Wolf Maya, da TV Globo, tendo no elenco Vic Militello, que trabalhou na novela “Estúpido Cúpido”.
GIL, de camisa social e gravata desatada, mexe em uma maleta, no divã; para, examina o guarda-roupa vazio onde somente o paletó aparece; coloca o rádio-eletrola em
PERSONAGENS
funcionamento com um disco de música popular; começa então a retirar peças de homem da maleta e arrumá-las em uma das filas de gavetas do guarda-roupa; durante esta
GIL. Um poeta recém-casado, boêmio, irreverente.
operação tem o cuidado de esconder uma garrafa embrulhada; quando acaba não resiste
ELZA. A esposa, uma Assistente Social ultra-religiosa.
a tentação de olhar o conteúdo da outra maleta que se encontra em cima da cama, semiaberta, mas, tão logo abre a tampa da mesma, ouve-se o ranger de um trinco; ele
CENÁRIO
afasta-se disfarçando. ELZA sai do banheiro ostentando uma camisola de cetim branco, extremamente sóbria; seus gestos são retraídos e cerimoniosos.
Apartamento de hotel. Dormitório. Cama de casal, abajur de cabeceira, guardaroupa, com duas filas de gavetas, um divã, mesinha e telefone, revistas, duas cadeiras, rádio-eletrola. Janela comunicando com o exterior, porta de saída a uma lado e, do outro, porta para o banheiro. De forma saliente predomina, em toda a decoração e no mobiliário, a cor branca. Tanto quanto o possível os detalhes de cena sugerem ambiente de cidade pequena.
ELZA Enfim... GIL Em fim não, em começo... ELZA Estou bem? GIL Está linda, meu amor. Exuberante. Esplendorosa como diria Olavo Bilac... ELZA Obrigada. Pena é que nunca saiba quando fala sério ou quando faz troça. Você vive rindo, Gil. GIL Até disso me acusa? ELZA Não estou acusando. GIL Nem pode, hein? A partir de hoje acabaram-se as “retaliações mútuas, só haverá lugar para união e afeto”. Foi você quem fez a proposta, tem de cumprir a sua parte. ELZA É claro que cumprirei.
329
330
GIL
GIL
Faço votos de que assim seja, “pelos séculos e séculos, amém”...
Notei que você está linda.
ELZA
ELZA
(Repreensiva) Gil!
E eu notei que até no dia de hoje estamos discutindo.
GIL
GIL
O que foi, eu disse algo errado?
Discutindo não, papeando, dialogando. Comecei elogiando a tua beleza, você
ELZA
achou que eu queria fazer troça, desviou ao assunto. Ponto final no mal entendido. Já
Nós combinamos que você terminaria, de uma vez por todas, com as suas
bastam as sete discussões por semana em cinco anos de namoro e quatro por dia em seis
indiretas à religião.
anos de noivado...
GIL
ELZA
Eu pixei a tua religião.
Esta é outra característica da sua personalidade: gostar de discutir. No fundo, sabe
ELZA
o que é isto? Necessidade de afirmação, necessidade de contradizer os outros para se
Esta expressão “pelos séculos e séculos, amém” é católica e você empregou por
mostrar superior. Falta de maturidade, de amadurecimento do Ego. GIL
ironia. GIL
Falta de amadurecimento, ou excesso de apodrecimento, quem tem é aquele teu
Bobagem, eu nem pensei em catolicismo.
professor. Aquele cara ou é muito infantil ou já está gagá; é por isso que não embarco na
ELZA
canoa furada da Psicologia de vocês. Imagina que hoje, depois de comer oito empadas e
A gente pode ser irônico sem ter consciência disso. É o seu caso, você é
beber uns oitenta copos de vinho, durante a recepção, ele quis me convencer de que o
instintivamente irônico, precisa superar esta tendência e isto me prometeu, fora outras
Diabo existe...
coisas. Não esqueça que, além de ter prometido solenemente – até jurou em nome de
ELZA
DEUS, apesar de ser ateu...
Gil, você discutiu com o padre Florêncio???
GIL
GIL
Naquele dia eu estava bêbado.
Que jeito? Ele me encheu o saco...
ELZA
ELZA
Além de ter prometido solenemente levar avante um trabalho de reforma do seu
Gil, que termos são esses?!
caráter, precisa mesmo disso para o seu próprio bem, inclusive para o bem da sua obra
GIL
literária.
Desculpa o “encheu o saco”. GIL
ELZA
Elza, meu amor, espera aí, sinal fechado. Para espinafrar o meu caráter você tem
Ainda repete.
competência, mas de literatura não entende patavina. Aliás ficou acertado em nosso acordo
GIL
que você respeitaria os meus versos como eu vou respeitar as suas rezas; amor, amor,
Mas que ele foi um chato, foi. Está certo que na cerimônia da Igreja eu ouvisse
manias à parte... ELZA Notou uma coisa?
com paciência todo aquele sermão quadrado sobre Adão e Eva para justificar o casamento. Está certo. O outro estava na função de padre, tinha o direito de doutrinar à moda da casa.
331
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O teu professor porém não estava na função de padre, nem de batina estava, foi na
do primeiro noivado foi a maior bobeira tua; eu me envolvi naquela arruaça na zona por
recepção apenas para comer empada e beber vinho...
mero acaso: um amigo me levou até lá a fim de que desse uns conselhos para a irmã dele...
ELZA
ELZA
Que injustiça! Ele não foi lá para isto.
Eu sei!
GIL
GIL
Ah, não? Então foi para me converter? Você mandou? Que ingenuidade!... Já se
Sabe nada, meu amor, você vê pecado em tudo com essa sua mania de religião.
ver que ele pode ser muito bom como padre, mas como professor de Psicologia é um
ELZA
debilóide. Bem que eu te aconselhei a estudar na capital. ELZA
Vai começar de novo? A única coisa que eu não admito é que espezinhe a minha fé. E você...
É, se houve ingenuidade não foi dele, foi minha.
GIL
GIL
Eu prometo, sei, e não estou espezinhando. Só acho que não havia necessidade de
Positivo. Sabe, meu amor, você também pode ser espetacular como filha de
enxergar tanto.
Maria, mas como Assistente Social não vai conseguir recuperar ninguém. Eu, pelo menos,
ELZA
vai ser difícil...
Não exagero. Apenas...
ELZA
GIL
Gil, você pretende me desgostar até neste dia? Pois eu vou me arrumar as minhas
Não exagera? Sempre ameaçou entrar para um convento se eu não me
coisas, dormir, e não falo mais uma palavra.
regenerasse. Esta expressão, regenerar, é tua: eu nunca entendi exatamente o que ela
GIL
significa no meu caso; afinal de contas não sou nenhum degenerado, sou simplesmente um
Duvido...
sujeito que se mistura com os outros e faz o que os outros fazem porque não se julga
ELZA
melhor do que ninguém. Escuta, meu amor, me explica agora uma coisa. Nunca entendi
Pois vamos ver.
porque toda vez que a gente terminava o namoro, e depois o noivado, você se preparava
GIL
para entrar no convento. No princípio eu pensava que era uma espécie de chantagem
Não vamos ver não. Desta vez eu prometo, não só solenemente, sacramente, que
sentimental. Raciocinava: assim como algumas dizem “vou me suicidar”, ela diz “vou ser
não discutiremos mais esta noite. Contudo não vamos dormir... Afinal, esperamos quase
feira”, que é muito pior... depois pensei que, se fosse chantagem, você teria desistido do
uma dúzia de anos por esta noite.
recurso ao ver que ele não dava resultado. Então cheguei à conclusão de que, no fundo,
ELZA
você não tinha vocação para esposa e sim para freira, que no fundo não me amava
Quase doze anos... Não se envergonha disso?
bastante.
GIL
ELZA
Não. Até achei gozado quando tua vizinha disse que o nosso namoro tinha
Gil, você chegou a pensar um minuto sequer que eu não o amasse bastante?
“encroado”. Também se deve dar um bom desconto nesses anos todos de romance: tirando
GIL
o tempo que passamos brigados não sobra nem dois anos. Cada pileque que eu pegava
Pensar, pensei.
você ficava uns oito meses sem falar comigo. Somente porque publiquei aquele poema
ELZA
sobre a beleza do sexo amarrou a cara dez semanas. Os dois anos que durou o rompimento
Que bobinho!
333
334
GIL
ELZA
Isto foi o que retardou a minha decisão fatal, digo, final...
Mas esquecer logo a fundamental?
ELZA
GIL
Pois eu jamais duvidei do seu amor, apesar de todas as suas loucuras. Sempre que nós estávamos brigados eu lia antes de dormir, sem falhar uma noite, aquele poema que
Todas as razões do meu amor são fundamentais... Agora eu devo ter escolhido uma como metáfora, compreende? ELZA
você fez pra mim. GIL
Não, Gil, isto eu não perdoo.
Qual?
GIL
ELZA
Pois vou escrever um soneto – soneto, ouviu? – somente para dizer que todas as
Gil, não lembra? Mas como é leviano!
razões do meu amor são fundamentais.
GIL
ELZA
Ora, meu amor, eu fiz tantos poemas para você... Ah! Já sei. (Recita em tom
Quando? GIL
pausado e meio chistoso.) “Os pássaros
Amanhã.
Descendo das árvores verdes, inocentemente verdes
ELZA
Pousarão sem sustos, inocentemente pássaros
Não, hoje.
No teu seio...
GIL
E com os pássaros também eu
Hoje nós vamos fazer um programa lírico mas não na base da literatura...
Sugarei em ti o leite da inocência...
ELZA
Foi este ou não foi?”
Hoje sim. Quero rimado e metrificado. Vou até dormir logo para facilitar.
ELZA
GIL
Não.
(Alegre, bonachão.) Está pensando que entrou para o convento? Não entrou não,
GIL
ouviu? Em convento é que se dorme cedo; quem casa dorme tarde, pelo menos na primeira
Foi sim. Se errei diz qual foi.
noite...
ELZA
ELZA
Foi aquele em que você descreve todas as razões pelas quais me ama e termina
Você falou, falou e não recordou a razão fundamental do seu amor. Que pena!
revelando a razão fundamental. GIL Qual era mesmo a razão fundamental?
uma?
GIL Toda memória tem limite. Sou capaz de apostar que você também não acerta dizer a tal razão usando as mesmas palavras por mim escritas.
ELZA
ELZA
Gil! Tem a coragem de confessar que esqueceu até este detalhe?
Acerto, sim senhor.
GIL
GIL
Não são tantas as razões que figuram no poema? Como eu não poderia esquecer
Acerta nada.
335
336
ELZA
GIL
Se eu acertar você faz uma coisa para mim?
De acordo. Até certo ponto...
GIL
ELZA
Faço, o que é?
(Ao transferir as peças da maleta para o guarda-roupa passa escondido um
ELZA
pequeno volume, distraindo a atenção dele com a fala que segue.) Já reparou como este
Digo depois.
quarto é interessante?
GIL
GIL
Aposta fechada.
Meio fajuto, não acha?
ELZA
ELZA
Você escreveu assim: “Amo-te sobretudo porque és o outro lado de mim mesmo”.
Depois que você fez a reserva eu telefonei para o gerente...
GIL
GIL
(Batendo palmas zombeteiro.) Parabéns a você pela memória e parabéns ao poeta
Ah! Então foi isso...
pela falta de talento... ELZA Perdeu a aposta e vai ter que fazer uma coisa para mim: não somente me levar à igreja domingo, mas... assistir a missa comigo.
ELZA Telefonei, me identifiquei como a futura esposa e pedi que a decoração do quarto fosse toda branca, se possível. GIL
GIL
E não me falou nada.
Negativo. Disso, meu amor, perde as esperanças. Francamente, é incrível que
ELZA
você se conserve tão beata numa época em que todo mundo está mandando brasa. ELZA Gil! Pelo amor de DEUS, não recomeça. Bem, vou arrumar as minhas coisas e dormir. (Remexe a maleta em cima da cama, dirige-se ao guarda-roupa para alojar
Surpresa. GIL Meu amor, não me leva a mal, mas em matéria de decoração você também anda desatualizada, pelo menos uns duzentos anos.
algumas peças; GIL vendo que ela vai abrir a gaveta onde ele escondeu a garrafa
ELZA
apressa-se em evitar isto.)
Gil, não percebe a significação?
GIL
GIL
Olha, guarda as tuas roupas na outra fila de gavetas que aqui eu pus as minhas.
Que significação? Psicológica?
ELZA
ELZA
É melhor. Não quer que eu arrume as suas coisas?
O simbolismo...
GIL
GIL
Não, não, pode deixar, já arrumei tudo bem arrumadinho, guarda os teus
Que simbolismo? Teológico?
bagulhos. Quer que eu ajude? ELZA Não, obrigada, uma das lições que aprendi em Psicologia é que o marido não deve tomar conhecimento dos objetos íntimos da esposa.
ELZA Poético, Gil, onde está a sua sensibilidade? O branco não é a cor da pureza?
337
338
GIL
Segundo: este pijama foi um presente que a minha mãe me deu justamente para ser usado
Não, não é. A pureza não tem cor. A pureza é transparente como a água. E como o
hoje. Ela é tua fã, no duro. Imagina o que me disse quando entregou o embrulho de manhã:
vidro, que um dia se quebra... ELZA Você nasceu mesmo para ser do contra em tudo. Sempre ouvi dizer que o branco representa a pureza. GIL
“meu filho, não esqueça de vestir isto hoje; agora acabou-se o costume feio de dormir nu”... ELZA Gil, tenha modos. GIL
E daí?
(Encosta-se à janela e aponta para o exterior.) A paisagem é uma curtição mas a
ELZA
gente podia ter ficado pelo menos no terceiro andar. Quando fiz a reserva pedi no segundo
Daí ter sido natural que eu escolhesse para a noite nupcial uma decoração branca
andar. Amanhã reclamo e se troca de apartamento. Hotel mixuruca.
como o meu ideal. GIL Rimou, hein? É, o teu negócio é mesmo rima. E eu digo que isto é muito mal e pouco legal. E com tanto “al” só há um jeito deu engolir este mingau: trocar de roupa para o cerimonial de nossa primeira noite como casal... Tchau. (Abre uma das suas gavetas, tira algo e se tranca no banheiro.)
ELZA Não adianta reclamar. O gerente me explicou que dormitório com decoração branca só tinha no quinto andar, eu concordei. GIL Então não se fala mais no assunto. Você tem toda a sua razão e eu ainda lhe dou a minha. Satisfeita? No último andar estamos mais perto do céu..
ELZA
ELZA
É um maluquinho... (Sorri, enlevada; coloca no rádio-eletrola um disco de
Vai começar outra vez com a ironia?
música clássica; mira-se no espelho da penteadeira; a seguir abre a janela e se demora
GIL
olhando para fora; GIL sai do banheiro sem fazer barulho, metido desajeitadamente em
(Rindo) Absolutamente. As homenagens da noite pertencem à pulcra donzela e eu
um pijama vermelho berrante, aproxima-se dela sorrateiro a fim de assustá-la; ela vira-
me ajoelho em doce submissão. Esta noite tenho o sacossanto dever de ser gentil com
se.)
você, na medida de todas as minhas possibilidades... GIL
ELZA
Que tal eu?
Pois não está cumprindo com esse dever.
ELZA
GIL
Gil, você não tinha um pijama doutra cor?
Não? Não estou sendo gentil? Cometi alguma falta?
GIL
ELZA
Não, não tinha. Infelizmente não combina muito com a tua decoração. Quem
Cometeu.
mandou fazer segredo, não me avisar.
GIL
ELZA
Alguma indelicadeza?
Tem sim outro pijama. Vou ver.
ELZA
GIL
Várias. Um delas imperdoável.
(Impedindo-a de abrir as gavetas.) Nada disso, meu amor. Primeiro, eu não tenho
GIL
mesmo outro pijama; me perdoa a informação, mas até ontem eu sempre dormi de cueca.
Uai! Nossa lua de mel ainda nem começou e será que já dei alguma mancada?
339
340
ELZA
ELZA
Gil, que linguagem!
Eu não digo que você faz piada de tudo?
GIL
GIL
Mancada não é palavrão, é gíria. Qual foi a indelicadeza imperdoável que eu cometi?
Elza, meu amor, esta estória de noivo carregara noiva para entrar no quarto no dia do casamento é um troco ultrapassado, cocoroca, cafoníssimo, coisa do século quinze.
ELZA
ELZA
Não digo.
Mas me agradaria. E não teria custado tão grande esforço a você.
GIL
GIL
Diz sim.
Como é que eu ia adivinhar que você esperava isso de mim? Depois de onze anos
ELZA
de namoro...
Não.
ELZA
GIL
É no que dá o seu desprezo pela Psicologia.
Vamos, fala senão vou ficar chateado, encabulado, complexado como você
GIL
costuma dizer.
Como você é romântica, Elza. É bacana isto, sabe? Porém, se não tivesse sido
ELZA
educada num meio tão fechado... Escuta, meu erro será reparado automaticamente – se não
É preferível esquecer.
carreguei você na entrada do quarto vou carrega-la, em compensação, a vida toda...
GIL
ELZA
De jeito nenhum. Fala. Estou preocupado com a monstruosidade cometida.
Olha, a ironia, Gil. Será possível que quando você não está discutindo nem
ELZA Você não se preocupa com nada, Gil, leva tudo na brincadeira. GIL
fazendo troça está sempre ironizando? GIL O que eu posso fazer? Nasci assim, não tenho culpa. (O telefone toca, ele atende)
Desta vez não estou levando. Por favor, Elza!
Alô... é o Gil... (Larga o fone.) Desligaram novamente. Eu conheço essa voz. Da próxima
ELZA
vez vou mandar a...
Bem, vou dizer. Quando entramos no quarto você... (O telefone toca, Gil atende.)
ELZA
GIL
Da próxima vez deixa que eu atendo.
Alô... é... do apartamento da Elza, sim... noivo não, marido... é ele mesmo, está na
GIL
cara, quem a senhora queria que fosse?... (Larga o fone.) Desligou. Um trote. Mulher. A voz não me é desconhecida. Vamos, continua.
Quer saber duma coisa? Somos uns bobocas, estamos agindo como duas crianças. Será que todo casal, nos primeiros momentos da lua de mel, fica assim baratinado?
ELZA
ELZA
Quando entramos no quarto você não me carregou...
Você é mesmo um meninão.
GIL
GIL
(Gargalhada) Está é boa!
Eu não, nós. Estamos agindo como duas crianças. A prova disso é que, sozinhos aqui há quase uma hora, ainda não fizemos uma coisa que somente as crianças não fazem...
341
342
ELZA
GIL
Gil!
Puxa vida! Como você é tímida. Às vezes penso que não sente atração física por
GIL
mim.
Não é isto que você pensou... Quero dizer que ainda não nos beijamos.
ELZA
ELZA
Não é isso.
Gil...
GIL
GIL
Sei o que é, você emprega muito o nome: inibição.
Sim?
ELZA
ELZA
Vamos conversar.
Tenha...
GIL
GIL
Conversar mais do que já conversamos? Precisamos é passar da teoria para a
Modos? Daqui em diante é proibido dizer: “Gil, tenha modos”. Já ouvi esta frase
ação...
oitocentas e noventa vezes. É pecado beijar depois de casado? Ora, meu amor, tem dó.
ELZA
ELZA
Você viu como a sua prima estava com uma saia escandalosa, acima do joelho?
Você fala de uma forma tão direta, tão rude... Quando o amor é espiritualizado as
GIL
suas manifestações não chocam, tudo nasce naturalmente... um beijo não é um cigarro, que
Deixa de mão a minha prima que falar mal dos outros é que é pecado, e pecado
se queima sem qualquer finalidade, sem qualquer motivação, sem qualquer impulso da
mortal, porque quando a gente se habitua a malhar o próximo morre se intrometendo na
alma...
vida alheia. No momento eu me acho interessado exclusivamente num beijo. GIL
ELZA
Vá lá que seja, vamos ser sutis, refinados. Mas agora eu vou ganhar um beijo, não
Já viu quantos discos tem aí? Até Chopin.
vou? (Tenta beijá-la, ela se esquiva.)
GIL
ELZA
Um beijo, meu amor, se não for por afeição seja ao menos por compaixão.
Gil...
ELZA
GIL
Viu as revistas? Se houver alguma pornográfica joga fora.
Elza, meu amor, o próprio recato tem um limite, mesmo para uma dirigente de
GIL
Congregação Mariana.
Um beijo, Elzinha.
ELZA
ELZA
Gil, eu...
Mais tarde, temos uma vida inteira pela frente.
GIL
GIL
Compreendo o teu acanhamento, mas que diabo. ELZA Não é acanhamento.
Meu amor, seja razoável. Quantas vezes nós nos beijamos nesse tempão de namoro? ELZA Duas...
343
344
GIL
GIL
Duas não, quatro. Mas também se pode reduzir este número para zero. Da
Às vezes eu penso que você não gosta de mim.
primeira vez você fechou os olhos para adivinhar o título do livro, eu aproveitei, porém o
ELZA
teu pulo estragou a festa. Da segunda vez eu apelei para a ignorância, porém o teu grito
Se não gostasse me casava?
acordou quase todos os vizinhos. Da terceira vez você ficou tão trêmula que eu desisti no
GIL
meio com medo que desmaiasse. Da quarta vez, a única que deve ter sido quente, eu
Existe tanta gente que casa por...
confesso que estava completamente embriagado...
ELZA
ELZA
Por interesse?
O meu soneto, começa logo a escrever, anda.
GIL
GIL
Não insinuei isto. Existe tanta gente que casa por...
O tema deste instante é um beijo na boca e não no papel.
ELZA
ELZA
Curiosidade? Solidão?
No dia em que nós sairmos daqui minha primeira providência será encomendar
GIL
uma dúzia de pijamas para você. GIL É... Sabe, Elza, vez por outra me ponho a refletir... como a gente pode se amar
Sei lá... Por tudo isso, menos por amor... Eu quero dizer que a maioria das pessoas casa sem saber por que... Casa para não deixar de casar... ELZA
verdadeiramente sendo você tão pura e eu tão despudorado... Como podemos voltar o
Gil, você percebe que está sendo grosseiro comigo?
namoro tantas vezes, eu sempre querendo beijar, você nunca querendo beijar... Você tem
GIL
alguma prevenção contra o beijo?
Percebo. O que não consigo perceber é se... (O telefone toca.)
ELZA
ELZA
Prevenção?
Deixa que eu atendo.
GIL
GIL
Algum escrúpulo?
(Antecipando-se a ela.) Alô... é ele... tudo bem... tudo magnífico... quem fala?...
ELZA
ah! É a senhora?... sim... estamos conversando... muito... conversa agradável, deliciosa, nós
Não é isso, Gil.
nos entendemos perfeitamente, maravilhosamente, a senhora sabe... pois não, boa noite...
GIL
vou entregar o fone a ela... boa noite. (Larga o fone.)
Sei, não é mesmo. Se fosse escrúpulo a tua recusa seria apenas em relação ao beijo. Mas você jamais deixou que eu pegasse nas suas coxas...
ELZA É mamãe?
ELZA
GIL
Gil!
Eu devia ter desconfiado.
GIL
ELZA
É mentira? Nos peitos eu peguei uma vez à pulso... ELZA Gil, se comporte como um cavalheiro...
(Ao telefone.) Mamãe?... sim... ainda não... não se preocupe... não disse, não... fique tranquila... é... um beijo. (Desliga)
345
346
GIL
ELZA
Ainda não disse o quê?
(Sentando-se na beira da cama, cuidadosamente.) Gil, olha a decência.
ELZA
GIL
Nada. GIL
Elza, meu amor, se não te conhecesse há mais de dez anos não acreditava. Como pode existir uma mulher cheia de...?
Não disse a quem?
ELZA
ELZA
Por favor, basta de me criticar.
A ninguém, Gil, que insistência! Quando você cisma com uma coisa não larga
GIL
mais. Este seu problema de fixação é uma característica de insegurança. GIL
(Tentando puxá-la.) Vem logo, deixa de charminho. Para você, neste momento, pudor não é virtude, é doença...
Bom, já que eu tenho um problema de insegurança e você tem segurança
ELZA
suficiente, vamos deitar...
(Retraindo-se) Você me desnorteia com esses seus gestos inconvenientes.
ELZA
GIL
E o soneto, não escreve mesmo? GIL
Os meus gestos não são inconvenientes, eles convém, depois você me dará razão...
Amanhã. Agora vou tratar de fazer algo mais prático: pagar a luz. (Executa)
ELZA
ELZA
Gestos quase agressivos.
Gil, está escuro.
GIL
GIL
Não exagera, Santa Terezinha dos pobres...
Claro...
ELZA
ELZA
Continua debochando, continua me ofendendo até cansar. Tudo cansa.
Detesto escuridão, tenho fobia.
GIL
GIL
É, tudo cansa...
(Atirando-se na cama.) Eu já estou no meu posto de comando...
ELZA
ELZA (Acende a luz do abajur.) Tenha paciência, nós vamos dormir com esta luz acesa. É fraquinha, não vê?
Por falar nisso eu estou cansada, extenuada, o dia hoje foi tão agitado, tão fatigante! Vamos repousar de vez? GIL
GIL
Eu já estou repousando. E você, por que não deita?
A luz do abajur pode ficar acesa. Porém se nós vamos dormir eu não garanto...
ELZA
ELZA
Promete ficar quietinho?
Você se deita como se fosse um homem primitivo, um índio, um selvagem.
GIL
GIL
Prometo.
Esta censura eu não aceito. Índio deita pelado e eu, por obra e graça da minha
ELZA
mãe, estou vestido à rigor. Pelo menos por enquanto...
Promete mesmo?
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348
GIL
ELZA
Pode confiar.
Não se preocupe, mamãe... ele é bonzinho... insistiu... continua insistindo... não,
ELZA
não... sim... outro para a senhora. (Desliga)
Promete dormir logo?
GIL
GIL
Meu amor, você não acha que os cuidados da sua mãe estão sendo demasiados?
Juro. Pela minha honra. Aliás, pela sua...
Eu reconheço que gozo de péssima fama nesta aldeia mas não me consta que alguém tenha
ELZA
motivos para me julgar um tarado.
Então vamos dormir que eu estou exausta. (Demora-se ajeitando a colcha, o travesseiro; Gil ri da hesitação dela.) GIL Pode deitar que não corre nenhum perigo. Já jurei, torno a jurar. Juro por esta luz que me alumia... (Apaga a luz.)
ELZA Não é isto, Gil, mãe tem dessas coisas. Vamos dormir que amanhã é outro dia. (Senta-se na cama, facha os olhos em postura de concentração interior.) GIL O que foi? Está se sentindo mal?
ELZA
ELZA
Gil sem vergonha! (Acende o abaju.r)
Estou rezando. Não quer rezar comigo?
GIL
GIL
Até amanhã, um sono luminoso. Seja feita a vossa santa vontade, assim na cama
Brincadeira tem hora. O que eu quero é outra coisa.
como em tudo o mais. (Deita-se de costas para ela; Elza espera; Gil simula iniciar o sono;
ELZA
ela então prepara-se para deitar, ele a observa veladamente com ar de satisfação; o
Reza comigo, Gil, o que custa?
telefone toca.)
GIL
ELZA
O meu programa hoje não tem nada de místico.
É mamãe.
ELZA
GIL
Só uma Ave Maria.
Mas que aporrinhação!
GIL
ELZA
Reza por mim que eu quebro teu galho noutro sentido...
Gil! O que você disse?
ELZA
GIL Desculpa, eu ia pegando no sono, o barulho me perturbou.
DEUS tenha piedade de você. (Reza, Gil acende um cigarro; ela acaba e deita-se cautelosamente.)
ELZA
GIL
(Ao telefone.) Mãe?... sim... ainda não... sim... não...
Enfim à sós e deitados...
GIL
ELZA
Pensando bem esta velha está fazendo uma ligeira safadeza com a gente. Será que
Está fumando? Não ia dormir logo?
ela vai querer acompanhar por telefone?
GIL O cigarro chama o sono.
349
350
ELZA
ELZA
Vamos dormir logo que estamos muito tensos, precisamos relaxar.
Gil, por favor, não bebe mais.
GIL
GIL
Eu, como você não ignora, sempre fui extraordinariamente relaxado...
Uai! Você estava acordada?
ELZA
ELZA
Boa noite. (Acomoda-se para dormir, enrolando-se no lençol. Pausa. Gil vacila,
Não...
acende outro cigarro, passeia pelo quarto, vai à janela, senta no divã, levanta, pega o
GIL
telefone, larga-o sem discar, folheia uma revista, bota a mão na testa em pose de
E como sabe que eu bebi?
meditação, dirige-se à cama. Elza começa a respirar profundamente, como quem dorme;
ELZA
ele faz um giro, tira da gaveta do guarda-roupa a garrafa que escondera, destampa-a,
Vamos dormir. Amanhã nos divertiremos como você deseja.
bebe um trago, outro, mais outro; caminha lentamente até a penteadeira e, contemplando
GIL
a sua imagem refletida no espelho que ela tem, passa a dialogar consigo mesmo, sempre intercalando as frases com mais alguns tragos de bebida.) GIL
Ouvindo tudo caladinha, hein? Traindo a minha boa fé. Enganadora. Elza, sinceramente, você me decepcionou. ELZA
Gil, sujeitinho vil, que rima com imbecil... E agora?... Fala bicho, e agora?... O
Seja compreensivo. É natural que eu me sinta contrangida... e também
que é que tu vais fazer?... Sai dessa... Hein? O que é que tu vais fazer?... Agarrar a força?...
decepcionada: nunca pensei que você fosse capaz de trazer uma garrafa de bebida para a
Resolver a parada de qualquer maneira?... Ou dormir como um carneirinho?... Não, dormir,
nossa lua de mel...
não dá... Esvaziar a garrafa? Beber tudo, te embriagar?... É o cúmulo, Gil, teres que encher
GIL
a cara na primeira noite de casado... Bonito para ti... Ela dormindo, tu aí feito um
Eu não ia beber hoje, você é que me obrigou. (Gagueja as últimas sílabas.)
palhaço.... Sugestionado pela pureza dela... Acreditas nisso? Acreditas, sim... Acreditas,
ELZA
nada... Mas acreditando ou desacreditando aceitas a situação... É, aceitas e estás disposto a
Parece que já se encontra meio embriagado...
fugir do problema te embebedando, burramente, como se um pileque a mais fosse a
GIL
solução... Vais dar uma de moço educado, pela milésima vez... Que fingimento! Teu ou
É, parece. E uma vez que você, fingindo dormir, descobriu que tomei uns goles
dela? Escuta, Gil, tu tens ou não tens tutano para resolver a parada?... Se tu tens sai para a
posso beber mais. (Volta ao guarda-roupa em busca da garrafa e, por equívoco, abre a
apelação e descasca o abacaxi na base da violência... Se ela espernear que se dane... Deixa
gaveta onde Elza igualmente escondeu o seu volume; pega-o e verifica que se trata de uma
de ser besta, quem sabe não é isto que ela está querendo?... Como é, decide ou não
imagem de santo; Elza pula da cama, acende a luz do teto.)
decide?... Não, é melhor esperar... Ela é muito sensível... Pode até chorar... Fazer uma
ELZA
tolice... Telefonar para a mãe... A velha com certeza ainda não dormiu, está de olho em
Gil! Por que mexeu nas minhas coisas?
nós, grudada no telefone aguardando qualquer comunicação... Velha cínica... Gil, só há
GIL
uma saída, a de sempre... Ela não tem culpa, ninguém tem culpa de ser como é... A vida é
Não reparei que a gaveta era tua. Que troço é este?
que faz cada um... A educação... O ambiente... Coitadinha, despejaram na consciência dela
ELZA
uma tonelada de falso pudor... (Elza vira-se na cama, ele apressa-se em esconder a
Um santo, não está vendo?
garrafa e o faz sem muita firmeza: já sente os efeitos iniciais da bebedeira.)
GIL Que santo?
351
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ELZA
ELZA
Santo Antônio.
Prossiga com a ironia, Gil, é a sua especialidade...
GIL
GIL
E você traz isso para a nossa lua de mel?
Você acende uma dúzia de velas e a gente reza uma ladainha...
ELZA
ELZA
Que mal faz?
O melhor que eu faço é mesmo dormir. Boa noite. (Apaga a luz do teto deixando
GIL
acesa a do abajur; acomoda-se na cama, cobrindo-se; Gil sorve mais bebida, detém-se
Encabula. Ora bolas, onde já se viu tamanha pieguice.
diante do Santo Antônio, fitando-o.)
ELZA Herege.
GIL Sabe?... Este teu Santo Antônio parece um charuto... É quase do tamanho de um
GIL
charuto... Tem quase a cor de um charuto... E eu acho que a cor do pijama dele também
Herege não. Afinal, isto aqui é um quarto de casal, não é um oratório. É ou não é?
não está de acordo com a decoração do quarto...
Responde!
ELZA
ELZA
Gil, pelo amor de DEUS, vamos dormir.
Não precisa se exaltar.
GIL
GIL
Vamos, só que eu vou dormir no divã. Desde que você me recusa como esposo a
Estou começando a engrossar, ouviu? Vou beber mais uma dose para acalmar...
gente dorme separado. Pelo menos assim eu posso apagar a luz e você não fica com medo
ELZA
de ser comida pelo bicho-papão.
Gil, a bebida transtorna você.
(Apaga a luz do abajur, deita no divã. Pausa. Gil, começa a respirar de forma
GIL
acentuada e irregular; sobre a porta branca do guarda-roupa, ao fundo da cena escura,
(Coloca a imagem na gaveta dela e apanha a garrafa na sua.) Não é a bebida que
um projetor de slides lança figuras coloridas que se sucedem acompanhadas de sons
está me transtornando, é outra coisa. Acho que o jeito é sair dando canelada...
metálicos sugerindo delírio sonambúlico de Gil. Aparecem as seguintes figuras: Elza
ELZA
vestida de noiva com véu e grinalda, um padre abençoando, alegoria de Adão e Eva no
Gil, pelo amor de DEUS.
paraíso, Elza em traje de passeio tentando afastar do seu busto as mãos de Gil, a imagem
GIL
de Santo Antônio em relevo, Elza com a roupa de dormir que ora veste, Elza somete de
Não mete DEUS neste negócio, já basta o Santo Antônio... (Engole mais um trago
calcinha e sutiã, Elza em pose de oração, uma senhora parecida com Gil entregando-lhe
e deposita a garrafa em lugar destacado na penteadeira; Elza pega a garrafa, guarda-a
um embrulho, ele retirando do embrulho um pijama vermelho, Elza envolta no lençol,
na gaveta dele e no lugar da garrafa coloca a sua imagem.)
apenas a face de Santo Antônio inclinada, um padre à paisana segurando um copo de
ELZA
vinho e uma empada, Elza quase despida, Santo Antonio em corpo inteiro, Elza
Não se aborreça, o seu juízo está um pouco afetado pela ação do álcool, você vai
inocentemente despida. Esta última figura some como um relâmpago sob ruídos
dormir e neste lugar fica o Santo Antônio, já que também descobriu o que não devia.
estridentes. Gil acorda assustado e acende a luz do teto; Elza senta-se na cama.)
GIL
ELZA
Esta é boa... Não que fazer a coisa completa? Acende logo uma dúzia de velas...
O que foi?
353
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GIL
ELZA
Pesadelo.
Gil, o que é isto?
ELZA
GIL
Bebeu demais. Não quer deitar aqui? GIL
Chega, meu amor, chega! Se você está apavorada pode correr e se trancar no banheiro porque eu... (Apaga a luz do teto, Elza acende imediatamente a do abajur.)
Não aguento ficar ao lado de você como uma estátua.
ELZA
ELZA
Gil, você ficou com o pensamento conturbado?
De amanhã em diante, Gil...
GIL
GIL
Eu já nem tenho pensamento para ser conturbado. Eu já nem tenho cérebro, só
O meu caso é hoje. Estou indócil.
tenho nervos, nervos excitados, compreende? É como se todo o meu sistema nervoso
ELZA
estivesse carregado de eletricidade, compreende? Você precisa compreender, o homem é
Pensa noutra coisa.
diferente da mulher, há momentos em que não pode se conter, compreende?
GIL
ELZA
Nem dormindo eu consegui.
Compreendo sim.
ELZA
GIL
Não custa esperar um dia.
Então por que não cede?
GIL
ELZA
Não custa uma ova! Eu não aguento esperar mais nem uma hora.
Você está se mostrando tão áspero. Nunca pensei...
ELZA
GIL
Com um pequenino esforço...
Eu é que nunca pensei, meu amor, que você levasse tão longe esta tua
GIL
anormalidade.
Nem meia hora. (Acerca-se dela, resoluto.)
ELZA
ELZA
Anormalidade? O que está querendo dizer, Gil?
Gil...
GIL
GIL Nem dez minutos.
Eu já não sei o que estou querendo dizer, já não sei nem se estou querendo dizer. Mas que o teu comportamento não é normal, não é.
ELZA
ELZA
Mas...
Amanhã eu explico; amanhã.
GIL
GIL
Nem três minutos.
Você tem alguma aversão física por mim?
ELZA
ELZA
Por favor...
Aversão?
GIL
GIL
Nem um minuto.
Só pode ser.
355
356
ELZA
GIL
Que absurdo!
E por que amanhã? Estou farto de ouvir você dizer amanhã, amanhã. Eu não vivo
GIL
em função do amanhã, compreende? O amanhã é um saco sem fundo que as pessoas
Então você se sente feliz em me maltratar.
procuram encher de fantasia para se consolar. Eu existo agora e isto é o que me interessa.
ELZA
ELZA
Gil!
Você me desconcerta com esta impaciência.
GIL
GIL
Sente prazer em me torturar. ELZA
E você me irrita. Vamos, bota pra fora a justificativa. Elza, por amor de DEUS, já que você não tem amor em mim, fala! Por acaso é algum motivo de saúde?
Gil, isto é sadismo.
ELZA
GIL
Não é isso.
Lógico que é sadismo.
GIL
ELZA
Você tem algum defeito?
Está me chamando de sádica?
ELZA
GIL
Gil, não me humilha.
Talvez não seja bem sádica, seja...
GIL
ELZA
Elza, te coloca na minha posição. Afinal de contas eu tenho o direito de saber o
O que, Gil?
que ocorre. Basta de mistério temperado com telefonemas da mamãezinha. Se me encobriu
GIL
alguma coisa trágica chegou a hora de revelar.
Mais ou menos masoquista.
ELZA
ELZA
Não é nada trágico, você achará até engraçado.
Quanta brutalidade.
GIL
GIL
Engraçado???
Brutalidade uma joça! Ou você gosta de me fazer sofrer ou gosta de fazer sofrer a
ELZA
si mesma. Das duas, uma, não há justificativa para a tua conduta.
Achará cômico. Vai rir com certeza.
ELZA
GIL
Há, sim. Amanhã eu explico, não disse?
Duvido muito que tenha disposição para rir depois de todo esse vexame.
GIL
ELZA
Que justificativa pode haver? Se realmente há, fala, não fica me cozinhando em
Vai rir, sim.
caldo morno. ELZA Gil, eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo como há uma justificativa que você amanhã entenderá.
GIL Elza, se você não me aceita como marido, nem me esclarece o motivo, daqui a pouco eu tenho uma crise não sei de que. Será que... será que é uma dessas mulheres geladas para homem?
357
358
ELZA
ELZA
Gil!
Pois é, você demorou tanto a tomar uma iniciativa... O tempo passando... Cada
GIL
ano eu ficando mais velha...
Só sendo.
GIL
ELZA
E daí?
Bem, não adianta discutir mais.
ELZA
GIL
Quando a gente faz uma promessa oferece algo em troca da graça que pretende
Correto. Porém uma coisa eu devo te informar neste exato momento: a minha
alcançar...
conclusão de toda essa lenga-lenga é que, em teu próprio benefício e para o meu alívio, a
GIL
solução é... (Abre a blusa do pijama, apaga a luz e parte ao encontro dela; Elza agilmente
Sim?
acende a luz.)
ELZA
ELZA Você não tem este direito.
A graça foi alcançada, Gil, nós casamos e você devia estar muito agradecido a Santo Antônio.
GIL
GIL
Como não? Este direito, meu amor, é na realidade o único direito que o homem
E então?
tem depois que casa... (Agarra os braços dela obrigando-a a deitar.) ELZA
ELZA Agora tenho de pagar a promessa. Prometi a Santo Antônio que, se nós
Hoje não, Gil, amanhã.
casássemos, durante toda a minha primeira noite eu permaneceria virgem, em sinal de
GIL
devoção.
Fecha os olhos e conta até dez, deixa o resto por minha conta...
GIL
ELZA
(Entre surpreso e resignado.) Esta não!...
Eu explico, Gil, eu explico. Fiz uma promessa. (Desvencilha-se dele, corre para a imagem na penteadeira.) GIL Promessa??? ELZA Para Santo Antônio. GIL Promessa de quê? ELZA Para casar. GIL Que estória é essa?
359
SEGUNDO ATO
360
GIL Claro. Uma pessoa de juízo perfeito, uma pessoa que tivesse cinquenta gramas de
Horas depois. Elza está dormindo na cama e Gil no divã. A respiração de Gil é ofegante; ele desperta, ergue-se com dificuldade, ensaia uns passos, junta a garrafa do
bom senso não ia fazer uma promessa tão estúpida. Onde já se viu prometer a virgindade a santo sem consultar o noivo...
chão, bebe, põe a garrafa na penteadeira ao lado da imagem de Santo Antônio; a seguir
ELZA
acende a luz do teto. Elza desperta.
Você concordaria?
ELZA Ahn!... GIL
GIL Concordaria uma... (Diz um palavrão que não se ouve, percebe-se pelo movimento mudo dos lábios.)
Ahn o quê?
ELZA
ELZA
Gil! O que você disse?
Você me chamou?
GIL
GIL
Disse que concordaria uma... (Mesmo jogo.)
Chamar para quê? Para rezar um terço no quarto do quinto andar?...
ELZA
ELZA
Gil! Você bebeu ainda mais?
Que horas são?
GIL
GIL
Bebi. E daí?
Interessa a hora?
ELZA
ELZA
E eu que durante onze anos suspirei por esta noite conjugal.
Já é madrugada?
GIL
GIL
Isto não é uma noite conjugal: é uma noite celestial...
Acha que é?
ELZA
ELZA
Ironiza, Gil, ironiza.
Não sei, estou perguntando.
GIL
GIL
Não é mesmo? Você não fez da cama um altar?
Eu também.
ELZA
ELZA
Gil, olha o teu rosto no espelho.
Continua bebendo?
GIL
GIL
Já olhei até demais.
E você, continua com a cuca avariada?
ELZA
ELZA
Observa em que estado lastimável você se encontra.
Avariada?
GIL É, me encontro. Mas a causa do meu estado lastimável não é a bebida...
361
362
ELZA
administração da justiça divina... O que representa para você a virgindade dela na noite de
Como você se transforma quando bebe.
hoje, hein, Santo Antônio?... Você está desfrutando essa virgindade?... Se está temos aí um
GIL
caso de adultério... Se não está o que adianta o sacrifício dela?... E sobretudo o meu
Todo mundo se transforma, bebendo ou não bebendo. Você é a única pessoa na
sacrifício, o sacrifício aqui do Gil, Santo Antônio, do Gil que não tem nada a ver com a
face da terra que nunca mudou. A única mulher que de livre e espontânea vontade depois
transação de vocês?... É por isso, Santo Antônio, que o povo diz que de tanto fazer milagre
de casada se conserva igualzinha, com o selo de fábrica.
você ficou careca... Não... não... me perdoa, Santo Antônio, me perdoa... Estou falando
ELZA
asneira... Sou um sujeito desregrado... Desequilibrado... Neurótico, ela já disse... Você é
Amanhã, Gil, amanhã terá o que deseja.
boa praça, Santo Antônio, me perdoa... me perdoa que eu não presto, sou igual a todo
GIL
homem... Bom, Santo Antônio, como eu não acredito em você, e você certamente não
É aí que você se engana, é aí que comete um erro desastroso. Vou pegar hoje um
acredita em mim, chega de papo... (Afasta-se até a janela, olha para fora.) Ih! Que porre...
pileque tão grande, tão grande que durante uns quinze dias não terei força nem para dar um
(Esfrega as pálpebras e olha de novo para fora.) Já estou enxergando tudo esfumaçado...
espirro... (Aproxima-se da penteadeira onde estão a imagem e a garrafa, bebe mais.)
com mais duas doses só vejo fumaça... (Sai da janela, acende um cigarro; escuta-se um
ELZA
rumor de vozes.) Uai! Barulho? Que pileque! Já estou vendo fumaça e ouvindo vozes (O
Chega, Gil.
telefone toca.) Chi! Até o telefone... Daqui a pouco sou capaz de ouvir novamente aquele
GIL
sermão sobre Adão e Eva, vai ser de roer... (Senta-se no divã, o telefone volta a tocar, Elza
Sim senhor, quem diria!
ronca.) De novo?... É alucinação... Se não fosse ela acordava com a zuada... O jeito é
ELZA
tentar dormir senão acabo bilé... (Entra um pouco de fumaça pela janela, ele a fecha.)
De fato, quem diria, vendo você afiançar que jamais botaria na boca um pingo de
Estou completamente aluado... (O telefone toca outra vez, ele arranca o fio do telefone.) Que zonzeira... (Soa forte uma sirene, Elza desperta.)
álcool. GIL
ELZA
(Encosta a garrafa na imagem.) Eis aí dois símbolos, para você que admira
Quem me chamou?
simbolismos: o santo e a garrafa de uisque ... a virtude e o vício... a pureza e o pecado... o
GIL
céu e a terra... O teu santo e a minha garrafa... juntos, nos separando.....
Chamaram, é?
ELZA
ELZA
Gil, eu esgotei a minha capacidade de tolerância. Desta vez vou dormir um sono
Não foi você?
só. Até amanhã. (Apaga a luz do teto, deixando acesa a do abajur, toma posição definitiva
GIL
para o sono; Gil permanece diante da imagem, bebendo, indiferente a Elza que logo
Não, se alguém neste quarto te chamou deve ter sido o Santo Antônio...
adormece.)
ELZA
GIL
Tive a impressão de que me chamavam. Não era uma... um apito...
Amanhã... por que esperar o amanhã?... O amanhã é sempre duvidoso... Para
GIL
você, não, Santo Antônio felizardo... Mas para nós mortais é duvidoso sim... Estou sendo roubado, Santo Antônio... E você é o culpado de todo este drama... De toda esta comédia... Por que você ajuda a mulherada, Santo Antônio, usando o prestígio que tem para fazer milagre e receber em troca bons presentes?... Isto é corrupção ativa, crie contra a
Você está mais embriagada do que eu. Embriagada de ilusão. É a pior embriaguez, ouviu? A tua velhice toda vai ser uma enorme ressaca...
363
364
ELZA
GIL
Uma pena eu acordar. Estava sonhando. Um sono tão formoso. Imagina, Gil, no
Fechou o tempo lá embaixo.
sonho tinha nuvens.
ELZA
GIL Nuvens cinzentas anunciando tempestade ou nuvens brancas “decorando” o
Não é desordem. (Vai à janela, abre-a porém logo a fecha porque a fumaça ameaça invadir.)
firmamento?...
GIL
ELZA
Você também?...
Não lembro. Havia estrelas...
ELZA
GIL
É fumaça, Gil.
Estrelas de cinco pontas ou estrelas desapontadas?...
GIL
ELZA
Sim, é fumaça, pensei que não, mas é, não viu?
Havia flores. Rosas vermelhas que pareciam pedaços do teu pijama. Havia um
ELZA
coro de vozes... (Ressurge o rumor de vozes.) Que barulho é este? GIL
Deve ser incêndio. Telefona para a portaria e indaga. (Gil coloca o fone no ouvido.)
Você ouviu?
GIL
ELZA
Se for incêndio é um incendiozinho de araque.
Por que não haveria de ouvir?
ELZA
GIL
Liga, Gil.
Então, eu não estou delirando... (O rumor aumenta e diminui.)
GIL
ELZA
Não dá sinal. Mixou.
Será que da janela dá para ver?
ELZA
GIL
Não brinca com coisa séria, liga.
Deve ser confusão na rua. O pau está comendo... (Os ruídos crescem.)
GIL
ELZA
É certo, não dá sinal.
Ainda bem que não ficamos no segundo andar. (Toca a sirene.)
ELZA
GIL
Você me deixa nervosa.
Ouviu?
GIL
ELZA
É justo. Você não me deixou nervoso todo esse tempo? (Som de sirene.)
É uma sirene. Foi esta sirene que me acordou.
ELZA
GIL
Olha a sirene, ouve. Ai! Meu DEUS, me dá este aparelho. (Toma o telefone dele.)
Deve ser ambulância. Alguém pifou.
GIL
ELZA
Deu sinal?
Gil, tive um pressentimento.
ELZA Não, por quê?
365
366
GIL
GIL
Ah!...
(Movimentando-se) Estou indo.
ELZA
ELZA
O que é?
De pijama?
GIL
GIL
Eu arranquei o fio.
O que tem?
ELZA
ELZA
O fio? Você arrancou o fio do telefone?
Veste ao menos uma calça por cima. Não, vai assim mesmo.
GIL
GIL
Foi... ELZA
Nesta lua de mel e de fel está acontecendo tudo. Também, começou acontecendo o impossível...
Mas por que, Gil?
ELZA
GIL
Gil, com pressa.
Esta droga não parava de tocar, você não acordava, eu estou mais ou menos
GIL
bêbado, pensei que fosse alucinação alcoólica. ELZA Gil, você sabe o que você fez? GIL
Não demoro. (Sai) ELZA Meu DEUS... (Fica sem saber o que fazer, liga o rádio-eletrola, aumenta o volume, ouve-se uma voz de locutor, à princípio confusa.)
É...
LOCUTOR
ELZA
Alô estúdio... alô estúdio... alô estúdio... técnica.. alô técnica...
OK... OK...
Com certeza estavam telefonando da portaria para avisar ...
Atenção, ouvintes, muita atenção... Sensacional furo de reportagem. Nossa emissora entra
GIL
no ar, esta hora, numa edição extra a fim de noticiar, em absoluta primeira mão, o incêndio
Dei uma mancada, já sei, não precisa me responsabilizar pela catástrofe.
de proporções ainda ignoradas que irrompeu há poucos momentos no Hotel Central.
ELZA
ELZA
Minha Nossa Senhora, Gil...
Minha Nossa Senhora, o incêndio é aqui!
GIL
LOCUTOR
Sou um estúpido, estou de pleno acordo.
Estamos fazendo esta transmissão diretamente do local do sinistro, isto é, quer
ELZA
dizer, da loja que fica defronte, a tradicional Casa da Paz, aquela que vende mais barato e
Faz alguma coisa.
só vende o que é bom. O fogo, caríssimos ouvintes, lavra no quarto andar de maneira
GIL
impressionante.
Faço, vou dar uma olhada lá embaixo.
ELZA
ELZA
Quarto andar? Minha Santa Mãe do Céu!
Vai e volta já-já.
367
368
LOCUTOR
GIL
Até o presente minuto, salvo erro, lapso ou omissão, não há vítimas registrar,
Não se pode, está ralado.
entretanto a situação é caótica.
ELZA
ELZA
Vamos de qualquer maneira.
Ai! Meu Santo Antônio, valei-me!
GIL
LOCUTOR
Não podemos.
Existem três apartamentos no quinto andar e, segundo informações da gerência do
ELZA
hotel, todos estão ocupados. Os prejuízos são... já foram ou deverão ser, incalculáveis.
Anda, vamos.
(Breve pausa.) Atenção ouvintes, segundo dados que acabamos de colher apenas uma das
GIL
famílias do quinto andar, somente uma, conseguiu descer antes do elevador enguiçar.
Não dá pé.
ELZA
ELZA
Enguiçou, meu DEUS, e Gil não chega.
Vamos, Gil.
LOCUTOR
GIL
Os bombeiros, nossos bravos soldados do fogo, lutam heroicamente, no entanto,
O elevador engatou. E o fogo bloqueou inteiramente a escada.
as chamas se alastram cada vez amis como lobas famintas... é um espetáculo tenebroso,
ELZA
ouvintes, e o pior é que o carro-tanque dos bombeiros não tem capacidade para muita água.
Não!
Nós bem que temos chamado atenção para o fato, nós bem que temos verberado a
GIL
inoperância da Prefeitura, nós bem que temos sustentado uma campanha patriótica contra o
Infelizmente estamos de azar.
descalabro administrativo que impera em nossa cidade, cujo atraso é fruto da incúria de
ELZA
seus dirigentes. (Gil invade a cena tossindo, cabelos desgrenhados; Elza desliga o rádio;
E agora?
clarões avermelhados surgem por trás da vidraça da janela; daqui para frente os clarões,
GIL
rumores de vozes e soar da sirene quase não cessam mais, alternam-se e se misturam, ora
O incêndio é no andar abaixo do nosso.
alto, ora baixo.)
ELZA
ELZA
Sei. Ouvi pelo rádio.
Gil!
GIL
GIL
Pois é.
Elza, meu amor.
ELZA
ELZA
O rádio disse que o carro dos bombeiros não tem água.
Vamos embora.
GIL
GIL
Deve ter, você ouviu mal.
Não se pode.
ELZA
ELZA
O que a gente faz, Gil?
Vamos sim.
GIL Confia nos bombeiros. Em cada dez incêndios eles conseguem apagar uns três...
369
370
ELZA
ELZA
E se eles não conseguirem vencer o fogo?
Vamos arriscar descer, Gil.
GIL
GIL
Estamos fritos...
Se a gente arriscar descer chega lá embaixo como galeto de restaurante ...
ELZA
ELZA
Se não conseguirem apagar o incêndio, Gil?
Estamos perdidos.
GIL
GIL
Vai ser de morte...
Os bombeiros não vão nos achar...
ELZA
ELZA
Precisamos fazer alguma coisa.
A gente desce ligeiro, nem que se queime as pernas é melhor.
GIL
GIL
Não se pode fazer nada.
E a fumaça, Elza, e a fumaça?
ELZA
ELZA
Vamos tentar descer pela escada. (Faz menção de sair, Gil a detém.)
O que é que tem a fumaça?
GIL
GIL
Está louca?
Sufoca. Mata sufocado.
ELZA
ELZA
Por quê?
Não mata. Tapa-se o nariz.
GIL
GIL
A escada virou um fogareiro. E o fogo já atingiu nosso corredor. Só em me
Puxa! Como você é tola. Não sabe que a maioria das pessoas que se acabam em
aproximar meio metro quase me torno um churrasco...
incêndio morrem sufocados pela fumaça?
ELZA
ELZA
A gente tenta descer correndo.
É?
GIL
GIL
Não dá, meu amor.
Claro que é.
ELZA
ELZA
E o que a gente faz?
Que horror.
GIL
GIL
Espera um pouco, os bombeiros estão trabalhando, eles tem experiência.
Tem calma.
ELZA
ELZA
Mas não tem água.
Estou aflita.
GIL
GIL
Arranjam.
Aflição não resolve.
371
372
ELZA
ELZA
Não posso ficar parada.
E como você faz eu desmaiar?
GIL
GIL
Pode.
Um murro na testa...
ELZA
ELZA
Tenho que fazer alguma coisa.
Não, Gil, não faça isto.
GIL
GIL
Não adianta fazer nada.
Então se comporte como uma pessoa adulta.
ELZA
ELZA
Mas eu preciso, Gil, eu preciso fazer alguma coisa. O que é que eu faço, Gil?
Ai, meu DEUS, que angústia!
GIL
GIL
Não sei. Reza... se bem que ainda não é hora de rezar. ELZA
É questão de mais alguns minutos e tudo terminará em paz. Em paz ou em cinzas...
Gil, eu estou nervosa demais.
ELZA
GIL
Gil, você me ama?
Por favor, Elza.
GIL
ELZA
Claro que amo.
Eu estou uma pilha de nervos.
ELZA
GIL
Gil você... me ama mesmo?
Não perde o controle. O negócio é se controlar. Você começou tão bem,
GIL
controlando a natalidade...
Elza, o que é isto?
ELZA
ELZA
Acho que vou entrar em crise.
Gil, me abraça...
GIL
GIL
Atrapalha tudo. ELZA
Não deixa que o nervosismo te domine senão a gente vai para o beleléo mais cedo.
Acho que vou ter uma crise de choro.
ELZA
GIL
Gil, a nossa vida está em perigo, não percebe? A nossa vida está em perigo!
Se perder o controle eu sou obrigado a fazer como s faz com náufrago.
GIL
ELZA
Está.
Fazer o quê?
ELZA
GIL
Vamos tentar sair, Gil.
Fazer você desmaiar para não cometer uma imprudência.
GIL Não! Não e não!!!
373
374
ELZA
ELZA
A minha cabeça está rodando com este calor.
Gil, meu querido, o fogo chegou aqui.
GIL
GIL
Senta um instante.
O fogo não, a fumaça, não exagera.
ELZA
ELZA
Creio que vou ter um passamento.
O fogo vem atrás, Gil.
GIL
GIL
Isto passa...
Calma, meu amor, calma.
ELZA
ELZA
Liga o rádio, Gil... Não, não liga... Liga, estão irradiando... Não, é preferível não
Gil eu vou chorar... Eu vou gritar... Eu preciso, eu preciso chorar e gritar.
ouvir...
GIL GIL
Elza, você me contagia com este teu nervosismo.
Enquanto você resolve se liga ou não liga eu vou ao banheiro... (Entra no
ELZA
banheiro, Elza liga o rádio.)
Você está apavorado, não está?
LOCUTOR
GIL
A situação, ouvintes, é cada vez mais escabrosa... quero dizer, calamitosa. Da
Não...
janela de um apartamento do quinto andar surgem jatos de fumaça preta, aliás preta não,
ELZA
negra. O cidadão que se jogou do quinto andar teve morte horrível.
Está sim, não finge.
ELZA
GIL
(Gritando) Gil, vem escutar.
Apavorado não é bem o termo. Estou começando a ficar meio desequilibrado...
LOCUTOR
ELZA
O corpo ficou irreconhecível e já foi levado para o necrotério público que, como
Gil, eu não suporto mais fazer nada... O que faço?
os senhores e as senhoras sabem, encontra-se em péssimo estado de conservação, não
GIL
oferecendo o mínimo de conforto aos seus usuários...
Vai ao banheiro...
ELZA
ELZA
(Alto) Gil, não aguento mais nem um minuto, vamos embora de qualquer maneira.
Gil, tem pena de mim, me ajuda a fazer alguma coisa.
GIL
GIL
(Saindo do banheiro.) O que foi?
Reza... Reza, meu amor, faz uma promessa...
ELZA
ELZA
Temos de sair. (Desliga o rádio, abre a porta de saída, solta um grito de terror; Gil tranca a porta por onde também penetra fumaça sob clarões vermelhos.)
É, só se for... (Segura a imagem, ajoelha-se, balbucia uma prece; Gil liga o rádio.)
GIL
LOCUTOR
Eu não disse?
Ao que tudo indica, ouvintes, são remotas as possibilidades de serem evitados maiores danos, inclusive novas vítimas. Os encurralados hóspedes, digo, infortunados
375
376
hóspedes do quinto andar... Atenção, atenção... Alguém vai saltar novamente por uma das
ELZA
janelas do quinto andar... Uma cena dantesca, ouvintes indescritível. (Ouve-se uma
Não há salvação, Gil, não vê que não há salvação?
explosão.)
GIL
ELZA
Há, para você há, pelo menos na outra vida. Eu é que estou liquidado,
Explosão?
definitivamente liquidado, eu e o meu livro.
GIL
ELZA
É... explodiu.
E eu, Gil? E eu? Morrer logo hoje?
ELZA
GIL
O que terá sido?
Se você morrer irá para o céu, meu amor, te lembre disso, já é um consolo. E eu
GIL
que irei para o nada? E o meu livro que não irá para parte alguma?...
Como se pode saber? Vai ver que alguém pulou pela janela montado num barril de pólvora...
ELZA Gil, em uma hora como esta você tem coragem de se preocupar mais com seu
ELZA
livro do que comigo?
Gil, é o fim, querido, você também não acha que é o fim?
GIL
GIL
Esta é uma hora muito especial, Elza, talvez a gente esteja diante da morte.
Não sei, já não sei mais de nada...
ELZA
ELZA
E é hora de pensar em livro?
É o fim, eu sinto que é o fim. Diga que é, Gil.
GIL
GIL
É hora de pensar naquilo que se ama...
Talvez.
ELZA
ELZA
E você não me ama, Gil?
É o fim... é o fim... é a morte, Gil... é o fim da nossa vida...
GIL
GIL
Amo, Elza, amo.
(Começando a perder
domínio dos nervos.) Meu amor, me ajuda a não
desesperar. Tem fé, cadê tua fé?
ELZA E como não concentra em mim a sua preocupação?
ELZA
GIL
Nós vamos morrer, Gil, é o fim de tudo, é a fatalidade...
Você tem DEUS por você. O meu livro só tinha eu por ele.
GIL
ELZA
Pensa em DEUS. Pede. Suplica. Implora. Ele te atenderá.
Gil, deixa de dizer bobagem, isto não é hora de ficar pensando em coisas indignas.
ELZA
Quem sabe se o que está acontecendo não é um castigo pelas blasfêmias que você escreveu
Não vai atender, Gil, não vai atender.
naquele livro?!
GIL
GIL
Vai sim, você merece, é devota, DEUS não abandonará você.
Você acha?
377
378
ELZA
GIL
Acho. Com uma literatura tão imunda, com uns poemas tão sujos, cheios de
Eu não quero “projetar” coisa nenhuma, sua Assistente Social beata e pretenciosa.
sacrilégios, você não podia esperar um futuro feliz.
O fato é que tua carolice estragou por completo a nossa lua de mel, com essa besteirada de
GIL
virgindade oferecida a Santo Antônio. Estragou a nossa lua de mel como estragou o nosso
É? E se você sabia disso por que amarrou o teu futuro ao meu?
namoro e o nosso noivado, como estragou a minha obra poética que já podia estar sendo
ELZA
lida por toda a cidade se você não exigisse que eu somente a publicasse depois do
Não sei, sei que estamos sendo castigados por sua causa. Você escreveu naquele
casamento para não provocar escândalo na paróquia. Elza, quer saber mais o quê? Nós
livro que uma aula podia ser mais importante que uma procissão, que um hospital podia
estamos à beira da morte, é a ocasião de lavar a alma, de mandar para o inferno o
valer mais do que uma igreja.
fingimento, de rasgar o manto de mentira que a vida vestiu em nós. Nem eu amo mais a
GIL
você do que a minha poesia, nem você me ama mais do que a tua religião. E porque somos
Elza, você me ama ou me odeia? Hein? Ama ou odeia? Você me odeia, Elza, no
duas criaturas frustradas, eu porque não me realizei como escritor, você porque não se
fundo me odeia porque ninguém acusa uma pessoa que ama diante da morte ...
realizou como freira, e porque somos duas criaturas desencontradas consigo mesmas,
ELZA
estamos em contradição uma com a outra, compreende? É possível que este incêndio seja
E você, que prova de amor de amor me dá nesta hora esquecendo o meu destino
mesmo providencial. É possível que a morte seja para nós a melhor alternativa.
para se preocupar com a porcaria do seu livro? Quem sabe se este incêndio não foi
ELZA
mandado pela Providência Divina para queimar o que você escreveu antes de ser publicado
Você disse tudo o que desejava? Pois então...
e envenenar muitos corações? A única coisa que eu lamento é não ter seguido a minha
GIL
vocação.
Não, ainda não disse tudo. Eu agora sei que você nunca me amou. Você jamais GIL
me fez um carinho, jamais teve um gesto meigo comigo, e ninguém ama sem ternura.
Eu também lamento isso ...
Sempre me olhou como um transviado, um pecador necessitado de absolvição. Casou para
ELZA
operar a minha recuperação moral como esposa entendida em Psicologia, para fazer como
Ironiza, você é mesquinho, mas do sentimento de culpa não se livra.
leiga aquilo que gostaria de fazer como religiosa e assim se justificar perante a si própria se
GIL
perdoando por não ter entrado para o convento. Porque não entrou de vez no convento, é
(Perdendo afinal o domínio dos nervos e mergulhando, emocionalmente, na faixa
que não consigo compreender... Eu fui o seu eleito, Elza, mas eleito não para ser amado e
histérica de Elza.) Olha, eu ia ficar calado, porém você me massacrou tanto que vou
sim para ser purificado pelo toque mágico da sua virtude. E o triste é que isto me agradava.
desabafar. Se alguém tem culpa desta situação trágica é você, ouviu? É você!!!
Agradava até a pouco, quando eu ainda tinha esperança de viver.
ELZA
ELZA
Eu???
É bom que você desabafe porque eu...
GIL
GIL
Sim!!! Você mesma!!! Foi você quem escolheu o quinto andar, eu queria o segundo. Pode começar a sentir arrependimento ou remorso.
Porque você também vai desabafar, eu sei. É o que nos resta: desabafar, neste terrível abafamento de calor e fumaça. Somos duas ilhas humanas: duas porções de
ELZA
desespero cercadas de fogo por todos os lados. Observa os clarões na vidraça: as labaredas
Eu não disse que você é mesquinho? Agora quer se libertar do sentimento de
vem se aproximando como línguas de serpente.
culpa projetando a responsabilidade para mim.
379
380
ELZA
frigideira no fogão aceso. Enlouquece você também, enlouquecer é sublime. Enlouquece
Você é um ingrato. Se a gente se salvar vou desfazer o nosso casamento.
comigo, faz um esforço – rebenta! Quer que eu ajude você? Repara, o fogo vem vindo, o
GIL
fogo é implacável, o fogo dilacera, o fogo consome ... (Ouve-se um grito.) Ouviste? Talvez
É tarde. Não haverá a menor possibilidade de termos esta satisfação...
seja uma criança que está sendo assada na brasa para que eu seja castigado... Olha, os
ELZA
clarões do fogo, olha como o fogo é vermelho, é vivo, olha as faíscas, parecem pássaros do
Você é tão indigno quanto o seu livro.
Inferno voando... E nós também podemos voar, podemos sair daqui voando nas asas da
GIL
loucura...
Sou. Conscientemente. E assumo a minha indignidade enquanto você não assume
ELZA
a sua santidade... há uma diferença básica entre nós, compreende? Uma diferença
Por DEUS, você ficou mesmo louco?
essencial.
GIL
ELZA Eu sabia que você era um canalha. O que nunca julguei é que pudesse me maltratar em uma hora como esta. Sou uma desgraçada. (Chora sem muita disposição.) GIL Não adianta se derramar em lágrimas. Continua me acusando, é isto que você precisa. Berra o teu ódio, berra. Chama nome, diz palavrão, rebenta em fúria sagrada.
Enlouquece também. Olha, louco a gente pode fazer milagre, em vez de ficar pedindo... (Ouve-se mais explosões por entre o tumulto de vozes e os clarões rubros.) Escutaste? Trovões... Gargalhadas celestes... O Santo não aceitou o pagamento da tua promessa... O céu está rindo da tua virgindade... ELZA Gil, você está me contaminando com essa maluquice, você está me destruindo.
ELZA
GIL
Você é um cretino. Não é um homem, é um moleque.
Vês? Santo Antônio começa a vir em teu auxílio. A mim, que sou impuro, ele já
GIL
amparou. Faz um esforço, não há outra saída – rebenta! Você sempre viveu coberta de
Isto, começa a rebentar.
gelo, petrificada no gelo do misticismo, do preconceito. Quebra esse gelo com o martelo da
ELZA
loucura, quebra que esse gelo jamais se dissolve, nem no calor de mil incêndios... Vamos,
É um patife!
rebenta essa crosta fria que te envolve, que te aprisiona, rebenta e te liberta... Não é
GIL
possível esmagarmos a própria natureza, não é possível sermos o que não somos
Continua. Vomita tudo.
eternamente, rebenta neste momento antes que seja tarde. Elza, rebenta como um vulcão e
ELZA
atira para fora de tudo o que ferve dentro de ti – rebenta!!!
Vomito, sim, porque tenho nojo de você. Nojo.
ELZA
GIL
Por favor, Gil, chega! Já estou a ponto de sair correndo doida.
Obrigado pelo elogio.
GIL
ELZA
Se enlouqueceres não precisarás sair correndo, os loucos nunca correm... Que
Você é um maluco, ouviu? Um maluco!
maravilha, Elza, os loucos nunca fogem...
GIL
ELZA
Sou. Mas a minha loucura é mais honesta que a tua impostura. Experimenta você
Gil, para! Para!!!
também enlouquecer, experimenta. A loucura é uma revelação. Este calor não esquenta o teu cérebro, os teus miolos, o teu crânio? A minha cabeça eu já sinto como se fosse uma
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GIL
(Explosões)
Vamos, já estás quase no ponto, acredita em mim, não resiste, não recua, vamos,
Ouviste?
um pouco mais, somente um pouco. Depois do primeiro passo tudo é fácil, basta seguir em
Sou um general de Napoleão no campo de batalha.
frente de olhos fechados e imaginação aberta ... A imaginação, usa a imaginação, despreza
O troar dos canhões saúda a minha bravura.
o raciocínio, o raciocínio é traiçoeiro, só serve para enredar a gente da teia do artificial, do
Fazendo estremecer bandeiras e cadáveres.
calculado, não conduz a nada de grande e de belo... a imaginação é diferente. Elza, a
O triunfo se aproxima e a glória me espera.
imaginação corta as correntes do impossível e nos solta no espaço azul do horizonte... Abre
A morte me rodeia e o futuro-me chama.
a porta da imaginação com chave da loucura, rebenta, Elza, rebenta!!!
O troar dos canhões saúda minha bravura.
ELZA
(Clarões avermelhados.)
Meu DEUS eu acabo louca, não aguento mais! Não aguento mais!!! (Tenta abrir
Viste?
a porta de saída e outra vez a fecha para impedir a penetração da fumaça e do fogo; corre
Sou um mártir que vai ser imolado em circo romano.
até a janela e executa o mesmo jogo.)
A fogueira está acesa e crepitante.
GIL
Fanáticos se comprimem em febril expectativa.
Enlouquece, te mira no meu exemplo, vê como me sinto, observa a minha lucidez.
Do alto da tribuna oficial César me contempla.
Eu ainda estou raciocinando. Mas entre as sombras de um raciocínio e outro a minha
Seus olhos brilham como duas tochas flamejantes.
imaginação lança fagulhas resplandecentes. Eu me sinto como Gil e como Santo Antônio...
A fogueira está acesa e crepitante ...
Numa fração de segundo, mais do que isto, ao mesmo tempo, eu te odeio e te amo, eu
ELZA
estou aqui encarcerado, neste quarto, e estou lá fora flutuando, no infinito... presta atenção
Gil, eu estou sentindo uma coisa estranha dentro de mim.
para mim, me olha por dentro... Eu sou o que, um marido?... Sim e não... Eu sou um
GIL
poeta?... Não e sim... (Som de sirene.)
Rebenta, Elza!
Ouves?
ELZA
Sou um mendigo vagabundo, sangrando ferido, e vão me levando para o hospital.
Eu estou sentindo vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo.
A sirene da ambulância soa como um gemido de dor chorando por mim.
GIL
Talvez eu não seja internado por falta de documentos.
É um bom sinal. Faz as duas coisas juntas.
E pela notícia de jornal ninguém saberá o meu nome.
ELZA
A sirene da ambulância soa como um gemido de dor chorando por mim ...
Não zomba, Gil, até em relação a você eu estou sentindo duas coisas diferentes...
(Rumor de vozes.)
GIL
Estás ouvindo?
Ótimo, é o princípio da tua redenção.
Sou um orador político discursando em praça pública.
ELZA
Vozes estimulantes me fazem continuar. Já sequei todas as fontes da eloquência.
Alguma coisa está acontecendo dentro de mim. Alguma coisa está se partindo dentro de mim...
Meu verbo se arrasta como vento sem direção.
GIL
Erguendo a poeira de ideais utópicos.
Deixa partir, deixa rebentar.
E vozes estimulantes me fazem continuar ...
383
384
ELZA
GIL
Alguma coisa está surgindo na raiz do meu íntimo...
De que modo?
GIL
ELZA
Deixa surgir, deixa tomar conta de ti.
Não sei dizer...
ELZA
GIL
(Cerra os olhos) É esquisito.
Tem de saber.
GIL
ELZA
O quê?
Não sei...
ELZA
GIL
(Mantendo os olhos fechados.) Estou me recordando de tudo...
Continua falando.
GIL
ELZA
Tudo o quê?
É difícil explicar...
ELZA
GIL
Tudo que fui...
Não tenta explicar nada, continua falando.
GIL
ELZA
Quando?
Falando como?...
ELZA
GIL
Desde menina...
Com a boca.
GIL
ELZA
É?
Estou indo para longe...
ELZA
GIL
Não apenas recordando... Estou revivendo...
Vai.
GIL
ELZA
Como?
Cada vez mais distante...
ELZA
GIL
Não sei... Estou revivendo o passado...
Vai.
GIL
ELZA
Todo o passado?
Você está me ouvindo?...
ELZA
GIL
Todo...
Estou.
GIL
ELZA
Duma vez?
Está me entendendo?...
ELZA
GIL
Mais ou menos...
Não, mas não importa. Continua falando.
385
386
ELZA
GIL
Falando o quê?...
Não.
GIL
ELZA
Palavras.
Não me critica?...
ELZA
GIL
É uma espécie de viagem que estou fazendo...
Não.
GIL
ELZA
Viagem?
Não me força seu quiser voltar?...
ELZA
GIL
Uma viagem ao contrário...
Não.
GIL
ELZA
Sim...
Estou revivendo...
ELZA
GIL
Do avesso.
Revivendo o quê?
GIL
ELZA
Sim.
Ideias...
ELZA
GIL
Você entende?
E o que mais?...
GIL
ELZA
Continua.
Fatos... Emoções...
ELZA
GIL
Você está perto de mim?...
Desenterra do esquecimento todas as tuas lembranças. Desenterra todas as
GIL
sementes.
Estou.
ELZA
ELZA
Estou desenterrando...
Está me acompanhando?...
GIL
GIL
Cava o chão da memória. Cava com a enxada da loucura. Cava sofridamente.
Estou.
Cava fundo.
ELZA
ELZA
Está me protegendo?...
Estou cavando...
GIL
GIL
Estou.
Cava sem medo!
ELZA
ELZA
Não me larga?...
O medo... o medo... eu tenho medo...
387
388
GIL
ELZA
Enfrenta o medo.
Estou me sentindo mocinha...
ELZA
GIL
Não posso enfrentar...
Segue.
GIL
ELZA
Pode. Enfrenta.
Estou me sentindo no colégio...
ELZA
GIL
Não posso. Está crescendo...
Continua.
GIL
ELZA
O quê?
Fazendo um bilhete...
ELZA
GIL
O medo...
Para quem?
GIL
ELZA
Medo de quê?
Para você...
ELZA
GIL
Do medo...
Obrigado. Continua.
GIL
ELZA
Enfrenta, o medo é a tua algema – rompe a algema!
Estou me sentindo menor...
ELZA
GIL
Não posso.
Segue.
GIL
ELZA
O medo é a tua grade – arromba a grade!
Na aula...
ELZA
GIL
Não posso...
Sim.
GIL
ELZA
Pode, Elza, rebenta!
De catecismo...
ELZA
GIL
Gil...
Sai logo dessa aula.
GIL
ELZA
Fala.
Não...
ELZA
GIL
Estou me sentindo mais nova...
Sai!
GIL
ELZA
Sim?
Eu gosto...
389
390
GIL
ELZA
Por quê?
Estou me sentindo criança...
ELZA
GIL
Porque... ele me perdoa... sempre me perdoa...
Prossegue.
GIL
ELZA
Perdoa o quê?
No bosque...
ELZA
GIL
Uma coisa grave... um pecado mortal...
Sim.
GIL
ELZA
Que pecado?
Correndo...
ELZA
GIL
Não sei... não posso saber... não quero saber...
Corre.
GIL
ELZA
Tem que saber.
Árvores...
ELZA
GIL
Não quero!...
Sim.
GIL
ELZA
Tem de querer.
Minha irmã...
ELZA
GIL
Não!...
Sim.
GIL
ELZA
Sim!
Linda...
ELZA
GIL
É horrível!...
Sim. Você também.
GIL
ELZA
O quê?
Não, ela é mais linda do que eu...
ELZA
GIL
Não sei, mas é horrível...
Continua.
GIL
ELZA
Continua.
Ela é mais inteligente do que eu...
ELZA
GIL
Estou diminuindo...
Continua.
GIL
ELZA
Prossegue.
Graciosa... Ela é mais querida do que eu...
391
392
GIL
ELZA
Continua.
Estamos bem alto...
ELZA
GIL
As pedras...
Sim.
GIL
ELZA
Sim.
Gil!!!
ELZA
GIL
Estamos subindo pelas pedras...
O que foi?
GIL
ELZA
Sobe.
Ela escapuliu!... Meu DEUS, ela caiu lá embaixo!...
ELZA
GIL
É muito alto... estamos subindo...
Hein?
GIL
ELZA
Sobe.
Escapuliu da minha mão... Eu não empurrei!... Não empurrei!...
ELZA
GIL
Escorrega...
Que desastre.
GIL
ELZA
Cuidado.
Gil...
ELZA
GIL
Tirei o sapato, está liso...
Diz.
GIL
ELZA
Sim.
Acabou a viagem...
ELZA
GIL
Ela não quer...
Não acabou.
GIL
ELZA
Deixa.
Tenho de voltar...
ELZA
GIL
Não deixo não... Ela tem que ir lá em cima comigo... ela não é melhor que eu...
Não.
GIL
ELZA
Continua.
Tenho sim...
ELZA
GIL
Ela está indo contra a vontade...
Não!
GIL
ELZA
Sim.
Você prometeu não me forçar...
393
394
GIL
ELZA
É para o teu bem. Prossegue. Prossegue até rebentar com o teu medo.
Não ouço nada, só passarinho cantando...
ELZA
GIL
Você está do meu lado?...
Sim.
GIL
ELZA
Estou.
Tem árvores de novo... Perto tem árvores...
ELZA
GIL
Não está, não...
Sim.
GIL
ELZA
Estou sim.
Mas vejo...
ELZA
GIL
Eu não sinto...
O quê?
GIL
ELZA
Presta atenção.
Um portão de ferro...
ELZA
GIL
Eu estou me sentindo ao lado do meu pai...
Entra.
GIL
ELZA
É?
Não posso...
ELZA
GIL
Estou me sentindo em companhia de minha mãe...
Pode.
GIL
ELZA
Sim.
Não...
ELZA
GIL
Caminhando...
É uma ordem: entra!!!
GIL
ELZA
Então caminha.
É o portão do cemitério!...
ELZA
GIL
Muita gente andando atrás de nós... devagar...
Avança. Firme.
GIL
ELZA
Sim.
Gil, tem compaixão de mim!...
ELZA
GIL
Todo mundo calado... GIL Sim.
(Pousa as mãos em cima dos olhos dela que ainda se conservam fechados.) Segue e olha tudo de frente! Sem tremer!
395
396
ELZA
GIL
Uma sepultura... para minha irmã... minha única irmã... parece uma boneca
Elza...
loura... sorrindo em silêncio... pálida como cera... os bracinhos cruzados sobre o peito...
ELZA
vestida de anjo... no caixão todo branco...
Acredita, Gil... eu te amo.. eu te amo...
GIL
GIL
(Afasta-se, sensibilizado.) É trágico demais...
Sim.... Compreendo...
ELZA
ELZA
(Abre os olhos desmesuradamente com ar de espanto, deixando transparecer que
Eu te amo mais do que tudo na vida...
toda a estrutura do seu caráter oscila nos alicerces; por um instante ainda tenta
GIL
equilibrar-se num supremos esforço mas já é tarde para recompor as bases da
Eu sei... Eu creio...
personalidade; afunda então em pranto compulsivo, avassalador.) Eu vou morrer... nós
ELZA
vamos morrer... vamos morrer... nós vamos morrer... eu vou morrer... você vai morrer... me
Não sabe não, Gil, eu te amo mais do que a religião...
perdoa, Gil... me perdoa tudo o que eu fiz... me perdoa, Gil, me perdoa...
GIL
GIL
Meu amor, eu...
Não há nada para perdoar.
ELZA
ELZA
Eu te amo mais do que todas as igrejas... Eu juro, Gil, eu juro...
Não, me perdoa... me perdoa por não ter deixado você publicar o livro...
GIL
GIL
Não precisa jurar.
Esquece isto.
ELZA
ELZA
Gil, acredita, eu sempre fui apaixonada por você.
Gil, me perdoa por ter feito aquela promessa ...
GIL
GIL
Sim, Elza.
Calma, te acalma.
ELZA
ELZA
Eu sempre achei você genial, Gil... Eu adoro as poesias que você escreve, todas
Gil, meu amor, me perdoa por ter escolhido este apartamento no quinto andar...
elas...
GIL
GIL
Nada há para ser perdoado, você não fez por mal.
Obrigado, meu amor, muito obrigado.
ELZA
ELZA
Gil, meu querido, você tem razão... manda por mim tudo para o inferno...
Gil, você me ama? Nós vamos morrer, não me engana.
GIL
GIL
Elza, o que é isto?
Amo sim, Elza, amo.
ELZA
ELZA
Gil, me perdoa por não ter sabido te amar...
Gil, nós vamos morrer, não vamos?
397
398
GIL
ELZA
A menos que aconteça um milagre, vamos morrer sim, meu amor.
(No auge do desespero.) É bonito para você que viveu a sua vida. Eu não vivi a
ELZA
minha. Você se divertiu, você bebeu, você brincou. Você fez tudo o que quis. Eu não, eu
Se depender de milagre nós morreremos. Já não acredito em mais nada.
diz mais jejuns do que passeios, eu deixei para depois as minhas alegrias, eu me
GIL
mortifiquei com penitências para resistir a tentação das coisas boas, eu gastei a minha sorte
É preciso acreditar, é preciso...
sem comprar nada, eu me esqueci de mim na vida.
ELZA
GIL
Não, já não acredito, já não posso acreditar.
Vamos rezar, eu rezo com você.
GIL
ELZA
Elza, meu amor, reúne as tuas energias e reza. Quem sabe se DEUS não existe
Não, eu já rezei de sobra, eu agora estou é revoltada, revoltada contra tudo!
mesmo?...
GIL
ELZA Se existisse não tinha nos abandonado... Você tem razão, Gil, a vida é um
Elza, vamos rezar... Eu confesso que... Estou sentindo uma vontade imensa... Uma necessidade imensa de rezar...
absurdo, a vida não tem sentido.
ELZA
GIL É... Talvez a vida não tenha sentido... mas a morte tem sentido... DEUS deve
E eu estou sentindo uma necessidade imensa de mandar tudo a... (Pelo movimento mudo dos lábios percebe-se o palavrão.)
existir...
GIL ELZA
Elza! Pelo amor de DEUS!
Não existe, é tudo invenção.
ELZA
GIL
Gil, chegou a minha vez, você enlouqueceu de propósito mas eu estou
Elza, não estou te reconhecendo. Reza, busca a tua fé e reza. Não deixa escapar a esperança, ainda estamos respirando, não deixa a esperança sumir...
enlouquecendo sem querer, você enlouqueceu de mentira mas eu estou enlouquecendo de verdade.
ELZA
GIL
Já não há lugar para a esperança.
Olha, meu amor, você está perturbada, eu acho que vou começar a rezar sozinho...
GIL
ELZA
Então não há lugar para mais nada...
Chegou a minha vez de rebentar, Gil, de REBENTAR!!!
ELZA
GIL
Gil, nós vamos morrer. Nós vamos morrer!
Elza, você...
GIL
ELZA
Pelo menos vamos morrer rezando...
Gil, você me ama, não ama?
ELZA
GIL
É inútil. GIL Mas é bonito... pelo menos é bonito...
Claro, eu sempre fui também apaixonado por você, eu sempre adorei o teu espírito religioso, vamos rezar...
399
400
ELZA
GIL
Gil, me beija!!!
Toma o teu Santo Antônio, te ajoelha com ele e oferece tua alma a DEUS... eu
GIL
não sei rezar ajoelhado olhando para santo, vou rezar em pé olhando para mim mesmo...
Sim, mas agora?...
(Posta-se diante do espelho, fitando a própria imagem.)
ELZA Gil, me beija!!! GIL Elza, o momento não é próprio... (Ele fica sem jeito; os rumores e clarões atingem maior intensidade.)
ELZA (Arranca do corpo a camisola branca e ajoelha-se em cima da cama.) Vem, Gil, vem! Vem que eu sou tua! Vem que eu sou tua! Vem me possuir toda, inteira! Vem logo! GIL (Em êxtase.) Não interrompe, meu amor... Eu... Eu estou vendo DEUS em mim...
ELZA
ELZA
É a morte. Chegou o fim.
Gil, por piedade, vem! O meu corpo está incendiado! O meu corpo está ardendo!
GIL
O meu corpo está em fogo! Vem!
Chegou. Já não é mais possível qualquer ilusão...
GIL
ELZA
Não posso...
Gil me BEIJA!!! (Gil a beija ligeiramente.)
ELZA
GIL
Gil!
Pronto, meu amor, agora vamos rezar.
GIL
ELZA
(Olhar fixo no espelho.) Elza, DEUS existe... Agora eu compreendo... agora eu
Assim não, Gil, me beija com fervor. Com fervor não, com instinto, com toda a força do teu instinto, com toda a brutalidade do instinto. GIL Elza, dessa vez você é que deve me perdoar... eu não tenho a menor condição de
sinto... DEUS existe. ELZA Vem, Gil, vem me possuir! Vem que eu não posso mais esperar, vem que eu estou desvairada! Eu estou DESVAIRADA!!!
beijar você de outra maneira... Nós estamos diante da morte... eu só sinto o desejo de
GIL
rezar...
Impossível, meu amor, já não me pertenço... (Olhando-se ainda no espelho.) ELZA
DEUS existe... Por mais incrível que pareça, DEUS existe!!!
(Puxando-o para a cama.) Vem, querido eu sou tua, me possui, eu sou tua, me possui!... (Gil livra-se dela, desloca-se para a penteadeira, imobiliza-se em frente ao espelho, num arroubo místico.) GIL Olha para mim, meu amor, eu estou transfigurado... ELZA Vem, Gil, deita comigo vem buscar o que eu guardei para ti tanto tempo. (Gil vai até ela levando a imagem.)
FIM
401
402
Esta peça estreou em outubro de 1968, no Teatro da Paz, em Belém do Pará.
PERSONAGENS Mendigo Policial Prostituta
LEI É LEI
Uma voz de play-boy ou o próprio play-boy aparecendo em cena.
CENÁRIO Esquina de uma bela avenida, fachada de lojas em perspectiva, letreiros
E ESTÁ
comerciais luminosos com reflexos coloridos que mudam de tonalidade a cada momento, incidindo sobre os personagens da cena. NOTA Pouco antes de abrir o pano serão projetados para a plateia os seguintes dizeres,
ACABADO
de forma visual ou auditiva: FOLHA VESPERTINA, jornal de Belém, Pará, Brasil, América Latina. Dia 22 de abril de 1968. Notícia banal “Há vários dias um pobre mendigo jaz enfermo na calçada da Presidente Vargas... Ontem à noite o infeliz dava indícios de que ia falecer, o que levou um guarda noturno a telefonar para o “Mário Pinotti” de onde disseram não haver no momento ambulância disponível para recolher o doente. Ligando para a permanência da central dali informaram ao vigilante que o assunto era da alçada do “Mário Pinotti”. A finalidade da Polícia era outra. O certo é que até tarde o moribundo mendigo se achava abandonado naquele local, sem que surgisse uma providência.”
403
404
AÇÃO PROSTITUTA Mendigo dormindo na calçada, coberto com jornais. Noite alta, silêncio
Infelizmente a noite hoje está ruim.
interrompido de quando em vez por barulho de carros em movimento e música de “boite”,
MENDIGO
distante.
Péssima. Surge a prostituta, andar lânguido de “trottoir”, bolsa pendurada na mão,
PROSTITUTA
aparência sofrida que a maquilagem algo berrante não consegue esconder; para, consulta o
Quando há falta de navio no porto é assim: uma lástima, a gente fica penando pela
relógio, acende um cigarro. Ouvem-se vozes que se aproximam. Ela apruma-se em atitude
madrugada a dentro e às vezes volta pra casa a pé, gastando a sola do sapato. Ainda nos
um tanto forçada de “mulher fatal”, porém as vozes emudecem abafadas por uma
chamam de “mulheres de vida fácil”. Pois sim. Fácil...
gargalhada e rumor de passos cada vez mais sumidos. O mendigo mexe-se, descobre o rosto, tenta erguer-se mas desiste, fatigado. A prostituta desloca-se até a extremidade do palco de onde retorna em seu lento e solitário passeio; quando cruza com o Mendigo novamente este deixa escapar um gemido.
MENDIGO Esta noite é mesmo de azar. Hoje não é sexta-feira? Aposto que é. Imagine que revirei quatro latas de lixo sem encontrar um restinho de comida. PROSTITUTA
PROSTITUTA
Quatro latas de lixo?
Está doente?
MENDIGO
MENDIGO
Foi. Quatro. E nenhum farelo de comida.
(Sentando-se com dificuldade.) Mais morto do que vivo...
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Que coisa!
Qual é a sua doença?
MENDIGO
MENDIGO
Pois é. E olhe que aqui é o centro da cidade, quase não tem gatos. (Solta um
Fome...
gemido agudo, mais longo.)
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Só?
O seu mal não é somente a fome. Alguma dor?
MENDIGO
MENDIGO
Acha que é pouco?
(Respiração ofegante.) Não... dor não ... uma tonteira ...
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Eu queria saber o que o senhor sente além da fome.
Vai ver que isto é de andar catando latas de lixo. Comida estragada, podre, é um
MENDIGO
perigo, adoece.
Tanta coisa no corpo... dentro da cabeça... Mas o ruim mesmo é a fome.
MENDIGO
PROSTITUTA
Ai de nós se não fossem as migalhas que os outros jogam fora...
Se eu arrumar um homem lhe compro um pedaço de pão com queijo.
PROSTITUTA
MENDIGO
E os seus trocados?
Queijo? Pra que essa extravagância? Chega o pão. Não precisa nem manteiga.
MENDIGO Dinheiro?
405
406
PROSTITUTA
MEDIGO
Não pede esmolas?
Que casa?...
MENDIGO
POLICIAL
Pedir bem que eu peço... pensa que sem ser aleijado ou cego ainda se pode viver
Não tem moradia certa?
de esmolas, como antigamente? Agora as pessoas não tem tempo nem de olhar para nós: andam apressadas que só vendo. PROSTITUTA
MENDIGO Nem certa nem errada. Demoro umas horinhas aqui, umas horinhas acolá, e de atraso em atraso vou vivendo...
Isto é verdade: agora todo mundo anda afobado e ninguém repara nada.
POLICIAL
MENDIGO
Acontece que neste quarteirão você não fica mais um minuto.
Todos tem de chegar logo em um lugar qualquer e vão indo numa ligeireza
MENDIGO
medonha, que dá pena.
Por que não?
PROSTITUTA
POLICIAL
É isso mesmo.
Porque eu não deixo.
MENDIGO
MENDIGO
Sabe que às vezes eu tenho pena desse pessoal, embora quem mereça pena seja
A rua é pública. Tenho o direito de ficar aqui. POLICIAL
eu? PROSTITUTA Realmente dá pena.
Uma ova! Não fica porque eu, como responsável por este quarteirão, não permito vagabundagem nele.
MENDIGO
MENDIGO
Antigamente não era assim, o povo não andava às carreiras.
Vagabundo é ladrão, não ofenda que sou mendigo.
PROSTITUTA
POLICIAL
A vida mudou muito. Piorou muito. E por incrível que pareça piorou até pros
Levante-se e desapareça senão lhe prendo como vadio.
mendigos... Sabe que também piorou pra nós? Os mendigos pelo menos dormem onde
MENDIGO
desejam, sozinhos ou acompanhados, sem pagar aluguel...
(Sem força para obedecer.) Não posso... a fraqueza tomou conta de mim... o jeito
POLICIAL (Entra segurando um cassetete: traja à paisana; paletó surrado; gravata e
é cochilar aqui mesmo. POLICIAL
chapéu idem; de maneiras rudes, transpira boçalidade por todos os poros; ao vislumbrá-
O quê? Não ouviu o que eu disse?
lo a prostituta afasta-se um pouco, disfarçando.) Se eu descubro o animal que espalhou o
MENDIGO
lixo daquelas latas... foi você?
(Cobrindo-se totalmente com os jornais.) Boa noite, até amanhã...
MENDIGO
POLICIAL
Não sou animal. (Deita-se molemente.)
(Despeja um pontapé no Mendigo.) Quer abusar de mim, velho cínico? Saia daí.
POLICIAL Não? Com certeza? Pois bicho é que dorme pelas calçadas. Por que não vai pra casa, hein?
PROSTITUTA (Testemunha a violência, revolta-se e interpela o policial.) O senhor é um policial ou um cavalo?
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MENDIGO
POLICIAL
Um cavalo. E doido, porque cavalo normal não dá patada à-toa.
Você afrontou a lei e minha obrigação é lhe prender.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Não enxerga o estado deste pobre homem? Magro como cachorro de subúrbio, a
E a minha obrigação é não ir. Eu não afrontei a lei, afrontei a sua ignorância.
pele em cima dos ossos, faz uma porção de dias que não come, ainda hoje vasculhou em
POLICIAL
vão quatro latas de lixo...
Sou um representante da lei e tenho autoridade de sobra pra lhe prender.
POLICIAL
PROSTITUTA
Ah! Então foi ele que derramou o lixo das latas? Descarado! (Lança-se contra o
E eu tenho coragem de sobra pra não aceitar essa prisão.
mendigo, a Prostituta o detém.)
POLICIAL
PROSTITUTA
Que arrogância!
É o cúmulo da covardia agredir alguém nestas condições. Não se envergonha
PROSTITUTA Não aceito porque ela é injusta.
disso? POLICIAL
POLICIAL
Vergonha devia ter você de caçar macho, sua cadela.
Mas que desaforo! Em que se fia? Será que é amante de algum deputado?...
PROSTITUTA
MENDIGO
Cadela é a...
Eu só saio daqui se for carregado. (Deita-se novamente, cobre-se.)
MENDIGO
POLICIAL
Não se aflija por minha causa, filha.
Como rapariga você é muito atrevida.
POLICIAL
PROSTITUTA
Se considerem presos os dois, em nome da Lei! Comigo é no duro: lei é lei e está
E o senhor, como policial, é muito cretino. POLICIAL
acabado. PROSTITUTA
Se der mais um pio eu lhe espoco com um murro. Duvida?
Eu me considero em absoluta liberdade.
PROSTITUTA
POLICIAL
Não. O senhor é bastante valente pra espancar uma mulher... Parabéns pela
Vamos decidir esta questão na Permanência da Central.
bravura. Porém uma coisa eu exijo: diga porque me prende.
MENDIGO
POLICIAL
Eu não vou porque não posso andar, de tão vazio...
Primeiro: desacato à autoridade.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
E eu não vou porque já ando cheia da burrice dessa espécie.
É falso. Não desacatei o senhor.
POLICIAL
POLICIAL
Que burrice?
Segundo: prática do lenocínio.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
A sua, é claro, me prendendo sem motivo. Não vê que não pode fazer isso?
Eu não tenho o direito de andar pela rua?
409
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POLICIAL
PROSTITUTA
Rebolar pela rua se oferecendo pra homem é proibido.
Tem coração de pedra? Não se compadece de um trapo humano como este? Não
PROSTITUTA
teme um castigo de Deus? No futuro o mendigo poderá ser o senhor.
Qual a lei que proíbe?
POLICIAL
POLICIAL
A única coisa que eu temo é não ser nomeado Investigador efetivo. E ficarei no
Não sei mas não importa. É imoral e pronto.
que sou se não zelar por este quarteirão com o máximo rigor. Entende?
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Imoralidade é a polícia... deixa eu me calar. Pensa que me mete medo com essa
É fácil de entender...
ameaça de prisão? Está muito enganado. Sei que não pode me prender, sou esclarecida. Costumo ler os jornais, em vez de escutar novelas. Julga que toda prostituta é analfabeta, sem instrução? Eu estudei, se estou nessa vida miserável é por que fiquei viúva de repente com seis filhos. POLICIAL Ora vejam! Sabe que, pra falar a verdade, estou admirando a sua sapiência? E
POLICIAL Preciso conservar este pedaço elegante da cidade limpo de Mendigos e Raparigas. Aliás, raparigas não: Prostitutas como diz a lei. PROSTITUTA E com essa finalidade, a fim de tirar-me daqui, foi que me convidou pra ir satisfazer os seus instintos?
sabe que, assim zangada, você fica bonitona? Acho que vou lhe prestigiar... (Encosta-se
POLICIAL
nela, sensual.) Tem quarto perto?
Bom, eu...
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Não. E se tivesse não botaria o senhor na minha cama.
E finalmente me levando pro quarto o senhor ia ganhar merecimento pra ser
POLICIAL
promovido... Que beleza de carreira profissional.
Tudo isso é gênio? Ódio?
POLICIAL
PROSTITUTA
Você complica tudo, é inteligente ...
Acha que não temos a nossa moral? Eu me entrego pra um leproso, porém jamais
PROSTITUTA
pra um policial da sua marca. POLICIAL
Obrigada. E agora o senhor pode continuar a sua ronda. Dê uma voltinha, por favor não prejudique o meu trabalho.
Eu pago...
POLICIAL
MENDIGO
O seu o quê? Você chama o que faz de trabalho?
(Descobrindo-se.) Esta troca de insultos custa a terminar?
PROSTITUTA
POLICIAL Já avisei que não fica aí, seu nojento. Enquanto eu for encarregado da vigilância deste quarteirão sacrista nenhum dorme nele. Lei é lei e está acabado.
Por que não? O senhor julga que suportar homem desconhecido na cama é diversão? POLICIAL
MENDIGO
Ora se é.
Sono é sono e está acabado... (Boceja, recobre-se com os jornais.)
PROSTITUTA Já experimentou?
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MENDIGO
PROSTITUTA
(Põe a cabeça de fora.) Vão descambar pra imoralidade? Me respeitem.
Estou vendo...
POLICIAL
POLICIAL
Cala a boca, velho canalha.
Como é? Vai ou não vai dar uma chegadinha comigo ali?
MENDIGO
PROSTITUTA
Canalha é quem chama, eu sou mendigo mas sou honrado.
Não.
PROSTITUTA
POLICIAL
(Para o mendigo.) Entre nós o único desonrado é ele, porque não tem sentimento. A honra nada mais é do que um sentimento.
Então, sua vaca, ou me acompanha agorinha pro xadrez ou entra na borracha. (Agarra a Prostituta que reage, safando-se.)
POLICIAL
PROSTITUTA
Parece piada. Eu sou a autoridade e vocês é que esculhambam.
Não ponha essas mãos sujas em cima de mim.
PROSTITUTA
MENDIGO
(Para o Policial.) Vá embora. Dê uma folguinha. Tenho necessidade de pegar um
(Em repentinas contorções e espasmos.) Ai! Ai! Ai!
homem hoje, estou em situação precária.
PROSTITUTA
POLICIAL
(Voltando-se para o mendigo.) O que foi?
Dou uma folguinha se você cooperar... Vamos ali comigo, é só meia hora...
MENDIGO
PROSTITUTA
Ai!... me acudam depressa...
Não vou, me deixe em paz.
POLICIAL
POLICIAL
Ainda mais este velho gouguento.
Vamos e depois eu não lhe aperreio mais.
MENDIGO
PROSTITUTA
Ai... Ai...
Não insista por favor.
PROSTITUTA
POLICIAL
O que o senhor tem? Diga.
E por quê?
MENDIGO
PROSTITUTA
Falta de ar... falta... de... ar...
Não adianta. Não gosto de ir pra cama com polícia...
POLICIAL
POLICIAL
É manha.
Eu sei, é que a gente tem mania de não pagar mulher, como não paga cinema nem
PROSTITUTA
ônibus. Porém pra você eu pago, não disse? Quanto? PROSTITUTA
fêmea?
412
(Examina o Mendigo, demoradamente, enquanto persiste os seus gemidos cada vez mais fracos.) Ele está com febre alta.
Pro senhor não tenho preço. Basta, não me aborreça.
POLICIAL
POLICIAL
E eu com isso?
Ora veja! Eu fazendo papel de besta diante de você. Sabe que não gosto de adular
MENDIGO Ai! Ai!... Está... me dando... uma coisa ...
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PROSTITUTA
MENDIGO
Coitado. A respiração dele vai sumindo, sumindo; será o princípio da morte?
Ai! Ai!... Estou nas últimas ... (Sofre um brusco desmaio.)
POLICIAL
PROSTITUTA
O que ele tem é indigestão. Gulodice. Quem mandou comer porcaria de lata de
Meu Deus, ele morreu.
lixo?
POLICIAL MENDIGO
(Ar de espanto ) Vôte! Morreu? Não é possível.
(Gemidos cada vez mais desesperados.) Ai! Ai! Minha Nossa Senhora, Valei-
PROSTITUTA
me...
(Lagrimando) Viu o castigo? Não queria escândalo, nos enxotou pra que tudo PROSTITUTA
neste quarteirão permanecesse tranqüilo, o resultado foi esse. (Soluça) Tadinho do velho...
(Para o policial, angustiada.) Ele precisa ser internado no Pronto Socorro
tão humilde... tão bonzinho...
Municipal. Ajude o infeliz, ele não está implorando?
POLICIAL
POLICIAL
Estou arruinado. Não se pode tocar no cadáver antes do médico legista chegar, o
Pra mim não: por enquanto ainda está se valendo de Nossa Senhora ...
médico legista não vai chegar antes das nove ou dez horas da manhã, o ajuntamento dos
MENDIGO
curiosos vai aborrecer o dono da loja aí do lado, ele corta a minha gratificação no fim do
Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!
mês e não me dá mais gorjeta, um verdadeiro desastre. E o meu chefe que ia me arrumar
PROSTITUTA
uma nomeação pra Investigador efetivo? Nem quero lembrar a cara do meu chefe. Adeus,
Faça alguma coisa.
nomeação. Mas eu me vingo!
POLICIAL
PROSTITUTA
O que você quer que eu faça?
Se vinga? De quem?
PROSTITUTA
POLICIAL De todos. De amanhã em diante nenhum velho vagabundo e nenhuma rapariga
Telefone. POLICIAL
pisa mais aqui.
A melhor solução é ele ir embora daqui.
PROSTITUTA
POLICIAL
O senhor é que não pisará mais aqui porque eu vou denunciar... (Faz menção de
Como, se o pobrezinho não tem família e não pode nem se levantar?
sair.)
POLICIAL
POLICIAL
Cada qual carrega a sua cruz. Não tenho nada com isso. “Quem pariu Mateus que
Espere. Que história é esta?
o embale...” PROSTITUTA Quem pariu você é que...
PROSTITUTA Vou dizer ao Delegado que o senhor é culpado deste mendigo ter morrido sem qualquer assistência de médico.
POLICIAL
POLICIAL
Que o quê?
Ora, ora se o delegado liga pra isso.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
(Reflete.) Bom, a sua mãe não tem culpa de ter feito nascer um jumento.
Liga, sim, porque vou dizer outra coisa muito grave.
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POLICIAL
PROSTITUTA
Vai dizer que lhe convidei pra ir pro quarto? Que besteira! Quando o Delegado
Nada de brincadeira, eu vou cumprir a promessa neste instante; aproveito que a
souber o que você faz mete-lhe nas grades.
esta hora a redação dos jornais está funcionando.
PROSTITUTA
POLICIAL
Não é isso. Vou acusar o senhor por ter agredido este mendigo.
(Obstando-lhe a saída, súplice.) Não faça isso pelo amor de Deus.
POLICIAL
PROSTITUTA
Agredido?
Ah! Já ficou manso? Pois agora é tarde.
PROSTITUTA
POLICIAL
Justamente. Não deu um pontapé nele?
Quer ver a minha desgraça?
POLICIAL
PROSTITUTA
Dei um e foi pouco, se tivesse dado três ou quatro ele tinha se arribado e morria
E o senhor, não quis ver a desgraça do velho?
noutra parte. Tolice minha. Agredido... acha que o Delegado leva a sério um simples
POLICIAL
pontapé que a gente dá em nome da lei. Lei é lei e está acabado.
Eu não persigo mais você. Juro.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
(Enigmática) É... Talvez não leve a sério ...
Lamento muito mas não posso me calar, dê licença.
POLICIAL
POLICIAL
(Desconfiado) Por que esse seu jeito esquisito?
Não tem pena de um pai de família?
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Porque se o Delegado não levar a sério os jornais levarão..
Nem sempre vale a pena se ter pena...
POLICIAL
POLICIAL
Como é isso?
Não expliquei porque agi daquela forma?... Pobre de mim, a nomeação pra
PROSTITUTA
investigador efetivo vai por águas abaixo... Parece que vejo o meu chefe de cara dura me
Com a imprensa é diferente, estou habituada a ver. Se eu disser em um jornal que
dizendo: “Por que se afastou do local de serviço?”. Nunca ele vai acreditar que eu estava
o senhor deu um pontapé no mendigo, minutos antes dele morrer, o mínimo que acontece é
aqui, pois a ordem é conservar esta avenida, a principal da cidade, limpa de mendigos e
o repórter falar em assassinato.
prostitutas, mesmo depois da meia-noite porque é quando os turistas granfinos voltam das
POLICIAL
farras. Será possível que você não tem um pingo de compaixão por mim?
Assassinato???
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Até que sua história me faz ter alguma compaixão...
Claro. De que maneira o senhor prova que o velho não morreu em consequência
POLICIAL
do pontapé? POLICIAL (Confuso) Você está brincando, não é? Se divertindo a minha custa.
Obrigado. PROSTITUTA E a minha história? Não lhe passou pela cabeça que tenho uma história, que cada uma das mulheres que passeiam pelas ruas, madrugada a dentro, tem uma história? E este mendigo morto, imagina que não teve uma história? Olhe pra ele, não sente nada? Quem
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sabe um dia este velho também não quis ser investigador da Polícia? Quem sabe não se
POLICIAL
tornou mendigo por causa de desgosto, de uma traição. Quem sabe não teve posses e não
Vá lá que seja. Foi forte. Mas o que você tem com isso? Ele morreu, está morrido,
foi enganado pelos amigos, pelos parentes? Quem sabe das humilhações que ele suportou?
não adianta criar caso.
Ninguém sabe. E ninguém mais saberá... Eu posso contar a minha história, o senhor pode
PROSTITUTA
me fazer ter piedade, falando da repreensão do seu chefe e da promoção perdida. Porém
Adiantar, adianta.
este mendigo morto já não tem história e nem sequer terá sepultura: seu destino é a vala
POLICIAL
comum do cemitério. E como não tem história não é ninguém, é apenas um cadáver que
O que vai lucrar com o escândalo você e ele? Nada, só a minha destruição.
vai dar trabalho pro médico legista e incomodar o dono da loja aí do lado...
PROSTITUTA
POLICIAL Puxa! Como você fala. Está nervosa.
O senhor se defende na polícia; o Delegado se interessando pela denúncia talvez eu não procure os jornais.
PROSTITUTA
POLICIAL
Estou furiosa. Então um homem – um homem, ouviu? – morre na sua frente,
Eu ...
desamparado, e o senhor pensa unicamente no prejuízo que poderá ter? Isto sim, é que é
PROSTITUTA
ser um animal, e não revirar lata de lixo pra saciar a fome. POLICIAL
Você merecia que eu procurasse os jornais, mas enfim... sou uma boba, não sei guardar rancor.
Está bem, sou um animal... Aliás você já me chamou de cavalo e de jumento.
POLICIAL
PROSTITUTA
Se não sabe guardar rancor por que então vai me denunciar pro Delegado?
E o senhor não me chamou de cadela?
PROSTITUTA
POLICIAL De fato, eu comecei a briga. Mas já pedi desculpa, já me rebaixei.
É um problema de consciência. Se eu não contar o que aconteceu fico com remorso.
PROSTITUTA
POLICIAL
Um pouco tarde, porque agora eu não posso esconder o que se passou. O velho
E por que o remorso se quem deu o pontapé fui eu?
morreu, o senhor deu o pontapé nele que eu vi, quem sabe não houve mesmo um crime?
PROSTITUTA
Quem sabe não matou o velho?
O senhor não compreende?
POLICIAL
POLICIAL
Deixe de graça.
Não, você é mesmo complicada.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Graça? Um pontapé daquele, no peito de uma pessoa fraca, é pior que um tiro...
Bem, é difícil explicar. (Novamente apresta-se para sair, ele a detém.)
POLICIAL
POLICIAL
Você está exagerando de propósito, pra me amedrontar. O pontapé não foi tão
Por favor, não arruíne a minha vida.
forte.
PROSTITUTA PROSTITUTA Foi. Fortíssimo.
Basta de conversa.
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POLICIAL
POLICIAL
(Com crescente aflição.) Não seja pirracenta, lembre que tenho família pra
Puxa! Como você é geniosa.
sustentar.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Dê licensa e boa sorte pro senhor.
Solte-me.
POLICIAL
POLICIAL
Não vá, espere. Tenho um negoção pra você. Já que não vai continuar fazendo
A minha mulher está grávida.
ponto aqui, podia... sabe, eu... uma conhecida minha é dona de uma casa... ambiente
PROSTITUTA
fechado... lá só entra homem escolhido, da alta sociedade: doutores, comerciantes... coisa
Eu também estou.
fina, uma mulher experimentada ali em duas semanas tira o é da lama.
POLICIAL
PROSTITUTA
Quando ela souber que me acusaram de assassino é capaz de abortar.
Não me interessa.
PROSTITUTA
POLICIAL
Eu também vou abortar, de vez em quando tenho de fazer um aborto, me largue,
Como? Prefere viver perambulando pela rua atrás de marinheiros, se arriscando a
preciso ir.
pegar esquentamento?
POLICIAL
PROSTITUTA
Vamos discutir o assunto como irmãos.
Prefiro.
PROSTITUTA
POLICIAL
Não há o que discutir.
Deixe de ser tola! Mulher de “randevu” ganha muito mais e não fica engalicada.
POLICIAL
PROSTITUTA
Pelo amor que você tem na sua mãe.
Dê licença...
PROSTITUTA
POLICIAL
É inútil.
Nessa casa que estou lhe falando não falta homem, a freguesia é grande. O difícil
POLICIAL
pra você é conseguir uma vaga lá. A madame não aceita qualquer uma, mas eu dou um
(Quase chorando.) Tenha pena de mim... se o Delegado me processar nunca mais
jeitinho, sou amigo dela, não se incomode. E tem uma coisa: se você se der bem não
vou ser nomeado Investigador efetivo. Na certa perco até o emprego que tenho... Não, não
precisa me pagar comissão nenhuma, que não sou gigolô, sou um representante da lei. A
faça isso comigo... Eu lhe juro que dagora pra frente não implico mais com esses velhos...
felicidade está nas suas mãos, esqueça o meu pontapé no velho...
e você pode fazer ponto aqui à noite inteira...
PROSTITUTA
PROSTITUTA
O senhor é surdo? Quantas vezes tenho se explicar que não posso ficar calada?
Não preciso fazer mais ponto aqui.
POLICIAL
POLICIAL É mesmo? Que besteira! Venha sempre dar uma voltinha por este quarteirão, não se preocupe comigo. Venha que é um prazer. PROSTITUTA Por aqui não há-de me ver.
(Mudando de atitude e partindo para a ofensiva.) Porra! Quer dizer que conta tudo pro Delegado, não é? PROSTITUTA É. Exatamente.
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POLICIAL
PROSTITUTA
(Subindo mais o tom da voz.) Eu já lhe implorei, não implorei?
Espere ai, o senhor não falou tanto em ser nomeado Investigador efetivo?
PROSTITUTA
POLICIAL
Não devia ter implorado.
E o que tem isto?
POLICIAL
PROSTITUTA
Já ofereci vantagem, não ofereci?
Mas... já não é investigador, então? Interino?
PROSTITUTA
POLICIAL
Também não devia ter oferecido.
E o que tem isto? Está pensando que vai me embrulhar novamente?
POLICIAL
PROSTITUTA
Nada disso adiantou, não foi?
O senhor é guarda noturno?
PROSTITUTA
POLICIAL
Nem adiantará.
Sou, e daí?
POLICIAL
PROSTITUTA
Pois então vou apelar pro Código.
É mesmo?
PROSTITUTA
POLICIAL
Código?
Sou. E daí???
POLICIAL
PROSTITUTA
Sim, vou apelar pro “código do cacete”.
Um simples guarda noturno?
PROSTITUTA
POLICIAL
O quê?
E daí???
POLICIAL
PROSTITUTA
Cacete. Sabe o que é cacete? Cacete de borracha? (Ergue o cassetete, no auge da
Esta é boa. Eu julguei que o senhor era Investigador, desses que chamam de
exaltação.) PROSTITUTA O senhor não tem o direito de me bater.
encostados, que trabalham de graça pra polícia a fim de comer mole. POLICIAL Pois não sou Investigador encostado nem desencostado. E o que tem isso? Vai se
POLICIAL
explicar logo ou está puxando assunto com a intenção de esfriar a minha raiva? Olhe que
Tenho, sua escrota. Eu também tenho direito. Você tem direito de caçar macho na
falta pouco pra eu explodir e se você se arrependeu e quer topar a parada diga logo, antes
rua, não tem? O velho teve o direito de estirar o corpo aqui, não teve? Pois eu não vou
que seja tarde.
perder o direito de ser nomeado Investigador. E por falar em direito, sendo guarda noturno
PROSTITUTA
eu sou um policial, sou autoridade, e sendo autoridade eu tenho o direito de baixar o pau
Ora essa... e eu com medo de ser presa...
em quem desrespeitar a lei. Lei é lei e está acabado. Você mijou fora do caco, vai apanhar.
POLICIAL
Se prometer esquecer o pontapé eu perdôo, se não prometer ficar caladinha agora mesmo
Vai ou não vai se explicar?
entra na porrada. Quer ver como entra na porrada, hein? Quer ver?
PROSTITUTA Eu com medo de ser presa e o senhor bancando o importante...
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POLICIAL
POLICIAL
Que palhaçada é essa?
(Interrompe a fala com gesto ameaçador.) Cale-se! Não sei onde estou que não
PROSTITUTA
lhe aplico uma boa sova. É o que eu digo sempre, mulher só presta apanhando ... (Pausa;
E tufando o peito com se realmente fosse autoridade...
ele espera que a prostituta diga algo.)
POLICIAL
PROSTITUTA
E eu não sou autoridade?
(Toma o jeito de quem vai falar mas se contém.) Hum...
PROSTITUTA
POLICIAL
É nada. Um simples guarda noturno.
Homem que é macho não deve ter contemplação com fêmea de rua.
POLICIAL
PROSTITUTA
E guarda noturno se calhar não é autoridade?
(Mesmo jogo.) Hum...
PROSTITUTA
POLICIAL
Não é, não. Absolutamente.
Mulher abusada a gente amansa com surra. É um santo remédio.
POLICIAL
PROSTITUTA
Como não? O guarda noturno é um policial, policial é da polícia e quem é da
(Conserva-se indiferente, com ar de solene desprezo.) Hum...
polícia é autoridade. Trabalho para uma Agência de vigilância noturna que é registrada na
POLICIAL
polícia.
Não adianta ser bom. PROSTITUTA
PROSTITUTA
Um dia desses li no jornal que muitos ladrões são registrados na polícia pra vigiar
Hum...
e denunciar outros ladrões.
POLICIAL
POLICIAL
Não adianta fazer o bem.
Ladrão não é registrado, sua burra, é fichado.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Hum...
E qual é a diferença entre uma coisa e outra?
POLICIAL
POLICIAL
Quanto mais se ajuda mais se recebe coice.
Sei lá...
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Hum...
Então o burro é o senhor.
POLICIAL
POLICIAL
(Suavizando o tom arrogante.) Coice, mordida, arranhão.
(Erguendo o cassetete.) Fecho já esta sua boca, atrevida.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Hum...
Eu...
POLICIAL (Intencionalmente) A gente quer prestigiar, convida pra cama, recebe desaforo em vez de receber agradecimento.
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PROSTITUTA
PROSTITUTA
Hum...
Faça o favor de guardar esta arma.
POLICIAL
POLICIAL
O que custa ir pro quarto? Meia hora com um sujeito que vive se sacrificando pela
Está com medo?
Lei, sem tirar nenhum vantagem.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Não gosto de exibição.
Hum...
POLICIAL
POLICIAL
(Examina o revólver.) Às vezes eu pergunto se uma bala dessas...
Um sujeito que nunca se aproveitou da sua autoridade pra explorar ninguém.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Cuidado. Não mexa nisso.
Hum...
POLICIAL
POLICIAL
Uma bala dessas talvez resolvesse minha aporrinhação.
Um sujeito de caráter, caridoso, que se oferece até pra conseguir vaga num
PROSTITUTA
“revendu” de primeira qualidade.
Não mexa...
PROSTITUTA
POLICIAL
Hum...
(Aponta o revólver para a sua própria testa.) Nunca usei este “brinquedo” de
POLICIAL “Randevu” soçaite, onde qualquer vagabunda não entra, onde só vai gente distinta, gente séria. PROSTITUTA Hum... POLICIAL
amansar valente. Podia usar agora ... PROSTITUTA (Começa a ficar nervosa.) Por favor, ponha esta arma na cintura. POLICIAL É tão fácil usar... (Desloca o cano do revólver para o ouvido, fecha os olhos, contrai o rosto.) Basta puxar o gatilho.
(Irritado com o comportamento da Prostituta.) Por que não fala, sua pirracenta?
PROSTITUTA
PROSTITUTA
(Angustiada) Pelo amor de Deus, largue essa arrma.
Por que você mandou que eu me calasse.
POLICIAL
POLICIAL
(Trágico) Por que se vexa? Já não tem um morto ai?
Pois agora estou mandando que abra o bico. Só não pode dizer que eu tenho culpa
PROSTITUTA
do velho ter esticado a canela. Aliás, a morte pra ele foi um prêmio de loteria, acabou com
Eu grito.
o sofrimento. Feliz dos que morrem hoje em dia. Morrer é tirar a sorte grande. Às vezes até
POLICIAL
eu tenho vontade de morrer, tanta gente sendo atropelada todo dia e nem pra isso eu sirvo.
Pra quê?
Já ando cheio de esperar a porcaria da nomeação que não sai. Já ando cheio, ouviu? Se essa
PROSTITUTA
nomeação não sair e eu não morrer, termino matando um. Às vezes tenho acesso de raiva e
Pra que o senhor de repente não faça uma arte.
penso em fazer uma loucura. (Tira o revólver da cintura.)
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POLICIAL
PROSTITUTA
(Baixa o revólver, reflete.) Então... você se importa que eu morra?... Você gosta
(Mais assustada.) Desta vez eu grito.
de mim?... PROSTITUTA Por que haveria de gostar? Acho o senhor muito antipático.
POLICIAL Grite. Berre. Estrebuche. O seu caso é fazer confusão, não é? Pois agora vai fazer no inferno.
POLICIAL
PROSTITUTA
E por que não deixa que eu me mate?
O senhor é que vai pro inferno, se me assassinar
PROSTITUTA
POLICIAL
Porque já fui testemunha de um assassinato e não desejo ser testemunha de um
Ótimo. É isto mesmo, vou pro inferno, devia ter ido a mais tempo. (Faz menção
suicídio.
de puxar o gatilho.) POLICIAL Mas se por acaso eu me matasse você não precisava ser testemunha de coisa
nenhuma. Desaparecia e pronto. Só ia ficar com remorso. PROSTITUTA
PROSTITUTA (Cobrindo o rosto com as mãos.) O senhor vai pras profundezas do inferno. POLICIAL Vou, sim, com muito prazer. Lá eu posso ser investigador efetivo do Diabo, lá eu
Remorso por quê?
posso ser Delegado de Satanaz, lá eu mando brasa, lá eu posso usar este revólver que
POLICIAL
nunca tive o gosto de usar, lá eu me satisfaço, o inferno é bacana, o inferno é fogo, tem
Você sabe que se for se queixar de mim pro Delegado e ainda por cima fizer
bagunça e tem polícia que pode baixar o cacete a torto e a direito, o inferno é o melhor
escândalo pelo jornal eu perco a minha nomeação de Investigador, não sabe? Pois se eu
lugar pra se viver. Quando às vezes eu perco a esperança de ser nomeado Investigador
meter uma bala na cabeça vai ser por causa dessa sua ruindade. Você podia evitar a minha
efetivo e penso em meter uma bala na cabeça, é porque tenho vontade de ir pro inferno.
morte.
Estou cansado de não fazer nada neste mundo, cansado de gastar a noite toda andando sem PROSTITUTA
proveito de um lado pro outro, vendo rua deserta e não escutando quase nenhum barulho,
Isto tudo é uma encenação sua. O senhor não se matará. E chega de conversa,
cansado de passar o dia dormindo e não sendo incomodado por ninguém, nem pela mulher
ponho já um ponto final nesta brincadeira de mau gosto. Dê licença.
e os filhos que não me ligam e não se preocupam nem ao menos em brigar comigo. Estou
POLICIAL
cansado, quero mesmo ir pro inferno, sempre quis ir pro inferno, vou estourar os seus
(Antepondo-se bruscamente em seu caminho.) Não, sua filha da puta, você não vai
miolos, depois estouro os meus.
sair daqui pra cavar a minha sepultura.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
(Desesperada) Socorro!
Vou apenas cumprir com a minha obrigação e não cavar a sua sepultura.
POLICIAL
POLICIAL
Você vai morrer, escutou? Pode começar a rezar, entregue sua alma a Deus que
(Aponta o revólver para ela.) Estou disposto a liquidar você, sua desgraçada!
não quero encontrar com você no inferno. No inferno gente como você não serve, é como
PROSTITUTA
se fosse mendigo, incapaz de cometer um crime. Vamos, reze.
(Recua) Guarde esta arma...
PROSTITUTA
POLICIAL
(Perplexa, hesitando em reagir de outra maneira, cerra os olhos como se fosse
Não, vou desenferrujá-la. Vou estourar os seus miolos.
orar, abre-os num assomo de dúvida, não acreditando na situação.) O senhor...
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POLICAL
POLICIAL
(Trágico.) Reze!
Tome conta dele, não deixe morrer.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
(Resoluta) Se quer matar atire logo. POLICIAL
O senhor é um idiota: eu posso impedir alguém de morrer? Não seja desumano, pense na situação do coitado e não na sua.
(Mais forte.) Reze!
POLICIAL
PROSTITUTA
Está certo, mas este sujeito não tem o direito de morrer aqui.
(Deslocando-se rapidamente.) Não rezo, corro...
MENDIGO
POLICIAL
(Levanta-se, trêmulo, olhos vidrados.) Tenho, sim... tenho o direito de morrer...
(Sai em seu encalço, logrando detê-la rente ao mendigo.) Ah! Você escolheu o lugar certo. Vai cair morta ao lado do cadáver do mendigo, vai morrer em companhia de um morto. PROSTITUTA Atire! POLICIAL
em qualquer lugar... em qualquer hora... POLICIAL (Para o mendigo, gritando.) Neste quarteirão sacana nenhum tem o direito de morrer, ouviu??? PROSTITUTA (Para o Policial.) O senhor é mesmo estúpido. Não vê que ele tem o direito de
Deixa eu experimentar se este troço ainda funciona.
morrer onde e quando quiser? É um direito sagrado, o de morrer, o único direito que não
PROSTITUTA
podem tirar dos pobres...
Atire logo!!!
POLICIAL
POLICIAL
Morrer aqui ele não morre porque eu não consinto. Lei é lei...
É pra já. (Experimenta o revólver atirando para o chão.)
PROSTITUTA
MENDIGO
Vá logo telefonar. Vá enquanto é tempo.
(Ergue-se subitamente.) Eu quero morrer... (O Policial e a prostituta espantam-se,
POLICIAL
ele mais do que ela.) POLICIAL Égua! Ressuscitou? MENDIGO (Ensaia uns passos desnorteados.) Eu quero morrer... quero... quero morrer...
Não demoro. Aguente ele vivo. (Sai, a prostituta segura o mendigo que tem dificuldade em se equilibrar.) MENDIGO (Continua com a expressão fisionômica alterada.) É meu direito... quero morrer... quero morrer... quero... só não quero ser enterrado como indigente... enrolado num pano...
PROSTITUTA
sem caixão... sem caixão... isso eu não quero... não... não... não concordo... comprem um
Está delirando. É a febre...
caixão pra mim... comprem um caixão pra mim... (Retira moedas do bolso.) Dinheiro...
MENDIGO
dinheiro... meu... eu guardei... economizei... pra comprarem um caixão... um caixão
Eu quero morrer... morrer... eu quero... quero morrer.. estou cansado... quero
forrado... macio... quentinho... preciso dele... o sono vai ser longo... o chão é frio.
dormir... dormir cem anos... mil anos... dormir e não acordar mais... (Senta-se, abatido.) PROSTITUTA Telefone. Pronto-Socorro Municipal. Diga que é urgente.
PROSTITUTA O médico já vem. O senhor vai ter alimento, remédio; ficará curado.
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MENDIGO
VOZ
Remédio... Não, não quero... não tenho mais cura... e não quero... cansei...
Se o caso é o “vil metal” não tem problema. Tou cheio da nota. Olha daí o tutu. Se
cansei... quero repouso... não chame o médico... não chame... deixe eu morrer em paz... é
não bancar a amiga da onça eu pago bem. Entra na charanga.
meu direito...
PROSTITUTA
PROSTITUTA Acalme-se. (O Mendigo atende, ela deita-o cuidadosamente; ouve-se o barulho
Espere um instante. Estou vigiando aquele velho que teve um ataque e quase morre enquanto o guarda noturno foi telefonar.
de um automóvel que freia e apita; a prostituta se recompõe, animada pela perspectiva de
VOZ
encontrar um freguês, dirige-se ao meio fio e começa a falar de frente para a plateia como
Larga o velho. Fazer caridade não dá pé. Entra na charanga e vamos nos mandar.
que se dirigindo a alguém instalado no interior do carro.) Boa noite.
PROSTITUTA
VOZ
Dois minutos, apenas.
Olá, belezoca. Dando sopa?
VOZ
PROSTITUTA
Olha, chega pra perto que vou te soltar um bizu.
Mais ou menos. Tem cigarro?
PROSTITUTA
VOZ
Pode falar, estou ouvindo.
De maconha serve?
VOZ
PROSTITUTA
Chega mais pra perto aqui do papai. Chega. Vai por mim.
Não, obrigada.
PROSTITUTA
VOZ
Parece que você bebeu demais...
Ainda tá naquela base de pureza? Deixa pra lá. Pureza é um troço chato, pacas. O
VOZ É, tou meio psicodélico, mora! Entra na charanga que a ordem é badalar na
negócio é botar pra jambrar. Quem não manda a sua brasinha entra pelo cano. Tou te dizendo. Vamos fazer um programa legal? Entra na charanga.
estrada.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Este carro é seu?
Já não me convém.
VOZ
VOZ
É do meu velho. O velho é boa praça. Tá me achando com pinta de puxador de
Que bronca é essa?
carro?
PROSTITUTA PROSTITUTA
Siga o seu caminho.
Não, desculpe. O seu jeito é de moço rico.
VOZ
VOZ
Uai! Não está paquerando um otário? Como é que me joga assim pra escanteio?
Como é? Topa a parada?
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Não simpatizei com você.
Talvez. Ainda não consegui um tostão hoje.
VOZ Que embalo é esse? Simpatia? Te manca.
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PROSTITUTA
VOZ
Não simpatizei com você e pronto. Quer me obrigar?
Escuta, coroa, não enche.
VOZ
PROSTITUTA
Escuta, chega pra perto e manja a minha batida. Sou ou não sou gostosão? PROSTITUTA
Era só o que me faltava aparecer hoje: um bêbado, que nem barba no rosto ainda tem.
Não sei.
VOZ
VOZ
Vem cá, bacana. Põe de lado este teu parangolé e entra na charanga.
Mesmo chumbado sou barra limpa.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
É preciso ter muito estômago pra suportar tanto enjôo. (Afasta-se, o apito do
Não me interessa.
carro soa várias vezes.)
VOZ
VOZ
Deixa de onda. Entra ai e vamos dar um passeio federal.
Ei, gente boa: se não der uma colherzinha de chá faço bagunça. Vai ser pra valer.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
Até logo.
Pare com a zuada, não acorde o velho. Que imprudência!
VOZ
VOZ
Quer fazer sujeira comigo?
Imprudência é apelido. Se não me der bola eu não paro. Quero ver quando juntar
PROSTITUTA
gente quem vai entrar em fria.
Não simpatizei com você, já não disse?
PROSTITUTA
VOZ
Que situação.
Mas eu tou gamado por ti.
VOZ
PROSTITUTA
É, minha chapa. Tá ralado.
Ai meu Deus, que sina a nossa.
PROSTITUTA
VOZ
Moço, eu não aguento mais esta provocação.
Entra na charanga, entra. Larga desse teu baratinado e entra.
VOZ
PROSTITUTA
Eu também não agüento mais a sua cocorocagem, “moça”...
Moço, a minha paciência tem limite.
PROSTITUTA
VOZ
Estou pra perder a calma.
Que mancada! Taí, agora me invoquei. Será que vou perder essa parada?
VOZ
PROSTITUTA
E eu? Também estou pra perder a esportiva. Estou grosso às pampas.
Já perdeu.
PROSTITUTA
VOZ
(Exasperando-se) Sabe o que você é? Um canalha engravatado!
Esta não! Será que não sou de nada? Será que sou de fritar bolinhos? PROSTITUTA Quem sabe...
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VOZ
PROSTITUTA
(Mesmo tom exaltado.) E sabe o que você é? Uma puta chechelenta. (Ouve-se os
Sem ambulância? Esta é boa!
ruídos do carro que arranca e sai em disparada; há uma pausa; a prostituta fuma, refazendo-se.) POLICIAL
POLICIAL Pra você pode ser boa, pra mim não. Se este velhote morrer mesmo aqui eu estou frito em pouca banha.
(Retorna desapontado.) A coisa está encrencada.
PROSTIITUTA
PROSTITUTA
Incrível. Um Pronto-Socorro sem ambulância.
O que houve?
POLICIAL
POLICIAL
Eles têm ambulância. É que na certa deu o prego ou foi fazer algum serviço.
Telefonei pro Pronto Socorro Municipal. E sabe o que responderam do “Mário
MENDIGO
Pinotti”? PROSTITUTA
(Levanta-se, ainda dominado pelas alucinações e desloca-se tateando.) Venha cá... venha cá...
Sim!?...
PROSTITUTA
POLICIAL
(Para o mendigo, solícita.) Está chamando? O que é? Acomode-se, deite.
Imagine.
MENDIGO
PROSTITUTA
(Prossegue em passos trôpegos, alheio a Prostituta e ao Policial.) Venha cá...
O que responderam?
Quem é você... Como é o seu nome?... Vem do céu?... vestida de branco?... vestida de...
POLICIAL
nuvem... vestida de nuvem?... é a morte?... vem do céu?... me leve com você?... pro céu...
Eles não vêm.
pra cima... bem alto... bem alto... bem em cima... me leve... o céu é grande... grande e
PROSTITUTA
quieto... lá eu posso dormir... esquecer de tudo... lá eu me deito... em qualquer lugar... lá
Mas por quê?
não tem polícia... vigiando... não tem... não... Será que tem?... Os anjos... com espadas...
POLICIAL
Será que tem polícia?... No céu tem guardas?... Venha cá, me diga... no céu tem polícia?...
Adivinhe.
tem latas de lixo?... tem inverno? Tem noite fria?... tem comida pobre?... tem gatos?... tem
PROSTITUTA
gente apressada?... gente que vive fugindo?... fugindo ligeiro?... sempre fugindo?... Venha
Chega de falar a prestação. O que aconteceu? O senhor... o senhor disse que se
cá... escute.... no céu se dorme?... no céu se come?... Os Santos são felizes?... muito
tratava de um mendigo. É por isso que não vem? Que infâmia!
felizes?... eles olham pra nós?... olham pra baixo?... os santos nos enxergam? Sabem que
POLICIAL
mendigamos... que não temos pão?... nem agasalho?... os santos ouvem?... ouvem o que
Não foi por isso não.Você é do contra, leva tudo pro lado ruim, o seu caso é
rezamos?... ouvem o que pedimos?...
criticar todo mundo. PROSTITUTA E então por que eles não vem? O Pronto-Socorro do governo não existe pra isso?
PROSTITUTA (Para o policial percebendo que o Mendigo dirigia-se a uma visão.) Se a febre não cessar ele termina enlouquecendo.
POLICIAL
POLICIAL
Existe. Existir, existe. Mas está sem ambulância.
Sabe que era ótimo ele virar o juízo. Pelo menos, doido, saia correndo daqui e resolvia meu problema.
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PROSTITUTA
POLICIAL
Não sei como o senhor consegue ser tão egoísta, tão mesquinho.
O que você quer que eu faça? Não tem ambulância.
MENDIGO
PROSTITUTA
É mesmo a morte?... Mas tão linda!... se aproxime... me abrace... um abraço
Apanhe um táxi.
apertado... Não!... É você, Maria?... Maria, é você?... Não é a morte?.... Maria!... Maria!...
POLICIAL
cadê a nossa casinha?... me leve pra nossa casinha?... me leve, minha velha... Remendou a
Estou liso. Você paga?
rede?... tenho sono... como é bom dormir naquela rede... Tem alguma comida no fogão?...
PROSTITUTA
Nem farinha?... Faça mingau... sem leite mesmo, minha velha pra que luxo?... Maria!... que
Com que dinheiro?
é isto?... não chore... as coisas vão melhorar... este mês eu me emprego... tenho os
POLICIAL
documentos... eles prometeram... prometeram... já sabem da sua doença... eu disse que
Então nada feito. Entramos numa enrascada...
você escarrou sangue... muitas vezes...sangue vivo... escuro...sangue feio... Maria!... minha
PROSTITUTA Tem uma solução: o senhor se comunica com a Permanência da central de Polícia
velha... por que está chorando?... não chore... me entristece... não adianta chorar... não ajuda nada... Pare, Maria...por que este choro... Quem???... O nosso filho?.. preso?... o
e pede uma providência.
nosso querido filho? Prenderam... como a vizinha soube?... ela pode comprar jornal?...
POLICIAL
Não!... não foi o nosso filho... se enganaram com o nome... não, não foi ele.. é outro com o
Isso eu posso fazer.
nome parecido... tem tantos João da Silva... o quê?... Retrato?... saiu o retrato do
PROSTITUTA
Joãozinho?... você viu o jornal?... viu?... Então é verdade!?... O que ele fez? Já bebe?...
E deve, porque assim pode depois provar que não abandou o seu posto.
brigou?... Diga, Maria... vamos, diga logo... não demore que é pior... Não!!! Isto não!...
POLICIAL Que ideia formidável!! Eu não digo que você é inteligente? E desta vez, além de
Não acredito... Ele, o meu filho?... Roubou? ...Ladrão?!... É uma calúnia!... Não...não é possível... Meu Deus... o Joãozinho?... Maria... o Joãozinho?... nossa única riqueza...
não complicar nada, facilitou tudo.
Gatuno?... O Joãozinho?... uma criança... na cadeia?... Maria... por que ele não ouviu... os
PROSTITUTA
meus conselhos?... Tamanho sacrifício, Maria... pra ensinar... ele a ser honesto... que
Pois é. Ao menos pra salvar a pele, vá telefonar.
vergonha!... Ladrão... nunca mais... esta mancha negra... se apagará... Ladrão!...
POLICIAL
PROSTITUTA
Volto já-já. (Sai, entusiasmado.)
(Comovida, enxuga os olhos com um lenço que tira da bolsa.) Que história...
MENDIGO (Recobrando a lucidez.) Filha, o que aconteceu comigo? Estou zonzo, como quem
POLICIAL (Algo sensibilizado.) Puxa vida! Deve ter sofrido um bocado...
leva uma pancada na testa... parece que cheguei de uma viagem longa.
PROSTITUTA
PROSTITUTA
O senhor prestou atenção?
O que o senhor sente é resultado da febre alta.
POLICIAL
MENDIGO
Prestei.
Uma leseira... as coisas rodam... estou tonto... tonto... aposto que hoje é sexta-
PROSTITUTA E continua de braços cruzados?
feira. PROSTITUTA O senhor vai melhorar.
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MENDIGO
PROSTITUTA
Dia de azar. Estou tonto, filha, tonto... é muito azar – não bebi e me embriaguei...
A mim compararam com uma cadela... (Beija o Mendigo na dextra e na fronte,
PROSTITUTA
carinhosamente.)
Não é embriaguês.
MENDIGO
MENDIGO
Deus te recompense, minha filha...
Acho que morro hoje, filha. Posso lhe chamar de filha?
POLICIAL
PROSTITUTA
(Aparece em tempo de presenciar a parte final da cena, que interpreta
Por que não?
maliciosamente.) Que patifaria franciscana é esta? Se beijando os dois? (Empurra o
MENDIGO
mendigo, ele cai e bate com a cabeça na calçada.)
Como acho que morro esta noite vou lhe contar um segredo. Eu sempre quis ter
PROSTITUTA
uma filha. Minha finada mulher não sabia desse desejo. Coitadinha, quando ela ficou
Bandido! Não reparou que eu beijava o velho como filha?
barriguda o médico da Saúde disse que ia ser preciso fazer operação pra criança nascer.
POLICIAL
Depois daquele parto não podia ter outro, ele garantiu. E a Maria fez promessa pra ter
(Percebendo o equívoco.) É?... Como filha?... Então perdoe. (Noutro tom.)
homem... a maior vontade dela era que o filho fosse homem... Eu não, filha... Posso mesmo
Telefonei pra permanência da central e de lá informaram que o assunto era da competência
lhe chamar de filha?
do “Mário Pinotti”; quando eu falei do galho da falta de ambulância, e na necessidade do
PROSTITUTA
Mendigo ser internado no Pronto-Socorro Municipal com urgência, eles me explicaram
O que há de mais nisso? Não sou melhor do que o senhor. Ninguém é melhor do
que a finalidade da polícia é outra. MENDIGO
que o senhor.
(Levanta-se com a cabeça entre as mãos, olhos intumescidos, face congestionada,
MENDIGO Filha, o que você acabou de me dizer foi a melhor esmola que eu podia receber ao partir deste mundo...
estranhos esgares.) Afinal... afinal... (Avança ora na direção do Policial, ora rumo à Prostituta.) POLICIAL
PROSTITUTA
Ele ficou transtornado. Está doido varrido. (Esquiva-se para escapar de uma
Disse apenas o que veio do coração. MENDIGO
investida desvairada do mendigo.) MENDIGO
Você é um anjo. Deixe eu beijar as suas mãos. (Limpa os lábios em um retalho de
(Volta-se para o lado da Prostituta; seu aspecto é quase selvagem.) Afinal..
jornal.) PROSTITUTA Eu é que devo beijar a sua mão. Tomar a bênção como filha. Beijar a sua mão e o seu rosto. Não se importa em ver beijado no rosto por uma mulher da vida?...
afinal... POLICIAL (Para a Prostituta.) Dê o fora ou se arrepende. Eu vou ali beber uma cachaça e
MENDIGO
quando voltar, se ele ainda estiver fuçando por aqui, doido ou bom, baixo o pau e liquido
Ora, filha, por que havia de me importar? Nos últimos anos fui beijado apenas por
com a festa de uma vez por todas. Lei é lei e está acabado.
um cão...
MENDIGO Afinal... afinal... afinal... (A prostituta recua bastante e, quando vai sumir nos bastidores, vacila; o mendigo faz um giro, agarra as folhas de jornal com que se cobria e
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começa a dilacerá-las pondo pedaços na boca.) Afinal... afinal... encontrei um prato cheio... comida... comida... galinha... macarrão... batata... farofa... afinal... comida no prato... sem lata de lixo... comida boa... cheirosa... não está estragada, não está podre... comida... tudo isto pra mim... pra mim... Maria! Maria... coma comigo... coma... coma... tudinho... eu bebo mingau... coma... o pulmão... você engorda... não escarra mais sangue... coma... se sobrar leve pro Joãozinho... na cadeia... Ladrão!... ladrão... que vergonha!... preso... uma criança... na polícia... (Há uma pausa em que ele parece perder e buscar desesperadamente o fio das ideias.) Polícia... não me dê pontapé... não sou vagabundo... vagabundo... é... é... ladrão... me respeite que sou Mendigo... Mendigo... Não saio!... quero morrer... quero morrer aqui... agora... é meu direito... meu direito.... (Mais calmo, sem agressividade, ajoelha-se diante da prostituta que a esta altura tem o rosto úmido de lágrimas...) Minha filha... você é um anjo... um anjo do céu... um anjo sem espada.... espada... me diga... no céu tem Polícia?... (Num supremo esforço antes de cair morto.)
A GREVE DO
No céu tem Polícia???...
FIM
AMOR
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ÉPOCA
Esta peça foi encenada em fevereiro de 2006, no Teatro Gasômetro, em Belém do Pará, com o título de IMPUSTO DAS BARRIGA. Anteriormente, alguns trechos seus foram representados por um elenco da Universidade Popular (UNIPOP).
Primeiro quartel do século XX.
CENÁRIO PERSONAGENS Estilizado por força da fragmentação cênica, porém com traços naturalistas nos Velha-Fuxiqueira
elementos de expressão simbólica.
Orador Poeta-Boêmio
PRÓLOGO
Padre Curandeira
Antes do pano subir alguém, com um livro, dirige-se do palco à plateia,
Delegado de Polícia
dizendo o que segue.
Cabo Barbeiro
Minhas Senhoras e meus Senhores.
Promotor
A peça que ireis assistir brotou de uma semente colhida no campo da literatura
Comerciante
regional, ou seja, nasceu de um trecho da obra “OS IGARAÚNAS”, de Raimundo Moraes,
Tabelião
“romance amazônico de costumes paraenses” publicado em 1938 pela
Tiradeira de Ladainha
Civilização
Brasileira S/A Editora, do Rio de Janeiro.
Dona da Pensão
Eis o trecho, constante da página noventa da referida obra. (Abre o volume e lê.)
Prostitutas
“Compadre, já sabe da novidade?
Catimbozeiro
Que novidade? Daqui ou da Capital?
Anjo
Daqui. Espocou hoje, de tardinha.
Caboclos e Caboclas
Conte logo senão eu fico nervoso como quem tem bicho carpinteiro, disse o
A estrutura e a dinâmica do espetáculo permitirão que os atores desempenhem diversos papéis, em revezamento.
Coronel. Depois do caso da Anajatuba qualquer qualquer coisinha me parece estar subindo em taxizeiro... O Intendente de Cametá criou o imposto de trinta mil réis por mulher grávida que
AÇÃO
apareça no município. Não diga, compadre... Antão, um país sem gente, despovoado, permite uma coisa
Transcorre em Cametá, antiga e tradicional cidade do interior paraense.
dessa. É muita falta de visão, já não digo de civismo. Pobre lá pode pagar isso...” (Fecha o volume.) Pois é, senhores e senhoras, Raymundo Moraes escreveu e nós vamos mostrar. Preparai-vos para uma comédia de costumes ambientada em especial cidade do interior do Estado do Pará, com ação se desdobrando no tempo dos nossos avós, quando
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CENA 1 – A NOTÍCIA
tudo, ou quase tudo, no seio do povo humilde era diferente. Preparai-vos para uma estória regional, de sabor universal, dentro de um espetáculo ingênuo, que de ingenuidade este mundo está precisando, desesperadamente. Preparai-vos para um mergulho no antigamente e um banho nas águas lustrais do folclore. Deslizando pelo rio da recordação pesquemos algumas saudades... (Retira-se.)
Festa caipira em frente de uma residência modesta. Caboclos e caboclas se divertem dançando o Siriá. Quando a brincadeira está no auge chega a Velha-Fuxiqueira, retira uma cabocla da dança e lhe segreda algo. Esta volta para o grupo, puxa outra para fora e faz um cochicho; assim sucessivamente, cada cabocla transmite a novidade a uma companheira, até que os homens ficam dançando sozinhos, aparvalhados. As caboclas, reunidas, reagem à novidade com as exclamações abaixo. UMA CABOCLA Axi!... OUTRA Vôte!... OUTRA Ara-ara!... OUTRA Eita-pau!... OUTRA Eras!... OUTRA Vigie só!... OUTRA Mas quando!... OUTRA Sujeitinho ratuína!... OUTRA Duvi-de-o-dó!... OUTRA Que desgraceira!... As caboclas, então, voltam para os seus homens. A música cessa. Elas cochicham no ouvido deles, após o que, afastando-se em bloco compacto, os homens discutem o assunto.
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CENA 2 – PROBLEMA CONJUGAL
UM CABOCLO Impusto de trinta miréis por muié grávida? OUTRO
Casal de caboclos sentados na saleta do seu taperi, ele consertando uma tarrafa.
Qué dizê que agura tem de se pagá pra fazê filho? OUTRO
MULHER
Era só o que fartava.
Chandico...
OUTRO
HOMEM
Esse Intendente é um danisco!
Hum...
OUTRO
MULHER
Unde já se viu?
Eu tava matutando... matutando...
OUTRO
HOMEM
Trinta miréis por filho na barriga? Égua!
Matuta, Merandolina, matuta, mas porém me deixa assucegado.
OUTRO
MULHER
Eu não pago nem um mapará!
Tu tá muito nervuso.
OUTRO
HOMEM
Esse Intendente pro modo que não se enxerga!
Não é da tua conta.
OUTRO
MULHER
Pió do que ferrada de arraia!
Tu tá amurrinhado.
OUTRO
HOMEM
Eu não acredito, tem bui na linha.
Não é nada.
OUTRO
MULHER
Quero murrê de guta serena se pago um deréis!
Depuis que tu passô a drumir em rede tu ficô jururu.
OUTRO
HOMEM
Esse Intendente não gira bem da bola.
Besteira.
OUTRO
MULHER
Quero que ele vá pra caixa prego.
Tu não qué vurtá a drumir na esteira comigo?
OUTRO
HOMEM
Agura nós fiquemos em petição de miséria!...
De jeito nenhum. MULHER Antão fica de prua dereita. Ora tu tá aguniado, ora tu tá carmo demais. HOMEM Bubagem.
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CENA 3 – O COMÍCIO
MULHER Ora parece que tu tem cumichão, ora parece que tu tá com béri-béri. HOMEM
Os caboclos reunidos em uma esquina de rua. Um deles discursando.
Não te avexa cumigo. MULHER
ORADOR
Avexo sim, cumo antão hei-de não me avexar?
Puvo de Cametá. Puvo parrudo da terra dos Romualdos. Nós semos um puvo que
HOMEM
tem estória nesse oco do mundo do Tocantins.
Não percisa avexamento.
TODOS
MULHER
Muito bem. (Voz de um, destacada.) Adiscasca o piquiá, Zé Tijucão.
Vou fazê um chá de erva cidreira pra ti.
ORADOR
HOMEM
Cumo sempre diz o nusso pueta quando tá de porre, foi em Cametá que o
Não quero. Era só o que fartava!
cunquistadur Pedro Teixeira organizô sua expedição pra desbravá a Amazônia. Cumo fala
MULHER
o nusso pueta nós semos o único puvo que aderrotô a Cabanagem. Purisso é que nós se
Ai! minha Nussa Senhura de Nazaré, que consumição.
chamemos de “Cidade Invicta”. TODOS Muito bem, muito bem. (Outra voz se destaca.) Eita! Cabuco de pêia! ORADOR Nós butô pra currê a Cabanagem, guerra pajureba que abalu todo o Pará, guerra curajosa que tumô conta do guverno em Belém durante argum tempo. Nó semos um povo que não se acuvardemos, nós não tem sangue aguado, nós não tem medo de nada. TODOS Muito bem. ORADOR (Cada vez mais inflamado.) Esse Intendente filho de purco espinho com jacarôa não pode cubrá impusto das barriga de nossas muié, pruque as barriga de nossas muié não é cuisa pública! TODOS (Aplausos e gritos.) Apuiado, apuiado. ORADOR (Pede silêncio.) Prestem atenção: inquanto nós não aderrubá esse impusto tinhoso nós não ajunta os imbigos com as nossas muié, nós não monta em riba delas, pro causa de não inchá o bucho e nós tê que pagá trinta miréis de murta.
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UM CABOCLO
ORADOR
(Para outro.) Agura a cuisa cumeçô a fedê, cunhado.
Escute, seu Pueta, nós tá cumbinando a gleve do amur pruquê nós não tem trinta
O OUTRO
mil réis vadio pra pagá de impusto quando as barriga das nossa muié ingravidá. A gleve du
É... isso de nós não ajuntá o imbigo com o da muié, pra mode de não currê perigo
amur vai mustrá a valentia do cabuco de Cametá, cumo no tempo da Cabanagem. Vaçuncê
de emprenhá ela, vai dá pano pra manga.
mesmo escrevinhou um verso sobre isso.
ORADOR
POETA
Nós tem de drumir separado dos rabo de saia pra não fazê filho. Assim nós não
Alto lá! Eu já rasguei aquele poema. Hoje tenho dúvidas... Não sei se nós
paga o impusto das barrigas e banca os homens. Nós precisa fazê gleve desde huje. Nós
praticamos um ato de heroísmo ou de burrice oferecendo resistência à Cabanagem, uma
tem de guentá firme na GLEVE DO AMUR.
revolução cruel mas também um belo movimento nativista do povo oprimido, que pela
TODOS
primeira vez, em toda a nossa história, conseguiu tomar o Poder das mãos dos exploradores
Viva a gleve! Viva a gleve do Amur!!!
endinheirados, conterrâneos e estrangeiros.
(A esta altura aparece o Poeta-Boêmio, ligeiramente alcoolizado.)
UM CABOCLO
POETA
(Aludindo ao Poeta.) Ele huje tá com a macaca!...
(Notando a aglomeração dos caboclos.) O que vocês estão fazendo aqui? Esta
POETA
esquina defronte da praça é privativa de tocador de violão. UM CABOCLO
E tem mais. Vocês me informam que vão fazer greve do amor, o que é um absurdo porque o amor é lei da vida. Então eu pergunto: se o objetivo a ser atingido é
Seu coisinha, nós tá arquitetando a nossa gleve.
evitar a gravidez para não pagar o Imposto das Barrigas, por que não fazer a greve do
POETA
sexo? Quer me parecer que vocês precisam de uma greve sexual e não sentimental, não é
O que? Eu ouvi bem?
isso? UM CABOCLO
OUTRO CABOCLO
(Depois de confabular com os outros.) Agura nós se embananou todo... cumo é
Nós vai fazer a gleve do amur. POETA
mesmo?
Greve do amor??? Eu protesto!
POETA
ORADOR
Greve do sexo. Sexo. SEXO.
Cumo antão! Não é vaçuncê que fala puraí que este guverno é matreiro que nem
CABOCLO
jacamim e vive nos explurando? POETA Positivo. Este gorverno e todo governo. Em verdade, em verdade eu vos digo:
(Repete o jogo de confabulação.) Nós não acerta dizê essa palavra... nós prefere gleve do AMUR... OUTRO
todo governo é mais ou menos safado. Aliás, só ó fato de existir governo já é de certo
Nós quer, Pueta, o seu apuio pra nossa gleve.
modo uma safadeza.
POETA
UM CABOCLO (Para outro, referindo-se ao Poeta.) Quem havera de dizê que ele estudô na capitar pra ser padre, antes de se afugá na perdição da cachaça.
Podem deixar, contem comigo, não para entrar na greve, que não sou besta, mas sim para defendê-la com a minha inspiração. Vou escrever umas estrofes de exaltação a essa idiotice de vocês, que aliás nada tem de original. Em Atenas, quatrocentos e cinquenta anos antes de Cristo, foi feita uma greve do amor ou do sexo, só que lá quem promoveu e
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sustentou a tal greve foram as mulheres, a fim de acabar com a guerra do Peloponeso. (Em
Aos compassos de valsa doce e calma,
outro tom, enfático.) Pelo sagrado ideal de fazer filho sem gastar nenhum tostão, eu
Descem atraídos pelo seu violino
declaro, solenemente, aos maridos cametaenses que não fugirei dessa luta. (Todos batem
Beijam-lhe a fronte e, arrebatando-lhe a alma,
palmas.)
Sobem levando-a pelo azul divino”. ORADOR Bunito, pueta paidégua! Diga logo uma puesia, agurinha, de acurdo com a nossa
situação.
TODOS (Entusiasmados) Muito bem. Muito bem, (Catam algum dinheiro no bolso e dão
POETA
para o poeta.) Esperem, eu ainda vou escrever. O que posso agora, neste instante, é falar sobre
UM CABOCLO
MINHA situação, que é crítica porque me encontro desempregado, como ninguém ignora,
Apusto que esse dinheiro nós não recebe mais de vorta.
e hoje é sábado, necessito beber mais uns aperitivos e estou liso que nem mussum. Quer
OUTRO CABOCLO
dizer... se vocês puderem apoiar a minha pobreza talvez eu possa ter inspiração para apoiar
Que cuisa esquisita essa de fazê gleve: nós nem ainda cumeçô e já tem prejuízo...
a greve ainda esta noite.. (Os caboclos se entreolham, desconfiados.) UM CABOCLO O Pueta ta pedindo um dinheirinho emprestado, é? POETA Mas como você é inteligente, meu irmão. Vou declamar, em sua homenagem, um soneto de Jônatas Fernandes, a fim de que todos vejam como não sou apenas um filósofo vagabundo, conforme propalam as más línguas invejosas, e sim, acima de tudo, um lírico que ama as coisas espirituais. Ouçam: SUBINDO AO CÉU “Nós acordes da valsa, enternecidos, Como se fora a música dos beijos, Era de vê-la assim vibrar sentidos Os mais suaves, límpidos lampejos. Feriu-a entanto a sorte dos vencidos, Quando mais divinais, em seus desejos, Arrancava das cordas os gemidos, Subindo ao céu... em mágicos adejos. Mas, os anjos, querendo dar-lhe a palma Coroando o talento peregrino
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CENA 4 – O SERMÃO
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“Quem não te conhece que te compra...”) O que foi que falaram? (A mesma voz responde: “Eu disse Amém, seu Zinho...”) Obrigado, assim seja. Para seguirmos corretamente nossa
Igreja. Inicialmente ouve-se música sacra e vê-se o Padre gesticulando em ritual
religião não basta pendurarmos medalhas no pescoço, acendermos velas, rezarmos terços e
de Missa, com os fiéis ajoelhando-se e pondo-se de pé, benzendo-se etc. Quando a mímica
colocarmos esmolas na bandeja toda semana, o que é muitíssimo importante. Precisamos
e o som cessam começa a homilia.
vencer a tentação da carne porque a tentação da carne é a arma mais poderosa do Demônio. Eu vos afirmo com a maior convicção, em nome do Cristo Crucificado, que deveis
PADRE
aproveitar a bendita oportunidade desse Imposto das Barrigas para vos reconciliar com a
Meus queridos irmãos e irmãs em Nosso Senhor Jesus Cristo! Antes de subir eu
Lei Divina, que é superior à Lei da Natureza. Fazei, pois, um voto de castidade conjulgal e
ao santo altar para oficiar esta Missa, o Sacristão piedosamente me informou que ontem à
acabai com a triste atividade do sexo a partir de hoje. As mulheres deverão lembrar-se da
noite, na esquina da praça, com o incentivo irresponsável de um poeta anarquista e
virgindade de Maria. E os homens deverão recordar que São Pedro, depois de se tornar
alcoólatra, infeliz transviado que na juventude abandonou o Seminário para abraçar a
Apóstolo, não tocou mais nunca em sua esposa. (Vozes femininas de protesto.)
heresia, e que tantas dores de cabeça já me deu, foi decretada a GREVE DO AMOR em
UMA CABOCLA
Cametá, como reação ao Imposto das Barrigas. (Os assistentes se acotovelam em
Vôte! Desconjuro.
expectativas.)
OUTRA
Minha prédica deste domingo será sobre tão magno assunto. Sinceramente, acho que não
Égua! (Para o marido.) Vamos simbora.
se justifica a desastrosa repercussão que o Imposto das Barriga está tendo. O Intendente,
POETA
que aliás se acha ausente da cidade e por isso ainda não foi confirmada a veracidade de tal
(Cambaleando, sem lograr acender um cigarro, alheio ao que se passa no
imposto, o Intendente, repito, deve ter as suas razões administrativas para cobrar trinta mil
ambiente.) Santa Helena Magno, tu é que foste grande e eu te invejo. Vou declamar aqui
réis pela gravidez de cada mulher deste município. Afinal de contas, é através dos impostos
nesta budega o teu “ANJO CAÍDO”. Adoro anjo, detesto padre cretino como o desta
que todo Governo arrecada os recursos financeiros para realizar as obras de interesse da
igreja, mas adoro anjos...
comunidade: escolas, hospitais, estradas e tudo aquilo de que necessitamos. Não vos
UM CABOCLO
esqueçais de que toda autoridade vem dos Céus, e de que também a Mãe Santíssima teve
“Seu” Pueta, arrespeite a casa de Nusso Senhur.
de pagar o seu tributo por ter no ventre o Salvador da Humanidade, não tributo em moeda,
OUTRO
é verdade, mas o tributo da fuga e do sofrimento. (Murmúrios indistintos.) Se, porém,
Escapula já-já daqui, seu menino.
meus caríssimos irmãos, não quiserdes pagar o imposto sobre a gravidez, escutai o
POETA
conselho que neste instante vos darei, rigorosamente de acordo com a Doutrina da igreja
(Indiferente a tudo, recita com dificuldade.)
Católica, Apostólica e Romana, que é infalível, como sabeis, e, notai bem isto, dirigida não por simples Intendentes, e sim por Ministros, digo, Ministros de DEUS. Não podeis
“Caiste, arcanjo, caíste
ignorar que o sexo, pela sua origem representa o pecado. (Entra o Poeta-Boêmio, a esta
No abismo da perdição;
altura não mais ligeiramente, e sim COMPLETAMENTE embriagado.) As Escrituras
No teu céu escuro e triste
Sagradas ensinam que o homem perdeu a graça do Criador porque comeu o fruto proibido
Não brilha mais um clarão;
do sexo. A castidade, isto é, não praticar o sexo, é a mais celestial das virtudes e nós
Nas faces alvas, formosas,
mesmo, os padres, vos damos o bom exemplo nesse sentido. (Ouve-se alguém dizer:
Onde Deus abrira as rosas
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Da virgindade e do amor,
POETA
Gravou teu impuro vício,
Eu não sou sacrílego, muito ao contrário. Como escreveu um grande Espírito...
Como pungente cilício,
(Toma com imenso sacrifício uma postura de mais dignidade.)
Selo de opróbio e de dor. “Eu creio em ti, oh! Cristo verdadeiro, Eu fui teu escravo um dia!
Essência da bondade e do perdão.
Em solene adoração
Cristo que não se troca por dinheiro
Dei-te o incenso da poesia
Nem que fez dos Evangelhos ganha-pão.
Nas aras do coração;
Eu creio em ti que não tiveste templo,
De teus olhos aos fulgores,
Pois foste dele símbolo perfeito
Como ao sol desabrocham flores,
Na pureza sem par do teu exemplo. Não creio é nesse Cristo-Imitação
Minh’alma desabrochei;
Que a idolatria aperta contra o peito
E no regaço da esperança,
E leva pela rua em procissão”.
Risonha, incauta criança, PADRE
Meus sonhos acalentei!
Ponham pra fora esse cachaceiro senão eu cometo um ato de loucura. Hoje, não: desse passado
UM CABOCLO
Não há vestígio sequer;
“Seu” pueta, pelo amor de DEUS, se avue daqui.
Ei-lo o encanto quebrado...”
POETA Saio, em consideração a vocês. (Aponta o Padre.) Não com medo deste sepulcro
PADRE
coiado, mistificador, lobo disfarçado em pele de ovelha, sedutor de viúvas, vil enganador
(Parte furioso na direção do Poeta-Boêmio.) Vou quebrar o teu encanto e a tua
do povo. Pobre povo... Cristianismo, cristianismo, quantos crimes são cometidos em teu
cara, filho da... treva (Os presentes se espalham, uns segurando o Padre, outros tentando retirar o Poeta do recinto.) UMA CABOCLA Valei-me, minha Nussa Senhura das aflições. UM CABOCLO Agura a porca vai turcer o rabo. PADRE Ponham no olho da rua este canalha que não permito sacrilégio na minha paróquia.
nome!...
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CENA 5 – PROBLEMA CONJUGAL
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HOMEM Vucê sempre disse que ninguém perde por esperá.
(Um casal de caboclos, caminhando vagarosamente com paradas cerimoniosas.)
MULHER Pru que vocês não vão falá com o Intendente.
HOMEM
HOMEM
O que te deu na cabeça, Cherubina, pra querê passiá uma hura desta?...
Não adianta, é malhá em ferro fruo.
MULHER
MULHER
Precisamos assuntá longe das criança...
Inquanto nós padece vucês nem seu-Souza...
HOMEM
HOMEM
Já sei o que tu vai dizê...
Isso vai passá mais ligeiro do que chuva com sol.
MULHER
MULHER
Puis é...
Não custava falar com o intendente, fazê uma imploração, quem sabe?...
HOMEM
HOMEM
Tá na casa do sem-jeito...
Ele é opinioso, não vai mudá de idéia, é mais fácil a baía do Guajará secá.
MULHER
MULHER
Será?...
Nós, muié é que já tá secando...
HOMEM
HOMEM
Tem a santa paciência, nós não vai se esfregá inquanto continuá esse marfadado
Te alembra do conselho do Padre.
Impusto das Barriga.
MULHER
MULHER
Aquele-um é uma vasilha ordinária!...
Seje o que DEUS quiser...
HOMEM
HOMEM
Cherubina, tu tem de cumpreendê, minha bichinha.
Inda bem que tu compreende.
MULHER
MULHER
Eu já disse que cumpreendo, mas inté quando?...
É... cumpreendo... mas que dói, dói...
HOMEM
HOMEM
Não se pode sabê.
Nós, os home, não pode dá o braço a turcer.
MULHER
MULHER
Inté quando muié honrada em Cametá vai ficar roendo uma pupunha?...
Mas nós, Paquito...
HOMEM
HOMEM
Nós, home, tem de sê pulítico.
Vocês não deve nos aperreá.
MULHER
MULHER Não é justo tirarem a nussa única alegria...
E nós, muié, tem de vivê de canto churado?...(Põe-se a soluçar e termina em pranto convulsivo.)
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CENA 6 – O RECURSO MEDICINAL
HOMEM Tem cada uma que parece duas!...
Uma falsa curandeira faz o seu pregão no mercado, para os caboclos e caboclas. CURANDEIRA Pode acreditar, minha gente. Pode acreditar que nunca decepcionei ninguém, não sou de fazer lambança com esta boca que a terra há-de comer. Eu só estou nesta terra há cinco anos mas vocês me conhecem de sobra. UM CABOCLO (Para outro.) Esta coerona não chegu em Cametá ano passado? CABOCLO (Respondendo) Paresque... Dizem os filhos de Candinha que ela se meteu numa atrapaiada do diacho, com a pulícia da capitar. CURANDEIRA Chorei na barriga da minha mãe, antes de me mudar de Belém para esta cidade, fui coroada pelo Pajé Procópio da vigia, porisso tenho vibração forte e tino apurado. (Exibe um garrafão.) Esta garrafada que preparei custa baratinho porém é garantida, dou o meu pescoço à cutelo se ela falhar. Mulher que tomar meia cuia desta garrafada, de três em três dias, no luar da madrugada, jamais ficará grávida. JAMAIS. Com esta milagrosa garrafada barriga de mulher não cresce nem a peso de gordura, quanto mais de filho. UM CABOCLO Puis sim, duvido que não cresce... (Risos) CURANDEIRA Cresce uma osga! Me respeite, me Mapinguari, não admito mangação, vamos acabar com a presepada. Já provei a todo mundo daqui que entendo do riscado. Não viram o que eu fiz nos últimos tempos? Não curei toda espécie de malefício, de espinhela caída à tuberculose? UMA CABOCLA É a pura veldade, ela curô mesmo. CURANDEIRA Fazendo sempre minha oração secreta, que não esqueci de rezar quando estava preparando esta garrafada, não curei mau olhado com galho de alecrim batido na testa e na nuca?
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OUTRA CABOCLA
OUTRA
Isso eu vi.
Quebradura do corpo...
CURANDEIRA
OUTRA
Não curei rasgadura de carne costurando um pedaço de pano benzido? Não curei
Encosto...
torcedura com uma faca virgem? Não curei terçol esfregando uma aliança de ouro e pondo
OUTRA
em cima do olho doente?
Barriga d’água...
OUTRA CABOCLA
OUTRA
É veldade, foi num curumim lá de casa.
Puxado...
CURANDEIRA
OUTRA
Não curei verruga jogando sal no fogo? Não curei ferida com sebo de Holanda e
Curô tudo o que foi tangurumango. CURANDEIRA
copaíba? Não curei erisipela com ramo de arruda?
Pois então por que não haveria de inventar um remédio contra a gravidez? A
OUTRA CABOCLA Sim senhora.
minha garrafada é um prodígio, gente. Foi feita com uma mistura de puxari, paricá,
CURANDEIRA
verônica, mucura-caá, marapuama e mais umas coisas que não revelo porque não sou
Não curei com benzedura, friccção, emplastro, linhaça, grelo de malvarisco, todo
besta, o segredo é a alma do negócio. Como é, ninguém compra? UM CABOCLO
tipo de enfermidade? UMA CABOCLA
O dinheiro anda vasqueiro...
É veldade. Curô ramo de ar...
OUTRO
OUTRA
Nós vai arresolvê, adespuis vorta...
Campainha arriada...
CURANDEIRA Quer dizer que não botam confiança na minha sapiência? Hein? Ninguém se
OUTRA Unheiro...
aventura? Ninguém vai experimentar? Vai ficar todo mundo aí de cara lambida?
OUTRA
UM CABOCLO
Nó na tripa...
Nós percisa primeiro pensá, dona menina.
OUTRA
CURANDEIRA
Panariço
Vá bugiar. E vocês outros, não se decidem?
OUTRA
UM CABOCLO
Mãe do corpo...
Nós tá de gleve do amur, não carece garrafada não.
OUTRA
OUTRO É isso mesmo, nós guenta firme sem triscá em muié inté aderribá o Impusto das
Chicote... OUTRA
Barriga.
Dor de madre...
OUTRO
OUTRA
Nós semos gente de vergunha na cara...
Farta de ar...
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CENA 7 – A SEGURANÇA PÚBLICA
CURANDEIRA Vocês são é uns lesos. E eu vou é voltar para Belém porque quem com os porcos se mistura farelo come!
Posto policial. O Delegado caminha preocupado de um lado para o outro.
UM CABOCLO (Para todos os outros.) Vamos se arribá daqui, pessoá, que essa mulherzinha acaba nos engabelando.
DELEGADO (Chamando) Cabo valente! (Pausa, voz mais alta.) Cabo Valente!!! Cabo VALENTE!!! CABO (Entra todo estropiado, mancando, com esparadrapo no rosto etc.) Desculpe, Delegado, eu estava bicorando lá fora uma novidade: parece que vão fazer uma baita reunião contra o Imposto das Barrigas. DELEGADO Você já está em forma, não está? CABO Mais ou menos, assim-assim. Esta noite dormi todo ensopado de andiroba, a inflamação diminuiu. DELEGADO Escute, você sabe que eu sou um homem educado e gosto de tudo dentro do figurino da lei, não é? CABO Perfeitamente. O senhor é um homem fino. DELEGADO Repita então para mim, mais uma vez, com todos os pormenores, e respeitosamente, sem usar palavras de baixo calão, sem falar nome feio, pois um policial deve saber se expressar, como foi que a briga começou? CABO Ah! Delegado, a pororoca estourou quando a última puta que estava no salão foi para o quarto com o homem. O senhor não imagina como está enchendo aquela pensão depois que os homens casados resolveram fazer a greve do amor com as esposas. A maioria deles passou a frequentar a pensão e o problema é que, infelizmente, aqui em Cametá nós temos poucas putas para atender esse estado de emergência. DELEGADO Pensando bem, a situação é difícil.
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CABO
DELEGADO
Difícil não, Delegado, é crítica. O senhor tem de cooperar como autoridade,
Não há dúvida.
permitindo que a dona da pensão resolva o problema da segurança na cidade, contratando
CABO
da Capital mais algumas putas.
Nossa cidade tem avançado, tem tido prosperidade. Tem... se desenvolvido.
DELEGADO
DELEGADO
Cabo, veja se você fala de maneira mais decente.
Concordo.
CABO
CABO
Sim senhor, eu só queria dizer que, por falta de mulher naquela pensão, nós
E então?
estamos entrando em uma situação de calamidade pública.
DELEGADO
DELEGADO
Então o quê?
Eu não posso consentir, pelo menos oficialmente, que tragam para cá mais
CABO
prostitutas. É contra os meus princípios morais e pode desencadear uma repercussão
Já é hora da gente ter aqui uma zona do meretrício.
política negativa para o governo.
DELEGADO
CABO
Você está louco?
Mas Delegado, o senhor que é um homem tão ilustrado, raciocine comigo: se o
CABO
problema todo é... DELEGADO Você desviou o assunto. O que desejo saber não é nada disso, o que me interessa saber, minuciosamente, é como a briga teve início. Conte outra vez.
Ora, Delegado, quanto mais uma cidade se deselvolve, progride, mais o pessoal quer trepar... DELEGADO Cabo, você não é capaz de mudar esse seu palavreado de beira de praia?
CABO
CABO
Foi o seguinte, como já disse: quando dei entrada no salão para manter a ordem
Não leve a mal, Chefe, eu falo certas palavras sem sentir.
tinha uns oito agarrados, aos tabefes, e uns quatro ou cinco nus. Aí a solução foi baixar o
DELEGADO
pau. O que me falaram depois que acordei do desmaio, foi que tudo começou porque faltou
Não estou disposto a continuar ouvindo esta sua linguagem despudorada.
mulher e a dona da pensão se recusou a ir para o quarto com um sujeito, alegando ter mais
CABO
de sessenta anos e sofrer de reumatismo. Coitada da velha. E coitado de nós se não aparecerem mais... (Olha para o Delegado.) raparigas... DELEGADO
Sim senhor, me perdoe mais uma vez. É que eu estava acostumado com o outro Delegado, e como o senhor sabe, o outro Delegado não tinha muita escola nem crença religiosa firme, como a sua. Aliás, por aqui é uma raridade gente da sua seita.
De fato o caso é sério. Seríssimo. Pior do que isso, só eleição.
DELEGADO
CABO
Lastimavelmente isso é verdade. Por tal motivo é que estamos enfrentando essa
Delegado, eu posso falar com o senhor de homem pra homem? DELEGADO Pode. CABO Eu acho que Cametá tem progredido muito ultimamente.
devassidão. CABO Delegado, eu lhe confesso uma coisa. Não sei como um homem como o senhor pode ser autoridade policial.
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CENA 8 – COLÓQUIO
DELEGADO Nesse ponto você tem toda razão, nem eu sei... O povo é que sabe, quando diz que a necessidade é que faz o ladrão. CABO
Caboclos pescando em pequenas canoas (O diálogo desloca-se de uma para outro.)
Esse negócio de necessidade é que fode com tudo. DELEGADO
UM CABOCLO
(Ríspido) Cabo, você não me diz uma frase sem chamar nome feio?!
Rema, Reimundo.
CABO
OUTRO CABOCLO
Perdão, perdão.
Guenta firme no jacumã, Zé Piramutaba.
DELEGADO
OUTRO
Ou você limpa esta boca suja ou eu peço a sua transferência.
Eita pau! Nós huje vai enchê a pança de tambaqui gurdo.
CABO
OUTRO
Sim senhor, fique tranquilo que vou fazer um esforço para me corrigir. Afinal de
Vai nada, o lago tá sarú.
contas isto aqui é uma delegacia de polícia, não é um puteiro.
OUTRO
DELEGADO
É mesmo, só tem pirambóia.
Chega!!! Pode se retirar. Vá lá dentro, abra o xadrez e veja se o Poeta já acordou.
OUTRO
CABO
Joga a tarrafa que aqui costuma aparecê muita tainha e jandiá.
Perfeitamente. Mas... não esqueça, Delegado, que zona de meretrício é o lugar
OUTRO
mais bem organizado que existe, uma verdadeira democracia: todo mundo se entende,
Cuidado, sumano, que neste remanso já levei choque de puraqué.
colabora, a gente passa lá somente para fazer a coleta das taxas e das gorjetas,
OUTRO
demonstrando que cumprimos com o nosso dever de zelar pelos bons costumes.
A mãe d’água vai nos dá sorte, cumo vai azará o Intendente. UM CABOCLO Cumpadre, vaçuncê tá firme na gleve do amur? OUTRO Ora si-si! OUTRO Eu também não dô meu braço a turcê. OUTRO Da minha parte, juro que não vô avacalhá a gleve. OUTRO Jura pela fé da mucura? OUTRO Olhe lá, cumpadre, quem jura falso vira carcunda pro ar.
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UM CABOCLO
OUTRO
Esse Intendente tem o tino do Capeta.
Com a ajuda do pueta.
OUTRO
OUTRO
Se nós ameaçá ele de morte matada vai sê água fria na fervura.
Não adianta, é chuvê no molhado.
OUTRO
OUTRO
Precisamos mustrá que quem tem nariz furado é índio.
O Guvernador mata, o Intendente esfola.
OUTRO
OUTRO
Nós tem de prutestá, mas com braveza. Quando não se pode com o pote não se
Todos dois são umas buas biscas.
pega na rudilha.
UM CABOCLO
UM CABOCLO
Também nós não percisava fazê dessa gleve um bicho de sete cabeças.
Ninguém vai desanimá na gleve.
OUTRO
OUTRO Aquele que fraquejá leva uns supapos.
Não percisava uma ova! Vucê não dizia isso se a sua muié fusse espuletada cumo a minha.
OUTRO
OUTRO
A minha muié não tá se cunfurmando, anda dando pinote que nem piranha duida.
E a minha? É de lascá...
OUTRO
OUTRO
A minha tá mais murcha do que pinto gouguento.
A minha anda cuíra pra me dá o laço.
UM CABOCLO
UM CABOCLO
Sabe, a minha vida mudô depuis dessa gleve. Antigamente era uma vida carma, ia escurregando de mansinho, cumo mururé de bubuia na curva do rio...
Cunhado, o João Lambança me falô que viu vucê ante-onte de tardinha entrando no mato com a Maria Piaçoca.
OUTRO
OUTRO
Essa gleve precisa acabá logo pra nós tirá o pé da lama.
Deixe de mardade que sô homem caseiro.
OUTRO
OUTRO
É, estemos passando uma bicheira.
Eu cunfesso que, se a gleve não minguá logo, vô me arrumá pur trás da bomba
OUTRO
com a Juana Pataqueira.
Más nós guenta, inté quebrá a castanha na buca do Intendente.
OUTRO
OUTRO
Deixa o Mané Tralhoto te pegá com ela!...
Se a gente fizé um cumício esbudegado na purta da casa dele, apusto que vai sê
OUTRO
pá-casca.
Vaçuncê não tá com vuntade de dá uma espremidela na sua muié?
UM CABOCLO
OUTRO
O macaco-suim desse Intendente tá empiriquitando o nosso vivê, mas porém
Tô. Na minha ou na muié de arguém...
ainda acaba estrebuchando. OUTRO Nós devia escrevê pro Guvernador, butando os podres dele pra fora.
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CENA 9 – PROBLEMA CONJUGAL
474
MULHER Só uma trisca.
Casal de caboclos deitados em uma esteira porém separados por paneiros
HOMEM Nós não pode incustá barriga. Gleve é gleve.
. MULHER
MULHER
Marido, tu tá drumindo?
Mas eu não sei drumir desse jeito e qualidade.
HOMEM
HOMEM
Ahn...
Não me tenta, pequena.
MULHER
MULHER
Já tá drumindo? HOMEM
(Depois de uma pausa em que procura se acomodar em várias posições e não consegue.) Marido...
Quase-quase, só farta um tiquinho.
HOMEM
MULHER
Danou-se!
Tu não tem sunhado cuisa feia?
MULHER
HOMEM
Tu não tem um pingo de pena desta pobre cuitada?
Puça! Que sugigação, me deixa em paz.
HOMEM
MULHER
Me deixa sussegá pelo amur de DEUS.
Eu não sei drumi assim.
MULHER
HOMEM
Quem diria!
Paciença...
HOMEM
MULHER
Te alembra a Virge Maria.
Não acha milhor arretirá esses paneiros de riba de nós?
MULHER
HOMEM
Tu parece que tumô abuso de mim...
Macaco velho não mete a mão em cumbuca...
HOMEM
MULHER
Que bicho te murdeu?
Eu queria me esquentá um pouquinho na tua ilharga.
MULHER
HOMEM
Eu não sô nenhuma fedorenta, ouviu? Cheirando a pitiú de cascudo.
Não tá fazendo frio.
HOMEM
MULHER
É a gleve, muié, aunde eu desencavo trinta miréis quando o teu bucho impiná?
Mas eu queria pra mode o sono chegá.
MULHER
HOMEM
Não impina, eu afianço.
Te aquieta, apaga o fugo.
HOMEM Puis sim!
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MULHER
HOMEM
Deixa de ruindade.
Faz uma prumessa pra Nussa Senhura de Nazaré que te alevo em Belém pra
HOMEM
acumpanhá o Círio.
Ruindade não, farta de grana pra enchê a pança do Intendente.
MULHER
MULHER
Eu acabo é perdendo a cabeça...
E se eu pagá o impusto? Posso arrebanhá um dinheirinho fazendo beijus. Uma vez
HOMEM
já não fiquei baluda vendendo tapioca? (Levanta-se entusiasmada.)
Basta sabê esperá. Mais dia menos dia nós faz o Intendente metê a viola no saco.
HOMEM
MULHER
(Sentando-se) Estô canço de te dizê, essa menina, que nós não pode se agarrá
Isso parece cuisa do tempo do trancoso.
inquanto a gleve continuá. O causo é este.
HOMEM
MULHER
Tá na casa do sem-jeito.
Mas inté quando?
MULHER
HOMEM
Nunca te vi tão cheio de éfes e erres.
Isso só Nusso Senhur sabe.
HOMEM
MULHER
Puis tá vendo. Cabuco também tem direito de fazê gleve e sê impurtante.
A situação fica cada vez mais preta e essa gleve não ata nem desata.
MULHER
HOMEM É...
Se vucês home, que tem a vara do diabo entre as pernas, não fizé nada pra butá abaixo esse impusto misererê, nós, as muié, vai tomá as providença.
MULHER
HOMEM
Que pissica!
Que providença?
HOMEM
MULHER
E tu acha que fica bem pra um cabuco maneiro cumo eu, um cabuco de palavra,
Nós já se cumbinemos. Vamos fazê uma que parece duas.
um cabuco que não tem sangue de barata, furá gleve?
HOMEM
MULHER
É?
Escuta, se eu ingravidá o puvo só vai sabê depuis de quatro meses.
MULHER
HOMEM
Vão se fiando...
Podem adescubrirem a nussa manha quando te verem com enjuo.
HOMEM
MULHER
(Curioso) Vucês, muié, tão maquindando fazê alguma embuança?
Nós nega, não se dá pur achado.
MULHER
HOMEM
Estemos.
A tua cara não treme?
HOMEM
MULHER
É mesmo?
Não tô suportando mais...
MULHER Na batata!
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CENA 10 – A ANÁLISE DA SITUAÇÃO
HOMEM Deixa de lorota. MULHER
Em uma barbeari.
Não acredita? Pensa que nós já não se arreuniu na casa da Dica Jabá? HOMEM E o que vucês cumbinaram? MULHER Vamos pintá a saracura. HOMEM Sim senhur, quem diria!... MULHER Pur inquanto nós tá se fazendo de besta pra ir passando, mas vai butá tudo em pratos limpos. HOMEM Vão aperreá nós ou o Intendente? MULHER Não sei, quem for pudre que se quebre... HOMEM Era só o que fartava! MULHER O pau vai chinchá! HOMEM Mas é mesmo? MULHER E nós qué vê o tremelique de vucês na hora da meleca. HOMEM Nós arrecunhece que vucês tem carradas de razão. MULHER Puis antão parem com essa gleve chinfrim que mal e porcamente selve pra nos amufiná. Façam arguma coisa. HOMEM Fazê o que? MULHER Sei lá, cobra que não anda não engole sapo. Se mexam, seus pamonhas.
BARBEIRO (Enquanto vai cortando o cabelo do cliente.) Mas doutor, o que o senhor me diz do Imposto das Barrigas? PROMOTOR Prefiro não dar opinião sobre o assunto antes de consultar a jurisprudência dos Tribunais. BARBEIRO Espere aí, doutor, o senhor não pode se negar a meter sua colher na maniçoba desse caso. Afinal de contas o nosso Juiz é um “boa vida”, sem noção de responsabilidade, passa a maior parte do tempo em Belém e não aqui, e o senhor, cá pra nós, como Promotor da Comarca, é o único homem neste município que conhece a lei a fundo. Sua opinião é preciosa. Eu penso que trinta mil réis por gravidez é uma exploração. Aliás, que ninguém nos ouça, o Intendente é um ladrão, além de corno. Dizem que a mulher dele quando vai à Capital dorme com um figurão de lá. Mas o que o senhor acha? PROMOTOR O que eu acho de QUE e de QUEM? BARBEIRO O que o senhor acha do novo Imposto. É legal ou ilegal? PROMOTOR Em primeiro lugar é preciso saber se é real. BARBEIRO Como assim? PROMOTOR É possível que a notícia da instituição do Imposto das Barrigas, para mim suspeita, não passe de uma intriga política. É possível que tenham aproveitado a viagem do Intendente para articular contra ele um faccioso processo de incompatibilização com o povo, ou talvez até com o próprio Governador. Mesquinharia da oposição.
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BARBEIRO
BARBEIRO
Mas doutor, a população pobre já está em plena greve do amor. O que acha da
É, dá pena... Como diz o Promotor, democracia é um regime complicado.
greve?
COMERCIANTE PROMOTOR
Claro. Nos tempos de Monarquia tudo era mais fácil e com a lei da chibata havia
Bom, quanto à greve, o que eu posso declarar, com amparo na experiência, é que
compostura. Você não vê que hoje ninguém leva as coisas a sério e poucos pagam dívida?!
do ponto de vista jurídico ela é quase sempre legal, e do ponto de vista político é sempre
Se soubesse quanto já perdi somente em fiado ia se espantar. Aliás, a sua filha fez uma
ilegal.
conta lá no armazém e ainda não pagou. BARBEIRO
BARBEIRO
Agora o senhor me enrolou. Qual é o ponto de vista que vale?
Pode confiar que se ela não pagar, eu pago. Felizmente a greve que se espalhou
PROMOTOR Aí depende. Democracia é um regime muito bonito porém meio complicado. Na
por aí é a greve do amor, não é a greve da barba e do corte do cabelo. COMERCIANTE
prática, historicamente, o ponto de vista que prevalece é aquele que interessa ao Governo...
Sabe que essa greve está me deixando preocupado?
(A luz apaga e quando acende já é outro cliente que se encontra na cadeira.)
BARBEIRO
BARBEIRO
É? Mas por quê? O senhor não tem nada com ela.
Como vão os negócios?
COMERCIANTE
COMERCIANTE
Como não tenho? E as consequências dessa greve, se ela for em frente?
De mal a pior. A pindaíba do povo é grande.
BARBEIRO
BARBEIRO
Que consequências, “seu” Moreira?
Ainda mais agora com esse Imposto de trinta mil réis por mulher barriguda. É o
COMERCIANTE
fim do mundo. COMERCIANTE
Você é mesmo um tapado. Não vê que, se não nascer gente nova, a população vai acabar, porque os velhos vão morrendo e não tem outros pra ficar no lugar deles?
Bem feito, quando a gente se queixa dos impostos ninguém concorda.
BARBEIRO
BARBEIRO
Ora, isso ia demorar muito.
Espere ai, “seu” Moreira, o senhor é um comerciante riquíssimo, não tem o direito
COMERCIANTE
de reclamar.
O meu prejuízo não vai demorar não, começa daqui a nove meses. Cada criança
COMERCIANTE
que deixa de nascer é menos um pipo que eu vendo, menos mamadeira e uma porção de
É, mas se eu fosse pagar todos os impostos já tinha ido à falência.
latas de leite. Isso sem contar depois as fazendas para roupa, os sapatos...
BARBEIRO
BARBEIRO
Tinha nada, “seu” Moreira. Além dos seringais o senhor tem casas e mais casas no
Sabe que o senhor é um homem inteligente?! Muitíssimo mais inteligente do que
Rio de Janeiro. É ou não é?
o Promotor, que não entende patavina do cargo. Cá pra nós, em vez de me dizer se a greve
COMERCIANTE
é legal ou ilegal, ele consumiu o tempo todo querendo me provar que o Intendente é corno.
E as minhas despesas particulares? Você sabe quanto me sai por mês um filho
COMERCIANTE
estudando Medicina em Paris e uma filha se formando em balé e canto lírico na Itália? Sou
E você acreditou?
um sacrificado, meu amigo, um sacrificado.
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BARBEIRO
COMERCIANTE
Absolutamente. Defendi como pude a mulher do Intendente que, como o senhor
Você é mesmo ignorante. O primeiro dever de um governante é continuar
sabe, é uma mulher honrada.
governando, homem. O resto é potoca!
COMERCIANTE
BARBEIRO
Honradíssima. Estudou no mesmo Colégio de freira da minha mulher. Dizem que
O senhor tem toda a razão. Eu sempre digo que em todo este município a única
ela casou atrás da porta, com cinco meses de grávida, mas isso foi por culpa da própria
pessoa que entende à fundo de política é o senhor. Mas cá pra nós: não acha que se pelo
família.
menos uma vez ou outra a oposição ganhasse... BARBEIRO
COMERCIANTE
Vai ver que por causa disso é que o Intendente empinimou agora com a mulher
Você é comunista???
barriguda.
BARBEIRO
COMERCIANTE
Quem, eu? Que disparate!
Não, não, o intuito dele deve ser ganhar para o Governo a próxima eleição em
COMERCIANTE
Cametá.
Tome cuidado com essas ideias, hein?! Não se esqueça de que a liberdade atual do BARBEIRO
País é para inglês ver. Se o povo mijar fora do caco o Governo dá o aperto.
Não entendi. O que tem isso a ver com mulher grávida?
BARBEIRO
COMERCIANTE
De fato, “seu” Moreira, de fato. Graças a DEUS a época não é de apertura...
Que burrice a sua, homem. Então não sabe que eleição só se ganha com bastante
COMERCIANTE
dinheiro?
Vá se fiando, vá. O Partido “Mamanãomama” está cada vez mais se
BARBEIRO
enfraquecendo, e se as coisas não mudarem, anote isso, essa brincadeira de Democracia
E daí?
acaba indo por águas abaixo.
COMERCIANTE
BARBEIRO
Daí que ele tem de arrecadar mais imposto para gastar na marmelada eleitoral.
Será possível?
BARBEIRO
COMERCIANTE
Ah! Sim, bispei. O Intendente é contra mulher prenha mas é a favor de emprenhar
Ainda pergunta?! O que não é possível neste País, homem?!... (Levanta-se, com o
a urna...
término do corte de cabelo, e vai saindo.) COMERCIANTE
BARBEIRO
Essa qualidade de patriota ninguém pode negar a ele.
O senhor esqueceu de pagar, “seu” Moreira.
BARBEIRO
COMERCIANTE
O senhor falou PATRIOTA?...
A sua filha também esqueceu de pagar o armazém. Depois a gente acerta as
COMERCIANTE Como não? “O Brasil espera que casa um cumpra o seu dever”, não espera? E qual é o primeiro dever de um governante, seja Intendente ou lá o que for?
contas. (A luz apaga. Ao acender, outro cliente.) BARBEIRO Quem diria! Daqui a pouco temos que pagar imposto até para catar piolho. Todo
BARBEIRO
mundo está desgostoso. Imagine o senhor que até o “seu” Moreira, nosso maior capitalista,
Trabalhar em benefício do povo.
virou contra o Governo.
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TABELIÃO
com a sua competência. Eu sempre digo que nenhuma outra pessoa conhece a fundo os
Nessa eu não creio. O “seu” Moreira contra o Governo? Qual foi o mentiroso que
nossos problemas como o senhor.
lhe falou tamanho absurdo?
TABELIÃO
BARBEIRO
Bondade.
Ele mesmo. Mas, pelo amor de DEUS, não conte a ninguém senão estou frito.
BARBEIRO
TABELIÃO
Não é não, é justiça. Por esse motivo é que o senhor não pode deixar de colocar o
O “seu” Moreira voltou-se contra o Intendente???
seu jambu em qualquer tacacá que apareça. Por exemplo: quem melhor do que o senhor
BARBEIRO
para dar um parecer sobre o Imposto das Barrigas? É legal ou ilegal? O promotor não sabe.
Não é bem assim. Contra o Intendente ele não tem nada. Os dois continuam como
Mas também o Promotor, como ninguém ignora, é uma besta quadrada... (A luz se apaga.
grandes amigos, apenas o “seu” Moreira acha que é uma vergonha a mulher do Intendente
Ao acender, o último cliente.)
dormir com tudo quanto é homem em Belém e ele se fazer de inocente. O busilis é que por
BARBEIRO
causa de todos esses impostos, inclusive o das Barrigas, porém principalmente os outros, o
Não se zanga se eu lhe perguntar uma coisa?
“seu” Moreira chegou à conclusão de que é mais vantagem os comerciantes eleger os
POETA
candidatos da oposição. TABELIÃO
(Inteiramente sóbrio.) A esta altura da vida não me aborreço por mais nada, irmão. O que tu queres saber?
Mas não é possível!...
BARBEIRO
BARBEIRO
É verdade que o Delegado mandou lhe prender e lhe espancou?
O que não é possível neste País, meu caro?
POETA
TABELIÃO É uma incoerência da parte do “seu” Moreira.
É mentira. Pelo contrário, eu estava caído de embriaguês e ele somente evitou que eu dormisse ao relento.
BARBEIRO
BARBEIRO
Por favor, não espalhe: ele está disposto a financiar a campanha da oposição;
Esse Delegado é um cínico de marca maior. Imagine que o sonho dele é abrir aqui
garantiu que vai comprar votos com a finalidade de derrubar o Governo do Estado, a fim
uma zona do meretrício...
de poder atacar o Governo Federal, porque a democracia brasileira, na sua opinião, já está
POETA
tão forte que ninguém mais conseguirá implantar uma ditadura nesta nação.
Deixa de ser venenoso.
TABELIÃO
BARBEIRO
Morrendo e aprendendo...
Não acredita? Pois fique ciente de que, ontem, o salafrário autorizou a dona da
BARBEIRO E o senhor, o que acha? Cá pra nós. TABELIÃO
pensão a mandar buscar em Belém uma penca de prostitutas. Um escândalo. POETA Escândalo por quê? Não existe prostituição em toda parte? Não existiu sempre a
Eu só entendo de Cartório.
prostituição, desde que inventaram o dinheiro a fim de que os mais espertos enganassem os
BARBEIRO
mais tolos e os mais fortes explorassem os mais fracos?
Ora, o senhor é quem registra todos os documentos da cidade e por isso sabe de tudo. Além do que é um homem inteligentíssimo; nunca este município teve um Tabelião
BARBEIRO Desculpe, mas acho uma afronta às pessoas distintas da sociedade.
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POETA E a maioria dessas pessoas distintas da sociedade não são moralmente prostituídas? Não vendem a consciência, o que é muito pior do que alugar o corpo para sobreviver? BARBEIRO Não precisa se queimar, Poeta. Você quando está coçado é uma flor de sujeito, porém quando não bebe vira espinho... POETA Está bom, corta o cabelo e não chateia mais que hoje, de ressaca, não quero conversa fiada. Ando farto de tanta hipocrisia. Tu sabes o que é tédio? BARBEIRO Não. POETA Então não tens a menor condição de me compreender. (Pausa; o Barbeiro tem dificuldade de prosseguir seu trabalho sem tagarelar.) BARBEIRO Eu admiro você. Sempre digo que em todo este município ninguém conhece a mais fundo a sociedade do que você. É uma pena que não tenha se formado em Padre. Se tivesse a gente não estava agora tendo de suportar esse Vigário que, cá pra nós, é um grandíssissimo patife. Quem sabe se, um dia, você volta para a religião? POETA A poesia é a verdadeira religião, meu velho, a religião do amor universal, exatamente aquela que Cristo pregou. BARBEIRO Não vá querer me dizer que Jesus foi um poeta... POETA Como não foi? Tu já leste os Evangelhos? O sermão da montanha é um poema, o mais belo que alguém declamou em todos os tempos. BARBEIRO Mas os Evangelhos não são apenas o Sermão da Montanha. Tem outros Sermões. POETA Tem. Em todos eles a mesma beleza verbal ao lado da mesma mensagem de humanismo. (Com inflexão alterada, mas serena.) “Amai-vos uns aos outros, assim como vos amei...
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Olhai os lírios do campo; eles não semeiam nem tecem, entretanto eu vos digo: nem Salomão com toda sua realeza se vestiu como um deles... Não deis aos cães as coisas santas, nem atirai aos porcos as vossas pérolas... Os olhos são as candeias do corpo; se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz... Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça rói e o ferrugem consome...” BARBEIRO (Conclui o corte de cabelo um tanto sensibilizado.) Não precisa pagar, Poeta, é uma cortesia da casa. POETA Ainda bem, porque hoje estou sem um vintém no bolso.
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CENA 11 – O APELO PARA O CÉU
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Ânios Dei Tiráti Pecata Múndi... Saúde dos enfermos.
Sobre tosca mesa coberta com toalha branca vê-se a Coroa do Divino, uma coroa de latão com friso prateado, encimada por uma pomba representando o Espírito Santo. Junto uma bandeira vermelha tendo ao centro, recortada em pano igualmente branco, a mesma alegoria, isto é, a Pomba do Divino Espírito-Santo. Uma mulher idosa, a Tiradeira de Ladainha, dá retoques finais no ambiente iluminado por velas em profusão. As caboclas vão chegando; uma de cada vez se ajoelha ante a Coroa do Divino, segura-a com as duas mãos, beija-a, ajusta-a na cabeça cuidadosamente, depois repõe no lugar, levantando-se contrita de genuflexão e posicionando-se no recinto para a reza. Quando todas se encontram arrumadas tem início a ladainha, que tanto pode ser recitada como cantada. Começada a ladainha a cena se conserva muda por um breve tempo, observando-se unicamente a gesticulação dos participantes.
Refúgio dos Pecadores... (A critério da direção do espetáculo alguns trechos podem ser suprimidos para não tornar a cena cansativa, sempre empregando-se o recurso de sugerir corte da ação. Fundo musical, se for utilizado, deverá ser de flauta e rebeca.) TIRADEIRA DA LADAINHA Oh! Mãe Santíssima que concebeste sem pecado. CABOCLAS EM CORO Orai por nós. TIRADEIRA DE LADAINHA Em nome do Pai, do Filho e do Espírito-Santo. CABOCLAS EM CORO Amém.
TIRADEIRA DE LADAINHA Estela matutina... CABOCLAS EM CORO Orá pro Nóbis. Orá pro Nóbis. Orá pro Nóbis. Orá pro Nóbis. TIRADEIRA DE LADAINHA Virgo Veneranda... CABOCLAS EM CORO Orá pro Nóbis. (Repetem mais três vezes como anteriormente e, a partir de então, todas as diversas falas da tiradeira de ladainha que seguem suscitam a mesma resposta das caboclas em coro.) TIRADEIRA DE LADAINHA Virgo Prudentíssima... Estela de Davi... Torre de Marfim... Arca da Aliança... Porta do Céu...
TIRADEIRA DE LADAINHA Pronto, agora tenham confiança, não esmoreçam. UMA CABOCLA Madrinha, nós não suportemos mais a urucubaca dessa gleve. TIRADEIRA DA LADAINHA Não se desespere, minha filha. Eu aposto meu oratório inteiro por um crucifixo de madeira bichada como o Intendente, se não chegar de hoje para amanhã, manda um telgrama desfazendo o Imposto das Barrigas. OUTRA CABOCLA Será, cumadre? TIRADEIRA DE LADAINHA Pode escrever. OUTRA CABOCLA Tô vendo a situação ficá cada vez mais embuletada. OUTRA Nós estemos no mato sem cachorro. OUTRA Na pió caipora.
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CENA 12 – PROBLEMA CONJUGAL
OUTRA (Para a Tiradeira da Ladainha.) Dona Menina, a senhura que tem sabença de prufessura nos diga uma cuisa: se nós, a cabucada arreunida de Cametá, mandá um paper assinado pro Guvernador, ele não se apiada da nussa padecença e não faz esse Intendente
Casal de caboclos à mesa de refeição. Ela muito insinuante, ele extremamente desconfiado.
curubento dá um passo atrás? TIRADEIRA DE LADAINHA Minha filha, é mais fácil uma de vocês dar um passo em falso... UMA CABOCLA É, estemos num beco sem saída. OUTRA Só nos resta a Pomba do Divino Espírito-Santo!...
HOMEM (Depois de esvaziar o prato.) O que foi que tu butaste nesta supa de aviú? MULHER Sapequei um puquito de tucupi pro gusto ficá deferente. HOMEM E não é que fico mais gustoso do que bóia de rico? MULHER Muito ubrigado pelos elugius, eu não sô merecendente. HOMEM Escuta aqui, pequena, tu não mete prego sem estupa!... MULHER (Há uma pausa em que os dois se entreolham significativamente.) Pru que tu tá cheio de nove horas? HOMEM Tu é matreira que nem carará. MULHER O que te deu na caixola? HOMEM Tu tá querendo me butá a perdê, mas isso é puro iludimento teu. Eu não vô me escapá da gleve! MULHER Não te avexa, meu passarinho verde. (Acaricia a cabeça dele.) HOMEM (Afastando-se) Não vem com dengo que tu não me faz quebrá o juramento. MULHER E quem te disse que tô querendo chamego? HOMEM Tu tá me tentando sim.
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MULHER
MULHER
Cumo antão?
Tu prefere de huje pra frente passa à caribé? Eu não pusso deixá tu adoecê de
HOMEM
fraqueza, meu xerimbabo de estimação. Tu tem de cumpreendê isso, meu buto formuso.
Tu onte tava plantando um tamba-tajá.
(Aproximando-se de novo dele dengosamente.)
MULHER
HOMEM
E o que tem isso?
(Empurrando-a) Murde aqui que te dô trela!
HOMEM
MULHER
Tu huje parece que tumô banho de cheiro.
Puis de agura em diante eu quero que tu se lixe.
MULHER
HOMEM
Menas veldade. HOMEM Tu tá, sim, cheirando a cumaru e priprioca. Cunfessa, cabuca sapeca, tu tá querendo me fazê buliná em ti. MULHER Que pavulagem! HOMEM Magina que sô bubo? Eu te cunheço. MULHER Pela luz divina que esta-uma aqui não qué que tu bula com ela. HOMEM Puis sim, santinha do pau uco!... MULHER Deixa de sê gabola. HOMEM Antão pru que tu anda tuda cheia de quindim? MULHER Mas que mal agradecido! Tu devia era ficá cuntente por tê uma espusa cumo eu, que perdua tudas as traquinage e ainda cuida de fazê petisco pra tu não emagrecê. HOMEM É, mas aqueles uvos de tracajá que tu fez pra mim onte não foi com bua intenção...
Se calhá eu vô atraiçoá os meus cumpanheiros de gleve? Murro tísico e não farto com a minha prumessa. MULHER Pensa que me impurta? Axi! Porcaria...
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CENA 13 – A FARRA
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MULHER Ainda não tive tempo de conhecer a cidade. Você é um moreno simpático.
Pensão das prostitutas. Clientes amesendados, mulheres “fazemdo salão” bem e mal vestidas, casais dançando etc. Música de gafieira regional. Luz vermelha.
CABOCLO (Encabulado) Vucê, sim, é que é uma cunhantã de mais buniteza do que pluma de arara-piranga.
POETA
MULHER
(Meio embriagado, para a dona da Pensão.) Por favor, traga mais uma
Obrigada, benzinho.
gengibirra, dose dupla. DONA DA PENSÃO Pois não, mas escute aqui: hoje você vai pagar ou passar o calote? POETA O que é isso, minha tia?! Não confia mais no seu fiel amigo? Onde está a grandeza da sua alma generosa? DONA DA PENSÃO
CABOCLO Vai gustá de Cametá. O puvo daqui é curdeiro. Nós semos cabuco de pensamento cariduso. MULHER Quer dizer que vai me pagar bem?... Desculpe perguntar logo de cara, queridinho, mas você tem como me pagar bem? CABOCLO
Ah, meu uirapuru no choco, você fala muito lindo, eu adoro ouvir o seu
Mais ou menos, assim-assim, não quero me gabá pruque quem tem buca dura é
palavreado domingueiro, porém preciso é de angariar mais uns cobres. Estou endividada
charéu. Uma cuisa eu lhe afianço: o meu sítio não tem coivara e se vucê cuncurdá em tê
com as despesas destas meninas que mandei buscar em Belém. Só para o Delegado eu tive
um xodó cumigo, inquanto durá a gleve du amur, eu posso lhe presenteá um curdão de uro.
que dar um conto de réis de mole. E ainda molhei a mão do Cabo. POETA Até o Delegado já se corrompeu? Minha tia, a senhora é a única pessoa honesta nesta terra. DONA DA PENSÃO E o pior é que uma das meninas achou de engravidar. Lá se vai mais despesa... (Sai para apanhar mais bebida.)
OUTRA MULHER (Para uma colega que “faz salão”, ambas mal vestidas.) Estas serigaitas que chegaram da Capital vão tomar todos os nossos homens. COLEGA Vão tomar somente por uns dias, enquanto forem novidade. Tudo cansa, não liga que mais cedo do que tarde torna a chover no nosso roçado. MULHER
UM CLIENTE
Sabe de uma coisa? Eu tenho a impressão de que uma delas está toda engalicada.
(Para o companheiro da mesa.) Estas novatas são do arromba. Eu vou pegar
COLEGA
aquela ali. (Aponta) Olha só os peitos que ela tem. O OUTRO É um peixão. UM CABOCLO (Para uma das mulheres mais bem vestidas.) Está gustando de Cametá, essazinha?
Isto é que é péssimo. A freguesia diminui da noite para o dia quando algum homem se queixa de ter pegado esquentamento. UM CLIENTE (Para a dona da Pensão.) Mais um licor de genipapo. (Para o parceiro de mesa.) Estou estranhando te ver aqui. PARCEIRO Aderi, com armas e bagagens, à greve do amor.
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CLIENTE
POETA
Essa greve é uma piada, rapaz, somente a caboclada está levando a sério.
(A dona da pensão chega com a bebida, ele sorve um trago.) Já que exigem...
PARCEIRO Pode ser, isso não me interessa muito. O que eu desejo mesmo é sair da coleira de marido. São quase dez anos de casado...
preferem algo alegre ou romântico? OUTROS Qualquer coisa! Alegre! Romântico! O que quiser!
UMA MULHER
POETA
(Para uma colega, designando outra que se encontra distanciada, todas três
(Erguendo-se) Então tapem os ouvidos que lá vai bomba. (Canta uma canção
vestidas pobremente.) Repara aquela tipa, como é enxerida. COLEGA Parece que tem o rei na barriga. MULHER
dolente, que tanto pode ser um tango argentino como uma modinha brasileira.) TODOS (Aplaudindo no fim da interpretação.) Muito bem! Maravilhoso! Você é grande! Bis! Mais uma!
O que ela tem na barriga é o baita dum filho.
POETA
COLEGA
Não, chega. (Bebe o resto da cachaça.) Vamos é balançar os esqueletos. (A
De novo? Esta uma pare que nem preá.
música para dança retorna e os pares se espalham euforicamente pela sala; nota-se que o
MULHER
poeta conversa mais do que dança com a sua dama, a qual pela roupa pobre, identifica-se
Dessa vez não vai parir não, vai abortar.
como uma das prostitutas veteranas da pensão; à medida em que conversa ele vai
COLEGA
mudando de postura, sobretudo de expressão facial até ficar transfigurado.)
Fazendo aborto pelo menos ela economiza os trinta mil réis do Imposto das Barrigas. (Toca uma música mais envolvente e a maioria sai para dançar. Encerrado o
UM CASAL (Interrompendo a dança e trocando observações relativamente ao Poeta.) O que
número musical, sentam.)
há com ele? É um ataque...
POETA
POETA
(Para a dona da Pensão.) Minha tia, doce tia, traz outra dose reforçada que estou
(Solta um grito singular, misto de dor e fúria.) Parem!!! Parem que há um
começando a chegar em ponto de bala. Agora, uma cachaça pura de Abaeté. Meio copo! UM CLIENTE
prenúncio de tragédia enlutando a festa!!! (Todos se apartam e recuam espantados, ao meso tempo em que cessa a música.)
(Em voz alta.) Poeta, diz uns versos aí para melhorar o ambiente.
UM CLIENTE
OUTROS
O que deu nele?
É sim. Diz! Vamos lá! Diz logo! Despeja o verbo!
UMA MULHER
POETA O que é isso, gente. O ambiente não é de poesia, é de melodia.
(Bem vestida.) Nós ainda nem bem chegamos na cidade e já damos de cara com um maluco...
UM CLIENTE
DONA DA PENSÃO
Então canta.
(Para ela.) Psiu!... Se cale que ele não é doido varrido não; às vezes tem uns
OUTROS Canta! Canta! Não te faz de rogado! Canta!
delírios mas quando isso acontece só diz coisas que vale a pena a gente ouvir.
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OUTRA MULHER (Mal vestida, com ar de censura para aquela que chamou o Poeta de maluco.)
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Mandando que sobre ela atirasse a primeira pedra aquele que estivesse sem pecado...
Você não conhece ele. É o único freguês que nos trata com todo respeito, tanto aqui como
Esta mulher
na rua e em qualquer lugar.
Em quem a natureza opera o milagre da fecundação
OUTRA
Acaba de me dizer que vai abortar
É o único que nos beija na boca!...
Para não passar fome durante a gravidez.
POETA
A mão assassina que arrancará de seu ventre a promessa de vida
Silêncio!!! (Todos sentam e se encolhem; o Poeta fica no centro da cena junto à mulher com a qual dançava; a luz, não mais vermelha e sim azul, desce em foco apenas sobre os dois.) Senhores e Senhoras, escutai. VOZ MASCULINA Aqui ninguém é Senhora!... VOZ FEMININA Para ele é muito mais do que isto! POETA Escutai como eu escuto a cólera divina. Cametá, Cametá... Que matas os profetas da liberdade E apedrejas os que te são enviados por DEUS... Quantas vezes eu quis juntar os teus filhos e filhas nesta casa Para ensinar a lição eterna do amor físico e espiritual E tu me desprezaste! Eu te deploro, Cametá... Pela blasfêmia do teu sórdido puritanismo. Eu amaldiçoo a tua moral calhorda. E lanço anátema sobre a tua justiça cretina Ai de ti, adúltera da fraternidade! Devias, nesta hora sagrada pela minha indignação, Estar toda aqui, inteira e nua, neste local santificado pela fantasia Para testemunhar em lágrimas de vergonha O drama desta mulher... (Põe a mão na cabeça da prostituta a seu lado, como se a abençoasse.) Esta mulher A quem Cristo perdoaria novamente em praça pública
É sustentada pelo braço de tua hipocrisia e impiedade, Cametá – símbolo de todas as cidades preconceituosas... (Desliza ternamente a destra pela barriga da mulher.) A humanidade perderá mais um novo ser que já palpita, ansiando pela luz do sol . O intendente perderá mais trinta mil réis de imposto. E eu perderei mais um pouco do quase nada que me resta de esperança na humanidade... (Leva as mãos à testa, curva-se lentamente e cai.)
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CENA 14 – O APELO PARA O INFERNO
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OUTRA Vamos e venhamos: nós estemos dispustas a fazê o Intendente ficá taliqual a
Cerimônia de feitiçaria realizada ao pé de uma grande árvore, no meio do mato, à noite. Em ação ao Catimbozeiro e numerosas caboclas. Sobre um fogareiro aceso, crepitante, uma enorme panela de barro. Luz negra. Efeitos sonoros sugerindo a solidão da floresta (assovios, estrídulos, roncos de animais etc.) a princípio; depois clima de assombração. Enquanto o oficiante da cerimônia cuida dos preparativos, abalando o fogo
Madalena arrependida mas, porém, mesmo assim nós não devia se metê nessa enrascada de feitiço, com um sujeitinho ordinário que ninguém conhece. OUTRA Nós nem sabe se ele é Catimbozeiro de veldade, ou se tá nos passando a perna. De fato, nós não devia se metê nessa enrascada.
em ritual mudo e misterioso, as caboclas, de cócoras, parlamentam muito, temerosas do
OUTRA
que possa acontecer.
Não devia uma pinoia! Se nós não se apegá com tudo o que for Catimbozeiro e seus caruanas, o filho da mãe do Intendente não entrega os pontos.
UMA CABOCLA Eu tô com um medo danado, sumana.
OUTRA Eu tô aqui na fiúza de que essa arrumação vai sê um santo remédio pra fazê o
OUTRA
Intendente caí cumo jaca madura no arrependimento; porém não tô intentando a disgraça
E eu? Tô tremendo que nem vara verde.
cumpleta dele não. DEUS me perdue.
OUTRA
OUTRA
Nós pudia tê incumendando isso nutro lugá, não precisava se embrenhá nesses
Eu quero que ele se dane. Se praga matasse!...
cafundós, onde o diabo perdeu o cachimbo. OUTRA Por falá nisso, eu acho que esse Catimbozeiro tá nos enganando. Nós não devia tê
VELHA (Apaga o cachimbo e se aproxima.) Calem a buca. Não truxe vaçuncês aqui pra relambórios. Puça! Cumo são faladeiras. Se uma é linguaruda, a utra diz arreda.
ido atrás do lero-lero daquela jararaca... (Aponta para uma velha que se mantém um pouco
UMA CABOCLA
afastada do grupo, fumando cachimbo.)
Não carece passá carão que não levo desafuro pra casa.
OUTRA
VELHA
E se nesse breu aparecê de repente um guariba ou uma visagem?...
Também, pudera! Não é mais que uma anarfabeta.
OUTRA
CABOCLA
Vôte! Desconjuro.
Velha caróca, nariz de taboca!
OUTRA
OUTRA
Não contem mais cumigo pra uma tramoia desta. Quero murrê de guta serena se
(Sussurando) Esta velha vira matinta-perera.
me meto nutra. Quem de uma escapa, cem anos vive. Eras!...
OUTRA
OUTRA
Se acarmem, gente. Manerem. Pru que se enfezá agura?
A gente pudia tê feito uma mandinga quarqué pra a derribá o impusto das barriga
OUTRA
sem arredá o pé de casa e se intocá neste matagal medonho.
Grandes cuisas! OUTRA Dá uma banana pra ela.
501
502
OUTRA
OUTRA
Vamos mudá de assunto?!
Eu truxe as patas de aranha caranguejeira, pra ele ficá todinho encarangado se
OUTRA Mudá de assunto cuisa nenhuma, não te intrumete, quando um burro fala o utro murcha as orelha.
tumá trinta miréis de nós, pobres cuitadas que semos. OUTRA Fulhas de jurubeba, pra ele ficá ardido.
OUTRA
OUTRA
(A que propôs mudança de assunto.) Eu também tenho o direito de vendê meu
Rabo de arraia, pra ele não pudê se sentá.
peixe.
OUTRA DUAS CABOCLAS
Suvaco de mucura, pra ficá fedorento.
(Em diálogo à parte.) Maninha, inquanto elas discutemme diz uma cuisa: ainda
OUTRA
não te passo pela telha que o teu espuso tá caindo na gandaia?
Baba de jibóia, pra ficá enjuado de tudo.
– Ando com a purga atrás da urelha.
OUTRA
– Buta o cavalo em cima que tu pega.
Dente de preguiça, pra ficá com mufineza.
– Vô abri o ulho...
OUTRA
(A esta altura o Catimbozeiro moviementa-se como se estivesse ultimando os preparativos.)
Furmigas tucandeiras, pra ficá com o curpo cheio de ferruadas. CATIMBOZEIRO
UMA CABOCLA
(Depois de consultar o papel.) Muito bem, mas está faltando o principal...
Ele já vai coisá?
VELHA
VELHA
É cumigo. (Cospe para o lado, faz o sinal da cruz com a mão direita e com a
Paresque.
esquerda uma figa, levanta espalhafatosamente a saia, pega entre as pernas o seu
CATIMBOZEIRO
embrulho e o atira na panela.) Taí o que fartava: uma pimba dura de macaco prego pro
Ninguém esqueceu nada? (As caboclas se agitam retirando de baixo da blusa
sacrista do Intendente perdê a sustança de home e nunca mais levantá a piroca pra fazê
pequenos embrulhos.) VELHA O pessoá truxe tudinho. CATIMBOZEIRO Antes que o Curupira pule na sapopema desta samaumeira, vamos trabalhar. Cada uma põe aqui na panela de barro o que tiver trazido, e diz bem alto o que foi. Vou conferir pela lista. (Tira um papel do bolso; as caboclas fazem fila na direção do fogareiro e, uma por uma, depositam na panela o conteúdo dos embrulhos.) UMA CABOCLA Taqui a pele de cobra, pro Intendente tê um cobreiro se não quisé por fim no impusto das barriga.
filho em muié nenhuma!...
503
CENA 15 – PROBLEMA CONJUGAL
504
MULHER Mas tu já se serviu de mim um tempão, malagradecido.
Casal de caboclos na saleta da sua barraca.
HOMEM Deixa de sê faroleira.
MULHER Ulha aqui, seu urubu-malandro, quando tu casô cumigo eu já tinha dado com os burro nágua...
MULHER Tu qué sabê duma coisa? Tô a pique de arrumá home no barranco. Pensa que me arreceio? Já fui da rede rasgada!
HOMEM
HOMEM
O que tu qué dizê com isso?
O que tu é, desavergunhada, eu sei.
MULHER
MULHER
Não te faz de esquerdo. A mim ninguém toma por truxa!
Ainda bem.
HOMEM
HOMEM
Pela luz eu me alumia, muié, fala logo o que tu tem de falá.
O que tu qué é ganhá o que Maria ganhô na capoeira.
MULHER
MULHER
Falo mesmo, e de frente, não sô pau de dois bico. Esta gleve tem de acabá, senão mais dia menos dia a casa cai.
Vai te fiando, vai. Daqui a puco é tarde, Inês é morta. Sô muito muié pra te butá um par de chifre.
HOMEM
HOMEM
Vucês tão fazendo desavença sem a menó necessidade.
Faz isso que tu vai vê a cóssa que te dô.
MULHER
MULHER
Vigie! Cumo antão sem a menó necessidade? Vucês querem que a gente fique o
Duvida? Dô um duce se não te curneá.
tempo todo pirangando a custela de vucês e vucês fazendo gato e sapato da gente com
HOMEM
desprezo. É escruteá demais!
Tu não vê, anta fugosa, que não tenho eira nem beira pra pagá trinta miréis se tu
HOMEM
imprenhá?
Cala a buca, muié.
MULHER
MULHER
E quem disse que uma cabuca ladina cumo eu vai pegá filho?
Calo uma droga. Nunca tive papa na língua.
HOMEM
HOMEM
De quarqué maneira eu não pusso abandonar a gleve.
Fecha esta latrina.
MULHER
MULHER
Puis eu vô caçá uma perna de calça por aí. Ura se vô.
Puis vai esperando que eu me acachape, vai... pensa que sô da tua igualha?
HOMEM
HOMEM
O que tu qué é sê uma rapariga de ralé.
Não, não é, tu é uma imprestáver.
MULHER Pruque tu não tem a menó consciença, tá me furçando a fazê besteira. Homenzinho chué!...
505
506
CENA 16 – O SONHO REVELADO
ANJO Os que muito amam tudo merecem! POETA
O poeta caminha aos tombos pela tua, amparado pela mulher da Pensão com a
Eu sou um pecador impenitente... esqueci a vocação religiosa para levar uma vida
qual realizou sua última cena.
dissoluta, com farras e mulheres... MULHER
ANJO
Onde é a sua casa?
Santo Agostinho também levou, até que foi despertado pela nossa voz!
POETA
POETA
Está perto, irmanzinha, pode voltar.
Não costumo pagar dívidas e já cometi outras desonestidades... aliás, bem
MULHER
brasileiras...
Levo você até lá.
ANJO
POETA
São Jorge, Padroeiro da Inglaterra, foi um contrabandista de toucinho!
Não é necessário, moro logo ali. Boa noite.
POETA
MULHER
Você é anjo mesmo???
Não quer mais mesmo a minha ajuda?
ANJO
POETA
Claro, Poeta, o que é que há? Eu vim visitá-lo na certeza de me comunicar com
Obrigado, vá embora. (Beija-a nos lábios.) DEUS faça de você a criatura mais feliz do mundo.
um sujeito esclarecido e agora você me vem com uma crise de misticismo?! Que pieguice é esta?
MULHER
POETA
Que os Anjos digam amém! (Sai)
É que não estou entendendo a visita...
POETA
ANJO
Anjos... (Cambaleia; leva as mãos à testa outra vez, o corpo dobra-se
Então vou explicá-la e justificá-la. Vejamos: em primeiro lugar ela se explica
vagarosamente e se estende no chão; breve pausa; de repente explodem trovões e
porque você tem a sorte de acreditar mais na imaginação do que no raciocínio; em segundo
relâmpagos; ele se põe em pé com dificuldade; os trovões e relâmpagos se multiplicam
lugar ela se justifica porque você foi realmente digno da gratidão celeste – da
com maior intensidade; e também mais se desenha em sua fisionomia os traços de
ADMIRAÇÃO, digamos, GRATIDÃO talvez seja um pouco de exagero – quando
alucinação; um Anjo surge do alto, envolto em nuvem; ouve-se cânticos de Aleluia na
protestou contra aquele aborto! POETA
mágica atmosfera que domina a cena, logicamente preparada com os melhores recursos
Quer dizer que no paraíso tudo o que a gente faz aqui na Terra é mesmo
técnicos da carpintaria teatral.) ANJO
conhecido!...
Salve o Poeta, imolado na cruz da sua humana paixão! O senhor é contigo!
ANJO
POETA
Mais ou menos. De tudo-tudo só o criador sabe. Nós, os Anjos, ignoramos certas
(Em êxtase.) Mas... mas... eu não mereço esta graça...
coisas. Felizmente. Eu, por exemplo, tomei conhecimento do seu caso ouvindo uma conversa do João Batista. Ele ficou satisfeitíssimo com as palavras que você pronunciou na Pensão!
507
508
POETA
POETA
São João Batista se interessa pessoalmente por mim?
Perdido...sem orientação...
ANJO
ANJO
Por que não? POETA
Você não precisa ser orientado. Como Poeta já está no Caminho, na Verdade e na Vida.
Se interessa pelas outras pessoas existentes em Cametá?...
POETA
ANJO
Por favor, peça a DEUS que me perdoe...
É evidente. Desde o ano de 1635, quando foi feito Padroeiro deste município,
ANJO
cuida de todos vocês, em sentido individual e coletivo. Foi o João Batista que trouxe o
De quê?!
Padre Antônio Vieira até aqui e o inspirou a escrever aquelas célebres cartas à Corte!
POETA
POETA
De tudo... dos meus versos...
Foi também ele que inspirou o Padre Prudêncio a lutar contra a invasão dos
ANJO
Cabanos?... ANJO Ah! Não me fale nisso, O Padre Prudêncio pegou seis meses de Purgatório por ter derrotado os Cabanos quando eles tentaram ocupar a sua cidade.
Eles são bons, simples e úteis como a água e o pão. Você escreve com sentimento e espontaneidade. POETA O meu vício da bebida...
POETA
ANJO
DEUS então era a favor da cabanagem?...
Quanto a isto o que necessita não é o perdão divino, é remédio para o fígado!
ANJO
POETA
DEUS, nós não sabemos, porque em sua suprema sabedoria Ele jamais dá opinião
A minha convivência com prostitutas...
sobre problemas políticos. Mas Jesus, que vocês chamam de Cristo e confundem com o
ANJO
próprio CRIADOR, Jesus, que tem ideias socialistas e toma sempre o partido dos pobres e
(Entre surpreso e compassivo.) Engraçado: nós, os Anjos, que somos assexuados,
dos oprimidos, realmente torceu pela Cabanagem, embora desaprovando as atrocidades de
nunca conseguimos compreender porque vocês, os habitantes deste planeta, desvalorizam a
alguns cabanos. Tanto assim que auxiliou Dom Romualdo Coelho a evitar o incêndio de
doutrina da solidariedade ensinada por Jesus e colocaram a virtude entre as pernas!!!
Belém.
(Desaparece suavemente, ao som de harpa.) POETA Mas que revelação!... ANJO Já transmiti a mensagem, agora vou regressar. A paz sem acomodação seja
contigo! POETA Espere... não vá ainda... não me largue assim... ANJO Assim como?!
509
CENA 17 – A DECISÃO POLÍTICA
510
OUTRA Aquele Intendente, se for esprimido num tipiti depuis de pingá o sumo da
Caboclos e caboclas em um terreiro fazendo putirum (reunião de muitos para
mardade sumente resta bagaço.
trabalho gratuito em benefício de um vizinho). Alguns descascam mandioca, outros ralam,
UM HOMEM
mexem farinha em tachos de metal ou carregam jamaxis (cestos), cantarolando.
Pra essa cuisa de enfrentá o Intendente ainda tô sem sabê se me arrisco. UMA MULHER
UM HOMEM
Se quisé, seu molongó, eu lhe empresto a minha saia!... (Durante o decorrer desta
Eita! Rucinha graúda. Tem de um-tudo, além de mandioca. Inté jirimum.
ação um Caboclo se conserva isolado, em postura de concentrada meditação. Notando
OUTRO
isso um outro dirige-se até ele e trava-se então , à parte, o seguinte diálogo):
Vô vê a farinhada no furno.
INQUIRIDOR
OUTRO
Cumpadre, vucê não diz nada?
Mês que vem o putirum é pra alevantá o meu tijupá, vaçuncês todos tão
MEDITADOR
cunvidados.
Tô maginando...
OUTRO
INQUIRIDOR
Cuidado quando ralá a macaxêra.
Fica aí de buca pregada, cumo quem cumeu abiu.
UMA MULHER
MEDITADOR
Cuidado quando ralá a macaxêra.
Tô maginando o que é mais mió nos fazê com o Intendente..
OUTRA
INQUIRIDOR
Eu perciso ainda amassá o açaí.
E o que vucê acha?
UM HOMEM
MEDITADOR
O Intendente vortá atrás? Só se for dia de São-Nunca!...
Tô maginando...
OUTRO
INQUIRIDOR
Nós tem é de fazê um escarcéu.
Diacho! É só o que vucê sabe dizê? Magina purém fala arguma cuisa.
OUTRO
MEDITADOR
De minha parte quero vê a unça bebê água.
Em buca fechada não entra musca...
OUTRO
INQUIRIDOR
Eu ainda não sei se vô me amisturá com vaçuncês no causo de fazerem um
Vucê tá é com medo que se pela! (A ação retorna para o grupo.)
fundunço.
UM HOMEM
OUTRO
Antão tá cumbinado, nós vai peitá o Intendente.
Nem eu.
OUTRO
UMA MULHER
Se ele nos disfeiteá que atitude nós toma?
(Aludindo aos dois últimos homens que falaram, ostensivo desprezo.) Se um é
OUTRO
fruxo, o utro diz arreda.
Faz um cumício do arromba.
511
OUTRO E se ele mandá o Delegado nos meter no xilindró?
512
(Pausa. Expectativa angustiosa das mulheres. Os caboclos vacilam. Então, o “Meditador” fala imperativamente.)
UMA MULHER
MEDITADOR
Deixe de sê marica, seu tio bimba!
Já maginei. Nós capa o Intendente!
OUTRA
TODOS
Se tá de tremedeira puxe já daqui! UM HOMEM Nós tem de tê no juízo o que nós vai fazê se o Intendente disse que não abre mão do impusto. UMA MULHER Ara-ara, se calhá ele é capaz de nos dispachá sem mais aquela?! HOMEM Tudo é possíver. O que nós faz se ele não arretirá o impusto? MULHER Não se avexe. Nós, os rabo de saia, não arreda o pé de lá. OUTRA MULHER É, sim, nós fica atucanando ele. OUTRO HOMEM Se precisá nós faz o maió estrupício. MULHER (Para o homem que acabou de falar, cheio de pose.) Deixa de lambança que tu é um palerma!... UM HOMEM (Em voz alta, de cara fechada.) Vamos arresorver a questão. Todo mundo aqui. (Os outros se aproximam, inclusive o “Meditador” que no entanto ainda se destaca dos demais; as mulheres se aglomeram por trás, ansiosas.) Nós vai ou não vai enfrentá o Intendente??? TODOS Vai. (Alguns não falam com suficiente firmeza; as mulheres vibram de contentamento.) HOMEM Antão agura vem o mais impurtante: o que a gente faz com o Intendente se ele continuá nos azucrinando pra não ingravidá nussas muié? Hein? O que agente faz com o intendente, pessoá???
(Aos gritos.) Muito bem! É isso mesmo! Acertou! Vamos capá o coirão! Capá! Cortá inté o saco dele. Capá! Capá! Capá! Capá!
513
CENA 18 – O FIM DA ESTÓRIA
514
UM CABOCLO Antão nunca existiu impusto nenhum???
Mesmo local da Cena 1, em frente de uma modesta residência. O ambiente,
VELHA-FUXIQUEIRA
todavia, antes festivo, transformou-se em “praça de guerra”. Os caboclos e caboclas
Pode acreditá, nunca existiu impusto argum, tudo foi mentira, artimanha pulítica
estão furiosos, armados de facas, terçados e tesouras. Até duas prostitutas aparecem,
pra inredá o Intendente com o puvo de Cametá. Ele não vai cubra nadainha por muié
empunhando navalhas. Depois de prolongado bate-boca, abafado por um som de hino
barriguda.
marcial que vem de dentro da casa, o Poeta discursa em tom candente.
(Todos se fitam matutamente, desestruturados com a inesperada informação. O clima emocional beira o tragicômico pela nítida divisão do grupo: enquanto os homens
POETA
mostram frustração diante do imprevisto, as mulheres não escondem o íntimo
Meus irmãos e minhas irmãs:
contentamento.)
Eu não vos aconselhei a tomar esta decisão, mas já que vão adotá-la por conta própria, e já que me suplicaram apoio, contem comigo. (Palmas)
OUTRO CABOCLO (Para a Velha-Fuxiqueira.) Dona coisinha, arrepita o que a senhura disse. VELHA-FUXIQUEIRA
Capar o Intendente, esse ditador que vos prejudica no mais sagrado dos vossos
Juro por tudo que é mais sagrado: nunca existiu o impusto das barriga. Foi um
direitos, aliás dos vossos deveres, o de fazer filho, é uma medida de certa forma oportuna e
sujeitinho de Belém quem invento o buato, eu espalhei na fiúza de alaertar vucês, sem sabê
justa.
que tinha pegado o bonde errado. Oportuna porque ele chegou hoje de volta a este desditoso município, depois de
UMA CABOCLA
mais uma viagem custeada pelos cofres públicos para puxa-saquismo das autoridades que
Qué dizê que nós?...
lhe deram o emprego. E justa porque talvez ele mereça mesmo ser castrado, pois
VELHA-FUXIQUEIRA
indiretamente castrou a todos vocês que não podem pagar o Imposto das Barrigas.
Vucês podem butá curumim no mundo à vuntade, suas espivitadas, que não carece
(Novos aplausos.)
pagá nada pro Intendente. Podem ingravidá inté o demônio dizê basta, se é que a pimba
Quem sabe se, com esta providência, vocês não estarão redimindo a História de
dos home de vocês não murchô de vez cumo minhoca.
Cametá, reparando o erro de termos lutado, no século passado, contra os revolucionários cabanos e começando em boa hora uma outra Cabanagem?! TODOS
(As caboclas largam as armas e, descontraídas, vão trocar ideias afastadas dos caboclos. Estes, também querendo depor as armas mas acanhados perante as duas prostitutas e o Poeta, dirigem-se ao mesmo.)
Viva a cabanagem!!!
UM CABOCLO
POETA
E agura, “seu” Pueta?...
Eu só peço uma coisa: pelo amor de Deus, depois de aplicarem a lição no
OUTRO
Intendente, não capem mais ninguém!... (Neste instante chega, desconfiada, a Velha-Fuxiqueira do início da peça e
O que nós faz?... ou nós não faz?... OUTRO
cochicha algo no ouvido de uma cabocla. Reproduz-se o mesmo jogo da cena introdutória
Essa foi bua e foi ruim...
e a novidade circula primeiro por cada uma das caboclas, antes de chegar aos caboclos.
OUTRO
Quando tal acontece, um deles fala.)
Nós não sabe o que pensá...
515
516
OUTRO Nem o que dizê... OUTRO Estemos embatucado... POETA Eu sei o que se passa, ninguém precisa se explicar. O que acontece é que, no fundo, vocês sentem que não deviam sentir o que estão sentindo. UM CABOCLO Êpa! Agura mesmo é que fico tudo cumplicado. OUTRO É isso... nós estemos sentindo que devia dá uma bua pisa no Intendente, mas porém nós não pode pruque ele não fez o que disseram... nós tá alegre e tá triste... POETA Eu entendo. (Sorri com bondade.) Fiquem na paz de DEUS. A paz sem acomodação!... (Enlaça as duas prostitutas e afetuosamente abraçado com elas, uma de csda lado, sai.) (As caboclas se reaproximam com trejeitos maliciosos e zombateiros.) UM CABOCLO (Erguendo o terçado e falando para todas elas.) Viram cumo, se fusse perciso, nós tinha tutano pra fazê uma Cabanagem? Nós semos é macho!!! UMA CABOCLA (Respondendo pelas outras.) Puis antão vamos simbora pra vucês pruvarem que são homem sem rupa, que nós não guenta mais a esticada. VELHA-FUXIQUEIRA Não se avuem ainda não, cambada de senvergonhas. Vamos festejá. (Grita para dentro da modesta residência em cuja frente se encontram.) Liguem a vitrola, gente de fé, e vamos arrastá o pé inquanto não baixa a maré... Toca o “Samba do Cacete”, ritmo consagrado pelos cametaenses. Todos dançam.
FIM
PAI ANTONIO
517
518
519
520
Esta peça, apesar de ter sido publicada em 1989 pela Editora CEJUP, depois de ser premiada em concurso de dramaturgia fora do Brasil, nunca foi encenada até o lançamento deste livro.
PERSONAGENS Pai Antonio Estátua homem Estátua mulher Escravo acorrentado Escravo amarrado Escravos no tronco Escravos soltos Feitor Juiz Promotor Advogado de defesa Frade Figurantes: escrivão, soldados etc. Elementos adicionais: Coro masculino Coro feminino Voz da Senhora República Uma voz metálica, impessoal.
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CENÁRIO Espaço vertical do palco dividido em dois planos distintos. Ambos se demoram sem qualquer iluminação depois que o pano sobe. Quando a plateia começa a revelar sinais de impaciência ouve-se uma voz metálica, impessoal. VOZ Calma, calma, calma. É cedo para vos sentirdes incomodados, pois a representação ainda nem teve início... Sabei logo o seguinte: a peça que ireis assistir é diferente, não se encaixa no modelo de teatro convencional, aliás tem uma ação dramática “esquizoflâmica”, isto é, esquizofrênica inflamada. Melhor dizendo: uma ação dramática incoerente e contraditória, ora densa, ora rarefeita, sempre pontilhada de quebras e curvas, nunca linear, por motivos brechtianos, confessadamente panfletários. Ostentando um caráter documental tão minucioso quanto crÍtico, com sabor jornalístico-livresco, não devia talvez ser encenada por que o palco, diz-se e pensa-se, não é o lugar para literatura. Mas o que se há de fazer se a arte cênica, como todas as outras, esta permanentemente renascendo para novas formas??? Bem, chega de explicação, prestai atenção. (No plano superior do palco é projetada, sobre uma tela, a imagem nº 1, já conhecida. Ouve-se a mesma voz.) VOZ Belém do Pará, ano de 1984. Amazônia, Brasil. A praça mais importante da cidade. Na sua área central, o símbolo. Ei-lo em muda eloquência, urge decifrá-lo. Obra de arte imponente, de vinte metros de altura, em bronze e mármore de carrara, inalgurada em 1897. De autoria do escultor genovês Michele Sansebastiano. Se é obra de arte tem um significado qualquer, convém desvendá-lo com a imaginação. Um tanto mais por que se trata de um MONUMENTO À REPÚBLICA. Olhai. Vede como é belo e como fala. Aquela mulher na parte de cima, cheia de augusta nobreza, representa a nossa república. Na mão, uma espada... Aquele homem embaixo, apesar de possuir asas e dominar o leão, precisa empunhar uma bandeira e ajoelhar-se... Esses artistas são mesmo terríveis... Contemplemos o monumento por trás da Praça da República, tão famosa para os belenenses. (Na tela é projetada a imagem nº2.)
523
Aí está. Esquecei as crianças, de um lado e outro. Outra mulher, de asas, não ao nível da senhora República, que aliás se conserva de costas para ela, e sim ao nível do
524
A negritude rebentou as entranhas da caverna e já começa a sombrear o rosto claro da planície.
homem... Observai com especial interesse a dignidade desta mulher. Em vez de uma
Silêncio...
espada, ou uma bandeira, os dois peitos de fora... Notai como demonstra sabedoria:
O instante é sumamente sério embora talvez o sério não faça mais sentido.
primeiro assentou-se sobre uma pilha de livros que merecem o desprezo dos olhos, e só
Silêncio...
depois considerou um para o qual aponta... Vamos examiná-lo. Pela lógica é a HISTÓRIA DO PARÁ. Obra muito conceituada, escrita por
A negritude subiu o talo da flor, esta pousando em suas pétalas e se evolará para o bico dos pássaros.
Ernesto Cruz. Esta aberta às páginas 461 e 462. Leiamos: “o último enforcamento de que
Silêncio...
há notícias nos anais judiciários da província, data de 1851. Em fevereiro desse ano, foi
A menor vibração poderá ser fatal. Contudo não vos apavoreis, senhores fidalgos
supliciado na cidade de Santarém, o escravo conhecido por Pai Antônio, acusado de haver
da Casa Imperial moderna.
assassinado o feitor, que azorragara, apesar das suas súplicas e doenças. Pai Antônio viera
O pastor da madrugada não vos cobrará moedas de arrependimento ou remorso
da África num dos muitos navios negreiros que faziam o infame comércio com a província.
cobrará apenas uma lágrima seca de vergonha pois só estamos arranhando levemente o
Muito embora fosse velho sexagenário, trabalhava desde que o sol raiava até o anoitecer.
ventre inviolado da história.
Um dia alegou doença. O feitor respondeu-lhe com uma chicotada. E como o negro não se
Entre Zumbi e Luther King:
levantasse, zurziu-o implacavelmente. Deu-se, então, o crime. Pai Antônio foi condenado à
Pai Antônio!
morte. Na forca erguida na praça de Imperatriz, entre as ruas de Santa Cruz e Mercadores,
A senzala.
terminou os seus dias. Com as formalidades costumeiras”.
A velhice.
(A imagem esmaece. O foco de luz é lançado para o plano inferior do palco.
A doença.
Aparece, em destaque, na lateral esquerda, o Coro Masculino, constituído por negros
A impossibilidade.
vestindo apenas meia-calça esfarrapada.)
O castigo.
CORO MASCULINO (declamando).
A reação.
Entre Zumbi e Luther King:
A forca.
Pai Antônio!
E uma verdade que ainda não foi contada nem cantada.
Deixai-nos capturar a semente da tragédia no húmus amazônico.
(O jato de luz transporta-se para o outro lado do plano inferior do palco, onde
Onde, em cada lua, ela é replantada para novos frutos do ontem...
aparece em relevo o Coro Feminino, integrado por mulheres negras também vestindo
Entre Zumbi e Luther King:
somente meia-saia esfarrapada.)
Pai Antônio!
CORO FEMININO
Sem metáfora.
A pele.
Sem saravá.
A cor.
Sem samba.
A pele.
Por que ponta de faca não reza nem dança.
Curtida na dor.
Senhores fidalgos da Casa Imperial moderna: silêncio!
Vertida em amor.
A hora é grave, estamos mexendo com a memória.
É emblema. Salgada ao relento.
525
526
Queimada no vento.
Pai Antônio, um negro envelhecido de aspecto enfermo mas porte solene,
É pasto, não poema.
encontra-se sentado em um toco de árvore tendo ao redor outros negros. Chega uma escrava adolescente.)
Anjos de alvas plumas
ESCRAVA
Ruminando
(Para o Pai Antônio.) Avô, vamos dormir, já é tarde. O seu chá esfriou. (Encosta
O arco-íris. Por que, oh estrelas do céu. A identidade-solidão? Por que, oh profetas da terra A milenar segregação?
a destra na testa dele.) A febre continua. PAI ANTÔNIO Filha, não te vexa por minha causa, não é doença que mata negro no cativeiro, é maltrato e desgosto... ESCRAVA Vou fazer um caribé. tem que beber todinho, ouviu? (Sai)
Os porros de todos os corpos humanos
UM ESCRAVO
se abrem e se fecham
(Bastante jovem.) Conte o resto Pai Antônio, conte logo.
em sístoles semelhantes.
OUTRO
Todos respiram o mesmo oxigênio
(Idem) É, conte que nós temos que saber, Pai Antônio.
sustentando e nutrindo moléculas iguais.
OUTRO
O barro é um só
(Meia idade.) Na fazenda onde eu me criei ninguém nunca falou disso.
na estrutura dos esqueletos
OUTRO
absolutamente indiferenciados.
(Uns cinquenta anos.) Ouvi dizer que tudo foi invenção... OUTRO
Então por quê?
Aconteceu sim.
Onde está o bisturi da inteligência
OUTRO
Que não corta a placenta do
Será?
horizonte
PAI ANTÔNIO
para o nascer da aurora tardia?
Foi filho, pode acreditar. Escutei do meu pai, que escutou do pai dele. Faz um tempão, porém aconteceu, juro por está luz que me alumia. Aconteceu e não deve ser
Senhores Fidalgos da Casa Imperial moderna: Tudo o que tem começo tem fim!
esquecido, vocês têm de botar tudo o que eu disse na cabeça dos filhos que tiverem. OUTRO ESCRAVO E por que não chamavam Palmares de Aruanda?
(Extingue-se o foco de luz sobre o Coro. Cena mergulhada em treva, fundo
PAI ANTÔNIO
musical de instrumentos de corda e atabaques. Ao centro do mesmo plano inferior do
Não sei, filho. Só sei que Palmares era um reino, um reino do negro, o reino da
palco brota, do chão, chamas crepitantes de uma fogueira; com o gradativo aumento do
liberdade. No quilombo principal, a Cerca Real do Macaco, o Ganga Zumba morava em
fogo vão aparecendo perfis de escravos na senzala.
um palácio, tinha Ministros, guardas e tudo o que tem qualquer rei poderoso.
527
528
UM ESCRAVO
avançando, uma multidão de brancos matando, matando, matando, e avançando para
Era muita gente que vivia lá?
prender Zumbi... e o rei Zumbi recuando, recuando, mas queimando bala em cima dos
PAI ANTÔNIO
brancos malditos... E os brancos morrendo, morrendo na frente do Zumbi, com os olhos
Uma verdadeira cidade, mais de mil casas somente na Cerca Real do Macaco. E
arregalados de espanto... E a terra toda molhada com sangue do negro e do branco... E os
os outros mocambos da vizinhança, que obedeciam as ordens do Ganga Zumba? Tinha um
demônios chegando mais perto, mais perto, pra pegar Zumbi e fazer o nosso rei virar
montão deles, sempre crescendo por que os negros não paravam de fugir para lá, filho. Era
escravo... e Zumbi se afastando, se afastando, e furando de bala a barriga dos brancos...
negro fugindo de todo lugar e capitão-de-mato bufando de raiva sem conseguir agarrar nosso povo fugido. UM ESCRAVO Palmares custou a se acabar, Pai Antônio?
(Some a luz, paulatinamente, escurecendo a cena com o fundo musical; quando este cessa, ouve-se a voz metálica, impessoal.) VOZ Se o chamavam de PAI, e não apenas de Antônio, “seu” Antônio, “mestre”
PAI ANTÔNIO
Antônio ou “tio” Antônio, é porque alguma liderança ele tinha independente de inspirar
Durou quase cem anos, filho, eu não disse que era um reino? Um reino não se
respeito pela idade.
acaba cedo. Os brancos bem que combatiam Palmares sem dó nem piedade, porém os
Sejamos fieis à História, embora raramente ela seja fiel aos fatos; a do Pará,
negros, unidos, eram mais fortes. Ponham isso no coração dos filhos de vocês: os negros,
escrita por Ernesto Cruz, tudo o que diz sobre o assunto já foi reproduzido no fundamental.
unidos podem vencer a maldade dos brancos.
Nada mais informa relativamente à personalidade de Pai Antônio. Compreende-se. Foi um
UM ESCRAVO Unidos...
negro enforcado, não um colonizador estrangeiro... Todavia, prestai ainda um pouco de atenção: nós pesquisamos o tema e podemos
PAI ANTÔNIO
vos fornecer relevantes esclarecimentos em torno do mesmo. Como artista, manejando
Os brancos atacavam de vez em quando, querendo incendiar tudo, mas os negros
uma tecnologia inacessível ao entendimento vulgar, por prazer e por dever filmamos lances
não deixavam. Negro que é negro não desanima na fé da liberdade
paranormais da existência das estátuas que ornamentam a Praça da República, em Belém
UM ESCRAVO
do Pará. Desculpem esta providência que a época justifica: quando os lábios humanos
(Moço) E como acabou o reino de palmares, Pai Antônio?
calam as verdades mínimas, resta o diálogo das pedras...
PAI ANTÔNIO
(O plano superior do palco é palidamente iluminado. Vê-se dentro de uma grande
Ah, filho, um dia se juntou tanto branco cheio de arma, tanto branco atirando que
moldura equivalente à tela, uma singular mulher de asas, peitos de fora, sentada em uma
os negros não puderam escapar da desgraça. Mais de cinco mil brancos com espingardas,
pilha de livros, tendo sobre os joelhos um aberto para o qual aponta. percebe-se que tal
um exército inteiro. Cercaram Palmares e invadiram matando mulheres e crianças. Uma
mulher, apesar de permanecer rigorosamente imóvel, é uma pessoa viva; guarda, porém, a
crueldade.
maior semelhança possível com a imagem da fotografia, assim como os detalhes da cena
ESCRAVO (O mesmo.) Foi triste. PAI ANTÔNIO
em que pese a falta de crianças, árvores e edifícios ao fundo.) A luz apaga. Escuta-se, distante, o hino de homenagem à Proclamação da República. A seguir
É... e também foi bonito... os negros morreram lutando, não fugindo... Lutando
explodem relâmpagos que terminam fixando intensa luminosidade verde no plano
peito a peito... Lutando cara a cara... Vendo o sangue do branco escorrer do lado do sangue
superior. A mulher ainda se conserva inerte. Aproxima-se, desnorteado e vagaroso, vindo
do negro... Zumbi já era rei, tinha destronado o Ganga Zumba... Zumbi comandava... Os
do lado de trás, um homem de asas (o mais parecido possível com a imagem da fotografia,
brancos destruindo Palmares e Zumbi largando fogo neles... Os brancos avançando,
segurando a bandeira).
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HOMEM-ESTÁTUA
VOZ FEMININA
Onde estão as crianças, onde estão?... Sei que as crianças foram embora, já não
Ah! Que tédio, que tédio! Tudo sempre igual, sempre igual. A mesma rotina, a
sinto o perfume da inocência... (Deparando a mulher.) Alô irmã, pelo menos você ficou...
mesma paisagem. Nada muda neste país. Nos últimos anos nem sequer mudam as
Há quanto tempo não nos vemos!...
aparências!...
MULHER-ESTÁTUA
HOMEM-ESTÁTUA
Quase um século de separação desde que nos fabricaram. Aliás, desde que nos esculpiram...
(Olha para cima.) É a senhora República. Vou para o meu lugar antes que me veja aqui.
HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
Quando nos tiraram dos caixotes nesta praça julguei que iam nos colocar juntos
Bobagem, ela nunca se dá o trabalho de ver os que estão embaixo. Quanto a isso,
por causa das asas. Infelizmente puseram-me no outro lado para subjugar o leão. MULHER-ESTÁTUA
pode ficar em paz. O que temos a fazer é falar com certo cuidado, por que falar muito alto realmente é um perigo.
(Assustada) E cadê o leão, deixou fugir?
HOMEM-ESTÁTUA
HOMEM-ESTÁTUA
Já que não deseja me presentear uns livros desses por que não me empresta?
(Impassível) Deixei. O Governo Federal estava precisando dele como garoto-
MULHER-ESTÁTUA
propaganda do Imposto de Renda. MULHER-ESTÁTUA
(Exibindo o livro aberto para o qual apontava quando imóvel.) Desde que não seja este, empresto. E desde de que depois não me culpe.
(Tranquilizada) Ainda não cansou de carregar a bandeira? Poderia rasgá-la e me
HOMEM-ESTÁTUA
dar os retalhos de presente para eu cobrir os peitos; assim ela se tornaria útil...
E por que não me empresta este?
HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
Bandeiras não são feitas para isso. E por que a preocupação com os seios de fora
Porque preciso consultá-lo a cada minuto.
se não é um ser humano?
HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
E por que só consulta este?
Tem razão. É engraçado como essa tolice de pudor atinge até as mulheres de
MULHER-ESTÁTUA
bronze...
Porque ele além de conter verdades, não contem mentiras nem devaneios. HOMEM-ESTÁTUA
HOMEM-ESTÁTUA
Você é que deveria me dar de presente alguns livros desses, para me fazer
E por que é tão diferente?
descobrir o mundo e a vida. O único livro lá da frente tem as páginas em branco.
MULHER-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
Porque se compõe de trechos esparsos de outros livros, jornais e publicações
A maioria dos livros é assim mesmo, não diz nada sobre coisa nenhuma...
diversas. Por exemplo: nestas duas páginas consta um recorte da História do Pará que
A luz estremece com novos relâmpagos. Ouve-se uma voz nitidamente feminina,
existe nas bibliotecas, referente ao Pai Antônio. Mas a verdade está incompleta e
algo retumbante.
distorcida. Nas páginas seguintes novos recortes colocam o fato no seu devido lugar. E o pior é que tais recortes suplementares não existem em nenhuma biblioteca pública de Belém.
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HOMEM-ESTÁTUA
José Coelho da Gama Abreu, Barão do Marajó”, oferece um detalhe altamente sugestivo
Santo Deus! Como este povo pode viver com tantos monumentos sem
ao afirmar, quando relata a origem da tragédia, precisamente isto: “Entre os escravos havia
memória?!... (Larga a bandeira.)
um velho africano, maior de 60 anos, conhecido por Pai Antônio. Este infeliz foi, numa
A luz apaga. Durante o black-out volta a voz metálica, impessoal.
madrugada, despertado pelo raivoso feitor, a chicotadas, multiplicando este as
VOZ
vergastadas...”
Perdoai novamente, senhores e senhoras, esta cansativa e desconfortável
Eis aí o apontamento que vale por uma revelação! Será crível que o raivoso feitor
escuridão, contrária aos princípios técnicos da arte cênica. Ela é necessária por dois
tenha resolvido abandonar o seu bom sono da madrugada a fim de chicotear Pai Antônio,
motivos: um é que não se pode compreender a negritude sem conviver sensorialmente com
simplesmente porque ele no dia anterior não pudera trabalhar, doente???
ela; outro é que o bloqueio da visão física favorece o raciocínio, sempre mais límpido, e mais honesto, sem os enganosos estímulos e condicionamentos ambientais.
Ora, senhores cronistas do passado, tenham um mínimo de consideração pela inteligência alheia!
Daqui a pouco pararemos com este exercício desagradável. Não duvideis que cumpriremos esta promessa. Vede bem, se é que estais preparado para tanto, como são as coisas. No trecho da
(A luz acende no plano inferior. Escravos em atividade no campo, cortando cana. Acionam os terçados em ritmo cadenciado. Um, ainda jovem, maneja a ferramenta sem a necessária habilidade.)
História do Pará já lido figuram exatamente estas palavras:
PAI ANTÔNIO
“Um dia alegou doença. O feitor respondeu-lhe com uma chicotada. E como o
(Dirige-se ao escravo jovem.) O que é, filho?
negro não se levantasse, zurziu-o implacavelmente. Deu-se, então, o crime. Pai Antônio foi
ESCRAVO JOVEM
condenado à morte.” Como fonte da informação o autor cita o artigo intitulado “Uma Execução Capital”, de João Victor G. Campos, inserido no volume II, páginas 39 a 41, da
Eu sempre me ocupei da colheita do cacau, Pai Antônio; não tenho prática de cortar cana e este terçado enferrujou todo, nem adianta amolar.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Não existindo o referido volume em
PAI ANTÔNIO
nenhuma das bibliotecas públicas em Belém, incluindo-se entre elas, por mais incrível que
Fica com o meu. (Troca o seu terçado pelo do rapaz.) Trabalha mais depressa,
pareça, a do mencionado Instituto, foi com grande sacrifício, e aliás por mero acaso ou
filho, senão o feitor te mete chibata.
sorte, que localizamos, em uma estante particular, o Fascículo n° 1, correspondente ao ano
ESCRAVO JOVEM
de 1917, da revista em apreço, onde, efetivamente, às páginas 39 a 41, encontra-se o artigo
E o senhor?
“Uma Execução Capital”, de João Victor G. Campos, do qual tiramos cópia xerox para
PAI ANTÔNIO
garantir a defesa, em prova documental, da seguinte tese: Pai Antônio não se comportou covardemente ao ser espancado pelo feitor, nem foi espancado por ser um velho enfermo que não podia trabalhar. Outra razão houve para o
Eu tenho a desculpa da doença. E depois de apanhar tanto, filho, aprendi a me defender de um jeito que mais tarde vou te ensinar... (Sai de cena, alquebrado pela fadiga.)
brutal castigo a ele imposto, provavelmente a de favorecer a fuga de escravos, muito
OUTRO ESCRAVO
comum na época em toda Província, máxime em Santarém onde vivia, pela proximidade
(Para o companheiro do lado.) Este trabalho é uma danação, com o feitor atrás da
dos numerosos e heróicos quilombos do Rio Trombetas. O artigo de onde o autor da história do Pará pinçou, descuidadamente, os dados que nos transmite, afora estampar esclarecimentos adicionais até hoje desprezados, anunciando que Pai Antônio serviu-se, para liquidar o feitor, “de uma ponta de terçado ferrugento”, que a ocorrência deu-se no “sítio Cacaual-grande, então pertencente ao sr. dr.
gente exigindo mais do que se pode fazer. COMPANHEIRO E tu sabe que se a produção for pequena o nosso lombo padece. Vamos apressar.
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ESCRAVO
OUTRO
Nós ainda tem saúde. E o Pai Antônio? Coitado, foi uma ruindade retirarem ele da
Perverso por natureza. Tu não viste como o miserável se ria na hora em que o
plantação de café.
Macário começou a implorar compaixão?
COMPANHEIRO
OUTRO
É, foi uma malvadeza.
Alguém precisa rebentar com ele.
ESCRAVO
OUTRO
O feitor quer ele aqui para ser vigiado.
Neste sítio não há ninguém com tanta braveza.
COMPANHEIRO
OUTRO
Eu sei.
Nunca se sabe...
ESCRAVO Tu ainda não desconfiou de nada?
(Aparece um negro jovem com pesada corrente em volta do corpo, da cabeça aos pés, locomovendo-se com extrema dificuldade.)
COMPANHEIRO
UM ESCRAVO
Escutei um zum-zum-zum. Será?...
(Pressuroso, para com o acorrentado.) Alguma novidade???
ESCRAVO
ACORRENTADO
Não sei não, mas parece...
Cadê o Pai Antônio?
OUTRO ESCRAVO
OUTRO ESCRAVO
(Em um grupo à parte.) A febre do Pai Antônio não passou.
Vou chamar, o que tu queres?
OUTRO
ACORRENTADO
E se for febre amarela?
Vai logo. (O outro sai.)
OUTRO
UM ESCRAVO
Dizem que ela vem chegando em Santarém.
O que houve?
OUTRO
ACORRENTADO
E dizem que quando a febre amarela acerta um não tem escapatória.
O feitor não demora a chegar.
OUTRO
OUTRO ESCRAVO
Pior do que bexiga.
Desta vez não pega nenhum de nós preguiçando no trabalho.
OUTRO
OUTRO
Se o Pai Antônio morrer, quem vai nos aconselhar?
(Para o acorrentado.) Como está a coisa?...
OUTRO
OUTRO
Ele é o nosso único arrimo...
(Idem) Diz logo, como está a coisa?...
OUTRO
ACORRENTADO
O feitor, ultimamente, vive farejando o rastro do Pai Antônio.
Vai indo... vai indo...
OUTRO
OUTRO ESCRAVO
Esse feitor é uma peste.
É melhor a gente conversar à noite, na senzala. Vamos dar um chega no serviço, pessoal, senão o feitor lasca a peia no nosso couro.
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(Retomam a tarefa. O negro acorrentado senta no chão e tira do bolso um
ACORRENTADO
embrulho.)
Não me chateia mais que não tenho gosto de suportar negro burro.
ACORRENTADO
ESCRAVO
Enquanto vocês se esbandalham no serviço enriquecendo o Barão eu vou é comer
Burro é tu, desatinado. Vê se o meu corpo está cheio de ferro como o teu.
a minha ração, que não sou besta...
ACORRENTADO
UM ESCRAVO (De idade avançada, embora menos idoso que o Pai Antônio.) Tu não tem mesmo
É o que te vale. Porque se não fosse isso eu me levantava agorinha e sapecava a mão na tua cara.
juízo.
ESCRAVO ACORRENTADO
Na minha?
E adianta ter?...
ACORRENTADO
ESCRAVO
Na tua e na cara do qualquer um da tua igualha.
Adianta, sim.
ESCRAVO
ACORRENTADO
Coitado de ti.
Adianta nada.
ACORRENTADO
ESCRAVO
Não tem mais conversa.
Com juízo se lucra mais.
ESCRAVO
ACORRENTADO
Pensa que não sei que andas servindo de moleque pro Pai Antônio?
Lucra o quê?
ACORRENTADO
ESCRAVO
Tu é um bestalhão.
Pelo menos não se leva pancada do feitor.
ESCRAVO
ACORRENTADO Tu é um leso.
Pensa que não sei que vocês estão desencabeçando os outros pra escapulir daqui no fim de semana?
ESCRAVO
ACORRENTADO
Mas não me meto em enrascada.
Já disse que não tem mais conversa.
ACORRENTADO
ESCRAVO
Não se mete por que é um frouxo. ESCRAVO
Era bom ter, porque vocês arrumam a confusão e depois nós padece sem entrar nela.
Nem ponho ninguém a perder.
ACORRENTADO
ACORRENTADO
Quem manda serem lambaios?! Vocês podiam se arribar com agente.
Chega de presepada, vai te coçar.
ESCRAVO
ESCRAVO
Tu não enxerga mesmo um palmo diante da venta. Essa tramóia toda é uma
Olha, no dia que tu nasceu eu já era homem feito, o que aprendi até hoje posso ensinar; garanto...
doidide, o Pai Antônio está cavando ruina de vocês. Abram o olho enquanto é tempo. ACORRENTADO Não me chateia mais, já pedi, senão acabo perdendo a paciência.
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ESCRAVO
PAI ANTÔNIO
Mal agradecido.
(Para o acorrentado, com visível preocupação.) Filho, o que é que te deu na
ACORRENTADO
cabeça? Teu lugar não é este.
Vai logo trabalhar pra encher a pança do Barão. E quando o feitor chegar lambe a
ACORRENTADO
sola do pé fedorento dele.
Tinha de falar com o senhor.
ESCRAVO
PAI ANTÔNIO
Eu devia era desmascarar o Pai Antônio.
E não podia esperar um pouquinho, até anoitecer?
ACORRENTADO
ACORRENTADO
Faz isso e nós te esfola vivo.
Não, não podia.
ESCRAVO
PAI ANTÔNIO
Ele é o culpado de tudo.
Mesmo?
ACORRENTADO
ACORRENTADO
Tu tem uma inveja danada do Pai Antônio, não é?
Temos um perigo pela frente.
ESCRAVO
PAI ANTÔNIO
Eu?
Alguma coisa saiu errada?
ACORRENTADO
ACORRENTADO
Tem. Tem inveja porque nós só respeita ele e não liga pra ti. No Pai Antônio nós
Não imagina?...
confia, ele não é da tua laia.
PAI ANTÔNIO
ESCRAVO
(Sugerindo contato reservado.) Vamos ali.
Um dia vão se arrepender e me dar razão... Um dia vão ver que eu mostrei o
ACORRENTADO
caminho certo, que eu sempre aconselhei pro bem...
Coma este resto do jabá comigo.
ACORRENTADO
PAI ANTÔNIO
E tu acha que na tua leseira que o nosso bem é não fazer nada pra ser livre? ESCRAVO
A febre me arrancou a fome da barriga, filho; me arrancou a força do braço; só não arrancou a vontade de ajudar vocês...
Pensa direito, afoito, pensa direito. Pior do que ser cativo é se aventurar a ser morto no meio do mato, pelas espingardas ou pelas cobras. Aqui todo mundo está
Apaga a luz clara no plano inferior e acende a verde no plano superior (a luz do plano superior será de cor verde carregada, sempre, até a cena final.
protegido, e aqueles que se esforçam no trabalho podem até pedir a benção do Barão que
MULHER-ESTÁTUA
ele abençoa.
Agora que você jogou fora a bandeira, adquiriu condição de ler este livro da
ACORRENTADO
verdade completa sem mentiras e devaneios. O problema é que eu não devo me apartar
Tu sempre quis manobrar a gente, eu sei, mas te desilude porque o nosso guia é só
dele.
o Pai Antônio. Nós sente é nojo de irmão como tu, que vive se babando pra agradar o
HOMEM-ESTÁTUA
Senhor. Nem parece que tu saiu do bucho de uma escrava, negro ordinário!
Podemos então ler juntos.
(Pai Antônio entra com o escravo que o foi buscar.)
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MULHER-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
Ótima ideia. Encoste. (Ele tenta encostar nela, porém as asas não deixam; olham-
Experimente fechar os olhos. (Ele obedece, ela o imita; um sorriso tímido se
se significativamente.) HOMEM-ESTÁTUA
esboça pela primeira vez nas duas faces.) A luz apaga. Ouve-se uma melodia de amor. Quando a luz retorna ambos de
Se vamos agir como seres humanos, para que as asas?...
acham deitados, ternamente, sobre os livros antes empilhados, tendo como travesseiros as
MULHER-ESTÁTUA
asas quebradas.
Cuidado. A bandeira você largou mas, arrependendo-se, torna a segurá-la ou se agarra em uma outra. As asas, não. Depois de se livrar delas, nunca mais será capaz de recuperá-las... HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA Agora, sim, estamos preparados para partilhar o conteúdo do livro da verdade. (Pega-o) Veja, leia comigo, este capítulo todo trata de uma escravidão algo semelhante a nossa, porque a escravidão das correntes tem muito a ver com a escravidão das asas.
Elas estão começando a me atrapalhar. as suas não?
HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
É para ler em silêncio ou em voz baixa?
As minhas também. Ainda não me livrei delas por ser impossível fazer isso
MULHER-ESTÁTUA
sozinha... veja como não dá jeito (Busca, sem êxito, despregar as asas das costas.) HOMEM-ESTÁTUA Eu liberto você. MULHER-ESTÁTUA Só aceito se igualmente se libertar das suas asas. Seria uma loucura ficarmos diferentes um do outro. (Ele hesita.) HOMEM-ESTÁTUA Não é fácil tomar esta decisão... MULHER-ESTÁTUA Realmente não é. Lembre-se, contudo, de que um dia, cedo ou tarde, até as estátuas serão obrigadas a tomar uma decisão definitiva para conquistar a liberdade plena.
Este capítulo é para ler gritando, a fim de despertar as estátuas de carne desta terra e de outras... (Levantam e, abraçados, fazem a leitura intercaladamente.) HOMEM-ESTÁTUA Extratos do livro O NEGRO DO PARÁ, de Vicente Salles. Colação Amazônica Série José Veríssimo. Editado em 1971 pela Fundação Getúlio Vargas em convênio com a Universidade Federal do Pará. Pagina 41: “Numerosos mocambos havia entre o Pará e o Maranhão e as autoridades paraenses se esmeravam na captura dos negros”. MULHER-ESTÁTUA – Página 52: “A imprensa de Belém, ainda em meados do século passado, espelhava a situação da lavoura, reclamando a falta de braços... As consequências da Cabanagem ainda
HOMEM-ESTÁTUA
perduravam, por volta de 1850, havendo muitos mocambos e carestia de vida em virtude
O que não consigo esquecer é que não temos o direito de ser humanos porque nos
da baixa produção agrícola.”
cabe permanecer como guardiães daquela dama lá de cima. MULHER-ESTÁTUA Não se preocupe com a Senhora República. Pense em mim que posso auxiliá-lo
HOMEM-ESTÁTUA – Página 220: “Aos mocambos dessa região se refere o presidente Jerônimo Francisco Coelho no relatório que apresentou à Assembleia Legislativa da Província do Pará no dia 15 de Junho
porque estou no mesmo plano.
de 1848: “De outros pontos da província tenho recebido semelhantes representações a
HOMEM-ESTÁTUA
respeito de escravos fugidos, que vivem nos quilombos ou mocambos, donde fazem
É tão difícil de pensar...
sortidas para cometerem roubo, e furtos, e aliciarem a outros a fugirem. Isso principalmente tem acontecido nos distritos de Santarém e Turiaçu”.
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MULHER-ESTÁTUA – Página 233:
A estrela do teu sonho ainda brilha
“Com o correr do tempo, o quilombo do Trombetas, localizado nas proximidades
A luta não foi em vão
de Óbidos, contava mais de duas mil almas entre negros e mestiços; e, guardadas as
Pois um dia os negros reconstruirão
devidas proporções, tornou-se tão celebrado, na Amazônia, quanto o de Palmares, no
A Cidade Maravilha!
nordeste. Em 1822 ou 1823, o tenente Francisco Rodrigues Vieira, por antonomásia Cativo, investiu contra Trombetas, destroçando-o, e prendendo Atanásio; este, mais tarde,
Atanásio, Atanásio
conseguiu fugir e tornou a erguer novo quilombo. E o Trombetas renasceu”.
As cachoeiras do rio trombetas
HOMEM-ESTÁTUA – Página 234:
Na solidão da floresta
“Por ocasião da Cabanagem, esses negros se colocaram ao lado dos revoltosos,
Como no céu os cometas
auxiliando-os. A Revolução de 1835 foi extraordinariamente propícia aos mocambeiros.
Ainda choram em festa
Os negros, aproveitando-se da morte ou fuga dos senhores, reorganizaram-se e fundaram
A tua saudade!
acima da décima-quinta cachoeira, denominada esta de Caspacura, uma povoação por eles mesmo denominada “Cidade maravilha”.
Atanásio, Atanásio
MULHER-ESTÁTUA – Página 235:
A estrela do teu sonho ainda brilha
“....o problema dos mocambos do Trombetas só teve solução com o Decreto
E é sagrado o seu clarão
Imperial de 13 de Maio de 1888...” HOMEM-ESTÁTUA – Página 236:
Para os negros que um dia seguirão A mesma trilha!
“Escreve José Alípio Goulart: “De tal forma celebrizou-se o mocambo do Trombetas que os proprietários de escravos viviam sobressaltados.”
Atanásio, Atanásio
MULHER-ESTÁTUA– Página 238:
Da cozinha dos ricos
“As aldeias dispersas, estrategicamente localizadas, não só dificultavam o acesso
Um dia sairemos
das tropas do governo, como facilitavam o rápido deslocamento da população
No pátio da fábricas
quilombola...
Um dia gritaremos
Os negros compreenderam que uma forte nucleação, o estabelecimento de uma
E de mãos dadas
verdadeira cidade, não teria condições de resistir às investidas dos inimigos, como
Guiados pela estrela do teu sonho
aconteceu nos Palmares...
Caminharemos!
A história guardou apenas o nome de um chefe, o cafuz Anatásio”. HOMEM-ESTÁTUA – Página 269:
Atanásio, Atanásio
“No baixo-Amazonas surgiram outras lideranças negras, tal como o preto Belisário,
De quilombo em quilombo
que comandou uma força de trezentos rebeldes, em maioria negros e que se apresentava
Passo a passo, tombo a tombo
como libertador da raça”.
Abriste a vereda
Luz e ação transferidas para a lateral esquerda do plano inferior.
Fugindo do algoz.
CORO MASCULINO
Ainda que sejas
Atanásio, Anatásio
De sangue cafuzo
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Onde quer que estejas
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ao comandante militar da vila
Espera por nós! (Luz e ação na outra lateral do plano inferior).
rebelou-se valentemente; o negro Félix
CORO FEMININO
brotado no quilombo de Caxiú
Belisário, Belisário
bravo no apoio à Cabanagem;
Preto retinto na pele e na fé Na fé do exemplo sem missa e sem templo!
a negra Maria Felipa Aranha sublime em sua paixão
Belisário, Belisário
Rainha-Chefa do mocambo de Alcobaça
Preto retinto na pele e na fé
no lendário Tocantins;
As contas do teu rosário Lagrimejadas da maré
o negro José Sapateiro
Fizeram o heroísmo
amigo ladino
Ser mais que o batismo
sedutor de irmãos para a fuga
Virando a galé! Belisário, Belisário
o negro José Marques
Preto retinto na pele e na fé
preso em seu sítio Ribeira
As hóstias do teu sacrário
como acoutador de escravos,
Amassadas com o trigo da Guiné Transformaram a heresia
e outros negros
Em sol de novo dia
aguerridos
Com o negro de pé!
mortos e morridos sem
Belisário, Belisário
vintém
Preto retinto na pele e na fé
nem
Na fé da justiça pisando na graça
amém
Na fé de ser livre em nome da raça!
porém
(Luz e ação simultânea nas duas laterais do plano inferior. Fundo musical.
jamais esquecidos.
Todos os elementos dos coros masculino e feminino recitam e uníssono.) TODOS
Nunca perderemos tal memória
Além de Atanásio e Belisário,
Pode o tempo passar!
o negro Cirilo que no rio Moju
Um dia faremos a História
em uma fazenda pertence
Custe o que custar!
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fala na gíria para dar impressão de que é totalmente diferente da sua rival, a Dona Nisso temos nossa glória Nossa vida, nosso amar!
Monarquia. VOZ FEMININA (Sempre tonitroante.) Basta de subversão da ordem!!!
Senhores Fidalgos da Casa Imperial Paraense
MULHER-ESTÁTUA Eu não disse que era ela?!
E senhores Príncipes das múltiplas Castas
HOMEM-ESTÁTUA
sociais brasileiras:
O que agente faz? MULHER-ESTÁTUA
Sabei que cedo ou tarde
Talvez seja preferível não fazer... HOMEM-ESTÁTUA
O vento sopra as cinzas de
Como assim?
Todas as fogueiras
MULHER-ESTÁTUA
E o fogo arde. (Volta a ação para o plano superior.)
Se o livro da verdade não me enganou, estamos em uma situação delicada, dentro da qual convém agirmos de cabeça fria, sem precipitação. HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA – Página 130, que nós pulamos; leia berrando, mas berrando mesmo, com toda a energia dos seus pulmões. HOMEM-ESTÁTUA (Cumprindo a determinação, entusiasmado.) “Os senhores de escravos do Pará ficaram famosos, na crônica da escravidão, pelo rigor com que castigavam e maltratavam os escravos... para os negros das províncias do sul não havia ameaça mais eficaz do que a de serem vendidos para o Pará”. VOZ FEMININA TROVEJANTE
E daí? MULHER-ESTÁTUA Vamos raciocinar, meu anjo desasado, temos diversas alternativas. Uma é reassumir nossas antigas posições e permanecer imóveis, fingindo ausência de vida. Outra é fazer justamente o contrário e derrubar lá de cima a Senhora República. HOMEM-ESTÁTUA Como podemos derrubá-la se não temos força, sequer, para balançar a coluna de cimento que a sustenta? É cimento armado...
Que bagunça é essa ai embaixo???
MULHER-ESTÁTUA
HOMEM-ESTÁTUA
Se conseguirmos despertar as estátuas de carne teremos força para tudo.
(Apavorado.) Será a Senhora República?
HOMEM-ESTÁTUA
MULHER-ESTÁTUA
E o que acontecerá se a Senhora República cair? Quem irá substituí-la?
Sim, é. Não tenha a menor dúvida.
MULHER-ESTÁTUA
HOMEM-ESTÁTUA
Bem, sejamos realistas. No momento não dispomos de recursos para prever quem
Como sabe com tanta certeza?
tomaria o lugar da Senhora República: se a jovem Democracia Socialista ou a velha
MULHER-ESTÁTUA
Ditadura Militar...
Pelo tipo de linguagem, pelo vocabulário “bagunça”. A Senhora República é distintíssima, fina, polida, aristocrática, porém adora parecer popular. De vez em quando
HOMEM-ESTÁTUA Que dilema!
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MULHER-ESTÁTUA
social. E ficou demonstrado e está cada dia mais visível através desse estudos, que a
Há uma terceira opção, o meio-termo: nem agressão, nem sujeição. Nem
escravidão no Brasil foi tão brutal e desumana como em qualquer parte do mundo.”
liquidamos a Senhora República, nem consentimos que ela liquide conosco, mantendo-nos inanimados na inércia e silêncio. HOMEM-ESTÁTUA
Outro recorte é um breve trecho do volume O TIGRE DA ABOLIÇÃO, de Osvaldo Orico, publicado em 1953, pela Gráfica Olímpica Editora, do Rio de Janeiro. Diz isto:
(Exultante) Parabéns, você resolveu a questão, é maravilhoso raciocinar. Eis a
“Ainda em 1840, segundo o depoimento de Ferdinando Denis, eram bárbaros os
solução ideal: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Afinal, tudo o que desejamos é
castigos infligidos nas roças e fazendas, por ordem do feitor. O escravo era atado a um
realizar o nosso destino, e se já não somos apenas estátuas, também ainda não somos seres
mourão, ou, sendo no meio do campo, amarrado do modo mais singular e cruel ao mesmo
humanos.
tempo: um pau curto, passado entre as pernas, e ao qual se atavam ligadura, entregava o
MULHER-ESTÁTUA É isto. HOMEM-ESTÁTUA
paciente ao algoz.” A ação retorna para o plano inferior. Um grupo de negros está aprisionado. Três no tronco, um afastado dos demais,
E a leitura?
especialmente amarrado (Conforme desenhos já conhecidos, de autoria de Debret,
MULHER-ESTÁTUA
existentes na Secção de Microfilme da Biblioteca Nacional).
Vamos continuar. Com as devidas precauções, é claro.
PAI ANTÔNIO
HOMEM-ESTÁTUA
(Entra furtivamente e sussurra para os escravos no tronco.) Filhos, logo mais o
(Vira uma folha do livro e fala a meio tom.) Aqui tem dois recortes. Um é da página 13 da obra O NEGRO E A VIOLÊNCIA DO BRANCO, de Ariosvaldo Figueredo, publicado em 1977 por José Álvaro Editores S/A, do Rio de Janeiro. Foi extraído do prefacio de Clóvis Moura e diz o seguinte: “Durante muito tempo pontificou com status de infalibilidade uma sociologia que
cão danado vai aparecer e começar a trezena do inferno. UM ESCRAVO (No tronco.) Tenho sentido uma dor no peito horrível, Pai Antônio, não sei se vou aguentar treze noites seguidas de castigo. SEGUNDO ESCRAVO
mistificava as relações entre senhores e escravos, querendo fazer crer que a essência dessas
(Idem) Alguém precisa estrangular esse feitor.
relações era diferente, no Brasil, daquela onde imperou o escravismo em outras partes do
TERCEIRO ESCRAVO
mundo. O mito do “bom senhor”, como o classificou Marvin Harris, era tido como verdade
(Idem) Ele falou que vai espremer os nossos dedos nos “anjinhos” até agente
histórica inapelável e os estudiosos repetiam, sem filtrar, aquilo que os livros mais
confessar, ou até esfarelar os ossos...
prestigiados expressavam nas suas páginas. Foi a época na qual diziam que o português
PRIMEIRO ESCRAVO
adoçara as relações entre senhores e cativos através da miscigenação, um termo mágico
Já estou escaldado no “vira mundo” e da “gargalheira”. Se eu não aguentar...
através do qual procurava-se escamotear o antagonismo das classes, escondendo-se o fato
SEGUNDO ESCRAVO
fundamental de que essa miscigenação processava-se na base da mais brutal exploração
Tem de aguentar, sim. Pode confiar, Pai Antônio, que ninguém dá com a língua
sexual da mulher negra escrava que era transformada em simples animal sexual, da mesma
nos dentes. (Para o companheiro lamentoso.) Se tu cair na frouxura e contar alguma coisa
forma que homens eram considerados animais de tração.
eu te quebro todo.
“No entanto, da década de cinquenta para cá, vários estudos já colocaram criticamente essas posições, procurando, através de novas fontes, a verdade histórico-
PRIMEIRO ESCRAVO Quero ver a tua valentia quando o feitor chegar.
549
550
SEGUNDO ESCRAVO
SEGUNDO ESCRAVO
Cala esta boca, senão...
É grande a Cidade Maravilha, Pai Antônio?
PAI ANTÔNIO
PAI ANTÔNIO
(Interferindo) Calma! Se fizerem zuada me descobrem aqui. (Vai até onde se
Tem que ser, pra caber tanta gente. Gente fugida desde a revolução da
encontra o negro amarrado e fala para ele.) Filho, por que te contentas em ficar roubando
Cabanagem, gente que nasceu lá e gente que continua fugindo de todos os lados. A Cidade
besteiras? Não seria mais bonito te juntares com os irmãos de sofrimento no risco da fuga?
Maravilha, filho, com a nossa luta pela liberdade vai crescer até ficar do tamanho do céu...
ESCRAVO AMARRADO
Ação no plano superior. O Homem-Estátua apresta-se para dar continuidade à
Não sou louco!
leitura, porém olha para a Mulher-Estátua.)
PAI ANTÔNIO
HOMEM-ESTÁTUA
Juízo é tu que não tem. Não foi o teu pai que morreu no pelourinho depois de ser
O que você acha disso?
marcado com ferro em brasa? Tua prima não tinha só doze anos quando foi emprenhada
MULHER-ESTÁTUA
por aquele branco sem-vergonha? Tu não viste a pobre da Joana ser arrebatada do marido e vendida como ama-de-leite?
(Depois de consultar a folha do livro.) É... não sei... O dia que lermos este capítulo, na íntegra, talvez todo este monumento vá abaixo...
ESCRAVO AMARRADO
HOMEM-ESTÁTUA
Pai Antônio, me deixe sossegado. Eu ainda hei de ser negro de aluguel ou negro
Seria prudente rasgarmos estas folhas e lançarmos os pedaços ao vento.
de ganho.
MULHER-ESTÁTUA
PAI ANTÔNIO
Não adianta, surge sempre alguém para juntar e colar tudo direitinho.
Tu vai é acabar no “sumidouro”. Tenho pena de ti, filho, tu não tem jeito. (Volta
HOMEM-ESTÁTUA
para os negros no tronco.) Não posso demorar, um pouquinho mais e o feitor aparece. TERCEIRO ESCRAVO Reze por nós, Pai Antônio.
E se queimarmos? MULHER-ESTÁTUA É inútil. Todos os relatos nestas folhas estão registrados na consciência dos seres
PAI ANTÔNIO
humanos que foram vítimas deles. Cada pessoa que sofreu uma dessas torturas... (Estronda
O padecimento é só hoje, filhos, só hoje. Amanhã o pessoal vem soltar vocês
com mais vitalidade a voz da Senhora República, os dois estremecem.)
deste tronco pra se arribarem todos juntos. Não desanimem.
VOZ DA SENHORA REPÚBLICA
SEGUNDO ESCRAVO
Quem falou em TORTURA???
Nós não há de fraquejar.
HOMEM-ESTÁTUA
PAI ANTÔNIO
Ninguém!...
Pensem na Cidade Maravilha. Tem cinco canoas escondidas, esperando. A
MULHER-ESTÁTUA
cachoeira Caspadura é longe mas o rio Trombetas é manso, nele é fácil remar. Vocês vão
Eu disse tortura!... Estava me queixando de sentir tontura depois de tanta leitura...
conseguir a salvação... (Seus olhos se iluminam.) Quando estiverem na Cidade Maravilha
Ação no plano inferior. Pai Antônio saiu, os escravos adormeceram aprisionados.
cantem o banzo por mim... Brinquem com as crianças que lá elas são alegres... Plantem
Entra o feitor com o “bacalhau” chicote de couro cru e os “anjinhos” (dois anéis de ferro
todo dia até o sol sumir, principalmente o tabaco que os regatões trocam por armas.
que diminuíam de diâmetro à medida em que se torcia um pequeno parafuso provocando o
Trabalhem muito, trabalhem sempre com amor pela terra, façam a Cidade Maravilha ficar
aperto dos polegares.)
como Palmares...
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FEITOR
VOZ DO ESCRAVO
(Para negro amarrado.) A tua surra pode esperar, ladrão vagabundo. Vou cuidar
Ai!... Ai!... Ai!...
logo daqueles patifes. (Avança na direção dos negros no tronco ostentando o instrumento
VOZ DO FEITOR
de tortura.)
Está gostando?
A luz apaga, palco em completa escuridão.
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DO FEITOR
Ai!... Ai!... Ai!...
O primeiro és tu.
VOZ DO FEITOR
VOZ DE UM ESCRAVO
Como é?
Não... não... por caridade...
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DO FEITOR
Não! Não! Não!...
Vais ver já o que é bom.
VOZ DO FEITOR
VOZ DO ESCRAVO
E agora?
Eu não fiz nada, não fiz nada, juro que não fiz nada.
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DE OUTRO ESCRAVO
Ai!... Ai!... Ai!... Ai!...
Nós não fez nada.
VOZ DO FEITOR
VOZ DO FEITOR
Tu é que sabes até quando aguentas.
Cala a boca, pirento, que tua vez não demora.
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DO ESCRAVO
Eu não aguento mais! Ai!...
Por caridade, estou doente do peito...
VOZ DO FEITOR
VOZ DO FEITOR
Então bota pra fora toda a verdade.
Ou tu confessas, canalha, ou deixo tua mão em frangalho!
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DO ESCRAVO
Ai!... Ai!... Ai!...
Não, não...
VOZ DO FEITOR
VOZ DO FEITOR
Não adianta se mijar todo.
Vou fazer cada osso dos teus dedos virar bagaço.
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DO ESCRAVO
Ai! Ai! Eu vou ficar maluco!...
Caridade... caridade...
VOZ DO FEITOR
VOZ DO FEITOR
Como é, fala ou não fala?
Se puxar de novo a mão eu te racho o focinho a bofetada. Duvida?!
VOZ DO ESCRAVO
VOZ DO ESCRAVO
Ai!... Ai!... Eu não fiz nada...
(Depois de curtíssima pausa.) Ai! Ai!...
VOZ DO FEITOR
VOZ DO FEITOR
Ah! precisa sofrer mesmo pra dizer a verdade, não é? Então lá vai.
Já doeu? Ainda nem comecei a apertar.
VOZ DO ESCRAVO Ai! Ai! Ai! Eu... eu...
553
554
VOZ DO FEITOR
“RACISMO EM PLENA COPACABANA
Quer mais?
“Negro só entra pelo elevador de serviço.”
VOZ DO ESCRAVO
“Ao saber que sua filha adotiva, de sete anos, ouviu esse argumento ao tentar
Ai! Ai! Ai!... Ai! Ai!... Ai! Ai!...
subir no nono andar do prédio 66 da Rua Domingos Ferreira em Copacabana, pela entrada
(Os gritos de dor se multiplicam e são cada vez mais agudos e desesperados.)
Social, o empresário artístico Wilde Gibson decidiu “radicalizar”. Foi a 13ª DP apresentar
VOZ DO FEITOR
queixa-crime contra o síndico do prédio, brigadeiro Milanez.
Se tu não disseres a verdade, filho duma égua, eu te mato!
“ – Só desisti da ideia porque ele veio aqui em casa me pedir desculpa – assegurou
VOZ DO ESCRAVO
Gibson na tarde de ontem – um dia depois da menina Ana Paula de Sá Gibson ter sido
(No auge do desespero.) Ai!!! Ai!!! Ai!!! Ai!!!... Ai!!! Ai!!! Ai!!!...
barrada na entrada principal do edifício.”
A ação passa para o plano superior.
os dias, mas acham que não existe nenhuma atitude a tomar.”
“ – Que isso sirva de alerta para os negros que sofrem essas discriminações todos MULHER-ESTÁTUA HOMEM-ESTÁTUA
Jornal O LIBERAL, edição do dia 12 de julho de 1983:
(Depois de fechar o livro.) Sabe, é mais garantido voltarmos a ser exclusivamente
“UM RACISMO MUITO CAMUFLADO”
estátuas...
“A professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo
MULHER-ESTÁTUA
denunciou ontem a reunião da SBPC que no Brasil há um racismo camuflado que atende
Impossível. Quem faz um único contato com a verdade pura jamais torna a ser
aos interesses econômicos e sociais do grupo dominante.”
como era. HOMEM-ESTÁTUA Então, pelo menos eu vou ler este livro de trás para a frente, a fim de não irritar a Senhora República e também a fim de tomarmos conhecimento de coisas agradáveis. Este povo negro foi tão injustiçado que certamente, depois de séculos de escravidão, recebeu dos brancos arrependidos o mais honroso tratamento. MULHER-ESTÁTUA (Ironicamente) Experimente fazer isso. HOMEM-ESTÁTUA (Abre o livro na parte final e põe-se a examinar as derradeiras folhas.) Encoste a cabeça na minha, eu leio uma você lê outra.
“Segundo ela, negros, índios, ciganos e mulatos tem dificuldades de acesso a cargos públicos e a funções de chefia. “Em São Paulo há casos de clubes que apesar de não fazerem constar a proibição de seus estatutos, não permitem a associação de negros.” HOMEM-ESTÁTUA Esta notícia é longa, vou ler somente uma parte. Jornal O LIBERAL, dia 15 de dezembro de 1982: “FILHOS DE ESCRAVOS ABSOLVIDOS DE UM CRIME EM SOROCABA” “Sorocaba (AE) – Numa sessão que durou mais de 15 horas, o Tribunal do Júri de Sorocaba absolveu ontem os negros Marcos Roberto Rosa de Almeida e Noel Rosa de Almenida, descendentes de escravos do bairro do Cafundo, município de Salto de
MULHER-ESTÁTUA
Pirapoca, acusados de terem matado a facadas Benedito Moreira de Souza. O júri, acatando
(Executa) Vamos lá.
tese do advogado Antônio Santana Marcondes Guimarães, entendeu que os negros agiram
HOMEM-ESTÁTUA
em legítima defesa pessoal e de seu patrimônio, pois, a mando do fazendeiro Abdala
Aqui tem vários recortes de noticias publicadas na imprensa de Belém do Pará.
Marum, Benedito estava cercando um pedaço de terra que lhes pertencia.
Dia 26 de janeiro de 1984, jornal O LIBERAL:
“O advogado lembrou que a comunidade negra, que ainda hoje fala o dialeto africano Kimbundu, vive isolada naquelas terras há mais de cem anos. “Eles eram
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legítimos proprietários e senhores de mais de cem alqueires de terreno que lhes foram
nossos irmãozinhos não aguentarem o castigo no tronco é possível que tudo vá por águas
legados pelo seu antigo dono. No entanto, pouco a pouco, foram sendo espoliados pelos
abaixo...
brancos e hoje ocupam nada mais que dez alqueires, porção que ainda desperta a cobiça de
UM ESCRAVO
ricos fazendeiros, como aquele que mandou a vítima erguer a cerca”, disse o advogado.”
Eles não vão falar, prometeram pra gente.
MULHER-ESTÁTUA
OUTRO
Se é para economizar tempo leio somente o último parágrafo desta nota que saiu
Todos fizeram juramento sagrado.
dia 3 de novembro de 1982, no jornal A PROVÍNCIA DO PARÁ: “Até agora, só ocorreu um incidente racista a lembrar a cor do deputado Alceu
OUTRO Acha que não guardarão segredo, Pai Antônio?
Colares: desconhecidos, até hoje não identificados, picharam no início do ano, cartazes de
OUTRO
Colares com palavrões e expressões como “isso é coisa de negro”. Os cartazes estavam
Nem só por está noite?
fixados no 14º andar da Assembleia Legislativa gaúcha, junto do Diretório do PDT, mas
PAI ANTÔNIO
não se descobriu os responsáveis pela pichação.”
Devemos nos preparar pro que der e vier.
Ação no plano inferior. Pai Antônio, no seu humilde quarto de dormir, sentado no
OUTRO
chão sobre uma esteira, tendo ao lado alguns objetos de uso pessoal, inclusive um terçado
Será?...
enferrujado, conversa com diversos escravos.
OUTRO
PAI ANTÔNIO
Eles sabem que amanhã, de qualquer maneira, nós solta eles, não sabem?
Esta noite meu coração está batendo apertado.
PAI ANTÔNIO
UM ESCRAVO
Eu avisei.
É a febre que aumentou.
UM ESCRAVO
OUTRO
Então eles vão aguentar.
Precisa se tratar melhor, Pai Antônio, tem que se cuidar.
OUTRO
PAI ANTÔNIO
Por mais que apanhem até sangrar ficam calados.
A quentura da carne não me incomoda, filho, ruim é uma quentura diferente que
PAI ANTÔNIO
pela primeira vez eu estou sentindo.
Suportar chicotadas é o de menos, filhos, mas ter os dedos esmigalhados aos
UM ESCRAVO
poucos, devagarzinho, é de enlouquecer. O feitor vai fazer isso durante a noite toda:
Como é ela?
primeiro ele não consegue nada, vai embora, dorme um pedaço, acorda e volta, faz de
PAI ANTÔNIO
novo. Se não conseguir nada, torna a ir dormir, depois aparece e continua fazendo,
Não sei explicar, só sei que não é coisa que eu já tenha sentido algum dia. Talvez
madrugada a dentro. Ele usa deste expediente quando cisma que tem uma revolta
seja resultado da situação...
combinada, ou uma fugida maior. Vocês sabem disso.
UM ESCRAVO
UM ESCRAVO
Não se preocupe tanto, deite logo pra repousar.
Sabemos, Pai Antônio, porém os irmãos que estão no tronco são tão decididos!...
PAI ANTÔNIO
PAI ANTÔNIO
Conheço a esperteza do feitor, aposto que ele desconfia de mim desde muito
Um está tremendo de medo.
tempo, não me pegou até hoje porque sou matreiro, mas bem que sempre tentou. Se os
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UM ESCRAVO
OUTRO
É?
Tem que tomar remédio e descansar mais, Pai Antônio.
OUTRO
OUTRO
Qual?
O que nós pode fazer, Pai Antônio, pra lhe ver curado?
OUTRO
PAI ANTÔNIO
Pode ter medo mas não fala, não é?
Não se vexem por minha causa.
PAI ANTÔNIO
UM ESCRAVO
Um homem com medo não vale nada, filhos. Um homem com medo corre de
Por que não foge junto com a gente?
sombra, chora na frente de mulher e faz traição pro melhor amigo. Um homem com medo
PAI ANTÔNIO
morre vivo. Ouçam o conselho que não me canso de dar pra vocês: nunca tenham medo.
Ah, filho, assim velho e doente ia atrapalhar.
Não esqueçam que o medo mata tudo de bom no homem, mata até o desejo de ser livre.
UM ESCRAVO
UM ESCRAVO
Que nada!
Isso é verdade, Pai Antônio.
OUTRO
PAI ANTÔNIO
Por que não? Vamos, Pai Antônio.
Quem quer ir pra Cidade Maravilha não pode ter medo. Tem que pensar só em
PAI ANTÔNIO
fugir, só em fugir. Fugir. Fugir. Fugir, custe o que custar. E eu dou a minha palavra a
Pra cair na metade do caminho, de fraqueza nas pernas?
vocês, essa fugida que nós tramou ninguém estraga, aconteça o que acontecer.
UM ESCRAVO
UM ESCRAVO
Não cai não, e se cair nós carrega.
Todos nós acredita.
OUTRO
OUTRO
É sim, Pai Antônio, dê essa felicidade pra gente.
E ninguém tem medo.
PAI ANTÔNIO
OUTRO
O meu lugar é aqui, filhos. Tenho de ficar pra ajudar os irmãos no cativeiro. E
Nem volta atrás.
ainda vou botar na cabeça de muitos o gosto pela liberdade. Ainda vou fazer muitos
PAI ANTÔNIO
vencerem o medo e fugirem.
Só precisamos nos preparar pra alguma surpresa, porque meu coração está palpitando novidade... UM ESCRAVO
UM ESCRAVO Vai ser uma pena nós chegar na Cidade Maravilha sem o guia do nosso pensamento.
Que novidade, Pai Antônio?
PAI ANTÔNIO
PAI ANTÔNIO
Parece que eu estou vendo vocês chegarem lá... a festa, os abraços... depois o
Não sei, filho, não sei. Não sei se é de tristeza ou de alegria. Quando digo que meu coração está batendo apertado é por que sinto o aperto chegar na garganta e se espalhar pelo corpo todo... UM ESCRAVO É a febre, com certeza.
trabalho livre, gostoso... as amizades... as estórias... os passeis... os namoros... as pescarias no rio Trombetas... as cantorias... as saudades... (Tem a voz embargada pela emoção.) UM ESCRAVO Está na hora, Pai Antônio, nós sai pra lhe deixar dormir. (Ensaiam todos a retirada.)
559
560
PAI ANTÔNIO
nas suas colônias. Não houve um genocídio maior na história da humanidade, nem em
(Recompondo-se) Peço uma coisa a vocês: quando se encontrarem com Atanásio
numero nem em brutalidade, de que o cometido contra os negros africanos – incluídos ai os
digam que enquanto Pai Antônio viver ele tem um soldado no sítio Cacaual-grande, arrebanhando povo na luta pela liberdade.
fornos crematórios do nazismo. “Uma das decorrências desse massacre contra os negros foi o escudo
Ação no plano superior.
preconceituoso que as ideologias cristães adotaram para esconder o crime. O mais grave
HOMEM-ESTÁTUA
deles – o da “inferioridade racial do negro” – funciona como anestesia para que raramente
(Com o livro ainda na mão, aberto.) Tanto faz ler atrás como na frente, é a mesma
se trate do problema da escravidão além da superfície. É preciso não esquecer que a
coisa. (Retrocede algumas folhas.) Vamos ver o que diz aqui, estes recortes. Título da
escravidão do negro africano foi abonada pela Igreja Católica, que chegou a justificá-la
obra: O NEGRO NO BRASIL DA SENZALA À GUERRA DO PARAGUAI. Autor: Júlio
afirmando que o negro não tinha alma”. (Devolve o livro.)
José Chiavento. Publicação da Livraria Brasiliense Editora S.A., de São Paulo. Página 11:
HOMEM-ESTÁTUA – Página 128:
“Quando começou a guerra do Paraguai o Brasil tinha mais de 2,5 milhões de
“Ao contrário do que fala um dos modernos ideólogos da escravidão, Gilberto
escravos; quando a guerra acabou, eles não chegavam a 1,5 milhão – em apenas seis anos
Freyre, nada aqui chegou a “adocicar-se em transigências” para o escravo negro. Tudo foi
(1864/1870) “desapareceram” 1 milhão de negros. A sociedade que foi capaz de tão rápido
sangue e chibatas, sempre. Jogado nas senzalas imundas, dormindo no chão ou arranjando-
consumo de negros, transformando-os em bucha de canhão, tem seus herdeiros ainda hoje,
se em cima de folhas, trabalhando de 14 a 18 horas por dia, indo ao tronco pelas menores
ignorando estes simples dados estatísticos. Simples na sua denúncia irrespondível, que não
faltas, a vida dos escravos é uma crônica de crueldades, onde não faltam as manifestações
se atenua sequer com a diminuição natural de escravos depois do fim do tráfico.
sádicas dos seus senhores e sinhazinhas.”
“Para se encontrar as causas da escravidão no Brasil, com seus múltiplos aspectos de irracionalismo e crueldade, não basta apenas a denúncia do genocídio que se praticou abusiva e impunemente contra os negros. Não basta... É preciso penetrar neste fatos,
Ação no plano inferior, onde Pai Antônio já dorme, profundamente estirado ao chão na esteira. Entra o feitor acionando desvairadamente o chicote sobre ele.
geralmente relegados pela historiografia oficial – de forma completa no que se refere à Guerra do Paraguai, por exemplo –, e ir buscar as causas fundamentais que conformaram a
FEITOR
escravidão brasileira, que nos deixou uma trágica herança no maldisfarçado racismo que
Velho safado, vou fazer te arrependeres do dia em que foste parido!!!
esmaga os negros até hoje.”
PAI ANTÔNIO
MULHER-ESTÁTUA
(Acorda zonzo, rola no chão tentando se defender das chicotadas, consegue
Um milhão de negros transformados em bucha de canhão...
apanhar o terçado e se levantar.) Cão leproso, eu estou caindo de velho e de doente, mas
HOMEM-ESTÁTUA
vou te mostrar quanto vale um negro de Angola! (Trava-se uma luta feroz; Pai Antônio,
Tem mais. (Entrega a ela o livro.)
embora sem a necessária destreza, ensaia uma capoeira; por fim, em golpe de sorte, crava
MULHER-ESTÁTUA - Páginas 44 e 45:
a ponta do terçado no feitor que rola abatido.)
“A África foi o único continente do mundo que teve sua população estagnada nos últimos quatrocentos anos. Matou-se um continente, cometeu-se um genocídio ao longo de trezentos e cinquenta anos que vitimou o equivalente à população total do Brasil contemporâneo. A África negra foi condenada à estagnação demográfica e econômica, seus homens, mulheres e crianças foram escravizados, mortos, torturados, violentados culturalmente para que os portugueses, espanhóis e ingleses pudessem produzir riquezas
A luz apaga. Durante a escuridão no palco ouve-se a voz metálica, impessoal, bem pausadamente.
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VOZ
que mais da metade dos nossos escravos encontraram-se nos quilombos do rio Trombetas.
“Sabemos através de experiência dolorosa, que a liberdade jamais é dada
Onde iremos parar se não enforcarmos o Pai Antônio para intimidar os negros fujões?
voluntariamente pelos opressores; ela deve ser exigida pelos oprimidos”. Martin Luther
ADVOGADO DE DEFESA
King. Página 83 do livro NÃO PODEMOS ESPERAR. Editora Senzala Ltda., São Paulo.
O insigne colega me permite agora um aparte?
(Antes que a luz reacenda, no mesmo plano inferior, ressurge o fundo musical
JUIZ
dando tempo para a rápida mudança dos petrechos da cena que a seguir representará o
(Martelada na mesa.) Ele já não disse que não permite?!
Tribunal do Júri responsável pelo julgamento do Pai Antônio.
PROMOTOR
JUIZ
Como podemos sair da calamitosa situação econômica que nos esmaga se não
(Dando a clássica martelada sobre a sua mesa.) Dou a palavra à promotoria.
cumprirmos, nos tribunais, o espirito das Ordenações do Reino? Como os engenhos vão
ADVOGADO DE DEFESA
recuperar a produção com a falta, cada vez maior, do braço negro? O Código de Posturas
Mas Meritíssimo, eu ainda não terminei o meu arrazoado. O velho escravo
Municipais, de 29 de novembro de 1848, pune até com pena de prisão toda pessoa que
Antônio foi espancado barbaramente pelo sádico feitor e o direito de defesa não deve ser
souber da existência de um mocambo e não denunciar para a autoridade competente mais
negado nem aos animais.
próxima; todavia, onde estão as denúncias? Quase ninguém se dá conta da gravidade do
JUIZ
momento que atravessamos e só nós, os representantes da justiça, podemos salvar o futuro
(Nova martelada.) Basta! Volta a falar a Promotoria para desenvolver o seu
desta província. A lei nº 99, de 3 de julho de 1841, que autoriza as Câmaras Municipais a
oportuno libelo acusatório.
nomear em cada distrito dois capitães-de-mato para prender escravos fugidos, por
PROMOTOR
solicitação dos seus senhores, até hoje não deu qualquer resultado. E para o cúmulo da
Obrigado, Meritíssimo, pela imparcialidade. O nobre colega da defesa estava
desmoralização, alguns indivíduos inescrupulosos estão fazendo prosperar a compra e
exagerando em suas prerrogativas e só faltou insinuar que negro tem alma e é filho de
venda de escravos fugidos, sem que tenhamos meios de coibir tal comércio ilícito. O que
Deus. Que absurdo! Onde já se viu preto que mata branco ser perdoado? Um tanto mais em
fazer, então, neste quadro sombrio de desrespeito aos sagrados interesses da sociedade?
uma conjuntura como esta que enfrentamos?! Ninguém ignora a crise atual, decorrente da
ADVOGADO DE DEFESA
baixa produção agrícola. O que será da nossa lavoura se os escravos continuarem fugindo?
Eu digo o que fazer.
Sabem todos que o último carregamento de negros diretamente da África deu-se há quase
JUIZ
vinte anos, em 1834.
(Martelada mais forte.) Não diz coisa nenhuma, a sentença vai ser lavrada!...
ADVOGADO DE DEFESA O colega me concede o privilégio de um aparte?
Ação no plano superior.
PROMOTOR Não, não concedo. (Retira papéis de uma pasta.) Aqui está o relatório que o insigne Dr. Jeronimo Francisco Coelho exibiu em Belém na sessão ordinária da 6ª
HOMEM-ESTÁTUA Escute só as poucas palavras com que Abdias do Nascimento abre sua importante
Legislatura, a 1º de dezembro de 1848; por ele se vê como é impressionante a queda
obra O QUILOMBISMO, publicada pela editora Vozes Ltda., do Rio de Janeiro, em 1980:
quantitativa e percentual da população escrava, desde 1822. (Pega outro papel.) Eis uma
“Em memória dos 300 milhões de africanos assassinados por escravistas,
estatística da população escrava do Grão-Pará por Comarca, feito em 1849; por ela somos
invasores, opressores, racistas, estupradores, saqueadores, torturadores e supremacistas
cientificados de que em toda Santarém existem apenas 3.883 negros cativos. Isto quer dizer
brancos...”
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564
MULHER-ESTÁTUA
Das penas do pavão
(Toma delicadamente dele o livro da verdade, dobra uma folha, ou duas.) Aqui,
Porque sois cegos por dentro e por fora
um outro recorte da página 15 da mesma obra diz:
Por que sois cegos do ontem e do agora.
“A história do Brasil é uma versão concebida por brancos, para os brancos, e pelos brancos, exatamente como toda a sua estrutura econômica, sócio-cultural, policial e
Respondei sem refletir
militar tem sido usurpada da maioria da população para o benefício exclusivo de uma elite
E sem mentira
branca-brancóide, supostamente de origem ário-europeia”. (Devolve o livro.)
Batendo no peito:
HOMEM-ESTÁTUA
Que água benta
(Dobra diversas folhas.) Ainda tem mais, desse mesmo autor. Ouça o que ele
Ou água barrenta
escreveu na página 101 do volume O NEGRO REVOLTADO, publicado pela Editora
Lavará vossa alma do preconceito?
Nova Fronteira S/A, do Rio de Janeiro, em 1982: “Oprimido e esfolado permanece o negro. Os sofrimentos que ele padece têm origem na cor da sua pele. Não basta um negro – excepcional ou sob proteção paternalista
“Preto quando não suja na entrada Suja na Saida”
– galgar um lugar de projeção, elevar-se do nível geral médio de seu povo. Importa, sim, é lutarem todos e conquistar oportunidades de elevação para todos. Pois enquanto um negro
É o que as vezes dizeis
for tolhido em sua liberdade por ser negro, enquanto um negro tiver obstaculizada sua
Mesmo negando o racismo.
realização pelo fato de sua cor epidérmica, todos nós – os negros – estamos implicitamente
O que prova que a sujeira pressentida
sendo atingidos em nossa dignidade de homens e de brasileiros.”
Não está na vossa tez Ou no vosso cinismo?
Ação nas duas laterais do plano inferior, onde os coros masculino e feminino declamam afinados.
O tempo caminha a passos virgulados Mas caminha
COROS
Riscando os espaços curvados
Senhores fidalgos da Casa Imperial Moderna
Linha a linha.
Por que achais que o cisne é mais belo que o urubu?
Em cada ponto Apaga-se uma reticência
Tendes uma estética
E um hífen faz encontro
Com noção real da beleza
Na essência.
Ou apenas uma ética Mesquinha em falsa grandeza?
Então por que a discriminação racial Senhores Fidalgos da Casa Imperial???
Nas negras asas da graúna Que voa no agreste sertão Jamais vereis as cores uma a uma
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Escurecem as laterais e a área central do plano inferior é iluminada. Aparece o Pai Antônio no “oratório”, cubículo de prisão que alojava o condenado a morte na véspera da execução. Entra um frade capuchinho com uma sacola.
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FRADE Por que não se confessa? Não tem mesmo um pingo de arrependimento, velho Antônio?
FRADE
PAI ANTÔNIO
Estou aqui com a incumbência que me foi dada pela Irmandade da Misericórdia a
Eu posso te chamar de filho, padre?
fim de lhe prodigalizar os benefícios da religião. PAI ANTÔNIO O que quer dizer isso, seu padre? FRADE Quer dizer que antes de mais nada estou pronto pra ouvir a confissão do seu pecado.
FRADE Pode. As últimas vontades de quem vai morrer em suplício público devem ser respeitadas. PAI ANTÔNIO Olha, filho, tu é muito bonzinho mas estás perdendo o teu tempo. Leva de volta tudo o que trouxeste e deixa eu ficar só que tenho o coração feliz.
PAI ANTÔNIO
FRADE
Que pecado?
Ah! Velho Antônio, se você soubesse como é o inferno...
FRADE
PAI ANTÔNIO
Não assassinou friamente um filho de Deus?
Quem te disse, filho, que eu vou pro inferno quando me matarem? Amanhã eu
PAI ANTÔNIO
durmo na forca e acordo na Cidade Maravilha... junto do Atanásio... vendo as crianças que
E o que ele fez comigo era da lei de Deus?
nasceram na terra da liberdade...
FRADE Não vamos discutir sobre isso que você é ignorante. O que importa é que a sua
Ação no plano superior, onde a luz verde acende com uma tonalidade mais fraca.
morte está marcada para amanhã cedo, o préstito sai às oito horas. Precisa se preparar. PAI ANTÔNIO
MULHER-ESTÁTUA
Eu sempre estive preparado, padre.
O que está acontecendo?
FRADE
HOMEM-ESTÁTUA
Não é o que me disseram.
Esquisito.
PAI ANTÔNIO
MULHER-ESTÁTUA
Estou em paz.
Não entendo, o que será?
FRADE (Tira da sacola velas, acende-as e as coloca em castiçais defronte de um grande
A luz vai aumentando e, ao mesmo tempo, a tonalidade verde diminuindo.
crucifixo existente no fundo da cela.) A Santa Igreja nunca nega conforto espiritual aos condenados. Ficarei aqui para ampará-lo. Tenha firmeza de ânimo que não sofrerá muito, o
HOMEM-ESTÁTUA
carrasco Domingos Pixuna possui bastante prática de enforcar ligeiro.
A claridade parece mais clara...
medo.
PAI ANTÔNIO
MULHER-ESTÁTUA
Sim, padre, sim, mas pode ir embora, não se preocupe comigo que não tenho
Sem dúvida. Como explicar o fenômeno? HOMEM-ESTÁTUA
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Talvez uma bela manhã esteja prestes a nascer para a História do Povo Negro desta região...
568
“História escrita não existe. Mas a tradição persiste e os negros moradores do trombetas sabem que a luta de seus ancestrais foi das mais árduas e cruentas...”
MULHER-ESTÁTUA A minha visão começa a ser afetada. HOMEM-ESTÁTUA
Ação no plano inferior, onde há uma forca armada. Um homem de balandrau azul percorre em diagonal toda a cena deserta, agitando uma campa (pequeno sino.)
Também a minha. Não vamos poder terminar de ler o livro da verdade... MULHER-ESTÁTUA Engraçado como esta luz branca me faz mal. HOMEM-ESTÁTUA E a mim? Acho que acabaremos cegos. MULHER-ESTÁTUA É provável. Aproveitemos então o tempo. A Senhora República que se dane, mas pelo menos uma folha deste livro nós leremos juntos, gritando, gritando, gritando! (Põe-se a folhear o livro da verdade na parte final.)
HOMEM DE BALANDRAU Povo de Santarém, orai pelo nosso irmão penitente!... Povo de Santarém, orai pelo nosso irmão penitente!... Povo de Santarém, orai pelo nosso irmão penitente!... Após a saída do homem de balandrau ouve-se a batida compassada de tambores sugerindo marcha fúnebre. Aparecem os principais membros de uma procissão que se aproxima lentamente da forca, sob gritos delirantes do povaréu. Pai Antônio, conforme o ritual da época para tal solenidade, caminha na frente,
HOMEM-ESTÁTUA
vestindo alva túnica e tendo em volta do pescoço um laço de corda simbolizando a pena
De acordo, porém vê se encontra por aí um texto que não fale em tortura... (A
capital. Seus passos são firmes, a fronte erguida e o olhar fixo no horizonte.
tonalidade verde se atenua ainda mais.) MULHER-ESTÁTUA Depressa, estamos quase mergulhando na cegueira humana. (Esfrega os olhos, ele idem; juntam as cabeças e procedem a leitura fazendo um supremo esforço, tendo a altura
Logo atrás dele um Juiz, vistosamente paramentado, e o Frade capuchinho. A seguir um sujeito portando grosso livro do cartório (Escrivão), soldados e pessoas outras. A cena se desdobra em pompa e emoção superlativas, envolvendo os espectadores na sua atmosfera trágica sem necessidade de qualquer diálogo.
da voz gradativamente reduzida à proporção em que se dilui o verde da claridade, até
Pai Antônio sobe o patíbulo com serenidade e altivez.
desaparecer de todo.)
Fundo musical crescente, à medida em que ele é preparado pelo carrasco para a
OS DOIS
execução.
Jornal paraense FOLHA DO NORTE, fora de circulação na Capital do Estado,
Quando os preparativos se completam, a música e a gritaria da turba se
edição impressa especialmente para o município de Santarém em 3 de janeiro de 1981,
avolumam, cobrindo a voz do Escrivão que faz a leitura da sentença com pose
matéria transcrita em uma publicação avulsa da Comissão Pastoral da Terra, sediada em
empertigada. Finda esta providência o Frade toma posição saliente, cessam todos os
Belém na Praça D. Frei Caetano Brandão nº17:
rumores e sons e ele reza o “Creio em Deus Padre”, depois ensaia uma benção.
“A recente expulsão de dezenas de famílias negras da localidade de Jacaré, no
Ressurge o fundo musical, todas as luzes apagam e, quando acendem, o corpo de
Trombetas, e a ameaça que paira sobre as restantes 24 no lago Abuhy, localidades hoje
Pai Antônio balança na forca.
dentro da reserva biológica criada pelo Governo Federal e entregue à administração do
Há um breve silêncio.
IBDF é, na opinião de algumas pessoas, apenas a continuação de uma longa história de
Então o elenco, compactado, dirige-se a plateia.
cruel perseguição a que foram submetidos os chamados negros do Trombetas, ao longo dos anos, desde o século passado.
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ELENCO Senhores Fidalgos da Casa Imperial Imperiais Senhores da Casa Fidalga O Espetáculo chegou ao seu final Pedindo reflexão em vez de palmas. (Todos os atores apontam para o corpo do Pai Antônio.) TODOS
A ESTRANHA
Na forca a imagem Na forca a coragem
LOUCURA DE
Na forca a mensagem. Os tempos passaram Os ventos sopraram E mil flores murcharam
LORENA
Sobre o seu martírio. Mas tal destemor Germinado na dor E orvalhado de amor Ainda é negro lírio!
FIM
MARTINEZ
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572
PAOLA Esta peça foi encenada pela primeira vez pelo Instituto Arte e Vida, da cidade de Franca, São Paulo, em 2006.
Filha: uns 20 anos, também solteira, estudante. JÉSSICA Antiga governanta e cozinheira da casa: uns 65 anos, personalidade vulgar,
CENÁRIO
presunçosa e beata. TERTO
Interior de uma residência burguesa, confortável e elegante, luxuosa mesmo. Sala de visitas decorada em estilo clássico, embora não espelhando refinado bom
Empregado para serviços gerais: uns 75 anos, homem simples e de bons sentimentos, paupérrimo e iletrado, frequentador de um Centro Espírita.
gosto, onde se destaca um piano de calda. No prolongamento, depois de meia parede em
ROSEMARY
arco, uma ante-sala tendo ao fundo pequeno escritório e ao lado vistosa escada de ligação
Grande amiga de Lorena; uns 40 anos.
com o segundo pavimento. A seguir, ampla varanda contendo, afora outras peças,
JEFFERSON
cristaleira, bar, mesa para jogo de cartas e saída comunicante com supostas dependências
Esposo de Rosemary; uns 50 anos, advogado.
complementares.
Dr. ALCOLOMBRE Médico psicanalista, uns 40 anos bem conservados.
PERSONAGENS LORENA Figura central do enredo: uns 50 anos de idade, possuidora de cultura apenas mediana mas bastante inteligente e dotada de um temperamento alegre, generoso, extremamente saudável. No início da representação encontra-se bastante feliz como sempre foi, porém aos poucos vai se revelando vítima de cruel obsessão espiritual que acaba quase levando-a à completa loucura, apesar dos melhores tratamentos médicos especializados. BERTOLO O marido: uns 55 anos, intelectualmente ainda menos ilustrado do que ela, tipo comum do comerciante interessado apenas em ganhar dinheiro. BRUNO Filho: uns 25 anos, poeta, jornalista lúcido comprometido com a luta pela justiça social, solteiro, ex-namorado de uma talentosa artista de caráter leviano, escrava de bebidas alcoólicas que morreu há pouco tempo, aparentemente de suicídio, depois de ser rejeitada pela família de Bruno, de um modo mais saliente pelo seu pai, e por causa disso resolveu se vingar como espírito.
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PRIMEIRO ATO
LORENA Tive a impressão de que alguém me chamou pelo nome. BERTOLO
O palco demora no escuro por breves minutos depois que o pano sobe, enquanto se ouve um trecho de partitura clássica executada ao piano. A luz acende gradativamente,
Estavas sonhando...
em resistência. É noite, um tanto avançada. Na sala o piano está sendo tocado por Paola,
LORENA
uma bela moça de gestos delicados. Bertolo examina com indisfarçada irritação uma pilha
Não sei se era voz de homem ou de mulher.
de documentos no escritório; é um homem cheio de vitalidade porém apresenta rugas de
BERTOLO
envelhecimento prematuro na fisionomia de traços rudes. Bruno chega da rua
Não me atrapalhes agora que já é tarde, tenho de conferir todos os recibos e notas
ligeiramente ébrio, atravessa a sala e a ante-sala em cuidadoso silêncio, sem ser notado;
antes de dormir, ando desconfiado do novo Contador da filial, vou terminar fechando o
na varanda enche um copo de gelo e uísque, senta-se e começa a beber com o olhar
diabo daquela loja
perdido na fumaça do cigarro; sua aparência física é a imagem da irreverência: barba
LORENA
crescida, roupa desleixada etc. De repente Lorena surge no topo da escada com ar de
Não quer um cafezinho quente?
susto, vestindo um robe; desce os degraus hesitantes como se, tendo acordado naquele
BERTOLO Vai te deitar e diz pra tua filha parar com essa música enjoada. (Lorena dirige-se
momento, ainda estivesse espantando o sono; tão bonita quanto a filha, talvez mais, tem um porte esbelto, algo solene, que reflete segurança, equilíbrio, maturidade, e um
à Paola na sala interrompendo-a no piano.)
semblante que irradia invejável bom humor; penetra no escritório já calma, refeita de
LORENA
emoção.
Minha filha, é quase meia-noite, ou mais. PAOLA
LORENA
Preciso me exercitar, amanhã no Conservatório a barra será pesada, a professora é
O que é? BERTOLO
uma onça. LORENA
(Sem lhe dar atenção, absorvido em esmiuçar seus papéis.) O que é o quê?...
Não fostes tu que gritaste pelo meu nome, não? Acordei ouvindo alguém me
LORENA Chamaste-me?
chamar.
BERTOLO
PAOLA
Eu?...
Pesadelo?
LORENA
LORENA
Sim.
Não sei...
BERTOLO
PAOLA
Por que iria te chamar?
A música está incomodando?
LORENA
LORENA
Não mesmo?
A mim não, teu pai é que mandou parar.
BERTOLO
PAOLA
É claro...
Papai é um chato, reclama de tudo. Não ligue pra ele, suba e aproveite sua cama que daqui a pouco eu acabo (Ligeira Pausa.)
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LORENA
JÉSSICA
Teu irmão chegou?
Ponha junto da pia. E tome logo seu café porque antes de ir para o jardim temos
PAOLA
que fazer uma limpeza em regra na cozinha. Hoje é sexta-feira, dia de serviço puxado.
Acho que ainda não, quer dizer: para falar a verdade nem reparei se ele entrou
TERTO
(outra curta pausa.) O que há, mãe?
E desgosto.
LORENA
JÉSSICA
Nada, nada...
Por que desgosto?
PAOLA
TERTO
Desde quando a senhora passou a se preocupar com a hora em que o Bruno
Quando vinha entrando dei de cara com o patrão na porta da garagem. Criei
chega?
coragem e falei com ele sobre aquele assunto.
LORENA
JÉSSICA
Não é isso, perguntei por perguntar... (Retira-se, intrigada, e retorna pela escada
Deu certo?
para o andar superior.)
TERTO
A luz se apaga. Ao clarear é manhã do dia seguinte. Jéssica ocupava-se em recompor a mesa de refeição onde já foi servido o “breakfast”; baixa, gorda e ruiva, de pele branca descorada, ostenta um jeito afetado em todas as coisas que
Não, me arrependi. Assim é preferível eu procurar outro emprego, nem que seja como vigia de construção, onde posso atar minha rede e comer com os operários. JÉSSICA
faz. Toca a campainha, ela vai à sala, abre a porta, entra Terto carregando
Você devia era não esquecer da boa vida que tem aqui há quase um ano. Come do
pesados embrulhos de mercado; deslocam-se os dois para a varanda; Terto, um
bom e do melhor, mora no quintal mas em um quarto do tamanho do meu e, afinal de
mulato bastante idoso, de cabelos encarapinhados e postura humilde, caminha
contas, não ganha tão pouco, dá para os seus gastos.
com dificuldade por ter uma perna aleijada. JÉSSICA Comprou tudo?
TERTO Tenho necessidade de um dinheirinho a mais, não lhe mostrei a carta da minha neta? Doença é doença.
TERTO
JÉSSICA
Tudinho.
Quem é culpado do seu filho ser um estabanado? Ele que largue a vagabundagem.
JÉSSICA
TERTO
Os dois filés?
Não gosto que fale dessa maneira do meu filho, não tem o direito, ouviu?
TERTO
JÉSSICA
Comprei.
Então não me venha chorar miséria.
JÉSSICA
TERTO
E as verduras?
É melhor ficar calada.
TERTO
JÉSSICA
Vieram todas, só não tinha couve.
Mal agradecido. Você devia era dar mil graças aos céus por ter uma pessoa com quem conversar. Se eu fosse outra não lhe permitia discutir comigo, porque estou com dona Lorena há trinta e três anos, idade do Nosso Senhor Jesus-Cristo. Ajudei a criar os
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meninos que hoje até me consideram como fazendo parte da família. Você devia era me
JÉSSICA
respeitar e eu devia era obrigá-lo a trabalhar duro. Enfim, como é um pobre coitado que
Engula pelo menos o leite.
não tem onde cair morto...
LORENA
TERTO
(Bebe apenas uma xícara de café.) Depois como qualquer coisa. Paola desceu?
(Saindo com os embrulhos do mercado para a copa-cozinha fora de cena.) Triste
JÉSSICA
sina, a minha...
Até agora não.
LORENA
LORENA
(Desce a escada, ingressa na varanda descontraidamente.) Bertolo já saiu?
Hoje ela tem prova. E Bruno?
JÉSSICA
JÉSSICA
Faz meia hora.
Acho que esse, se ninguém atirar um balde de água fria nele, vai levantar somente
LORENA
ao meio-dia. Pela quantidade de baganas que juntei do chão, e pela garrafa de uísque
Não falou nada?
vazia...
JÉSSICA
LORENA
Comigo não, parece que deu uma descompostura no Terto.
(Sorri. Boceja. Sorri de novo.) Pois é.
LORENA
JÉSSICA
Puxa, há muito tempo que eu não dormia um sono tão esquisito. Acordei
Está rindo do quê? Não me diga que é do pileque do Bruno.
indisposta. JÉSSICA Enxaqueca? LORENA Não.
LORENA Estou rindo da minha ressaca de repouso. Não, esta não, me recuso a aceitar isso. Frita dois ovos nadando na manteiga, que vou começar a reagir. JÉSSICA Assim é que se fala. Nunca vi a senhora amofinada em toda a vida. Lembra do
JÉSSICA
que dizia a sua mãe? “O dia em que Lorena perder a graça é porque o mundo está se
Corpo mole...
acabando...”
LORENA Também não. JÉSSICA
LORENA Gostei de ouvir esta frase. Sabe de uma coisa, Jéssica? Além de uma grande governanta você é uma mulher inteligente, muito inteligente.
Ué!... então o quê?
JÉSSICA
LORENA
Obrigada, sua mãe também dizia.
Por incrível que pareça não dá para explicar. Uma espécie de... Sei lá!
LORENA
JÉSSICA (Servindo o “breakfast”.) Chocolate?
Se não fosse tão agarrada na batina dos padres aposto que teria arranjando um ótimo casamento. Talvez ainda dê para arrumar algum viúvo bem situado...
LORENA
JÉSSICA
Cadê a fome?
DEUS me livre!
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TERTO
LORENA
(Voltando, para Jéssica.) Pronto...
E ele, o que respondeu?
JÉSSICA
TERTO
(Saindo na mesma direção.) Deixe eu providenciar os ovos.
Não deu e me xingou...
TERTO
LORENA
Bom dia, dona Lorena. LORENA Bom dia, Terto, tenho uma tarefa especial para você, venha cá. (Leva-o à sala,
(Esforçando-se para conter o riso.) Você foi ingênuo, devia ter falado primeiro comigo. Quanto deseja de aumento? TERTO
recosta-se em uma janela e aponta para o exterior.) Que tal uma melhorada no jardim?
Desejar eu não desejo. Preciso...
Outro canteiro ali não ficaria uma beleza? Precisamos de mais flores nesta casa, onde os
LORENA
problemas começam a aparecer.
Quanto?
TERTO
TERTO
Sim senhora...
Não sei...
LORENA
LORENA
Sim senhora, o quê? Pode dar sua opinião sem receio.
Diga que estou interessada em ajudá-lo por detrás das bombas: você continua
TERTO
recebendo o mesmo ordenado e, todo mês, eu lhe dou escondido a quantia de que
Eu estou com um bruto problema.
necessitar. Só não admito que permaneça com esta cara de velório. Combinado?
LORENA
TERTO
(Risonha) Também?
DEUS recompense a senhora.
TERTO
LORENA
É, um problemão...
(Apontando para o exterior.) O que é aquilo?
LORENA
TERTO
Mas Terto, você era a pessoa mais feliz de todos nós e agora vem me confessar,
(Debruçando-se na janela.) Aquilo o quê?
sem mais nem menos, que entrou para o clube dos acabrunhados? TERTO Feliz, mesmo, só a senhora, nunca vi ninguém mais satisfeita com a vida; DEUS a conserve sempre como é.
LORENA (Fixando os olhos.) Nada... deve ter sido uma sombra... de avião ou de pássaros voando baixo... (Toca o telefone, ela atende.) TERTO
LORENA
(Saindo para o jardim.) Não demoro.
Qual é o seu problema? Se me contar talvez eu possa auxiliá-lo a resolver. Desde
LORENA
que você, é claro, prepare o canteiro, levantando um caramanchão com violetas, begônias e brincos de princesa.
(Ao telefone.) Alô... Sim... não reconhece a minha voz?... luta, minha irmã, quem esmorece atrai a derrota... e desanimar adianta?... é difícil acreditar... Não estou querendo
TERTO
insinuar que exageras... nem que é ridículo... desculpa... eu sei que nessas horas a gente
É que eu... eu... pedi ao seu marido... um aumento de salário.
não mente, pelo menos sem necessidade... presta atenção, deixa eu falar... homem nenhum é anjo: o meu, quando aparece de asas, fico logo com a orelha em pé... porém ao contrário
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do que se diz, convém desconfiar confiando... nada é mais perigoso do que a precipitação...
PAOLA
tu não és tão entendida em psicologia?... põe em prática os teus conhecimentos... olha,
Ai de mim!
experimenta fazer o seguinte durante um certo tempo: trata o Jefferson como tratas as
LORENA
crianças do Abrigo em que colaboras... eu, se tivesse me formado em uma Universidade,
Tenta. Talvez ele aprove...
principalmente se tivesse curso de Assistente Social como o teu, não deixaria de exercer a
PAOLA
profissão em casa... Claro, todo marido é como velho ou como criança... tens mais sorte: o
Papai é um quadrado, só aprova o que faz crescer seus lucros. Por
falar nisso,
Bertolo vale por um velho... e um velho ranzinza, imagina quando chegar a época do
enquanto ele não atualiza a minha mesada a senhora vai ter que quebrar o galho. Este mês
reumatismo... o quê?... (Gargalhada) Criança se reconquista com carinho, doida, pancada
tenho a necessidade de uma grana extra para pagar a coleção de discos e dar um presente
estraga tudo... e daí?... ouve um instante... o divórcio está na moda, mas já não pensaste no
de aniversário à minha futura sogra. Posso contar com a sua tradicional solidariedade?
que é ser esposa de segunda mão?... por que vocês não vem jogar biriba hoje conosco?...
(Beija-a Intencionalmente.)
vamos esperar... sem falta, hein... não importa, amanhã é sábado... até a noite. (Desliga, vai
LORENA
sentar-se à mesa na varanda, Paola desce e assume lugar ao seu lado.)
É à custa desses beijos insossos que consegues me explorar, interesseira!...
PAOLA
PAOLA
Mãe, estou com medo da prova de hoje.
Mãe, você está um pouco pálida, reparou?
LORENA
JÉSSICA
Devias ter dormido mais cedo.
(Entrando) A coalhada estragou.
JÉSSICA
PAOLA
(Entra, serve Lorena, fita Paola.) Ovos?
Não tem importância. (Serve-se do que há na mesa, Bruno desce a escada, entra
PAOLA
na varanda, senta-se ao lado de Lorena.)
Coalhada . (Jéssica vai buscar.)
LORENA
LORENA
Tudo bem?
És uma boba com esse teu pessimismo. Afirmas que sairás mal em todas as
BRUNO
provas e sempre tiras nove ou dez. PAOLA Uma novidade, mãe.
Comigo sim, com meu fígado é que não. LORENA
Ivens foi promovido, agora será o chefe de todo o
departamento. LORENA O que eu e teu pai gostaríamos de saber é quantos anos ele ainda vai demorar para decidir o casamento.
Também , filhote, duas garrafas de uísques vazias em cima da mesa... (Bruno mira Jéssica, agastado.) JÉSSICA (Escapando para a cozinha.) Eu falei uma... PAOLA
PAOLA
Tu estás bebendo muito, mano, o que se passa contigo? O que há?
Por que vocês dão tanto valor a casamento? Ninguém liga mais a isso não.
BRUNO
LORENA
Simplesmente não há...
(Com jovialidade.) Comunica a teu pai esta ideia a respeito da inutilidade do
LORENA
casamento...
Esta eu não entendi.
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PAOLA
domingos é porque precisam mascarar o jogo político que fazem durante o resto da
Nem eu.
semana, a fim de iludir o povo.
BRUNO Por isso é que vocês nunca bebem.
LORENA Meu filho, sou ignorante nessas coisas, porém de coração eu entendo. Creio que
LORENA
ainda estás abalado pela tragédia, e o teu ressentimento, a tua mágoa, te fazem ver tudo
Agora eu compreendi ainda menos.
pelo lado negativo.
PAOLA
BRUNO
E eu idem.
Minha vida intelectual não tem nada a ver com a sentimental.
BRUNO
LORENA
(Gritando) Jéssica, a minha papa!
Conversa fiada... Só espero que, no fundo da alma, não guardes rancor do teu pai.
JÉSSICA
Tudo o que ele fez foi dizer aquilo que pensava; não podia imaginar que uma simples briga
(Alto, fora de cena.) Pensei que não ia acordar cedo, estou fazendo.
em família acabaria incentivando um suicídio. Aquela mulher, Bruno, com todo o seu
BRUNO
charme, sua cultura realmente finíssima, com todo o seu talento de artista, infelizmente não
Preguiçosa.
tinha um pingo de juízo, disseram até para nós que era viciada em drogas.
LORENA
PAOLA
Ela não podia adivinhar que te levantarias hoje às nove horas da madrugada...
Precisas reagir, mano, precisas no mínimo te apaixonar de novo, sair para um
(Sorri)
outro romance em vez de ficar querendo reformar o mundo. BRUNO
BRUNO
Esta noite fiz uma reflexão sobre a minha angústia existencial. Cheguei à
Não foi sem motivo que alguém já classificou a mulher como um animal de
conclusão de que ultimamente venho recorrendo ao álcool porque tenho um complexo de
cabelos longos e inteligência curta... vocês só pensam em termos de afetividade pessoal,
culpa, em virtude de não ter assumido, na prática, uma posição coerente com a minha
egoisticamente, sem visualizar a perspectiva sociológica da existência que tem uma
ideologia.
dimensão universal. Jamais ocorreu a vocês que atualmente, enquanto os casais felizes se
LORENA
deleitam na festa do amor, dentro das quatro paredes do chamado “lar, doce lar”, o mundo
Continuo sem entender patavina.
lá fora apodrece e ninguém faz nada sequer para evitar o mal cheiro? Sabem quantos
PAOLA
milhões de crianças morrem de fome por ano na América Latina e na África, e quantos
Eu já comecei a entender, segue em frente.
bilhões de dólares são investidos em armamentos pelas grandes potências?
BRUNO (Para Lorena.) Estou querendo dizer que, a despeito de você ser contra, vou pedir demissão do jornal. LORENA Acho que te arrependerás. BRUNO Saturei. São uns calhordas, manipulam a gente na razão direta dos interesses escusos que defendem. Se ainda não me tiraram a página sem censura aos
LORENA (Zombeteira para Paola.) Vamos mudar de assunto porque neste terreno o rapaz é uma sumidade. (As duas riem; Bruno esfria quase se deixando contaminar pelo bom humor delas.) BRUNO É por isso que não costumo abrir o diálogo franco com vocês: levam tudo para o deboche. (Entre conformado e irônico.) Quem não possui formação dialética é assim mesmo...
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LORENA
na frente de todo mundo, foi mais do que um gesto de falta de educação, foi um ato de
(Para ele, com a mesma inflexão trocista.) Esta indireta atinge apenas a sua irmã,
extrema burrice. Custava cumprimentá-la ou pelo menos ficar calado?
porque eu sou uma pobre analfabeta que somente completou o ginásio, mas para saber pensar direito nunca tive necessidade de formação... formação o quê?... DIETÉTICA?... (Bruno não resiste, acaba rindo.) PAOLA Deixem eu ir me preparar para pegar pela frente a “fera” do Conservatório. (Levanta-se e vai para o andar superior; Bruno afasta-se um pouco, Lorena carinhosamente leva-o para a sala.)
LORENA Neste ponto tens toda razão. Mas por causa de uma simples desfeita ela não necessitava se embriagar e fazer o que fez. Havia outras formas de se vingar; e quem sabe se, com paciência, não terminaria nos conquistando? BRUNO Você está por fora de tudo, mãe, já disse que pode ficar tranqüila. Minha ligação com a Beth não era romântica, conforme imagina; na verdade eu não gostava dela o
LORENA
bastante para me amarrar, se gostasse não daria bola à opinião do velho, sairia de casa e
Filho, precisamos ter uma conversa a dois em segredo, muito sincera.
assumiria concretamente o nosso relacionamento, como amante, desse no que desse.
BRUNO
LORENA
A respeito de quê?
Então por que te transformaste tanto com a sua morte?
LORENA
BRUNO
Do teu comportamento de uns tempos para cá.
Pelas circunstânicas em que morreu. A senhora queria que eu não sentisse nada?
BRUNO
LORENA
Eu não mudei nada. LORENA
Todos nós sentimos, ficamos abalados. Acontece que a tua tristeza está demorando demais a passar...
Não te faças de inocente, meu passarinho travesso.
BRUNO
BRUNO
Aí é que você se engana, passou há uns quinze dias.
Onde quer chegar?
LORENA
LORENA
Como?
Desde que... ela morreu...
BRUNO
BRUNO
Na semana retrasada conheci uma garota linda, mais culta e mais talentosa que a
Mãe, não vamos mais falar sobre isso.
Beth, sem os defeitos dela, inclusive sem vícios. Na primeira oportunidade vou lhe
LORENA
apresentar, agora por favor não comente esta novidade com ninguém.
Tens algum sentimento de culpa martelando a tua consciência?
LORENA
BRUNO
Isso me tranqüiliza um pouco, porém só um pouco.
Não.
BRUNO
LORENA
Por que não totalmente?
Juras?
LORENA
BRUNO
Porque sei que alguma coisa desagradável lateja no teu íntimo.
Pode ficar tranqüila. Eu não era apaixonado pela Beth como vocês julgam, nem
BRUNO
tinha qualquer projeto de viver sempre ao seu lado. A indelicadeza que o pai fez com ela,
Bobagem.
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LORENA
BRUNO
Confessa.
Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, a senhora ia me cobrar isso. Depois fica
BRUNO
posando de mãe moderna, liberal.
Realmente ando meio deprimido, mas todos os meus desgostos são de ordem
LORENA
intelectual.
E de fato sou. Desde que completaste vinte e um anos que brigo com o Bertolo
LORENA
defendendo o direito que tens de viveres a tua vida sem a nossa interferência. Não me
Por exemplo...
arrependo disso, nem pretendo te impor nada; somente não consigo compreender a
BRUNO
situação porque a bebida jamais foi o teu fraco, costumavas até criticar os amigos por
É inútil dizer, a senhora nunca entende, mãe. Sou uma pessoa que pensa em nível
jogarem fora nos bares o tempo que poderiam aproveitar lendo. De repente te puseste a
social, não pessoal. As minhas aspirações não são bem domésticas, o que me interessa é o
fazer o mesmo...
bem comum, a sorte da multidão dos pobres e marginalizados. A política deste país, para
BRUNO
mim, é uma tragédia mil vezes maior do que o provável suicídio de uma namorada. Sabe
Não exagere.
qual a última notícia que redigi ontem no jornal? Não foi que o Governo vai combater o
LORENA
desemprego e desenvolver a agricultura, tirando da miséria os trabalhadores urbanos e
(Afetuosa.) Bruno, olha firme nos meus olhos. O que há contigo?
doando terras aos lavradores escravizados: foi que a nossa indústria bélica, além de se
BRUNO
encontrar fabricando tanques e mísseis, começou a produzir uma bomba “constelação” que
Não sei, mãe.
ao explodir lança duzentos e cinquenta e duas granadas capazes de detonar
LORENA
simultaneamente, em um processo de cobertura de área terrivelmente destruidor. E para
Tens que te esforçar para esquecer...
negociar a venda de tal bomba já fechamos um contrato com o Iraque e a Arábia Saudita
BRUNO
no valor de dez milhões de dólares. Quer dizer: a fim de multiplicar os barris de petróleo
Já esqueci, acredite em mim.
que importa o Brasil agora vai ajudar os árabes em guerra a se matarem mais rápida e
LORENA
brutalmente. Estas coisas me deixam psicologicamente destroçado!
Então por que continuas a beber se começaste logo depois que ela morreu ou se
LORENA Mas, meu filho, só por isso?... BRUNO E a senhora ainda acha que é pouco?
matou? BRUNO Honestamente não sei como lhe responder. Sinto vontade de
LORENA
LORENA
Não, apenas acho que, quando a gente fica moralmente desmantelado, deve
Um calafrio.
procurar uma compensação que não seja prejudicial...
BRUNO
BRUNO
Calafrio?
O que está querendo insinuar?
LORENA
LORENA Estou querendo te aconselhar a procura de consolo nos livros, ou nos divertimentos sadios, não no álcool.
beber, e só. Uma
vontade persistente, constante, dominadora. (Lorena sofre um leve tremor.) O que foi?
Sim. (Coloca uma das mãos nas costas.) Parece que me subiu um vento gelado aqui pela espinha e veio bater na nuca.
589
590
BRUNO
BRUNO
(Depois de uma pausa.) Passou?
(Aprestando-se para deixar o recinto.) Isto é o início de uma gripe violenta, se
LORENA
cuide.
Mais ou menos. (Mostrando-lhe os braços.) Vê como estou toda arrepiada.
LORENA
BRUNO
Espera aí, respira fundo.
É.
BRUNO
LORENA
(Após fazê-lo.) Pronto, já respirei.
Engraçado...
LORENA
BRUNO
Não percebeste nada?
O quê?
BRUNO
LORENA
O que haveria de perceber?
Será o Terto queimando alguma planta seca aí fora? Mas não há fumaça?! (Vai
LORENA O ar... está... abafado...
observar na janela.)
BRUNO
BRUNO
(Com uma dose de carinho.) Absolutamente, minha velha, o seu nariz está
Não. E daí? LORENA
entupido. É gripe galopante que se anuncia.
O ar... meio carregado... não estás sentido?
LORENA
BRUNO
(Esfrega o nariz, o rosto.) E o vento frio?
Carregado de quê?
BRUNO
LORENA
Frio na espinha vem de dentro, não de fora.
Não dá para explicar.
LORENA
BRUNO
Tem alguma diferença no ar, tem que ter...
Como assim?
BRUNO
LORENA
Tolice.
Parece que o ar tem... uma espécie de eletricidade...
LORENA
BRUNO
(Respirando com dificuldade.) Tenho certeza de que tem...
Sim, e daí?
BRUNO
LORENA
(Notando que ela não está bem.) Mãe, o que há com você?
Que coisa mais incomodativa! Não estás mesmo sentido?
LORENA (Ofegante) Não sei dizer, o meu nariz não entupiu, o ar é que não quer entrar
BRUNO Sentindo o que, a eletrecidade do ar? Ora, mãe, eu não sou lâmpada.
nele...
LORENA
BRUNO
Interessante...
Que coisa mais absurda!
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LORENA
PAOLA
Ai, meu DEUS, eu não vou agüentar esta sufocação.
Telefona para o pai...
BRUNO
JÉSSICA
Relaxe, respire com força. LORENA
Amoníaco. Cheirar amoníaco é bom, tenho um vidro, vou apanhar. (Sai apressada.)
Não posso.
BRUNO
BRUNO
(Ao telefone, enquanto Paola prossegue abanando e acariciando Lorena.) Alô...
Pode sim.
de onde é?... chame o dono... é urgente, diga que a mulher dele teve um desmaio... um
LORENA
pequeno desmaio, também não vá alarmar... é o filho dele... (Para Paola.) Abriu os olhos?
A minha consciência está apagando...
PAOLA
BRUNO
Não. Estou vexada, será que ela demora a despertar?
(Aflito, vendo o corpo de Lorena balançar.) Reaja, mamãe, desde quando perdeu
BRUNO
sua fibra?
(Ainda ao telefone.) Pai?... a mãe teve um pequeno desmaio, ainda não voltou a
LORENA
si... eu acho que não é nada grave, contudo... faz menos de dois minutos... que médico?...
(Quase desfalecida.) Não posso... não posso...
não precisa se exasperar, poderia ser outro...venha imediatamente que a Paola está quase
BRUNO
entrando em pânico. (Desliga e consulta uma agenda telefônica.)
(Gritando) Paola! Jéssica! Corram depressa aqui!
JÉSSICA
LORENA
(Chegando com o amoníaco que derrama em algodão e leva ao nariz de Lorena.)
Eu... eu... eu... (Desmaia)
É um santo remédio, se ela não acordar já-já só éter ou injeção.
BRUNO
PAOLA
(Acomoda-a no sofá, ausculta-lhe os batimentos cardíacos, examina o seu pulso,
Como aconteceu isso com a mamãe? Não me conformo!
pega uma revista e põe-se a abaná-la; chegam Jéssica e Paola.) JÉSSICA
BRUNO (Disca o telefone.) É do consultório do Dr Begot?... desejo falar com ele, uma
Minha Nossa Senhora da Conceição!
emergência... a que horas chega?... diga que venha aqui no mesmo instante... casa da
PAOLA
família Martinez, ele sabe o endereço... obrigado. (Desliga)
Como isto aconteceu, mano???
PAOLA
BRUNO
(Exultante) Abriu os olhos.
Não deve ser nada grave.
JÉSSICA
PAOLA
Viu? Foi o meu amoníaco.
(Tomando o lugar de Bruno.).Que horrível, temos que fazer alguma coisa, o que
BRUNO (Corre para perto de Lorena.) Está bem?
se faz? BRUNO
PAOLA
Creio que é somente um desmaio, mas vamos tomar as providências.
Responda, mãe, você está bem?
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LORENA
BRUNO
O que houve comigo?
Em assunto de sino quem é especialista é a Jéssica.
PAOLA
LORENA
Salve, mãe, você é formidável.
Sons que espalham no ar uma...
LORENA
PAOLA
Eu dormi? Muito?
Vibração?
BRUNO
LORENA
Apenas por uns cinco minutos esteve fora do ar. LORENA
Isto mesmo! Vibração. Esta é a palavra! Havia como que uma vibração no ar que me atingia... (Levanta-se)
O ar... lembro que o ar não ficou sufocante, eu é que fiquei sufocada...
BRUNO
JÉSSICA
Chamei o pai, ele vem vindo aí a duzentos quilômetros por hora. E deixei recado
Não dá pra entender. PAOLA (Com graciosa ternura.) Eu também não compreendi. Agora, mãe, a senhora está falando tão complicado quanto o Bruno.
para o Dr. Begot lhe fazer uma visita urgente. LORENA (Refazendo-se plenamente ao impacto da informação.) Por que fizeste isso? Que disparate!
LORENA
PAOLA
É que o ar, em redor de mim, ficou assim como se estivesse...
Não podíamos ficar de braços cruzados.
BRUNO
BRUNO
Carregado de eletricidade.
(Para Paola.) Ela pensa que não é de carne e osso, só porque sempre teve uma
LORENA
saúde de ferro; depois o orgulhoso e cabeçudo sou eu. (Para Lorena.) Crie juízo e conte
Sim... aliás, sim e não.
direitinho ao médico essa estória da sufocação vibratória...
BRUNO Você é que disse.
LORENA Eu vou já desmarcar a visita do Dr. Begot, ele é muito útil para o teu pai mas eu
LORENA
dispenso seus préstimos. (Dirige-se ao telefone, antes de ligar vira-se para Paola.) Não
Falei em eletricidade porque não encontrei a palavra correta. O ar tinha aquilo que
tens uma prova agora?
a gente percebe no ambiente quando... soam certas músicas...
PAOLA
PAOLA
Tinha...
Harmonia?
LORENA
LORENA
Tinha não, tens.
Não...
BRUNO
PAOLA
Ela prefere ficar um pouco mais com a senhora, mãe.
Música melodiosa ou música estridente? LORENA Nem uma, nem outra... sons... sons de metal... como se fossem de sino...
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LORENA
ROSEMARY
Negativo. Vão cuidar da vida que estou boa, nova em folha. (Com bom humor.)
(Para Bertolo.) Eu estou perseguindo a batida, já avisei, não quero ouvir
Jéssica, depois me empresta este vidro de amoníaco que descobri como acordar quem amanhecer de pileque nesta casa... A luz se apaga. Ao clarear a cena são onze horas da noite do mesmo dia. Lorena
reclamação. BERTOLO É só o que você sabe fazer, mas sempre com uma penca de coringas (Joga uma
e Bertolo jogam baralho animadamente na varanda com Jefferson e Rosemary, um casal
carta que Rosemarry despreza.)
de amigos. Jefferson, que como advogado zela por interesses comerciais de Bertolo, tem o
ROSEMARY
singular aspecto físico de quem mistura pose de galã de cinema com a postura superficialmente compenetrada de juiz em fim de carreira, aureolado de auto-
Vai ter que descontar mais de quinhentos pontos agorinha, duvida? (Não logra bater com carta tirada do baralho, deposita-a na mesa.)
respeitabilidade; de compleição musculosa, veste-se com o apuro da moda. Rosemary, ao
LORENA
contrário, faz o gênero esportivo; de estatura média, é desinibida e simpática.
(É a sua vez de jogar, porém encontra-se inteiramente distraída, com o olhar
ROSEMARY
traduzindo pensamento vago; Jefferson e Rosemary fitam Bertolo, este mira a esposa
(Para Lorena.) Vamos lá, manda uma daquelas.
franzindo a testa entre zangado e interrogativo; os três trocam um silêncio de apreensão
LORENA
diante da fria impassividade de Lorena; conservam-se assim até que ela cai em si.)
(Descartando) Hoje é meu dia de azar.
Hein?... o que é? Já sou eu?...
BERTOLO Pior do que o azar é a falta de atenção. Bolas, se não queres jogar certo diz, que se bota um ponto final na partida.
ROSEMARY É você, querida, desta vez bota uma que preste como aquele valete de copas da primeira rodada.
JEFFERSON
BERTOLO
(Sentencioso, para Bertolo, pegando uma carta do baralho.) Não te aborreças por
Onde estás com a cabeça?
tamanha insignificância, meu caro. Todo aborrecimento oblitera o raciocínio além de afetar
LORENA
o fígado, já prelecionava um eminente tratadista da filosofia do Direito no apogeu da
Desculpem...
Renascença. Como sabes, o raciocínio obliterado não tem grande inconveniente, às vezes
JEFFERSON
até representa um bom negócio, mas o fígado vale a pena economizarmos após os 40 anos.
Talvez convenha fazermos logo o intervalo do lanche.
ROSEMARY
LORENA
(Para Jefferson.) Vamos tu também, vê se joga em vez de ficar fazendo
Já estão com fome?
conferência.
ROSEMARY
JEFFERSON
Não, para você se espertar.
(Desfazendo-se de uma carta, para Bertolo.) Comigo a marcação é cerrada,
BERTOLO
implacável, espartana. BERTOLO (Depois de vacilar apanha a carta, junto com todas as outras que estão na mesa.) Já que ela não pega nada, tenho de encher a mão.
Isso mesmo, é melhor darmos uma parada, para ela descansar; ontem dormiu aos pedaços e hoje de manhã teve um chilique de fraqueza. ROSEMARY Chilique?
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LORENA
BERTOLO
Mentira dele.
Não deixa atrasar, ele é um cretino que merece a lição.
BERTOLO
JEFFERSON
É, desmaio. Desmaiou sim. LORENA
Não te preocupes, ontem tive uma conversinha ao pé do ouvido com o escrivão do cartório.
Foi só um passamento-relâmpago, durou menos de dois minutos.
BRUNO
BERTOLO
Olá, pessoal.
Tive que me largar do trabalho para cá.
ROSEMARY
LORENA
Boa noite, Bruno.
Precipitação do Bruno que telefonou avisando sem necessidade.
JEFFERSON
ROSEMARY
Como vai a literatura?
Foi antes ou depois do telefonema?
BRUNO
LORENA
Como tudo neste país: deitada em berço esplêndido...
Momentos depois.
JEFFERSON
ROSEMARY
E a política?
Parecias tão bem disposta.
BRUNO
BERTOLO
Também deitada, não em berço esplêndido: em uma cama de prostituição.
Então interrompemos para comer?
ROSEMARY
JEFFERSON
(Provando o lanche.) Uma delícia, este pudim.
Excelente ideia.
LORENA
LORENA
Obrigada. Por acaso fui eu que fiz.
Bom, se preferem, cumpra-se a vontade de vocês e não a minha. (Abandonam a
JEFFERSON
mesa de jogo e se acomodam na outra, de refeição; Lorena assume a função de servi-los.) BERTOLO Ainda não é meia-noite, podias acordar Jéssica. LORENA O que me custa fazer isso? Deixa a coitada dormir, hoje foi dia de faxina.
(Para Bruno.) Tenho notado a falta dos seus artigos e até de um ou outro poema que às vezes você publicava. BRUNO Resolvi não assinar mais nenhuma matéria no jornal, só edito a página. Para quê? Não se pode dizer a verdade.
ROSEMARY
LORENA
Mas sim, conta como é que se deu o teu desmaio. (Bruno chega da rua, sóbrio,
Comes alguma coisa, filho?
caminha para a varanda.)
BRUNO
LORENA
Aceito. (Senta-se e é servido.) Como a senhora está?
Não foi nada de mais, esqueçam.
LORENA
JEFFERSON
Ótima.
(Para Bertolo.) Segunda-feira faço o protesto daqueles títulos.
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BRUNO
estremecimento corporal; os outros observam, ela disfarça e prossegue jogando, porém de
O ar continua puro, sem corrente vibratória?...
modo maquinal como se estivesse entregue a sucessivas ausências.)
LORENA
BERTOLO
Puríssimo.
É melhor pararmos.
BERTOLO
ROSEMARY
(Para Jeferson.) Gostaria que me conseguisse umas informações sobre o novo
Eu concordo.
contador da firma, ele não me parece flor que se cheire.
JEFFERSON
LORENA
Nada a opor. (Lorena rebenta em convulsiva crise de choro.)
(Para Bruno em voz baixa.) Queres um uisquinho? Só um, no máximo dois, e isto
ROSEMARY
porque estás de cara limpa.
Nossa mãe! O que houve?
BRUNO
BERTOLO
Não, não quero. Sabe que saí da redação com a turma do meu horário, entramos
Ela não está bem, desde esta manhã que não está bem.
no barzinho da esquina para discutir uma atitude velhaca do editor de política
ROSEMARY
internacional, todos beliscaram o corpo e eu fui o único que não tocou em álcool? Aquela
(Afagando Lorena.) O que é isto, minha querida?
vontade compulsiva de beber sumiu como por encanto.
BERTOLO
ROSEMARY
Eu devia ter trazido o médico de qualquer maneira, eu devia. Ela não quis.
(Para Lorena.) Qual é o teu programa amanhã?
JEFFERSON
LORENA
É de se lamentar.
O de costume.
ROSEMARY
ROSEMARY
Quem diria que ainda iríamos ver Lorena em lágrimas.
Então reserva meia hora para mim lá no clube que ainda preciso desabafar, não te
JEFFERSON
disse nem a metade pelo telefone.
Realmente... (Lorena continua em pranto.)
LORENA
ROSEMARY
Estarei a tua disposição.
Lorena, minha querida, ouve, escuta, fala comigo, o que é que você tem?
BERTOLO
BERTOLO
Como é, recomeçamos o jogo?
Acho que vou chamar o Dr. Begot agora mesmo.
ROSEMARY
JEFFERSON
A gente termina a partida outro dia, Lorena deseja repousar.
Não me parece que ele seja o clínico mais indicado para casos dessa natureza.
LORENA
BERTOLO
Quem, eu? Estou inteira, pronta para a luta e podem ir anotando, agora vou
Então quem eu chamo?
ganhar. (Desloca-se até a mesa do jogo, os demais a acompanham exceto Bruno, que dá
JEFFERSON
um “boa noite” formal e ruma para o andar superior; Rosemary toma iniciativa de
Aguardemos um instante para ver de que modo ela se comporta.
preparar o baralho, distribui as cartas, o jogo é reiniciado; todos nele se concentram,
ROSEMARY
expressando-se somente por interjeição nos primeiros minutos; súbito, Lorena tem um
(Para Lorena que apresenta tênue sinal de melhora.) Aliviou um pouquinho?
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JEFFERSON
LORENA
Não te afobes, a pressa é só inimiga da perfeição, é também inimiga do próprio
E eu sei?
apressado.
BERTOLO
ROSEMARY
Como não sabe?
Querida, por favor, me conceda um pouco de atenção: você pode sair desse
LORENA
estado, basta se esforçar. (Lenta e gradativamente Lorena vai se recompondo.)
Não sei não.
BERTOLO
BERTOLO
Felizmente...
Esta é boa!...
JEFFERSON
JEFFERSON
É o que te disse, não devemos agir nunca com açodamento.
Original, não há dúvida.
BERTOLO
ROSEMARY
Mas que trago amanhã cedo um médico a esta casa, trago, ainda que ela não
Lorena, você teve uma violenta crise de choro em nossa frente, qual foi o motivo?
queira.
LORENA JEFFERSON
Nenhum...
Por enquanto, salvo melhor juízo, é suficiente dares um calmante para fazê-la
JEFFERSON
dormir.
Chora-se por algum motivo, é evidente. BERTOLO
LORENA
Ontem ela dormiu pessimamente, levantou no meio da noite com um pesadelo.
Eu sei que chorei sem motivo. A verdade é esta. (Os três se entreolham,
JEFFERSON Depois de um sono profundo, reparador das energias perdidas, acordará fortalecida; amanhã se diverte um pouco conosco no clube e segunda-feira vai ao consultório médico, se voltar a se sentir mal. BERTOLO Talvez tenhas razão. JEFFERSON Seguramente. LORENA (Refeita) Passou. ROSEMARY Passou o quê? Diz para a gente. LORENA O choro, não viste? ROSEMARY Sim, mas o que fez você chorar?
perplexos.)
603
SEGUNDO ATO
604
JÉSSICA Ai, meu Jesus Crucificado, que desdita.
Seis meses depois.
BRUNO
Cena deserta com alguma mudança na arrumação do mobiliário denunciando o
Por que fez isso, mãe?
tempo transcorrido. É madrugada, Lorena desce a escada lentamente em transe sonambúlico, de olhos abertos, vítreos, cabelos em desalinho e face congestionada, seus passos são
PAOLA Fale, mãezinha. BERTOLO
claudicantes, os pés descalços; veste uma camisola branca de seda, dirige-se ao
Responde. Não está em ti? (Lorena retoma o esforço para se libertar.)
escritório, abre todas as gavetas da escrivaninha de Bertolo, rasga os papéis nelas
BRUNO
existentes e atira os pedaços ao chão, fazendo o mesmo com o conteúdo das pastas da
Perdoe, não vamos largar de jeito nenhum.
estante; concluída esta tarefa brilha em seu rosto um sorriso faiscante de ódio saciado;
BERTOLO
desloca-se para a sala, coloca um disco na eletrola, música de jazz, som baixo; dança, a
(Sacudindo-a) Para com esta loucura!
princípio contraída, a seguir com crescente desenvoltura; troca o disco por outro de
PAOLA
música erudita, ainda em tom baixo, ensaia um bailado e à medida em que vai soltando os
(Repreensiva) Pai!...
movimentos também os interrompe para aumentar cada vez mais o volume do som, até
BRUNO
uma altura suficiente para acordar os familiares e Jéssica que, em roupa de dormir,
(Idem) Veja como fala...
acorrem à sala, estupefatos.
BERTOLO
BERTOLO
Desculpem, é que agora parece que ela ficou de vez transtornada.
Não é possível!!!
JÉSSICA
PAOLA
Temos todos que fazer promessa, só um milagre...
Mãezinha da minha alma, o que é isto???
BERTOLO
JÉSSICA
(Para Jéssica.) Cala esta boca estúpida. (Obrigam Lorena a sentar-se em uma
Valha-me Maria Santíssima!!! BRUNO Não posso crer no que estou vendo!!! BERTOLO É o cúmulo. (Segura Lorena que tenta vigorosamente se desvencilhar enquanto Paola desliga a eletrola.)
poltrona.) PAOLA Olhem, reparem o rosto dela. (A face de Lorena permanece congestionada e os seus olhos, depois de focalizarem Bertolo com desprezo, fixam-se em Bruno.) BRUNO Este olhar me recorda não sei o que...
BRUNO
BERTOLO
(Auxiliando o pai.) Agarre assim.
Temos que falar outra vez com o médico agora mesmo.
PAOLA
BRUNO
Cuidado para não machucar. (Finalmente Lorena é imobilizada>)
Não há outra alternativa. PAOLA Ele não vai gostar de ser acordado a esta hora.
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BRUNO
PAOLA
Se não gostar a gente manda ele às favas. Afinal de contas, esse cara vem tratando
(Ao telefone.) Ninguém atende.
da mamãe há um mês e não vimos qualquer melhora.
BRUNO
PAOLA
Insiste (Paola liga novamente.)
Não sei se devemos continuar trocando de médico com tanta facilidade; este é o
BERTOLO
quinto que chamamos em seis meses.
Quer que eu fale?
BRUNO
BRUNO
É um incompetente.
Deixe comigo.
BERTOLO
PAOLA
E os outros mostraram mais competência?
Alô... de onde é?...
BRUNO
BRUNO
Seria uma atitude sensata de nossa parte experimentar o tal médico que o Dr.
Ora viva, vejamos no que dá.
Jefferson nos recomendou. Ele é famoso, fez vários cursos de especialização em Psiquiatria nos Estados Unidos. PAOLA Eu anotei o endereço dele, inclusive o telefone da residência. Está na agenda. BRUNO
JÉSSICA (Fazendo figa com os dedos.) É torcer para esse médico não ser mal educado como o outro. BRUNO (Substituindo Paola ao telefone.) Alô... quem fala?... doutor, tenha a bondade de
Podíamos então ligar agora.
relevar esta ligação tão imprópria, é que estamos em apuros... Bruno, Bruno Martinez, o
PAOLA
senhor não me conhece... um amigo, Dr. Jefferson, advogado... pois é, ele sugeriu que o
Mas nem conhecemos o homem e vamos logo atacando de madrugada? Não é
procurássemos para dar assistência à minha mãe... o caso dela é difícil, de inícios supomos
distinto...
que fosse apenas esgotamento nervoso, mas já admitimos que o problema em parte é
BRUNO
mental... ela acaba de nos acordar fazendo uma extravagância inconcebível... estamos
Não é distinto uma droga. Quando chegam as necessidades os costumes
arrasados... sim, para ser sincero lhe informo que já recorremos a cinco médicos, apesar de
desaparecem, já dizia Sófocles há mais de dois mil anos. Liga para esse sujeito.
tudo ter começado há seis meses atrás... nenhum resultado positivo, somente piora... tem
PAOLA
cinquenta anos... neste instante deparamos com ela dançando sozinha, foi um sacrifício
Você fala?
para contê-la... está sentada, semelhante a uma estátua de pedra sem pronunciar uma
BRUNO
palavra... queremos que o senhor venha vê-la o mais depressa, se possível agora, e assuma
Falo. (Paola vai ao telefone e disca, após consultar a agenda.)
todo o tratamento... o primeiro foi um clínico, os três seguintes neurologistas e o último
JÉSSICA
psiquiatra... um momento...(pega caneta e papel.) pode dizer... (Escreve) Nós moramos na
Por que será que ela não diz uma única palavra?
avenida General Gonzalez número doze... um “bungalow” perto da praça... ficamos
BERTOLO
bastante agradecidos.. até logo mais.
(Para ela.) Já disse para calar a boca!
BERTOLO
BRUNO
Ele vem?
Este olhar da mãe me corta como se fosse uma lâmina afiada.
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BRUNO
BRUNO
Depois do café estará aqui.
Não é para menos. E pensar que a mãe sempre teve tanta saúde, tanto bom senso e
PAOLA
tanta alegria de vover!...(Lorena repõe o olhar fuzilante em Bruno.)
Parabéns.
PAOLA
JÉSSICA
Quem diria!...
Não demora a amanhecer.
BERTOLO
PAOLA
(Para Bruno.) Pelo que se nota a discórdia é comigo e contigo.
E o que fazemos enquanto ele não chega?
PAOLA
BRUNO
E eu, Bruno, que às vezes tinha ciúme porque achava que ela amava mais a ti do
É ára damos a ela um comprimido desse remédio. (Mostra a anotação a Bertolo.)
que a mim...
BERTOLO
BRUNO
Precisamos comprar, não temos aqui.
Bobagem tua.
JÉSSICA
PAOLA Mas ainda te adora e te admira como a nenhuma outra pessoa, disso tenho toda
Vou acordar o Terto. (Retira-se) BRUNO
convicção. JÉSSICA
O que mais me confunde é essa mudez da mãe: por que será que ela não fala? Observem como parece que raciocina, como parece que conserva a sua lucidez embora
(Chega com Terto.) Cadê o papel com o nome do remédio? (Bruno entrega-o.)
esteja com a consciência alterada. (Lorena não tira os olhos dele.) Este olhar me fere como
BERTOLO (Dando dinheiro a Terto.) Vê se não vai como uma palerma, quero isto em dez
um punhal de acusação, esbraseado em cólera. PAOLA (Para Bruno.) Ela só olha assim para ti... (Demonstrando ter registrado o que
minutos. TERTO
Paola disse, Lorena desvia o olhar de Bruno e o centraliza em Bertolo com o mesmo
Sim senhor. O que deu nela?
acento de agressividade.)
BERTOLO
BRUNO
Não é da tua conta.
(Para Paola.) Viu?
JÉSSICA
PAOLA
(Para Terto.) Ponha-se no seu lugar, intrometido.
É inacreditável.
TERTO
BERTOLO (Para Lorena.) Está com raiva de mim?
“Seu” Bertolo, me dê permissão para um conselho de velho, nessa atribulação de dona Lorena. Tenho pena dela e não posso mais ficar de boca pregada.
PAOLA
BERTOLO
(Para Bruno.) Quando ela sair do fundo desse poço eu é que tenho de procurar um
Sai logo.
médico; sinto-me emocionalmente arrebentada.
PAOLA Deixe ele falar, pai, não custa ouvir.
609
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TERTO
E ainda podem escrever o seguinte: aquele que comentar na vizinhança o que aconteceu
(Apontando Jéssica.) Já cansei de suplicar a ela para dizer ao senhor e aos
esta noite eu boto no olho da rua; com menos de um ano ou com mais de trinta anos de
meninos que dona Lorena carece...(Faz uma pausa cautelosa.)
serviço, mando pro inferno.
PAOLA
BRUNO
O que? Diga, não tenha medo.
Calma, pai, calma.
TERTO
PAOLA
Tomar uns passes.
(Para Bertolo.) Não esqueça da pressão alta, basta um enfermo.
JÉSSICA
BERTOLO
Era só o que faltava!
Quem pode se controlar com tanta azucrinação? Eu não sei mais o que fazer para
TERTO
livrar a mãe de vocês desse sofrimento.
(Para ela.) Você desfeiteia porque é carola de igreja.
PAOLA
JÉSSICA
Nem eu.
(Exaltada) Velho macumbeiro, me respeita.
BERTOLO
BERTOLO
O que vamos fazer se esse novo médico não resolver nada?
Que atrevimento é este? Vocês têm a petulância de brigar na minha frente?!
PAOLA
JÉSSICA
É... o que faremos?
Ele se encostou aqui há menos de um ano e já tem o desplante de meter o bedelho
BRUNO
na vida da família.
Dolorosa interrogação.
BERTOLO
BERTOLO
(Para Bruno e Paola.) É no que dá a mania que a mãe de vocês tem de permitir
Já não tenho paz de espírito para trabalhar. Esta noite fiquei um tempão
intimidades com empregados. PAOLA
organizando a papelada aí no escritório porque estava atrasada desde o mês passado. (Lorena olha para Bertolo e deixa escapar uma gargalhada sarcástica.)
Obrigada, Terto, mas outros já nos ofereceram o seu conselho e não aceitamos.
PAOLA
BERTOLO
Ela riu!
(Para ele.) Vai logo comprar o remédio.
BRUNO
JÉSSICA
Riu...
(Idem) Vai logo, presunçoso. (Terto sai para a rua.)
BERTOLO
BERTOLO
Pelo menos isso. (Lorena volta-se para Bruno.)
Essa gentinha ignorante é pretensiosa.
BRUNO
JÉSSICA
Riu não é bem o termo...
E herege.
PAOLA
BERTOLO
Como não?
Também não estou interessado na tua opinião. E tem mais: de hoje em diante
BRUNO
todos os dois ficam proibidos de dar palpites sobre o que devemos ou não devemos fazer.
O olhar dela tem algo de... sarcasmo.
611
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BERTOLO
BERTOLO
Do que teria rido?
E ele não chega, só demitindo esse idiota. (Depois de uma pausa Lorena renova
PAOLA Ela riu quando você, pai, disse que consumiu um tempão para por em ordem os
as gargalhadas com tal intensidade que desmaia.) JÉSSICA
seus documentos. (Lorena olha outra vez para Bertolo e desata uma gargalhada mais
Tenham paciência, mas vou trazer o amoníaco. (Sai)
longa do mesmo teor.)
BRUNO
BERTOLO
Jéssica só quer ajudar.
O que significa isso?
BERTOLO
BRUNO
Uma grande imbecil, é o que ela sempre foi. E esse velho aleijado não aparece
Se pudéssemos adivinhar as ideias e os sentimentos que povoam o seu íntimo...
com o remédio...
(Lorena emenda as gargalhadas com características crescentes de escárnio, fitando ora
PAOLA
Bertolo, ora Bruno.)
Talvez tenha encontrado fechada a farmácia de plantão mais perto. (Lorena
PAOLA
desperta abruptamente, os três ficam atônitos pela forma como ela retorna à
A encrenca é mesmo com vocês, pra mim ela não dá a menor atenção.
normalidade.)
BRUNO
BRUNO
Se houvesse um meio de fazê-la falar...
Mãe, o que houve?
BERTOLO
PAOLA
Não é isso que chamam de histeria?
Mãezinha, acordou?
BRUNO
BERTOLO
Parece.
Lorena, estás bem?
BERTOLO
LORENA
Ouvi dizer que uma bofetada... liquida a fatura.
O que aconteceu?
BRUNO
BERTOLO
Quem tem coragem de aplicar?
Nada... quer dizer...
BERTOLO
LORENA
Eu, se não existir outro recurso.
(Perpassa o olhar pelo recinto.) Estamos na sala...
PAOLA
BRUNO
Ninguém vai bater na mãe!
Sim...
JÉSSICA
PAOLA
Amoníaco não adianta quando ela piora...
É a sala...
BERTOLO
BERTOLO
(Para ela.) Continua calada ou some daqui. (Jéssica encolhe-se.)
Claro que é a sala...
BRUNO
LORENA
O medicamento que Terto foi comprar provavelmente vai arrancá-la desse delírio.
Eu dormi na sala?
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BERTOLO
LORENA
Isso mesmo...
Bem, apenas um pouco zonza.
PAOLA
BERTOLO
Dormiu...
Lembra de alguma coisa?
LORENA
LORENA
Que horas são?
De quê?
BERTOLO
BERTOLO
Umas cinco horas da madrugada.
Qualquer coisa?
LORENA
LORENA
Como dormi aqui? Eu não estava deitada no quarto?
Não, não lembro.
BERTOLO
BRUNO
É, estava... (Lança a vista para Bruno e Paola.)
É melhor subirmos para ela repousar.
BRUNO
PAOLA
Lógico que estava.
É melhor, sim.
LORENA
LORENA
E por que me trouxeram para cá?
Vocês não responderam a minha pergunta.
BERTOLO
BRUNO
Nós não trouxemos.
Qual pergunta?
PAOLA
LORENA
Pai...
Se eu me deitei lá em cima, como vim parar aqui?
JÉSSICA
BERTOLO
(Surge com o vidro de amoníaco e algodão.) Pronto...
Bom... é que...
BERTOLO
BRUNO
Pode jogar fora esta porcaria.
Simples... muito simples... você veio abrir a porta para mim...
JÉSSICA
LORENA
(Encabulada, embora satisfeita com o estado de Lorena.) Nosso senhor seja
Tens a chave.
louvado.
BRUNO BERTOLO E pode também ir dormir que a nossa conversa agora é particular.
Perdi.. toquei a campainha várias vezes... você se levantou e desceu com tanto sono que... depois da minha entrada, caiu dormindo na poltrona...
JÉSSICA
LORENA
Boa noite. (Sai contrafeita.)
Esta estória está me soando falsa.
PAOLA
BRUNO
Como você se sente, mãe?
Foi precisamente o que ocorreu.
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BERTOLO
BERTOLO
Nem mais nem menos.
Não estamos não.
PAOLA
BRUNO
Exato. (Toca a campainha, Bruno abre a porta.) TERTO
Por que haveríamos de esconder? A senhora sempre foi mais amadurecida do que todos nós juntos.
Demorei?
BERTOLO
BERTOLO
O teu mal é ser desconfiada.
Ainda pergunta, seu irresponsável!
LORENA
TERTO
O que me aconteceu durante a crise?
Com esta perna só posso andar me arrastando, porém lhe afianço que corri como
BERTOLO
um condenado. (Entrega a Bertolo o embrulho de remédio e o troco.)
Já dissemos tudo sem tirar nem por.
LORENA
LORENA
O que é isto?
Pois sim!...
TERTO
BRUNO
Seu remédio.
Vamos subir? Eu estou com sono.
LORENA
PAOLA
Mas os vidros do meu remédio não estão nem pela metade.
Eu também.
BERTOLO
BERTOLO
(Embaraçado) De fato... é que nós escolhemos um outro remédio... mais
Ainda pegamos um bom descanso até o novo médico chegar.
poderoso, como se diz...
LORENA
BRUNO
Não sei se vou querer trocar de médico outra vez.
Mais eficiente, mãe. Você teve uma pequena crise daquelas, telefonamos para o
BERTOLO
médico recomendado pelo Dr. Jefferson e ele receitou, prometendo que ainda hoje de manhã vem visitá-la.
Depois se discute isso. (Deixam a sala, Lorena na frente amparada por Paola, Bruno em seguida, Bertolo por último; quando os três primeiros começam a subir os
LORENA
degraus da escada, Bertolo, da ante-sala, divisa papéis no chão do seu escritório, corre
E precisava tirar da cama o pobre do Terto a esta hora?
para lá, toma ciência instantaneamente do estrago que Lorena em transe fez com seus
TERTO
preciosos documentos, espreme a cabeça com as mãos, desesperado.)
Eu acordei com prazer, dona Lorena, a senhora merece.
A luz se apaga.
BERTOLO
Ao clarear cena são sete horas da noite, um mês depois.
(Para ele.) Chega de conversa fiada, pode ir embora.
Jéssica, de avental na varanda, prepara a mesa para o jantar. Toca a campainha,
TERTO
ela vai à sala, abre a porta e faz entrar o Dr. Alcolombre, um médico vestido a rigor, com
Com licença. (Retira-se.)
jaleco, calça e sapatos brancos, que fala manobrando uma entonação de voz professoral e
LORENA
gesticula com finura calculada.
Vocês estão me escondendo alguma novidade muito ruim.
617
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Dr. ALCOLOMBRE
JÉSSICA
É a residência da família Martinez?
O último era bonzinho, sabe? Colega de infância do Dr. Jefferson, muito escolado,
JÉSSICA
fez curso na América do Norte, não se aborreceu quando foi acordado cinco horas da
Justamente.
madrugada na primeira vez que chamamos e até receitou pelo telefone; tivemos que
Dr. ALCOLOMBRE
mandar comprar o remédio em farmácia de plantão...
Sou o médico com quem a filha da senhora Lorena esteve ontem no consultório, vim visitá-la.
Dr. ALCOLOMBRE Você é parenta da paciente?
JÉSSICA
JÉSSICA
Estão todos lá em cima, sente que vou avisar.
(Ajustando o avental.) Sou empregada, mas é como se pertencesse à família,
Dr. ALCOLOMBRE
ajudei a criar os meninos, todos me estimam, a não ser o “seu” Bertolo que não estima
Chame apenas o esposo, por obséquio.
ninguém. Vou avisar a ele que o senhor chegou.
JÉSSICA
Dr. ALCOLOMBRE
Não quer o resto?
Espere um momento, o que afirmou a respeito do Sr. Bertolo?
Dr. ALCOLOMBRE
JÉSSICA
Primeiro desejo ter uma entrevista só com o doutor Bertolo; este é seu nome,
Nada não... Dr. ALCOLOMBRE
não? JÉSSICA
Não se constranja, tudo o que me informar será útil para o diagnóstico.
O nome é, mas ele nunca foi doutor, é comerciante.
JÉSSICA
Dr. ALCOLOMBRE
Não é que eu tenha intenção de tesourar o patrão, Nosso Senhor castiga quem fala
Grato pela retificação.
mal dos seus semelhantes, mas a verdade não posso negar: ele é um homem bruto demais,
JÉSSICA
vive xingando todo mundo.
Chamo já o patrão. O senhor, para médico, ainda é bastante moço.
Dr. ALCOLOMBRE
Dr. ALCOLOMBRE
Inclusive a esposa?
Tenho quase quinze anos de formado.
JÉSSICA
JÉSSICA
Ela não.
Mas em comparação com os outros é jovem.
Dr. ALCOLOMBRE
Dr. ALCOLOMBRE
A senhora é alguém altamente importante para me prestar um depoimento
Outros? Quantos?
meticuloso sobre os antecedentes do caso.
JÉSSICA
JÉSSICA
O senhor é o sétimo. Coitada... seis médicos para nada.
Não seria capaz de pensar... eu sou mesmo importante?
Dr. ALCOLOMBRE
Dr. ALCOLOMBRE
Eu lamento.
É. Preciso palestrar demoradamente com uma por uma das pessoas que cercam a senhora Lorena, a fim de coletar dados com os quais identificarei a causa da sua
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620
enfermidade. A não ser assim qualquer tratamento produzirá resultados meramente
BERTOLO
paliativos.
Vamos sentar.
JÉSSICA Já estou fazendo fé no senhor. Dr. ALCOLOMBRE Sou um médico diferente dos tradicionais, o meu método é psicanalítico. Dá para a senhora compreender?
Dr. ALCOLOMBRE Não pude vir mais cedo, ia saindo do consultório quando surgiu uma cliente em situação de desespero. BRUNO Isso é comum, a gente entende.
JÉSSICA
Dr. ALCOLOMBRE
Não senhor.
Se vão jantar eu...
Dr. ALCOLOMBRE
BERTOLO
É evidente.
Não se preocupe com a nossa refeição; chegou na hora certa.
JÉSSICA
PAOLA
Nesta casa quem compreende tudo é o filho dela; posso chamá-lo também?
Foi realmente providencial a sua chegada, há poucos minutos ela teve uma crise
Dr. ALCOLOMBRE
como aquela que lhe relatei. Não rasgou os documentos do pai mas espatifou um quadro
Minha opção é conversar apenas com um de cada vez. Inicialmente com o Sr.
com o Retrato de Bruno.
Bertolo. (Paola, Bruno e Bertolo descem a escada.)
BRUNO
BRUNO
Agora está dormindo.
(Gritando) Jéssica, o jantar está na mesa?
BERTOLO
PAOLA
Pode ir vê-la, isso não é problema.
Vamos aproveitar enquanto ela cochila.
Dr. ALCOLOMBRE
BERTOLO
Não, não, antes de qualquer contato com ela eu prefiro me inteirar das
Não tenho fome.
circunstâncias em que a perturbação começou e de uma série de elementos relacionados
JÉSSICA
com a sua vida desde a pré-adolescência.
(Desloca-se para a ante-sala.) Tem um médico ai.
BRUNO
PAOLA
Este cuidado é muito inteligente.
O Dr. Alcolombre?
Dr. ALCOLOMBRE
JÉSSICA
(Contente com a observação de Bruno,) Não adoto o modelo terapêutico
Nem tive tempo de perguntar o nome dele...(Dirigem-se os três para a sala, Jéssica para a varanda.)
convencional. BRUNO
PAOLA
Temos conhecimento desse detalhe, aliás, por isso é que Paola foi procurá-lo.
Olá, doutor.
Dr. ALCOLOMBRE
Dr. ALCOLOMBRE Boa noite. (Cumprimentam-se com apresentação.)
(Mais entusiasmado.) Utilizo um receituário parcimonioso, minha abordagem da patologia psíquica é preponderantemente freudiana, embora empregue às vezes os maravilhosos recursos da Parapsicologia.
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BRUNO
Dr. ALCOLOMBRE
Isso também é inteligente. Eu suspeito que as últimas pioras dela resultaram de
A confusão que o senhor cita são os desdobramentos de personalidade?
intoxicação medicamentosa.
BRUNO
Dr. ALCOLOMBRE
(Interferindo ponderadamente.) Deixe eu explicar, pai. Até esta data, ela só teve,
Você estudou psicologia?
na verdade, dois ataques nos quais expressou dupla personalidade, um há cinco semanas
BRUNO
atrás quando rasgou documentos, outro hoje. No entanto, por mais de seis meses vem
Não, sou jornalista, leio sobre tudo.
sendo acometida de toda sorte de perturbações emocionais, e mentais mesmo, menos
Dr. ALCOLOMBRE
graves.
Seu preparo cultural funcionará como suporte de apoio para a minha atuação.
Dr. ALCOLOMBRE
BRUNO
Pode enumerá-las pela ordem em que surgiram?
Folgo em saber.
BRUNO
Dr. ALCOLOMBRE Necessitarei da credibilidade e da colaboração total dos membros da família.
Sono bruscamente interrompido por uma voz gritando seu nome. Tudo teve início com esse episódio.
BERTOLO
BERTOLO
Terá.
Choro sem motivo.
PAOLA
PAOLA
O senhor representa praticamente a nossa derradeira esperança para evitar o
Sufocamentos, palpitações.
internamento.
BRUNO
Dr. ALCOLOMBRE
Fobias, ausências.
É bom que pensem assim, a tendência de paciente internado é converter neurose
PAOLA
dissociativa em psicose irremissível.
Impressão de ver uma sombra por perto.
BERTOLO
BERTOLO
É...(Olha para Bruno e Paola sentindo todo o peso de sua ignorância.)
E vontade de beber que ela resiste porque sempre detestou álcool...
Dr. ALCOLOMBRE
Dr. ALCOLOMBRE
Antes de me comprometer com o caso preciso de uns esclarecimentos genéricos. Ela fez tomografia cerebral computadorizada?
No momento tenho especial interesse pelo seu procedimento durante as duas crises de agressividade. Posteriormente, deverei efetuar um levantamento dos fatores
BRUNO
traumáticos através de entrevistas isoladas com ela e com cada membro da família. Para
Todos os exames radiológicos, e os outros de praxe, foram criteriosamente
não perderem o apetite do jantar, e como ainda quero vê-la, digam-me apenas uma coisa
realizados. Podemos lhe garantir que ela não possui nenhuma lesão no cérebro e nenhuma
sumamente relevante: o que ela falou no instante em que destruiu os objetos. (Os três se
disfunção orgânica.
olham, frustrados.)
BERTOLO
BRUNO
O que nos deixa desnorteados, doutor, é que além dela não ter nada no organismo
Aí é que está o “xis” da questão, ela não falou nada.
a crise aparece quando menos se espera. Às vezes passa oito, dez dias lépida e faceira, de
BERTOLO
repente a confusão estoura.
Não disse uma única palavra.
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PAOLA
LORENA
Somente fitava com rancor o pai e o Bruno.
(Transfigurada, em tom imperativo.) Não é necessário o doutorzinho pedante
Dr. ALCOLOMBRE
subir para me ver, eu desço por conta própria. Guerra é guerra! (Todos ficam pasmos de
Foi? (Jefferson desce a escada.)
surpresa.)
PAOLA
BRUNO
Parecia que desejava devorar os dois.
Ela falou!!!
Dr. ALCOLOMBRE Este pormenor é digno de acurada consideração. JEFFERSON (Que ia para a varanda mas percebeu a conversação na sala e para lá se dirigiu.) Já jantaram? BERTOLO Não, desculpa o atraso. (Apresenta-o ao Dr. Alcolombre.) Um amigo nosso,
LORENA (Para ele.) Falei, canalha, porém “não acende o facho da tua glória porque ele se apagará na fumaça do arrependimento tardio”. BRUNO É fantástico! O fim da frase é de um poema que escrevi e nunca foi lido por ninguém. Escrevi e rasguei cinco minutos depois. Dr.ALCOLOMBRE
advogado da minha firma, veio nos visitar com a esposa e ficaram lá em cima vigiando a
Vamos ouvi-la com atenção.
Lorena a fim de descermos para comer.
PAOLA
JEFFERSON
Que coisa espetacular. (Jéssica vem da varanda.)
Ela despertou e não está nada bem.
LORENA
BERTOLO
(Mais contundente.) Quietos, raça de víboras! (Jéssica se benze.)
A crise de novo?
JÉSSICA
JEFFERSON
Até que enfim ela falou...
Não sei, os olhos dela parecem despejar fogo.
LORENA
PAOLA
Quietos!!!
Não me diga!
Dr. ALCOLOMBRE
BERTOLO
Obedeçam. Só façam o que eu mandar.
Barbaridade!...
LORENA
Dr. ALCOLOMBRE Eu posso vê-la agora?
(Para Rosemary, com rispidez.) Larga e desce! (Ela solta Lorena e desce a escada apavorada.)
BRUNO
ROSEMARY
Por que não?
Jefferson, me acode.
BERTOLO
Dr. ALCOLOMBRE
Vamos. (Ao penetrarem na ante-sala, Lorena desponta no topo da escada,
Conservem-se calados, não estraguem esta rara oportunidade de sondarmos os
trazendo de roldão Rosemary, que busca detê-la.)
depósitos inconscientes dela.
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LORENA
LORENA
(Ainda do alto da escada, cruel, majestosa.) Aqui estou para vingança neste corpo
Hipócrita. A única coisa que respeitas é o preço elevado que cobras pelas
que não me pertence, como fera sedenta de sangue! Quem se habilita a me enfrentar? BERTOLO
consultas. Quantas vezes planejas voltar aqui por semana para engordar a tua conta bancária, com a promessa de me afastar deste corpo? Estás muito enganado.
Lorena...
JÉSSICA
LORENA
(Chega trazendo uma bandeja, a garrafa de uísque e o copo.) A bebida...
Eu não sou Lorena Martinez!!! E não me dirige a tua palavra de negociante
LORENA
safado, inescrupuloso. Sobre ti, miserável, ainda derramarei toneladas de chumbo fervente
(Enche o copo e de um trago bebe a metade.) Quero fumar.
em minha ira sagrada.
BRUNO
BRUNO (Murmurando) Não é possível, a mãe jamais falaria deste modo...
(Adianta-se na oferta do cigarro; ela crava-lhe um olhar feroz e se aproxima de Jeferson.) Tudo bem...
LORENA
JEFFERSON
Cala-te também, covarde! Não baba as tuas ideias nojentas que para mim destilam
O meu não tem filtro. (Entrega um cigarro a Lorena, acende-o.)
o veneno da traição! (Desce a escada.) Todos na sala, sentados e inertes. Dr. ALCOLOMBRE (Diligenciando para que a determinação seja cumprida.) Vamos, não percam a calma, saberei conduzir tecnicamente a situação, sou também parapsicólogo.
LORENA Bebe a outra metade de uísque do copo, enche-o novamente: põe-se a circular pela sala fumando e bebendo sem proferir qualquer palavra, e assim consome quase todo o uísque da garrafa, apresentando progressivamente sinais de embriaguez diante do grupo
PAOLA
que, a princípio atônito e depois curioso, por fim impacienta-se; quando ela percebe, já
É assombroso...
cambaleante pela ação do álcool, que alguns se inclinam para uma reação enégica, então
LORENA
fala. A festa acabou, vou deixá-los em paz. Porém apenas por uns dias.
(Para Jéssica.) Exceto tu, aranha fanática de confessionário paroquial. Vai me
Dr. ALCOLOMBRE
buscar um copo e uma garrafa de uísque. (Jéssica mira Bertolo, que fita o Dr. Alcolombre;
Não faça isso, eu esperei tanto para lhe fazer umas perguntas
este faz um aceno afirmativo, ela desloca-se para a varanda, apalermada; os outros se
LORENA
acomodam nos acentos da sala.)
Consintam que eu dê um adeus ao meu modo. (Cruza a sala, para em frente de
JEFFERSON
Bruno e, imponente, cospe-lhe no rosto; logo a seguir tomba desfalecida.)
(Baixinho para Rosemary.) Que coisa espantosa!
PAOLA
LORENA
Mãezinha! (Todos se acercam no afã de ampará-la.)
Não sei se vale a pena dizer o que vocês merecem ouvir...(Passeia na sala de um
LORENA
lado a outro, sem nada falar, aumentando propositadamente a expectativa.) Dr. ALCOLOMBRE (Para ela.) Estamos dispostos a ouvi-la respeitosamente.
(Despertando) O que foi?... Onde estou?... Por que isso?... Que cheiro de bebida é esse?... (Para Bertolo, constatando a presença do Dr. Alcolombre.) Quem é ele?... BERTOLO Um médico. BRUNO Está bem, mãe?
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LORENA
TERTO
Sim...
Sim, não deviam.
PAOLA
JÉSSICA
Não minta. Está bem mesmo?
E deviam o quê?
JEFFERSON
TERTO
Com certeza?
Seguir meu conselho.
LORENA
JÉSSICA
(Inteiramente reanimada.) Que horas são? Vocês já jantaram! A crise veio de novo, não foi? ROSEMARY
Deixe de ser burro. Se o padre, que é representante de Nosso Senhor Jesus-Cristo, benzeu toda a casa, fez exorcismo nela, e não adiantou nada, como é que o Espiritismo desse tal de Allan Kardec pode resolver o problema sendo obra do demônio?!
É... não está meio embriagada?
TERTO
LORENA
Já despediram o médico?
Eu embriagada? Vocês ficaram malucos!...
JÉSSICA
A luz se apaga. Quando a cena clareia são dez horas da manhã, dois meses
Vão despedir daqui a pouco quando ele chegar.
depois. Jéssica e Terto encontram-se na varanda; estão tensos; a seguir todos os diálogos
TERTO
se desdobram em uma atmosfera saturada de emoção.
Eu me agonio em ver dona Lorena internada. Um desastre, se ela for embora...
TERTO
JÉSSICA
Vão internar a dona Lorena?
Quem falou que ela irá embora? É só por umas semanas; faz o tratamento, fica
JÉSSICA
curada e volta.
O que há de se fazer?
TERTO
TERTO
Acredita mesmo que se ela for, volta curada?...
Quando?
JÉSSICA
JÉSSICA
Não seja agourento! Depois, quando eu espinafro, você se queixa de ser
Parece que é hoje...
humilhado. Anteontem, para comungar eu prometi ao confessor que não brigaria mais com
TERTO
você; porém se não põe fim nas suas asneiras, como posso cumprir o mandamento do
Onde?
catecismo cristão?
JÉSSICA
TERTO
Isso eu ignoro. Sei que ela não vai para hospital de doido não, a Paola me disse
Não se preocupe que não demoro muito a mudar de emprego.
que é um lugar de descanso, com todo luxo e conforto, até bosque e piscina tem. TERTO
JÉSSICA Se quiser ir cantar em outra freguesia não faz a menor falta. Pensa que faz? Se
Não deviam internar dona Lorena.
enxergue, velho imprestável... (Toca a campainha, Terto movimenta-se para abrir a porta
JÉSSICA
da casa, Jéssica antecipa-se a ele; entram Jefferson e Rosemary.)
Na situação em que ela se acha?
ROSEMARY (Denotando profundo pesar.) Nenhuma melhora de Lorena, não é?
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JÉSSICA
ROSEMARY
Nenhuma.
Bruno, você já ouviu falar em parapsicologia?
JEFFERSON
BRUNO
Estão no quarto?
Já. E peguei o Dr. Alcolombre um dia, depois daquele ataque de dupla
JÉSSICA
personalidade da mãe que vocês viram, e que nos custou, no mínimo, uma garrafa de
Ainda não desceram, tive de levar o café lá em cima.
uísque, para discutir o assunto. Ele por acaso é entendido na matéria, justiça se faça, me
BRUNO
deu uma aula de parapsicologia. Provou por “A” mais “B” que, assim como há um
(Em voz alta, descendo a escada.) Quem chegou, o Dr. Alcolombre? (Dirige-se
inconsciente individual, onde se agasalham os nossos impulsos instintivos, traumas e
para a sala.) Olá.
complexos, existe um inconsciente coletivo que guarda toda a memória da Humanidade.
JEFFERSON
Quando mergulha em uma desagregação mental aguda, o esquizofrênico tem a
Bom dia, Bruno.
possibilidade não apenas de vivenciar uma personalidade fantasiosa, diversa da sua, mas
BRUNO
também de extrair do inconsciente coletivo as lembranças de pessoas mortas. Tal
Bom dia, vamos sentar. (Assentam-se.)
fenômeno, porém, é precisamente o que constitui a enfermidade, não é nada de
ROSEMARY
sobrenatural.
Ela piorou?
JEFFERSON
BRUNO
O sobrenatural é uma balela.
(Desalentado) Não dá para piorar mais, não é?
ROSEMARY
JEFFERSON
Eu não sei. Até hoje não me conformo em ter ouvido Lorena falar daquela
De fato... ROSEMARY Quem diria que ela chegaria a esse grau...
maneira, sem possuir tamanha cultura. BRUNO Tudo é fruto do inconsciente individual em conexão com o inconsciente coletivo.
BRUNO
É tudo fisiológico, nada é transcendente. Na exposição que fez sobre a química do cérebro,
Fizemos tudo o que poderia ser feito.
o Dr. Alcolombre demonstrou o mecanismo funcional do sistema nervoso; veja bem:
JEFFERSON
temos nele mais de vinte bilhões de células, e cada uma delas tem mais de cinquenta mil
(Solidário) Disso somos testemunhas. E com que dedicação, com que desvelo!
comunicações eletromagnéticas com as suas vizinhas. Não é monumental? Por isso é que a
ROSEMARY
mente desgovernada do esquizofrênico pode produzir os mais impressionantes fenômenos.
Mas ainda há possibilidade dela sarar. BRUNO Temos esperança... se não tivéssemos não tomaríamos a decisão de interná-la.
ROSEMARY Dá gosto escutar você, Bruno, sempre o considerei um gênio; se não tivesse se entranhado na política talvez fosse um grande cientista.
JEFFERSON
JEFFERSON
Medida acertada.
Tanto quanto Rosemary, eu igualmente admiro e invejo seu brilho intelectual.
BRUNO
(Lorena, encurvada e estampando uma palidez cadavérica, desce a escada
É a única coisa que nos resta, agora que ela perdeu de vez a consciência...
vagarosamente, sustentada por Paula e Bertolo.)
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632
ROSEMARY
JEFFERSON
(Antes que os três vejam os que vêm pela escada.) Bruno, só mais um detalhe:
Não é a justiça que é cega, a justiça é apenas vesga, o destino, sim, é que é cego.
como o Dr. Alcolombre justificou o fato de Lorena ter saído em fração de minuto da
(Paola retorna com Terto.)
embriaguez, naquele dia?
PAOLA
BRUNO Efeito de auto-sugestão; a mente comanda todo o metabolismo corporal, os faquires dão exemplo disso. Você sabe como Freud estruturou a teoria da psicanálise? Foi
Vamos lá. (Dirige-se para fora, com Terto e Lorena; esta estanca, vira-se para Terto e se demora fitando-o; todos se surpreendem agradavelmente com a atitude de Lorena.)
com base em uma cliente, por ele curada, que deixou de ser paralítica quando liberou do
BERTOLO
inconsciente um dilacerante sentimento de culpa. (Lorena, Paola e Bertolo ingressam na
(Para Jefferson e Rosemary.) Ela sempre gostou muito dele.
sala; o clima ganha maior intensidade dramática.)
TERTO
PAOLA
E eu dela, não é, dona Lorena?
Alô...
PAOLA
ROSEMARY
Tenho me perguntado se não teria sido melhor, no início, seguir o conselho de
(Para Lorena.) Como está, querida?
Terto.
JEFFERSON
TERTO
(Idem) Como vai? (Lorena, apática, indiferente, não responde.)
(Animado) Nunca é tarde, nunca é tarde. (Desenha-se no canto da boca de Lorena
PAOLA Tive a idéia de trazê-la para tomar um pouco de sol no jardim. Cadê o Terto? Vou buscá-lo, quero que ele exiba as flores que incluiu entre as begônias e violetas. (Afasta-se)
um leve traço de sorriso) BRUNO Parece que uma fagulha de consciência está acendendo dentro dela.
BERTOLO
PAOLA
Convocamos o médico para acertar as contas com ele; é um bestalhão como os
Que bom. ROSEMARY
outros. JEFFERSON
Vamos ajudar. Porém, como?
Iniciativa correta, nós faríamos a mesmíssima coisa.
BERTOLO
BERTOLO (Com a voz quase embargada.) É doloroso termos de interná-la... (Desliza a mão pela cabeça de Lorena, em um gesto de desajeitada mas sincera ternura.)
(Gritando para a varanda.) Jéssica, providencia uma xícara de café bem quente! (Para os outros.) Quem sabe se ela, depois de todos esses dias inconsciente, não está querendo despertar?
ROSEMARY
JEFFERSON
(Com os olhos úmidos.) Você é um marido exemplar, Bertolo.
É possível.
JEFFERSON
ROSEMARY
(Comovido) Tem um imenso coração.
E um estimulante ajuda.
ROSEMARY
PAOLA
A vida é que às vezes maltrata quem menos merece sofrer.
Mas café? (Um olha para o outro, indagativamente.)
633
634
BRUNO
de fraqueza física, quando eu partir ela estará na plena posse de todas as suas faculdades
Para o que mais poderíamos apelar?
mentais porque neste momento uma potente energização dos seus neurônios acaba de ser
TERTO
feita por um Espírito de grande evolução que me acompanha. Deem graças a DEUS.
Uma prece... (Todos se olham de novo; Jéssica chega.)
ROSEMARY
JÉSSICA
Você é por acaso um ser divino? Os Espíritos de luz são como os Santos? Ou os
Café quente?
Anjos?
PAOLA
JÉSSICA
Tive outra idéia. (Acomoda Lorena em uma poltrona sob os cuidados de Bertolo e
Heresia!...
senta-se ao piano.) A mãe nunca deixou de ser apaixonada por esta música. (Executa o 2º
LORENA Somos individualidades humanas e não seres distintos dentro da criação. Apenas
movimento do Concerto de Aranjuez: ADÁGIO, do compositor espanhol Joaquim Rodriguez.) TERTO
nos movemos nas faixas ondulatórias de um universo paralelo ainda inacessíveis às percepções sensoriais de vocês.
(Para Bertolo.) Peço permissão ao senhor para fazer uma prece... (Fecha os olhos,
BRUNO Admitindo a hipótese de que quem está falando não é a minha mãe, eu apreciaria
põe as mãos espalmadas próximas à cabeça de Lorena e fica em tal postura enquanto Paola toca; os demais se limitam a observar.)
formular uns questionamentos. JEFFERSON
ROSEMARY Estou sentindo uma enorme paz. (A música prossegue, Terto imóvel em sua
De minha parte gostaria de levantar umas premissas, não para dirimir dúvidas,
posição; Lorena respira fundo e, paulatinamente, vai se transfigurando, até que seu rosto
pois não as tenho em minha sólida conviccção materialista, mas para que os presentes se
passa a refletir fulgurante serenidade; então ergue-se e fala com inflexão límpida.)
ilustrem.
LORENA
JÉSSICA
DEUS nos abençoe e proteja! (Paola faz cessar a música.)
Eu prefiro me retirar. (Para Bertolo.) Posso?
ROSEMARY
LORENA
(Ante o mudo espanto de todos.) Assim seja...
Meus irmãos, não vim aqui para polêmica, vim para socorrer Lorena em virtude
LORENA
dos seus méritos pessoais. Não desejo estabelecer conflito com a opinião de ninguém; se
Sou um amigo invisível. A prece deste homem (Aponta Terto.) e os harmoniosos
por enquanto vocês não depositam fé em nosso mundo, de natureza espiritual, cabe-nos
acordes musicais, ajudaram-me a entrar em sintonia com o ambiente. Estou aqui em
lamentar sem nos preocupar, já que cedo ou tarde todos morrem e veem a grande verdade
missão de amparo a esta irmã que me serve de médium; o padecimento foi causado pela
do Além com seus próprios olhos. Apenas, para não me julgarem descaridoso, disponho-
falecida namorada do rapaz (Aponta Bruno.) que não se suicidou, como vocês pensam,
me, com o devido respeito ao livre arbítrio de casa um, a deixar alguns avisos. Aceitam?
teve morte acidental, mas apesar disso continua alucinada de ódio. Vou transportar esse Espírito para uma dimensão de espaço onde ele será doutrinado e esclarecido, a fim de se libertar dos seus vícios e dos seus rancores. Quando eu partir, Lorena estará livre do processo obsessivo que a martirizou até hoje. Naturalmente, terá de ser submetida a um tratamento para revitalização do organismo debilitado, porém deverá fazê-lo sobretudo com repouso, distrações amenas e alimentos substanciosos. Repito que, apesar do estado
ROSEMARY Aceitamos. Falo em nome de todos. (Os outros, depois de uma pausa, balançam com a cabeça concordando.)
635
636
LORENA
BRUNO
(Para ela.) Você será largamente recompensada no futuro se adorar o menino do
Eu confesso que...
Abrigo que tem quatro anos. Ele é um espírito superior reencarnado e lhe dará, na velhice,
LORENA
amparo e carinho, tornando-a venturosa como jamais foi.
(Interrompendo) Perdoem, preciso partir. (Bate no ombro de Terto que somente
ROSEMARY
agora abre os olhos). Obrigado, amigo. (Encarando todos, um por um). Se lhes posso
Fabuloso! Juro que nunca falei, nem ao Jefferson, que sinto vontade de adotar
fazer um pedido, não digam que foram vítimas de uma alucinação!... Adeus. (Lorena cerra
aquele garoto.
as pálpebras e transmuda sua expressão facial, saindo do transe.)
LORENA
PAOLA
(Para Jefferson.) Convém não protocolar logo a petição que redigiu ontem à
Mamãe!
tarde, na hora em que a secretária derramou o refrigerante em sua mesa; o texto
BERTOLO
aparentemente está bem arrazoado, contudo você falseou a interpretação da jurisprudência
Lorena!
e citou uma lei com o número errado.
BRUNO
JEFFERSON
Mamãe!
(Pasmo) Como ele soube do incidente do refrigerante???
ROSEMARY
LORENA
Querida...
(Para Bertolo.) Não demita o contador, que é um homem honesto, se quiser
LORENA (Em um misto de surpresa e contentamento.) Gente, eu me sinto magnificamente
expulsar alguém da firma escolha aquela faturista que teve coragem de convidá-lo uma vez para ir ao cinema.
bem.
BERTOLO
PAOLA
(Desconcertado) Que coisa, hein?...
(Pulando) Que bom, mamãezinha!
LORENA
BRUNO
(Para Jéssica.) Não adianta rezar de manhã e jogar praga à noite. Reconheça que
Você é uma heroína, mãe! BERTOLO
foi culpada da desavença e pague o dinheiro emprestado da sua comadre.
Agora tu terás que repousar, comer bastante e te distrair. Vamos tirar umas férias
JÉSSICA Te desconjuro, Satanás!...
e viajar.
LORENA
ROSEMARY
(Para Paola.) Fui eu que, manipulando a técnica da hipótese, fiz você ter a ideia
Lorena, você é sensacional.
de trazê-la ao jardim e depois tocar a música de sua predileção.
JEFFERSON
PAOLA
Estou muitíssimo satisfeito por esta auspiciosa recuperação.
Obrigada.
TERTO
LORENA
(Com voz sumida.) DEUS seja louvado!...
(Para Bruno.) Você é um idealista. Parabéns. Continue sua luta pela nobre causa
JÉSSICA
da justiça social. Mas não se esqueça que “nem só de pão vive o homem”...
(Saliente) Eu sabia que não estava acendendo em vão minhas velas! (Toca a campainha, ela abre a porta).
637
638
Dr. ALCOLOMBRE (Entra deparando com a esfuziante alegria de todos.) Bom dia, isto é uma festa? BERTOLO Ela ficou boa, doutor, agora despertou. Dr. ALCOLOMBRE Mesmo??? LORENA (Categórica) Sim, acho que sim. Não sei explicar o que aconteceu comigo, na
CAPRICHOSA
realidade. Chega a ser engraçado, de tão esquisito: enquanto meu corpo está fraco a minha mente está forte, enquanto minhas pernas estão moles o meu pensamento está firme como uma rocha. Dá para vocês entenderem? E o melhor de tudo é isto: alguma coisa dentro de mim me garante que nunca mais terei nada de mal na cabeça. Que sensação maravilhosa! Parece que renasci e voltei a ser eu mesma. (Sorridente, com o bom humor.) Terto, se você
LIÇÃO DOS
preparou como recomendei o caramanchão no jardim, vou encher esta casa de flores e o primeiro que aparecer com problema leva uma surra para aprender a ser feliz. Dr. ALCOLOMBRE (Tufando o peito.) Não disse que, com o apoio da família, eu ia salvá-la?! No campo das doenças nervosas e mentais a Medicina moderna, exercida competentemente, com a ajuda da ciência parapsicológica, opera verdadeiros milagres!... (Todos olham para ele e logo começam a rir de sua tola presunção.)
FIM
ESPÍRITOS
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640
Esta peça, ainda não encenada, quando foi lançada ao público em livro recebeu do
iluminador, sonoplasta etc. Para os que não conhecem a estrutura interna do fazer teatral,
Doutor em Arces Cênicas pela USP Hamilton Saraiva, residente em São Paulo, o seguinte
todas as funções aqui relatadas talvez assustem, mas podem crer: quando lemos um texto, o
Prefácio:
nosso cérebro automaticamente supre todos esses componentes com muita criatividade e
Diante do um texto teatral, sempre me coloco na expectativa de encontrar aquela
maestria.
surpreendente peça pela qual me apaixonarei. Foi assim que conheci o autor, ainda na
Esboça-se, atualmente, no meio espírita, um potente movimento teatral que
década de 60, ao ler de uma só “golada”, enquanto voltava do centro da cidade de São
necessita de munição e subsídios de porte que Nazareno oferece, para a sua concretização
Paulo, até o distante bairro da Penha, a peça “Nó de quatro pernas”, de sua autoria. Desta
como decisivo processo de divulgação da doutrina sem, entretanto, repetir o velho ranso de
forma conheci Nazareno Tourinho, como autor de teatro, e logo me apaixonei pelo seu
proselitismo. Como doutrina racional, o Espiritismo, creio, recomenda um cuidado especial
modo de escrever. Na ocasião eu nem sabia que o autor era espírita. Levei sua peça ao
com o trato da arte teatral, milenar forma de expressividade do ser humano e que sempre
palco e conseguimos muitos prêmios e sucessos de 1964 a 66, com o grupo Teatral Jambaí.
fracassou ao se escravizar, sectariamente, às ideias religiosas ou políticas.
Dizem que uma peça de teatro não é para ser lida e sim representada no palco. Da mesma forma, um conto não se presta à montagem teatral e se destina ao desfrute da leitura. Algumas exceções existem, é claro, e Nazareno faz parte delas juntamente com Machado de Assis, em situação poética diametralmente oposta. As peças de Nazareno Tourinho se prestam também à leitura e são vazadas num linguajar dinâmico, criativo e encantador. Por seu turno, os contos de Machado de Assis são teatrais, por excelência e servem, portanto, ao teatro, com alguns reparos de adaptação. Daí a minha comparação inicial entre Nazareno e o “imortal” Machado. Nazareno Tourinho, dentro da Doutrina Espírita, é muito conhecido, quer pelos livros polêmicos e esclarecedores, quer pelos relatos de pesquisas da mediunidade, como também pelos numerosos artigos na imprensa espírita. Há um outro lado pouco conhecido do nosso Nazareno que é o de um especialista em relações humanas e teórico de administração de empresas. Nesse aspecto, da mesma forma, o autor tem vários sucessos em livros editados e cursos ministrados. Mas voltemos ao teatro, motivo de muitas paixões, prêmios e oportunidades que Nazareno não perdeu. No seu currículo, prenhe de láureas nas artes cênicas e literárias, há uns tempos atrás, estava faltando essa embrenhada com o enfoque da temática espírita que o autor iniciou com a peça “A estranha loucura de Lorena Martinez” (também premiada), com o livro teórico “Dramaturgia espírita” (editado pela FEB) e que ora se manifesta com a (ainda premiada) presente peça teatral. Trata-se de mais uma apetitosa produção literária do Teatro Naturalista que poderá ser lida como se fosse um gostoso romance, mas que deverá (espero que aconteça muitas vezes) ser levada ao palco, pelas mãos de um encenador sensível, atores e atrizes talentosos e de toda uma equipe competente de cenógrafo, figurinista, maquiador,
Deixo agora ao leitor a oportunidade de encontrar-se com a deliciosa peça de Nazareno Tourinho.
641
CENÁRIO
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FRANCESCA Velha governanta da família.
Interior de vetusta residência erguida na encosta de um morro. Sala, varanda, gabinete de trabalho e um corredor comunicando com outros aposentos. Saída à esquerda para o exterior da casa e à direita para a copa-cozinha. Na sala, sofá estilo colonial de características diferentes de todos os outros
PABLO CALDERON O discípulo predileto do Dr. Nicholas Urbinati, que muito o admira e estima apesar de ter um temperamento diferente e idéias próprias, inclinadas ao materialismo ortodoxo.
móveis; poltronas, banquetas e almofadas dispostas com intenção estética; um cravo,
CARMENCITA CALDERON
cortinas de veludo; grosso tapete estampando desenhos orientais; quadros com pinturas
Simpática mulher de Pablo.
diversas, um deles maior, imponente, de moldura dourada fazendo realçar o vulto de um
CAMILO DE LA TORRE
ancião trajando fraque; eletrola sem as modernas caixas acústicas: junto a ela graciosa estatueta de marfim em um pedestal. Na varanda, comprida mesa de carvalho guarnecida com cadeiras de espaldar saliente e assento de palhinha; cristaleira entalhada em linhas barrocas; armário do mesmo feitio mostrando nas prateleiras, pelas portas envidraçadas, louças de porcelana; solitária chapeleira; do lado uma canastra que dá a impressão de ser de bronze pela cor marrom luzidia; aparelho telefônico sobre a aba de um canapé. O gabinete de trabalho, em plano mais elevado, é uma mistura de escritório e laboratório, equipado com todo o instrumental de um cientista que, apesar de profissionalmente aposentado, continua a pesquisar com paixão os domínios da Física.
PERSONAGENS Dr. NICHOLAS URBINATI Eminente físico que trabalha no mais completo isolamento em um projeto científico sobre o qual mantém segredo. Ainda saudável, a despeito da idade provecta, e possuidor de temperamento bem humorado, é o tipo de homem a quem se pode chamar de sábio, pela inteligência e pelo caráter. Sra. MAGALI URBINATI Sua dedicada esposa. ILMA Uma jovem empregada doméstica contratada recentemente pelo casal, médium inconsciente de extraordinários poderes para produzir fenômenos de efeitos físicos.
Vizinho e amigo do Dr. Urbinati, artista plástico, um sujeito erudito e superlativamente vaidoso que não acredita em Espíritos. Padre GIORDANO Sacerdote fiel aos dogmas da Igreja Católica.
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PRIMEIRO ATO
644
mais. Até agora, nestes sete dias, estou satisfeita com o seu serviço. Quando completar um mês talvez aumente o salário que combinamos.
Entardecer de um sábado. A Sra. MAGALI URBINATI ocupa-se em fazer crochê
ILMA
no sofá da sala onde ILMA, utilizando uma escada dessas que abre e fecha, limpa com
DEUS lhe pague.
uma flanela a moldura do quadro que retrata o ancião. No gabinete vê-se o Dr.
Sra.MAGALI
NICHOLAS URBINATI e PABLO CALDERON em cena muda.
Hoje e amanhã desejo que se esmere no atendimento aos nossos dois hóspedes. O professor Pablo Calderon, apesar de relativamente jovem, é um cientista consumado
Sra. MAGALI (Superlativamente conservada para os setenta e cinco anos que carrega com a
que o meu marido há anos tem em conta como o melhor dos seus discípulos. ILMA
preocupação de disfarçar, ostenta uma pose empertigada, formalista, comum às pessoas
Sim senhora.
que se comprazem em cultuar tradições sociais e familiares; veste-se de forma vitoriana
Sra. MAGALI
e só eventualmente recorre aos óculos que porta com as alças presas ao vistoso colar em
A Francesca está sendo amável com você?
torno do pescoço; é o que se poderia chamar com propriedade de grande dama
ILMA
aristocrática, pela origem e educação.) Eu já lhe disse que este aí é meu falecido pai?
Está, sim senhora.
(Aponta o quadro maior da parede.)
Sra. MAGALI
ILMA
É indispensável que se entenda com ela sem a menor incompatibilidade.
(Morena, simpática e robusta, mas de aspecto geral sofrido, reflete nas feições
ILMA
um certo ar de resignação e medo.) Não...
Sim senhora.
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Esta pintura é uma herança de família de valor inestimável, artístico e
Sabe o que significa incompatibilidade?
sentimental.
ILMA
ILMA
Não senhora.
Sim senhora.
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
(Põe de lado os apretechos do crochê e levanta-se) Depois passe o pano na
Deve ter reparado que nesta casa a maioria dos objetos não são apenas bonitos, sobretudo são finos.
estatueta. (Vai à eletrola, coloca para tocar uma música executada em violino; a seguir senta-se pensativa e esfrega as mãos em gesto que denota contido nervosismo, antes de
ILMA
pegar o rolo de fio e a agulha para prosseguir no crochê; neste ínterim CARMENCITA
Reparei, sim senhora.
CALDERON desponta no corredor.)
Sra. MAGALI
CARMENCITA
Alguns são autênticas relíquias, merecem ser mantidos rigorosamente limpos,
(Espontânea, elegante sem afetação.) Eles permanecem no gabinete?
mas não se atemorize: sou exigente porém não tenho a mania de limpeza. O que quero
Sra. MAGALI
acima de tudo é que você ajude a Francesca na cozinha e na lavagem da roupa um pouco
Ainda. O que estarão falando? CARMENCITA Talvez estejam planejando um passeio conosco...
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Sra. MAGALI
CARMENCITA
Quanto a isto, minha filha, perca as esperanças: a derradeira vez que desci este
As pesquisas do Dr. Urbinati ainda são da maior importância.
morro para ir a um teatro já nem me recodo. Também, não teria valido a pena; o teatro,
Sra MAGALI
atualmente, é pura vulgaridade, a coisa mais difícil de se encontrar é um espetáculo digno
Acha?
de ser assistido. Que saudade das viagens que fiz!... Aliás, para mim, unicamente uma
CARMENCITA
ópera merece que a gente fique por duas horas presa em uma cadeira desconfortável, às
Sem dúvida. É o que Pablo me diz sempre.
vezes até enfrentando pulgas e tendo que suportar comentários em surdina e risadinhas.
Sra. MAGALI
(Torna a levantar, desliga a eletrola e puxa CARMENCITA para a varanda.) Venha cá.
Obrigada. É justamente por esta razão que a cada dia mais me angustio...
(Antes de acomodar-se diante dela em uma das cadeiras de palhinha que guarnecem a
CARMENCITA
mesa de carvalho, a fim de fugir do raio de observação de ILMA, aponta para o
O que há?
armário.) Estas porcelanas são lindas, não são? Comprei-as há uns quarenta anos, na
Sra MAGALI
Suiça, em uma loja de antiquidades. (Há uma pausa.) Já fez um ano que vocês casaram?
Comigo ou com ele?
CARMENCITA Mês retrasado. Sra. MAGALI Desculpe não termos ido ao seu casamento. Tínhamos o dever para com Pablo
CARMENCITA Com a situação... Essa nossa visita tão apressada para passar o fim de semana aqui sem nenhum motivo... Sra MAGALI
de praticar esse ato de cortesia, embora nossas cidades não fiquem tão perto uma da
Motivo há.
outra. Infelizmente, o Nicholas é um comodista com precária noção de fidalguia.
CARMENCITA
CARMENCITA
Qual é?
Eu é que devo pedir desculpas por não ter feito antes uma visita à senhora.
Sra MAGALI
Sra. MAGALI
Eu ignoro.
Você trabalha?
CARMENCITA
CARMENCITA
Estranho...
Dou aulas.
Sra MAGALI
Sra MAGALI Na universidade.
Estranhíssimo. Tudo o que sei é que nunca o Nicholas ficou como anda nestes últimos dias.
CARMENCITA
CARMENCITA
Não, em uma escola para crianças excepcionais.
Seria algum problema de ordem pessoal?
Sra MAGALI
Sra MAGALI
Meus parabéns. Eu é que não tive sorte sendo obrigada a abandonar o magistério
Se fosse ele seria incapaz de esconder de mim.
logo no início da carreira. Mas não me arrependo, as pesquisas do Nicholas eram de
CARMENCITA
enorme importância naquela época e eu não podia deixar de acompanhá-lo em suas
Então só pode ser novidade relacionada com as experiências científicas.
frequentes viagens ao exterior.
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Sra MAGALI
alegou que estava com febre alta; fiquei vexadíssima mas, ao colocar o termômetro nele,
É o que suponho. Ele ter dado um passo inesperado no desdobramento da sua
constatei que a temperatura não apresentava alteração nenhuma.
equação. O Pablo lhe contou a história dessa equação?
CARMENCITA
CARMENCITA
Foi?
Contou, porém me faltou base matemática para entender.
Sra MAGALI
Sra MAGALI
Será que ele está esclerosado?
E quem possui cabeça para compreender, minha filha? É uma complicação
CARMENCITA
terrível. (Torce as mãos, nervosa.)
Que ideia, dona Magali!...
CARMENCITA
Sra MAGALI
(Procurando descontraí-la.) Talvez ele esteja próximo de uma descoberta de
Idade para uma catástrofe como essa nós temos. Ele principalmente.
excepcional benefício para a Humanidade e a srenhora, como sua esposa, haverá de se
CARMENCITA Afaste da mente tal preocupação. Se fosse um problema de tamanha gravidade, o
tornar famosa! Sra MAGALI
Pablo saberia e me teria dito. Sra MAGALI
E se a descoberta acabar resultando em uma invenção mais devastadora do que a
O que o Pablo lhe informou?
bomba atômica?
CARMENCITA
CARMENCITA
Bem, praticamente nada. Só que o Dr. Urbinati estava com um problema que
(Sorrindo) Que exagero, dona Magali. Sra. MAGALI
não dava para expor por telefone e precisava, urgentemente, palestrar com ele pelo menos
Sei lá.... Em matéria de ciência tudo é possível... Se o Nicholas não estivesse
dez horas... Em virtude do que nos convidava para passar este fim de semana em sua
metido em algo muito especial já teria feito para mim um relatório... Teria sim, tenho
casa. Como, para atendermos o convite, Pablo teve de adiar uma conferência e cancelar o
certeza... Ele jamais foi tão reservado.
almoço domingueiro com a mãe, infalível e sagrado para ele, desde o nosso casamento,
CARMENCITA
admito que o problema seja de alta relevância, porém não creio tratar-se de nada trágico.
A realidade é que o segredo a respeito desta visita nos deixou tensas. Relaxemos.
(Tentando reanimá-la.) As suas porcelanas... Sra. MAGALI
Conversemos sobre outras coisas: as suas porcelanas, por esemplo.
Tenho predileção por estas porcelanas; comprei-as porque a casa de antiguidades
Sra MAGALI Julga que eu estou dizendo tolices?
me forneceu um certificado de que elas são chinesas do século dezessete e fizeram parte
CARMENCITA
de uma coleção imperial. Estas porcelanas, o retrato do meu pai e aquele sofá da sala, que
Absolutamente.
pertenceu à minha avó, são as três coisas que mais amo na vida. Fora o Nicholas, é
Sra MAGALI
claro...
Tenho os nervos à flor da pele desde o primeiro dia desta semana, quando surpreendi o Nicholas se apalpando todo em diversas partes do corpo, no gabinete, tarde da noite; botou a mão na testa, depois nas costas, na barriga e até no calcanhar; com toda aquela sua calma, no entanto parecendo uma criança a brincar consigo mesma, ou, para ser mais honesta, parecendo um débil mental; ao me ver perdeu a graça e, desconcertado,
CARMENCITA A sua casa é toda maravilhosa, somente a vista para o mar que se tem do jardim já é um sonho.
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Sra. MAGALI
CARMENCITA
Minha mãe também dizia que é uma paisagem de sonho, foi ela quem teve a
Ah, dona Magali, quem ainda tem condição de admirar o por do sol morando na
coragem de levantar essa construção na encosta do morro. Minha mãe nasceu em berço
minha cidade?... A gente vive correndo de um lado para o outro, dentro de uma floresta e
de ouro, mas não foi apenas uma mulher rica, foi, sobretudo, uma mulher de cultura e
edifícios saturada de poluição, sem direito de olhar o horizonte...
sensibilidade. Devo mais a ela do que ao Conservatório minha aprimorada formação musical. Você gosta de música?
Sra. MAGALI Eu e o Nicholas somos uns bem-aventurados, residindo não somente em um
CARMENCITA
município pequeno, mas, ainda, em um lugar como este. Aqui temos raríssimos vizinhos,
Gosto.
o que constitui uma vantagem, e desfrutamos da natureza, fonte de paz. Cultivamos a paz,
Sra. MAGALI
sabe? Nesse ponto somos conscientemente egoístas: antes de mais nada, e acima de tudo,
Quer ouvir a orquestra sinfônica de Berlim? (Torce as mãos.) É o recurso que nos resta para acalmar os nervos. Dá lincença. (Desloca-se para a sala.)
a nossa paz. Não seja ela jamais perturbada, eis a aspiração suprema que nutrimos. (Com diferente inflexão de voz, fitando o gabinete de trabalho.) Será necessário irmos lá?
ILMA
CARMENCITA
Estou acabando.
Para interromper os dois?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Não se esqueça de limpar depois a estatueta.
Sim.
ILMA
CARMENCITA
Sim senhora.
Não sei...
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Na semana que vem, quando for tirar o pó das porcelanas, terá minha orientação
Estou temerosa.
direta. Não toque em nenhuma peça do jogo de porcelanas no armário estando eu ausente.
CARMENCITA
Não é falta de confiança, é uma questão de zelo porque de maneira alguma consentirei
Eu somente curiosa.
que uma única daquelas porcelanas se quebre. Outra recomendação, antes que esqueça:
Sra. MAGALI
quando for retirar a poeira deste sofá não use qualquer escova, fale comigo primeiro, a
Se eles demorarem mais dez minutos para sair...
fazenda dele não pode sofrer o mínimo arranhão. (Coloca na eletrola um disco da música
CARMENCITA
oferecida, volta para a varanda.)
Talvez seja preferível nos contentarmos com a música. (Ligeira pausa.)
CARMENCITA
Sra. MAGALI
A música, efetivamente, nos dá tranquilidade.
Qual o autor que prefere escutar?
Sra. MAGALI
CARMENCITA
E enlevo, minha filha, e deleite espiritual. A música é a mais sublime de todas as
De música clássica?
artes, sua essência exala perfume celestial, como salientou um notável maestro florentino.
Sra. MAGALI
Já experimentou ouvir Chopin admirando o por do sol?
É evidente. Não venha me dizer que desperdiça o tempo com o som dessas guitarras malucas e desses cantores desafinados que imbecilizam a nova geração. CARMENCITA Bem, eu... não sou muito radical no meu gosto.
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Sra. MAGALI
CARMENCITA
Se desejar poderemos ouvir uma das sinfonias de Beethoven; a quinta em Dó
Conte com meu apoio moral.
menor, seguramente é a mais exuberante, porém para o instante que enfrentamos a mais
Sra. MAGALI
apropriada é a sexta, célebre por transmitir “uma doce paz”, lembrando o caminhar
Pois é...
vagaroso dos camponeses pela relva dos bosques, entre o murmúrio dos riachos, o pipilar
CARMENCITA
dos passarinhos e o arpejo de flautas. Caso você aprecie como eu órgão e cravo, escutaremos Bach; disponho inclusive dos seus mais inspirados motetes, salmos e
É... (As duas demonstram uma certa inibição mesclada de constragimento; na sala ILMA conclui a limpeza do quadro e aplica a flanela na estatueta.)
antífones; prestando atenção para os efeitos das oitavas e quintas de Bach, jamais
Sra. MAGALI
dissonantes, notará como ele foi magnífico, inigualável na técnica de compor;
Vida dura... Ser mulher de cientista não é fácil... o seu marido tem mania de
frequentemente duplicava com sustenidos as notas da gama acidental e as mitonia modi ou
levantar de madrugada para escrever?
os meios tons da gama diatônica. Não querendo Beethoven nem Bach há outras opções,
CARMENCITA
por exemplo: as árias Care Compagne, Ah, non credeamirarti e Ah, non guingge da ópera
Não. Escrever o quê?
A sonâmbula, de Bellini; a cantata fúnebre Requiem Alemão de Brahms; A Sonata em Dó
Sra. MAGALI
maior, opus 140, de Schubert; o segundo ato de La Vestala, de Spontini; o Messias ou
Números. Fórmulas.
Israel no Egito, de Haendel; a Patética, Canto de Cisne de Tchaicovsky; o Allegro
CARMENCITA
giocoso, de Mendelssohn. De Wagner tenho, gravada, Tristão e Isolda; de Puccini, A
O defeito do Pablo, de madrugada, é roncar; às vezes ronca tão forte que me
Andorinha, sóror Angélica, La Franciulla Del West e, naturalmente, a Tosca e Madame Butterfly; de Verdi, a Traviata e... Falei demais? É que a música me empolga. CARMENCITA A senhora possui uma cultura musical de fazer inveja.
acorda, parece um trem resfolegando. Sra. MAGALI Nesse ponto não me queixo, o Nicholas dorme com um anjo e até reclama porque me viro demasiadamente na cama.
Sra. MAGALI
FRANCESCA
Apenas para o gasto caseiro, não chego a ser uma erudita. (Pausa) Eu falo,
(Aparece à direita saindo da copa-cozinha: é branca, sardenta, magra e pálida:
contudo não adianta negar, estou muito nervosa. Repito que a partir de agora, se eles não
traz sobre a parte frontal de sua saia um avental que de quando em quando ajeita, ciosa
saírem do gabinete em dez minutos, vou lá.
de sua função no serviço doméstico.) O jantar hoje é na hora costumeira?
CARMENCITA
Sra. MAGALI
Eu a acompanho.
(Para CARMENCITA.) Vocês jantam tarde?
Sra. MAGALI
CARMENCITA
A gente entra levando um cafezinho quente...
No geral umas oito e meia.
CARMENCITA
Sra. MAGALI
Ótima justificativa. Sra. MAGALI Dependendo de como eles reagirem nós pomos as cartas na mesa, exigimos que nos revelem o mistério.
Que pena! Se jantassem cedo, eu teria um excelente pretexto para arrancar o Nicholas daquele gabinete. CARMENCITA Não pretendemos mudar os horários da sua casa, dona Magali; por favor, mantenha a rotina.
653
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Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
(Para FRANCESCA.) Será oito e meia o jantar, não precisa correr. Veja se o Sr.
Os dois são físicos e nós não passamos de duas ignorantes, isto é, ignorantes
La Torre ainda está pintando aí fora; se estiver... (Para Carmencita, hesitante.) Seria incômodo para vocês terem na mesa do jantar um vizinho nosso?
naquilo que se refere à ciência deles, justo? CARMENCITA
CARMENCITA
Siga...
Não, de forma alguma.
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Se o Nicholas, depositando toda confiança em mim e nunca tendo me escondido
(Para FRANCESCA.) Avise a ele que jantaremos hoje às oito e meia.
nada, até vocês chegarem não me contou a verdade, agora é que não vai contar, depois de
FRANCESCA
ter a solidariedade do Pablo, correto?
Aviso já. (Sai à esquerda, depois de atravessar a sala)
CARMENCITA
Sra. MAGALI
Esta dedução pode ser falsa... Talvez, desabafando para Pablo, o Dr. Urbinati
O Sr. La Torre, Camilo de La Torre, é um dos poucos vizinhos que possuímos;
sinta-se encorajado a lhe expor o seu problema pessoal.
artista plástico de reais méritos, premiado em Paris, elogiado por críticos internacionais,
Sra. MAGALI
ele esbanja talento e é uma verdadeira enciclopédia, capaz de comentar qualquer assunto.
E se, em vez de pessoal, o problema for científico?
Como da sua casa não tem vista para o mar, às vezes vem fazer pinturas aqui em nosso
CARMENCITA
jardim. A mania dele não é escrever nem roncar de madrugada, é transferir para telas as
Aí... não sei.
paisagens marinhas da hora do crepúsculo; com facilidade tornou-se amigo do Nicholas e,
Sra. MAGALI
todo sábado, janta conosco. (Transição) Sabe o que me ocorreu neste minuto?
Eu aposto que é científico. Conheço o Nicholas, minha filha, já disse que ele
CARMENCITA
jamais deixaria de me comunicar qualquer coisa errada consigo.
Sim?
CARMENCITA
Sra. MAGALI
Acredito.
Os dois podem estar tramando uma forma de nos enganar, quero dizer, de nos
Sra. MAGALI
iludir na estória desse segredo.
Olhe, relatarei apenas dois fatos íntimos para você tirar a sua conclusão sobre o
CARMENCITA
relacionamento que existe entre o Nicholas e eu fora das questões científicas. Quando
Como?
éramos noivos, um dia o pai dele lhe confidenciou um segredo pedindo que não falasse
Sra. MAGALI
nada a ninguém, nem a sua própria mãe; ele falou para mim. De outra feita, quando já
Não percebe?
carregávamos uns vinte anos de casamento, uma secretária que o Nicholas teve antes de se
CARMENCITA
afastar do Instituto de Pesquisas Nucleares, mulher grandemente ilustrada, charmosa e
Por que fariam isso?
mais moça do que eu, caiu na tolice de se apaixonar por ele e declarar a estúpida paixão em
Sra. MAGALI
uma carta melodramática, rogando-lhe segredo sob ameaça de suicídio, porque também era
Reflita comigo: o assunto que estão camuflando deve ser mesmo muito especial,
casada e mãe de quatro filhos. Sabe o que o Nicholas fez antes de queimar a carta?
concordamos plenamente neste detalhe, certo?
Mostrou-a para mim, que tive um ataque de ódio daquela cretina e por pouco não perdi a
CARMENCITA
compostura, por pouco não desci da minha dignidade a fim de dar umas bordoadas na cara
Temos o direito de imaginar que não se trata de uma banalidade...
da cínica.
655
656
CARMENCITA
o mesmo movimento é executado por FRANCESCA ao reaparecer à esquerda, retornando
(Contendo-se para não deixar escapar uma gargalhada.) Parabéns à senhora
do jardim.
porque tal atitude de um marido vale como formidável prova de amor. Sra. MAGALI
PABLO (De estatura elevada, porte sóbrio, é lento no falar como quem pensa tudo o que
O Pablo não procede assim com você?
diz, deixando transparecer um temperamento frio e uma inteligência pragmática; pelo
CARMENCITA
vestuário moderno, mas displicente identifica-se como homem inteiramente devotado à
Só temos pouco tempo de casados, ainda não houve oportunidade dele receber
ciência, não obstante a idade pouco avançada.) É?...
nenhuma carta romântica de secretária... Sra. MAGALI
Dr. URBINATI (Aos oitenta anos ainda transpira por todos os poros energia vital e bom humor;
O Nicholas não mede sacrifício para me agradar em tudo; no entanto, quando se
tem a pele rosada, o rosto de traços bem definidos apesar das rugas, denunciando uma
põe a aprofundar essa sua equação fica tão distante... Tenho um pressentimento de que
constituição nervosa sólida e saudavelmente estruturada, os cabelos brancos mal
desta vez ele descobriu algo terrível... O segredo deve ser esse, o Nicholas já se negou a
cortados, a barba espessa; veste-se à moda de antigamente, não dispensando os
colaborar com o Governo em um programa bélico sigiloso e por causa disso até antecipou
suspensórios.) Sim, meu caro Pablo.
a sua aposentadoria. (Pausa) Há em mim uma tendência para falar demais, perdoe... daqui
PABLO
para frente você fala e eu escuto. Fale da sua vida, dos seus projetos, dos seus ideais... Ou
Hum...
acha melhor a gente invadir logo o gabinete, sem levar cafezinho nem nada, e participar
Dr. URBINATI
aos dois que não aguentamos mais o mistério deles?
O que me diz?
CARMENCITA
PABLO
Eu não sei, o que a senhora decidir tem a minha aprovação.
Incrível...
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
Para lhe ser franca, também não sei!...
E rigorosamente verídico.
CARMENCITA
PABLO
A solução talvez seja ouvirmos mais música para distrair, até que os nervos se
Sei...
acalmem por completo. Sra. MAGALI Tem razão... (Mudando de tom.) Não lhe mostrei toda a casa; quer ver a copa e a cozinha?
Dr. URBINATI Concedo-lhe o direito de duvidar da minha sanidade psíquica, mas insisto em que procurei descrever o que aconteceu precisamente como aconteceu. PABLO
CARMENCITA
Eu jamais duvidaria do senhor, mestre.
Quero.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Seria razoável que duvidasse.
Então vamos. (Saem à direita.)
PABLO
A ação verbal é transplantada para o gabinete de trabalho; na sala permanece
Não, de jeito nenhum.
apenas ILMA, que depois dirige-se igualmente para a copa-cozinha conduzindo a escada;
Dr. URBINATI Na minha idade os sentidos costumam falhar...
657
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PABLO
PABLO
Para mim o comprometimento da sua lucidez está fora de cogitação.
Aí não sei mais nada...
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Obrigado. PABLO Eu disse que é incrível por força de expressão, nunca deixaria de acreditar em um depoimento seu, nem que tivesse mais de cem anos de idade.
Eu tinha certeza de que você iria dizer isso. Pedi que viesse até aqui porque não mascara a sua honestidade. PABLO Desculpe, mestre.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Mais uma vez, obrigado.
Não há o que desculpar, pelo contrário.
PABLO
PABLO
Por que divida de si mesmo?
É que... o fato se choca com tudo o que sabemos sobre as composições
Dr. URBINATI
atmosféricas...
Por uma questão de princípio, somente por uma questão de princípio.
Dr. URBINATI
PABLO
Vá em frente.
Sente-se bem?
PABLO
Dr. URBINATI
E agride, derruba, anula as leis conhecidas da Física. O senhor entende a minha
Perfeitamente bem. Otimamente. PABLO Tem trabalhado em excesso? Dr. URBINATI
dificuldade? Dr. URBINATI Entendo. Recorri a você mais em busca de apoio afetivo do que de adesão intelectual.
Não.
PABLO
PABLO
Quanto a isto conte comigo, que o senhor merece.
Algum sintoma de estafa, cansaço, esgotamento?
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Não posso ventilar esse assunto com ninguém mais, sob pena de ser dado como
Também não. Estou seguro de ter boa saúde mental, apenas quero deixá-lo à
louco, ou pelo menos como senil.
vontade para admitir que a causa eficiente do fenômeno reside na minha massa encefálica e
PABLO
não fora dela, no meio ambiente. Afinal de contas, os neurônios não se renovam e os que
Contou para a sua esposa.
vibram na tessitura do meu cérebro já fizeram aniversário oitenta vezes...
Dr. URBINATI
PABLO
Não. Ela viu quando eu me tocava, aqui nesta cadeira, em diversas partes do
Não se preocupe com isso. Sei que uma pessoa tão fisicamente saudável, como o
corpo; perguntou o que era; aleguei febre, ela foi buscar o termômetro; quando chegou o
senhor, e tão amadurecida psicologicamente, não iria se equivocar com suas próprias
calor havia desaparecido e verificamos que a minha temperatura estava normal;
impressões sensoriais.
naturalmente fiquei sem ter como me justificar. A Magali, meio espantada, a partir daí
Dr. URBINATI E então?...
começou a me olhar com desconfiança, a indagar quase todo dia se não quero ir ao médico.
659
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PABLO
Dr. URBINATI
E por que não vai?
Claro. Por que acha que o convidei para passar o fim de semana comigo?
Dr. URBINATI
PABLO
Pablo, até você?
Presenciar quando? Como?
PABLO
Dr. URBINATI
Por favor, não me interprete mal. Sugeri a ida ao médico para satisfazer a sua esposa.
Desde segunda-feira todo dia a coisa se repete, tarde da noite, aqui no gabinete, na hora em que costumo trabalhar na minha equação... Você também não aceita as premissas
Dr. URBINATI
da equação, porém ainda lhe provarei que está errado. Amanhã a gente discute isso; hoje
Compreendo...
depois do jantar voltamos sozinhos para cá, e ficamos aguardando o surgimento do bloco
PABLO
ou bolha de calor coagulado...
Faz uns exames, comprova o excelente estado de saúde e assim a Dona Magali se tranqüiliza. Dr. URBINATI Não era este o conselho que eu esperava de você. PABLO
PABLO O senhor acha mesmo que vamos nos defrontar antes de dormir com uma bolha de calor coagulado??? Dr. URBINATI Sim. Aqui neste gabinete, que é o lugar onde ela costuma bailar no espaço depois
O que mais eu posso lhe dizer, mestre?
das dez horas da noite. Na primeira vez que deu o ar da sua graça, segunda-feira desta
Dr. URBINATI
semana, chegou a penetrar no meu corpo, e a Magali, tendo acordado e vindo me
Meu menino, preste mais atenção: quando a Magali saiu deste gabinete, tive a
bisbilhotar, espantou-se ao ver como eu me comportava... Pablo, vamos ser francos um
ideia de colocar o termômetro a um metro de distância porque pareceu-me que o calor
com o outro: você não pode, devido a sua formação científica, depositar fé naquilo que
entrava no meu corpo e dele se afastava como se fosse uma bolha dançando no espaço;
terminei de lhe dizer; eu, de igual modo, em que pese a noção de que estou às voltas com
fiquei de olho no termômetro a um metro de distância; de repente ele acusou quarenta
um fenômeno real, necessito também, em face da minha formação científica, submeter o
graus; arredei o termômetro para perto de mim: incontinente o mercúrio condensou
fato a um teste confiável, a fim de aferir-lhe a autenticidade e avaliar o seu caráter objetivo,
marcando dezoito graus que era a temperatura de toda a casa fechada na ocasião; reproduzi
material, concreto. Você é o único instrumento de que disponho para esse teste; se
tal providência meia dúzia de vezes para me convencer de que não era vítima de uma
testemunhar o fenômeno ele ficará confirmado para mim, com a vantagem disso ajudar a
ilusão de ótica: sempre o mesmo resultado. Só então deduzi que tinha na minha frente um
Magali a não pensar que fiquei perturbado mentalmente.
bloco ou bolha de calor coagulado... (Os dois se olham, oscilam emocionalmente e acabam
PABLO
rindo.)
Entendo. PABLO
Dr. URBINATI
Convenhamos que o fato chega a ser engraçado.
Pois é.
Dr. URBINATI
PABLO
Quando você presenciar...
E depois?
PABLO
Dr. URBINATI
Eu presenciar?
O problema mais urgente a resolver é o da Magali, em razão do seu nervosismo. Se você lhe afirmar que o fenômeno existe ela se acalmará. Daremos uma explicação
661
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qualquer alegando ser uma nuvem de radioatividade inofensiva. Vencida esta primeira
Dr. URBINATI
etapa, se o fenômeno continuar se reproduzindo, buscarei documentá-lo.
E daí?
PABLO
PABLO
Como? Dr. URBINATI
Se
Ainda não tenho a menor ideia. Entretanto, se me faltarem meios para isso, talvez
senhor
demonstrar
teoricamente,
ou
documentar
Escute. Em um clima de total compensação térmica um bloco de gelo não se conserva intacto, sem se dissolver?
invisível dos raios infravermelhos?
PABLO
PABLO
É evidente.
Esta hipótese é uma heresia científica.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI Mais do que isto, é um crasso primarismo de estudante de curso ginasial, eu sei.
conseguisse
Dr. URBINATI
eu possa, pelo menos, retificar ou ratificar algumas formulações teóricas da minha equação. Quem sabe, por exemplo, se o calor não é meramente um subproduto do espectro
o
satisfatoriamente, a possibilidade de existência de um bloco de calor estático...
Então por que aquilo que se processa com o frio não pode se processar com o calor?
Todavia, desde quando o conhecimento acadêmico tem a última palavra a respeito da
PABLO
natureza corpuscular ou ondulatória da luz? E mesmo a respeito do que chamamos
Porque é inevitável a propagação do calor por irradiação, condução ou conversão.
“matéria”? Os cíclotrons aperfeiçoados para devassar a intimidade das partículas atômicas
Dr. URBINATI Para que ela se realize tem de haver em torno moléculas eletromagnéticas, não
não estão se tornando obsoletos? Lembre-se de que os nossos colegas de outros tempos acreditavam no éter e não há muito se ufanavam de ter atingido o derradeiro grupo de
tem?
elementos da série estequiogenética. A realidade é que, apesar de todo o portentoso
PABLO
progresso da Ciência, ainda não sabemos quase nada sobre coisa nenhuma...
Lógico.
PABLO
Dr. URBINATI
Eu não tenho autoridade para refutar a sua opinião, mestre, contudo a teoria da
E se não houver?
Relatividade...
PABLO
Dr. URBINATI
Não pode deixar de haver.
Pablo, não me venha com essa! Deixe o Einstein no seu glorioso repouso em
Dr. URBINATI
companhia do Max Plank. Porque o espaço é curvo, porque o Universo tem forma
É o que supomos com base no que sabemos. Mas sabemos tudo? Não estamos
cilíndrica e não esférica, e é finito embora ilimitado, porque um corpo em movimento
sendo surpreendidos a cada dia com novas descobertas nos domínios do microcosmo?
diminui de volume e aumenta de massa, somos obrigados a crer que o princípio da
Quem já esmiuçou toda a contextura de um Quark? Quem já mensurou a potencialidade da
repulsão eletrostática entre os elétrons em interação à distancia está estabelecido de
antimatéria? Se as partículas dos átomos da antimatéria giram em posição inversa às
maneira absoluta para toda a eternidade? E se tal princípio não funcionar em determinadas
partículas dos átomos da matéria, podem, obviamente, produzir as mais fantásticas
condições ou circunstâncias? Se não for sempre válido, em suma, se não se aplicar ao calor
ocorrências de fenômenos ainda inexplicáveis.
coagulado que desde segunda-feira vem me azucrinando a paciência? PABLO A existência desse calor coagulado promoveria uma revolução na Física...
PABLO Hum...
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Dr. URBINATI
direita, saindo da copa-cozinha, tomam o rumo do gabinete, vacilantes, a primera levando
Temos de ser humildes. Quando consideramos que a luz saída da Terra, para
uma bandeja com duas xícaras de café; a luz se apaga.)
chegar na galáxia de Andrômeda, que se localiza logo ali, viaja dois milhões de anos...
Quando a Luz reacende transcorreram umas duas horas. FRANCESCA e ILMA
PABLO
ocupam-se em desfazer a mesa do jantar; os demais personagens, na varanda, sentados
Nesta ordem de raciocínio acabaremos sem os pés no chão.
em torno da mesa, embora dela já um pouco afastados, palestram animadamente.
Dr. URBINATI
LA TORRE
Positivo. E eu lhe pergunto: convém termos os pés no chão? Em que chão estamos
(Baixo, calvo, de olhos miúdos e vivazes, exibe uma imagem meio excêntrica que
pisando? Ele é fixo ou móvel? Sólido ou vaporoso?
se destaca no grupo pela roupa extravagante no talhe e no colorido.) Dona Magali, elogiar
PABLO
sobremesa quando se faz refeição em casa de amigo é um lugar-comum. Como cultor da
Os seus argumentos me confundem.
Arte eu detesto toda espécie de lugar-comum, porém não posso deixar de declarar,
Dr. URBINATI
solenemente, que acabei de comer o mais delicioso pudim preparado neste país depois da
Não tive a intenção...
última grande guerra. Receba, portanto, as minhas efusivas congratulações.
PABLO
Sra. MAGALI
De qualquer modo, não me sinto culpado dessa pequena divergência, mestre. O
Quem fez o pudim foi a Francesca; de qualquer maneira, muito obrigada. Dr. URBINATI
senhor mesmo incutiu na minha mente o espírito científico, a dúvida sistemática.
(Brincalhão, para LA TORRE.) Meu caro vizinho, cultor da Arte, orador
Dr. URBINATI Mas o espírito científico não é o que você está sustentando, Pablo. Não é só duvidar sistematicamente, é ir mais longe duvidando da própria dúvida... (Amistoso) Bem,
eloqüente até para elogiar sobremesa, mesmo quando se trata de um pudim com três dias de geladeira... Sra. MAGALI
devemos encerrar o debate. PABLO
É mentira, o pudim foi feito hoje!
Talvez eu mude de parecer depois de assistir o fenômeno.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
(Dando seguimento à fala dirigida a LA TORRE.) Cumpro o doloroso dever de
Aposto que mudará. Como ressaltou Boirac, em ciência nada é mais crucial do que um fato. Por enquanto, você ainda não conseguiu acreditar no meu bloco ou bolha de
informar-lhe que, por motivo de força maior, esta noite não jogaremos a nossa partida de xadrez e, assim, você poderá dormir um sábado sem amargar a costumeira derrota. LA TORRE
calor coagulado. Ora, viva! Não perde por esperar. Se ele não aparecer esta noite, ou
Mentira. Agora quem lhe desmente sou eu. Este mês ainda não ganhou uma só
amanhã, dou-lhe todo o direito de voltar segunda-feira para sua casa julgando que o coágulo não é de calor, é de sangue em alguma artéria do meu cérebro...
partida.
PABLO
CARMENCITA
Ainda bem que o senhor não perde o seu senso de humor.
Jogam xadrez, é?
Dr. URBINATI
PABLO
O que há de se fazer?... A vida, como ensinava um barbeiro filósofo que tive nos
Uma boa distração.
áureos tempos da mocidade, nos oferece uma banana atrás da outra: temos que descascálas alegremente, como os macacos... (A Sra. MAGALI e CARMENCITA aparecem à
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LA TORRE
Sra. MAGALI
(Para o Dr. URBINATI.) Não me oponho a transferir a aula de xadrez que lhe
O que acha? Tenho motivo?...
daria, desde que me permita também fazer as honras da casa para o insigne casal de
LA TORRE
visitantes. Dr. URBINATI
Eu dou a palmatória não apenas as duas mãos, também os pés: adoro falar, embora não ignore que o velho Platão, já na Grécia antiga, advertia os indivíduos loquazes
Como não?
com este trocadilho: “Os sábios falam porque precisam dizer alguma coisa, os tolos dizem
LA TORRE
uma porção de coisas porque precisam falar”...
A menos que não gostem de parolar.
Sra. MAGALI
CARMENCITA
Bela citação.
Parolar?
LA TORRE
LA TORRE
Grato.
Sim.
Dr. URBINATI
CARMENCITA
(Para a esposa, espirituosamente.) Você não quis insinuar que o nosso vizinho é
Não conheço esse termo...
um tolo, quis?
PABLO
Sra. MAGALI
Nem eu. O que significa parolar?
Absolutamente. Até porque eu não iria me condenar.
LA TORRE
LA TORRE
Significa falar muito, tagarelar, parolear, enfim, parlar, vem do italiano “parola”,
Meu preclaro Dr. Urbinati, e meu educado Dr. Pablo, perdoem a crítica respeitosa,
sinônimo de “palavra”, mas por extensão aplica-se a conversa sem compromisso, ou seja,
mas os cientistas necessitam aprender a viver como os artistas. Os senhores são
“conversa fiada”, em linguajar chulo.
demasiadamente circunspectos, fechados, falam pouco com medo de serem tomados por
Sra. MAGALI
tolos. No entanto, isto é que é tolice.
(Para CARMENCITA.) Eu não avisei que ele é uma autêntica enciclopédia?
Sra. MAGALI
PABLO
Apoiado.
De conversar nós gostamos. Eu quase não falo, porém a Carmencita fala por três
LA TORRE
ou quatro... CARMENCITA Mentira. Afinal chegou a minha vez de desmentir. Ele realmente quase não fala mas, nem por isso, eu falo tanto. Sra. MAGALI De minha parte, dou a mão à palmatória: sou uma metralhadora, principalmente se estou nervosa. Dr. URBINATI (Para ela, carinhosamente e intencional.) Hoje você não está nervosa, está?
(Entusiasmado) Nós, os artistas, é que somos sábios, assumindo a condição de rolos. Dr. URBINATI (Revidando, com ar trocista.) O seu trocadilho ficou melhor do que o de Platão... LA TORRE Seja. Digo-lhe, todavia, que não é mau negócio ser tolo. E o digo arrimado em Boileau que asseverou, certa feita: “Um tolo sempre encontra outros ainda mais tolos para o admirarem”. CARMENCITA (Com leve malícia.) Outra bela citação.
667
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Dr. URBINATI
PABLO
(Prosseguindo com o chiste.) Neste caso os tolos então somos nós, porque é
Não, não estou, e lamento não ter a mesma desenvoltura para participar do
evidente que estamos admirando o seu brilho verbal.
diálogo.
Sra. MAGALI
CARMENCITA
Ele tem toda a razão, vale a pena ser tolo.
(Para Dr. URBINATI.) Eu faço votos para o Pablo ser assim tão extrovertido
LA TORRE
como o senhor, quando atingir a sua idade. Se possível antes... Por que todo cientista tem
“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, já prelecionava o eminente bardo
de ser reservado, sisudo? (Para LA TORRE.) A sua crítica é inteiramente válida. Dr. URBINATI
português Fernando Pessoa. Dr. URBINATI
Não no que se refere à minha extrovertida pessoa...
Mais uma bela citação! Você é uma torrente inesgotável de cultura...
PABLO
LA TORRE
Sou meio calado, não por ser cientista; é uma questão de temperamento.
O meu conspícuo vizinho acaba de me exaltar ou me fez uma censura sub-
Sra. MAGALI Eu também sempre fui meio linguaruda por mera questão de temperamento.
reptícia?
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Você não é linguaruda, minha velha.... oh, desculpe, o velho sou apenas eu...
(Rindo) Opa! Este “sub-reptícia” é um preciosismo que humilha a minha pobre formação linguística.
Você simplesmente procede como todo artista, uma vez que também é cultora da música.
LA TORRE
O nosso prezado vizinho disse a verdade, artista que se preza não deixa de ser falador: de
Trata-se de uma expressão muito utilizada na terminologia da processualística
todos aqueles com que travei contato até esta data, o único que não falava muito era gago...
judicial. Por acaso vocês sabem que eu sou advogado, aliás, fui? Sra. MAGALI Nunca nos disse. LA TORRE Bacharelei-me em Direito, exerci a profissão por uns dois anos e logo distanciei-
(Risos) LA TORRE (Dirigindo-se aos outros.) Sou compelido a reconhecer que, como cientista, ele fala até em excesso. CARMENCITA
me Del apara exercer a única atividade que dá sentido ao destino do ser humano, a Arte é
E bem. Estou deslumbranda com a espirituosidade dele.
claro.
LA TORRE Dr. URBINATI
Com a sua verve, você quer dizer? ...
Quer dizer que a nossa Ciência não vale nada?
CARMENCITA
Sra. MAGALI
O que é verve?
Não foi isso que ele pretendeu afirmar.
LA TORRE
Dr. URBINATI (Bonachão) E nem poderia, uma vez que tudo vale a pena se a alma não é pequena.... (Para Pablo.) Você deve estar estranhando este nosso jeito de conversar.
Em linguagem castiça é a capacidade imaginativa e criadora que nos torna capazes de agradar os ouvintes. CARMENCITA Ahn... Pois é, o Dr. Urbinati tem bastante verve, como, aliás, o senhor também. Estamos encantados em assistir este tão elevado... colóquio. Não é, Pablo?
669
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PABLO
PABLO
Colóquio?... É, estamos encantados.
Deixem que eu junto. (Apanha o quadro do chão.)
LA TORRE
Sra. MAGALI
(Para CARMENCITA.) Os meus cumprimentos pelo emprego do termo “colóquio”, pouco usual; por causa dele, certo dia tive ácido entrevero com um sujeito
Mas este quadro sempre esteve mais do que seguro na parede. (Examinam minuciosamente o quadro.)
ignorante do vernáculo; ele achou que eu me comprazia em manejar um vocabulário assaz
Dr. URBINATI
hermético e em sinonímia rebuscada durante determinada conferência. Ora, se eu
Não sofreu nenhum dano.
dissertava na tal conferência sobre o currículum-vitae dos luminares da pintura universal,
Sra. MAGALI
como poderia deslustrar o meu padrão de oralidade?
Graças a DEUS.
CARMENCITA
PABLO
É...
Antes assim.
PABLO
CARMENCITA
É...
É, podia ter sido pior.
Sra. MAGALI
FRANCESCA
É...
Foi uma sorte.
Dr. URBINATI
LA TORRE
(Provocador) Embora os luminares da pintura universal talvez não mereçam
Os numes protegem as obras de arte. PABLO
tanto. LA TORRE Como não merecem? Por acaso o meu dileto vizinho já se deteve na sutil
(Examinando a parte detrás do quadro.) O fio de sustentação está intacto. (Todos olham para a parede em cima, a Sra. MAGALI pondo os óculos.) O gancho não sacou.
apreciação de toda a grandeza expressional de uma obra como a “Mona Lisa”? De toda a
Sra. MAGALI
majestosidade cromática de uma tela de... (Despenca da parede, na sala, o grande quadro
(Para ILMA.) Traga a escada. (Ela vai buscar.)
que retrata o pai da Sra. MAGALI; todos acorrem até lá, assustados, inclusive ILMA E
Dr. URBINATI
FRANCESCA.)
O gancho deve ter afrouxado.
ILMA
Sra. MAGALI
Pronto, começou tudo de novo!...
Será que afrouxou?
Dr. URBINATI
LA TORRE
Como aconteceu isto?
Se o gancho não tivesse afrouxado o quadro não teria caído: isso é elementar,
Sra. MAGALI
como enfatizaria Sherlock Holmes. Por falar em Sherlock Holmes, já leram as magistrais
Um desastre...
estórias de Conan Doyle?
LA TORRE
Dr. URBINATI
Deveras lamentável.
Eu não, meu caro Dom Camilo de La Torre.
CARMENCITA
PABLO
Uma pena se ele se quebrou.
Nem eu.
671
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Sra. MAGALI
embevecido diante de tanta sugestividade. Este quadro é uma joia de inspiração visual. O
Eu, igualmente não.
autor foi, inquestionavelmente, um figurativista de escol. (ILMA chega, arma a escada
CARMENCITA
para repor o quadro em seu lugar.)
Eu idem.
ILMA
LA TORRE
Por favor, me ajudem.
Incomparável mestre da contística, o Conan Doyle. Ninguém jamais o suplantou
Dr. URBINATI
no enredo de suspense. Vejam o que é o milagre da Arte: um escritor se lança a um gênero
Um momento. (Sobe na escada e inspeciona a estabilidade do gancho.)
tão banalizado como a novela policial e termina imortalizado na literatura.
PABLO
PABLO
Afrouxou?
(Aproximando-se da parede e fixando com o olhar mais de perto o gancho,
Dr. URBINATI
favorecido pela elevada estatura.) É possível que eu esteja enganado mas o gancho não
Não. Está firme.
afrouxou.
LA TORRE
Dr. URBINATI
Mesmo?
(Após verificar o fio de sustentação do quadro.) Ele teria de afrouxar...
Dr. URBINATI
LA TORRE
Firmíssimo, não afrouxou nem um pouco.
Afrouxar ou não afrouxar, eis a questão como dizia Shakespeare, o monumental
PABLO
vate e exímio autor teatral que construiu a glória da dramaturgia inglesa na Idade Média,
Eu não disse?
fazendo esquecer os maiores vultos da tragédia grega, ou seja, Ésquilo, Sófocles e
Sra. MAGALI
Eurípedes.
(Encarando ILMA.) O que você fez?
CARMENCITA
LA TORRE
(Para a Sra. MAGALI, referindo-se a LA TORRE.) Ele de fato é uma
Como, então, este quadro caiu de forma tão abrupta?
enciclopédia. Sra. MAGALI Não falei? Dr. URBINATI
Dr. URBINATI (Para LA TORRE, mais fraternalmente do que com ironia.) Imagine se os numes não protegessem as obras de arte... PABLO
Vamos providenciar a recolocação do quadro.
(Erguendo o quadro.) Pomos no lugar?
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
A escada não demora.
Vamos lá. (Ajusta o quadro na parede com auxílio de PABLO e LA TORRE.)
PABLO
Sra. MAGALI
É pesado.
(Para ILMA.) Mexeu na posição dele?
LA TORRE
ILMA
É uma obra-prima, do ponto de vista estritamente pictórico. Notem a fluidez das
Não senhora.
sombras, o meio-tom das cores que dominam o conjunto e o detalhamento dos traços. Na
Sra. MAGALI
primeira vez que tive a subida honra de transpor os umbrais da porta desta casa fiquei
No mínimo balançou demais.
673
674
ILMA
Sra. MAGALI
Juro que passei a flanela devagarinho.
Os célebres, que são clássicos como os grandes músicos eruditos.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
(Descendo da escada.) Retornamos para a varanda?
(Para ela.) O nosso querido vizinho, que já é célebre, um dia haverá de ser
ILMA
também um clássico da pintura. Infelizmente, na Arte, para alguém ser clássico precisa
(Apressando-se para fugir de qualquer interrogatório.) Posso levar a escada?
morrer...
Sra. MAGALI Espere aí, por que falou aquilo? ILMA
LA TORRE E na ciência, a regra é diferente? Em todas as esferas da genialidade humana o pedestal da consagração se levanta sobre os tijolos dos séculos transcorridos!
Aquilo o que, madame?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALAI
Mais uma bela frase. Esta é de sua autoria.
Quando o quadro caiu você disse: “Pronto, começou tudo de novo”.
LA TORRE
ILMA
É. Eventualmente sou acometido de veleidades estilísticas porque, nos idos
Não me lembro....
longíquos da mocidade, fui poeta; cheguei a publicar um livro de versos que jamais
Dr. URBINATI
reeditei para não prejudicar minha reputação de artista plástico; aliás, espero não vê-lo
(Conciliador) Esses acidentes acontecem.
incluído na minha biografia. Fui também jornalista, tradutor juramentado e professor de
Sra. MAGALI
História. Tudo abandonei, porém, sem pesar nem saudade, quando identifiquei na pintura a
Com os meus objetos de estimação não vão acontecer mais. Este quadro, aquele
minha suprema vocação. Do pretérito remoto conservo exclusivamente o gosto pela sã
sofá e as porcelanas não serão prejudicados pelo desleixo de nenhuma empregada. (Para
leitura porque o artista, de qualquer gênero, torna-se mais sensível e mais criativo na
ILMA.) Se não tiver mais cuidado daqui para a frente será despedida antes de completar um
medida em que dilata a sua visão do mundo. (Ouvem-se uns ruídos secos como
mês, entendeu?
arranhaduras mescladas de suaves batidas.)
ILMA
PABLO
Entendi, sim senhora. (Afasta-se para um canto onde está FRANCESCA,
O que é isto?
enquanto os outros vão para a varanda, reocupando suas cadeiras.)
CARMENCITA
FRANCESCA
Você ouviu?
Amanhã lhe darei uns conselhos.
Dr. URBINATI
ILMA
(Para a Sra. Magali e LA TORRE.) E vocês?
(Em voz baixa.) Que sina, a minha...(As duas levam a escada para a copa-
Sra. MAGALI
cozinha, pegando-a pelas extremidades.)
Eu ouvi.
LA TORRE
LA TORRE
Em que ponto interrompemos a nossa tertúlia?
Ouvimos.
CARMENCITA
CARMENCITA
O senhor estava fazendo um comentário sobre as obras dos seus colegas pintores.
Teria sido um rato?
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Dr. URBINATI
LA TORRE
Não, com certeza.
Singularíssimo.
Sra. MAGALI
PABLO
Nesta área não existem ratos. (Repetem-se os ruídos.)
Vamos ver lá fora.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Ouçam... (Os ruídos param, eles permanecem mudos em expectativa.)
(Em voz alta.) Francesca!
PABLO
Dr. URBINATI
Estancaram.
Ver lá fora o quê?
CARMENCITA
CARMENCITA
Tive a sensação nítida de ser aqui dentro de casa.
(Para PABLO.) Não deu para você perceber que foi aqui dentro?
LA TORRE
Sra. MAGALI
Eu também. E minha percepção auditiva é agudíssima.
É próximo de nós.
CARMENCITA
LA TORRE
Seria uma barata? Sra. MAGALI
Quanto a este pormenor o meu convencimento é pleno e absoluto. (Surge Francesca da copa-cozinha; junto com ela vem ILMA, um tanto desconfiada.)
Minha filha, nesta casa nunca apareceu uma barata.
PABLO
CARMENCITA
Pode ser o eco de algo, provindo do lado de fora.
Talvez um grilo ou um inseto maior roçando em... por que não procuramos? (O
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI toma iniciativa, vasculhando a varanda e olhando atrás dos móveis.)
(Para Francesca.) Dê um giro aí do lado de fora e veja o que encontra.
Dr. URBINATI
ILMA
Bicho, grande, pequeno ou médio não tem nenhum.
Vou com ela?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
É incrível.
Não há necessidade. (Francesca sai pela porta da sala à esquerda.)
LA TORRE
ILMA
Sem dúvida.
Aconteceu alguma coisa?
PABLO
Sra. MAGALI
Se me permitem um apontamento... (Suas palavras são interrompidas por ruídos
Por que pergunta?
mais fores e prolongados.)
ILMA
CARMENCITA
Por nada não...
Ouviram?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
É só, pode ir.
Meu DEUS, o que pode ser isto?!
ILMA
Dr. URBINATI
Sim senhora. (Recolhe-se à copa-cozinha.)
Interessante...
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PABLO
Dr. URBINATI
Aguardemos.
O que quer ouvir?
CARMENCITA
Sra. MAGALI
Será que passou de vez?
A explicação.
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
(Para o Dr. Urbinat.i) Estou começando a antipatizar com essa empregada.
(Risonho) Peça para o Pablo... (Pausa) CARMENCITA
(Recomeçam os ruídos com a intensidade anterior.) Dr. URBINATI
(A Pablo.) Eles estão esperando pela sua opinião.
É aqui dentro da varanda.
PABLO
Sra. MAGALI É.
Bom, eu... acho que devemos formar uma opinião sobre o fato depois de pesquisálo exaustivamente, digo, adequadamente.
CARMENCITA
Dr. URBINATI
É.
Como?
LA TORRE
PABLO
Iniludivelmente. (Fitam PABLO.)
O método necessariamente será o da observação...
PABLO
Dr. URBINATI
É... CARMENCITA
É o que estamos fazendo. Eu desde o início da semana em relação ao bloco ou bolha de calor coagulado.
E afinal de contas o que poderá ser isto?
PABLO
Sra. MAGALI
A observação terá de ser sistemática.
Estou ficando cada vez mais nervosa.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
(Para os outros.) Traduzindo a opinião de Pablo, esclareço a vocês que ele, por
Calma.
enquanto, não vai explicar nada.
PABLO
Sra. MAGALI (Para o Dr. URBINATI.) Que negócio é esse de calor coagulado desde o início da
Haverá uma explicação. LA TORRE É óbvio. Sra. MAGALI
semana? Dr. URBINATI Agora complicou... (Virando-se para PABLO.) Você, já que não se dispõe a
Que explicação?
explicar os ruídos daqui da varanda, poderia explicar a ela o calor coagulado em meu
PABLO
gabinete?
Uma explicação natural, lógica. Sra. MAGALI (Para o Dr. URBINATI.) Não diz nada?
PABLO Ainda não travei contato com tal calor. (Ressurgem os ruídos.) Apenas ouvi estes estalos faiscantes.
679
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LA TORRE
PABLO
Cuja explicação plausível estimaríamos receber do sapiente amigo.
Eu não disse?
PABLO
Sra. MAGALI
Já que insistem vou aventar uma possível causa para estes ruídos...
Santo DEUS, começou a hecatombe!!
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Fenômeno atmosférico?
Calma, calma, calma.
PABLO
CARMENCITA
Não, nem chegaria a tanto. O senhor mesmo não me ensinou que a formulação de
Horrível...
hipóteses deve, invariavelmente, partir do mais simples para o mais complexo? Por que,
Sra. MAGALI
então, não pensarmos nas instalações elétricas?
Nicholas, onde você está?
LA TORRE
Dr. URBINATI
Bem lembrado.
Aqui, não entre em pânico.
PABLO
LA TORRE
Sinais ou efeitos de um pré-curto-circuito... Sra. MAGALI
É em uma ocasião como esta que compreendemos o sentimento de Goethe no leito da morte, clamando: “Luz, mais luz”.
Ai! Minha mão do Céu, tenho pavor de incêndio. (Entra FRANCESCA.)
ILMA
FRANCESCA
(Com voz trêmula.) Meu senhor, não fale em morte!!!...
Olhei tudo, não tem ninguém, animal, nadinha. (Para a Sra. MAGALI.) Por que a
LA TORRE
senhora quis saber? (Ouvem-se ruídos, ela se espanta.) O que é isto??? Virgem!..
Quem acaba de me repreender com voz tão lúgubre?
Sra. MAGALI
FRANCESCA
Obrigada, pode ir. (Francesca recolhe-se à copa-cozinha.)
Foi a nova empregada que saiu correndo da cozinha, eu atrás dela....
LA TORRE
CARMENCITA
Não sei se concordam comigo, entretanto ouso declarar que aos poucos estamos
Não se vê um palmo adiante, como pode esta escuridão ser tão grande?
nos envolvendo em um clima sui-generis.
PABLO
Sra. MAGALI
Estamos no alto de um morro, não no centro da cidade. E a noite é de inverno.
(Torcendo as mãos exageradamente.) Eu estou é ficando com os nervos em
Sra. MAGALI
frangalhos.
Francesca, vá buscar velas se tiver, ou pelo menos uma caixa de fósforos.
CARMENCITA
CARMENCITA
Não é para menos.
Pablo, onde você está?
Sra. MAGALI
PABLO
Primeiro o Nicholas se comporta de maneira extravagante nos últimos dias, agora
Aqui. E você?
esta ameaça da casa pegar fogo... não há quem aguente! (As luzes apagam, a cena
CARMENCITA
mergulha em total escuridão, presumindo-se, pelo ranger das cadeiras, que todos se
Aqui...
levantaram.)
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PABLO
FRANCESCA
Mestre, o senhor tem fusível?
Deixei a caixa de fósforos na cozinha.
Dr. URBINATI
CARMENCITA
Não, a nossa rede elétrica nunca deu defeito.
Mas que coisa!
Sra. MAGALI
PABLO
Nicholas, o que eu faço?
Desta vez foi coincidência.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Nada, aguardem chegarem as velas.
A teoria do curto circuito já não faz sentido.
Sra. MAGALI
LA TORRE
(Dá um grito apavorada.) Ai!!!
Ainda bem que as lâmpadas não queimaram...
LA TORRE
CARMENCITA
O que houve de insólito?
O que será isso, Pablo?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Alguém me apalpou.
Nicholas, vem para junto de mim.
Dr. URBINATI
CARMENCITA
Foi você que esbarrou na minha mão, Magali, controle-se. (Surge à direita a luz
Alguém bateu em mim?
de uma vela, no mesmo instante as lâmpadas acendem.) CARMENCITA Salve!
LA TORRE Eu não saí do lugar, permaneço inerte, imóvel como uma fria múmia em seu sarcófago.
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
Graças.
Petrificado pelo medo?
PABLO
LA TORRE
Voltou...
Por precaução, apenas.
LA TORRE
Sra. MAGALI
Enfim, a sublime claridade. FRANCESCA
Nicholas, vem logo para perto de mim. (Ouve-se o barulho de uma pessoa que tropeça e de outra que cai.)
(Com cara de boba tendo a vela acesa na mão.) Apago?
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Que descuidado eu sou!
Claro, é cega? (Ela apaga a vela; imediatamente a luz volta a desaparecer
Sra. MAGALI
retornando a completa escuridão.)
Você caiu, Nicholas?
FRANCESCA
Dr. URBINATI
E agora?
Não.
Sra. MAGALI
Sta. MAGALI
Acende, burra!
Caiu, sim.
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PABLO
LA TORRE
Machucou-se, mestre?
Mexendo não, tocando.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Não. E já estou de pé, refeito.
E tocando no meu cravo modinha vagabunda.
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
Ah, meu Jesus, eu não vou suportar mais tempo esta escuridão.
Mas quem está na sala dedilhando o cravo?
Dr. URBINATI
PABLO
É você, Magali?
Sim, quem?
Sra. MAGALI
LA TORRE
Sou.
Eu não me arredei do lugar um milímetro.
Dr. URBINATI
CARMENCITA
Pode se agarrar em mim.
Quem será?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
(Ofegante) Sinto-me arrasada, Nicholas. Dr. URBINATI Não precisa me apertar tanto. LA TORRE
Francesca, onde você se meteu? (Silêncio; ela aumenta o tom de voz.) Onde você se meteu, Francesca? FRANCESCA (Ainda longe.) Estou na cozinha, procurando a caixa de fósforos. Tinha posto em
A situação está se tornando periclitante.
cima da geladeira, sumiu. As caixas do armário da copa também sumiram. Não é
Sra. MAGALI
possível!...
(Gritando) Francesca!
Dr. URBINATI
FRANCESCA
E a empregada nova?
(De longe.) Diga...
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI Por que não acende a porcaria dessa vela?
(Alto) Ilma! (Ninguém responde, ela grita com todas as forças.) Ilma!!! (Mais silêncio.)
FRANCESCA
Dr. URBINATI
Não consigo achar a caixa de fósforos. (Ouvem-se sons do cravo que se encontra
Esta agora foi de roer...
na sala, a princípio em notas soltas, depois interpretando fielmente uma melodia do
Sra. MAGALI
folclore popular.)
Por que ela não responde?
CARMENCITA
LA TORRE
Música...
Será que se escafedeu?
Sra. MAGALI
CARMENCITA
É do meu cravo.
O que é “escafedeu”?
PABLO
LA TORRE
Quem está mexendo nele?
Fugir às pressas, afastar-se, esgueirar-se.
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SEGUNDO ATO
CARMENCITA Está tocando o cravo? Sra. MAGALI
Manhã do dia seguinte, umas onze horas. A Sra. Magali e o padre Giordano
É uma analfabeta.
conversam na varanda, sentados, ele à cabeceira da mesa. Paralelamente, no Gabinete,
PABLO
cena muda entre o Dr. Urbinati e Pablo.
Há mais alguém em casa? Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Não. Há, Magali?
Pois é...
Sra. MAGALI
Pe. GIORDANO
Não.
(É um homem um tanto quanto soturno, dentro de uma batina preta modelo
PABLO
ultrapassado; semblante austero e contraído.) Sim...
Então só pode ser ela.
Sra. MAGALI
LA TORRE
E então?
Esta dedução é mais que elementar.
Pe. GIORDANO
CARMENCITA
É um caso sumamente delicado.
Por que a gente não tenta ir até a sala e tirar a prova?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Estou bastante agradecida por ter vindo logo.
Como, se não enxergamos nada?
Pe. GIORDANO
Dr. URBINATI
Podia ter chegado antes, a Missa acabou cedo, poucos quiseram comungar. O
Estou meditando sobre o que faremos se não aparecerem as caixas de fósforos... (Os acordes do cravo cessam de súbito e, instantaneamente, as luzes acendem; eles se dirigem celeremente para a sala onde não se vê qualquer pessoa.) Sra. MAGALI
problema foi descobrir um motorista disposto a subir este morro. A senhora sabe como são os carros de praça hoje em dia. Sra. MAGALI DEUS recompensará o seu sacrifício. E eu também recompensarei, além de pagar
(Estupefata) Como pode ter acontecido??? (Chega até a porta, obre-a, olha para
o táxi todo o tempo que for necessário ele ficar aí esperando. Porém, Padre Giordano, por
fora) Ninguém!... (Ouve-se um gemido na varanda, todos correm para lá e deparam com
favor, por tudo que é mais sagrado, não saia daqui sem fazer uma benzição completa na
ILMA estirada no chão, semidesmaiada.)
casa. O senhor não calcula como estou amedrontada. O eletricista que veio ver nossa instalação de luz faz meia hora inspecionou os fios de ponta a ponta, os registros, os interruptores, e foi embora com ar de riso, garantindo que nenhuma lâmpada podia ter apagado por si mesma como aconteceu ontem à noite. E o cravo, como é que o meu cravo tocou sozinho, Padre?
687
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Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Tem razão. Fatos como esses, quando não são fantasias da imaginação, têm que
Mas que coisa!
ser artes do Diabo. Que outra explicação mereceriam? Somente a incredulidade dos materialistas e ateus nega os poderes de Satanás.
Pe. GIORDANO Dê-me um momento. (Enfia a mão no largo bolso da batina, retira um Breviário
Sra. MAGALI
e passa a balbuciar uma prece caminhando de um lado para o outro; a Sra. Magali
Não seriam fenômenos provocados por almas do outro mundo? Pelos mortos,
gesticula para Francesca como quem diz: “nada temos a fazer” e afinal, senta-se de novo,
como alegam os espíritas?
desalentada.)
Pe. GIORDANO
FRANCESCA
A senhora anda lendo livros do Espiritismo?
(Depois de recolher na bandeja o que restou da xícara quebrada.) Vou buscar um
Sra. MAGALI Não, Padre, nunca li nem deposito a mínima fé neles. Pe. GIORDANO Se anda lendo me diga porque tudo fica esclarecido e não haverá reza que dê jeito. Aqueles que se ocupam em atrair os demônios têm de aturá-los e não devem se queixar. Sra. MAGALI Pelo amor de DEUS não faça tal juízo de mim, se eu o chamei com tamanho
novo café. Sra. MAGALI Um minuto, não arreda o pé daqui que ainda permaneço abalada. (Aguardam o término da oração do Padre Giordano, cada vez mais ressabiadas.) Pe. GIORDANO Pronto, já encomendei esta casa à misericórdia de Nosso Senhor Jesus-Cristo. Penso que por enquanto basta.
interesse é porque confio unicamente na palavra da Igreja. O senhor é que é autoridade no
Sra. MAGALI
assunto, eu e o Nicholas não entendemos absolutamente nada dessas questões ligadas ao
E se não bastar?
sobrenatural. Por falar no Nicholas, vou avisar a ele que temos o prazer da sua visita.
Pe. GIORDANO
Aceita almoçar conosco? (Francesca aparece com uma bandeja, serve cafezinho; o Padre
Veremos depois...
Giordano ergue-se, apanha a sua xícara e, justo no instante em que volta a sentar-se, a
Sra. MAGALI
cadeira arreda do lugar incompreensivelmente, sem ninguém puxá-la; ele cai
Se os ruídos recomeçarem, as lâmpadas se apagarem e o cravo tocar sozinho?
desastradamente.)
Pe. GIORDANO
Pe. GIORDNO
Aí... Talvez...
Arre!...
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Desculpe, Padre, mas por que o senhor não realiza logo um exorcismo?
Valha-me, minha Nossa Senhora!
Pe. GIORDANO
Pe. GIORDANO
O exorcismo é uma prática do ritual religioso que a Santa Igreja só executa
“Vade retro, Satanás!”... (Faz o sinal da cruz.)
através de alguns dos seus Ministros, especialmente treinados para lidar contra os Anjos do
Sra. MAGALI
Mal. Apesar de carregar nas costas tantos anos de sacerdócio católico, eu não sou
O senhor se feriu? (Ajuda-o a levantar-se, assessorada por Francesca.)
exorcista.
Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Estou bem.
Ah, não?
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690
Pe. GIORDANO
Pe. GIORDANO
Não.
Exorcismo se faz em pessoas, não em lugares. Se existisse nesta casa uma pessoa
Sra. MAGALI
endemoniada seria o caso de se providenciar um exorcismo sobre ela, mas como não existe
E o que faremos para conseguir um, se houver necessidade?
ninguém que...
Pe. GIORDANO Teremos de apelar para o Arcebispado.
Sra. MAGALI Pare! Quem sabe se não temos entre nós alguém sob a influência dos demônios?!
Sra. MAGALI
Estou me lembrando de que todas as coisas ruins, espantosas, acontecidas debaixo deste
Como? De que forma?
teto, tiveram início depois de contratarmos a nova empregada. E ela às vezes demonstra
Pe. GIORDANO
uma atitude tão estranha... Francesca, chama a Ilma.
Através de um relatório, documentando as ocorrências e as circunstâncias em que elas se verificaram. Convém descrever tudo minuciosamente, como se fosse um inquérito.
FRANCESCA Vou já. (Sai para a copa-cozinha.)
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
É assim tão complicado?
Essa empregada, que veio para cá semana passada, pode ser a causa de tudo...
Pe. GIORDANO
pode, sim... ora se pode!... meu DEUS, como não desconfiei há mais tempo?...
É.
Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Por que suspeita dela?
Juguei que seria mais simples...
Sra. MAGALI
Pe. GIORDANO
Por inúmeros motivos. Para começar... (IlMA aparece, conduzida por
Porque ignora até onde vão os poderes do Príncipe do Inferno. O Diabo tem sob
FRANCESCA.)
suas ordens legiões de demônios, todos eles capazes de cometer as maiores crueldades, os
ILMA
mais horríveis crimes.
A senhora me chamou?
FRANCESCA
Sra. MAGALI
“Vôte”!...
Sim, vamos ter um entendimento seríssimo. Sente-se.
Sra. MAGALI
ILMA
(Tremendo) Minha Santa Mãe do Céu! (Ensaia um choro contido.) Eu vou acabar
(Acanhada) Eu falo mesmo em pé.
me desesperando, juro que vou.
Sra. MAGALI
Pe. GIORDANO
(Ríspida) Sente-se!
Acalme-se. A situação ainda não atingiu o ponto crítico.
ILMA
Sra. MAGALI
Sim senhora. (Obedece)
Por caridade, Padre Giordano, mesmo de maneira precária, extra-oficial, faça um
Sra. MAGALI
ligeiro exorcismo antes de ir embora, pelo menos aqui na varanda e na sala.
Por que você trouxe um verdadeiro pandemônio para a nossa casa? ILMA Pandemônio?
691
692
Sra. MAGALI
ILMA
Sim. Feitiçaria, tumulto, assombração, o diabo?
Não consigo ficar trabalhando muito tempo em lugar nenhum... me ajudem, senão
ILMA
acabo enlouquecendo... Tratem de mim, não me mandem embora...
Eu...
LA TORRE
Sra. MAGALI
(Surge à esquerda, na porta da sala que estava entreaberta.) Bom-dia, posso
Nós sempre vivemos na paz do Senhor, em quietude e harmonia. Você pôs os pés
entrar?
aqui, acabou-se! Acabou-se a tranquilidade que tanto cultivamos. Por acaso é alguma
Sra. MAGALI
macumbeira?
Chegou na melhor ocasião.
ILMA
LA TORRE
Não senhora, juro que não.
(Penetra até a varanda, cumprimenta o padre GIORDANO.) Tenho novidades.
Sra. MAGALI
Sra MAGALI
Tem parte com o Capeta? Mexe com almas penadas?
Nós também.
ILMA
LA TORRE
Dona, eu... eu... eu... Sra. MAGALI
Telefonei hoje cedinho para um amigo meu que é parapsicólogo e relatei as ocorrências de ontem à noite. Ele me explicou tudo com extrema facilidade.
Responda!!!
Sra. MAGALI
ILMA
Já sabemos que são artes do demônio. (Aponta para IlMA.) Ela é a culpada.
(Cobre o rosto com as mãos e chora.) Eu... eu não sei o que se passa comigo... me
ILMA
ajudem... eu não seu o que tenho... eu não sei... FRANCESCA
(Para o padre GIORDANO, com olhar súplice.) Padre, me salve, eu não tenho culpa de nada, não é pela minha vontade que acontece...
Esta, agora!
LA TORRE
Sra. MAGALI
Não são artes do demônio, Dona Magali, são prodígios do inconsciente. O
É ela Padre, com toda a certeza. É ela que atrai os demônios.
inconsciente é que produz os fenômenos de “poltergeist”, exatamente aqueles com os quais
Pe. GIORDANO
nos defrontamos ontem à noite.
(Para ILMA.) Minha filha, conte para nós como se entregou aos desígnios de Satanás.
Sra. MAGALI Inconsciente? Que inconsciente? (Volta a apontar para a ILMA.) Ela confessou
ILMA (Ainda soluçante, porém com firmeza de sinceridade na voz.) Eu não tenho nada a ver com Satanás... Sou uma boa católica, batizada e crismada... Não sei por que em todas as casas em que me emprego acontecem esses atropelos...
que os demônios se manifestam em todas as casas onde se emprega. LA TORRE Trata-se de uma sensitiva. Os fenômenos de “poltergeist”, para eclodirem, precisam de um epicentro, isto é, de uma pessoa dotada de poderes paranormais.
Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Em todas as casas?
Os poderes dela são de atrair as maquinações do Diabo.
Sra. MAGALI
Pe. GIORDANO
Eu não disse?
Quanto a isso não há a menor dúvida.
693
694
FRANCESCA
LA TORRE
Quem diria!
E uma luneta?
LA TORRE
CARMENCITA
Se me permitem o questionamento analítico do assunto, discordo frontalmente.
Foi o que eu vi.
Segundo a abalizada teoria do meu amigo parapsicólogo, nem o Diabo, nem os Espíritos de
Sra. MAGALI
qualquer natureza têm participação nessa classe de fenômenos que resultam, estritamente,
Era só o que faltava!... (Saem os quatro para o jardim.)
de energias mentais liberadas pelo inconsciente de uma pessoa em estado de hiperestesia.
Passa-se a ouvir as falas da cena no gabinete de trabalho, até então muda.
No geral alguém com traumas, frustações e violentos desejos reprimidos.
Dr. URBINATI
Pe. GIORDANO
Quero agora lhe mostrar uns dados que sempre mantive em sigilo.
Está enganado juntamente com o seu amigo. A atuação demoníaca é responsável
PABLO
por todos os fatos.
Sobre a sua equação?
LA TORRE
Dr. URBINATI
Negativo, reverendo. Consoante os ensinos da Parapsicologia, a mente humana é
Sim.
capaz de produzir os fenômenos que na antiguidade eram atribuídos ao Diabo ou aos
PABLO
demônios e depois, sobretudo com o advento da Doutrina de um tal de Allan Kardec,
Estou curioso.
começaram a ser encarados como obra dos defuntos. A mente humana pode apagar e
Dr. URBINATI
acender luzes sem a interferência de corrente elétrica, pode fazer um cravo tocar sozinho, pode até fabricar fantasmas que conversam com supostos parentes na maior intimidade. Sra. MAGALI
Anteontem dei a maioria dos retoques finais, fiz as retificações básicas, já posso lhe expor o ponto central da minha teoria. (Tira do bolso um molho de chaves, abre a gaveta de uma escrivaninha; surpreende-se ao constatar que está vazia) Cadê???...
Mas pode como?
PABLO
LA TORRE
Procure em outro local.
Isto a Parapsicologia não sabe. Porém explicar, explica...
Dr. URBINATI
CARMENCITA
Que outro local?
(Entra pela porta da sala, que continua entreaberta.) Gente, que coisa
PABLO
estranhíssima! Em uma poça de lama, no jardim, tem uma pasta verde de documentos e
Guardou aí mesmo?
uma luneta. Achei tão esquisito que não quis nem tocar, venham ver.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Eu tranquei nesta gaveta uma pasta com as últimas notas sobre a equação.
(Para FRANCESCA e ILMA.) Cuidem do almoço.
Lembro-me perfeitamente, recordo até que coloquei ao lado minha luneta! Ninguém
ILMA
poderia ter tirado daqui aquela pasta e a luneta.
(Humildemente) A senhora vai me despedir?
PABLO
Sra. MAGALI
Quem sabe não pensou em guardar e esqueceu? Esses lapsos são comuns em
Ainda hoje decidirei. (As duas saem para a copa-cozinha.) Pe. GIORDANO Pasta de documentos em poça de lama?
gente como nós.
695
696
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Tenho a mais absoluta convicção de que tranquei nesta gaveta, em uma pasta
É claro que fez a emenda.
verde, todos os meus derradeiros cálculos, junto com a luneta. Como tiraram daqui? E por
PABLO
que tiraram?
Não. Não fiz.
PABLO
Dr. URBINATI
A sua esposa, ou as empregadas, não teriam aberto as gavetas para limpar?...
Ora não fez, Pablo, que gracinha...
Dr. URBINATI
PABLO
Jamais fariam isso.
Estou lhe garantindo que não me aproximei deste quadro-negro.
PABLO
Dr. URBINATI
O senhor me disse há pouco que iniciou os últimos cálculos no quadro-negro.
Como não? PABLO
Apagou? Dr. URBINATI
Dou-lhe a minha palavra de honra.
Não, venha olhar. (Leva-o para um canto do Gabinete, onde existe um quadro-
Dr. URBINATI Fala sério?
negro parcialmente encoberto; fita-o e recua um passo.) Mas o que é isto??? PABLO
PABLO
Isto o quê?
Eu não teria ousadia de alterar um trabalho seu, principalmente dentro da sua casa,
Dr. URBINATI
sem lhe pedir autorização. Seria uma falta injustificável, apesar da liberdade que o senhor
Você emendou sem me deixar ver?
me dá.
PABLO
Dr. URBINATI
Eu???
Pablo, não foi você mesmo que entrou aqui ontem à noite, depois que fui deitar, e
Dr. URBINATI Espere... (Pega giz, faz umas operações no quadro-negro; PABLO assiste intrigado.)
emendou ali? PABLO Não. De jeito nenhum. Não vê que eu não poderia ter feito isso?
PABLO
Dr. URBINATI
Mestre, eu lhe asseguro...
É... não teria como adivinhar... mas quem seria o autor desta emenda?
Dr. URBINATI
PABLO
Corretíssima, a sua emenda. Como é que não concebi tal hipótese?
Ignoro. Foi outra pessoa, não eu.
PABLO
Dr. URBINATI
Nem eu a concebi.
Outra pessoa daqui de casa? Você está brincando.
Dr. URBINATI
PABLO
Como você conseguiu entender o meu raciocínio, para corrigi-lo sem saber onde
Mestre, o senhor nunca...? Bobagem...
eu pretendia chegar? PABLO Mas eu não corrigi nada.
Dr. URBINATI (Refletindo) Bobagem, não... Eu também lhe faria a pergunta... (Olham-se)
697
698
PABLO
PABLO
É evidente que nenhum de nós dois é sonâmbulo.
Fale, mestre.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Uma vez mais lhe peço, seja franco comigo. Por acaso transita pela sua cabeça,
Não adianta escamotear mais a questão.
ainda que vagamente, a ideia de uma perturbação mental minha?
PABLO
PABLO
Qual?
Insisto em que admito qualquer explicação para esses fatos, menos sua
Dr. URBINATI
insanidade. Conheço-o o suficiente para saber que se encontra em plena posse de suas
Você já fez uma reflexão profunda sobre a teoria da antimatéria?
faculdades psíquicas.
PABLO
Dr. URBINATI
Não, sei apenas que depois da descoberta do antinêutron, pelo Dr. Léon
Obrigado.
Ledermam, outros colegas identificaram o antipróton e o antineutrino. Se estes elementos
PABLO
estão embutidos nas estruturas atômicas girando em posição inversa... (Faz uma pausa.)
Que conversa mais desapropriada, a nossa.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Que dedução tira daí?
É...
PABLO
PABLO
É difícil...
Troquemos de assunto.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Para mim, não. Deve existir um universo paralelo. Uma outra dimensão da vida,
Não posso esquecer meus cálculos. Das suas, uma: ou a Magali retirou da gaveta
oposta ou justaposta àquela que percebermos com as nossas limitações sensoriais. Deve
trancada os meus papéis e a luneta, hipótese sem o menor sentido, ou uma das empregadas
haver uma faixa de espaço-tempo transcendente, abrigando uma outra realidade...
os furtou, hipótese igualmente inaceitável. E a emenda do quadro-negro? Pablo, você não
Raciocine comigo: faça de conta que nos achamos diante de algumas estrelas; as reações
vê que isso tudo é terrivelmente absurdo?
termonucleares queimam todo o combustível dessas estrelas e elas se apagam, tornam-se
PABLO
anãs brancas; depois perdem calor, diminuem seu raio; com a redução do diâmetro o
Vejo.
movimento de rotação sobre si mesmas se acelera, a densidade se concentra e eis que as
Dr. URBINATI
estrelas se transformam em pulsares; somente são reconhecidas através dos sinais de
É fantástico.
radiação eletromagnética que emitem ; em dado momento há uma espécie de exaustão
PABLO
gravitacional e os pulsares diminuem seu raio rapidamente porque os próprios nêutrons,
Sim...
esmagados uns contra os outros, terminam por fundir-se em uma massa invisível de
Dr. URBINATI
colossal densidade; temos, assim, em lugar de estrelas, "buracos-negros”; a gravitação na
E o que me diz?
superfície da estrela morta vai aumentando sem cessar, pois as forças gravitacionais sobre
PABLO
a superfície variam com o inverso do quadrado do raio; como o espaço mais se curva
O que posso dizer?
quanto mais intensa é a gravitação, chega-se a um nível de achatamento em que ele se
Dr. URBINATI
curva sobre si mesmo, criando uma bolsa independente com um espaço-tempo próprio, isto
Meu rapaz...
é, formando um universo paralelo...
699
700
PABLO
PABLO
Onde o senhor quer chegar com essa elucubração, mestre?
Hum!...
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Na possibilidade teórica da existência de um outro mundo que faça conexão ou se
Magali, você abriu a gaveta em que a pasta e a luneta se encontravam trancadas?
interpenetre ocasionalmente com o nosso... Um outro mundo de onde brotem as bolhas de
Sra. MAGALI
calor coagulado... Um outro mundo de onde venham seres inteligentes, capazes de fazer
Eu nunca abro suas gavetas, não sabe disso?
ruídos, apagar luzes, tocar cravos, serem vistos... capazes até de retirarem pastas e lunetas
Dr. URBINATI
de gavetas trancadas...
(Novamente para PABLO.) Ouviu?
Retornam do jardim a Sra. Magali, La Torre, Carmencita e o Padre Giordano. A ação verbal volta a se concentrar na sala.
PABLO Hum!...
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
(Com uma pasta verde e uma luneta nas mãos.) O Nicholas, quando souber que
(Para a Sra. MAGALI.) Chame a Francesca e a outra empregada.
alguém lançou na lama estas coisas dele, vai ficar furioso. Quem terá feito isso? Só pode
Sra. MAGALI
ter sido a endemoniada... Vou despedi-la agora.
(Afastando-se para a copa-cozinha.) Chamo as duas e mando uma já embora.
Pe. GIORDANO
LA TORRE
Não convém facilitar...
Meu caro Dr. Urbinati, os eventos que se verificam nesta aprazível residência são
LA TORRE
sobremodo originais. Dir-se-ia que os arcanos imperscrutáveis da Natureza escolheram
(Para CARMENCITA.) Dormiu tranquila ontem à noite depois daquilo tudo?
este ambiente para ilustrar a tese de um amigo meu, conceituado parapsicólogo. Se me
CARMENCITA
permite, aproveitando os esclarecimentos dele posso explicar os fenômenos que ontem
Acordei com pesadelo três vezes.
presenciamos sem recorrer a argumentos infantis, nascidos da crença no Diabo, demônios e
LA TORRE
espíritos.
Não foi para menos. (O grupo se dirige para a varanda; simultaneamente o Dr. URBINATI e PABLO saem do Gabinete; reúnem-se todos na varanda, apreensivos.) Dr. URBINATI
Pe. GIORDANO Eu protesto. (Encarando LA TORRE.) O senhor não tem o direito de menosprezar o ensinamento da Santa Igreja com essa sua ciência de meia tigela.
(Para a Sra. MAGALI.) Onde estava essa pasta e a luneta?
LA TORRE
Sra. MAGALI
Ter, tenho. Por que não? Sou um livre-pensador, não um beato.
Em uma poça de lama no jardim. (Entrega a ele.)
Pe. GIORDANO
Dr. URBINATI
Mas não possui qualificação para contestar as verdades divinas, contidas nas
(Limpando os objetos com um lenço.) Como foi possível acontecer isso?
Escrituras Sagradas. A Bíblia tem revelações que atestam os portentosos poderes do
Sra. MAGALI
Príncipe do Inferno para aterrorizar os pobres mortais e para jogá-los no abismo da
E eu sei?
perdição, fazendo-os abandonar a redentora fé católica.
Dr. URBINATI
LA TORRE
(Para PABLO.) Viu?
Eu não tive a intenção de desconsiderar a sua fé.
701
702
Pe. GIORDANO
Dr. URBINATI
Porém acaba de fazer isso.
(Para ILMA.) E você?
LA TORRE
ILMA
Perdoe-me. Contudo, não abdico da minha opinião.
Eu não, juro que não, doutor.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Parabéns por fazerem as pazes como bons cavalheiros. LA TORRE
(Para ILMA.) Desde a sua chegada, tudo de ruim vem nos acontecendo. Por obra e graça dos demônios que você atraiu para cá.
Eu somente queria demonstrar, de acordo com a Parapsicologia, como esses
LA TORRE
fenômenos são explicáveis à luz de forças que já são conhecidas.
Dos demônios não, do inconsciente dela.
Dr. URBINATI
Pe. GIORDANO
Meu queridíssimo Dom Camilo de La Torre, a esta altura começo a me interessar
Dos demônios, sim.
apenas por forças desconhecidas para explicar os fenômenos que nos acabrunham. Em se
PABLO
tratando de efeitos físicos só existem, cientificamente, quatro forças conhecidas: a
Talvez fosse prudente não fazermos um juízo apressado, sem observarmos os
eletromagnética, que liga os elétrons aos átomos e os átomos entre si; a nuclear forte, que
fatos mais detidamente.
liga os nêutrons, os prótons e os quarks; a nuclear fraca, que responde pela relação entre as
Sra. MAGALI
partículas leves e pesadas; e a gravitacional. Nenhuma destas quatro forças, nem os
Nicholas, antes de você chegar ela confessou que não consegue ficar empregada
devaneios da sua Parapsicologia, explicam de maneira convincente COMO uma pasta e
muito tempo em lugar nenhum, porque para onde vai provoca assombrações.
uma luneta podem sumir de dentro de uma gaveta trancada, COMO pode se formar um
FRANCESCA
bloco de calor coagulado, COMO os cálculos que eu deixei no quadro-negro puderam ser
É, confessou.
emendados e corrigidos sem ninguém conhecer os pontos-chaves do meu raciocínio. Os
Sra. MAGALI Só nos resta mandá-la embora imediatamente. O Padre Giordano não pode
fatos que você testemunhou ontem à noite constituem apenas uma fração do formidável enigma que tomou esta casa de assalto desde o início da semana.
expulsar os demônios sem um exorcismo completo, e não tem preparo nem autorização
LA TORRE
para fazê-lo; precisaria primeiro se comunicar com o Arcebispo e depois escrever um
Registraram-se outros fenômenos aqui além daqueles?
relatório que poderia se converter em inquérito, acarretando um escândalo para a nossa
PABLO
reputação, principalmente para a sua de cientista.
Seguramente.
Pe. GIORDANO
CARMENCITA
Quanto a tal detalhe nada há a temer, a Igreja não divulga os casos dessa
Foi?
categoria.
Sra. MAGALI
CARMENCITA
(Voltando com Francesca e ILMA.) Pronto, vamos colocar tudo em pratos limpos.
Haverá problema se a imprensa souber.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI Cedo ou tarde saberá. E fará o alarido, até fotografia da nossa casa publicarão nos
Francesca, você abriu alguma gaveta trancada no meu gabinete? FRANCESCA Não senhor, DEUS me livre de tamanho desatino.
jornais.
703
704
Dr. URBINATI
apagaram a luz uma porção de vezes. Fizeram barulho e até tocaram o cravo sem auxílio
Bem, façamos um balanço geral da situação. O que você me diz disso tudo,
de ninguém; no entanto não estragaram, não danificaram um único objeto.
Pablo?
CARMENCITA PABLO
Isso é exato.
A possibilidade de ser um escândalo é preocupante; ele certamente afetaria seu
Sra. MAGALI
prestígio perante a comunidade científica.
É. Apenas nos assustaram
Dr. URBINATI
FRANCESCA
Eu pergunto o que me diz sobre o conjunto desses fatos chocantes para a nossa
E como assustaram!
formação acadêmica. PABLO Ainda acho prematura qualquer conclusão.
Pe. GIORDANO Provavelmente continuarão assustando, porém sem destruir nada de valor, podem ficar tranquilos.
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
E você, La Torre, o que me diz?
Já é um consolo...
LA TORRE
Ouve-se um estrondo dentro do armário de portas envidraçadas; as porcelanas
Reafirmo que o caso sob exame, “soi-disant” sobrenatural, resume-se em
todas se quebram. Pânico geral. ILMA cai, em transe. Francesca corre de um lado para o
fenômenos de “poltergeist” que não são causados nem por demônios nem por Espíritos, e
outro como uma barata tonta, até sentar-se com falta de ar. A Sra. MAGALI é acometida
sim por energias originárias do Inconsciente. (Designando ILMA.) Essa moçoila é uma
de uma crise de tremores. O Padre GIORDANO pega o seu Breviário no bolso e põe-se a
sensitiva, uma paranormal, pelos seus conteúdos emocionais não resolvidos e, sobretudo,
rezar. CARMENCITA agarra-se a PABLO. Este, apesar de controlar-se, demonstra não
pela mecânica do seu psiquismo, a desencadear as mais espetaculares ocorrências em
ter ficado totalmente imune ao impacto do imprevisto. LA TORRE tenta disfarçar o
qualquer meio ambiente que a rodeie. Eis tudo. O resto, como diria Shakespeare, é
nervosismo coçando a careca. O Dr. URBINATI, mais sereno do que todos os outros,
silêncio.
aproxima-se do armário para inspecioná-lo. Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Para o Padre GIORDANO.) Qual é o seu pronunciamento definitivo?
Que estrago!...
Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Já o fiz. Andamos às voltas com uma atuação demoníaca. Não obstante, pensando
As minhas porcelanas chinesas!!!
bem... acho que não devem se apavorar, pois o Diabo e seus anjos perversos produzem
CARMENCITA
essas façanhas exclusivamente para desviar os cristãos do caminho reto da fé, não para lhes
(Para PABLO, murmurando.) Meu amor, vamos logo para a nossa casa.
impor prejuízos materiais. O que os demônios querem não é destruir nada de valor da casa,
LA TORRE
é simplesmente fazê-los desprezar os dogmas salvadores da Santa Igreja.
É o cúmulo do inusitado!...
Dr. URBINATI
FRANCESCA
E os meus cálculos, preciosíssimos, que foram parar na lama?...
(Para a Sra. Magali, indicando ILMA no chão.) O que a gente faz com ela?
Pe. GIORDANO
Pe. GIORDANO
Pura tentação, para levá-lo a acreditar no Espiritismo. O diabo é ladino. Não
Recorramos à oração.
reparou os resultados de ontem à noite? Pelo que a sua esposa me contou, os demônios
705
706
Dr. URBINATI
LA TORRE
Se são demônios mesmo, Padre, parecem muito interessados em desmenti-lo.
(Puxa uma cadeira até onde ILMA se encontra, suspende-a e senta-a, secundado
Sra. MAGALI
pelo Dr. URBINATI.) Está desacordada, mas se a Parapsicologia não tem método para
(Para Francesca, referindo-se à ILMA.) Não toque nela, neste instante está
despertar sensitiva, eu tenho. (Aplica uma bofetada nela.)
enfeitiçada e o Diabo pode passar para a sua pele.
CARMENCITA
FRANCESCA
(Penalizada) Não faça isto!
Desconjuro!
LA TORRE
Dr. URBINATI (Para LA TORRE.) E agora, o que nos cumpre fazer de acordo com a Parapsicologia?
Já fiz... Em nome da Arte, não da Ciência. Aposto que dá certo. (Aplica outra bofetada.) Dr. URBINATI
LA TORRE
Basta.
Nada...
CARMENCITA
Dr. URBINATI
Que brutalidade.
(Para PABLO.) Ainda acha cedo para tirarmos uma conclusão?
ILMA
PABLO
(Abre os olhos.) O que foi???
Não sei...
LA TORRE
Sra. MAGALI
(Vitorioso) Viram só como entendo do assunto?!
Ai, minha Nossa Senhora , esta tremedeira não tem fim!...
Sra. MAGALI
FRANCESCA
(Para ILMA.) Vá arrumar a sua maleta e suma daqui!
Nem a minha falta de ar!...
Dr. URBINATI
LA TORRE
Calma, Magali, calma, ela não tem culpa.
(Entre os dentes.) Por esta eu não esperava...
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI Será que vocês têm condições de se recompor psicologicamente e me ajudar a recolher estes cacos de porcelana? (Todos se movimentam.)
Como não tem culpa? Quem provocou esses transtornos, inclusive a verdadeira desgraça da liquidação das minhas porcelanas chinesas? Padre Giordano, convença o Nicholas de que o Diabo entrou nesta casa com ela e somente com ela sairá.
Sra. MAGALI
Pe. GIORDANO
Não em conformo com tamanha tragédia. Minhas porcelanas do século
Sou obrigado a admitir que a paz retornará a este lar se ela se mudar. Infelizmente,
dezessete!... Dr. URBINATI (Olhando para ILMA no chão.) Não é melhor benzê-la antes?
a nossa irmã está em vias de uma integral possessão demoníaca. LA TORRE Possessão demoníaca é algo estapafúrdio, todavia não padece dúvida de que a
Pe. GIORDANO
moça é o epicentro dos fenômenos, e com o seu afastamento do ambiente os mesmos
Por enquanto não precisa. (Dá proceguimento à sua oração.)
cessarão.
707
708
PABLO
Sra. MAGALI
Mestre, sem entrar no mérito da questão, sou também de parecer que o
Pode ter sido, não, Nicholas, foi! Ela foi responsável?
afastamento da moça seria uma medida oportuna.
Pe. GIORDANO
Dr. URBINATI
Aprovo tal ponto de vista.
(Para CARMENCITA.) Concorda com a opinião do seu ponderado marido?
LA TORRE
CARMENCITA
Eu, idem, desde que a figura fantasiosa do Diabo não entre em cena.
Inteiramente.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Porém se foi responsável não foi culpada, porque a sua vontade pessoal nada teve
(Para FRANCESCA.) E você, o que pensa?
a ver com os fenômenos. Em segundo lugar, esta infeliz moça necessita de urgente amparo
FRANCESCA
e nós faltaríamos com o dever de solidariedade humana se a entregássemos à própria sorte.
Eu?...
Em terceiro lugar, ela vai continuar trabalhando aqui porque, valendo-me de suas
Dr. URBINATI
faculdades, desejo pesquisar a fundo esses fenômenos que contrariam, aparentemente,
(Risonho) Sim. Estou promovendo uma eleição democrática sobre a permanência
todas as leis da Física.
ou a expulsão de sua colega.
PABLO
FRANCESCA
Isso é uma tolice, mestre, desculpe-me; é quase uma loucura.
(Após curta pausa.) Penso que a patroa tem razão. Sinto compaixão dela, uma
Dr. URBINATI
pobre coitada, mas não deve ficar aqui não.
Tolice, Pablo, é você se fechar no círculo estreito do conhecimento oficial. Quase
Dr. URBINATI
loucura, meu filho, é você desdenhar da hipótese do universo paralelo. Tem que existir
Bom, já que há unanimidade... ela vai continuar empregada nesta casa.
uma quarta dimensão! Como você ainda não percebeu intuitivamente tão grande
Sra. MAGALI
probabilidade?...
O quê???
Sra. MAGALI
LA TORRE
Nicholas, eu não sei o que pensar nem dizer.
Como?...
Dr. URBINATI
Pe. GIORDANO
Então não pense nem diga...
Tem coragem de desafiar a Providência Divina?
Sra. MAGALI
PABLO
Mas que ela sairá daqui já-já, sairá.
Talvez seja uma temeridade...
Dr. URBINATI
CARMENCITA
Desiluda-se, minha velha, a moça ficará.
Talvez, não, é...
Sra. MAGALI
FRANCESCA
Não ficará.
(Para a Sra. MAGALI.) Eu ouvi direito o que ele disse?
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Ficará, sim.
Meus amigos e minha amada esposa, prestem atenção: em primeiro lugar, esta
FRANCESCA
moça pode ter sido responsável por todas as nossas agruras...
(Para si mesma.) Que embrulhada.
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710
LA TORRE
CARMENCITA
Lamento se a nossa presença...
Meu pai afirmava que o vinho depura o sangue.
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
(Com bom humor.) Vocês estão tendo o privilégio de assistir à nossa primeira
Era médico?
briga em mais de cinquenta anos de casamento.
CARMENCITA
Pe. GIORDANO
Não, era dono de um bar. (Todos riem.)
É hora de ausentar-me...
LA TORRE
Dr. URBINATI
Se depura o sangue eu não sei, porém que apura a inspiração, tenho certeza.
Não, Padre, não irá sem almoçar conosco. Por favor.
Pe. GIORDANO
CAMENCITA
Jesus o repartiu com seus discípulos na última Ceia.
Depois do almoço nós iremos...
CARMECITA
Dr. URBINATI
(Para Sra. MAGALI.) Não consigo esquecer...
Que pressa é esta? Ainda necessito discutir uns assuntos com Pablo.
Sra. MAGALI
LA TORRE
Nem eu...
Eu...
LA TORRE
Dr. URBINATI
O vinho relaxa quando estamos tensos.
Você também não arreda do pé, almoça conosco. Um aborrecimento a mais não
Dr. URBINATI
faz diferença... (Para a Sra. MAGALI.) Que tal tomar as providências cabíveis para o
Mais um copo?
banquete não atrasar?
LA TORRE
Sra. MAGALI
Recuso-me a recusar. (A Sra. MAGALI serve.)
(Para FRANCESCA.) Vá cuidar do almoço. (Ela sai para a copa-cozinha; ILMA
PABLO
a acompanha.) Dr. URBINATI (Pondo a mão no ombro da Sra. MAGALI.) Minha velha, bonita e doce namorada; encerrada a nossa briga ligeira, mostre para os amigos como você costuma tratar aos domingos o seu marido apaixonado.
Agora que estamos refeitos da perplexidade, me pergunto se este recinto não se encontra imanado por cargas magnéticas sutis e inabordáveis... Dr. URBINATI Você não tem jeito, Pablo. É um caso perdido de fisiologismo cósmico. Quer me convencer de que correntes eletromagnéticas de qualquer ordem produziram os fenômenos
Sra. MAGALI
sem a contribuição de uma inteligência? E como justifica o caráter seletivo dos fatos? Por
(Sensibilizada) Vinho?
que despencou da parede o retrato do pai de Magali e não outro quadro? Por que
Dr. URBINATI
quebraram as porcelanas chinesas e não as outras louças? Por que transportaram para a
Para todos, inclusive para o Padre Giordano, que deve ter tomado a dose inicial
lama os meus cálculos e não outros papéis igualmente trancados? Por quê, quando as teclas
durante a Missa... (O vinho é servido.)
do cravo se moveram, tocaram uma melodia popular em vez de emitirem sons
LA TORRE
desordenados? Por que, afinal, tais fenômenos não poderiam ter sido causados por seres
Um trago de vinho vem a calhar.
inteligentes, embora invisíveis?
711
712
PABLO
PABLO
Porque eles não existem.
Alguma coisa está queimando na sala!!!
Dr. URBINATI
CARMENCITA
E o que prova que não existem?
Um incêndio!!!
PABLO
LA TORRE
A Física mestre, a nossa Ciência que nunca detectou nenhum espírito no
Fogo!
Universo.
Pe. GIORDANO
Dr. URBINATI
Fogo do Inferno...
E se o Universo que a nossa Física tem estudado e devassado não for o único? Se,
Todos correm para a sala e se atrapalham sem saber como apagar o fogo.
conforme já comentei com você, houver um Universo paralelo, um espaço-tempo
Dr. URBINATI
diferente, habitado pelos indivíduos humanos que morreram? Não poderiam eles, em
(Gritando) Magali, traz depressa uma panela cheia de água!
determinadas circunstâncias vibratórias, exercer influência no mundo material? E até conviver conosco?
O Padre Giordano assume a postura de oração. LA TORRE o força a tirar a batina para tentar com ela abafar as chamas. CARMENCITA corre para a copa-cozinha.
PABLO
O Dr. URBINATI segura a estatueta e bate nas labaredas. PABLO desloca-se para a
Conviver conosco? Ora, mestre...
varanda em busca de alguma peça com a qual tenha meios de colaborar na tarefa. A
Neste instante, na sala, começa a sair fumaça do assento do sofá. A fumaça se
seguir aparece a Sra. MAGALI com uma panela transbordante de água. Na afobação, tropeça e derrama todo o conteúdo. Surge atrás dela FRANCESCA, informando que
espalha. Sra. MAGALI
ILMA entrou em transe na cozinha. Finalmente CARMENCITA desponta, conduzindo
Que discussão mais boba, esta de vocês.
duas panelas com água, graças à qual o fogo é debelado.
CARMENCITA
LA TORRE
Não estão sentindo um cheiro de queimado?
Ufa! Isto ultrapassa as raias do grotesco!...
LA TORRE
Sra. MAGALI
Eu só sinto o cheiro delicioso deste vinho.
Meu rico sofá! Mes rico sofá! (Afundo em um pranto histérico.)
PABLO
CARMENCITA
É... parece cheiro de algo queimando. Sra. MAGALI
(Arrasta PABLO para um canto da sala.) Não me demoro aqui mais cinco minutos.
Será na cozinha?
PABLO
Dr. URBINATI
Não há motivo para tamanha aflição.
Vai ver se estragaram nosso almoço. (A Sra, MAGALI sai para a copa-cozinha.)
CARMENCITA
O assento do sofá entra em combustão e o fogo se alastra rapidamente. A fumaça
O quê? Não há motivo? E se na próxima vez o fogo for na minha saia?...
invade a varanda. Dr. URBINATI O que é isto???
Pe. GIORDANO (Vestindo a batina chamuscada.) Vivendo e aprendendo...
713
714
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
(Acariciando a Sra. MAGALI.) Minha velha, conforme-se. A gente manda
O Nicholas está obcecado por essa bruxa.
reconstituir e eu lhe prometo que em duas semanas este sofá estará tão lindo quanto era.
PABLO
Sra. MAGALI
Uma pena.
(Soluçando) Não devia ter acontecido, não devia. Foi uma perversidade, só
LA TORRE
mesmo o Cão do Inferno seria capaz dessa malvadeza.
Lastimável.
Dr. URBINATI
Pe. GIORDANO
Não adianta se desesperar.
Sintoma evidente de fascinação diabólica...
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
A culpa foi sua, eu queria despedir aquela miserável logo e você não deixou.
Pablo, será que o Nicholas sofreu alguma alteração do juízo?
Sr. URBINATI
PABLO
Tudo vai acabar bem.
Alteração do juízo, propriamente, não creio.
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Vai acabar bem... E se a casa toda virar um fogareiro? Gostaria de morrer torrado?
É normal esse comportamento dele?
Dr. URBINATI
PABLO
Há um limite para qualquer fenômeno. Confie em mim.
Sim. Só não posso afiançar que seja sensato.
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Confiar em você... Se o Padre, que é ministro de DEUS, não resolveu nada...
Como assim?
Pe. GIORDANO
PABLO
Realmente. E acho que não devo prolongar a minha visita, aguardando o almoço...
Esta semana o encontrei demais empolgado com certas premissas de sua equação,
LA TORRE
desenvolvendo um tipo de raciocínio lúcido, mas que não me parece positivo.
Eu também, apesar do vinho, perdi o apetite...
Sra. MAGALI
PABLO
Equilibrado, você quer dizer?
Se o senhor não se importa, mestre, a Carmencita, depois do almoço, deseja
PABLO
regressar...
Mais ou menos...
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
(Sobressaltada) Todos vão sair? Eu os acompanho. O Diabo é quem fica aqui.
Então ele está com o raciocínio desequilibrado?
Pe. GIORDANO
PABLO
Se a moça ficar, os demônios ficam...
Também não é isto. Está com o raciocínio mais especulativo do que objetivo. A
FRANCESCA
senhora compreendeu?
Ela está caída na copa.
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
Não. Não compreendi.
Vamos socorrê-la. (Dirige-se para a copa-cozinha; apenas FRANCESCA o segue;
PABLO
os outros se detêm na varanda.)
É difícil eu me expressar.
715
716
Sra. MAGALI
Dr. URBINATI
Tente outra vez porque me deixou mais agoniada.
(Entra à direita com ILMA.) Ela recuperou-se. E a Francesca avisa que o almoço
PABLO
não demora. Esqueçamos os dissabores para comer com satisfação.
É o seguinte: o professor, com suas ideias demasiadamente avançadas, penetrou
LA TORRE
em uma espiral conceptiva que contraria os parâmetros do pensamento científico clássico.
Precedentemente, bebamos.
Entendeu?
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
(Distribui mais vinho.) Aceita outro copo, Padre Giordano?
Agora sim, piorou.
Pe. GIORDANO
PABLO
Somente um pouco.
(Vencido) Não é fácil...
Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
(Fazendo ILMA sentar-se.) Tome um gole de vinho.
O que lhe indago é simples: ele está ou não está com o pensamento perfeito?
ILMA
PABLO
Não senhor, eu não bebo.
Depende do que a senhora considera pensamento perfeito. Sob o aspecto da saúde
Dr. URBINATI Experimente, não lhe fará mal.
sim, sob o aspecto da lógica talvez não. Sra. MAGALI
ILMA
Pablo, pelo amor de DEUS: o Nicholas está bom da cabeça ou está meio biruta?
(Encabulada) A Francesca deve precisar de mim, posso ir?
LA TORRE
Dr. URBINATI
(Para PABLO.) Julgo que posso explicitar para ela o que você quer dizer, com os
Se prefere... ILMA
meus despretensiosos recursos vernaculares. Concede-me o ensejo? PABLO
Sim senhor, com licença. (Vai para a copa-cozinha.)
Pois não.
Dr. URBINATI
LA TORRE
Tenho pena dessa pobre moça.
Dona Magali: o seu marido, como cientista, é um gênio, semelhante, aliás, a um
LA TORRE Nós também, meu generoso vizinho; mas que a convivência com ela é desastrosa,
grande artista, desses que deixam o nome na História. Sendo um gênio, atravessa uma fase genial, tida como pura tolice por aqueles que não possuem genialidade. Compreendeu?
é. Dr. URBINATI
Sra. MAGALI
Não recomecemos a polêmica superada. Mudemos de conversa, já que vocês logo
Compreendi. (Para PABLO.) Foi o que você falou? PABLO
vão nos deixar e eu não desfrutei o bastante de tão afável companhia. Pablo, deixe para ir
Foi mais ou menos, em termos relativos, naturalmente.
amanhã.
Sra. MAGALI
PABLO
(Aliviada) Graças a DEUS.
Temos um compromisso ainda hoje. Precisamos partir depois do almoço.
717
718
Dr. URBINATI
Dr. URBINATI
Dom Camilo de La Torre, concorda em perder uma partida de xadrez fazendo a
Como não?
digestão da sobremesa?
CARMENCITA
LA TORRE
Nem eu.
Não, necessito descer o morro sem tardança; vou até aproveitar o táxi do
Dr. URBINATI
reverendo, se ele me oferecer carona. Dr. URBINATI Mas se o Padre Giordano aceitar o meu convite para uma animada conversa, depois da refeição?
Vocês é que são teimosos... Neste momento, uma folha de papel cai do teto; o Dr. URBINATI apanha a folha, vira-se e lê um texto nela escrito; franze a testa e fita os demais. PABLO
Pe. GIORDANO
De onde caiu este papel?
Obrigado, tenho afazeres na Igreja no começo da tarde. (Para LA TORRE.) Será
CARMENCITA
um prazer levá-lo no carro.
Do teto, eu suponho.
LA TORRE
LA TORRE
Prometo que não pronunciarei na viagem uma só palavra contra a existência do
É...
Diabo e seus assessores...
Pe. GIORDANO
FRANCESCA
Foi, provavelmente...
(Surge à direita) Ela pa.rece que vai desmaiar novamente. (Recolhe-se à copa-
PABLO
cozinha.)
(Olha para o teto, no que é imitado pelos outros.) Não pode ter sido.
Sra. MAGALI
Sra. MAGALI
Temos de mandar embora essa moça, Nicholas; por que é que somente você não
É, não pode ter sido.
enxerga isso?
LA TORRE
Dr. URBINATI
Não pode mesmo.
Não vamos reiniciar a briga diante de nossos convidados. Mais tarde acertarei as
CARMENCITA
contas com você, minha adorável esposa.
Não pode.
Sra. MAGALI
Pe. GIORDANO
Não entendo tamanha teimosia.
Não.
LA TORRE
Dr. URBINATI
Se me permite a intromissão no assunto, nem eu.
O vento terá trazido da sala?
Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Se me permite a advertência, nem eu.
Não há folha de papel nenhuma na sala, para ser trazida.
PABLO
PABLO
Se me permite a sinceridade, nem eu.
Pode ter vindo do Gabinete.
CARMENCITA Posso me manifestar?
719
720
Dr. URBINATI
Pe. GIORDANO
Se ela tivesse vindo do meu local de trabalho forçosamente teria caído no outro
De quem?
lado.
Dr. URBINATI Pe. GIORDANO
Não é do Diabo nem de nenhum demônio.
É...
LA TORRE
LA TORRE
Ainda bem...
É...
Dr. URBINATI
CARMENCITA
E não me parece que seja de um inconsciente.
É...
Pe. GIORDANO
Sra. MAGALI
Pelo menos isso...
É...
PABLO
PABLO
Uma mensagem para alguém?
Talvez uma corrente de ar a tenha deslocado para cima de nossas cabeças, sem
Dr. URBINATI
notarmos.
(Gravemente) Para você.
Dr. URBINATI
PABLO
E como não sentimos qualquer ventilação?
Está troçando, mestre.
LA TORRE
Dr. URBINATI
Não soprou sequer uma brisa.
Infelizmente, ou felizmente, não estou. (Entrega a folha de papel para LA
PABLO
TORRE, sentado ao seu lado; ele a lê, tem a mesma reação de surpresa do Dr. URBINATI,
Se esta folha de papel não veio da sala terá vindo do Gabinete: do teto é que não
franzindo a testa; pela ordem de proximidade passa-a para o Padre Giordano, este para a
poderia cair por encanto. CARMENCITA
Sra. MAGALI, esta para CARMENCITA, todos se surpreendendo com a leitura silenciosa, até chegar a vez de PABLO; este, no meio da leitura, emociona-se.)
Tem alguma coisa escrita nela?
PABLO
Dr. URBINATI
Não é possível!!! Não é possível!!!
Tem.
Dr. URBINATI
PABLO
(Paternal) Pablo, ninguém no mundo tem o direito de proferir esta sentença: NÃO
O quê?
É POSSÍVEL. Só sabemos, com nossa acanhada Ciência, O QUE É POSSÍVEL. E
Dr. URBINATI
sabemos muito pouco do que é possível.
Uma interessante mensagem. LA TORRE
PABLO É a letra do meu irmão. E somente ele me chamava pelo apelido. O que está aqui é
Sua?
um segredo que me contou antes de morrer, do qual ninguém mais, nem nossa mãe, tomou
Dr. URBINATI
conhecimento.
Não.
721
Dr. URBINATI E agora o que você me diz da teoria do Universo paralelo?... (Há uma prolongada pausa em que todos se entreolham, desestruturados.) PABLO
722
A folha de papel cai; PABLO apressa-se em juntá-la do chão e faz a sua leitura, com voz quase trêmula. PABLO Desta feita é para o senhor, mestre. No lugar da assinatura está escrito: UM
Não sei... Eu me sinto desnorteado...
ESPÍRITO AMIGO. Diz o seguinte: continue a desenvolver a sua equação sem medo do
Dr. URBINATI
ridículo e sem esperar o aplauso dos homens inteligentes, que na verdade ainda não
Como desnorteado? Não acabou de ter uma prova crucial da sobrevivência do seu
possuem bastante inteligência para perceber a própria ignorância. Um dia a humanidade
irmão?
compreenderá que o mundo físico é apenas uma das fases da natureza, dentro da qual PABLO
ninguém desaparece para sempre com a morte do corpo, e todos serão felizes quando
Preciso de tempo para pensar...
souberem se amar acreditando em DEUS, o supremo criador da vida.
Dr. URBINATI
As luzes se apagam com fundo musical solene.
Quem mais, além do seu irmão, poderia ter escrito a mensagem? Pe. GIORDANO O Diabo... LA TORRE Ou o inconsciente da empregada... Ouvem-se interruptos ruídos na varanda que vão aumentando de intensidade, até infundir em todos um estado de extrema excitação. Segue-se uma espécie de explosão. Dr. URBINATI (Olhando para o teto.) Vejam!!! Todos erguem a cabeça e contemplam uma folha de papel trespassando o teto de cor cinza-azulada. PABLO Incrível!!! Sra. MAGALI Como este papel pode vir atravessando o teto??? LA TORRE De acordo com a Parapsicologia, estamos sendo vítima de uma alucinação coletiva!... Pe. GIORDANO Mais uma façanha de Satanás!... Dr. URBINATI Maravilha!... A matéria interpenetrando a matéria!... Eu não estava errado!...
FIM
22 724
723
NOTA DO AUTOR Na História do Brasil a Cabanagem figura como a única revolução armada em que o povo pobre de uma região, no caso a Amazônia, derrubou o governo legalmente constituído e assumiu de fato o poder político. Esta peça teatral, publicada pela Editora Paka-Tatu em 2012, foi escrita com base em informações históricas contidas nas brochuras a seguir mencionadas, ainda que tenhamos consultado outras fontes, livrescas e jornalísticas, como, por exemplo, a edição de 30/31 de dezembro de 1984 de A PROVÍNCIA DO PARÁ, na qual o poeta Ruy Barata, após tecer brilhantes apreciações sobre o contexto sociológico, econômico e político da Cabanagem, demonstrando maior simpatia por Félix Malcher do que por Eduardo Angelim, situa Batista Campos como o cabano por excelência. Eis as brochuras: 1. HISTÓRIA DO PARÁ, de Ernesto Cruz, 1o volume, 2a edição a expensas do Governo do Estado em 1973; 2. CABANAGEM EPOPÉIA DE UM POVO, de Carlos Roque, 1o volume, 1a edição feita em Belém pela Imprensa Oficial no ano de 1984; 3. CABANAGEM A REVOLUÇÃO POPULAR DA AMAZÔNIA, de Pasquali Di Paolo, estudo premiado com o 1o Lugar no Concurso Nacional de Monografias instituído pelo Conselho Estadual de Cultura do Pará, em comemoração ao Sesquicentenário da Cabanagem, 1a edição (Belém, 1985);
CABANAGEM
4. CABANAGEM O POVO DO PODER, de Júlio José Chiavenato, Editora Brasiliense S.A., São Paulo, 1984; 5. CABANOS & CAMARADAS, de Alfredo Oliveira, 1a edição feita pelo autor e lançada em 2010.
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Prefácio
726
maiorias. Da sombra do esquecimento, eis que surgem como se retirados de uma tela de Norfini, os homens do povo que foram os protagonistas daqueles dias que abalaram o
O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma autoestrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas6. (SARAMAGO, J. A Viagem do Elefante)
Um assalto aos céus, uma revolução popular no coração da Amazônia, quarenta anos antes da Comuna de Paris, a Cabanagem permanece sendo fonte de inspiração para os que não abrem mão do sonho de ver a face da Terra completamente livre de todas as formas de opressão e exploração. Mas, como se sabe, durante décadas essa extraordinária epopeia da resistência do povo amazônida foi coberta por um gigantesco manto de silêncio e de mentira. Os revolucionários passaram à história oficial como os “malvados”, “assassinos”, “bebedores de sangue”. Seus nomes foram quase todos banidos e não restaram gravados em placas alusivas a ruas e monumentos, enquanto os genocidas que exterminaram um em cada três homens adultos foram impostos como heróis e defensores da legalidade. Nada mais fácil e indigno. O fato concreto é que jamais houve Revolução tão autêntica, radical e profunda nas terras paroaras quanto a Cabanagem. Dentro dos limites históricos que eram postos – e, aliás, pressionando aquelas margens estreitras de baixo desenvolvimento das forças – os cabanos souberam ousar até o limite das suas forças e impuseram uma longa e penosa resistência que se estendeu de 1835 até 1840, quando os últimos bastiões de rebeldia tiveram de depor armas já nos mais distantes pontos do Amazonas e do Rio Negro, provando que a Revolução possuiu caráter bastante amplo e atingiu praticamente toda a calha do grande rio e seus principais afluentes. Resgatar essa saga é uma necessidade indispensável. E é esse trabalho, meticuloso e sensível, que Nazareno Tourinho, legítimo artista do povo, ajuda a realizar na bela e vibrante peça teatral “Cabanagem”, que tenho a honra de prefaciar. Como disse o grande José Saramago, o passado precisa ser revisto e as montanhas de pedras despejadas por séculos de dominação e opressão devem ser retiradas, uma a uma, com renovada paciência e radicalidade. É ali, onde ninguém imagina, que será descoberta a existência de uma história ímpar de heroísmo e de denotada devoção aos interesses das 6
A viagem do Elefante, São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Brasil imperial. Diga-se que Nazareno Tourinho não apresenta os personagens cabanos – que na sua criação teatral adquirem verbo, carne e vibração humana – como meras vítimas do terror do Estado de então. Os cabanos estão de cabeça erguida, miram o horizonte, são destemidos e sabem o preço que terão de pagar para romper de uma vez por todas os grilhões que secularmente os reduziam a mais abjeta condição. Não é, assim, qualquer coincidência que a ação principal de “Cabanagem” transcorra durante um único dia: 7 de janeiro de 1835. Um dia especial que marca a tomada de Belém pelas forças insurgentes e a conquista do Palácio de Governo com o desbaratamento dos principais próceres do governo oligárquico que infelicitava o povo. É o dia da vitória que abriu o caminho para muitos outros que testemunharão avanços e recuos de um movimento que precisou assumir os riscos de romper com o status quo e abrir os senderos da mudança verdadeira. Na última cena, fechando o espetáculo Angelim discursa a seus companheiros de armas. Ele afirma que “a História provará para sempre que a nossa revolução foi vitoriosa, porque lutamos por uma ideia e, quando temos dignidade e estamos com a razão, “A IDEIA É SAGRADA...A IDEIA NÃO MORRE”. Que vivam os ideais eternos de justiça e liberdade encarnados pela Cabanagem! Que viva a cultura do povo tão belamente representada nas obras do genial Nazareno Tourinho!
Edmilson Brito Rodrigues Professor, arquiteto, deputado estadual
727
ÉPOCA E LUGAR
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servir de exemplo a outros possivelmente rebeldes, e chegou a amarrar Batista Campos à boca de um canhão para reduzi-lo a farelo de carne e osso com um único tiro, só não fez
Primeira semana de janeiro de 1835. Belém do Pará.
isso graças a interferência de terceiros, inclusive membros da Junta Governativa da Província). INGLES
CENÁRIO Necessariamente composto com elementos simbólicos que levem em conta o tipo de espaço da representação, os recursos instrumentais do grupo encenador e as possibilidades inventivas do diretor do espetáculo. No fundo do palco um telão mostrará imagens sugestivas, referentes aos locais onde a ação estará sendo desenvolvida.
Guilherme James Ingles. Capitão de Fragata jamaicano, contratado pela Marinha Brasileira. Comandava a frota de navios da Armada Imperial, fundeados na baía do Guajará. JALES Joaquim Afonso Jales. Comerciante português. Era o braço civil dos governos que quisessem explorar e oprimir os nativos da região. Dirigente de Loja Maçônica e do Partido Caramuru, que reunia seus patrícios em oposição aos falangiários do Partido
PERSONAGENS
Filantrópico, pertencente aos brasileiros defensores da liberdade e da justiça social, e sobretudo da autonomia para os paraenses decidirem sobre o seu destino.
LOBO DE SOUZA
TENENTE ARAÚJO
Bernardo Lobo de Souza. Presidente da província do Grão-Pará, que abrangia
Joaquim Lúcio de Araújo. Oficial no comando do brigue Palhaço quando em seus
toda a região amazônica com sede em Belém. Tomou posse no cargo designado pela Carta
porões flutuantes foram mortos por envenamento e asfixia, em uma só noite, mais de
Imperial de 13/09/1833, quando o Brasil, tendo declarado sua independência de Portugal,
duzentos e cinquenta presos políticos.
encontrava-se no regime de Regência em face da abdicação de D. Pedro I e da menoridade
BATISTA CAMPOS
do seu sucessor. Era maçom graduado e, segundo Ernesto Cruz (brochura retrocitada,
João Batista Gonçalves de Campos. Mentor dos cabanos, que o seguiam e
página 254), um homem “assomado e colérico”. Por ter saliente mecha de cabelos brancos
amavam. Falecido dias antes de eclodir o levante que tomou o poder governamental em
na cabeça o povo o chamava de “Malhado”.
07/01/1835. Nascido no Acará, então distrito de Belém, em 1782, foi ordenado padre em
SILVA SANTIAGO
1805, dez anos depois tornou-se Cônego, depois Arcipreste da Catedral de Belém, mas se
Joaquim José da Silva Santiago. Comandante de Armas do governo de Lobo de
fez advogado, montou escritório para atuar nesta profissão e desenvolver atividades
Souza, Tenente-Coronel. Na mesma página citada da brochura referida, HISTÓRIA DO
políticas, sendo até proibido pelos superiores eclesiásticos de rezar missa na capital. Havia
PARÁ, Ernesto Cruz o define como militar “brusco e intratável”.
quem o chamasse de “benze cacetes”. Assumiu a direção do primeiro jornal paraense
GREENFELL
quando Felipe Patroni, seu fundador, foi aprisionado, e posteriormente editou outros por
John Pascoe Greenfell. Mercenário inglês a serviço da Armada Imperial
conta própria. Criou com a ajuda de companheiros de ideal o Partido Filantrópico, já
Brasileira, desembarcou em Belém logo após a proclamação da Independência do Brasil
aludido. Foi preso numerosas vezes e ao fim da vida teve de andar fugindo das forças do
comandando um navio de guerra, com a missão de conseguir do Pará adesão ao Império.
governo de Lobo de Souza. Morreu com 52 anos de idade, em 31/12/1834.
Tão violento quanto astucioso (enganou a população local para alcançar seu objetivo,
ANGELIM
anunciando mentirosamente que tinha cobertura da frota de Lord Cokhrane, disposta a
Eduardo Francisco Nogueira. Conquistou a alcunha de Angelim, árvore resistente
arrazar a cidade se fosse necessário), era capaz de cometer friamente qualquer crueldade
e de alto porte, pela valentia demonstrada nas brigas de adolescente no bairro da Campina,
para manter a ordem pública (mandou fuzilar cinco soldados inocentes e desarmados para
em Belém, onde chegou com pouco mais de dez anos, junto aos pais e irmãos, que fugiam
729
730
da seca no interior do Ceará. Foi o terceiro e último governante cabano, com apenas vinte e
ANTÔNIO VINAGRE
um anos de idade. Nasceu em 06/07/1814 e faleceu em 1882, com 68 anos. Não possuindo
Foi considerado por alguns cronistas como “o mais radical de todos os líderes
aptidão para as lides burocráticas ou comerciais arrendou terras de Félix Malcher e se
cabanos e o maior comandante de massas”. Comandou uma coluna na derrubada do
transformou em lavrador. Ouvinte atento das pregações cívicas de Batista Campos, aos
governo de Lobo de Souza. Também nasceu no Acará como seu irmão Francisco, de quem
dezoito anos alistou-se entre os filantrópicos, tendo comandado uma tropa que saiu do
foi Comadante de Armas, tendo feito tudo para que ele, então Presidente, não entregasse o
Acará para combater os caramurus, do comerciante português Jales. Era “muito vivaz,
governo ao Marechal português Manoel Jorge Rodrigues. Desatendido rebelou-se e,
altivo e insinuante”, segundo diz Ernesto Cruz na obra citada, arrimado no que consta no
desgostoso, retirou-se para o interior junto com seus liderados levando armas e munições.
livro Motins Políticos, de Domingos Rayol, o Barão de Guajará.
Morreu em 1835 abatido por um tiro mortal quando invadiu Belém e atacou o Arsenal de
GERALDO “GAVIÃO” Geraldo Nogueira. Irmão mais velho de Angelim, também conquistou pela
Guerra no governo do referido Marechal. LAVOR PAPAGAIO
valentia o apelido nas brigas de bairro. Comandou uma das tropas que tomaram o Palácio
Vicente Ferreira Lavor Papagaio. Mulato cearense, terrível panfletário que Batista
do Governo em 07/01/1835. Sempre esteve ao lado do seu irmão e ficou ao lado dos
Campos trouxe do Maranhão hospedando na sua residência, a fim de auxiliá-lo
irmãos Vinagre quando estes se voltaram contra Félix Malcher por acharem que ele,
jornalisticamente no auge de sua campanha contra os desmandos de Lobo de Souza. Há
primeiro governante cabano, estava traindo os companheiros. Nasceu no interior do Ceará
quem diga que ele tinha um caráter leviano e enfrentava problemas com a justiça na sua
(Aracati) em 1806.
terra natal. Celebrizou-se por escrever com a pena incendiária o periódico Sentinela
MANOEL NOGUEIRA
Maranhense na Guarita do Pará, atiçando o sentimento revoltoso dos cabanos, e por ter
Segundo irmão mais velho de Eduardo Angelim, e seu fiel parceiro de luta, ainda
tido a audácia de gritar de uma janela, defronte à qual Lobo de Souza desfilava
que muito menos exaltado. Às vezes era chamado de “Manoel mole” por ser “o mais flexível dos cabanos”. FÉLIX MALCHER
garbosamente a cavalo em solenidade cívica: “Abaixo o Malhado!”. MIGUEL ARANHA João Miguel de Souza Leal Aranha. Guarda-livros, durante cinco anos estudou
Félix Antônio Clemente Malcher. Grande proprietário rural, rico fazendeiro no
comércio nos Estados Unidos. Participou dos preparativos para a deposição de Lobo de
Acará. Estava preso na Fortaleza da Barra quando os cabanos tomaram o poder e foi logo
Souza, chefiou uma coluna que marchou para ocupar o Palácio do Governo e foi quem ali
solto para assumir a presidência da Província, já que se encontrava morto seu maior
reconheceu o caudilho quando ele chegava apressado, após ter dormido fora na casa da
concorrente, Batista Campos, com quem tivera um desentendimento que durou mais de dez
amante, exclamando: “Lá vai o Malhado!”.
anos, depois superado pelo interesse da luta em prol da causa comum. Nasceu em Monte Alegre no ano de 1782. Já deposto como primeiro governante cabano foi morto por um desafeto pessoal, Quintiliano Barbosa.
JOÃO GONÇALVES CAMPOS João Pedro Gonçalves Campos. Primo de Batista Campos e seu devotado colaborador. Alferes, em sua fazenda na ilha das Onças, de nome Nazaré da Boa Vista
FRANCISCO VINAGRE
(Belém, como se sabe, ficava em frente, do outro lado da baía), os cabanos se reuniram
Francisco Pedro Vinagre. Paraense, filho de português, nascido no Acará em
para planejar o grande ataque às forças do governo.
1812, e falecido em 1873, foi o segundo governante (presidente) cabano, tendo sucedido
DOMINGO “ONÇA”
Félix Malcher com 23 anos de idade. Jovem quase tanto quanto Angelim, como ele era
Tapuio (mestiço de índio). Matou Lobo de Souza.
lavrador foreiro de Malcher, juntamente com seu irmão Antônio. Tinha outros irmãos, um
FELIPE “MÃE DA CHUVA”
de nome Manoel, morto por gente de Lobo de Souza quando transportava nos ombros um
Negro. Matou Silva Santiago.
animal que havia caçado.
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732
DOMINGOS “SAPATEIRO”
ATO ÚNICO
Curiboca (caboclo semibranco). Matou James Ingles. CABANOS O maior número que puder ser colocado no palco, alguns descalços e sem camisa.
No telão do fundo do palco aparece a fachada da Catedral de Belém. Ouve-se um
PESSOAS DIVERSAS
fúnebre dobrar de sinos. Pausa. A imagem no telão muda para a de um lugar ermo.
Muitos soldados, dois marinheiros e espectadores de uma peça teatral.
Lentamente os personagens vão surgindo e o diálogo dá início à ação. ANGELIM Devemos agora nos esconder dos soldados do goveno aqui e não fora de Belém. FELIPE “MÃE DA CHUVA” Escutei um badalar de sino. A esta hora do dia?... Santa Bárbara! Quem importante morreu? ANGELIM O Lavor Papagaio, que descobre tudo e sabe tanto dos boatos quanto das notícias verdadeiras, disse há pouco que foi o Cônego Batista Campos, mas eu não estou querendo acreditar. MIGUEL ARANHA Pela lógica dos derradeiros acontecimentos deve ter sido ele mesmo, espingardeado por alguém a serviço do governo. FRANCISCO VINAGRE Será que foi? ANTÔNIO VINAGRE Se foi chegou a hora de nos vingarmos de todas as infâmias. Inclusive o covarde assassinato do nosso irmão Manoel. DOMINGOS “ONÇA” Se o Batista Campos morreu estamos no mato sem cachorro. DOMINGOS “SAPATEIRO” Cachorro é o nojento do “Malhado” que está nos governando. JOÃO GONÇALVES CAMPOS (Entra chorando.) Meu primo João Batista faleceu no sítio Rosário, no furo de Atituba, às duas horas da tarde de ontem, antes da entrada do ano novo. GERALDO “GAVIÃO” Batista Campos morreu? Que tragédia! MANOEL NOGUEIRA
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734
Por esta eu não esperava.
OUTRO
ANGELIM
Com o desaparecimento do Batista Campos eles vão ter mais força pra mandar no
Quem matou o nosso grande líder?
governo.
JOÃO GONÇALVES CAMPOS
OUTRO
Ninguém. Por incrível que pareça ele morreu devido a uma ferida debaixo do
Então temos que destruir o governo.
queixo, que fez quando se barbeava e virou tumor gangrenado. Se não estivesse no meio
MANOEL NOGUEIRA
do mato para se esconder das tropas do governo teria sido salvo por qualquer médico.
Destruir não, mudar...
UM CABANO
UM CABANO
Que DEUS abençoe a alma do nosso protetor.
Pra mudar temos de começar destruindo.
OUTRO
OUTRO
Nosso melhor amigo.
Tudo. Eu já sofri tanto que só penso em destruição.
OUTRO
OUTRO
(Negro) Acabou a esperança de fim da escravidão.
Eu também. Já padeci mais do que couro de pisar tabaco, quero botar pra fora a
OUTRO (Tapuio) E continuaremos sendo obrigados a trabalhar de sol a sol nas roças comunais. OUTRO Sendo vigiados por soldados. OUTRO Recebendo um salário de miséria.
raiva que sinto dentro de mim. Quero me vingar. OUTRO Eu só penso em mandar pro Inferno o “Malhado”, junto com os militares e maçons que desgraçam o nosso viver. OUTRO Agora vamos ter de tirar do governo essa gente ordinária porque sem o Cônego Batista Campos a nossa situação só pode piorar.
OUTRO
OUTRO
Pra comprar caro dos comerciantes portugueses tudo aquilo que precisamos.
Eu, depois do que sofri nestes anos todos, estou disposto a destripar o “Malhado”
OUTRO
com minha faca de abrir bucho de piramutaba.
E outras coisas que não precisamos, mas eles trazem de fora pra nos engabelar.
OUTRO
OUTRO
E eu quero estar perto pra beber o sangue.
(Que pode ser algum dos precedentes.) Portugueses safados, exploradores do
OUTRO
nosso suor. OUTRO Aproveitadores da nossa paciência. OUTRO Paciência não, mofineza, falta de tutano pra fazer o que tem de ser feito.
Eu se puder vou matar aquele demônio a pau bem devagarinho, pra ele sentir toda a dor das porradas. OUTRO Além de fazer isso temos de expulsar da nossa terra os estrangeiros. Não devemos nos iludir: eles vão querer sempre nos dominar.
OUTRO
OUTRO
Isso mesmo, há muito tempo já devíamos ter afogado em igarapé cheio de
E nos roubar, com cara de Satanaz ou de santo de pau oco.
piranhas todos os estrangeiros que nos dominam.
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736
OUTRO
urgentemente, para planejar uma revolução e começá-la sem demora, a fim de pegarmos os
Chegou o momento de nós reagir, botando pra correr esses bandidos.
adversários de surpresa.
OUTRO (Dirigindo-se a Eduardo Angelim.) O que vosmecê nos diz sobre essa braveza, Angelim?
UM CABANO O Felipe “Mãe da Chuva” também pensa que a nossa revolução deve começar sem demora?
ANGELIM
FELIPE “MÃE DA CHUVA”
Eu compreendo perfeitamente o sentimento de vocês. Podem ficar certos de que, a
Penso, e penso que precisa ser feita sem dó nem piedade.
partir de hoje, nós vamos mostrar para essa gente arrogante e cretina com quantos paus se
UM CABANO
faz uma cangalha.
O que fala o Domingos “Sapateiro”?
UM CABANO
DOMINGOS “SAPATEIRO”
(Para Geraldo Nogueira.) E o nosso Geraldo “Gavião” o que diz?
Falo que estou doido pra ver a pororoca da nossa revolução estourar.
GERALDO “GAVIÃO”
UM CABANO
O que o meu irmão acabou de dizer será honrado. Confiem em nós.
E o que diz o Domingos que não é “Sapateiro”, é Domingos “Onça”?
UM CABANO
DOMINGOS “ONÇA”
E o que diz o Manoel Nogueira, também em nome da família que terminou de declarar guerra aos nossos inimigos?
Digo que vamos fazer com o “Malhado”, e todos os seus ajudantes, o que eles merecem. E vamos fazer de um jeito que nunca mais o povo paraense esquecerá.
MANOEL NOGUEIRA
UM CABANO
Confirmo o que meus dois irmãos falaram, porém acho que devemos evitar
Se for preciso tocamos fogo na cidade.
exageros...
MIGUEL ARANHA
DOMINGOS “ONÇA”
Certamente Dom Romualdo Coelho nos pedirá para não fazer tal coisa.
(Baixinho, para os outros não escutarem.) Este é o “Manoel mole”...
UM CABANO
UM CABANO
Pelo menos vamos arrebentar com a Loja Maçônica.
O que vosmecê nos diz, Francisco Vinagre?
GERALDO “GAVIÃO”
FRANCISCO VINAGRE
Isto Dom Romualdo Coelho não vai nos pedir para evitar.
Digo que partiremos para a luta.
FRANCISCO VINAGRE
UM CABANO Vosmecê também acha, Antônio Vinagre?
Vai até gostar, depois da Pastoral que ele assinou ano passado atacando a Maçonaria, e só não publicou porque foi ameaçado de prisão.
ANTÔNIO VINAGRE
UM CABANO
Acho. E se depender de mim a luta será logo e a ferro e fogo.
E então, vamos à luta?
UM CABANO
TODOS
Diz alguma coisa, Miguel Aranha.
Vamos!!!
MIGUEL ARANHA Pelo que aprendi de política nesta província, e nos Estados Unidos quando lá estive estudando comércio durante cinco anos, julgo que convém nos reunirmos,
(A luz apaga. Quando reacende está em cena o presidente Lobo de Souza com seus auxiliares. Na tela do fundo do palco vê-se a imagem de imponente salão palaciano.)
737
738
LOBO DE SOUZA
LOBO DE SOUZA
Depois de ter governado com a máxima competência, obtendo absoluto êxito,
Nossos espiões apuraram que antes de fechar os olhos para sempre, os olhos e
províncias como Goiás, Paraíba e Rio de Janeiro, eu deixaria de me chamar Bernardo Lobo
felizmente a boca, ele mandou chamar um padre seu amigo, vigário de Abaeté, com
de Souza se consentisse em me desmoralizar permitindo que essa gentinha insignificante,
certeza para a anotação de suas últimas vontades, porém tal padre cujo nome ainda
saída de cabanas, promovesse uma cabanagem perturbando a ordem pública em razão da
desconhecemos, provavelmente mais parceiro de conspiração do que irmão de fé, chegou
morte do Batista Campos, pela qual não temos nenhuma parcela de culpa. Aliás, é uma
tarde demais, e assim a ralé desta cidade, e do interior, ficará sem testamento escrito do seu
pena que ele não tenha virado defunto muito mais cedo. Jamais vi um membro da Santa
ídolo politiqueiro.
Igreja Católica com tanta vocação para arruaceiro. Todos sabem que ele não era bem um
JALES
padre, era o mais atrevido “benzedor de cacetes’’ que já apareceu no Grão-Pará. Tanto
Graças a DEUS, “Grande Arquiteto do Universo”.
assim que foi proibido de rezar missa em Belém. Onde se viu um sujeito que tem a
LOBO DE SOUZA
obrigação de usar batina, até porque é Cônego e Arcipreste da Catedral, trabalhar como
Por que te preocupas com o que o Lavor Papagaio vai daqui para a frente escrever
advogado com escritório montado? Grande bandalho!...
contra nós?
JALES
JALES
Vão trazer o cadáver dele para cá?
Porque a comoção pela morte do Batista Campos pode revoltar o povaréu.
LOBO DE SOUZA
LOBO DE SOUZA
Não, Jales, o Corpo de Agentes de Espionagem que tivemos a feliz idéia de
E daí?
montar, e que nos possibilitou pegar o Angelim para prendê-lo quase dez dias na corveta
JALES
Bertioga, descobriu que vinham trazendo o cadáver para Belém, mas voltaram da baía de
Muitos, não apenas poucos como tem acontecido, podem resolver pegar em
Carnapijó, aconselhados por um sacerdote que saiu daqui temeroso de uma profanação dos restos mortais.
armas. JAMIS INGLES
SILVA SANTIAGO
Que armas eles possuem para enfrentar os nossos canhões?
Vão certamente enterrar o corpo na igreja matriz de Barcarena.
SILVA SANTIAGO
JALES Deviam jogá-lo em um igapó cheio de jacarés.
Além do armamento pesado, devastador, temos bastante experiência para esmagar qualquer motim.
LOBO DE SOUZA
JALES
Se fizessem isto os anjos do céu diriam amém. Não diriam, Silva Santiago?
E se explodir mais do que uma simples rebelião?
SILVA SANTIAGO
LOBO DE SOUZA
Sem a menor dúvida. Não achas, James Ingles?
Como assim, o que queres dizer?
JAMES INGLES
JALES
É o que eu também penso.
Se desta vez o povo todo se juntar e decidir fazer uma revolução? Aqui para nós,
JALES
“entre colunas”: o clima é propício para uma revolução, neste momento, porque, tirando os
Ele deixou testamento? Se deixou será péssimo, porque o Lavor Papagaio vai dar
estrangeiros e as pessoas ligadas a eles por amizade e parentesco, ou ligados ao governo
um jeito de imprimir e espalhar.
por interesse, quase todo mundo está abalado com a morte do Batista Campos.
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LOBO DE SOUZA
SILVA SANTIAGO
De certo modo isso é verdade... precisamos ficar atentos.
(Lendo com voz empostada.) Prontuário resumido. Nome: João Batista Gonçalves
SILVA SANTIAGO
de Campos. Nascido no Acará, distrito de Belém, em 1782, falecido de morte natural.
Atentos mas sem preocupação neste instante, porque qualquer revolta popular,
Elemento subversivo da mais alta periculosidade, porque embora sendo padre, é também
para ser realmente uma revolução, mais do que um simples motim, mais do que mera
advogado e jornalista. Com a prisão de Felipe Patroni, em 25/05/1822, assumiu a direção
rebelião, necessita de tempo para se articular, não se estrutura uma revolução em poucos
de O Paraense, tendo sido preso por transcrever nesse jornal o manifesto de D. Pedro I.
dias.
Editou por sua conta e risco, durante dois anos, o perigosíssimo jornal O Publicador JAMES INGLES
Amazoniense. Desde a festejada composição da primeira Câmara Municipal de Belém, em
Concordo, quem estudou tática de guerra não ignora isto.
27 de fevereiro de 1823, e da posse dos seus nove vereadores eleitos, quatro dias antes,
LOBO DE SOUZA
vem criando problemas para todos os governos locais. Em 1823 se refugiou no Moju para
Correto. Jales, não nos preocupemos demais pelo menos durante este resto de mês
não ser morto por corregilionários do General José Maria de Moura, Governador das
que está começando para nos trazer um ano novo feliz, um 1835 pleno de sucesso
Armas. Ainda em 1823, em outubro, houve um motim nesta capital, quando grupos
administrativo. (Entra um soldado e entrega uma pasta a Silva Santiago.)
armados arrombaram e saquearam casas de portugueses, e foi ele, sob os aplausos do povo,
LOBO DE SOUZA
quem conseguiu a abertura do Trem de Guerra a fim dos sediciosos terem armas e
(Para o soldado.) Diga para trazerem quatro taças com vinho do Porto. (O
munição. Por causa disso foi deportado para a Corte e trancafiado na Fortaleza de Santa
soldado retira-se.) Vamos erguer um brinde pela morte providencial do “benze cacetes”.
Cruz. Retornando a Belém em 1824 foi novamente preso pelo Coronel José de Araújo
SILVA SANTIAGO
Roso, primeiro presidente da província do Grão-Pará nomeado pelo Governo Imperial, que
(Tira da pasta um papel e o entrega a Lobo de Souza.) Presidente, aqui está a
o acusou de idéias republicanas, pois esteve em Pernambuco com o presidente da
ficha criminal do Cônego que o senhor mandou preparar, para publicação em nosso jornal
Confederação do Equador. No ano seguinte, já solto, foi desterrado para o Maranhão,
se o Lavor Papagaio conseguir fazer uma nova edição do seu, depois de termos ordenado
como suspeito de insuflar uma rebelião de soldados do Palácio do Governo. Em 1831 de
que os soldados quebrassem toda a oficina onde ele era impresso.
novo foi preso no governo do Visconde de Goiana, que não perturbou muito porque tal
JALES
governo só durou dezoito dias; depois da prisão foi deportado para São João de Crato,
Eu não duvido que agora, com a morte do Batista Campos, alguém ajude o Lavor
tendo lá fugido do presídio. Ainda em 1831 inventou em parceria com Jerônimo Pimental e
Papagaio a voltar a imprimir o Sentinela Maranhense na Guarita do Pará.
outros cúmplices a Sociedade Patriótica, Instrutiva e Filantrópica, que nada mais é do
SILVA SANTIAGO
que um Partido Político, o Partido Filantrópico, dos brasileiros, opositor do Partido
Se aquele pasquim voltar a circular vamos ter problemas.
Caramuru, dos portugueses. LOBO DE SOUZA
JAMES INGLES
Para aí, já é mais do que bastante. (Para James Ingles e Jales.) O que acham?
Muita dor de cabeça.
JAMES INGLES
LOBO DE SOUZA
Ótima biografia para a ralé lembrar que politiqueiro irresponsável foi o seu ilustre
(Devolvendo a Silva Santiago o papel dele recebido.) Isso é fato. E como medida preventiva dê esta ficha criminal para o Gaspar da Siqueira Queiroz estampar na primeira
morto.
página do Correio Oficial Paraense. Leia em voz alta para vermos se convém acrescentar
JALES
alguma coisa. Jales e Ingles, prestem atenção.
Excelente. Um sujeito que passa a vida entre prisões, desterros e fugas não merece, é claro, saudade dos “homens livres e de bons costumes”.
741
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LOBO DE SOUZA
LOBO DE SOUZA
(Para Jales.) Os nossos irmãos maçons estão bem preparados para ajudar a
Eu concordo. Bom, encerremos o assunto. Vamos brindar a morte do famigerado
soldadesca no caso dos cabanos desejarem fazer homenagem ao Batista Campos com uma
Batista Campos. Que DEUS o castigue como ele merece, nas profundezas do Inferno.
revolução?
(Erguem os taças e bebem o vinho.)
JALES Quanto a isto tudo está “justo e perfeito”. E tem mais: independentemente da maçonaria já organizei uma falange de portugueses armados.
(A luz apaga, quando reacende Lavor Papagaio em cena movimenta-se de um lado para outro, cruzando com pessoas diversas. No telão do fundo do palco imagens sucessivas de ruas, esquinas etc.)
SILVA SANTIAGO
UM CABANO
Mesmo sem o apoio logístico dos maçons temos condição de reduzir a pó os
Alguma novidade, Lavor Papagaio?
cabanos e qualquer cabanagem.
LAVOR PAPAGAIO
JAMES INGLES
Várias, depois te conto, agora me ajuda a distribuir estes panfletos. (Entrega-os)
Não acredito que acontecerá confronto de grandes proporções, eles não são
OUTRO CABANO
malucos. JALES Mas necessitamos vigiar cuidadosamente o Lavor Papagaio, para não deixá-lo distribuir seus panfletos anarquistas e virulentos.
Tem algum aviso para nós? LAVOR PAPAGAIO Sim, me procura mais tarde, agora me ajuda na distribuição desses boletins. (Os papéis começam a ser dados pelos três às pessoas que vão passando.)
LOBO DE SOUZA
UMA VELHA ALEIJADA
Não me fale mais nesse forasteiro petulante. Ele não teve a audácia de me chamar
Eu não sei ler.
de “Malhado’’, quando eu desfilava trotando meu cavalo naquela solenidade pública?!
LAVOR PAPAGAIO
Cedo ou tarde, mais cedo do que tarde, teremos de dar um jeito definitivo nele...
Então leve mais e dê para os seus vizinhos. (Carinhosamente, sorrindo.) Se fizer
JALES
isso direitinho hoje e amanhã me procurar eu lhe presenteio com três cuias de açaí e cinco
Eu conto com capangas espertos e de confiança que podem enchê-lo de chumbo
dúzias de ovos de tracajá.
em noite escura, fingindo uma briga pessoal. SILVA SANTIAGO
UM CABANO (Cochichando nervoso.) Tenha cuidado que a situação pra vosmecê no futuro vai
Boa providência.
ficar preta. Ouvi um português falar pra outro em segredo que os maçons vão fazer uma
JAMES INGLES
tramóia pra lhe matar na surdina. Não saia de casa à noite.
Sem a menor sombra de dúvida. Depois basta a gente fazer o mesmo com os irmãos Nogueira e os irmãos Vinagre. (Entra alguém com a bebida solicitada.)
LAVOR PAPAGAIO É?... Vão me matar no escuro?... (Murmurando para outros não escutarem.)
SILVA SANTIAGO
Coitados, se estão pensando em fazer isso não só no escuro, mas também no futuro... Se
E com o Miguel Aranha, já que o Félix Malcher se encontra fora de combate,
soubessem o que vai acontecer com eles dentro de poucos dias já estariam tremendo com o
mofando na Fortaleza da Barra.
rabo entre as pernas.
JAMES INGLES
UM CABANO
Os outros são muitos, mas não passam de peixes pequenos para o nosso anzol.
(Tendo logrado ouvir o que Lavor Papagaio balbucionou.) O que acontecerá?
743
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LAVOR PAPAGAIO
FÉLIX MALCHER
Por enquanto não posso dizer, embora seja papagaio devo manter o bico calado a
Estou bem, apenas um pouco triste. O que me dói não é tanto a prisão, é o
respeito do assunto. Você, do mesmo modo, não dê com a língua nos dentes.
julgamento errado que determinados companheiros de ideal fazem das minhas atitudes e do
CABANO
meu caráter dizendo: “o Félix Antônio Clemente Malcher é medroso”. Não o Angelim, o
Em mim vosmecê pode confiar sempre.
Antônio e o Francisco Vinagre, que são esclarecidos e me conhecem de perto como meus
LAVOR PAPAGAIO
foreiros, e sim outros ignorantes como o Quintiliano Barbosa, que criticam minhas
Sei disso, aguarde orientação caladinho. (Duas pessoas se aproximam.)
posições inteligentes e por isso, ponderadas, às vezes conciliatórias.
UMA PESSOA
UM CABANO
Eu não sei fazer leitura.
Não ligue pra quem fala coisa ruim de vosmecê.
OUTRA
OUTRO
Nem eu, o que diz este papel?
Eles têm inveja porque não são ricos.
LAVOR PAPAGAIO
FÉLIX MALCHER
Diz que qualquer um de nós, se em alguma ocasião e em qualquer lugar, tiver
E que culpa tenho eu por ser? Por ter tido a sorte de casar com a filha de um
oportunidade de chegar perto do presidente Lobo de Souza deve gritar bem alto, para o
homem que viveu nadando em dinheiro? Jamais enganei alguém, nunca explorei
“Malhado” ouvir, esta quadrinha que o nosso querido morto Batista Campos empregava
gananciosamente trabalhadores pobres, sempre combati, embora de maneira habilidosa, a
quando se referia a ele, a fim de classificá-lo como tirano e patife:
incompetência, a safadeza e o despotismo dos governos desta província, nunca deixei de militar na oposição, ocupando meu lugar na trincheira dos que lutam pela justiça, pela
“Eu de circunlóquios nada sei,
liberdade e pela autonomia dos paraenses para decidir sobre o seu destino em termos
conto o caso como o caso foi.
políticos, sempre prestigiei o Batista Campos com meu estilo moderado, mesmo sabendo
“Na minha frase de constante lei,
que ele não gostava de mim.
ladrão é ladrão, boi é boi.”
UM CABANO Mas nos últimos tempos vosmecês fizeram as pazes de coração, não foi?
Repitam três vezes para decorar. (Executam o exercício de memória, tendo as
FÉLIX MALCHER
duas pessoas dificuldade de pronunciar a palavra “circunlóquios”.) Muito bem, agora
É claro.
vejam se aprendem a ler porque o Sentinela Maranhanense na Guarita do Pará só saiu
UM CABANO
em dois números, infelizmente, porque teve sua oficina destruída a mando do governo,
E agora que o Cônego acaba de morrer, como vão ficar as coisas?
porém não morreu como o Cônego, ainda vai ressurgir, e muito mais breve do que a
FÉLIX MALCHER
portuguesada pode imaginar...
Enjaulados nesta fortaleza não podemos saber, mas com minha experiência posso
(A luz apaga e quando reacende vê-se no telão a imagem de uma cela com grades
prever que haverá uma violenta reação do povo. A esta altura como estarão procedendo os
em parede de pedras. Em cena Félix Antônio Clemente Malcher e alguns cabanos,
irmãos Nogueira e Vinagre, juntamente com o Miguel Aranha e outros? Se bem os
uniformizados como prisioneiros.)
conheço estão pensando em preparar uma chuva de balas para despejar na cabeça do Lobo
UM CABANO Parece que vosmecê está se sentido mal.
de Souza, do Silva Santiago, do Jamis Ingles e todos os seus comparsas. UM CABANO Tomara que não seja uma chuva, seja uma tempestade.
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746
OUTRO
forma eloquente, conquistando corações e consciências. Segundo porque, queira eu ou não
De fogo, não de água.
queira, sou grande proprietário, endinheirado, dono de terras, e afora este detalhe tenho
FÉLIX MALCHER
uma visão política muito prática: acho que não adianta brigarmos feio com os portugueses
Apesar de calmo, pacifista às vezes, depois do que sofri recentemente acho que
porque precisamos deles para desenvolver o nosso comércio, sem o que não teremos o
seria capaz de pegar em armas, se pudesse fugir com vocês. Tenho formação militar:
crescimento econômico capaz de trazer para a região do Grão-Pará os benefícios da
comecei como Porta Bandeira, fui Tenente, Capitão e cheguei ao posto de Coronel de
civilização, dos quais o povo pobre tanto necessita: escolas, hospitais, construção de
Milícias.
residências melhores do que cabanas cobertas de palhas, e outras coisas indispensáveis a UM CABANO
uma existência humana digna. Os portugueses ainda mandam em nosso país e será difícil
Se conseguirmos escapar daqui, vamos cortar o pescoço do “Malhado’’.
acabarmos com isso usando balas, até porque contamos com poucas espingardas e eles têm
OUTRO
muitos canhões.
(Fitando Malcher.) Ele agora detesta vosmecê. O que fez com a sua fazenda Acará-Açu foi pura maldade. OUTRO Mas foi muito bonito vosmecê ter tido a coragem de abrigar o Cônego com os nossos outros chefes quando eles tiverem de fugir de Belém pra não serem presos.
UM CABANO É verdade. FÉLIX MALCHER Convém sermos honestos e realistas. A Independência do Brasil não resultou de uma luta heróica do seu povo nativo, já organizado socialmente, foi um negócio de pai
FÉLIX MALCHER
para filho entre portugueses. Dom João VI, espertamente, decidiu que D. Pedro I deveria
Somente cumpri com o meu dever.
colocar a coroa de Imperador do Brasil em sua cabeça, antes que algum aventureiro se
UM CABANO
apossasse dela. Assim, a dinastia dos Bragança continuaria firme e a família real luzitana
O “Malhado’’ não devia ter sido tão cruel quando atacou a fazenda de vosmecê.
poderia até se mudar para exercer o poder em nosso território, quando visse o seu
FÉLIX MACHER
ameaçado. Infelizmente, para nos livrarmos dos portugueses, expulsando-os, teremos de
Teve seus motivos. A primeira expedição que ele mandou para me prender junto
fazer uma revolução que talvez mate a metade da população, ou pelo menos um terço ou
com o Batista Campos, os irmãos Nogueira e os irmãos Vinagre, chefiada pelo sub-
um quinto, e se vencermos cairemos nas mãos dos franceses, ingleses ou holandeses,
comandante dos Municipais Permanentes Nabuco de Araújo, sofreu humilhante derrota
porque não poderemos viver isolados do resto do mundo, e as outras nações mais
diante da nossa resistência. A segunda expedição, maior e mais bem preparada, comandada
desenvolvidas enviarão seus representantes para cá, a fim de vender caro aquilo que
pelo Coronel Manoel Santiago Falcão, também foi destroçada no confronto com as nossas
produzem e comprar barato nossos produtos naturais. Essa gente sempre que puder nos
tropas. Aí ele, furioso, enviou o Ingles com o peso da força naval para nos esmagar. Como
governar, direta ou indiretamente, não abrirá mão disso.
lutar contra uma força tão poderosa seria suicídio, fugimos, e o Ingles encontrando ao
UM CABANO
chegar a fazenda deserta incendiou tudo, até as plantações, só respeitando a capela.
É complicado...
UM CABANO
OUTRO
Vosmecê, com esse seu jeitão tranquilo, provou que tem tupete pra enfrentar o
Não entendi nadinha.
Lobo de Souza. Então por que alguns dos nossos companheiros não confiam em vosmecê? FÉLIX MALCHER Por duas razões. Primeiro porque se apaixonaram pelo Batista Campos, que possuía um temperamento voluntarioso, simpático, prestativo, e sabia falar e escrever de
OUTRO Eu também não. O que já entendi há muito tempo é que temos de meter bala no peito de todo estrangeiro.
747
(A luz apaga e quando reacende exibe no telão do fundo do palco a imagem de um belo sítio. Em cena líderes da Cabanagem.) ANGELIM Vamos combinar tudo de cabeça fria, porque na hora de agir a cabeça precisa esquentar como brasa para ninguém tremer nem recuar. É matar ou morrer. ANTÔNIO VINAGRE Em guerra não se pode ter medo nem pena do inimigo. MANOEL NOGUEIRA
748
OUTRO Não vejo a hora de cortar o pescoço dos soldados do governo. Eles não dizem que a glória deles é colocar no pescoço um cordão feito com orelhas de cabanos?! OUTRO Eu já mandei minha mulher ferver o muruxi pra dar cor vermelha nas bandeiras que levaremos. MIGUEL ARANHA Logo que atravessarmos a baía e chegarmos a Belém temos obrigação de procurar
Tudo bem, mas não é necessário fazermos uma carnificina.
os companheiros, e também alguns amigos de confiança, que possam nos sugerir, com sua
GERALDO “GAVIÃO’’
experiência, alguma coisa. Eu já listei diversos nomes, com a ajuda do meu irmão
(Com ar de brincalhão.) Cala a boca, “Manoel mole’’...
Germano, para não serem esquecidos neste momento decisivo. (Tira do bolso um papel e
MIGUEL ARANHA
lê.) Tenente Diogo Vaz da Móia, Alferes Domingos Marreiros, Boaventura da Silva, padre
Bem, depois de tudo o que discutimos temos de planejar minuciosamente a
Jerônimo Pimentel, Antônio Barreto, Manoel Evaristo, José Pio, João Batista de
operação de tomada do poder. ANGELIM Acho que podemos logo acertar o seguinte: primeiro ocupamos o palácio do
Figueiredo Tenreiro Aranha, José Mariano de Oliveira Belo, Silvestre Antunes Pereira e o italiano João Balbi. GERALDO “GAVIÃO’’
governo, e lá nos reunimos todos, juntando as colunas que sairão de pontos diferentes;
Você não se lembrou do Joaquim Varjão.
então partimos para o Arsenal de Guerra, invadimos os depósitos de armas e munição e nos
ANTÔNIO VINAGRE
apossamos de tudo a fim de atacar todos os quartéis e os navios ancorados no porto com
E do Albino Rodrigues.
força total. Finalmente nos dirigiremos até a Fortaleza da Barra para soltarmos o Félix
MIGUEL ARANHA
Malcher e os companheiros presos junto com ele.
pegarmos as tropas do Lobo de Souza de surpresa, isto é fundamental, daí porque temos de
Bem pensado.
atacar ainda esta semana.
FRANCISCO VINAGRE
ANGELIM
Concordo.
Correto.
GERALDO “GAVIÃO’’
MANOEL NOGUEIRA
Não podia ser melhor.
De preferência no Dia de Reis, quando a cidade toda estará se divertindo com a
MIGUEL ARANHA Para nos estabelecermos em Belém de maneira eficiente é bom sairmos ainda hoje daqui da ilha das Onças, embora ela esteja defronte da cidade. UM CABANO É pena não ficarmos aqui no sítio Nazaré da Boa Vista mais um dia, o Alferes João Gonçalves Campos sabe tratar os companheiros, como o tio que morreu e nós vamos vingar.
O Albino é muito exaltado, pode falar demais antes da hora certa, convém
ANTÔNIO VINAGRE
festa de São Tomé, os pedidos de esmolas nas ruas e a saída do Sairé... FRANCISCO VINAGRE Com a procissão que vai do arraial do Bacuri até a igreja da Sé... ANTÔNIO VINAGRE Com as danças de terreiro que geralmente acabam em pancadaria de embriagados...
749
750
GERALDO “GAVIÃO’’
ANGELIM
Com a reunião da alta sociedade para assistir drama ou comédia no Teatro
Isso, lá a gente junta todas as colunas e marcha para o Arsenal de Guerra, depois
Providência, defronte do Arsenal de Guerra, no Largo das Mercês... ANGELIM Sendo assim, para evitar morte de inocentes atacaremos na madrugada do dia seis para o dia sete.
segue para a Fortaleza da Barra e liberta o Félix Malcher, sendo que o Miguel Aranha pode ir na frente. MIGUEL ARANHA Dividiremos cada coluna em grupos de assalto com tarefas específicas.
JOÃO GONÇALVES CAMPOS
ANTÔNIO VINAGRE
Ótimo, meu primo João Batista aprovaria com satisfação esta idéia generosa. E a
Impunharemos mosquetes e espadas.
surpresa será ainda maior.
JOÃO GONÇALVES CAMPOS
MANOEL NIGUEIRA
Vai ser uma mortandade horrível.
Perfeito, de madrugada.
ANGELIM
ANGELIM Precisamos também fazer contato com alguns companheiros humildes que são essenciais para a nossa luta.
É possível que seja porque, fora as forças do governo, os portugueses, com o Jales à frente e a Maçonaria por trás, possuem muita gente armada para nos enfrentar. Sei que será difícil controlarmos a situação depois de tomar o poder, mas não temos alternativa, o
FRANCISCO VINAGRE
povo está furioso com a morte do Cônego Batista Campos, está espumando de ódio do
Principalmente os negros João do Espírito Santo, o “Diamante’’, Pedro
“Malhado’’ que o perseguiu e dos portugueses, esta não será uma revolução nossa e sim
Figueiredo, o “Patriota’’, Manoel “Barbeiro’’ e o Félix, o “negro Félix’’, que é capaz de comandar centenas de revoltosos. ANGELIM Não podemos esquecer o escravo Joaquim Antônio, o mulato Fidélis e o carafuz Manoel Pedro dos Anjos.
dos pobres e oprimidos, se não estivermos à frente deles a carnificina vai ser maior. MIGUEL ARANHA Há quem diga que temos uma população de mais de cem mil pessoas entre brancos, negros, mestiços e índios. Por maior que seja o número de mortos ainda sobrará bastante gente para viver com dignidade.
ANTÔNIO VINAGRE
ANGELIM
Nem o caboclo “Coco do Muaná’’, o negro ‘’Ourives’’, e os tapuios “Piroca-
É o que eu penso.
cana’’, Saraiva, “Chico Veado’’ e “Pipira’’, além de outros.
GERALDO “GAVIÃO’’
MIGUEL ARANHA
E eu.
Certo, bem observado, porém neste instante o que mais precisamos é definir a
MANOEL NOGUEIRA
estratégia do grande ataque para a tomada do poder. Como faremos? Eu posso sair do
Eu também, embora, no fundo do coração, lamente muito...
Cacoalinho com uma coluna para ajudar na ocupação do Palácio do Governo.
FRANCISCO VINAGRE
ANGELIM
Não devemos lamentar nem podemos desistir.
Eu sairei com meus homens do sítio de Murucutu e dominaremos logo a tropa do
ANTÔNIO VINAGRE
quartel do Corpo de Caçadores e Artilharia, quando estivermos a caminho do Palácio. GERALDO “GAVIÃO’’ Então eu partirei do Largo da Memória também para o Palácio do Governo.
Não, não podemos, é questão de honra massacrarmos os opressores, recordando o que eles fizeram anos atrás valendo-se do bárbaro Greenfell.
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ANGELIM
TENENTE ARAÚJO
Sim, devemos recordar o que esses canalhas fizeram no tempo do Greenfell com o
(Falando para subordinados fora de cena.) Colocaram na água da tina aquele
Batista Campos, com cinco soldados escolhidos a dedo por serem paraenses, e com
preparado?... Então abram a escotilha e entreguem a tina para eles. Que se danem, foi a
duzentos e cinquenta e seis infelizes presos, jogados nos porões de um navio de guerra, o
Junta Governativa a culpada: pediu por ofício para o comandante Greenfell alojá-los aqui,
brigue Diligente, depois chamado Palhaço. Devemos recordar...
por falta de espaço na cadeia, e não temos mais como acalmá-los.
(A luz apaga para reacender em cor esverdeada sugerindo ação evocada do pretérito. Na
(Sai de cena, aparecem do lado direito dois marinheiros simulando carregar uma tina
tela do fundo do palco a imagem da praça em frente ao Palácio do Governo. Em cena
cheia de água, gesticulam como quem levanta a tampa de uma escotilha e entregam a tina
John Pascoe Greenfell, Batista Campos amarrado à boca de um canhão e pessoas em
para os presos que estão embaixo, logo repondo em seu lugar a tampa. Do lado esquerdo
derredor.)
todos os presos, como se estivessem do lado direito abaixo do nível da escotilha,
GREENFELL
aparentam pegar a tina e disputar sua água, buscando bebê-la com as mãos ou colocá-la
(Para Batista Campos amarrado à boca do canhão.) Vou te matar agora com uma
em chapéus.)
descarga de morteiro. Diz alguma coisa antes que eu estraçalhe o teu corpo, te defende.
UM PRESO
(Batista Campos fica em silêncio.) Se admites tuas culpas pede perdão para não morrer. (O
Eu não suporto mais tanto sofrimento, vou enlouquecer.
Cônego permanece calado, Greenfell dirige-se a uma das pessoas presentes.) Vá chamar
OUTRO
um padre para ele se confessar. (Gritando para fora de cena.) Soldados, só esperem vinte
Estou me sentindo engasgado.
minutos, se o padre não chegar para a confissão podem disparar o morteiro com ele
OUTRO
amarrado.
Ai meu DEUS, tem compaixão de mim.
(A luz apaga e quando reacende ainda esverdeada se vê no telão a mesma imagem que ali estava. Em cena de novo Greenfell, um pelotão de fuzilamento preparado para cumprir sua função e cinco soldados com as mãos para trás atadas uma à outra, de olhos vendados, em fila.) GREENFELL Vocês são gentinha de pé rapado e não tem direito a defesa. Estão aqui porque nasceram nesta terra maldita, sei que são inocentes, mas vão morrer para servir de exemplo aos colegas que se insubordinaram e eu não consegui descobrir quem são. A partir de hoje, todos estarão cientes do que é capaz o Capitão naval inglês John Pascoe Greenfell, que se encontra a serviço da Armada Imperial Brasileira. (Para o pelotão de fuzilamento.)
OUTRO (Gritando na esperança de ser ouvido pela tripulação depois de ter bebido um pouco da água.) Tragam água limpa, que esta é barrenta e tem um gosto esquisito. OUTRO (Após sorver uns goles da água.) Será que eles puseram veneno nesta água? (Multiplicam-se as queixas e lamentos, ao ponto de, em determinados instantes, não poderem ser compreendidos em razão da simultaneidade.) OUTRO Parece que a minha cabeça está rachando. (Uns vão se amontoando e comprimindo, outros batem no que se supõe ser o casco do navio.)
Atenção!... Apontar armas!... Fogo!!! (O pelotão obedece, os cinco soldados são
OUTRO
executados, um de cada vez.)
(Berrando para ser ouvido.) A água da tina acabou, tragam mais, não aguentamos
(A luz apaga para de novo reacender pela última vez em cor esverdeada, agora se vendo no telão do fundo do palco a imagem de um antigo navio de guerra. Em cena seu
a secura da garganta. OUTRO
comandante, Tenente Joaquim Lúcio de Araújo, do lado direito, e do lado esquerdo o
Está me dando uma zonzeira. (Cai desfalecido.)
maior número possível das 256 pessoas que foram presas no porão fechado por uma
OUTRO
escotilha do mencionado navio, o brigue “Palhaço’’.)
Ai... ai... ai... (Desmaia)
753
754
OUTRO
LAVOR PAPAGAIO
Estou ficando tonto. (Cambaleia)
(Surgindo ofegante.) Puxa vida, vim correndo, pensei que ao chegar a reunião já
OUTRO
teria acabado. Espero que ainda possa ser útil. Se vocês quiserem eu preparo urgente um
Minha febre está piorando...
boletim conclamando o povo às armas. Talvez fosse interessante que o texto relembrasse
OUTRO
fatos políticos que muitos esqueceram, tais como estes que eu pesquisei e anotei como bom
Estou queimando por fora e por dentro.
jornalista. (Lê de uma folha de papel.)
OUTRO
1.
No dia 1º de março de 1823, seis meses depois da proclamação da
Vou ficar doido.
Independência do Brasil, um golpe militar colocou no poder da província do Pará o Partido
OUTRO
Português, não o Partido Brasileiro;
Eu também vou endoidecer. (Os dois marinheiros retornam e executam o mesmo jogo com mais uma tina de água que é do outro lado disputada. A partir de então alguns dos presos perdem completamente o controle e começam a se agredir, a dar pancadas no chão, murros no ar, uns mordendo a si mesmo, transtornados pelo desespero.) OUTRO Abanem os chapéus pra diminuir o calor insuportável.
2.
Ainda em 1823 a primeira vila da Amazônia que aderiu à Independência,
Cametá, foi bombardeada sob o comando de um português partidário de D. João VI; 3.
Em junho de 1831 o presidente Burgos, no seu segundo governo, deu um
golpe institucional para impedir que Batista Campos tomasse posse na presidência do Pará como tinha direito; 4.
Pouco depois, em 7 de agosto de 1831, o partido Caramuru, dos
OUTRO
portugueses, deu outro golpe depondo o presidente Visconde Goiana quando ele ordenou a
Quem não tiver chapéu tire a roupa e movimente ela ligeiro rodando como um
extinção das roças comunais onde índios, negros e caboclos eram conservados em regime de escravidão. Na ocasião os principais líderes do Partido Filantrópico, dos brasileiros,
corrupio. OUTRO Vamos gritar juntos com toda a força do pulmão que morremos logo-logo se não
foram mandados para o desterro. 5 Em seguida...
sairmos já daqui. (Fazem isso demoradamente até que os dois marinheiros reaparecem
ANTÔNIO VINAGRE
para repetir o jogo de simulação, um tendo no ombro um saco, outro segurando um fuzil.
(Interrompendo) Meu caro Lavor Papagaio, não temos mais tempo para qualquer
Levantam a tampa da escotilha.) UM MARINHEIRO Ordem é ordem. (Dá tiros de fuzil para baixo. Em cada estampido que se ouve tomba ferido alguém do outro lado.)
mensagem, vamos começar a revolução dentro de dois ou três dias, acabamos de combinar o plano de ação. Se você quiser ser útil tem que trocar a caneta pelo fuzil. MIGUEL ARANHA A realidade é esta.
OUTRO
MANOEL NOGUEIRA
Com ordem do tenente Joaquim Lúcio de Araújo não se brinca. Este pó de cal vai
Infelizmente é.
matar todos sufocados. (Simula derramar para o porão o conteúdo do saco e fecha a tampa da escotilha.)
(A luz apaga, quando reacende vê-se no telão a fachada de um prédio antigo com vistosa tabuleta onde se lê: TEATRO PROVIDÊNCIA. Em cena a plateia de um espetáculo
(A luz apaga e ao reacender sem tom esverdeado se contempla no telão a imagem
cênico, mostrando o presidente Lobo de Souza no camarote de honra acompanhado de
anterior do belo sítio. Em cena os mesmos personagens da ação que foi interrompida para
Silva Santiago, Jales em uma poltrona da primeira fila, casais vestidos elegantemente nas
a lembrança do passado.)
diversas cadeiras, oficiais fardados e dois cabanos disfarçados com roupa domingueira
755
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que procuram ficar próximos de onde estão os mandatários do governo, para escutar o
ELA
que eles conversam.)
Um grande safadão que não tem pudor nem respeito à moral das famílias. Todo
LOBO DE SOUZA
mundo sabe que ele possui uma cínica amante.
Está demorando demais este intervalo.
ELE
SILVA SANTIAGO
Eu sei até o nome dela, é Maria Amália.
Não é falta de consideração ao senhor, Presidente. Acontece que muita gente tem
ELA
de trocar vestimenta de um ato para outro, porque se trata de uma representação dramática
Dizem que a sem vergonha mora perto do Palácio, para ele escapulir de lá quase
grandiosa, como convém a um dia de festejos memoráveis na cidade. Falam que o Dia de
toda noite e dormir com ela. (Dois espectadores sentados atrás do casal percebem o
Reis sempre foi comemorado em toda Belém com grande pompa e alegria. Não se lembra
comentário maledicente e igualmente dialogam sussurrando.)
do ano passado? (Ouve-se explosões de fogos de artifício, Lobo de Souza se espanta.) LOBO DE SOUZA O que foi isto? SILVA SANTIAGO Foguetes inofensivos que o povo solta para se divertir. LOBO DE SOUZA Você tem certeza de que não existe nenhuma conspiração pronta para se concretizar nestes dias? SILVA SANTIAGO Absoluta. LOBO DE SOUZA
UM É um escândalo criticado pela fina flor de toda a nossa alta sociedade esse romance do presidente. Será que ele dorme mesmo com a amante quase toda noite? OUTRO O que tu queres? O apelido do homem é “Malhado’’, não é “Capado’’... (Os dois cabanos disfarçados com roupa distinda confabulam baixinho para não serem ouvidos.) UM Será que eles não desconfiam de nada? OUTRO Não sabemos ainda, vamos continuar observando e informar o Miguel Aranha, eu sei onde ele está escondido.
Olhe que o Batista Campos morto pode ser pior do que vivo.
LOBO DE SOUZA
SILVA SANTIAGO
Ainda que os artistas tenham de trocar muitas roupas este intervalo não deveria
É fato, está fazendo apenas uma semana que ele morreu e o povo ainda se encontra cheio de ressentimento contra nós, mas o serviço de espionagem que implantamos
ser tão prolongado. Acho que sairei antes do fim do espetáculo, prometi para a Maria Amália visitá-la esta noite.
me informou ontem, e confirmou hoje, que ainda não há sinais de revolta. O Félix
SILVA SANTIAGO
Malcher, como sabemos, está trancado na Fortaleza da Barra, de máxima segurança, e os
Saindo durante a encenação e não no intervalo chamará menos atenção da plateia.
outros nossos principais inimigos continuam fugidos para não ser presos. Mesmo que
LOBO DE SOUZA
venham para Belém, o que eu duvido muito, e aqui se reúnam para tramar alguma revolução, em pouco tempo não conseguirão organizá-la de forma eficiente. (Um casal da plateia que não tira os olhos de Lobo de Souza dialoga cochichando.) ELE Repara só a pose orgulhosa do presidente.
E eu ligo para isso?... Pouco me importa o que essa gente daqui pense e diga de mim. (Um oficial fardado chega e segreda algo a Silva Santiago.) SILVA SANTIAGO (Para Lobo de Souza.) Presidente, por via das dúvidas eu preciso que ordene ao comandante das Guardas Municipais, Silva e Melo, verificar uns boatos.
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LOBO DE SOUZA
UM CABANO
Ele veio assistir a representação? Se está entre os espectadores chame-o que dou a
(Após tombar o último português.) Agora vamos invadir a Loja deles e quebrar
ordem aqui mesmo. SILVA SANTIAGO
tudo. (A luz apaga para reacender com a sonoplastia de tiroteios. No telão do fundo do
(Levantando-se) Vou ver.
palco as imagens se sucedem, indicando diversos lugares onde soldados estão em combate
LOBO DE SOUZA
contra cabanos, uma boa parte destes portando facões e porretes e mesmo assim levando
Algum problema grave?
vantagem.)
SILVA SANTIAGO Não, fique tranquilo. (A luz apaga, quando reacende vê-se no telão do fundo do palco a imagem de um
UM CABANO (Gritando para os portadores de cacetes.) Vão pegando as espingardas dos mortos. OUTRO
prédio construído com esmero arquitetônico, que exibe na fachada o desenho de um
E as cartucheiras.
esquadro e um compasso e as palavras: LOJA MAÇÔNICA. Jales encontra-se na frente do
OUTRO
prédio com um grupo de portugueses armados. Gritos e tiroteios são ouvidos.)
Os que ainda estiverem respirando devem levar mais um tiro na testa.
JALES Atirem para matar, vamos defender o nosso patrimônio que as tropas do governo farão o resto. (Surgem cabanos igualmente armados e o enfrentamento ocorre com tiros de ambos os lados.) UM PARTIDÁRIO DE JALES
OUTRO Se tiver cara de português cinco tiros. OUTRO (Depois de constatar que todo o grupo de soldados foi abatido.) Agora vamos caçar o resto dos inimigos.
Viva o presidente Lobo de Souza!
OUTRO
UM CABANO
E incendiar a casa deles como o Ingles fez com a fazenda do Félix Malcher.
Morra o “Malhado’’!
OUTRO
UM PARTIDÁRIO DE JALES
Vamos em frente.
Viva o partido dos Caramurus!
OUTRO
UM CABANO
Lembrando o que aconteceu com os nossos companheiros do passado, presos no
Viva o Partido dos Filantrópicos!
porão do brigue Palhaço.
UM PARTIDÁRIO DE JALES
OUTRO
Morte à plebe ignara deste fim de mundo!
Duzentos e cinquenta seis.
UM CABANO Morte aos estrangeiros dominadores!
OUTRO Só quatro conseguiram sobreviver.
JALES
OUTRO
(Vendo seus partidários caírem mortos em proporção muito maior do que os
Três pra logo morrer no hospital e um pra viver doente o resto da vida.
cabanos.) Minha Nossa Senhora, valei-me!... (Foge correndo.)
OUTRO Mortos com água envenenada.
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OUTRO
UM CABANO
E cheiro de cal pra sufocar.
Agora o miserável fala em DEUS, mas nunca se lembrou de falar quando nos
OUTRO
escorraçava. (Dá-lhe um ponta-pé.)
Enlouquecendo de dor e desespero.
OUTRO
OUTRO
(Fazendo o mesmo.) Cadê a tua valentia, covarde?!
Agora alguns de nós deve ir pegar os chefões. Vamos atrás deles.
OUTRO
(A luz apaga para reacender vendo-se no telão imagem do antigo Largo de São
(Aplicando uma coronhada.) Falou em DEUS, não foi? Pois Jesus disse: “quem
João. Em cena Silva Santiago, vestido como se tivesse saído apressado da cama, caminha
com ferro fere, com ferro será ferido’’!...
com dificuldade, mancando. Cabanos armados vão aparecendo, um se destacando dos
(A luz apaga para reacender monstrando no telão a imagem do antigo Largo do
demais.)
Quartel. Em cena James Ingles se deslocando com uma pistola em cada mão, SILVA SANTIAGO
perseguido por um grupo de cabanos entre os quais Domingos “Sapateiro’’.)
Aquele é o Felipe “Mãe da Chuva’’, estou perdido...
UM CABANO
FELIPE “MÃE DA CHUVA’’
Quem diria que a gente ia se encontrar com o comandante da Armada Imperial...
(Para os outros cabanos.) Olhem ali o Silva Santiago, comandante de Armas do
DOMINGOS “SAPATEIRO’’
“Malhado’’. UM CABANO Vai ver que o nosso pessoal já chegou no Palácio do Governo e ele escapuliu antes, tropeçando apavorado e quebrando o pé na carreira. OUTRO
Deixem o Ingles pra mim. INGLES (Atirando com as duas pistolas antes de ser alcançado.) Se eu morrer não morro sozinho. (Domingos “Sapateiro’’ dispara sua arma e “vara-lhe o corpo com uma bala de mosquete’’.)
Vou retalhar ele com o meu terçado.
DOMINGOS “SAPATEIRO’’
OUTRO
Este não nos maltrata mais.
E eu esmigalhar a sua cabeça com meu cacete.
(A luz apaga, quando reacende se vê no telão do fundo do palco a imagem do
OUTRO
Palácio do Governo. Ouve-se um vozerio crescente de mais cabanos que vão chegando
Pegamos um peixe grande.
com todo tipo de armamento: mosquetes, espadas, trabucos, espingardas, bacamartes,
FELIPE “MÃE DA CHUVA’’
punhais, facões, terçados e cacetes de vários formatos e tamanhos, alguns cabanos
Este tamuatá graúdo é meu. (Aponta o mosquete para Silva Santiago e dispara,
segurando bandeiras vermelhas. Cruzam a área atirando e gritando palavras de ordem.) UM CABANO
ele cai.) UM CABANO
Pela estrada de Nazaré vem vindo mais de quatro mil companheiros.
O teu tiro foi certeiro, “Mãe da Chuva’’, ele está sangrando e vai morrer.
OUTRO
OUTRO
Está quase para amanhecer e hoje será o nosso grande dia.
Vamos acabar de matar com porrada que sacia melhor o nosso ódio.
ANGELIM
(Chegam mais perto.)
(Em voz bem alta.) Prestem atenção, me obedeçam que estou no comando. Vamos
SILVA SANTIAGO
dominar a guarda do Palácio. Atirem contra ela. Agora! (A ordem é executada, não há
Tenham piedade, também sou cristão... Pelo amor de DEUS...
reação, mais tropas cabanas vão surgindo, o vozerio aumenta intercalado de explosões e
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claridades de incêndio.) Atenção! Cessar fogo! Aguardem um momento que preciso
TODOS
verificar uma coisa ali. (Sai de cena.)
Viva! Viva! Viva!
LOBO DE SOUZA
ANGELIM
(Aparecendo no fundo do palco, vindo de fora do Palácio na direção da sua
Viva o Pará dos paraenses!
porta, onde pára virando-se para os cabanos.) “Meus patrícios, se a pátria está em perigo aqui tendes mais um soldado para defendê-la.’’
TODOS Viva!
UM CABANO
UM CABANO
Quem é este bestalhão?
E morram os portugueses!
CABANO INTERROGADO
MUITOS
Não sei, moro em beira de rio, cheguei aqui de canoa ontem, não conheço
Morram!
ninguém na capital. (Surgem mais cabanos, entre eles o negro Domingos “Onça’’ e
ANGELIM
Miguel Aranha chefiando uma coluna de novos combatentes.)
Viva o nosso inesquecível Batista Campos!
MIGUEL ARANHA
TODOS
(Vendo Lobo de Souza na porta do Palácio.) “Aí está o “Malhado’’!’’
(Gritos mais fortes.) Viva!!! Viva!!! Viva!!!
UM CABANO (Armado com um porrete em cada mão.) Manda chumbo, Domingos “Onça”.
(A luz apaga para reacender sem a sonoplastia anterior. No telão a imagem do Largo de Palácio. Clima de festa, os cabanos se abraçam.)
DOMINGOS “ONÇA’’
JOÃO GONÇALVES CAMPOS
Minha pontaria nunca falhou. (“Sobraçando o clavicote faz a pontaria e puxa o
Faz um discurso, Angelim, mostra o que aprendeste com o professor Felipe Nery
gatinho’’. Lobo de Souza tomba, “o tiro foi tão certeiro que ele cai e não solta um
Pereira de Assis. Esta data será lembrada no futuro como um dia de glória, até porque, por
gemido’’.)
feliz coincidência, em 7 de janeiro, do ano de 1619, o índio guerreiro Guaimiaba, da tribo
ANGELIM
dos Tupinambás, morreu heroicamente atacando com arco e flechas o Forte do Castelo
(Reaparecendo) Vamos invadir o Palácio. (Todos se movimentam nesse sentido.)
para expulsar da nossa terra os portugueses.
MIGUEL ARANHA
GERALDO “GAVIÃO’’
A guarda se rendeu, demos o primeiro passo.
Fala pela família Nogueira, caçula.
ANGELIM
MANOEL NOGUEIRA
Parece que aqui já fizemos o que tinha de ser feito, agora é juntar as colunas e partir para ao Arsenal de Guerra, e de lá para a Fortaleza da Barra, a fim de libertar Félix Malcher.
É, fala pela família, meu irmão, porque eu sou o ‘’Manoel mole’’ e tu és o ‘’Eduardo duro’’. FRANCICO VINAGRE
MIGUEL ARANHA
Fala também pela família Vinagre.
Eu já estou indo.
ANTÔNIO VINAGRE
ANGELIM
Isso, estou de pleno acordo.
(Em voz bem alta.) Companheiros, tomamos o poder. Governaremos nossa terra.
DOMINGOS “ONÇA’’
Viva o Pará livre dos tiranos!
Fala pelos tapuios.
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FELIPE “MÃE DA CHUVA’’ Fala pelos negros. DOMINGOS “SAPATEIRO’’ Fala pelos curibocas. JOÃO GONÇALVES CAMPOS Este deverá ser o dia mais feliz do meu primo João Batista no céu. ANGELIM
QUINTINO
(Discursando) Companheiros, hoje damos o nosso Grito do Ipiranga, declarando Independência, não do Brasil, que amamos, e sim dos portugueses aqui encastelados, dominando na política para roubar e oprimir o povo pobre apesar do outro Grito do Ipiranga, o de D.Pedro I. Repito: hoje damos o nosso Grito do Ipiranga, grito de liberdade, grito de justiça, grito de autonomia para decidir sobre nosso destino sem dominação
BOM DE
estrangeira, grito de coragem que haverá de ser mensagem para as novas gerações de paraenses. Aconteça o que acontecer entre nós a partir de hoje, a História provará para sempre que a nossa revolução foi vitoriosa, porque lutamos por uma ideia e, quando temos dignidade e estamos com a razão, “A IDEIA É SAGRADA... A IDEIA NÃO MORRE’’
BRIGA
FIM
DEFENSOR DOS SEM TERRA
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PERSONAGENS
Esta peça, já foi publicada em livro como as anteriores, até a data da edição do presente data ainda não foi encenada. POETA-CANTADOR
Responsável pela apresentação do espetáculo. QUINTINO
NOTA DO AUTOR Os direitos patrimoniais do presente texto literário e dramático não pertencem a mim, que o escrevi, pertencem ao povo. Qualquer pessoa ou instituição pode mandar imprimi-lo para distribuição ao público, ou encená-lo, sem se preocupar em obter para isso autorização legal.
Protagonista da história. ABEL Parceiro de Quintino. ADVOGADO A serviço do suposto proprietário da terra onde Quintino fez a sua roça. CAPANGA Também a serviço do mencionado proprietário. ENTREVISTADOR Um velho escritor interessado na pesquisa de problemas sociais. FLORZINHO
CENÁRIO
Amigo de Quintino. SOLDADOS
Como esta peça se enquadra naquilo que chamam “teatro de rua”, tendo pretensão
Da Polícia Militar do Estado.
preponderantemente política, mais ética que estética, o cenário de cada uma das ações
LAVRADORES
representadas poderá ser apenas sugerido por palavras em uma tabuleta, caso não se queira
Vários.
ou não se possa utilizar recursos técnicos-instrumentais para melhor compor o ambiente.
PRÓLOGO ÉPOCA Década 1975-1985.
Antes de ter início a representação aparece o POETA-CANTADOR puxando uma cadeira com uma das mãos e, com a outra, segurando um violão. Gesticula
LOCAL Interior do Estado do Pará.
cumprimentando o público como apresentador da exibição que se vai assistir. POETA-CANTADOR (Senta na cadeira, dedilha o violão tirando melodia de suas cordas. Logo interrompe a execução musical e fala.) O meu nome é o do autor desta peça. Eu e ele somos a mesma pessoa, é claro, ou pelo menos deveríamos ser. Já me identifiquei, agora prestem bem atenção naquilo que vou informar. No dia 7 de janeiro de 1985, quando se
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comemorava em Belém com grande festa cívica o sesquicentenário da Cabanagem,
“Quintino, Quintino,
revolução que os caboclos pobres e oprimidos do Pará fizeram em busca de justiça social e
do rio Gurupi,
contra a dominação estrangeira, a manchete de primeira página do jornal O LIBERAL foi
coração de menino
esta:
da cor do açaí.” “PM LIQUIDA QUINTINO EM VIZEU”
“Não morreste, Quintino, ficaste encantado
Na mesma edição do referido jornal, junto com o noticiário sobre a morte de Quintino, assassinado com tiros nas costas quando se encontrava em visita fraterna na casa
tecendo o destino de um povo enganado.”
de um amigo cuja filha fazia aniversário, foram publicadas duas matérias surpreendentemente contraditórias: um artigo de famoso jurista papa-chibé, enaltecendo os
“Caboclo valente
matadores de Quintino, com o título HOSANAS À POLÍCIA MILITAR, e um poema
armado de fé,
escrito por mim intitulado CANTO-PRANTO PARA UM GATILHEIRO PARAOARA,
há um sol nascente
que tem estes versos: (Coloca o violão de lado, levanta e recita com emoção.)
para toda maré.
“Para a mesma mensagem abre-se o velho pano: festeja-se a Cabanagem fuzilando um cabano.” “Som em cada sino dos senhores da terra. Quintino, Quintino, acabou tua guerra.” “Lavradores sem nome na luta aguerrida, mais tempo com fome e a roça perdida.” “Até quando, até quando, gente sem memória, caminhareis pisando no ventre da História?”
Sossega e espera na paz de Tupã, pois a tua quimera é o nosso amanhã.” (Ainda emocionado senta e pega o violão.) Eu confesso que depois de produzir tal poema me senti inspirado e compus um hino para o agricultor. Vocês querem ouvir o meu Hino do Agricultor? (Canta, e dependendo da reação dos ouvintes repete pedindo que todos o acompanhem.) “Agricultor que se preza dorme tarde e acorda cedo. Tem fé em DEUS quando reza e de repressão não tem medo.” “Trabalha sempre com ardor lavrando a terra imatura. Colhe o fruto e olha a flor sentindo na alma ternura.”
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“Embora tendo firmeza em tudo aquilo que faz,
“Estou a serviço do povo,
comunga com a natureza
com ele aprendi a pensar.
em plena harmonia e paz.”
Sou pinto dentro do ovo, mas sei como galo cantar.”
“Mas se alguém o explora na sua nobre labuta,
“Canto toda madrugada,
ele reage na hora
pois nunca tenho preguiça.
enfrentando qualquer luta.”
Não canto a mulher amada, o que canto é a justiça.”
“Agricultor que se preza dorme tarde e acorda cedo.
(Volta a sentar, tira uns acordes do violão.) Eu terei o maior prazer em cantar, ou
Tem fé em DEUS quando reza
contar, aqui e agora, a vida, paixão e morte do Quintino justiceiro, defensor dos lavradores
e de repressão não tem medo.”
sem terra no Pará. Vocês querem que eu faça isto? Querem? Preferem apenas me ouvir como poeta e cantador ou ver a história do Quintino em termos teatrais? Preferem ver, não
Lindo, não é? Se vocês gostaram podem utilizar este hino, cantando ou gritando a
é? Então vamos lá, preparei tudo para mostrar, também dou os meus pulinhos como
última estrofe dele como palavra de ordem nas manifestações públicas do movimento dos
dramaturgo. Antes, porém, preciso dizer mais alguma coisa a vocês, a fim de que
sem terra, que jamais pensarei em cobrar direitos autorais. Confiem em mim, embora não
compreendam como, e porque, foi importante, absolutamente necessária, a luta heróica do
conheçam o meu passado. Eis como me identifico, sem mentir: (Novamente em pé.)
Quintino. Ouçam: (Retira do bolso um papel e lê.)
“Sou poeta popular e disso muito me orgulho. Se alguém quer me embrulhar saiba que eu o embrulho.”
“INFORMATIVO DO COMITÊ RIO MARIA, nº 80, Ano XIV, janeiro de 2004, editado em Xinguara, assinado por Luzia Canuto O. Pereira e pelo Frei Henri B. des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra (CNBB): De 1971 a 2003 foram assassinados 726 trabalhadores rurais só no Estado do Pará.” Ouviram? Mais de setecentos trabalhadores rurais assassinados. Preciso dizer que
“Sou poeta vagabundo
os assassinos sempre foram pistoleiros de aluguel contratados por alguns grileiros,
escravo da liberdade.
fazendeiros, madeireiros e outros empresários, que jamais acabam na cadeia porque para os
Para melhorar o mundo
endinheirados, como garantia o governador paraense Magalhães Barata, “lei no Brasil é
digo somente a verdade.”
potoca”? Já escrevi e publiquei no livro VERSOS PARA OS POBRES e OPRIMIDOS estas rimas: (Levanta outra vez e fala em tom solene.)
“Tenho inteligência aberta para o lado do esquerdismo.
“Uma coisa ninguém nega
Não gosto e gente esperta,
nesta vida atormentada:
detesto o capitalismo.”
a Justiça além de cega
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quando anda é aleijada.
“É estarrecedor constatar um padrão de impunidade que caracteriza as ações do
Sempre caminha aos tropeços
sistema penal paraense no tratamento dos crimes agrários. Assim, outras mortes
e quem quiser verifica
por encomenda de trabalhadores rurais no Pará permanecem impunes na Justiça
que só chega em endereços
penal paraense.
onde mora gente rica.”
“Pesquisei a pistolagem e a impunidade no Pará entre os anos de 2006 e 2010. Analisei os autos de sete processos criminais, como os referentes aos casos de
“Assim foi e assim será a Justiça neste mundo, mas no interior do Pará o abismo é mais profundo. A Justiça é uma droga na veia do povo inteiro, pois raro é o juiz de toga que condena um fazendeiro.”
João Canuto de Oliveira, das chacinas da fazenda Ubá e Pastorisa, da morte de “Brasília”, entre outros. É a partir desse farto material que empreendo a reflexão aqui exposta. “Como explicar o padrão de impunidade nos crimes de pistolagem que é produzido e reproduzido pelo sistema penal paraense? Sabe-se que os matadores de aluguel são importantíssimos para a invisibilidade jurídica dos mandantes. A fragmentação das ações delituosas é fundamental para que a impunidade seja a pedra de toque quando se fala em pistolagem e de sua relação com a justiça penal no Pará. Daí a participação em muitos casos de intermediários ou “corretores” da
“Como tal fato acontece e a imprensa não encobre,
morte, cuja função é a de intermediar o contrato de morte entre o autor intelectual do crime e o pistoleiro.”
como jamais aparece a justiça para o pobre, não mais acredita na lei quem vive da mandioca, já disseram e eu bem sei: lei nesta terra é potoca.”
(Faz breve pausa.) Ouviram? Vejam a que ponto chegamos: no interior do Pará já existe até uma nova categoria profissional, a dos “corretores da morte”, especialistas em intermediar contrato de prestação de serviço entre pistoleiros e latifundiários, utilizando uma tabela que estipula o preço do assassinato em função da importância social da vitima. Bem, depois desta novidade acho que já falei o suficiente, agora vocês vão ver, relativamente ao Quintino bom de briga, para não dizer bom de bala, como as coisas
(Torna a sentar, põe a mão no queixo com um ar de reflexão.) Lei nesta terra é potoca ... Esta é a triste realidade que Quintino viu. E porque tinha idealismo e dignidade
devem ter acontecido segundo a minha imaginação, isto é, segundo a minha visão pessoal de artista, não de historiador. (Sai de cena como entrou, levando a cadeira e o violão, e só
fez o que fez, pelo que devemos honrar a sua memória com a maior admiração. Talvez
reaparece para colocar diante da plateia tabuletas com poucas palavras, indicativas de
alguns de vocês que estão me ouvindo pensem: a denúncia do assassinato de mais de
cada ação dramática.)
setecentos trabalhadores rurais em terras paraenses foi feita em Rio Maria no ano de 2004, vai ver que depois dela as coisas melhoraram... Pura ilusão! Pioraram. (Tira do bolso uma página de jornal.) Eis o que declara Ed Carlos de Souza Guimarães na edição de 8 de julho de 2010 do jornal O LIBERAL, em matéria publicada no Caderno POLÍCIA sob o título PISTOLAGEM NO PARÁ:
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ATO ÚNICO
LAVRADOR DOIS Também acho.
CENA 1
QUINTINO
Tabuleta: Doce esperança
Vocês dois são mais velhos do que eu, possuem mais experiência da vida, talvez
Quintino se ocupa em desmatar um terreno auxiliado por dois outros lavradores. QUINTINO Neste pedaço eu planto milho, arroz, mandioca e feijão, o bananal vai ser mais
tenham razão, talvez estejam certos, porém na minha maneira de pensar a gente deve sempre ser a favor da paz e não da desavença. LAVRADOR UM
adiante.
Eu confio somente naquilo que aprendi a custa de muito sofrimento. E,
LAVRADOR UM No município de Ourém a terra é boa. LAVRADOR DOIS Principalmente aqui em Broca, perto do quilômetro setenta da Pará-Maranhão.
infelizmente, o que aprendi foi que se não comprarmos com dinheiro, de papel passado, um lote de terra, não adianta ser posseiro porque cedo ou tarde vai surgir um safadão para nos tomar o terreno e nem sequer nos indenizar pelas benfeitorias que fizermos nele. QUINTINO
QUINTINO
E para que serve a Justiça?
Tomara que desta vez eu tenha acertado, o terreno seja do governo. Já tentei fazer
LAVRADOR UM
a minha roça em outros lugares, mas sempre, depois de muito trabalho, quando começo a
Para nada.
ter algum lucro com a colheita, aparece alguém para dizer que a terra lhe pertence. Antes
LAVRADOR DOIS
de eu vir para cá um fazendeiro me expulsou de um terreno perto do município de
Na minha opinião, serve para defender o interesse dos poderosos. Tão somente
Primavera. LAVRADOR UM Por que você concordou em ser expulso? LAVRADOR DOIS Devia ter peitado o tal fazendeiro. QUINTINO Detesto briga, sou de paz. Se não tivesse mulher e filhos para sustentar, se não precisasse garantir o futuro da família enquanto sou novo e tenho saúde, acho que não teimava mais em ser agricultor, na esperança de prosperar na vida. Voltava a ser amansador de touro e burro brabo. Sabe que às vezes tenho saudade do tempo em que amansava touro e burro brabo em São José do Piriá? Gostava disso, era muito bom olhar os bichos calmos e não enraivecidos, me dava prazer vendo eles se tornarem meus amigos, não sou de malquerença com ninguém, nem mesmo com os animais. LAVRADOR UM Você pensa bonito, Quintino, porém neste mundo quem deixa de ser esperto e valente acaba sendo ferrado pelos outros.
isto. LAVRADOR UM Você está enganado: serve também para mandar prender os pobres. LAVRADOR DOIS Concordo. QUINTINO Eu tenho confiança na Justiça. LAVRADOR UM De ilusão também se vive ... QUINTINO E confio que desta vez tudo vai dar certo para mim. Logo depois de acabarmos este desmatamento cercamos o terreno e começamos a semear. O serviço vai ser duro, mas eu pago bem a vocês, podem ficar tranquilos que tenho dinheiro guardado para isso, economizei durante mais de um ano. LAVRADOR UM Nós não estamos duvidando do seu pagamento.
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LAVRADOR DOIS
QUINTINO
Somos também pessoas confiantes, só não confiamos na justiça dos homens, pelo
Vocês precisam arranjar uma família para ganhar novo ânimo. Em breve vão
que já vimos e ouvimos os outros contarem. QUINTINO Vocês vão ver que tudo dará certo, e se quiserem continuar trabalhando comigo não vão se arrepender, logo que a nossa produção começar a dar lucro saberei recompensar quem me ajudou para que também se torne posseiro. Depois nos juntamos com os vizinhos e fundamos uma Cooperativa. Todos haveremos de ser ainda muito felizes, prosperando para dar conforto às nossas famílias. LAVRADOR UM Eu não tenho família. LAVRADOR DOIS Nem eu. LAVRADOR UM Nunca quis me casar nem tive irmãos, e meus pais já morreram. LAVRADOR DOIS Minha mulher me largou e levou os filhos, porque cansou de passar fome. Sumiu, não sei para onde ela foi. QUINTINO Que pena! Mas tenham fé em DEUS que às vezes o destino muda por completo. Quando a gente trabalha com afinco e não prejudica ninguém, não rouba nem mata, a sorte um dia melhora. Acreditem nisso, e como eu não percam a esperança. LAVRADOR UM Eu já perdi. LAVRADOR DOIS Eu nunca tive para perder. QUINTINO Puxa vida, vocês estão muito desanimados! LAVRADOR UM Como não estar depois de tudo o que já padecemos? LAVRADOR DOIS Por ter bondade no coração igual ao seu.
conhecer a minha, logo que eu construir neste terreno uma casa vou trazer para cá minha mulher e filhos.
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CENA 2 Tabuleta: Amargo despertar Ambiente festivo no terreiro em frente a casa de Quintino. UM LAVRADOR Quem diria que em menos de dois anos o Quintino conseguiria fazer no meio deste mato um sítio de tão boa produção, com uma bela casa.
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Chegaram na hora errada. Agora estou reunido com os meus amigos e não posso atender ninguém em particular. CAPANGA (Pondo a mão no revólver.) Mas vai atender porque o doutor aqui veio de longe, mora em Belém. QUINTINO
OUTRO
Está me ameaçando?
Ele plantou de um tudo, vai ganhar muito dinheiro.
CAPANGA
OUTRO
Por enquanto não, só queremos ter uma conversa em particular.
E se nos convidou para este putirum certamente não foi só para fabricar farinha,
QUINTINO
vai anunciar alguma festa de inauguração.
Eu não faço nada escondido, comecem logo a dizer o que desejam.
OUTRO
CAPANGA
Conheço um sanfoneiro do arromba que pode ser contratado para a festança.
O assunto é complicado ... O meu patrão é o dono desta terra.
OUTRO
QUINTINO
Eu estou neste fim de mundo vindo do Ceará, forró é comigo mesmo. OUTRO Quintino não é de farra, é somente de trabalho, por isto é que progrediu tão
É? E por que só mandou me avisar agora? Estou plantando neste terreno há quase dois anos, gastei nele todas as minhas economias, além do meu suor. CAPANGA Esta parte do problema discuta com o advogado que me acompanha. Comigo tem
ligeiro. OUTRO E progrediu também porque é um homem sério e bondoso. Faz tudo dentro do que é direito e ajuda como irmão qualquer pessoa que precisa dele. QUINTINO (Aproximando-se do grupo.) Estão falando mal de mim? Daqui a
o seguinte: você deve sair daqui e vai sair por bem ou por mal. ADVOGADO Senhor Quintino, permita-me lhe dar as explicações que o caso requer. O meu cliente é o legítimo proprietário destas terras.
pouco vão mudar de opinião, quando provarem a maniçoba que a minha mulher está
QUINTINO
preparando para vocês. E antes vou mandar servir para todos meia cuia de cachaça de
Proprietário não, grileiro, pensa que eu sou bobo?
Abaeté. (Aparecem dois sujeitos, um de aparência distinta, outro com jeito de capanga,
ADVOGADO
revólver na cintura. Dirigem-se a Quintino.)
Ele possui documentos.
CAPANGA
QUINTINO
Precisamos ter uma conversa em particular.
Tudo falsificado.
QUINTINO
ADVOGADO
Sobre o que?
Absolutamente. Documentos reconhecidos por quem desfruta de fé pública.
CAPANGA
QUINTINO
Vim procurar você a mando do patrão, trazendo este advogado. QUINTINO
Olhe aqui, doutor, não tente me enrolar com o seu palavreado difícil. Quando chegou aos meus ouvidos pela primeira vez, semana passada, o zum-zum-zum da existência desse seu cliente, como sou um homem de boa fé mas não sou besta procurei
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CENA 3
imediatamente o Sindicato na cidade, e fui informado de toda a situação direitinho. Já sei como as coisas são tramadas contra nós, posseiros, por estas bandas. Já sei que as
Tabuleta: Primeiro tiro
bandalheiras dos fazendeiros são tantas que eles chegaram até a mandar incendiar um
Quintino está sozinho no mato, chega o Capanga.
Cartório em Vizeu, no ano de 1975. O que essa cambada de bandidos endinheirados deseja
QUINTINO
não é se dedicar à agricultura, aproveitando as estradas feitas pelo governo, é explorar os nossos minérios, principalmente ouro, e derrubar a floresta para criar bois.
Por que mandou recado marcando encontro comigo aqui? Por que não foi na minha casa?
ADVOGADO
CAPANGA
Sou obrigado a reconhecer que você pode não ter nenhuma cultura, pode ser até
Porque não quis.
analfabeto, mas é muito inteligente. Deve estar sendo orientado também pelos padres. Não
QUINTINO
esqueça que ainda estamos em uma ditadura militar. Em 1972, o bispo de São Félix do
Boa explicação... E por que não quis?
Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acusado
CAPANGA
de insuflar posseiros contra proprietários de terras que estão promovendo o
Porque hoje vamos tratar do nosso assunto de homem para homem. O patrão não
desenvolvimento econômico da Amazônia. QUINTINO
está mais disposto a suportar cabra safado ocupando a terra dele. Como é, vou lhe perguntar pela última vez: vai embora daqui ou não vai?
Obrigada por reconhecer que sou inteligente.
QUINTINO
ADVOGADO Exatamente porque é muito inteligente decerto não vai querer enfrentar de peito aberto quem tem força para lhe obrigar a ir embora daqui.
Só saio se receber uma indenização justa pelas benfeitorias que fiz no terreno, inclusive pela casa por mim construída nele. O terreno estava abandonado, ninguém poderia imaginar que tinha dono.
QUINTINO
CAPANGA
O senhor, que possui anel de doutor no dedo, também está me ameaçando como
Então não vai sair mesmo daqui por bem, não é?
este aí que tem revólver na cintura? Saiba que a Justiça vai me dar razão e fazer a Polícia
QUINTINO
me proteger. Ninguém me tira daqui a não ser indenizando todas as benfeitorias que fiz neste terreno. E chega de conversa fiada, sem proveito.
É, já disse que não sairei sem uma indenização justa. E não me chame de safado, safado é o seu patrão. CAPANGA Pois se assim é, eu lhe mato logo, tenho ordem para isto. QUINTINO Eu bem desconfiei, achando que você tinha essa intenção quando marcou encontro comigo neste local. (Põe no bolso da calça a mão direita.) Pense no que está dizendo. CAPANGA Não tenho mais o que pensar, vou lhe mandar logo para o Inferno. (Busca impunhar o revólver que guarda na cintura, Quintino retira a mão do bolso segurando uma arma de fogo e atira primeiro. O Capanga cai morto.)
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CENA 4
CENA 5
Tabuleta: Outros tiros na floresta
Tabuleta: Conversa com o parceiro em pequena estrada
Quintino ora correndo, ora esgueirando-se dentro do mato, dá mais dois tiros.
Quintino conversa com Abel, caminhando vagarosamente.
QUINTINO
QUINTINO
Agora é matar ou morrer, seja o que DEUS quiser.
A notícia de que matei os três já se espalhou nas redondezas, estão me caçando como animal feroz. ABEL Quem diria! Sempre fostes tão conciliador, tão pacato... QUINTINO Todos nós temos um destino, não podemos fugir dele. ABEL É verdade. QUINTINO Já combinei com a minha mulher, tenho de abandonar ela e as crianças, se não fizer isto todos morrerão ao meu lado. ABEL Realmente é o que pode acontecer. QUINTINO Estou pensando em me mudar sozinho para qualquer outro lugar e trocar de nome, a fim de que ninguém descubra quem eu sou. Talvez tenha de passar o restante da vida fugindo. Talvez forme um bando de justiceiros para defender agricultores perseguidos por fazendeiros. Talvez... Não sei, daqui para a frente os meus passos serão guiados por DEUS. ABEL Se for para defender lavradores contra pistoleiros de aluguel eu te acompanho.
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CENA 6
CENA 7
Tabuleta: Anúncio de guerrilha em local ermo
Tabuleta: Desabafo em ambiente hospitaleiro
Quintino veste-se diferentemente portando na cintura revólver e cartucheira. Usa
Quintino está sendo entrevistado. Enquanto o entrevistador faz os seus registros
botas de cano longo, na cabeça tem um chapéu de feltro e no pescoço um grosso cordão
ele anda de um lado para outro, às vezes colocando forte carga de sentimento naquilo que
de ouro. No rosto ostenta vistoso bigode. Em sua companhia está Abel.
fala.
QUINTINO Já não sou um simples gatilheiro, estou começando uma guerrilha.
QUINTINO Esta roupa me deram, o cordão de ouro foi presente de um amigo garimpeiro que
ABEL
me pediu para eu não tirar do pescoço, o chapéu e as botas também foram presentes, o
Para ninguém botar defeito...
bigode é para disfarçar meu rosto.
QUINTINO Nossos irmãos perseguidos por fazendeiros estão nos pedindo ajuda de diversas localidades. Temos de ir a todas.
ENTREVISTADOR Eu li a entrevista que o repórter Paulo Roberto Ferreira teve a coragem de fazer com você, para publicar na imprensa de Belém. Como conheço a competência e a
ABEL
honestidade do Paulo Roberto Ferreira desde quando ele fazia parte do Jornal
Vamos.
RESISTÊNCIA, editado graças à Sociedade Paraense de Direitos Humanos para criticar a
QUINTINO
ditadura militar, pelo que foi demitido sumariamente da Caixa Econômica Federal onde era
Em cada município a gente aumenta o grupo de acordo com a necessidade.
funcionário concursado, acreditei no que li e passei a admirar a sua luta em favor dos sem terra. Porém falam que você é um assassino cruel, um novo Lampião. O que me diz em sua defesa? Por que mata tanta gente? Por que não volta a ser o que era no passado? QUINTINO Porque de onde eu cheguei ninguém volta. E jamais vou querer voltar enquanto não houver justiça neste Estado. ENTREVISTADOR Mas existe justiça no Pará, Quintino. QUINTINO De mentira, não de verdade. Já acreditei nela, confiei na Justiça e me arrependi. O senhor sabe o que foi a minha luta antes de matar o primeiro ser humano para não morrer? Procurei o Sindicato, consegui um bom advogado para defender o meu direito, ele fez tudo o que era certo e não deu em nada. Agora não luto mais por mim, luto por um ideal, o de proteger outros lavradores sem terra que sofrem a mesma perseguição. Eu não sou mau, continuo tendo bom coração, só mato pistoleiros de aluguel que se não morrerem vão matar pais de família. Já matei uns cem.
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ENTREVISTADOR
QUINTINO
Mas Quintino, existem as leis.
Acho. E estou tranquilo. Quem como eu já perdeu suas plantações, sua casa e sua
QUINTINO Que são feitas por deputados e senadores eleitos com ajuda financeira dos ricos para zelar pelos interesses deles mesmos, não do povo. ENTREVISTADOR Existem as autoridades que são responsáveis por aquilo que é correto. QUINTINO
família nada mais tem de importante a perder. ENTREVISTADOR Bem, para terminar, aliás bastante agradecido pela sua atenção e sinceridade, uma última pergunta: por falar em família, você tem saudade da sua? QUINTINO (Fica por um tempo silencioso e no seu rosto se desenha um esboço de pranto.
Eu, antes de dar o primeiro tiro para não levar bala no peito, procurei muitas
Esforça-se visivelmente para não chorar.) Ainda amo muito a família que tive. Minha
autoridades do governo, estadual e federal. Até para o Presidente da República escrevi uma
mulher foi para mim uma santa... As três meninas uns anjos... Eu queria tanto fazer delas
carta que ficou sem qualquer resposta. Tudo em vão, por isso agora somente recorro ao
professoras... Talvez pelo menos uma pudesse ser médica... E o menino? Ah! O menino...
gatilho do meu revólver, sou um gatilheiro.
Ele se parecia muito comigo no comportamento calmo... (coloca as duas mãos no rosto
ENTREVISTADOR Você não quer ver agricultores expulsos de suas roças. Tudo bem, é uma atitude nobre, acontece que frequentemente as terras possuem legítimos proprietários. QUINTINO Na grande maioria das vezes são donos de empresas de fora do Estado, que moram no sul do país e compram as terras por meio de negociatas, falsificação de documentos e outras safadezas que alguns advogados sabem muito bem fazer, ajudados por gente de Cartório e até por determinados juízes que se vendem ou se deixam levar por pressão de políticos. É tudo uma quadrilha da pior espécie. Quando um juiz não faz parte dela, e dá sentença favorável a nós, eles recorrem, os anos vão se passando e o processo não chega ao fim. E se chegar, junto com o fim do processo um pistoleiro dá fim no colono. ENTREVISTADOR Você argumenta com facilidade e lucidez. Se não estou do seu lado é porque sou adepto da não-violência. Contudo, no fundo, também não estou contra as suas ideias. Gostaria de lhe fazer outra pergunta: você já pensou que matando tantos pistoleiros cedo ou tarde também será morto por algum deles? QUINTINO A morte faz parte da vida. É preferível morrer enfrentando o inimigo do que correndo na frente dele. ENTREVISTADOR Você acha então que não existe a menor possibilidade de mudar de vida?
para não mostrar as lágrimas.)
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CENA 8
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QUINTINO
Tabuleta: Discussão sobre o governo
Depois de chegar onde chegamos não devemos recuar. Temos uma missão a
Em local doméstico
cumprir, vamos em frente, dê no que der.
Quintino discute a situação com Abel e outros membros do seu grupo. QUINTINO Ficamos famosos, até o governador está preocupado com a gente. ABEL Tu vais dar a trégua que ele pediu? QUINTINO Ainda não sei, acho que vou dar um prazo para o governo resolver de uma vez por todas o nosso problema. Se continuarem a não fazer nada de positivo, voltamos a atacar. UM MEMBRO DO GRUPO Talvez fosse bom sairmos daqui da Gleba CIDAPAR. OUTRO Até porque tem muitos lavradores perseguidos por fazendeiros em outros lugares. QUINTINO Não devemos dar sinal de fraqueza. ABEL É, não podemos dar o braço a torcer. OUTRO INTEGRANTE DO GRUPO Mas o governo é forte, ninguém vence o governo. QUINTINO Está com medo? O MESMO MEMBRO DO GRUPO De jeito nenhum, só estou lembrando que o governo tem muitos soldados e muito armamento. QUINTINO O governo não vai querer sair contra o povo para ajudar fazendeiros. E o povo está nos apoiando. OUTRO MEMBRO DO GRUPO Mas o governo não sabe disso porque os jornais só dão notícias contra nós.
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CENA 9
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é o nosso amanhã.”
Tabuleta: A morte em recinto familiar Quintino está na residência do seu amigo Florzinho, cuja filha faz aniversário.
Depois de ligeira pausa.
QUINTINO Eu não poderia deixar de te fazer hoje uma visita para dar parabéns pelo
“Agricultor que se preza dorme tarde e acorda cedo.
aniversário da tua menina. FLORZINHO
Tem fé em DEUS quando reza
Estás correndo enorme risco, chegaram na cidade dezenas de soldados da Polícia
e de repressão não tem medo.”
Militar do Estado, dizem que com ordem de te prender vivo ou morto. Eles estão sendo alimentados pelo dono de um posto de gasolina ligado a um fazendeiro que já comprou até
Todos repetem várias vezes estes versos, em tom cada vez mais alto e mais enérgico.
foguetes para festejar a tua morte. (Ouve-se uma voz vinda de força da casa.)
FIM
VOZ Quintino, sai com as mãos para cima sobre a cabeça, toda a casa está cercada por trinta soldados com fuzil engatilhado. FLORZINHO E agora? QUINTINO Alguém me traiu, informando que eu estava aqui. (Os soldados invadem a casa, Quintino tenta escapar pulando uma janela, é alvejado pelas costas, cai morto.)
CENA 10 Tabuleta: A mensagem no velório Quintino está no caixão, rodeado de velas acesas. Lavradores vão chegando cada vez mais, consternados. Reaparece o POETA-CANTADOR e puxa um coro. POETA-CANTADOR “Caboclo valente armado de fé, há um sol nascente para toda maré. Sossega e espera na paz de Tupã, pois a tua quimera
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Esta peça ainda não foi encenada nem publicada. Segundo nos disse o autor, um dos seus filhos acha que este é o seu melhor texto dramático. Ele mesmo, o autor, afirmou para nós que não tem preferência por nenhuma de suas obras escritas para o palco, gosta igualmente de todas.
SONHO DE
CENÁRIO De livre concepção surrealista. Apenas duas portas em lados opostos, uma representando entrada para o Céu, outra para o Inferno.
UMA NOITE
PERSONAGENS CARLOS Ator de idade avançada que tanto ama o teatro quanto a Igreja Católica, à qual
DE INVERNO
presta serviços na condição de Diácono. AUGUSTO Competente diretor de espetáculo cênico. MOREIRA Ator superlativamente culto. OSCAR Ator cômico irreverente. ANA Atriz idosa, séria e distinta. DICA Veterana atriz de humor escrachado. CLARA Atriz que teve formação artística em novelas de rádio. JULIETA Atriz apaixonada pelo teatro popular, folclórico. GABRIEL Anjo. BELZEBU Demônio.
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ATO ÚNICO
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pose de Greta Garbo morre de inveja do meu sucesso de público. JULIETA Eu igualmente estou feliz em estar contigo, Dica, e não com a Clara, que só sabe
Cena em completa escuridão. Ruídos de chuva forte, torrencial. Barulho de avião voando, interrompido por explosão. Ligeira pausa. Claridade
representar segurando microfone. A luz começa a piscar e apaga. Ao reacender todos, inteiramente recompostos,
intermitente de relâmpagos, seguida pelo som de trovões, mostra corpos estirados no chão. A iluminação natural do palco, ou espaço adequado a teatro de arena, começa a ser feita gradativamente. Os personagens do enredo da peça, menos o
encontram-se conversando no centro da área de representação, distanciados das duas portas laterais. CARLOS
Anjo e o Demônio, inertes como mortos, aos poucos vão se mexendo, levantam-se
Realmente estamos em uma situação inusitada.
com dificuldade e ensaiam passos trôpegos em duplas, cada um se apoiando no
MOREIRA
outro.
"Sui-generis". DICA
CARLOS
(Para Oscar.) O que significa “sui-generis”?
Graça a DEUS estou junto de ti, Oscar. Melhor assim do que me encontrar ao lado
OSCAR
do Augusto, que aprendeu teatro comigo e agora se julga superior a mim.
“Sui-generis” eu não sei, mas inusitada quer dizer diferente, fora do comum,
OSCAR Eu também me sinto satisfeito em estar perto de ti, Carlos, e não do pretensioso Moreira, que apesar de toda a sua cultura, e experiência teatral, como ator não passa de um canastrão. AUGUSTO Felizmente estou ao teu lado, Moreira. Não gostaria de me encontrar junto com o Carlos, que só porque me deu umas aulinhas sem valor no passado, pensa que, atualmente, é melhor do que eu em arte cênica. MOREIRA Digo o mesmo, Augusto, ainda bem que estou contigo e não com o Oscar, um mambembeiro, mero contador de piadas indecorosas. ANA Que bom eu estar em tua companhia, Clara, e não da Dica, que me incomoda sempre com sua falta de pudor. CLARA Também me alegro em estar contigo, Ana, não tendo de suportar a Julieta, que só sabe falar sobre bumba-meu-boi, cordão de pássaros de São João e pastorinha. DICA Estou bastante feliz em estar contigo, Julieta, e não com a Ana, que embora faça
burra! DICA Burra é a tua mãe, palhaço de circo mixuruca, piolho de minhoca! ANA Por favor, não briguem desse jeito, tenham classe. CLARA Falem sem gritar, como artista de rádio. AUGUSTO Tenham comportamento educado e postura cênica, nos achamos isolados, mas talvez estejam nos filmando. ANA Será que mergulhamos em um delírio. DICA Ou em uma alucinação? OSCAR Alucinação é a mesma coisa que delírio, analfabeta! ANA Pelo amor de DEUS, tenham um mínimo de elegância.
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AUGUSTO
ANA
Talvez nos encontremos drogados.
(Para Carlos.) Só porque somos velhos nos faltam com o respeito.
CARLOS
CARLOS
Eu nunca me drogaria. Não esqueçam que sou quase um sacerdote da Santa Madre Igreja, posso até ministrar alguns sacramentos.
Ignoram que chegará a vez deles. (Para Moreira.) Sou velho mas tenho saúde, não estou cheio de doenças como tu.
MOREIRA
MOREIRA
Uma possibilidade científica é a de nos acharmos sob hipnose.
Velho não precisa ficar doente porque a própria velhice já é uma doença.
ANA
ANA
Hipnose? Se estamos com a consciência alterada por sugestão de outra pessoa,
(Para ele.) Devias respeitar os velhos, pois falas muito em sabedoria. Eles
como não perdemos a noção de quem somos nem deixamos de raciocinar perfeitamente? CLARA (Para Moreira.) Responde esta pergunta, sábio de meia tigela.
tiveram mais tempo para aprender. MOREIRA Tiveram, contudo nem sempre· aproveitaram o tempo maior para realmente
AUGUSTO
aprender. Da forma como andam as coisas na sociedade moderna eu respeito mais as
É provável que estejamos vivenciando efeitos retardados dos exercícios
crianças do que os adultos de qualquer idade, elas possuem a sabedoria da inocência.
mentais que realizamos antes da estréia da peça para a criação interior dos
AUGUSTO
personagens.
(Para Moreira.) Afinal, o que faremos?
ANA
MOREIRA
Eis uma consideração técnica absolutamente aceitável.
O ponto crucial da nossa dificuldade é que nem sequer sabemos se devemos fazer
DICA
alguma coisa. Estamos naquilo que pode ser definido como insanável dilema.
Falou bonito, princesa...
DICA
AUGUSTO
(Para ele.) Não entendi patavina do que disseste.
Acabei de escutar uma ironia.
OSCAR
MOREIRA
(Para ela,) Eu te explico, idiota.
Ironia não, sarcasmo.
DICA
JULIETA
Então explica, veado.
(Para Dica.) Respeita a Ana que ela tem idade de ser tua mãe...
ANA
OSCAR
Será que estamos simplesmente sonhando?
Ou avó...
MOREIRA
ANA
Não. O sonho, tendo uma causa fisiológica, ou psicológica, é sempre um
(Para Carlos.) Eu não devia ter me enturmado com essa gente.
fenômeno individual, jamais coletivo.
CARLOS
ANA
Nem eu porque, como diz o povo, quem com porcos se mistura fareIo come.
Sendo assim...
(Moreira solta uma gargalhada.)
CARLOS Se não se trata de sonho...
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AUGUSTO
AUGUSTO
Nem efeito de exercício de pensamento criador...
Devemos proceder com realismo, esquecendo de fingir como atores.
OSCAR
DICA
Nem resultado de droga...
Se me baterem demais vou dar porrada sem dó nem piedade.
CLARA
CARLOS
Nem delírio...
Não me agrada o recurso, DEUS há de me perdoar por tê-lo proposto, porém é o
JULIETA
único de que dispomos. Vamos começar?! (Esbofeteiam-se. Quando caem exaustos
Nem qualquer outra ilusão...
acomodam-se sentados em círculo.)
Há um silêncio prolongado, angustiante.
DICA
DICA
Valeu, macacada, eu gostei.
Vocês não estão querendo achar que nós morremos, estão? ...
CARLOS
CARLOS
Alguém sentiu alguma dor ao contrário de mim?
Só existe um modo de sabermos: fazendo uma coisa que sempre tivemos vontade
AUGUSTO
de fazer e nunca fizemos. Vamos nos dar tapa na cara, uns nos outros. Se as bofetadas
Engraçado, eu não...
doerem é porque estamos vivos, se não doerem é porque morremos mesmo.
MOREIRA
DICA
Não, eu não...
E estamos todos fumados...
ANA
MOREIRA
Não, eu não...
A ideia de verificarmos nossa sensibilidade física com bofetadas é interessante.
CLARA
DICA
Não, eu não...
Mais interessante do que com bofetada é fazer a verificação com ponta-pé na
JULIETA
bunda.
Não, eu não... ANA
OSCAR
Estou no meio de malucos...
Vocês só sabem dizer “não, eu não”. Pois eu também não senti dor nenhuma, mas
JULIETA
senti coceira no sovaco.
Malucos não, doidos varridos.
DICA
CLARA
E eu senti coceira em outra parte do corpo... Muito excitante.
Com quem eu fui me meter, depois de tanto tempo sossegada no estúdio da minha
CARLOS
emissora radiofônica...
(Para ela.) Doida, enfrenta a realidade: nós morremos! MORREMOS!!!
CARLOS
DICA
Topam a experiência?
Estás chutando...
TODOS
AUGUSTO
(Depois de vacilarem.) Claro.
Não há dúvida, morremos.
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MOREIRA
MOREIRA
Admito a hipótese como plausível.
Aprendi contigo, jararaca.
CLARA
CARLOS
Sim, morremos. ANA
Não custa ouvirmos a idéia dela, ninguém desconhece que às vezes DEUS escreve certo por linhas tortas.
“Assim é se lhes parece”...
DICA
OSCAR
E se manifesta até por pessoas safadas. Sendo assim devemos também ouvir o
Morremos... JULIETA Morremos... DICA .. . (Transitando da incredulidade para o convencimento perturbador.) É??? Morremos mesmo, maninhos do meu coração???... Choram copiosamente, à exceção de Carlos que reza com fervor. No pranto convulsivo cada um diz algo diferente dos outros, recordando parentes e amigos, traições amorosas, dívidas a pagar, deslizes éticos, fraquezas etc., ficando isto, evidentemente, a
Oscar... CLARA (Para ela.) Não provoca, deixa de ser maldosa. Tens despeito do Oscar porque ele é mais engraçado do que tu. ANA Não comecem nova briga, vamos examinar a idéia supostamente genial da Julieta. OSCAR Se a idéia dela não servir para nos tirar dessa arapuca, anotem aí, eu vou dar uma que pode não ser genial mas é do cacete.
critério do diretor do espetáculo, tendo em vista sobretudo a duração desejada para o
JULIETA
mesmo.
Vocês me tratam como se eu fosse uma indigente mental, sem cultura, mas vou JULIETA
mostrar que estão redondamente enganados. A idéia que acabei de ter é realmente genial e
(De repente grita, pulando de contentamento.) Gente, eu tive uma ideia genial, eu
não bestial.
tive uma ideia, uma ideia genial! (Todos se espantam.)
MOREIRA
AUGUSTO
(Gargalhando outra vez, para Julieta.) Tu sabes o que significa o termo bestial.
(Para Moreira.) Os pulinhos que ela deu são cacoetes de quem faz teatro em
DICA
pássaros de São João e boi-bumbá. MOREIRA Se não for ataque de histeria devemos analisar a idéia dela, já que estamos em um impasse sem vislumbrar qualquer saída.
Não interrompe, bestalhão. JULIETA Vocês precisam saber que me dedico ao teatro folclórico não porque seja uma ignorante, e sim porque admiro o povo pobre, que não possuindo o saber da Universidade tem uma
CARLOS
sabedoria mais valiosa. Querem a prova disso? Pois lá vai: acabei de lembrar um ditado
(Tendo ouvido.) E não percamos as esperanças, podemos ser salvos por um
popular que diz: “pancada de amor não dói”. Então raciocinei e chequei à conclusão de que
milagre.
não sentimos dor das pancadas que nos demos uns nos outros porque, apesar dos pesares, MOREIRA
no fundo nos amamos muito, e não porque tenhamos morrido.
Somente o fato da Julieta ter tido uma idéia já é um milagre, seja ela boa ou má...
Todos se entreolham, surpresos. Por um instante refletem.
ANA
CARLOS
(Para ele.) Nem morto perdeste o veneno.
Sabem que talvez ela tenha razão?!
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MOREIRA
OSCAR
Embora a teoria da Julieta seja muito sentimental para o meu gosto, admito que
Assim seja, comigo ao lado d’Ele aproveitando as mordomias da Eternidade...
tem sua lógica...
DICA
AUGUSTO
(Para Ana.) Este cara parece ao mesmo tempo homem e mulher...
É lógico que tem lógica...
ANA
ANA
Acho que é um Anjo.
Tem...
DICA
CLARA Sim...
E daí? Vou saber em que time ele joga... (Dirigindo-se ao Anjo.) Prazer em conhecê-lo, eu me chamo Dica, como é o seu nome ou apelido?
DICA
ANJO
Não sentimos dor das porradas porque nos amamos?!... Por esta eu não esperava...
Gabriel, às suas ordens.
OSCAR
OSCAR
Quer dizer que nos amamos apesar de vivermos brigando e falando mal uns dos
Ou desordens...
outros, é?... Pensando bem, sabem que isto é a verdade?!...
DICA
Todos se abraçam afetuosamente, tranquilizados.
Por acaso você é Anjo?
CARLOS
ANJO
Depois de tamanho susto vamos festejar nossa descoberta auspiciosa de maneira
Costumam me tratar como tal.
correta: ajoelhemo-nos e rezemos! A luz apaga e quando volta a acender ostenta coloração azulada. Ouve-se música
JULIETA (Para Moreira.) Onde já se viu Anjo sem asas?
sacra. O grupo está em uma das áreas laterais do palco, defronte a porta do Céu que se
MOREIRA
abre, aparecendo um Anjo.
Anjo só tem asas nas tuas pastorinhas e no imaginário popular, apedeuta!
ANJO
JULIETA
Seja louvado o Supremo Criador da Vida e do Universo, nosso glorioso Pai
Obrigada, pela primeira vez te referiste a mim de maneira justa.
Celestial.
AUGUSTO
CARLOS
(Alertando-a) Ele não te elogiou, apedeuta quer dizer ignorante.
Para sempre seja louvado!
DICA
ANJO
(Para Julieta.) Eu já não te disse um milhão de vezes que o Moreira é um
Aleluia, o Senhor é convosco.
grandessíssimo filho da puta?!
CARLOS
AUGUSTO
Amém!
(Para Ana.) Se estamos diante de um Anjo eu não sei, mas a imagem dele tem
DICA
excepcional beleza. Eu jamais vi antes uma figura assim, nem mesmo em representação
Saravá!...
cênica da maior expressividade estética.
CARLOS
ANA
Que o santo nome de DEUS seja exaltado por todas as nações.
Sinto-me emocionada.
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DICA
de teatro sempre viveu lutando para interpretar um papel melhor, ou mais importante do
(Ouvindo) E eu mijada, agora de alegria e não de medo.
que todos os outros da sua carreira. Façam isto imediatamente para acabar com a frustração
ANJO
e podem entrar.
Irmãos, DEUS se compadeceu do vosso drama e me encarregou de vos preparar
Um de cada vez, ou simultaneamente, os atores e atrizes representam
para entrar no Céu.
determinado tipo humano, ou animal, com monólogo ou em linguagem gestual. Se o
ANA
diretor do elenco quiser suprimir esta cena para economizar tempo basta fazer a luz
Preparar?
apagar, reacendendo depois. No caso da ação ser mostrada ao público o personagem
MOREIRA
Augusto, diretor de espetáculo cênico, deve fazer a sua coordenação.
Claro, a nossa fama por aqui deve ser péssima. É no que dá termos na classe
TODOS
teatral alguns beócios.
Que alívio!...
OSCAR
ANJO
(Para Dica.) Sabes o que é beócio?
Agora estão prontos, podem entrar. (Nenhum dá o primeiro passo.) O que houve?
DICA
Querem outras informações?
Não.
DICA
OSCAR Nem eu.
(Para si mesma.) Eu não aguento mais a curiosidade. (Para o Anjo.) Seu coisinha, você é homem ou mulher?
DICA
OSCAR
Pela maneira como ele falou deve ser porra louca.
Bem lembrado. É macho ou fêmea?
CARLOS
ANJO
(Para o Anjo.) O senhor tem toda razão, precisamos ainda nos purificar com
(Sorrindo bondosamente.) É engraçado como vocês, seres humanos, se
penitência no Purgatório para podermos entrar no Céu.
preocupam tanto com a sexualidade, colocando nela, e não no sentimento, os valores da
ANJO
alma. Aqui no Céu cada um tem o corpo que prefere, masculino, feminino ou até
Não é bem assim. Se para serem acolhidos no Céu os seres humanos
andrógino, porém quanto mais se aperfeiçoa menos importância dá ao sexo. Vocês não
necessitassem ser puros estaríamos sozinhos... O Pai Supremo ama tanto as suas criaturas
dariam a importância que dão se já tivessem descoberto, como nós, o quanto o prazer da
que as aceita junto a si com imperfeições morais, quando as mesmas não decorrem da
ternura é maior do que o prazer do orgasmo.
crueldade e podem ser extintas por influência do meio.
MOREIRA
CARLOS
(Para o grupo.) A teoria dele pode não ser sedutora, mas faz sentido.
Como estávamos enganados sobre DEUS...
AUGUSTO
ANJO
Também acho.
Para ingressar no Céu vocês somente precisam resolver um probleminha, porque
OSCAR
aqui não desejamos ninguém frustrado. Se ainda não realizaram o grande sonho que
Para mim o que faz sentido é um quarto de motel e uma namorada nua...
tiveram na vida realizem logo, pois o Purgatório não é um lugar fechado, é um estado de
CLARA
consciência. Libertem-se da mágoa e do ressentimento contra o destino. Eu sei, porque
Eu confesso que ainda gosto de homem na cama, embora já tenha passado dos
aqui nada ignoramos, que estou me comunicando com artistas de teatro. Ora, todo artista
quarenta.
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JULIETA
AUGUSTO
Quarenta não, sessenta...
(Para Dica, baixinho.) O Moreira iria longe se tivesse talento artístico como tem
DICA
cultura e inteligência.
E a Ana, que já passou dos noventa?...
DICA
ANA
Guarda a tua tesoura que tu não tens nem inteligência e cultura e nem talento
(Para Carlos.) Que línguas! Como gente dessa qualidade pode merecer o Céu?
artístico.
CARLOS DEUS é misericordioso.
JULIETA (Para Clara.) Tu entendeste o que o representante do Criador quis nos dizer?
ANJO
CLARA
O que resolvem? Vão entrar para não mais sair?
Não. Nadinha.
MOREIRA
ANA
Calma, a prudência é um princípio de sabedoria.
Estamos envolvidos em uma trama melodramática sumamente embaraçosa.
AUGUSTO
JULIETA
(Para alguns integrantes do grupo.) O que ele quis dizer quando falou “entrar para não mais sair”? Mesmo que o espetáculo lá dentro seja maravilhoso poderemos nos
É por isso que gosto do enredo de pássaros de São João e boi bumbá, quase sempre igual e de fácil compreensão.
entediar e querer mudar de ambiente.
CARLOS
DICA
(Para o Anjo, com extrema humildade.) Espero ser perdoado por não ter ainda
Principalmente eu quando sentir saudade das minhas bandalheiras.
entrado no Céu, abandonando meus companheiros. Sabe, vivemos juntos uma vida inteira,
CLARA
com a mesma paixão pelo teatro... ANJO
Será que no Céu é como no Inferno, onde todos são trancados eternamente?
Fique tranquilo, a dificuldade toda é que vocês estão habituados à mentira em suas
OSCAR Se for eu só entro se me garantirem que serei hospedado junto com as onze mil virgens de que fala a Bíblia.
duas expressões, a verbal e a do silêncio, e eu tenho de dizer a verdade completa a respeito de qualquer assunto. Relativamente ao assunto do momento a verdade é esta: nunca um ser
ANA
humano saiu do Céu, nem sairá, não porque seja proibido de sair, pois o regime aqui é de
Eu não abro mão do meu direito de ir e vir.
liberdade total, e sim porque não terá a menor vontade de fazer isto.
JULIETA
CARLOS
O Moreira está certo, não vou decidir precipitadamente. A escola do povo me
(Para o grupo, eufórico.) Ouviram??? Se entrarmos jamais sairemos, não porque
ensinou que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. ANJO Vocês não entenderam o que falei. Eu não disse que estarão proibidos de sair, disse que é impossível quererem sair.
fiquemos presos lá dentro, e sim porque não desejaremos deixar de gozar a felicidade eterna. OSCAR Gozar é comigo...
MOREIRA
MOREIRA
Em boa lógica aristotélica, socrática e cartesiana, é a mesma coisa, pelo menos na
Eu não sei se vou me adaptar à novidade de ser feliz o tempo todo.
essência.
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AUGUSTO
os fins, eu estimaria saber se no Céu tem bibliotecas com livros que são imorais, mas
E eu não sei se isso me convém, porque sou mais criativo nas minhas crises de
ostentam grande beleza literária.
depressão. MOREIRA Temos de levar em conta ainda o aspecto puramente subjetivo da questão: sem
ANJO De certo modo sim, nosso código de honra classifica a censura como crime hediondo.
exercer o livre arbítrio, fazendo escolha, o ser-em-si se massifica, transformando-se
AUGUSTO
individualmente em não ser. Vocês percebem o significado desta sutileza?
Apreciei tanto esta resposta que vou colaborar com o diálogo fazendo uma
DICA
pergunta: no Céu tem atriz como a Clara, que só foge da mediocridade quando se socorre
Eu não percebo porra nenhuma.
de microfone de rádio?
CLARA
CLARA
Nem eu.
(Para Ana.) Esta eu não engulo, com toda a minha educação vou reagir à altura.
ANA
(Para o Anjo.) E tem encenador de peças teatrais pedante como este sacana mafioso que
A mim se afigura razoável, e oportuno, indagar do representante de DEUS como é
acabou de me criticar?
a vida lá dentro.
ANJO
CLARA
De certo modo sim.
Isso mesmo.
DICA
JULIETA Então faço eu a primeira pergunta. (Para o Anjo.) Aí no Céu tem pastorinha, boi bumbá e pássaros de São João?
Tem diversão para gente da terceira e última idade? Pergunto isto porque interessa à minha colega Ana... ANJO
ANJO
De certo modo sim.
De certo modo sim.
ANA
OSCAR
E tem cirurgião plástico para reduzir a feiúra de gente como a invejosa que acabou
Tem cachaça, uísque e similares?
de me alfinetar?
ANJO
ANJO
De certo modo sim.
De certo modo sim.
CARLOS
MOREIRA
(Para o Anjo.) Perdoe-me se cometo uma heresia, mas acho que agora o divino
Se tem tudo o que se pergunta o Céu é uma Torre de Babel...
amigo deu uma escorregada e caiu no pecado venial de uma mentira caridosa, não foi?
CARLOS
ANJO
Agora quem não entende mais nada sou eu...
Você esqueceu de que nunca deixamos de dizer unicamente a verdade? Para nós
ANJO
os fins não justificam os meios, os meios é que justificam os fins.
Vou explicar. No Céu tem tudo o que o ser humano pode conceber para o seu bem
MOREIRA
estar. Aqui todos vivem de acordo com a sua imaginação, nada é impossível. O que faz
(Dirigindo-se ao Anjo, solene.) Sem pretender discutir o mérito, ou a
ninguém sair do Céu é o fato de não precisar afastar-se de onde se encontra para
substancialidade, da sua tese sobre a controvertida questão da prevalência dos meios sobre
concretizar as suas aspirações. Se alguém deseja alguma coisa basta pensar nela e estará
809
desfrutando-a sem fazer qualquer esforço.
810
Inferno, Satã se recusa a recebê-los.
TODOS
MOREIRA
Sendo assim o Céu é o Paraíso!
E quando tal coisa ocorre para onde eles vão?
ANJO
ANJO
E não é isto o que consta dos livros sagrados de todas as religiões? (Pausa)
Ficam vagando sem rumo como almas penadas até vencerem o orgulho e nos
Finalmente, entram ou não entram?
procurarem. Tenho ordem expressa de São Pedro para deixá-los entrar quando quiserem.
MOREIRA
OSCAR
Seria ótimo se pudéssemos consultar o Shakespeare: “entrar ou não entrar, eis a questão”... ANJO
Chegou a minha vez de perguntar. Maomé, que como o Cristo falou para a Humanidade em nome de DEUS, afiançou que o homem pode ter dezenas de mulheres. Achando que ele tinha toda razão, indago: aí dentro quantas mulheres eu posso ter?
Se quiser fazer a consulta entre e o procure, ele não poderia estar em outro lugar.
ANJO
Todavia, já avisei, se entrar não terá vontade de sair.
Todas.
MOREIRA
MOREIRA
Este pormenor, aliás “pormaior”, é que complica tudo... Antes de decidir cumpre-
É justo?
me lhe fazer mais umas perguntas que meus colegas não tiveram lucidez para formular.
ANJO
ANJO Pode fazer, não tenha o mínimo acanhamento.
É, porque igualmente no Céu cada mulher tem o direito de possuir todos os homens.
MOREIRA
MOREIRA
Aí dentro há espaço para comunista?
Essa realidade é um tanto complexa...
ANJO
ANJO
Mas que pergunta tola para quem se mostra tão sábio!... Aqui não existe propriedade privada, tudo pertence a todos, constituindo bem comum.
Pelo contrário, é tão simples que você não entende com sua ilustração cultural agnóstica. O verdadeiro amor anula o sentimento de posse. E quando ninguém é dono de
MOREIRA
ninguém todos se pertencem uns aos outros, e são venturosos porque, embora se amando,
Faço outra indagação que não poderá ser enquadrada como tola: no Céu há espaço
continuam livres. A infelicidade de vocês é consequência do egoísmo. Por que não trocá-lo
para ateu?
pelo altruísmo, substituindo o “meu” e o “teu” pelo “nosso”? Pensem nisso. Bem, a
ANJO
conversa está boa mas eu não devo fazer sermão, aqui no Céu temos tanto respeito pelo
Claro, aqui cada um tem o sagrado direito de pensar como lhe aprouver, já
livre arbítrio de cada pessoa que jamais doutrinamos alguém. (Ligeira pausa.) Chegou o
salientei isto. Nosso pai Supremo só expulsa do Céu quem, como o meu ex-companheiro Lúcifer, se rebela contra a lei do amor, a única que nos cumpre aceitar.
instante de resolverem se entram ou não entram. DICA
MOREIRA
Está na hora do dá ou desce...
Mas o território do Inferno não seria mais adequado para os ateus?
OSCAR
ANJO
Eu acho que desço...
Para uns sim, como, aliás, acontece também com muitos religiosos hipócritas,
ANA
porém para outros não, porque são tão honestos e generosos que, quando preferem ir para o
Eu ainda estou flutuando na indecisão...
811
812
JULIETA
vagas e assim teremos mais tempo para pensar melhor... (Outra vez todos se olham
Eu balançando...
surpresos e movimentam a cabeça como quem concorda.)
CLARA Sinto-me entre a cruz e a espada...
A luz apaga. Quando reacende sua coloração é avermelhada e o grupo se encontra na outra lateral do palco onde está a porta do Inferno.
MOREIRA
CLARA
Eu também me concedo o benefício da dúvida...
Esta não é a casa do autor da peça.
AUGUSTO
MOREIRA
Eu idem...
Nem uma casa portuguesa, com certeza.
CARLOS
AUGUSTO
(Encosta no Anjo e sussurra.) Eu resolvi entrar, porém como ainda não perdi a esperança de convencer meus queridos colegas de arte a fazerem o mesmo, peço-lhe cinco minutos para uma nova tentativa.
Pela cor avermelhada da iluminação, e pelo estilo barroco da fachada, desta vez parece que estamos na frente de uma boate antiga, do tipo barra pesada. DICA
ANJO
Então, por que não entramos logo para refrescar a goela e sacudir o esqueleto?
Quando tomarem a decisão batam na porta que abro. (Entra)
ANA
DICA
Não sou de farra.
O busílis é que se entrarmos não sairemos nunca. Moral da história: poderemos
DICA
nos estrepar...
Por falta de preparo físico...
OSCAR
CLARA
Situação cabreira...
Nem eu sou de farra.
CLARA
JULIETA
Pior que uma ferrada de arraia...
Eu ainda menos, fora de quadra junina.
MOREIRA
CLARA
Mais até: pior do que a fossa sartreana...
Aliás, além de não ser de farra sou tão recatada que estou até pensando em entrar
AUGUSTO
para um convento e me tornar freira, a fim de fazer jus à companhia do ilustre noviço que
Que dolorosa interrogação!...
temos como parceiro de trabalho...
JULIETA
MOREIRA
(Novamente gritando e pulando.) Gente, eu tive outra ideia, outra ideia genial!!!
Noviço não, Diácono.
CARLOS
DICA
Diz logo que só temos dois ou três minutos.
(Para Carlos.) Ela agora está querendo te sacanear...
JULIETA
CARLOS
É o seguinte: o autor da peça com a qual estamos viajando, embora segundo a
DEUS abençoe a megera.
Dica não seja flor que se cheire, é nosso velho amigo, também interessa a ele a felicidade
OSCAR
eterna, e nós por justiça, ou caridade, devemos ir procurá-lo antes de entrar no Céu, já que
Vocês são uns bobocas. Se isto aqui for o Inferno e abrirem a porta eu vou
de lá não vamos querer sair. Explicando isso para o Anjo Gabriel ele guardará as nossas
empurrar todos para dentro e sair correndo, que não sou bobo.
813
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CLARA
CLARA
Inferno???
Brincadeiras não, molecagens.
DICA
MOREIRA
Égua!!!
Nunca pensei que vocês fossem tão corajosos...
JULIETA
AUGUSTO
Inferno???
Insisto em dizer que esta porta é de uma boate, um “inferninho”.
ANA
DICA
Inferno???
E se for o INFERNÃO?
MOREIRA
CARLOS
Se nos encontramos diante do Inferno o único em condições de nos proteger é o Carlos, especialista em salvação de pecadores...
Não gosto deste lugar e, se desejam saber mais, estou sentindo um cheiro de enxofre...
AUGUSTO
OSCAR
(Para Moreira, segredando.) Ele vai querer realizar a façanha, pois somente
(Para Clara.) Não seria cheiro de maconha?
assim demonstrará ser melhor do que eu em alguma coisa. CARLOS Não sei por que me deu agora uma imensa vontade de rezar chorando... Todos olham para Carlos e começam a se apavorar. Escutam gritos, imprecações e gemidos de dor. Entram em pânico. OSCAR Acho que me borrei todo... DICA
CLARA Não sei porque não conheço, só fumo cigarro de tabaco, e assim mesmo mentolado e com ponta de cortiça. ANA O Oscar, que leva tudo na graça, bem que poderia tirar a limpo a situação para nós, batendo na porta. OSCAR (Para ela.) Por que tu não bates? Se for o Inferno o Diabo não vai te querer, com
Aguenta firme que eu também...
esta tua cara de Santa Terezinha ou Madalena arrependida. A mim ele desejará para
CARLOS
exercer a função de Relações Públicas, e outras relações que nunca são públicas...
(Ajoelhando-se) Espero ser imitado por quem tiver juízo.
MOREIRA
JULIETA
Se ninguém se dispõe a bater na porta o melhor a fazermos é ir embora daqui.
Valei-me meu Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal!...
DICA
MOREIRA
Também acho, ou trepa ou sai de cima.
(Para ela.) Não aprecias tanto as fogueiras de São João? Daqui a pouco te verás
CLARA
em uma para ninguém botar defeito... Ouve-se música de gafieira. Escutando-a todos vão se refazendo emocionalmente, até ficarem calmos.
Não aprovo esta linguagem pornográfica. MOREIRA Pornofônica.
ANA
JULIETA
(Para Oscar.) Estás vendo no que dá as tuas brincadeiras?
(Para Clara.) Tu ainda não viste nada. Não foi por acaso que eu passei tanto tempo representando somente com o pessoal dos subúrbios.
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ANA
DEMÔNIO
Sejamos sensatos, precisamos fazer de comum acordo alguma coisa inteligente
Fecha a latrina desta boca que eu também detesto quem é puxa saco!!!
em vez de discutir sem proveito. DICA (Para ela.) E como, rainha mãe, poderemos chegar a um comum acordo sobre o que deveremos fazer? Tu já viste gente de teatro concordar plenamente sobre qualquer assunto?
DICA (Para Augusto.) Deixa comigo, vou empregar com ele a minha psicologia. (Dirigindo-se ao Demônio.) Escuta aqui, indecente, eu já vi que és um patife, um escrotão sanguinário, estou certa? DEMÔNIO
OSCAR
Certíssima. Agradeço-lhe a gentil observação.
Quem julga que estamos na porta do Inferno é o Carlos. Quem afirma que esta
DICA
porta pertence a uma boate é o Augusto. Ora, “quem pariu Mateus que o embale”, eu nada
Deixa eu te perguntar uma coisa, bandido: tu vais querer colocar à força todos nós
tenho com o problema, sou a pessoa menos indicada para resolvê-lo. E estamos
aí dentro, sabendo que com a bondade do nosso coração iremos esculhambar o teu reino de
conversados!
perversidade?!
Todos fitam Augusto e Carlos que, sem outra alternativa, batem muito
DEMÔNIO
timidamente na porta. Esta se abre e surge, revestido de aparência horrorosa, em tudo
Vejamos: qual é a profissão de vocês?
contrastante com a do Anjo, o demônio Belzebu.
TODOS
CARLOS (Tremendo e gaguejando, para o demônio.) Digníssimo senhor, peço permissão para perguntar quem é Vossa Excelência... DEMÔNIO Um demônio, não esta vendo? Meu nome é Belzebu, sou comandante de uma legião de Espíritos Maus, secretário adjunto do temido Satanás, o grande rei do Inferno. Uns desmaiam, outros tentam correr sem conseguir e, liderados por Carlos, ficam se benzendo.
Artistas de teatro. DEMÔNIO (Demonstrando desgosto.) Esta não!... Vão logo embora, pobres e oprimidos não entram aqui. CARLOS Agora eu é que agradeço a gentil observação. DEMÔNIO Antes de partirem me digam de que planeta vocês são.
ANA
MOREIRA
(Controlando-se a muito custo.) Prazer em conhecê-lo, o senhor é muito
Somos do planeta Terra.
simpático!... MOREIRA (Também se controlando com inaudito esforço.) O senhor parece boa pessoa, um homem santo.
DEMÔNIO Ele ainda não se desintegrou com guerra atômica? Pergunto por que deixei de andar por lá em visita de rotina. Não há nenhuma necessidade, a Humanidade terrena é tão cretina, corrompida e injusta que dispensa a nossa atuação. Para ser sincero confesso que
DEMÔNIO
ao transitar pelo mundo de vocês sempre aprendi mais do que ensinei, ficando, felizmente,
(Berrando furioso.) Não me chame de santo!!! Odeio santos!!!
muito pior do que já era. Uma maravilha, sou muito grato. Alguns dos presidentes,
AUGUSTO
governadores, ministros, senadores e deputados que vocês tiveram, e já morreram, depois
Não se zangue, ele só quis dizer, como aliás eu igualmente tenho o privilégio de
de serem rejeitados no Céu e recebidos com festa em nossos braseiros se revelaram tão
afirmar, que Vossa Majestade é alguém altamente respeitável.
competentes, em matéria de mentira e esperteza, que eu os estou aproveitando como
817
assessores especiais. MOREIRA
818
DICA (Gritando para o Demônio, com pausas para os outros repetirem suas palavras.)
Então o senhor gosta do nosso planeta por razões práticas, é?
Isto aqui... não é o Inferno... e tu, Belzebu... queiras ou não queiras... és mesmo um homem
DEMÔNIO
santo... com pinta de Virgem Maria!...
Adoro! E não só por razões práticas, também por motivos que servem à pura
DEMÔNIO
contemplação. Por exemplo: acho lindas as queimadas nas florestas, com o fogo
(Explodindo em fúria.) Miseráveis!!! Vou estrangular cada um de vocês!!! (Parte
transformando árvores em fumaça negra para completar a poluição dos rios... Acho lindas
rugindo como fera para cima do grupo, que sai correndo em desespero, desastradamente,
as cenas de tortura nos porões dos regimes políticos ditatoriais... Acho linda a poesia da
enquanto a luz escurece e surgem clarões de relâmpagos acompanhados da sonoplastia do
violência, cada vez maior em toda parte, com assassinatos, estrupos e tantas outras coisas
início da representação: barulho de chuva, trovões e desastre aéreo. Se o diretor do
deslumbrantes... Parabéns para vocês.
espetáculo preferir pode trocar tal recurso técnico por música de gafieira, ou algo de
JULIETA
efeito mais intenso para sugerir confusão, brincadeira, fantasia.)
(Repentinamente põe-se a gritar e pular pela terceira vez.) Eu tive outra ideia genial, eu tive outra ideia genial!!!... (Puxa todos pelos braços e os reúne longe do Demônio, falando baixo para ele não ouvir.) Este cara pode não ser demônio e sim segurança disfarçado de boate, o Augusto talvez esteja certo e nós podemos resolver de uma vez por todas o nosso problema de saber se morremos ou não. Vamos testá-lo, xingando-o de uma forma que ele se sinta profundamente ofendido. Dependendo da reação dele saberemos se estamos ou não dormindo, e se estivermos faremos um esforço maior para acordar. CARLOS Eu que acredito em milagre me sinto à vontade para admitir que tudo não passa de um pesadelo. ANA Sonho de uma noite de inverno... DICA ... que começou no Céu e vai acabar no Inferno. Deixem comigo, já provei que entendo desse riscado, sei como testar qualquer demônio, fui criada em terreiro de macumba. Todos me acompanhem e repitam o que eu disser, em voz bem alta e agressiva. O grupo se desloca postando-se frente ao demônio com desafiadora altivez. OSCAR Começa, coruja cega, manda bala.
FIM
819
820
Esta peça não teve, até a edição do presente livro, nenhuma encenação nem publicação. Foi escrit apara atender reiterados apelos da atriz paraense Luiza de Abreu, desejosa de um monólogo do autor para representar.
PERSONAGEM
A LOUCURA
Uma Atriz de teatro
CENÁRIO
DE UMA
Nenhum
ÉPOCA Atual
ATRIZ
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ATO ÚNICO
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desprezada, e esse negócio de me chamarem de louca é uma injustiça, para não dizer uma patifaria. A menos que esteja com a verdade o autor da seguinte sentença: "louca é a
Aparece a Atriz para o público com absoluta simplicidade, portando uma bolsa que põe em qualquer lugar. Começa a sua fala.
pessoa que perdeu tudo, menos a razão”... Eu sou uma mulher mentalmente saudável, dotada de raciocínio lógico, e posso provar isto.
Logo no início deste meu contato com vocês, que espero seja edificante e prazeroso, devo fazer uma profissão de fé. Eu acredito unicamente em três coisas: na existência de Deus, na necessidade de amor no coração humano e na importância da luta pela justiça social. Somente por causa disso, e porque vejo Espíritos, acham que sou louca. Não estou nem aí para tal julgamento; o que me interessa é o que eu penso dos outros, não o que os outros pensam de mim. Não acredito nos valores, intelectuais e morais, que dominam a sociedade moderna, com seus princípios e seus paradigmas, com suas regras e suas normas de conduta, com suas convenções, protocolos, etiquetas e outros babados. Isto tudo para mim é lixo cultural... Vira-se para o espaço vazio à esquerda. O que tu queres comigo ainda, alma penada? Vai procurar o que fazer, deixa-me em paz, agora estou trabalhando. (Novamente para a plateia.) Preciso terminar minha apresentação a vocês. Sou uma atriz de teatro, embora não pareça: detesto palco, maquiagem, iluminação técnica, roupa de figurino e outros recursos tradicionais da arte cênica, necessários ao trabalho de representação em grupo; não porque seja uma vaidosa individualista, e sim porque prefiro representar contando apenas com os meus dotes pessoais, a começar pelo esbelto corpo que vocês estão vendo... (Pausa) Alguém fez um ar de riso, totalmente injustificado. Eu não sou louca e muito menos velha. Se o meu corpo encontra-se envelhecido o problema é dele: não tenho nada a ver com isto. Como ia dizendo, prefiro representar contando apenas comigo mesma porque tenho extrema dificuldade em aceitar o que no geral as pessoas aceitam. Em segundo lugar, se eu sou maluca é porque tenho excesso de juízo. Terceiro: com minha filosofia existencial aprendi muita coisa neste mundo cretino, safado, calhorda, cínico, e por isso tenho condição de ensinar a ser feliz quem quiser aproveitar os meus bons serviços. Vocês querem? (Pausa) Respondam senão vou embora, não aguento mais ser incompreendida e
Primeiro porque, como já salientei, não acredito em nada daquilo em que os outros acreditam. Segundo porque igualmente não acredito em mim mesma quando não estou acreditando na minha descrença. Terceiro porque, não acreditando em nada fora da existência de DEUS, da necessidade de amor no coração humano e da importância da luta pela justiça social, eu sou profundamente feliz. E desejo, como atriz de teatro, partilhar minha felicidade, que reside no saber pensar, com quem se interessar por ela. Vocês estão interessados? (Faz uma pausa, aguardando a reação maior ou menor da plateia. Vira-se novamente para o espaço vazio à esquerda.) Vai embora, cara de pau, já te falei que estou trabalhando, não me aporrinha! (Dirigindo-se à plateia.) Você aí que é mulher como eu, está completamente satisfeita com a vida e não precisa aprender a ser feliz? Duvido... Primeiro porque toda mulher sofre, no míninmo, o desconforto de três medos: medo de que o marido ou companheiro se torne alcoólatra (homem quando chega tarde da noite em casa embriagado não funciona, e no dia seguinte ainda temos de aturar a sua ressaca), medo de gordura com celulite e medo de vizinha fuxiqueira. Segundo porque, afora esses três medos, toda mulher, cedo ou tarde, de um modo ou de outro, sempre é enganada pelo seu parceiro. Terceiro porque as mulheres, no banquete festivo da vida neste mundo, alimentam-se somente com o que sobra no prato dos homens. Vocês já devem ter notado que eu tenho um vício, ou melhor, um cacoete psíquico: todas as minhas conceituações se dividem em três partes. Eu digo "primeiro porque"... "segundo porque"... "terceiro porque"... Confesso ignorar o "porquê" desse hábito, mas isso não quer dizer que sou louca, no máximo é uma compulsão neurótica. E quem, nos dias de hoje, não tem a sua neurose de estimação? Alguém já disse que, do jeito como a vida está, existem dois tipos de pessoas: os neuróticos e os de mau caráter... Eu não tenho transtorno bipolar, nem esquizofrenia, sou uma atriz competente, que, por ter conquistado a duras penas a sabedoria, resolveu exercer sua profissão de
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maneira útil aos semelhantes, ensinando-lhes a serem felizes.
824
Já que ainda não foram embora, e eu também não vou, começo minha aula. (Vira-se para o
Vocês estão mesmo interessados nos meus bons serviços? (Pausa) Se não estão
espaço vazio à esquerda.) Quem é você? Não o conheço. Jamais vi antes a sua cara, que
digam que vou embora. Quem vai sair perdendo com isso são vocês, jogando fora a
não é de pau porque parece de arame farpado... O que deseja de mim? (Pausa) Que
oportunidade de aprender com uma atriz a arte de ser feliz. Que, aliás, se baseia em três
gracinha! Olhe aqui para se consolar... (Gesticula como se estivesse "dando uma banana".)
coisas: saber pensar, saber sonhar e saber amar. Eu só ensino a primeira, porque quem sabe
Esta sua exigência é ridícula, você está me parecendo mais um demônio subdesenvolvido...
pensar sabe sonhar e sabe amar.
Por que eu iria deixar de ensinar o bem para lhe agradar? Crie vergonha e me respeite. Vá
Repito: vocês querem aprender comigo? Se não querem falem logo, vou
para o inferno!!! E transmita ao Diabo as minhas lembranças... (Dirige-se à plateia com
embora, prefiro ficar sozinha e não perder meu tempo com gente insensível à
um pequeno saco que tira da bolsa contendo pedaços de papel numerados, abrigando
racionalidade lógica. Já fui trancada meses seguidos em um quarto de hospício, não
pensamentos do autor da peça, e os distribui para os espectadores, conservando consigo
por loucura e sim vitimada por um erro médico; por que não posso depois disso me
cópia de cada pedaço de papel.) Quem recebeu a frase, ou frases, de número um, leia por
isolar na minha casa suburbana?...
favor. (Se o espectador se negar a isso, ou se efetuar a leitura em voz baixa, inaudível a
Vira-se para o espaço vazio à esquerda, começa a contrair os músculos do rosto como quem vai ficando crescentemente furiosa. Doida é a tua mãe, canalha nojento, bandido abominável, verme asqueroso,
todos os presentes, a Atriz executa a tarefa em tom enfático, solene.) 1. QUEM MUITO ANSEIA PELA FELICIDADE, SOMENTE PELO FATO DE SE PREOCUPAR DEMAIS CONSIGO MESMO JÁ NÃO MERECE SER FELIZ.
grandicíssimo filho da puta! (Para a platéia após refazer-se do descontrole
(Para a plateia.) Entenderam? A primeira lição é esta: devemos almejar a
emocional.) Como ia dizendo, se já fiquei trancada meses em um hospício, por que
felicidade, porém não de maneira ansiosa, aflitiva; devemos almejar com “serenitude". A
não posso me isolar em minha residência? Do jeito que estão as coisas será melhor
palavra SERENITUDE é um neologismo que eu criei, para definir uma espécie de
mesmo eu me afastar de tudo e de todos. Até porque, atualmente nesta cidade, ou
serenidade que é mais quietude, bastante comum nos governantes brasileiros diante dos
aldeia, em matéria de cultura jabuti anda de bicicleta e filhote de jacaré é peixe
problemas sociais. Tenho também o vício de inventar expressões verbais que não existem
ornamental... Estou acostumada a viver só, na minha casa, porque sou inteligente, não
nos dicionários da língua. Por exemplo: criei o termo "EXPLICACITE" para definir a
louca. Quando o dia é de sol evito sair, pois tenho medo que me pelo de ficar pelada
mania dos doutores universitários que sempre explicam tudo, inclusive o inexplicável...;
no meio da rua, depois de um assalto ... Quando chove forte também não saio porque
criei o vocábulo "IMBECIOTA", misturando imbecil com idiota, para definir os
moro na periferia de um subúrbio e não sei nadar ... Passear não passeio porque não
burocratas do serviço público que complicam nossa vida exigindo papelada inútil...; e
sou besta: se for jantar em algum restaurante distinto vou ter que fazer um
criei a palavra “TOLIGLOTA" para definir quem diz em vários idiomas as mesmas
empréstimo bancário para pagar a conta...
tolices que dizemos em um só. Vamos agora à frase número dois:
Que tragédia! E ainda dizem que a louca sou eu, não esta cidade. (Vira-se para o espaço vazio à direita.) Você, meu querido, pode permanecer aqui porque nunca me atrapalha, sempre ajuda. Mas pelo amor de DEUS, não fique me
2. ESTAR SEMPRE DE ACORDO COM SEUS SEMELHANTES É, SEGURAMENTE, O MELHOR MODO DE SE DAR BEM COM ELES. E O MENOS HONESTO.
dando conselho para ser boazinha. Deixe que eu desabafe, ironizando as coisas desta
(Para a plateia.) Frequentemente temos que escolher entre ser feliz e fazer
cidade. Toda crítica honesta é construtiva. (Para a plateia.) Mas sim, vocês querem ou não
sucesso. Quem jamais discorda dos outros, e só abre a boca para elogiar, descobriu a
querem que eu os ensine a serem felizes? O senhor aí que é homem, está completamente
fórmula infalível de vencer neste mundo; e ser derrotado perante a sua consciência,
satisfeito com a vida nesta cidade ou neste país? Dúvido... A menos que nunca tenha
cedo ou tarde. Vamos à frase número três:
votado cheio de esperança em uma eleição, ou seja banqueiro do jogo do bicho... (Pausa) Bem, não vou mais perguntar se vocês querem ou não querem aprender comigo a ser feliz.
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3. DESCONFIE DOS POETAS QUE ODEIAM OS BARES, DOS
via?! ... Por que deixaste de me aparecer? Como vão as coisas para ti no Além? (Breve
ELEITORES QUE NÃO VOTAM NA OPOSIÇÃO, DOS JUÍZES DE DIREITO
pausa.) Ah!, meu caro, este mundo material, e materialista, está cada vez pior, parece até
MUITO ELOGIADOS PELOS COLUNISTAS SOCIAIS, DOS MÉDICOS QUE
que seus habitantes perderam a noção do que é ser feliz; contentam-se com os prazeres
LOGO NA SEGUNDA CONSULTA ACONSELHAM CIRURGIA, DOS LÍDERES
eróticos, com os delírios da droga e as ilusões do poder, sobretudo do poder econômico e
RELIGIOSOS QUE PREGAM MORAL COM RIGORISMO, DOS POLÍTICOS
político. Por falar nisso, acabaram de destroçar a nação iraquiana. O que poderíamos
QUE SE DECLARAM POBRES, DOS VELHOS QUE EXIBEM PERFEITA
esperar? A indústria bélica não pára de funcionar a todo vapor, e as armas de destruição e
SAÚDE E ATÉ DAS CRIANÇAS OBEDIENTES, COMPORTADAS. MAS, PELO
morte precisam ser utilizadas, não podem ficar estocadas em armazéns, levando à falência
AMOR DE DEUS, NÃO DESCONFIE DE UMA PESSOA QUE NÃO DESCONFIA
as poderosas empresas das superpotências mundiais. (Pausa) Meu precioso amigo, não faz
DE NINGUÉM.
essa besteira de reencarnar, fica por aí mesmo que a vida por aqui está quase insuportável;
(Para a plateia.) Modernamente quem não desconfia de ninguém é tido como
mudou tanto para pior que não irás te adaptar a ela. Pensas que neste mundo ainda se pode
“filósofo", que antigamente significava sábio, e hoje significa bobo. Isso é fato,
desfrutar das doces alegrias de antigamente? Respirar o ar puro da Natureza?... Conversar
cumpre-nos reconhecer. Mas como agir diferente se a felicidade dorme na inocência e
com os vizinhos na porta da casa?... Comer alimentos saudáveis, sem agrotóxico?... Visitar
acorda na ingenuidade?
parentes para matar saudades?... Estás muito enganado. Agora, entre nós, a vida encontra-
Frase número quatro: 4. SEJA UMA PESSOA SOCIALMENTE DESAJUSTADA, MAS TÃO DESAJUSTADA QUE SE AJUSTE MUITO BEM AO SEU PRÓPRIO DESAJUSTAMENTO.
se tão tecnificada que até sexo já se faz por computador... (Volta-se para a plateia.) Frase número seis: 6. A PESSOA SÁBIA É A QUE NUNCA VAI CANSAR DE SER BOA, MAS JÁ CANSOU DE SER BOBA.
(Para a plateia.) Ao inverso da maioria, não flutue ao sabor das ondas, reme
(Comenta) Precisamos dar atenção a este detalhe a fim de sermos felizes:
contra maré, sabendo que tudo vale a pena se a alma não é pequena, como disse o poeta
devemos persistir na bondade mas sempre alerta para os seus perigos, como ensinou em
português Fernando Pessoa. Seja irreverente, questione a ordem estabelecida. Convém ser
uma peça de teatro o genial dramaturgo Bertold Brecht. Às vezes cumpre-nos dizer não
do contra porque, em qualquer lugar e qualquer época, a situação sempre pode, e deve,
podendo dizer sim, às vezes convém negarmos a alguém o favor que teríamos meios de
mudar para melhor. É claro que com tal atitude você vai se "ferrar", tendo de suportar
oferecer facilmente, enfim, às vezes uma bofetada vale mais do que um beijo. Tudo
prejuízos financeiros e morais, porém nada anulará o seu sentimento e a sua sensação de
depende das circunstâncias e tudo tem um limite. Sejamos equilibrados e realistas. Muita
felicidade por ser idealista.
gente é infeliz porque confunde humildade com subserviência, calma com comodismo,
Frase número cinco:
prudência com covardia, dignidade com orgulho, e por ai vai. Temos de associar ao
5. A BELEZA NÃO É FUNDAMENTAL, COMO DECLAROU O
sentimento a racionalidade. A vida neste mundo é uma viagem difícil em noite escura e
CONSAGRADO VINÍCIUS DE MORAES. O GAVIÃO TEM CARA DE CORUJA,
mar revolto; nela só atinge o porto da felicidade quem navega valendo-se tanto da bússola
PORÉM VOA SUPERLATIVAMENTE MAIS ALTO DO QUE O CISNE. E QUEM
do coração quanto do farol da inteligência.
VIVE UNS DUZENTOS ANOS É A TARTARUGA, NÃO O BELO PAVÃO. (Para a plateia.) Beleza é forma, e toda forma com o tempo se transforma e deforma; só a essência permanece. Se você deseja ser feliz, preocupe-se mais com seu conteúdo íntimo do que com sua aparência física, que pode ser bem cuidada sem ser embonecada... (Vira-se para o espaço vazio à direita.) Olá, Justino, há quantos anos eu não te
Frase número sete: 7. POR PIOR QUE SEJA O SEU DRAMA NÃO SE DESESPERE, POIS NESTE MUNDO SÓ NÃO TEM FIM O QUE NÃO COMEÇOU. (Para a plateia.) Alguém escreveu: "amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida"... Saber esperar é uma grande virtude, não porque "quem espera sempre alcança", pois às vezes cansa e se arrepende de não ter tomado logo uma decisão, e sim porque o
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desespero não resolve nenhum problema, só complica a situação. Sejamos calmos e ponderados, lembrando o ensinamento de um pensador que disse: "a pressa só serve para nos fazer chegar ao fim da vida mais ligeiro"...
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9. A PESSOA SÁBIA NUNCA COMPRA BRIGA ALHEIA PORQUE ESTÁ QUERENDO VENDER AS SUAS. (Comenta) A arte de ser feliz, que decorre do saber pensar, exige o nosso respeito
Hoje em dia as pessoas vivem correndo, sem saber sequer para onde desejam ir...
aos semelhantes, quaisquer que sejam as características ou defeitos da sua personalidade.
Uma lástima! E depois julgam que podem extinguir a angústia existencial tomando pílulas
Viva e deixe os outros viver, já prelecionou alguém bastante sensato. Em termos de
para depressão. (Vira-se para o espaço vazio da direita.) Ainda está aqui? Continue me
verdade existencial cada um sabe de si e DEUS perdoa a todos... Não se envolvam em
inspirando até esta aula terminar... Obrigada... É muita gentileza sua... O quê??? ... Pelo
conflitos meramente pessoais, nem mesmo no seio da família, quando lidarem com pessoas
amor de DEUS, explique! (Gesticula demonstrando perplexidade.) Como não ficar
adultas que para sobreviver não dependem dos recursos de vocês, pois cada uma delas
nervosa?!...
possui opiniões próprias sobre os assuntos de seu interesse, e as opiniões, já diziam os
(Para a plateia.) Gente, por esta eu não esperava!... Necessito de um minuto para relaxar. (Acende um cigarro que tira da bolsa junto com isqueiro e cinzeiro.) Frase número oito:
chineses na Antiguidade, são como pregos: quanto mais a gente bate nelas, mais elas enterram na cabeça... Se um de vocês puder auxiliar quem briga a entrar em acordo, selando a paz, faça
8. A COLETIVIDADE MODERNA É CHAMADA DE SOCIEDADE DE
isto, porém jamais tome partido na contenda, ficando do lado de um contra o outro.
CONSUMO PORQUE, DENTRO DELA, CADA VEZ CONSUMIMOS MENOS E
Quando vemos duas pessoas em conflito logo pensamos: uma está certa, a outra errada.
SOMOS MAIS CONSUMIDOS.
Isso é que é uma atitude errada. Quando duas pessoas estão atritando é possível que uma
(Para a plateia.) Esta é a grande realidade, e acontece que ninguém consegue
tenha razão e a outra não tenha, mas também é possível que ambas tenham razão, esteja
realizar o seu destino sozinho. Fomos feitos para viver em comunhão uns com os outros, a
havendo um mal entendido, é possível ainda que cada uma tenha somente parte da razão ou
solidariedade é a lei da vida em todos os domínios da Natureza. Mas viver com espírito
nenhuma tenha qualquer razão, todas duas se encontrem completamente erradas.
comunitário não é se massificar. Temos o direito de preservar a nossa identidade, e
Complicado, não? Sejam cautelosos, aproveitando este ensino rimado:
devemos assumi-la na prática se quisermos ser felizes. Mais ainda: cumpre-nos gritar bem
(A Atriz declama a trova a seguir do autor da peça.)
alto a nossa indignação contra a hipocrisia dos costumes vigentes e contra as injustiças dos sistemas políticos dominantes nos diversos países. Somos responsáveis pela triste e trágica
CAUTELA
situação do mundo porque nos calamos diante dos fatos sociais, cuidando apenas no nosso
Reflita sobre este fato:
conforto e bem estar. Precisamos ser altruístas e não egoístas, porque no egoísmo está a
Porque nunca tem cautela,
raiz de toda infelicidade. Plena razão tinha Jean-Jaques Rousseau quando ressaltou que os
Diversos bichos do mato
seres humanos viviam em estado de graça, venturosos, até que um deles passou uma cerca
Acabam em uma panela...
ao redor da sua moradia e exclamou: "Isto é meu!"... (Para o espaço vazio do lado esquerdo.) Tu já não tinhas ido embora, cara de pau?! ... No teu lugar me apareceu
(Em outro tom.) Finalmente, vamos a décima frase:
instantes atrás um outro Espírito com aspecto horroroso. Eu o mandei para o Inferno e ele
10. PRECISAMOS NÃO SÓ SABER O QUE PENSAMOS, MAS TAMBÉM
saiu daqui furibundo, dizendo que ia, mas voltaria trazendo consigo o Diabo em pessoa,
PENSAR O QUE SABEMOS.
física e jurídica... E eis o pior: o meu Guia, logo depois, me avisou que devo estar
(Comenta) Aí está o principal. Para sermos felizes devemos não acreditar em nada
preparada para enfrentar sem a sua ajuda, ainda nesta aula, o mais terrível Espírito que vou
afora a existência de DEUS, a necessidade de amor no coração humano e a importância da
ver na presente encarnação. Agora desaparece com a tua chatice, me deixa em paz, estou
luta pela justiça social. Devemos não acreditar nem em nós mesmos, adotando permanente
trabalhando. (Para plateia.) Número nove por favor:
autocrítica. Sócrates, que foi considerado como o homem mais sábio em seu tempo, na
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Grécia pré-cristã, afirmava que a única coisa que sabia era que nada sabia... Depois dele
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quando um grande bem queremos.
um escritor inglês, cujo nome eu ignoro porque afinal de contas não sou uma Enciclopédia, garantiu que nem isto ele sabia, apenas imaginava... Com certeza o princípio da sabedoria
4. GRATIDÃO
reside na consciência da ignorância, inevitável na espécie humana, porquanto “o homem é
Assim como o ar e o chão
tão só um animal que pensa, pensa sobretudo que não é um animal"... O autor deste
nada cobram de uma flor,
judicioso pensamento eu também não sei quem é, li em uma revista. (A critério da
jamais cobra gratidão
direção do espetáculo a Atriz pode tirar da bolsa uma revista e mostrá-la, assim como
quem faz o bem por amor.
pode, em alguns outros momentos da sua interpretação, retirar da bolsa objetos que produzam efeitos cômicos na platéia, sem apelar para o exagero porque a peça não é
5. JOGO DA VIDA
uma “chanchada”.) Temos que ter a humildade de reconhecer que somos seres
A vida é jogo. Jogamos,
pequenos e limitados, dentro da criação. Somente na Via-Láctea existem
e assim todos vivemos.
aproximadamente, segundo os astrônomos, uns duzentos bilhões de sóis... O que
Ora perdendo ganhamos,
representa cada um de nós em face da grandeza do Universo? Menos que um piolho de
ora ganhando perdemos.
minhoca... Bom, pessoal, chega de prosa, vamos para o verso. Distribui para a platéia vinte pedaços de papel numerados, com trovas do autor
6. DÍVIDAS DE AMOR
da peça, e executa o mesmo jogo de leitura e declamação, todavia sem qualquer
Amor com amor se paga,
comentário.
diz o povo e tem razão: nenhuma borracha apaga
1. APRENDIZADO VALIOSO
tal dívida do coração.
Na escola do bem viver esta lição aprendemos:
7. PAIXÃO DESVAIRADA
quem nunca sabe perder
Toda paixão desvairada
acaba ganhando menos.
é onda que vira espuma; é ponte que leva à nada
2. AMOR ROMÂNTICO
e traz à coisa nenhuma.
Amando alguém com fervor é bom a gente lembrar:
8. PERDA DE AMOR
só quem ama o próprio amor
Neste mundo enganador
jamais sofre por amar.
ninguém queira se enganar: só não perde um grande amor
3. AUDÁCIA
quem sabe também amar.
A audácia é temerária, disto todos nós sabemos,
9- DIGNIDADE
mas pode ser necessária
Quem possui dignidade
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nunca a perde até morrer; o resto da realidade pouco importa se perder.
15. PRESSA
10. ECOLOGIA
A pressa que é inimiga,
Devastando a Natureza,
da perfeição no ditado,
o homem em grande loucura,
jamais será, há quem diga,
com a enxada da afoiteza
amiga de um apressado.
cava a sua sepultura. 16. PERDA DE SONHO 11. VANTAGEM
Do passado resgatamos
Sempre no mundo a mensagem
lembranças com emoção,
da vida vem nos dizer,
mas os sonhos que enterramos
que nunca leva vantagem
jamais ressuscitarão! ...
quem só vantagem quer ter. 17. POSSIBILIDADE 12. CAMINHO DIFÍCIL
Quem nasce em berço de ouro
Caminhando na neblina
pode viver na sarjeta,
jamais se fere em abrolhos,
voando como besouro
quem enfrenta a sua sina
com asas de borboleta.
sem ter neblina nos olhos. 18. ALERTA 13. UTILIDADE
Se queres o bem por divisa
Quem não sabe dizer sim,
guarda contigo esta crença:
e gosta de dizer não,
todo amor que escraviza
como trigo é tão ruim
não é virtude, é doença.
que nunca chega a ser pão. 19. ROMANTISMO EXAGERADO 14. CEGUEIRA
Quem só vive de quimera,
Em penumbra ou plena luz,
quando tem os seus amores,
não sabemos enxergar,
termina em uma tapera
o bem que o amor produz
ou fugindo de credores.
se bem sabemos amar.
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20. VIDA
papel com pensamentos e trovas.) Vá embora, se quiser encher o saco encha este aqui de
Todos nesta vida temos
idéias que ensinem a ser feliz. (Estremece, cai, levanta-se.) Não adianta me ameaçar!
que somente o bem fazer;
Enquanto fazia seu discurso de justiceiro pervertido, eu raciocinava com lógica: cheguei à
se isto não aprendemos
conclusão de que você simplesmente não existe, nem pode existir, Por quê? Por quê?...
precisamos aprender.
Vou lhe dizer o porquê:
(Dirigindo-se à plateia com ar professoral). É isto aí. Estes versos que vocês
infinitamente bom, não criaria um grande SACANA como você, destinado a arrastar as
Primeiro porque tudo que existe foi criado por DEUS, e DEUS, sendo acabaram de ouvir pertencem a um gênero popular de poesia chamado TROVA. Foram escritos sem pretensão literária, e eu os escolhi pelo seu valor didático. (Vira-se para o espaço vazio do lado direito.) O quê???... Uma criança?... Engraçado, até hoje eu nunca tinha visto Espírito de criança... Você é um anjo?... Não, não é?... É apenas uma criança igual as outras?... O que deseja de mim, meu filho?... Brincar de
pessoas para a perdição. Segundo porque DEUS, sendo sábio, se tivesse criado você por descuido já teria se arrependido. Terceiro porque DEUS, sendo todo-poderoso, com tal arrependimento já teria feito você deixar de existir.
que? Brincar como? Jogar peteca?... Soltar pipa?... Ping-Pong?... Tudo bem, vamos lá...
(Dirige-se para a platéia com pose vitoriosa.) Ele sumiu. Desfez-se como pura
(Comporta-se como se estivesse fazendo o jogo de brincadeira.) Agora fazer de conta que
alucinação. Viram como saber pensar resolve qualquer problema e nos torna felizes?
você é um gato e eu um cachorro? Esta não!... Mas como?... Não chore, se o problema é
Agora batam palmas para mim que o espetáculo acabou.
este vou tentar... (Imita o cão.) Agora devo ser uma criança, depois um pato, um passarinho e um macaco? (Imita tais animais.) O quê? Está não!!! Eu não sou cantora nem bailarina... Não chore de novo, vou ver se consigo. (Canta e dança como quiser e puder, até que, subitamente, vira-se para o outro lado, o esquerdo.) Não !!! Não !!! Não !!! Meu DEUS do céu, não é possível!!! Vade retro, Satanás!!! (Tenta correr, não consegue, tal a sua tremedeira.) O Senhor é mesmo o Diabo? Valei-me, meu DEUS, meu santíssimo Pai Eterno, meu Criador amado, meu supremo Senhor. (Ajoelha-se, reza.) Está rindo de que, da minha reza ou do meu pânico?... Não?... Está rindo de si mesmo porque perdeu a viagem? Esta eu não compreendi... Perdeu a viagem por quê?... Ah, é? No Inferno o senhor não deseja gente subversiva como eu?... Além dos que acumulam riqueza somente em benefício próprio, e dos perversos, só entra no Inferno os corruptos de toda espécie, menos os que são pobres, é?... Por que esse privilégio para os pobres?... Ah, sim, o senhor é muito esperto, realmente pobre só se torna corrupto quando é corrompido por quem possui dinheiro ou poder político. Gostei desse seu raciocínio, é lógico e justo, estou até começando a simpatizar consigo, apesar, me perdoe, da sua apavorante feiúra. Minutos atrás eu seria incapaz de imaginar que o senhor ria... Ri sempre, é?... Jamais chora?... Faz sentido: o riso é produto da inteligência que pode ser boa ou má, o pranto é que brota do sentimento... Bem, eu agradeço a sua visita, mas agora se mande daqui, me deixe em paz que estou trabalhando. (Pega o saco de pano utilizado para levar à plateia pedaços de
FIM