Luís Thiago Freire Dantas Mariana Panta (Organizadores)
NEAB Pesquisas de Acadêmicos/as do Afirmação na Pós: Contranarrativas e descolonização
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná
Luís Thiago Freire Dantas Mariana Panta (Organizadores)
NEAB Pesquisas de Acadêmicos/as do Afirmação na Pós: Contranarrativas e descolonização
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná
Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Ricardo Marcelo Fonseca VICE-REITOR Graciela Bolzón de Muniz PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO Eduardo Sales de Oliveira Barra COORDENAÇÃO DE ESTUDOS E PESQUISA INOVADORAS NA GRADUAÇÃO Laura Ceretta Moreira NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS Lucimar Rosa Dias COORDENAÇÃO EDITORIAL Paulo Vinicius Baptista da Silva CONSELHO EDITORIAL Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC Dr. Alex Ratts – UFG Dr. Alexsandro Rodrigues - UFES Dr. Ari Lima – UNEB Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG Dra. Conceição Evaristo – Escritora Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA Dra. Eliane Debus – UFSC Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA Dr. José Endoença Martins – FURB Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESC Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS BIBLIOTECA CENTRAL – COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
N338
NEAB : pesquisas de acadêmicos/as do Afirmação na Pós : contranarrativas e descolonização /Luís Thiago Freire Dantas, Mariana Panta (organizadores). – Curitiba : Ed. da UFPR/NEAB, 2017. 269 p. : il. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-6627810-1 1. Universidades e faculdades – Pesquisa educacional. 2. Cultura afro-brasileira – Estudo e ensino (Superior). 3. Negras – Formação profissional. 4. Negros – Educação – Brasil. 5. Ciência política – Brasil. 6. Educação – Brasil – Estudos interculturais. 7. Relações raciais – Brasil. I.Dantas, Luís Thiago Freire. II. Panta, Mariana. III. Título. IV. Universidade Federal do Paraná. Núcleo de Estudos AfroBrasileiros. CDD 378.81 CDD 978.81 Bibliotecária: Paula Maschio – CRB 9/921
© Luís Thiago Freire Dantas & Mariana Panta PESQUISA DE ACADÊMICOS/AS DO AFIRMAÇ`˜ÃO NA PÓS: CONTRANARRATIVAS E DESCOLONIZAÇÃO Coordenação Editorial Paulo Vinicius Baptista da Silva Projeto gráfico e Editoração Barbara do Nascimento Ramos Lucas Garcia da Silva Revisão Ana Paula do Nascimento dos Santos Samanta Radaelli Bassotto Wagner Luís Barbosa
Este livro foi impresso na Imprensa Universitária da Universidade Federal do Paraná para o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR, em Outubro de 2018.
Sumário APRESENTAÇÃO PREFÁCIO O QUE AS VOZES E OS SILÊNCIOS DIZEM: Carreiras Profissionais e Trajetórias de Mulheres Negras Andressa Ignácio da Silva Sumário
O ESTADO DA ARTE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA UNIVERSIDADE 9 PREFÁCIO FEDERAL DO PARANÁ DE 2007 A 2012 Edicelia Maria dos Santos de Souza APRESENTAÇÃO
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SOBRE A FORMAÇÃO PRÉ-ACADÊMICA NA UFPR
A CIÊNCIA POLÍTICA NO BRASIL A PARTIR DA PERCEPÇÃO DOS EDITORES DE SETE 40 O QUE AS VOZES E OS SILÊNCIOS DIZEM: PERIÓDICOS NACIONAIS QUALIS A1, A2 E B1 Carreiras Profissionais e Trajetórias de Mulheres Fabiane Helene Valmore Negras LIMA BARRETO E O HOMEM DE DENTES
70 O ESTADO DA ARTE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR NEGROS E CABELOS AZUIS FEDERAL DO QUILOMBOLA NA UNIVERSIDADE Jules Ventura SilvaA 2012 PARANÁ DE 2007
FILOSOFIA DESDE A ÁFRICA: Descolonização 94 A CIÊNCIA POLÍTICA NO BRASIL A PARTIR e Contranarrativa DA PERCEPÇÃO DOS EDITORES DE SETE Luís Thiago Freire Dantas QUALIS A1, A2 E B1 PERIÓDICOS NACIONAIS
148 LIMA BARRETO E O HOMEM DE DENTES NEGROS E CABELOS AZUIS 180 FILOSOFIA DESDE ÁFRICA: Descolonização e Contranarrativa 204 RELAÇÕES RACIAIS E SEGREGAÇÃO URBANA: Trajetórias negras na cidade 240 NAÇÃO, IGUALDADE E MODERNIZAÇÃO: Uma visão construtivista dos argumentos em torno das políticas de ações afirmativas (2010) 266 SOBRE AS(OS) AUTORAS(RES)
Prefácio
Inicio o prefácio desta coletânea proposta pelos professores Paulo Vinicius Baptista da Silva e Josafá Moreira da Cunha manifestando meu sentimento de gratidão pelo convite. Sinto-me comprometida, no sentido mesmo de dever, com o campo político e dos estudos das relações raciais, sobretudo aqueles vinculados à problemática das ações afirmativas e de enfrentamento das desigualdades sociais. A instituição aonde atuo desde a década de noventa – Fundação Carlos Chagas – tem estado à frente de iniciativas pioneiras com programas de dotações, como o que estimulou no período de 1978 a 1998 pesquisas sobre mulheres e relações de gênero e, posteriormente, a partir de 2003, o Programa Bolsa (IFP – Internacional Fellowship Program), dirigido à inserção de negras/os e indígenas na pós-graduação; o I Programa de Dotações para Mestrado em Direitos Humanos no Brasil (2003-2009), que ao realizar uma chamada aos programas de Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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pós-graduação de Direito por meio de um edital em 2003, estabelecia entre os critérios para submissão de propostas a adoção da multidisciplinaridade na construção de sua estrutura curricular, além de uma perspectiva que considerasse a exclusão social, as questões de gênero, raça e etnia. De modo a não restringir a discussão sobre a sub-representação de grupos na pós-graduação a aspectos teóricos e filosóficos, o edital também elegeu como critério de avaliação das propostas a inclusão de ações afirmativas para o processo de seleção. O edital buscou estimular o processo de inclusão ao mesmo tempo em que provocava as universidades a enfrentarem essa questão na pós-graduação. Em um momento da história das políticas de ação afirmativa ainda lutávamos por firmá-las na graduação. Visando de algum modo consolidar nas universidades brasileiras a experiência construída pelo Programa Bolsa, a coordenadora desta iniciativa, Fulvia Rosemberg (in memoriam), articulou sabiamente uma nova estratégia de ação afirmativa, com o apoio da Fundação Ford. Em 2010, nascia o Programa de Dotações para formação pré-acadêmica para seleção na pós-graduação, conhecido como Equidade. Foram financiadas propostas de 15 universidades, que já dispunham de experiências de ação afirmativa na graduação, para oferecer cursos de formação pré-acadêmica para pessoas que provinham dos mesmos segmentos sociais focalizados em ação afirmativas na graduação, visando a sua preparação para processos seletivos em programas de pós-graduação. A Universidade Federal do Paraná foi uma destas instituições apoiadas. A iniciativa de formação pré-acadêmica, coordenada pelo prof. Paulo Vinicius, foi muito bem-sucedida e este sucesso narrado na Apresentação desta Coletânea ilustra o impacto de políticas de ações afirmativas na pós-graduação e
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os seus desafios. Dentre os desafios cabe ressaltar a necessidade de ampliar a inserção da população negra nas demais áreas de conhecimento, hoje concentrada na área de humanas, mais afeita às políticas de ação afirmativa. Uma breve análise sobre o perfil racial de estudantes de graduação e pós-graduação nas áreas das exatas e tecnológicas denuncia a persistência de uma desigualdade racial em áreas consideradas privilegiadas de produção de conhecimento. Um outro desafio diz respeito à necessidade de fomento para pós-graduandas negras e pós-graduandos negros terem ampliada a possibilidade de uma formação acadêmica em instituições internacionais. Isso implica em apoio desde o início de uma trajetória acadêmica, envolvendo inclusive formação em uma segunda língua. É sabido que a oportunidade de uma vivência internacional tem forte impacto em uma trajetória acadêmica, ampliando o acesso a recursos para pesquisa e inserção em espaços de decisão, inclusive nos processos de revisão e de editoração de revistas científicas, o que contribuiria para impactar nos processos de seleção de artigos para publicação. As políticas afirmativas são fundamentais, mas não podem ser encaradas como ações autossuficientes. As relações sociais são complexas e a produção de desigualdades imbricada nestas relações é diuturnamente reproduzida – tal como o “ciclo de desvantagens cumulativas” tratado por Carlos Hasenbalg – em razão de um sistema cujos critérios de avaliação e de progressão não consideram as iniquidades raciais nas trajetórias individuais. Diante desse cenário e do atual contexto de fortes restrições aos investimentos públicos na educação e de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro em todas as áreas, a presente Coletânea, fruto de um árduo trabalho de persistência e de compromisso de dois professores, que Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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tendo passado pelo Programa Bolsa (Paulo Vinicius) e pelo Programa Equidade (Paulo Vinicius e Josafá) sabem não ser possível aquietar-se diante das persistentes desigualdades e discriminações raciais. É desta experiência e sensibilidade própria que ambos professores sabiam da relevância de acolher a iniciativa dos discentes Luís Thiago Freire Dantas e Mariana Panta de organizar essa coletânea. E uma das maneiras de avançar na constituição de um campo de saber é justamente disseminando o conhecimento produzido por pesquisadoras/es negras/os em um programa de pósgraduação público, de uma Universidade Federal. É deste lugar, alçado por direito e mérito, que é preciso lançar mão das inquietudes que moveram perguntas de pesquisa tão interessantes e significativas e apresentá-las não somente para outras e outros futuros pós-graduandas/os, mas para pessoas que como eu tem o dever de aprender sobre as histórias de resistência, de luta, de produção de conhecimento ainda pouco ou nada conhecidos pela sociedade branca. Aprendi muito com os escritos científicos de: Andressa Ignácio da Silva sobre as mulheres negras paranaenses, nascidas entre 1950 e 1970, que tiveram um papel ativo em movimentos políticos, culturais e sociais, em especial os feministas e antirracistas. Edicelia Maria dos Santos de Souza que nos apresenta um estado da arte sobre os estudos científicos relacionados à Educação Escolar Quilombola, realizados na Universidade Federal do Paraná (UFPR) no período de 2007 a 2012, sem dúvida um material de referência para novos estudos sobre a educação quilombola. O escrito de Fabiane Helene Valmor que nos traz uma interessante contribuição sobre a Ciência Política a partir da percepção dos (ex)editores de sete periódicos nacionais Qualis A1, A2 e B1 (RBCS, BPSR, RBCP, Revista de Sociologia Política, Lua Nova, Opinião
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Pública, Dados) colhida durante entrevistas realizadas entre 2014 e 2015. Considerando a atuação da CAPES e do SciELO nos critérios de avaliação dos periódicos científicos, esse texto contribui para uma problematização a partir de um campo de saber, a disseminação dos saberes produzidos e os riscos de uma crescente seletividade. Com Jules Ventura Silva somos convidados a conhecer um pouco mais do fascinante Lima Barreto, escritor mulato, pobre e alcoólatra que nos deixou a marca de sua personalidade sofrida em sua literatura. Luís Thiago Freire Dantas nos provoca a questionar a localidade do pensar filosófico tomando como referência a Grécia e os conceitos gerados como se as inquietudes humanas fossem as mesmas, desconsiderando as especificidades e peculiaridades dos diferentes povos e de seus lugares. Mariana Panta analisa os processos de segregação espacial urbana da população negra em Londrina, alguns dos seus desdobramentos, sobretudo aqueles relacionados aos estigmas territoriais, à discriminação racial e às violências. E finalizando o livro, Viritiana Aparecida de Almeida e Nelson Rosário de Souza contribuem com uma análise sobre os argumentos de nacionalidade, raça, igualdade presentes nas arguições de especialistas em ações afirmativas (AA) e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) durante a Audiência Pública, ocorrida no período de 3 a 5 de março de 2010. Parabenizo às autoras e aos autores dos escritos científicos pelo cuidado e pela seriedade de suas pesquisas e cumprimento-as/ os pela iniciativa de reuni-los nesta Coletânea. Sandra Unbehaum Fundação Carlos Chagas
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APRESENTAÇÃO SOBRE A FORMAÇÃO PRÉ-ACADÊMICA NA UFPR Paulo Vinicius Baptista da Silva1 Josafá Moreira da Cunha2
Estamos chegando do chão dos quilombos, estamos chegando no som dos tambores, dos Novos Palmares nós somos, viemos lutar.
(Milton Nascimento) 1 Dr. em Psicologia Social, pesquisador do CNPQ, pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (NEAB/UFPR) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR). 2 Dr. em Educação, membro eleito do Conselho Executivo da Society for Research of Adolescence (2012-) e da International Society for the Study of Behavioral Development (2014-), representante eleito de Estudantes e Jovens Profissionais no International Affairs Committee da Society for Research of Child Development (2013-), Social Media Editor da International Society for the Study of Behavioral Development (2010-), pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná (Neab/UFPR) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR).
Optamos por colocar como apresentação deste livro uma análise, revista, que publicamos anteriormente, numa coletânea da Fundação Carlos Chagas (FCC)3, sobre o projeto que deu origem a este livro. No artigo, realizamos uma descrição e uma análise do processo de formação pré-acadêmica para a pósgraduação realizada pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UFPR, no âmbito do Projeto Equidade na PósGraduação. Com financiamento pela Fundação Ford, foi iniciado pela FCC em 2011, com a promoção do Concurso de Dotações para a Formação Pré-Acadêmica: Equidade na Pós-Graduação. Neste edital foram aprovados 13 projetos de diferentes universidades selecionadas, entre as quais a Universidade Federal do Paraná (UFPR), para a realização de programa de formação preparatória para a pós-graduação. Este livro nasceu do convite a jovens pesquisadores/as que realizaram a formação pré-acadêmica propiciada pelo NEAB-UFPR e posteriormente iniciaram seus cursos de mestrado e doutorado. O livro foi organizado por dois estudantes da primeira turma de formação, Luís Thiago Freire Dantas e Mariana Panta, que realizaram convites a outros/ as mestrandos/as e doutorandos/as que haviam participado da formação preparatória da pós-graduação. Ao convite conseguiram atender, considerando os prazos e as demandas da pós-graduação em curso de cada um/a, somente uma parcela dos discentes. Um grupo que, como ficará explícito ao leitor, apresenta contribuições relevantes para suas respectivas áreas. A demanda por políticas educacionais focalizadas que 3 ARTES, Amélia; UNBEHAUM, Sandra e SILVÉRIO, Valter (orgs.) Ações Afrimativas no Brasil (Vol. I). Experiências bem sucedidas de acesso na pós-graduação. São Paulo: Cortez, 2016.
atendessem aos interesses da população negra e operassem para sua emancipação atravessaram o século XX, tendo tomado forma de demanda por políticas de acesso ao ensino superior nas reivindicações da Convenção Nacional do Negro Brasileiro, realizada em São Paulo e Rio de Janeiro em 1945 e 1946. Mas sua entrada na agenda de discussão de políticas educacionais ocorreu somente no final dos anos 1990, com início de execução nos anos 2000. Boa parte da argumentação que deu sustentação às propostas de políticas de equidade étnico-racial foram baseadas, para além das compensações a discriminações ocorridas no processo histórico, nas formas de discriminação sistematicamente presentes no cotidiano das populações negra e indígena no país e nos enormes níveis de desigualdade entre os grupos de raça/cor presentes e consistentes nas diversas faixas de renda da população (identificados em indicadores sociais de todas as áreas: renda, trabalho e emprego, educação, saúde, saneamento, moradia, etc.). Desde a tabulação dos dados do Censo de 1980, os dados oficiais e o tratamento mais elaborado dado por demógrafos e cientistas sociais dos institutos de pesquisa governamentais, das universidades e dos movimentos sociais apontam o fosso que separa a população branca, localizada no topo, de pretos e pardos (negros) na base, assim como a precariedade a que estão submetidas as populações indígenas. Análises dos indicadores educacionais revelaram que as desigualdades entre brancos de um lado e negros (pretos e pardos) de outro eram altas, persistentes ao longo das décadas e aumentavam fortemente nas sucessivas etapas após o ensino fundamental (HASENBALG, 1988; SILVA, 1988; HASENBALG; SILVA, 1990; JACCOUD; BEGHIN,
2002; TELLES, 2003; PAIXÃO, 2003; ROSEMBERG, 2004). Além disso, as desigualdades educacionais não podem ser explicadas simplesmente pela menor escolaridade e renda dos pais (SILVA, 2001; JACCOUD; BEGHIN, 2002). Tomamos para esta análise as tabulações e interpretações realizadas por Fúlvia Rosemberg (2013a)4 a partir dos dados do Censo Demográfico de 2010. Ao passo que os negros (pretos e pardos) tiveram 48,0% de índice de conclusão no ensino fundamental, os outros grupos de raça/cor (brancos, amarelos e indígenas agrupados)5 tiveram 62,2%. Essas diferenças tornam-se mais acentuadas nas demais etapas de ensino: no ensino médio, a conclusão foi de 30,1 para negros e 45,4 para não negros (mais de 50% a mais); no ensino superior, de 5,3 para negros e 15,6 para não negros (quase 200% a mais) e na pós-graduação, de 0,2 para negros e 0,9 para não negros (450% a mais). Mesmo com algum impacto das políticas afirmativas no ensino superior para a população negra desenvolvidas desde 2002, a proporção de concluintes brancos foi 3,0 vezes maior na graduação e 4,5 vezes na pósgraduação (ROSEMBERG, 2013a). Paralelamente ao início das políticas afirmativas na graduação, que geraram (e geram ainda) um amplo debate público no Brasil – muitas vezes focado demasiadamente nas cotas raciais em exames vestibulares –, a discussão e o início de algumas experiências de políticas de equidade na pós-graduação foram ganhando corpo. Um exemplo é o Concurso Negro 4 A análise dos dados do Censo Demográfico de 2010 foi apresentada por Fúlvia Rosemberg na Conferência de Abertura da XXV SEPE – Semana de Ensino Pesquisa e Extensão do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, na cidade de Curitiba, em 26 de setembro de 2013. 5 A autora apresentou em sua conferência os dados comparativos de microdados do Censo Demográfico de 2010 para negros (pretos e pardos) e “não negros” (brancos, amarelos e indígenas). Amarelos e indígenas representam um percentual muito pequeno da população e indicadores antagônicos, indígenas com indicadores educacionais mais baixos e amarelos mais altos, ou seja, tendem a se equilibrar e o impacto sobre o conjunto de brancos, já diminuto, tende a ser mais reduzido.
e Educação, operado pela Associação de Pesquisa e PósGraduação em Educação (Anped), que formou em mestrado e doutorado jovens pesquisadores negros/as. Tem significativa participação nesse cenário o Programa Internacional de Bolsas da Fundação Ford, operado pela Fundação Carlos Chagas (FCC) (ROSEMBERG, 2013b), que concedeu 343 bolsas para mestrado e doutorado a negros e indígenas, especialmente das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e que tiveram poucas oportunidades educacionais. Na fase final de execução deste programa, que recebeu avaliações muito positivas, foram realizadas gestões para que o governo brasileiro o assumisse como política de promoção de igualdade racial. Assim, foi formatado um programa de bolsas para a pós-graduação que chegou a ser oficialmente anunciado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mas somente a parte relativa à iniciação científica (PIBIC Ação Afirmativa) foi implementada. A análise a seguir é focada no programa preparatório para pós-graduação executado pelo NEAB-UFPR no âmbito do programa Equidade na pós da FCC. O objetivo da formação pré-acadêmica, redigido para a proposta (ainda no processo da candidatura), foi “capacitar alunos e alunas beneficiados por projetos de inclusão social e racial, tanto egressos da UFPR como de outras instituições de ensino superior em nível de graduação, para concorrer em processos seletivos de programas de pós-graduação (mestrado e doutorado), em condições de equidade”. Além disso, a proposta previa uma articulação com o Plano de Metas de
Inclusão Racial e Social da UFPR, o que veio a se desenvolver nas atividades do projeto. A UFPR adotou desde 2004/2005 políticas afirmativas, com reserva de 20% das vagas para negros/as, 20% para estudantes de escola pública, 10 vagas suplementares para estudantes indígenas e 1 vaga por curso para pessoas com deficiência. A preparação desses estudantes beneficiários das políticas afirmativas na graduação para seu ingresso na pós foi prevista e executada nas formações ministradas.
PERFIL DE CANDIDATOS/AS E ALUNOS/A
O perfil definido esteve em consonância com a proposta do Projeto Equidade, especificamente: Pertencer a um ou mais dos grupos que, sistematicamente, tem tido acesso restrito ao ensino superior, ou seja: a) provir de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas ou educacionais; b) identificarse como negro/a ou indígena; c) egresso/a de programa de ação afirmativa no ensino superior, na modalidade de cotas ou bônus; [...]. (BRASIL/UFPR, 2013) Foi realizada a formação em três diferentes turmas, inicialmente programadas para contarem com 25 alunos/as
cada uma, posteriormente com vagas ampliadas na segunda e terceira turma, perfazendo um total de 95 vagas. As inscrições e a seleção foram realizadas em dois diferentes períodos em 2013, por meio de divulgação de edital, aberta (site da UFPR
e do Neab-UFPR, chamada na UFPR TV) e dirigida (listas de e-mails do Neab-UFPR, da Pró-Reitoria de Graduação da UFPR, do Consórcio de Neabs, dos sindicatos de profissionais da educação do estado e do município de Curitiba, de redes sociais como o Facebook). Inscreveram-se para a seleção 166 candidatos, a maioria de mulheres, maior percentual de negras6 (pretas e pardas), idade mais proeminente entre 31 e 40 anos e maioria absoluta de Curitiba e Região Metropolitana, de acordo com os dados dispostos no Quadro 1. Quadro 1. Perfil de candidatos/as e alunos/as 6 Utilizamos no artigo o agrupamento das categorias de raça/cor “pretos” e “pardos” na categoria “negros/as”, como é usual por parte de movimentos negros e da pesquisa brasileira da área de relações raciais.
No Gráfico 1 está disposta a distribuição por sexo de candidatos/as e alunos/as. Uma primeira questão diz respeito ao elevado percentual, se comparado o perfil da população do estado e do país, de mulheres, que foram 70% das candidatas e com percentual que regride ligeiramente a 67% das aprovadas. A análise aqui se aproxima bastante da realizada por Rosemberg e Andrade (2008) para as candidatas do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford: observa-se maior presença feminina que masculina no ensino superior; mulheres têm apresentado melhor aproveitamento escolar também nesse nível; essa tendência é mais acentuada entre pretos e pardos que entre indígenas. Em análise sobre o Plano de Metas de Inclusão Racial e Social da UFPR, Cervi (2013) destaca como mulheres negras, em especial, ampliam sua presença em cursos de graduação por meio do sistema de cotas raciais.
Entre os/as cursistas que frequentaram a formação, podemos identificar três grupos principais: 1) grupo mais jovem que cursou a universidade ou o mestrado nos anos anteriores ao pré-pós, muitos dos quais egressos da UFPR e da Universidade Estadual de Londrina (UEL), beneficiários de políticas afirmativas e com experiência de iniciação científica durante a graduação; 2) ativistas do movimento negro; 3) docentes da educação básica, dentre os quais mulheres brancas eram a maioria.7 Portanto, o expressivo percentual de mulheres que fizeram a seleção e os cursos se situa justamente nesse grupos de mulheres brancas (de meia-idade), docentes da educação básica. Novamente cabe convocar à análise as contribuições de Rosemberg e Andrade (2008), que encontraram dados similares: uma primeira hipótese seria a maior proatividade de mulheres para se inscreverem ao cumprirem um dos critérios do edital (provir de famílias que tiveram poucas oportunidades educacionais) mesmo não cumprindo na íntegra os requisitos (identificar-se como negro/a ou indígena). Além disso, o fato de se tratar de um programa de políticas afirmativas pode ter maior adesão de mulheres por sua condição de discriminação na sociedade. No entanto, aponta-se aqui uma contradição: apresentando melhores indicadores educacionais tanto na educação básica quanto na superior, as mulheres também ocuparam mais fortemente as vagas para a formação voltada à pós-graduação, sendo o fenômeno um exemplo da assincronia dos eixos de desigualdade de raça e gênero conforme análise 7 Um fator complementar que pode ter influenciado o perfil de candidaturas é a modalidade da oferta – superintensiva, com aulas diárias em turno integral. Embora o curso tenha proporcionado recursos de apoio (vale-transporte, acesso a refeição subsidiada no restaurante universitário, prova gratuita de língua estrangeira), potenciais participantes teriam de arcar com as demais despesas pessoais no período do curso.
de Rosemberg e Andrade (2008). Mais uma vez aqui talvez se destaquem, ao menos na população de mulheres negras, os dados de maior acesso de mulheres à graduação, no caso da UFPR (CERVI, 2013). A distribuição de raça/cor dos/as candidatos/as apresentou 70 (42%) pessoas brancas, 40 (24%) pretas e 49 (30%) pardas (54% de negras, conforme dados do Gráfico 2). Por um lado, o público-alvo de pretos, pardos e indígenas estava explícito no edital e a procura por pessoas brancas (principalmente de mulheres) trazia alguma surpresa. Por outro lado, o grupoalvo esteve sobrerrepresentado em relação à distribuição do estado do Paraná, onde a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013 apontou 68% de pessoas brancas8 e 31% de negras, sendo 28% de pardas e 3% de negras. Em relação à Região Metropolitana de Curitiba (RMC), local de onde provêm 88% dos/as candidatos/as, na referida Pnad 2013 apresentou 76% de brancas, 20% de pardas e 3% de pretas. Contrastando os dados, o percentual de candidatas brancas esteve 26 pontos abaixo da população branca do estado e 34 pontos abaixo da RMC. Ao passo que o percentual de pessoas negras esteve 23 pontos acima de seu percentual no estado e 31 em relação à RMC, sendo o maior aumento relativo à população preta, cujos 3% na população subiram para 24% entre os/as candidatos/as.
8 Tabulações realizadas no Neab-UFPR com base nos microdados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por Kelvy Nogueira (2015), para uso em sua dissertação de mestrado.
No público de aprovados/as, observou-se aumento das tendências verificadas nos/as candidatos/as, com a redução de pessoas brancas para 33% (31 pessoas) do total, paralelamente ao acréscimo de pardas em 33% e o acréscimo maior de pretas, que chegaram a 29%. A aprovação de pessoas brancas para realizarem o curso deve-se ao uso de critérios de seleção diversificados, nos quais o perfil do público-alvo foi considerado com três variáveis (trajetória escolar e econômica, autoclassificação étnico-racial, participação em programas de política afirmativa), a cada uma delas atribuído um peso que as tornou significativas, mas não determinantes únicas. Outros pontos considerados foram a diversidade de áreas de formação dos/as aprovados/as, a prioridade para quem já tentou seleção e não foi aprovado/a, a disponibilidade para cursar as disciplinas e o conhecimento sobre seleção para pós-graduação: área e tema definidos, o projeto de pesquisa delineado e as informações básicas sobre processo seletivo. Com o uso de tais critérios, chegamos ao público selecionado para as formações, que priorizou as minorias étnico-raciais.
Na Pnad de 2013, os indígenas representaram somente 0,15% da população do Paraná e 0,14% da população da RMC. Portanto, representam um número bastante tímido da população do estado. Cabe notar que o Paraná realiza há mais de uma década – a partir da Lei Estadual n. 13134, de 18 de abril de 2001, e da Lei Estadual n.14995, de 9 de janeiro de 2006 – políticas afirmativas específicas para promoção do acesso de indígenas ao ensino superior. Por meio dessas políticas, ocorre reserva de vagas para indígenas em cursos de graduação em todas as universidades estaduais paranaenses e também na UFPR, que designa anualmente 10 vagas suplementares a candidatos/as oriundos de povos indígenas. Apesar disso, a ausência de candidatos/as pertencentes a etnias indígenas no curso de formação pré-pós indica a necessidade de fomento a iniciativas específicas para acesso desses/as estudantes à pós-graduação. Outro ponto relevante foi a participação de um aluno cego e um aluno surdo no curso, o que agregou ao perfil de setores vitimizados e contribuiu para o estabelecimento de um grupo ainda mais representativo do ponto de vista da diversidade. O discente surdo foi aprovado em curso de mestrado em Educação na UFPR9 e o discente cego foi aprovado no curso de mestrado em Filosofia da UFPR e também num concurso público da mesma universidade, passando a ser servidor dessa instituição. O perfil de formação de candidatos/as e de alunos/as esteve bastante centrado na área de Humanas, especialmente da Educação, seguida pelas áreas de Linguística, Letras e Artes e Sociais Aplicadas, com pouca procura por graduados 9 Vale destacar as dificuldades relacionadas à acessibilidade para o atendimento efetivo a esses estudantes. No caso do estudante surdo, as dificuldades relacionadas à disponibilidade de intérpretes de libras encontradas no pré-pós se perpetuaram durante o curso de mestrado.
das áreas de Exatas e da Terra, Biológicas, Engenharias, Saúde e Agrárias. Na seleção foi utilizado o critério de priorizar candidatos/as de outras áreas, mas quando ponderados com os demais critérios o percentual de aprovados/as foi praticamente o mesmo de candidatos/as, respectivamente 20% e 21% (Quadro 1). Entre esses grupos, a área de Sociais Aplicadas é o destaque. Portanto, faltou ao processo maior entrada nas áreas chamadas “s duras” das ciências, o que ocorre também com outros programas de ações afirmativas (ROSEMBERG, 2013b).
A PROPOSTA CURRICULAR LEVADA A TERMO
No que se refere à estrutura curricular da formação, ela foi planejada com três disciplinas, cada uma delas com carga de 60 horas: Leitura e Produção de Textos Acadêmicos, Língua Estrangeira (podendo os discentes optarem por Inglês ou Francês) e Metodologia e Projeto de Pesquisa (incluindo orientação pré-acadêmica). As aulas foram realizadas entre agosto de 2013 e junho de 2014. As disciplinas de Língua Estrangeira e de Leitura e Produção de Textos Acadêmicos foram ministradas em parceria com o Centro de Línguas e Interculturalidade (Celin) da UFPR. Para os discentes era facultativa a escolha entre língua inglesa ou francesa (em função da possibilidade de candidatos a doutorado que já tivessem realizado prova em uma de tais idiomas no mestrado). Os cursos de língua estrangeira foram voltados para o uso
instrumental da língua e bastante focados na leitura, já que a proficiência nessa destreza possibilita acesso a bibliografia internacional, muitas vezes não disponível em português. É importante sublinhar que um curso de 60 horas não oferece condição de proficiência em língua estrangeira para quem não tem nenhum conhecimento anterior. Observou-se grande heterogeneidade entre os discentes: alguns em estudos iniciais; outros, ao contrário, com alto nível de conhecimento, inclusive que já atuavam como docentes de língua estrangeira na educação básica. Cabe também informar que há heterogeneidade nos diversos cursos de mestrado e doutorado da própria UFPR. Alguns cobram a proficiência em leitura como critério de seus processos seletivos e candidatos/as que não cumprem esse requisito são desclassificados. Em outros, a prova de língua não faz parte do processo seletivo e seus/ suas alunos/as podem realizar as provas de proficiência no decorrer do curso. Os cursos de Leitura e Escrita de Textos Acadêmicos foram organizados de forma também bastante dirigida ao preparo dos/as discentes para as seleções, trabalhando com diferentes gêneros discursivos, mas focando principalmente a redação dos projetos de pesquisa para a seleção. De forma similar aos cursos de língua estrangeira, a estratégia foi a organização pedagógica voltada para atividades individuais e diversas tarefas eram solicitadas de acordo com as produções e a proficiência apresentadas por cada aluna/o. A avaliação dos discentes em relação a essa parte da formação foi bastante positiva nos questionários que responderam ao final dos cursos, em reuniões de avaliação oral realizada ao final de cada disciplina e em questionário de avaliação externa aplicada em egressos que foram aprovados na pós-graduação.
A metodologia utilizada, o trabalho das professoras e a contribuição das disciplinas para a formação foram bastante elogiadas. A avaliação no contexto da disciplina de Metodologia de Pesquisa revelou que, em sua maioria, os participantes do curso tinham, inicialmente, conhecimento e experiência limitados quanto ao processo de produção científica e de pesquisa. Dessa maneira, o programa desse segmento do curso voltou-se para a apresentação de elementos básicos da estrutura do projeto de pesquisa. Foram também trabalhadas questões práticas relacionadas ao processo de seleção de programas de pós-graduação, tomando exemplos de editais e de sites de programas de pós-graduação. Também foram dadas orientação a respeito do cuidado na leitura dos editais, foram ministrados conteúdos específicos e workshop voltados para a realização de entrevistas, privilegiando programas e áreas temáticas destacadas por participantes do curso. Essa parte da formação também foi avaliada positivamente pela maioria dos/as discentes, mas num grau mais baixo que a anterior. Em acordo com instrumento respondido pelos/as discentes, os pontos altos do curso foram o acesso e a socialização de conhecimentos, a bagagem de pesquisa, o domínio dos temas e a disponibilidade dos professores e o aprendizado e a preparação para os processos seletivos. O ponto deficiente apontado foi a oferta do curso em modelo intensivo com aulas em dois turnos, o que, além de ser muito cansativo, dificultava a realização de tarefas propostas pelos/ as professores. O formato intensivo foi modificado nas ofertas da segunda e terceira turma, atendendo a essa demanda no decorrer do processo. Outro ponto importante foi a taxa de evasão de 50%, visto que dos 95 aprovados somente 43
concluíram a formação. Por outro lado, a taxa de aprovação foi relevante, uma vez que houve 16 aprovações até maio de 2015, número que aumentou para 19 até fevereiro de 2016, chegando a 36% do total de concluintes da formação. Em relação aos projetos individuais dos/as participantes, talvez em virtude da modalidade intensiva adotada para a oferta, o acompanhamento da maior parte dos/as cursistas limitou-se à orientação de aspectos fundamentais dos projetos, particularmente no que diz respeito à definição do problema de pesquisa e à sistematização de planos para a revisão de literatura. No entanto, um segmento de participantes que já havia desenvolvido preliminarmente esboços do projeto de pesquisa encontrou no espaço do curso oportunidades para refinar propostas direcionadas à pós-graduação. Cabe destacar que a coordenação avaliou essa parte com muitas ressalvas, mas os/as discentes a julgaram bastante positivamente. Vale ainda notar que o acompanhamento de mentores pré-inserção na pós-graduação, proposto como componente importante no processo de formação, foi limitado em parte pela necessidade de aprofundamento dos anteprojetos por meio de leituras complementares e de outras atividades. Além disso, os/ as docentes envolvidos/as na disciplina de Metodologia ofertaram suporte complementar aos/às participantes (leitura e correção de projetos, sugestões de modificações e de leituras) mesmo após a conclusão das disciplinas do curso. Outro ponto positivamente avaliado foram algumas das formas de apoio complementar oferecidas: auxílio-transporte (disponibilizado somente para a primeira turma em função de dificuldades operacionais de realizar esse tipo de gasto com recursos do contrato); gratuidade do restaurante universitário nas datas de realização dos cursos (valores pagos
pela Pró-Reitoria de Graduação da UFPR como forma de contrapartida institucional); gratuidade nas provas de línguas realizadas pelo Núcleo de Concursos da UFPR (extensão da gratuidade que existe para os discentes de mestrado e doutorado da UFPR); acesso a bibliotecas. Ainda um ponto a ser notado foi a abertura da discussão sobre a execução de políticas afirmativas na pós-graduação da UFPR. Na sessão de abertura da primeira turma, o reitor da UFPR e o pró-reitor de Pesquisa se manifestaram publicamente em favor das formas de ação afirmativa e da política de inclusão étnico-racial na pós-graduação da UFPR. Tais posicionamentos possibilitaram a abertura de processo de discussão na universidade.
A PARTICIPAÇÃO DE NEGRAS/OS NOS PROCESSOS DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO
Um dos pontos relevantes dos processos de desenvolvimento de políticas afirmativas é a participação nas coletividades de pessoas que representam grupos sociais minoritários. Esses indivíduos são importantes para os grupos e para as instituições porque agregam outros saberes. Os conhecimentos sobre as condições de subalternidade, sobre as formas de violência e discriminação a que são submetidos, sobre seus grupos de pertença e origem via de regra aportam novos conhecimentos à universidade que têm potencial emancipatório, visto que os conhecimentos em geral negados pela academia passam a se fazer presentes (GOMES, 2011). No caso da pós-graduação,
esse potencial supera a presença dos corpos, por trazerem suas experiências, agruras, faltas, limitações e crises, assim
como seus júbilos, satisfações, felicidades e realizações. Essas experiências múltiplas alimentam tanto as relações quanto as pesquisas, na medida em que as definições de problemas de pesquisa serão cravadas pelas experiências de tais indivíduos. A metáfora utilizada por Paixão (2013, p. 318) –“a senzala interpreta o Brasil” – ganha potência, contornos mais expressivos e concretude. No que se refere aos/às negros/ as e suas possibilidades de inserção na pesquisa, os objetos e as abordagens das dissertações e teses desenvolvidas pelos/ as egressos/as apontam tal potencialidade. Observemos no Quadro 2. uma listagem de títulos (provisórios) de cinco
teses e sete dissertações desenvolvidas por egressos/as de nossa formação. Quadro 2. Títulos provisórios de teses e dissertações desenvolvidas por egressos/as da primeira turma de formação
O que se observa no títulos é o predomínio de temas dos estudos afro-brasileiros, que, em nossa interpretação, relacionam-se com as vivências e as trajetórias dos/as pesquisadores/as. A presença diminuta de negros/as nas universidades faz com que os temas de interesse direto desse grupo social também estejam ausentes da pesquisa. O que se observa nesses exemplos é uma forte inserção da temática que se articula com os interesses e também com os conhecimentos e as experiências dos/as doutorandos/as e mestrandos/as. Como forma de exemplificar mais detalhadamente esse aspecto, apresentamos uma síntese de uma dissertação de mestrado que investiga como a percepção de discriminação pode estar relacionada ao desempenho acadêmico de adultos emergentes negros no contexto do ensino superior. Os resultados do trabalho, que contou com a participação de 168 alunos do ensino superior, indica que estudantes negros relatam com maior frequência incidentes de discriminação racial, sendo alvos de agressões relacionais com maior frequência que seus pares brancos. Além disso, estudantes que foram vítimas de discriminação relatam sentir-se menos seguros em suas instituições de ensino. Vale notar ainda que o estudo amplia a base de conhecimento sobre a qualidade de vida de estudantes no ensino superior, sublinhando a discriminação racial como um fator que pode prejudicar a qualidade de vida e o desempenho acadêmico.
Além da relevância dos resultados dessa pesquisa para os estudos sobre ações afirmativas e para os estudos afrobrasileiros, destaca-se a importância da formação de novos quadros para aprofundar a compreensão do tema, ao considerar que a inserção dos/as próprios/as orientadores/ as de pós-graduação na temática se materializa a partir do processo de orientação acadêmica desses estudantes. Num outro exemplo, um egresso surdo desenvolve uma pesquisa sobre bullying e surdez no contexto escolar, num caso que é particularmente representativo, tendo em vista que o orientador passa a estudar libras para comunicar-se de modo mais efetivo durante o processo de orientação acadêmica. Ambos os exemplos trazem um importante ponto de inflexão. Ao se abrirem possibilidades para representantes de minorias sociais participarem de processos de produção de conhecimento, os sujeitos, que carregam seus dilemas e suas inquietudes, podem colocá-las, como nos exemplos citados, no centro da pesquisa, o que proporciona um crescimento pessoal não só para os/as alunos/as, mas também para orientadores/ as e docentes, além de um enriquecimento institucional e das áreas de conhecimento. No campo das relações étnico-raciais, se abrem possibilidades de que a senzala interprete e interpele o Brasil (PAIXÃO, 2013, p. 318). Este livro tem um argumento central que é a luta e resistência por uma pós-graduação inclusiva e construída pela participação efetiva das minorias sociais. A forma de manifestação deste argumento é por meio da expressão dos egressos do pré-pós em seus escritos científicos. Os artigos que seguem fazem parte de um esforço de se apropriar das formas de fazer pesquisa a partir do ponto de vista de novos sujeitos. A proposta é apresentar a perspectiva de jovens
pesquisadores/as, quase todas/os negros/as, que trazem para a pesquisa pontos de vista múltiplos, a partir dos discursos que ecoam em sua formação, os acadêmicos e, em especial, os “subalternos”, os forjados em suas experiências de vida, em seus dilemas, agruras, e também nas suas inspirações, graças e luzes. Inspirado na análise de Luís Thiago Dantas sobre a filosofia africana, o conjunto de artigos tem uma meta implícita de oferecer contranarrativas, em busca de um projeto de descolonização.
Referências
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NEAB O QUE AS VOZES E OS SILÊNCIOS DIZEM: Carreiras Profissionais e Trajetórias de Mulheres Negras Andressa Ignácio da Silva
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O QUE AS VOZES E OS SILÊNCIOS DIZEM: Carreiras Profissionais e Trajetórias de Mulheres Negras
Andressa Ignácio da Silva
Resumo
O presente trabalho busca uma abordagem qualitativa das dinâmicas do trabalho em suas imbricações de raça e gênero. Para tanto tomou-se como objeto de análise as trajetórias de mulheres negras residentes em Curitiba e Região Metropolitana. A pesquisa teve como grupo focal mulheres negras com idade entre quarenta e sessenta anos, que se auto identificam como negras e tiveram participação em movimentos sociais. São analisadas neste trabalho cinco entrevistas realizadas com mulheres negras selecionadas a partir destes critérios. Buscou-se compreender as dinâmicas de interação vivenciadas pelas entrevistadas em suas trajetórias profissionais, bem como compreender que tipos de estratégias elas constroem de enfrentamento a situações de conflito e opressões. Observou-se que todas as entrevistadas no início de suas trajetórias profissionais atuaram como trabalhadoras domésticas, em acordo com as formas de inserção no mercado de trabalho de mulheres já descritas pela literatura sobre gênero, raça e trabalho no Brasil. A partir da análise das narrativas das entrevistadas conclui-se ainda que o acesso à educação superior e o ingresso na carreira pública estão entre as estratégias empreendidas por estas mulheres para
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enfrentar as dinâmicas interseccionais de discriminação no mercado formal de trabalho. Entretanto, observa-se que na carreira pública, a despeito do discurso oficial de meritocracia e impessoalidade, a ascensão a cargos e promoções destas mulheres negras é influenciada pelo racismo, discriminação e sexismo. Verifica-se dificuldades de acesso a cargos de chefia, funções gratificadas, bem como promoções dentro das instituições em que atuam. Palavras-chaves: raça; gênero; trabalho; subjetividade.
Abstract
This work seeks a qualitative approach to labor dynamics in their overlapping of race and gender. For this analysis took as object trajectories of black women living in Curitiba and metropolitan region. The research was focus group black women aged between forty and sixty, who self-identify as black and had the participation of social movements. They are analyzed in this work five interviews with black women selected from these criteria. He sought to understand the interaction dynamics experienced by the interviewees in their professional careers; and understand what types of strategies they build coping with situations of conflict and oppression. It was observed that all interviewed at the beginning of their professional careers acted as domestic workers; in accordance with the inclusion of forms in women’s labor market already described in the literature on gender, race and labor in Brazil. From the analysis of the narratives of the interviewees it Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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concluded also that access to higher education and entry into the public career are among the strategies undertaken by these women to face the dynamic intersectional discrimination in the formal labor market. However it is observed that the public career, despite the official discourse of meritocracy and impersonality the rise of positions and promotions of these black women is influenced by racism, discrimination and sexism checking difficulties in accessing management positions, gratified functions and promotions within the institutions where they work. Keywords: race; gender; work; subjectivity.
Introdução
A história social do trabalho no Brasil está marcada por uma exclusão: o trabalhador escravizado (LARA, 1998). De acordo com a autora o processo de “transição” e de “formação do trabalho livre” constitui-se como um marco na historiografia brasileira. Para a autora tal período consolidou-se como um marco cronológico que separa as obras sobre a escravidão dos estudos sobre o trabalho. A composição da classe trabalhadora assalariada no Brasil foi basicamente de imigrantes. A entrada de imigrantes no Brasil teve início antes da abolição, já em 1808, com entrada de um contingente significativo até 1950. Cabe ressaltar que no período de 1850 a 1888, como aponta Manuel Diégues
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Júnior (1964), a imigração está imbricada com o processo de abolição da escravidão e à política de branqueamento da população. No Brasil a valorização do homem branco e sua cultura não levaram à construção de um pensamento racista sistematizado ou a um projeto de nação pautado na superioridade racial de forma explícita ( JACCOUD, 2008, p.46). Porém um conjunto de estereótipos e ideologias sobre os negros amparavam e reforçavam a divisão hierárquica da sociedade. A abolição não significou o abandono destes estereótipos. Pelo contrário, coincidindo com a República, houve na abolição o intercruzamento entre ideais republicanos e liberais e as formulações racistas. Neste contexto as desigualdades raciais são naturalizadas e as diferenças tomadas como determinantes das potencialidades e capacidades dos grupos racializados. Neste sentido, é que negrxs são identificadxs como degeneradxs, pouco inteligentes e “inservíveis” ao projeto de nação republicano. Diversos autores, sob perspectivas diferentes, desenvolvem importantes estudos sobre a inserção da população negra na sociedade brasileira pós-abolição. Destaca-se, neste conjunto, as formulações de Fernandes (1978) que rompem com a ideologia da democracia racial para explicitar a marginalização e desigualdades sociais como resultantes da escravidão. O mito da democracia racial, segundo o autor, mascara os efeitos da escravidão que atingem xs negrxs. A produção de dados quantitativos sobre desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho pode ser considerada “recente”, já que somente a partir do final da década de 1950 o mercado de trabalho e as taxas de desemprego passam a constar em anuários estatísticos. Estes anuários, porém, Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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em geral, limitavam-se à distinção entre desempregados e ocupados que formam a chamada população economicamente ativa. Somente a partir de 1967, com a realização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, são alterados os dados de coleta. Porém, apenas em 1977 a PNAD passa a coletar dados desagregados por sexo (DEDECCA, 1998). Cabe ainda ressaltar que tal critério só passa a integrar a PNAD em 1987; a pesquisa de Orçamento Familiar em 2002 e a Pesquisa Mensal de Emprego apenas em 2003 (IBGE, 20101). Diante deste quadro, o presente trabalho buscou conhecer as experiências dos sujeitos para compreender como as mulheres negras constroem estratégias de enfrentamento ao racismo, sexismo e diferentes formas de opressão e discriminação no mercado de trabalho.
Sujeitxs, subjetividades e modernidade: reflexões a partir das teorias antirracistas e do feminismo negro
O final dos anos 50 e início dos anos 60 é um período considerado por Adelman (2009) como de profundas transformações sociais e culturais, ao qual se soma o surgimento de novos movimentos sociais que tencionam fortemente o campo acadêmico. Neste contexto, segundo a autora, as teorias críticas (feministas, pós-coloniais e raciais) tencionam as grandes narrativas produzidas pela 1 BRASIL/IBGE. Síntese de Indicadores Sociais. Uma análise das condições de vida da população brasileira. Brasília: IBGE, 2010.
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ciência, gerando alterações e mudanças de paradigmas. Nesse contexto a sociologia passou por um movimento que visou revincular ciência e experiência. Com isso, os sociólogos das novas gerações buscaram: Por um lado, buscavam uma nova compreensão para o velho problema da sociologia – a relação entre “estruturas” e “atores”; por outro, abriam uma nova discussão sobre o tipo de ator que povoa a “sociedade pós-industrial” – novos grupos, novas relações de poder que constroem um cenário de interação e conflitos sociais no qual a antiga dicotomia marxista entre burguesia e proletariado revela-se, no mínimo, muito simplista (ADELMAN, 2009, p.79). Entre as novas compreensões estão as de Giddens (1991), que propõe análises que fujam da produção de grandes narrativas totalizantes, que busquem explicações gerais para a modernidade. Em contrapartida sugere que as análises da modernidade concentrem-se nas “novas” experiências e nos sentidos a elas atribuídas pelos sujeitos. Bem como nas “novas” formas de ser, agir, pensar e comportar-se. Este trabalho buscou uma compreensão das dinâmicas do mundo do trabalho, por uma perspectiva interseccional e com base no ponto de vista e nas experiências dos sujeitos. Cabe ressaltar que compreendo a interseccionalidade, nos termos postos pela feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw, qual seja: Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (CRESHAW, 2002, p. 177). Fanon (2008), por sua vez, reforça a centralidade dos temas da subjetividade e dos complexos psíquicos provocados pelo colonialismo e pelo racismo. Neste contexto as contingências do processo de formação de identidade nos sujeitos modernos são compreendidas por Fanon em relação às dinâmicas coloniais e raciais. Para este autor o colonialismo impõe uma inviabilidade na trajetória de reconhecimento e construção da identidade para certos grupos. Neste processo, o racismo é compreendido por Fanon tanto como um produto quanto como um processo pelo qual os colonizadores desarticularam forças dos colonizados, destruindo seus valores, sistemas de referência e panorama social. O autor afirma ainda que o racismo é apropriado, na sociedade moderna, como elemento que torna possível o empreendimento colonial. Além disso, a posição de Fanon permite perceber o quanto essa prática de negação da humanidade não se restringiu aos territórios colonialmente ocupados, mas se configurou também como eixo estruturante
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da própria modernidade. Um primeiro aspecto do processo de racialização é a epidermização dos lugares e posições sociais, ou seja, a raça passa a ser definidora das oportunidades e barreiras vividas pelos indivíduos ao longo de sua vida (FANON, 2008). Neste sentido, considero que ouvir histórias de vida de mulheres negras permite compreender as questões e sentidos nos processos de construção de subjetividades na modernidade, tendo em vista que as experiências expressam as circunstâncias materiais, históricas e sociais que as fundamentam e reconhecendo que a experiência é uma interpretação e, ao mesmo tempo, carece de interpretação (SCOTT, 1991, p. 779 apud OLESEN, 2006, p. 231).
“Nossos passos vêm de longe”: trajetórias e experiências de mulheres negras no Paraná
Diante dos objetivos desta pesquisa, qual seja acessar as experiências dos sujeitos, utilizou-se a história de vida como metodologia de pesquisa. Utilizou-se a perspectiva do “enfoque biográfico” de Daniel Bertaux (1999) no qual a história de vida é a única fonte de pesquisa. Buscou-se nas narrativas como os indivíduos expressam suas impressões das interações sociais e das diversas formas de sociabilidade (ECKERT, 1996). Sendo assim, os temas são as categorias “nativas” e questões que foram colocados pelos sujeitos da pesquisa que deram pistas para compreender como estas mulheres negras constroem suas subjetividades. Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Foram utilizados três critérios para seleção de entrevistadas. O primeiro critério foi o “identitário”. Sendo assim, foram selecionadas para esta pesquisa exclusivamente mulheres que se autodeclarem negras. O segundo critério utilizado foi geracional. Foram selecionadas mulheres nascidas entre 1950 e 1970. A opção por mulheres nascidas neste período se dá por dois motivos. O primeiro é o fato de mulheres que têm hoje entre 40 e 60 anos terem maior possibilidade de acúmulo de experiências e reflexões sobre suas trajetórias de vida. O segundo é o fato de suas trajetórias estarem inseridas em período de importantes mudanças e transformações sociais que forjam novas relações e levam a novas formas de compreender o mundo. O terceiro critério foi a opção por mulheres negras paranaenses que em algum momento de suas vidas tenham atuado em movimentos políticos, culturais e sociais, em especial os feministas e antirracistas. Neste trabalho são analisadas cinco entrevistas. Apresenta-se a seguir uma sinopse das trajetórias destas mulheres, com foco em suas carreiras profissionais.
Teresa : 2
Teresa nasceu em 1962, na cidade de Mafra em Santa Catarina. Atualmente trabalha na Secretaria de Saúde do 2 Nome fictício escolhido pela pesquisadora em alusão à Teresa de Benguela, líder quilombola que viveu no atual estado do Mato Grosso durante o século XVIII. Foi esposa do líder do Quilombo do Piolho (ou do Quariterê), nas proximidades da atual Cuiabá. Com a morte do marido, Teresa se tornou a rainha do quilombo e, sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas, sobrevivendo até 1770, quando o quilombo foi destruído e sua população morta ou aprisionada.
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Paraná. Formada em enfermagem pela Universidade Federal do Paraná, possui especialização em Enfermagem e obstetrícia pela mesma instituição. É mestra em Saúde Pública pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Atualmente Teresa reside na cidade da Lapa, no Paraná, cidade de origem de toda sua família, mais especificamente na localidade chamada Restinga . Filha de pai e mãe negrxs, vem de uma família com treze irmãos. Seu pai era mestre de obras e prestava serviços à Rede Ferroviária na construção de linhas férreas e estações. Sua mãe, de acordo com a entrevistada, era do lar, trabalhando também em uma pequena horta de subsistência na qual os filhos ajudavam. Até os catorze anos de idade Teresa morou na Lapa, onde realizou seus estudos em um colégio de freiras na cidade. Aos quinze anos foi morar em Curitiba, empregando-se como doméstica na casa de uma família, onde também morava. Seu salário era usado para pagar as mensalidades de um colégio particular no qual, com auxílio da patroa, conseguiu uma bolsa de estudos. Neste colégio concluiu o ensino médio e se preparou para o vestibular. Já formada, atua como enfermeira em Curitiba e realiza diversos concursos. Em 1990 é convocada e toma posse como técnica na 2a Regional de Saúde da Secretaria de Estado de Saúde, onde trabalha e atualmente coordena a área técnica de Saúde da Mulher e de Saúde Integral da População Negra. Após conquistar a vaga no serviço público é que Teresa dá seguimento a seus estudos, fazendo mestrado e doutorado. 3
3 Localidade que compreende a comunidade remanescente quilombola da Restinga. Formado por descendentes de escravizados na Fazenda Santa Amélia de Hipólito Alves de Araújo que libertou os escravizados anteriormente à Lei Áurea, dando a estes as terras nas quais trabalhavam. A comunidade passou a viver e trabalhar livre nessas terras a partir do início do século XIX.
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Miriam
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Nasceu em Maringá, no Paraná. Tem cinquenta e um anos, reside em Curitiba há mais de trinta anos. Filha de pai negro e mãe branca, relata uma infância difícil. Sua mãe é definida pela filha como “do lar”. Sendo que o pai era o responsável pelo sustento da família. Além do pai, da mãe, Miriam tinha oito irmãos. Miriam afirma inicialmente que suas lembranças da escola são ótimas, destacando em seguida o preconceito enfrentado na escola, que em seu caso, segundo a mesma, é dobrado pelo fato dela ter uma deficiência, já que Miriam não tem o braço esquerdo. A partir dos quinze anos, com o falecimento do pai, Miriam trabalhou como doméstica para contribuir no sustento da família. Além disso, atuou por cerca de um ano como professora de séries iniciais. Nesta época sua mãe também trabalhava como empregada doméstica, na casa de um diretor da Secretaria de Transportes do estado do Paraná. Através da indicação do patrão de sua mãe, aos dezessete anos Miriam começa a trabalhar nesta secretaria de estado como recepcionista. Já neste trabalho, Miriam concluiu o ensino médio estudando no período noturno. Aos trinta e cinco anos de idade Miriam concluiu o curso superior de Administração em uma faculdade privada com o objetivo de conseguir progredir na carreira, alcançando melhores cargos e salários. Atualmente Miriam permanece como servidora pública concursada do estado do Paraná, na mesma secretaria, hoje designada Secretaria de Infraestrutura e Logística, contando com trinta e quatro anos de trabalho. 4
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Nome fictício escolhido pela entrevistada.
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Princesa Negra
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Nasceu em Curitiba em 1970. Estudou durante todo o ensino fundamental em escolas públicas na região sul de Curitiba onde ficou até a oitava série, indo em seguida fazer magistério. Neste período, entre os dez e quinze anos de idade, Princesa Negra começou a trabalhar como babá, cuidando de duas crianças na mesma casa em que sua mãe trabalhava como doméstica. Aos dezessete anos, através de uma tia, Princesa Negra tem contato pela primeira vez com o movimento negro, onde atuou ativamente até 1994. Nesta época Princesa Negra já trabalhava como professora na educação infantil em uma escola particular. As questões vivenciadas no movimento negro influenciaram diretamente na perspectiva de Princesa Negra sobre seu trabalho e papel como educadora. A trajetória profissional de Princesa Negra está centrada na educação, na rede pública de educação básica e em escolas conveniadas de educação especial. Formada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina, Princesa Negra prestou concurso, foi aprovada, há dois anos tomou posse como Pedagoga no quadro próprio do magistério da Secretaria de Estado de Educação, atuando desde então em uma escola de educação especial.
Chica
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5 Nome fictício escolhido pela entrevistada. 6 Nome fictício escolhido pela entrevistada em função de seu nome/apelido de capoeira dado em alusão a Chica da Silva, escravizada alforriada que viveu em Diamantina, Minas Gerais durante a segunda metade do século XVIII. Casada com um contratador dos diamantes, atingiu posição de
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Nasceu em 1963, em Londrina/PR. Aos três anos de idade veio para Curitiba. Filha de pai e mãe negrxs. Seu pai atuou como marceneiro quando jovem e depois seguiu carreira como funcionário dos Correios onde atuou como carteiro até se aposentar. Sua mãe trabalhava em casa e costurava. A escola é descrita por Chica como um local de sofrimento e medo, onde vivenciou muitos preconceitos, ameaças e violências. Nesta época a dedicação aos esportes foi uma estratégia desenvolvida por Chica para se destacar positivamente. Ao chegar ao ensino médio, Chica opta por um curso técnico de Contabilidade e no último ano faz diversos concursos. Um ano após concluir o ensino médio, Chica entra no curso de Estudos Sociais nas Faculdades Espírita. Ainda no início da faculdade, Chica é aprovada em um concurso público do INSS e toma posse como agente de portaria, atuando atualmente na mesma instituição como técnica administrativa.
Dandara
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Dandara nasceu em 1969, em Jaciara/MS. Seu pai, homem negro paulista, atuou como agricultor na região de Florestópolis, Paraná. Sua mãe, branca, do lar, teve doze filhos, destaque, alcançou prestígio na sociedade local e usufruiu das regalias privativas das senhoras brancas da época durante o apogeu da exploração de diamantes. 7 Nome fictício escolhido pela pesquisadora em alusão a Dandara, esposa de Zumbi dos Palmares. Embora faltem informações sobre a vida de Dandara, sabe-se que ela atuou ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas de resistência aos ataques ao Quilombo Palmares, estabelecido no século XVII na Serra da Barriga, região de Alagoas.
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dos quais oito morreram. Após a Geada Negra, a família migrou para Curitiba indo morar no município de Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Sua trajetória escolar foi toda em escolas públicas de Pinhais. Na sétima série do ensino fundamental, já com doze anos, Dandara começa a trabalhar cuidando de crianças e passando roupas, atividade que é conciliada aos estudos no período da noite. No ensino médio, Dandara faz ensino técnico em Contabilidade e aos dezenove anos consegue seu primeiro emprego com carteira assinada. A partir de 1987, Dandara atua com seu pai nos movimentos de moradia, coordenando ocupações e durante três anos administrou uma creche comunitária em uma destas ocupações. Em 2000 filia-se ao PT e em 2004 candidata-se e é eleita vereadora. Em seu primeiro mandato, Dandara era a única mulher entre os onze vereadores do município. Durante o segundo mandato, foi eleita Presidente da Câmara Municipal e contou com outra mulher também eleita vereadora. Após candidatar-se a um terceiro mandato e não ser eleita, é indicada a um cargo comissionado na prefeitura do município. Cargo no qual permanece até hoje, chefiando uma equipe de técnicos em um dos setores da Secretaria de Assistência Social. A partir desta experiência e das tensões de coordenar técnicos de nível superior possuindo menor qualificação, Dandara ingressa em 2013 no curso de Serviço Social, no qual está no último ano. Gênero, raça e trabalho: oportunidades, contingências e estratégias No Brasil, como apontam Lima, Rios e França (2013), o ingresso e participação de mulheres negras no mercado de trabalho se dá de forma significativa no trabalho doméstico. Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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No caso das entrevistadas nesta pesquisa o trabalho doméstico foi a porta de entrada para o mercado de trabalho formal. Teresa, Miriam, Chica, Princesa Negra e Dandara atuaram no início de suas trajetórias profissionais como trabalhadoras domésticas. Este pode ser compreendido como uma forma de acessar recursos financeiros que possibilitariam levar a cabo as estratégias de ascensão social. Como no caso de Teresa, para qual o emprego como doméstica é a forma encontrada para avançar nos estudos. Aos quinze anos Miriam já trabalhava como diarista para ajudar a mãe no sustento da família. Já Princesa Negra atuou como babá na mesma casa na qual sua mãe trabalhava. Nota-se que as narrativas sobre o período em que trabalhavam como domésticas está bastante marcada por lacunas, falta de detalhes e silêncios. Fato que pode ser atribuído ao valor “negativo” e de pouco prestígio socialmente atribuídos a esta atividade. Outro aspecto observado são as percepções das entrevistadas sobre os preconceitos e imaginários sobre a raça/gênero e o trabalho doméstico observados por Chica ao analisar as diferentes reações dos pais de seus alunos à sua presença: Trabalhei na parte de creches, cuidando de crianças. Na creche da Santa Efigênia, o primeiro lugar. Houve, sim, dificuldades, de mães, algumas vinham [...] que eu deixar, houve dois lados da história; houve dificuldades de mães deixarem quando viam que eu era negra, aos filhos deles, mas muitas quando viam que eu era negra, já gostavam porque talvez olhassem pra mim e vissem,
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comparasse com babás, né? (Entrevista coletada pela autora) A cor da pele de Chica marca uma ambiguidade, que foi interpretada de formas diferentes. Por um lado, ser negra foi interpretado como algo negativo inicialmente pelos pais. Por outro, a cor da pele foi também interpretada como algo positivo, como se fosse uma “credencial” ou demarcasse sua “competência histórica” para atuar nesta função. Neste último caso, pode-se inferir que tais interpretações poderiam estar baseadas em estereótipos raciais e de gênero. Considero que neste caso há uma sobreposição de representações de gênero e de raça, que estabelece o cuidado como tarefa feminina. Por outro lado, as concepções de heranças escravistas e racistas, que identificam as atividades braçais e de menor prestígio à população negra. Nos casos de Miriam e Princesa Negra observa-se, além do trabalho doméstico, uma carreira típica do ingresso de mulheres no mercado de trabalho: o magistério. Porém, como destaca Dávila (2006), há nas políticas públicas de expansão e reforma do sistema educacional, em especial no século XX, uma forte influência das ideologias raciais. Diante disso, o autor destaca a exclusão resultante da racialização das políticas educacionais, o que é verificável pela drástica diminuição da presença de professoras negras nas escolas cariocas após 1940. O autor demonstra uma substituição das mulheres negras que ocupavam esta função por mulheres de classes “mais favorecidas”. Segundo o autor, o objetivo de formar uma “elite de professores” e os métodos e critérios usados para tal levaram à exclusão de professorxs negrxs. Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Dentre as entrevistadas, podemos observar que concentramse em profissões que em geral gozam de menor prestígio e salários. Bem como concentram um grande número de mulheres: Teresa é formada em Enfermagem, Princesa Negra é pedagoga, Chica tem licenciatura em Estudos Sociais, Miriam é graduada em Administração e Dandara está no último ano de Serviço Social. Embora, como aponta Heringer (2006), a educação para as mulheres negras tenha sido vista como uma estratégia para a alteração das condições de subordinação, a escolha profissional é fruto dos campos de possibilidades disponíveis a estas mulheres, bem como das respectivas contingências. No caso de Teresa, que acessa o nível superior em instituição pública, percebe-se a escolha pragmática diante da análise das possibilidades oferecidas no mercado de trabalho. Pois, após ser aprovada em Biologia e cursar dois anos de faculdade, ela presta novo vestibular para o curso de Enfermagem. Tal decisão é orientada, segundo a entrevistada, pelas limitações da carreira de bióloga à licenciatura, campo que não era desejado por Teresa. Além disso, Teresa via na área de saúde maiores possibilidades de acesso ao serviço público. No caso de Chica, ela ingressa no ensino superior em uma faculdade privada, um ano após concluir o ensino médio técnico em Contabilidade. Tal trajetória de cursos técnicos de nível médio é recorrente nas trajetórias das entrevistadas, destacando-se o magistério e cursos na área administrativa. Cabe destacar que o ensino médio técnico é realizado em período em que já há inserção no mercado de trabalho. Como já citado, a inserção de todas as mulheres entrevistadas foi no trabalho doméstico ou de cuidado. Neste sentido pode-se compreender o ensino técnico de nível médio como
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uma estratégia de ascensão profissional, na medida em que proporcionaria a estas mulheres aumentar suas chances de ingresso no mercado formal de trabalho em cargos com melhor remuneração e maior prestígio que os até então ocupados. Nos casos de Princesa Negra e Miriam o acesso ao ensino superior e, portanto, a “escolha” da profissão ocorrem tardiamente, após os trinta e cinco anos de idade. Em ambos os casos pode-se relacionar as dificuldades de acesso e permanência no ensino superior à rotina de cuidados com os filhos, na medida em que ambas foram mães antes de ingressarem no ensino superior. Diferente de Chica que teve sua única filha após concluir a faculdade. Dentre as entrevistadas, quatro são funcionárias públicas concursadas, sendo que Dandara ocupa um cargo comissionado após sua não eleição para o terceiro mandato como vereadora. O serviço público pode ser compreendido como uma possibilidade para as entrevistadas “driblarem” os efeitos do racismo em suas trajetórias profissionais. Na medida em que o concurso público representaria um processo de seleção baseado no mérito e na maior qualificação. A estabilidade neste contexto adquire duplo sentido. Ela pode ser associada à segurança financeira, na medida em que há a garantia de emprego e pagamento sem as intempéries a que está sujeito o mercado privado. Da mesma forma pode representar uma maior segurança e menor probabilidade de perder o emprego diante de práticas racistas e discriminatórias de superiores hierárquicos. No caso de Chica, seu pai foi funcionário público é há o reconhecimento da importância e valor de tal atividade, bem como a percepção dos membros da família e orientação dos pais (em especial da mãe neste caso) Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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sobre o serviço público como estratégia para negrxs diante das barreiras do mercado de trabalho privado. Além disso, como citado anteriormente, a estabilidade na carreira profissional e certo status da carreira pública podem estar relacionados a valores aprendidos na socialização primária no meio familiar. O serviço público pode significar também uma possibilidade de ascensão social, em especial para membros de famílias pobres como no caso das entrevistadas. Tal opção pelo serviço público foi destacada por Fernandes (1978) como uma ocupação importante para a formação da “classe média” negra na década de 20 em São Paulo. Por fim, observa-se que entre as entrevistadas que são mães, a estabilidade da carreira pública representa a segurança no sentido de garantir os meios de sustento dos filhos. Destaco ainda que o serviço público representa a função mais alta e com melhor remuneração das trajetórias profissionais das entrevistadas que, como dito, iniciaram suas trajetórias em funções de baixa remuneração e prestígio. Sendo que nos casos de Teresa, Chica e Miriam, suas carreiras no serviço público representam a maior parte de suas trajetórias profissionais, estando Teresa e Miriam em vias de se aposentarem. Já Princesa Negra ingressa tardiamente como funcionária pública concursada, embora tenha atuado praticamente durante toda a sua carreira na educação pública do estado em regimes especiais de contratação. No caso de Dandara, sua ocupação atual é em um cargo comissionado de chefia, por indicação do prefeito do município, pertencente ao mesmo partido que Dandara. Estes dois últimos casos são, entre as entrevistadas, as que mais recentemente concluíram ou ingressam, como é o caso de Dandara, no ensino superior. No caso de Teresa (que possui doutorado, o maior nível de escolaridade entre as
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entrevistadas) nota-se que é após a conquista da vaga no serviço público que há possibilidades de continuar os estudos. Mais do que isso, a atuação profissional como técnica responsável pelas políticas de saúde da mulher e a partir de 2009 de saúde integral da população negra influencia na escolha de áreas e temas de pesquisa no mestrado e doutorado. Além disso, é determinante nessas escolhas o engajamento no ativismo feminista e no movimento negro. O aprimoramento profissional e a qualificação são também formas adotadas por todas as entrevistadas de progredir e conseguir promoções na carreira, visando melhores cargos e salários. Porém, percebe-se que, após o ingresso, outras limitações e barreiras se impõem à ascensão na carreira. Como aponta Osório (2006), gênero e raça são fatores distintivos nas possibilidades de progressão no serviço público. Segundo o autor, há diferenças entre negros e brancos quanto à probabilidade de ocupar cargos independentes de nível hierárquico. Porém, não entre homens e mulheres do mesmo grupo racial. Entretanto, considerando-se o nível do cargo, o autor indica que cargos mais elevados são marcados em geral pelas barreiras de gênero. O autor observa que cargos de maior prestígio em geral não são preenchidos com base no mérito ou na maior qualificação. Em geral há a permanência de relações e práticas pautadas na troca de favores, na lealdade e nos interesses políticos. O que favorece o acesso a cargos de maior nível a pessoas integrantes ou com relações com grupos de maior poder e prestígio. Notou-se que o racismo e o preconceito influem fortemente nas possibilidades de ascensão profissional e estão presentes de diferentes formas nas rotinas cotidianas no ambiente de trabalho das entrevistadas. Reproduzo a seguir um trecho que, Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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embora longo, é bastante explicativo das formas, neste caso bastante explícita de barreiras encontradas pelas entrevistadas de ascensão na carreira profissional. Nunca me deram cargo de chefe. Nunca. Até um fato interessante... eu sempre trabalhei nessa parte da Logística; mudouse o nome, o setor, mas eu sempre trabalhei nessa parte. Fazia uns dez anos já que eu estava na instituição e eu tinha competência, pelo fato de você estar trabalhando ali, automaticamente, pela repetição do serviço [...] sabe? Eu trabalhava com a minha chefe já fazia dez anos ali, então, tanto é que quando ela saía, eu assumia o setor plenamente, e o nosso setor ali cuidava do Paraná todo, não era Curitiba, nós éramos responsáveis por todo o estado, e eu tinha pleno conhecimento do Paraná todo. Então, quando essa minha chefe saiu, que ela foi se aposentar, tinha que ser indicada uma outra pessoa pra cuidar do setor; obviamente, quem estava do lado dela ao longo desses dez anos era eu, então, até pelo andar da carruagem, todo mundo já falou “não, a Chica vai ser a chefe do setor”. Nesse momento, eu só fiquei sabendo quando eu fui trabalhar no outro dia e vi uma pessoa estranha lá na sala, que tinham trazido do Rio Grande do Sul pra Curitiba, ela era alemã. Faço questão aqui de descrever a aparência dela: pele totalmente alva,
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branca, branca, branca; olhos azuis, azuis, azuis; loira, loira, loira; não sabia NADA do setor porque ela foi CONVIDADA pra morar em Curitiba e assumir a chefia. Então, quando eu abri a porta e vi aquela pessoa ali, eu cheguei e falei: “Bom dia!”, ela “Bom dia! eu falei: “Tudo bem? Eu posso ajudar?”, eu não sabia que ela era minha chefe porque ninguém me falou nada, aí ela falou assim: “ah, eu sou a nova funcionária”, aí eu falei: “prazer, e tal... você vai trabalhar onde?”, ela falou assim: “ah, não, eu tô substituindo a fulana”. Aquilo foi um choque pra mim, eu falei “ah, tá, seja bem-vinda! Com licença um pouquinho, eu já volto!” e fui falar com a chefe da Administração, que seria chefe dela, né. Eu cheguei e falei: “que palhaçada é essa!?”, aí eles falaram “Oi, Chica, bom dia!”, sorrindo pra mim ainda, todo mundo. “Gostou da nova chefe?”, sabe? Com aquele sorriso assim, pondo o cafezinho, olhando pra mim e sorrindo. Eu falei: “que palhaçada é essa!?”. Ele falou assim: “não, gostou da nossa chefe lá? Nossa! Cê viu só como ela é bem branquinha?”. (Entrevista coletada pela autora) A situação narrada por Chica é significativa das dinâmicas do racismo no Brasil que, como aponta Munanga (1999), manifesta-se a partir das características físicas/fenotípicas Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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dxs sujeitxs negrxs. Sob estas características produziram-se representações e ideologias que fundamentam práticas de preconceito racial. Estas, por sua vez, se institucionalizam e legitimam hierarquias e posições de poder. Considero importante destacar as situações de “invisibilidade” e estranhamento pelas quais passaram Teresa e Dandara decorrentes de funções que ocupavam em determinados momentos de sua trajetória profissional. No caso de Teresa, a partir da conquista de cargo de chefia na coordenação técnica das políticas de saúde da mulher em uma das regionais de saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Paraná. Em certa ocasião Teresa relata o questionamento e o fato de “não ser identificada” como chefe. Fatos semelhantes são relatados por Dandara em sua experiência nos dois mandatos como vereadora em um município da região metropolitana de Curitiba, sendo um deles como presidenta da câmara. Nota-se que a partir do acesso a certas posições as entrevistadas passam a participar de ambientes sociais frequentados majoritariamente por brancos, onde negrxs são raros. Nestes contextos fica nítida a condição de “outsiders” destxs sujeitxs em seus campos. Onde, apesar da qualificação (no caso de Teresa) e da legitimidade adquirida pela eleição (no caso de Dandara), isso não se reverte em maior integração aos seus campos ou em maior prestígio dentro deles. Tal fato alinha-se às dinâmicas do preconceito racial no Brasil, onde, entre outros aspectos, há uma relação entre cor de pele e condição social esperada. Como apontado por Almeida (2007) em estudos em que pediu que entrevistados atribuíssem qualidades e defeitos a indivíduos apresentados a partir de retratos. Neste estudo percebeu-se que qualidades
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positivas foram mais atribuídas a brancos, e negros em geral foram associados a características negativas. Embora, como aponta o autor, em certos casos a atribuição de valor esteja pautada em dados materiais (como, por exemplo, escolaridade, sobre o qual sabe-se que brancxs têm em geral mais estudo que negrxs) é nítido o preconceito na atribuição de valores como desonesto, preguiçoso e malandro que recaem fundamentalmente sobre negros. Além disso, o autor identificou uma associação entre profissões e grupos raciais, na qual brancos são associados a profissões de maior prestígio. Sendo que a grande participação de negrxs em certos grupos de ocupação de menor prestígio e remuneração leva à associação de determinadas ocupações como “tipicamente negras”, bem como a associação entre ser negrx e desempenhar funções subalternas. Estas associações entre ser negrx e desempenhar funções subalternas parecem ser uma base explicativa para as reações de estranhamento e questionamento sobre a presença de Teresa e Dandara em certos ambientes e funções. Além disso, ocorrendo de forma mais ou menos explícitas, o preconceito evidencia que após mais de cento e vinte anos de integração ao trabalho livre, negrxs são vistos com estranhamento em certos postos e funções de maior prestígio. Importante destacar como imbrincam-se, nestes casos, representações raciais e de gênero. Na medida em que Teresa e Dandara são, em muitos casos, questionadas sobre sua apresentação e aparência, denotando as exigências por se enquadrarem a certos padrões normativos de “feminilidade” ligados ao corpo, nestes casos, a roupa, como aponta Goffman (2005), é associada a estilos de vida, gostos, juízos de valores e padrões sociais, podendo a forma de vestir ser relacionada a Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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estigmas e compreendida como uma marca de inferioridade do indivíduo.
Considerações Finais
Nas narrativas analisadas o esforço, a auto exigência e o sacrifício são indicados como elementos que permitiram às entrevistadas “chegar até aqui”. Este lugar e/ou condição é vista como distinta ou relevante e ganha sentido na comparação com as suas condições sociais de origem, bem como com seus pares, ou seja, colegas, familiares e amigxs da mesma condição social, racial, de gênero e geração. As mulheres negras que entrevistei destacam-se ainda pela trajetória distinta de seus núcleos familiares. Na medida em que, em todos os casos, são entre os irmãos as que alcançaram maior escolaridade e remuneração, embora em algumas famílias outros irmãos tenham acessado o ensino superior. Observou-se a recorrência, como aponta literatura do trabalho como suporte, de geração, de identificação, honra e respeito como um valor importante na socialização de todas as entrevistadas. Neste sentido e diante das contingências do mercado de trabalho conclui-se que a carreira pública é uma estratégia de romper com os efeitos das opressões na trajetória das entrevistadas. A carreira pública tem importante papel na ascensão social observada pelas entrevistadas, no seu acesso à formação e qualificação profissional e no acesso a bens, como a casa própria, além de propiciar melhores condições de vida do
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que as da infância. Esta “ascensão” confere às entrevistadas papéis de liderança em suas famílias, sendo em muitos casos responsáveis por auxiliar irmão, sobrinhos e parentes próximos com ajuda, em especial, financeira. Entretanto, nota-se que após o ingresso na carreira pública as entrevistadas enfrentam barreiras às suas progressão e ascensão profissionais e vivenciam inúmeras situações de preconceito, discriminação e violências. Tais processos estão diretamente relacionados com a construção de suas identidades e subjetividades.
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NEAB O ESTADO DA ARTE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DE 2007 A 2012 Edicelia Maria dos Santos de Souza
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O ESTADO DA ARTE DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ DE 2007 A 2012 Edicelia Maria dos Santos de Souza
Resumo
O objetivo do presente estudo é analisar o estado da arte da produção científica desenvolvida no período de 2007 a 2012 na Universidade Federal do Paraná (UFPR) sobre a educação escolar dos quilombos situados em terras paranaenses. Para realizar este estudo, além de contemplar alguns aspectos da história dos quilombos no Brasil e no Estado do Paraná, utilizou-se como recurso metodológico a pesquisa documental empreendida no acervo físico e digital do Sistema de Bibliotecas da UFPR, através da identificação de monografias, dissertações, teses e livros sobre o tema de interesse desse estudo: a Educação Escolar Quilombola. Em virtude do número muito reduzido de trabalhos acadêmicos sobre essa temática, optou-se por abarcar no mapeamento trabalhos com outros recortes analíticos, vinculados a diferentes áreas de conhecimento, que tivessem como eixo temático central as Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs). Constata-se assim a escassez de estudos que abordam questões relativas à Educação Escolar Quilombola no Estado, indicando a necessidade de desenvolvimento de pesquisas específicas sobre o tema. Apesar disso, o Paraná é pioneiro
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no delineamento de uma política educacional direcionada às peculiaridades históricas, étnicas e culturais das CRQs, que precisam ser efetivadas e aprimoradas. Palavras-chave: Educação Escolar Quilombola; Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs).
Abstract
The objective of the present study is to analyze the state of the art of the scientific production developed in the period from 2007 to 2012 at the Federal University of Paraná (UFPR) on the school education of “quilombos” located in Paraná lands. In order to carry out this study, in addition to contemplating some aspects of the history of the “quilombos” in Brazil and in the State of Paraná, the documentary research undertaken in the physical and digital collections of the UFPR Libraries System was used as a methodological resource through the identification of monographs, Dissertations, theses and books on the topic of interest of this study: “Quilombola” School Education. Due to the very small number of academic papers on this subject, it was decided to include in the mapping works with other analytical cutbacks, linked to different areas of knowledge, whose central theme was the Remnant Communities of “Quilombos” (CRQs). Thus, there is a shortage of studies that address issues related to “Quilombola” School Education in the State, indicating the need to develop specific research on the subject. Despite this, Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Paraná is a pioneer in the design of an educational policy directed to the historical, ethnic and cultural peculiarities of CRQs, which need to be realized and improved. Key words: “Quilombola” School Education; Remaining Community of “Quilombo”. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos, seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.
Darcy Ribeiro - “O Povo Brasileiro”
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Introdução
A presente pesquisa é documental, pois, como afirmam Lakatos e Marconi (2007, p.176): A característica da pesquisa documental é que a fonte de coleta de dados está restrita a documentos, escritos ou não, constituindo o que se denomina de fontes primárias. Estas podem ser feitas no momento em que o fato ou fenômeno pesquisado ocorre, ou depois. Este estudo tem o objetivo de verificar quantos trabalhos científicos relacionados à Educação Escolar Quilombola foram realizados na Universidade Federal do Paraná (UFPR) no período de 2007 a 2012. Em virtude disso, foram analisados documentos científicos públicos de estudantes e pesquisadores da instituição que concluíram suas pesquisas tendo as comunidades quilombolas como tema de estudo. Essas pesquisas, produzidas em forma de monografia, dissertação, tese e livro, possibilitaram a investigação sobre como se encontra a Educação Escolar Quilombola no Paraná, considerando o período delimitado. Estes documentos nos conduziram a dados relacionados a um dos direitos adquiridos pelos quilombolas, sendo este o de ter uma educação escolar voltada à Lei 10.639/03 que, através do artigo 26-A, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/96, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos
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estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio do país . Convém lembrar que, para que esta Lei fosse formulada e implementada, houve ampla mobilização dos movimentos sociais negros que, historicamente, lutaram pela valorização e reconhecimento dos direitos fundamentais dos afrobrasileiros, especialmente no campo da Educação. Em conformidade com a Lei 10.639/03, o Parecer CNE/ CP nº 003/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, são documentos que traduzem alguns dos anseios dos movimentos sociais negros e que também se inserem, especificamente, no processo de ensino-aprendizagem da educação escolar quilombola. A partir disso, o poder público aponta uma providência para que os quilombolas tenham direito a uma educação dirigida às suas origens, de acordo com a realidade sociocultural e política deste grupo social. O parecer CNE/CP nº 003/04 se refere a: 8
Oferta de Educação Fundamental em áreas de remanescentes de quilombos, contando as escolas com professores e pessoal administrativo que se disponham a conhecer física e culturalmente a comunidade e a formar-se para trabalhar com suas especificidades (BRASIL, 2004, p. 25).
8 Cf. BRASIL, Ministério da Educação e Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2004.
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Assim, torna-se necessário refletir sobre o aprimoramento da Educação Escolar Quilombola por meio da efetivação de políticas públicas que visem à implantação de escolas e à capacitação de profissionais da educação com o objetivo de assegurar o respeito às vivências, à realidade sociocultural, ao fortalecimento e à valorização das Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs).
A Noção de Quilombo e o Contexto Paranaense
De acordo com Moura (1981, p.16), em 1559 registrouse pela primeira vez, em documentos oficiais portugueses, a referência ao quilombo. No entanto, é em 1740 que o termo aparece definido como habitação de negros fugidos (mais de cinco), em locais despovoados. Esta concepção de quilombo é amplamente criticada na contemporaneidade por diversos autores, visto que foi formulada com base em uma visão colonial que buscava reprimir e criminalizar a fuga de escravizados. Munanga (1996, p. 63), por sua vez, identifica o quilombo brasileiro como um modo de organização social muito semelhante ao modo de organização social africano. O quilombo era constituído por escravizados que se opunham ao sistema escravocrata por meio da instituição de uma estrutura política diferente à que lhes foi imposta, na qual se situam os oprimidos. A percepção do quilombo como estratégia de resistência dos negros escravizados, em oposição àquela concepção criminal conferida à formação desses agrupamentos Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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negros, emerge a partir da produção intelectual de Moura (1981), que influenciou diversos estudos subsequentes. O conceito atual de quilombo, no entanto, difere-se veementemente daquele memoravelmente presente nos livros de história, que reduziam esta forma de organização essencialmente a uma espécie de aglomerado de “escravos fugidos”. Nessa nova conjuntura, busca-se considerar a diversidade de formas de acesso à terra e de formação de territórios negros, como evidenciado em documento do Observatório Quilombola (2008): O ‘termo quilombo’, antes vinculado ‘ao conceito histórico de grupos formados por escravos fugidos’, passa a ‘designar a situação dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos no Brasil, fazendo referência a terras que resultaram da compra por negros libertos; da posse pacífica por ex-escravos de terras abandonadas pelos proprietários em épocas de crise econômica; da ocupação e administração das terras doadas aos santos padroeiros ou de terras entregues ou adquiridas por antigos escravos organizados em quilombos’ (Observatório Quilombola, 2008). Observa-se, portanto, que o conceito de quilombo é ressignificado no decorrer dos séculos, conforme interpretações distintas de autores, características específicas do contexto social analisado e, sobretudo, a partir do reconhecimento das
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Comunidades Remanescentes de Quilombos na esfera das políticas públicas. Para que se reconheçam os direitos garantidos na Constituição Federal, há o Decreto 4.887/2003 que concede a estas populações “o direito à auto-atribuição como único critério para identificação das comunidades quilombolas”, fundamentado na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que atenta para o direito de autodeterminação dos povos indígenas e tribais. Assim, membros pertencentes a estes grupos sociais reconhecem sua ancestralidade relativa à opressão historicamente sofrida, bem como as relações peculiares que estabelecem com o território que habitam. No Paraná, o Grupo de Trabalho Clóvis Moura (GTCM) teve um papel imprescindível no mapeamento das Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs) e Comunidades Negras Tradicionais (CNTs) entre os anos de 2005 e 2010, revelando a presença expressiva de negros no Estado e suas contribuições socioculturais. Até 2008 haviam sido mapeadas no estado 90 agrupamentos negros, dentre os quais 36 já haviam sido reconhecidos como “remanescentes de quilombos” pela Fundação Palmares . 9
9 Cf. GTCM, Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura: 2005-2010. Curitiba, 2010. Disponível em: http://www.gtclovismoura.pr.gov.br/modules/ conteudo/conteudo.php?conteudo=69. Acesso em: 20/12/2016. Conferir também: GOMES JÚNIOR, Jackson; SILVA, Luís Geraldo da; COSTA, Paulo Afonso Bracarense (Orgs.). Paraná Negro. Curitiba: UFPR/PROEC, 2008. Disponível em: www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Parana_negro_atual.pdf. Acesso em: 20/12/2016.
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Figura 1. População Negra e Comunidades Quilombolas do Paraná
Fonte: ITCG - Instituto de Terras, Cartografias e Geociências, 2007/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2000. Imagem extraída do documento: GTCM, Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura: 2005-2010. Curitiba, 2010, p. 16.
O GTCM, além de identificar e mapear as CRQs e CNTs, também trouxe à tona as dificuldades enfrentadas por estas comunidades, destacando a resistência e a luta pela terra, que teve grande impulso após articulação de quilombolas com movimentos sociais negros, sindicatos e movimentos camponeses. Participaram, no Paraná, da Jornada de Agroecologia, Rede Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais e realizaram a XXV Romaria da Terra, em 2010, com o tema “Quilombo: Resistência de Um Povo, Território de Vida”, em Adrianópolis. Em contrapartida, intensificaramse os conflitos com o agronegócio (GTCM, 2010, p. 23). Tendo como referência a perspectiva teórica de Souza
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(2005), bem como evidências empíricas, o GTCM salienta a importância da educação não ser tratada como algo universal e uniforme, ressaltando assim a necessidade de garantir o respeito à cultura, ao contexto no qual o educando está inserido e às especificidades de sua realidade social. Destaca ainda o modo peculiar como o povo quilombola constrói o seu saber, que lhe é próprio. Deste modo torna-se nítida a necessidade de “considerar elementos epistemológicos próprios de uma educação na perspectiva da cultura dos povos quilombolas, de modo a resultar em uma efetiva organicidade da pedagogia dessa educação, no que se refere à relação entre a teoria e a prática” (GTCM, 2010, p. 59). Ao mencionar a pesquisa de doutorado desenvolvida por Lopes (2010) em uma comunidade quilombola situada no Vale do Ribeira, Paraná, o GTCM chama atenção para um importante aspecto apreendido pelo autor, que vai de encontro com problemas ressaltados pelo Grupo. De acordo com a pesquisa de Lopes, as aulas ofertadas à comunidade pesquisada eram ministradas dentro dos padrões de escolas tradicionais. Embora os membros da comunidade sejam afrobrasileiros e descendentes de indígenas, detentores de valores civilizatórios próprios, tal fato parecia não ter nenhuma relevância no processo de elaboração do conteúdo das aulas (GTCM, 2010, p. 59). Conforme descrito no Relatório do GTCM (2010, p. 5960), em 2008, foi contratada pela prefeitura uma professora que, apesar de ser casada com um quilombola, ministrava aulas do mesmo modo que em qualquer outra escola da rede pública de ensino, isto é, sem considerar as especificidades da comunidade quilombola. Assim, as crianças que poderiam ter a oportunidade de aprender conteúdos que ampliassem seus Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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conhecimentos acerca da cultura afro-brasileira, africana e indígena, eram condicionadas a adquirir somente aqueles que enaltecem os valores civilizatórios europeus. Essa dinâmica de ensino distancia crianças e jovens dos conhecimentos tradicionais disseminados pelos mais velhos, que, nas sociedades africanas, são considerados referência e fortaleza da coletividade: O respeito que os rodeia deve-se não só à sua longevidade – fenômeno raro na África – mas também à visão animista africana do universo, segundo a qual a vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em gerações sucessivas. Mesmo antes do nascimento, o africano já faz parte desse processo: pertence a um grupo do qual é indissociável, não pode ser separado nem dos que o precederam, nem dos que o irão suceder, e os valores tradicionais o protegerão contra o abandono e a solidão. (Kabwasa, 1882, p. 14) A partir da exposição de aspectos importantes referentes ao tema, convém ressaltar que o interesse por esta pesquisa está relacionado ao grande descaso com o qual a população quilombola ainda é tratada no Brasil, pois além de ocupar lugares de difícil acesso e nem sempre ter reconhecidos seus direitos fundamentais, a oferta educacional destinada às crianças e jovens dessas comunidades prioriza conteúdos baseados em valores europeus, que em nada contemplam a ancestralidade africana. Descumpre-se assim a Lei 10.639/03 que, como mencionado previamente:
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Estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art 206, I,§ 1º do Art. 242, Art. 215 e Art.216, bem como nos Art. 26,26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania assim como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros (BRASIL, 2004). Abordaremos a seguir o estado da arte, isto é, o estado do conhecimento da produção acadêmica referente às comunidades quilombolas no âmbito da Universidade Federal do Paraná, no período de 2007 a 2012, considerando os diversos campos de conhecimento.
Os estudos sobre Comunidades Quilombolas na UFPR (2007-2012)
O presente trabalho tem como característica metodológica a análise do estado da arte que, segundo Ferreira (2002, p.250),
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consiste em mapear e discutir trabalhos acadêmicos que abordam pontos importantes da temática que se pretende discorrer, considerando a época, o lugar, as condições, enfim, o contexto em que tais estudos foram produzidos. São monografias, dissertações, teses, livros, entre outros documentos. O estado da arte pode ser definido também como realização descritiva de trabalhos acadêmicos e científicos a respeito de questões relacionadas ao tema que se pretende averiguar. Nessa perspectiva, a pesquisa documental foi desenvolvida através do acervo físico e digital do Sistema de Bibliotecas da UFPR, onde as buscas foram feitas por ano de produção, delimitando-se o período de 2007 a 2012. O Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná tem estimulado estudantes com interesse em temas relativos aos quilombolas a desenvolver análises sobre essas comunidades, sobretudo no que se refere à educação escolar. Esta dinâmica, no entanto, é relativamente recente. O objetivo inicial da pesquisa era mapear os trabalhos que tratassem estritamente da “educação escolar quilombola”, no entanto, devido à escassez de estudos específicos sobre o tema desenvolvidos no âmbito da UFPR, optamos por estender a pesquisa a diferentes áreas de conhecimento ao invés de restringi-la ao Setor de Educação, bem como abarcar no mapeamento estudos diversos, com diferentes recortes, mas que tivessem as comunidades quilombolas como eixo temático central. Ao todo, foram selecionados treze trabalhos, devidamente registrados no acervo da UFPR e vinculados a diferentes departamentos, como pode ser verificado no Quadro 1.
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Quadro 1- Estudos sobre a temática quilombola na UFPR (2007 a 2012) Autoria
Tipo e Ano da Produção
Título da Produção
SALLES, Jefferson de Oliveira
Monografia - Especialização em Educação do Campo, Setor de Educação, UFPR (2007)
Porque o "pinhão não cai longe do pinheiro": o saber socialmente construído no conselho dos anciões do quilombo Paiol de Telha
STEUERNAGEL, Maicon Silva
Monografia – Graduação em Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFPR (2007)
"Vocês são dos Quilombos, não é?" Identidade, parentesco e ruralidade quilombola na comunidade quilombola do Militão
GOMES JÚNIOR, Jackson; SILVA, Luís Geraldo da; COSTA, Paulo Afonso Bracarense (Orgs.)
Livro (2008)
Paraná Negro
MILANO, Giovanna Bonilha
Monografia - Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, UFPR (2008)
Direitos Étnico-Territoriais das Comunidades Remanescentes de Quilombos: Contribuições para o diálogo entre diversidade e direito(s) no Brasil
PAULA, Edson José Souza
Monografia - Especialização em Planejamento e Controle em Segurança Pública, Setor de Ciências Sociais Aplicadas, UFPR (2008)
Policiamento comunitário quilombola no Estado do Paraná
SOARES, Edimara Gonçalves
Dissertação – Mestrado em Educação, Setor de Educação, UFPR (2008)
Do Quilombo à Escola: Os Efeitos Nefastos das Violências Sociais Silenciadas
SOUZA, Ariane Cristina Ferreira de
Monografia – Graduação em Nutrição, Setor de Ciências da Saúde, UFPR (2009)
Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional da População Negra: Um Resgate da Cultura Alimentar em Comunidades Quilombolas
COFRÉ, Ingeborg Anni Rulf
Monografia – Graduação em Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, UFPR (2010)
Desafios do reconhecimento da diferença: análise de dois processos de etnogênese de comunidades quilombolas no Paraná
LOPES, Claudemira Vieira Gusmão
Tese - Doutorado em Agronomia, Setor de Ciências Agrárias, UFPR (2010)
O conhecimento etnobotânico da comunidade quilombola do Varzeão, Dr Ulysses (PR): no contexto do desenvolvimento rural sustentável
PEREIRA, Natalia Demes Bezerra Tavares
Monografia – Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, UFPR (2010)
Da Resistência à Re-Existência: Ensaio Sobre A Identidade Quilombola Entre o Direito e a Antropologia
MILANO, Giovanna Bonilha
Dissertação - Mestrado em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, UFPR (2011)
Territórios, Cultura e Propriedade privada: Direitos territoriais quilombolas no Brasil
CRUZ, Cassius Marcelus
Dissertação – Mestrado em Educação, Setor de Educação, UFPR (2012)
Trajetórias, Lugares e Encruzilhadas na Construção da Política de Educação Escolar Quilombola no Paraná no Início do III Milênio
SOARES, Edimara Gonçalves
Tese – Doutorado em Educação, Setor de Educação, UFPR (2012)
Educação Escolar Quilombola: Quando a Diferença é Indiferente
FONTE: A autora (2016)
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Como observado, os trabalhos abordam pontos diversos referentes às comunidades quilombolas e as pesquisas que tratam especificamente da questão educacional são escassas. Dentre os estudos citados no quadro, chamamos atenção para os trabalhos desenvolvidos por Cassius Marcelus Cruz e Edimara Gonçalves Soares, que tratam de modo mais específico e aprofundado das questões norteadoras deste estudo: a Educação Escolar Quilombola. Os trabalhos desenvolvidos por Edimara Gonçalves Soares ganham contornos ainda mais eminentes devido ao seu lugar de fala, pois se trata da primeira Quilombola Doutora do Brasil , título que obteve pela Universidade Federal do Paraná através do Programa de Pós-Graduação em Educação, após a defesa da tese “Educação Escolar Quilombola: Quando a Diferença é Indiferente”. É preciso considerar, no entanto, que outros trabalhos citados no quadro, embora não tenham como objeto de pesquisa a Educação Escolar Quilombola, de uma forma ou de outra acabam abordando aspectos relevantes que contribuem para a problematização das peculiaridades educacionais. Além dos trabalhos expostos no quadro, estudos produzidos fora do âmbito da UFPR também foram consultados, especialmente os que abordam o contexto paranaense, dentre os mais destacados, o Caderno Temático “Educação escolar quilombola: pilões, peneiras e conhecimento escolar”, uma iniciativa do Departamento da Diversidade por meio do Núcleo de Educação das Relações Etnicorraciais e 10
11
10 Cf. PARANÁ, Governo do Estado. Paraná tem a primeira doutora quilombola do Brasil. Disponível em: http://www.educacao.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=6103. Acesso em: 22/12/2016. 11 Cf. SOARES, Edimara Gonçalves. Educação Escolar Quilombola: Quando a Diferença é Indiferente. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/29808/R%20 -%20T%20-%20EDIMARA%20GONCALVES%20SOARES.pdf?sequence=1. Acesso em 22/12/2016.
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Afrodescendência (NEREA) e o “Relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura 2005/2010”, já mencionado neste trabalho. Recorremos também à consulta de documentos importantes a nível nacional, como as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola: algumas informações”, Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), Brasília-DF/ 2011 e a “Resolução nº 8, de 20 de Novembro de 2012”, Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Básica. Por fim, com o intuito de ampliar os conhecimentos acerca da Educação Escolar Quilombola, foi estabelecido contato via e-mail com pesquisadores da temática, bem como a participação em reunião para a elaboração do Curso de Formação para professores quilombolas no Estado. Nesta reunião estavam presentes representantes da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED), Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) e pesquisadores do tema no estado do Paraná. Evidencia-se assim que amplos esforços têm sido empreendidos no Paraná, que tem se destacado no cenário nacional devido ao vanguardismo na estruturação de propostas pedagógicas específicas para as comunidades quilombolas. No entanto, estudos indicam que ainda há um árduo caminho a se trilhar para a consolidação de uma educação democrática e de qualidade direcionada a estes grupos sociais. Soares (2012), ao analisar os efeitos produzidos a partir da implementação da política de Educação Escolar Quilombola no Paraná no período de 2009 a 2011 nas Escolas Quilombolas e nas Escolas que atendem às CRQs, afirma que:
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A pesquisa contextualiza o ineditismo do Paraná como primeiro Estado a reconhecer a necessidade, absolutamente contemporânea, de elaborar uma política educacional direcionada às CRQs. Ainda assim, a despeito de seu vanguardismo, importância, planejamento, inversão de recursos financeiros e humanos – estes últimos, contando com o envolvimento de profissionais capacitados técnica, científica e eticamente –, sem estabelecer parcerias efetivas, planejar e executar, a experiência foi inócua em termos de transformação genuína do status quo da Educação Escolar Quilombola no Estado (SOARES, 2012, p. 11). Nota-se, assim, a necessidade do empreendimento de ações contínuas e permanentes, capazes de assegurar às Comunidades Remanescentes de Quilombos uma educação democrática, de qualidade, de acordo com as suas especificidades históricas, étnicas e culturais.
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Considerações Finais
Esta pesquisa teve como principal objetivo averiguar o estado da arte da Educação Escolar Quilombola na Universidade Federal do Paraná de 2007 a 2012. A partir dos aspectos explicitados, torna-se evidente que a produção acadêmica sobre a temática, no âmbito da UFPR, é escassa. É preciso considerar, porém, que esta pesquisa abarca estritamente trabalhos desenvolvidos entre 2007 e 2012. Nos últimos anos, novas pesquisas relativas às comunidades quilombolas foram realizadas na UFPR, cabendo uma revisão e atualização do mapeamento aqui exposto. Apesar do reduzido número de estudos produzidos sobre o tema, os trabalhos mencionados trazem à tona informações enriquecedoras - que ainda estão por ser analisadas minuciosamente - visto que elucidam avanços, perspectivas e desafios na construção de caminhos que oportunizem a implementação efetiva de uma Educação Escolar Quilombola. As práticas recomendadas, frutos de muito estudo e discussão, baseiam-se nos direitos dos cidadãos quilombolas, regidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Tal prática deve ser posta efetivamente em uso por profissionais da educação devidamente capacitados para atuar nas escolas das Comunidades Remanescentes de Quilombos. Sugere-se assim, que sejam feitas pesquisas aprofundadas sobre o processo de educação das crianças quilombolas nas séries iniciais nas CRQs, ampliação de escolas específicas e capacitação de profissionais que irão atuar junto a estas comunidades. Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Referências
BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Brasília, 2003. BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre povos indígenas e tribais. Brasília, 2004. BRASIL, Ministério da Educação e Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. Brasília, 2004. BRASIL, Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012. Disponível em: http ://portal.mec.gov.br/index.php ?option=com_ docman&view=download&alias=11963-rceb008-12pdf&category_slug=novembro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em 20/12/2016. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer N.º: CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF, 2004.
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Os Efeitos Nefastos das Violências Sociais Silenciadas. Dissertação (Mestrado em Educação) – Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008. SOARES, Edimara Gonçalves. Educação Escolar Quilombola: Quando a Diferença é Indiferente. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. SOUZA, Ariane Cristina Ferreira de. Políticas Públicas de Segurança Alimentar e Nutricional da População Negra: Um Resgate da Cultura Alimentar em Comunidades Quilombolas. Monografia (Graduação em Nutrição) - Setor de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. SOUZA, Jorge Ferreira de. Aproximação da Filosofia da Libertação de Enrique Dussel da Pedagogia da Libertação de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado - Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2005. STEUERNAGEL, Maicon Silva. “Vocês são dos Quilombos, não é?”: Identidade, parentesco e ruralidade quilombola na comunidade quilombola do Militão. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Departamento de Antropologia, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.
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NEAB A CIÊNCIA POLÍTICA NO BRASIL A PARTIR DA PERCEPÇÃO DOS EDITORES DE SETE PERIÓDICOS NACIONAIS QUALIS A1, A2 E B1 Fabiane Helene Valmore
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A CIÊNCIA POLÍTICA NO BRASIL A PARTIR DA PERCEPÇÃO DOS EDITORES DE SETE PERIÓDICOS NACIONAIS QUALIS A1, A2 E B1 Fabiane Helene Valmore
Resumo
Exercícios de reflexão têm se intensificado na busca de mapear temas, teorias e métodos da Ciência Política no Brasil. Considerando que os editores de periódicos científicos ocupam posição estratégica no campo, porque discutem os critérios que orientam o perfil dos periódicos que editam sob as pressões dos processos de institucionalização e de autonomização da Ciência Política. Foram realizadas 12 entrevistas em profundidade entre 2014 e 2015 com os (ex) editores de sete periódicos nacionais (DADOS, RBCS, BPSR, RBCP, Lua Nova, Opinião Pública e Revista de Sociologia e Política). As entrevistas duraram cerca de 23 horas, foram transcritas e estão sendo analisadas. A questão central que orienta esta pesquisa é: qual a percepção desses editores sobre o processo de institucionalização e de autonomização da Ciência Política no Brasil? Segundo os editores desses periódicos, quais as principais concepções de Ciência Política estão em disputa no Brasil? Como a Sociologia Política aparece nessa discussão? A luta pela definição de objetos, teorias e métodos autônomos da Ciência Política se dá em torno de quais argumentos? Os periódicos cumprem qual
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papel na autonomização e na institucionalização da área? Os resultados apontam para dois grupos de percepções. Um, maior, defende uma Ciência Política que considera como variáveis explicativas, também, os fenômenos sociais, culturais e econômicos. Outro, considerado o mainstream da disciplina, elege como objeto a política institucionalizada e como forma de abordagem o neoinstitucionalismo. O primeiro é crítico da hipervalorização que o campo hegemônico faz do uso de métodos quantitativos. Palavras-chave: Ciência Política; Sociologia Política; Editores de Periódicos Científicos.
Abstract
Exercises of reflection have been intensified the search for map themes, theories and methods of political science in Brazil. Considering that the scientific journal editors are in a strategic position in the field as they discuss the criteria that guide the journal profile editing under the pressures of institutionalization processes and autonomy of Political Science, were conducted 12 interviews in-depth with (former) editors of seven national journals (DADOS, RBCS, BPSR, RBCP, Lua Nova, Opinião Pública e Revista de Sociologia e Política), between 2014 and 2015. The interviews lasted about 23 hours, transcribed and being analyzed. The main question that guiding this research are: what is the perception of these editors on the process of institutionalization and autonomy of Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Political Science in Brazil? According to the editors of these journals, what is the issue and dispute of concepts of political science in Brazil? How the Political Sociology appears in this discussion? The struggle to define objects, theories and methods of autonomous political science takes around which arguments? What is the role of periodicals in this direction, which comply in empowerment and institutionalization of the area? The results point to the two groups of perceptions. First, appointed that the majority of these people advocate a political science that regard with explanatory variables also the social, cultural and economic phenomena. Another considered the mainstream of course, chooses as objectinstitutionalized policy and as a way to approach the neoinstitutionalism. The first is critical overestimation that the hegemonic field is the use of quantitative methods. Keywords: Political Science; Political Sociology; Scientific Journal Editors.
Introdução
Esta pesquisa foi inspirada no Projeto que está sendo desenvolvido pela ABCP: “Ciência Política no Brasil: história, conceitos e métodos”; pois, no Brasil, segundo Lessa (2011, p.19), “não há, ainda, uma história sistematizada da ciência política brasileira, enquanto domínio reconhecido e institucionalizado” como também nos balanços/diagnósticos da Ciência Política brasileira produzidos e publicados,
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principalmente, pelos professores Bolivar Lamounier (1982), Fábio Wanderley Reis (1991) e Gláucio Soares (2005), que apontam para a mesma direção que Lessa. Esta pesquisa pretende, assim, contribuir com a memória da Ciência Política a partir da percepção dos (ex) editores de sete periódicos nacionais Qualis A1, A2 e B1 (RBCS, BPSR, RBCP, Revista de Sociologia Política, Lua Nova, Opinião Pública, DADOS) colhida durante entrevistas realizadas entre 2014 e 2015. A perspectiva teórica de análise adotada neste trabalho é influenciada por Pierre Bourdieu, particularmente por seus escritos sobre “campo e capital científicos” e “Método Científico e hierarquia social dos objetos”, como também pela definição de Sociologia Política oferecida por Sartori (1972). Considerando que os editores de periódicos científicos ocupam posição estratégica, pois estão expostos às pressões dos processos de institucionalização e de autonomização de um campo científico, esta pesquisa apresenta e discute a percepção desses editores sobre a Ciência Política praticada no Brasil, norteada pelas seguintes questões: Segundo os editores, 1. como se relaciona a trajetória temática e teóricometodológica com os processos de institucionalização e de autonomização da disciplina? 2. em que medida as relações de força no interior da disciplina provocam mudanças e/ou rupturas no perfil editorial das revistas? 3. quais têm sido alguns dos limites, impasses e dilemas enfrentados pela disciplina na construção e divulgação do conhecimento? Os dados coletados, durante aproximadamente 23 horas de entrevistas em profundidade com os editores, a partir de um Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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roteiro composto de 25 questões abertas e semiestruturadas, apontam para o dilema vivido pela Ciência Política brasileira na construção da sua identidade. Todos os 12 editores entrevistados afirmam que a disciplina progrediu nos últimos 10 anos. No entanto, ao tratarem de questões relacionadas aos temas de estudo e aos enfoques teórico-metodológicos da Ciência Política praticada no Brasil, divergem em suas falas e deixam notar tensões a respeito da definição de política e de democracia. Alguns defendem o mainstream da disciplina. Outros, criticam-no e consideram fundamental para compreensão da política o diálogo com as outras áreas das Ciências Sociais. Aparecem tensionadas, deste modo, nas falas dos editores entrevistados, as perspectivas ‘politológicas’ e societais’ , adotadas nos estudos sobre a política. A hipótese deste trabalho gira em torno do fato de que as diferentes concepções que possuem os praticantes da disciplina a respeito da política (autonomizada ou não da realidade social) e, mais especificamente, da democracia (política/ formal ou social/substantiva), definem certos modos de se conceber e praticar a Ciência Política enquanto disciplina acadêmica, e no limite, concomitante às disputas presentes nos processos de institucionalização e de autonomização da disciplina, o que vem a ser a ‘boa’ Ciência Política, o seu mainstream. Por fim, este trabalho é composto da Introdução, das três seções 12
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12 bordagens que enfatizam a análise das instituições políticas formais do Estado e do governo, tais como: partidos, sistemas partidários e eleitorais, casas legislativas, poderes executivo e judiciário, etc.; dando especial atenção às suas regras e aos seus agentes internos. Ver Immergut (1998) e Hall & Taylor (2003). 13 Em contraposição ao ‘institucionalismo’, as abordagens ‘societais’ ou da ‘Sociologia Política’ valorizam os atores sociais entendendo que eles desempenham papel importante nos processos políticos formais. Portanto, relações sociais, culturais e econômicas de poder, dominação, influência e participação; são, também, consideradas fundamentais para compreensão da política. Ver Reis (2002) e Perissinotto (2004).
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que tratam da percepção dos editores e das Considerações Finais.
Percepção dos Editores Sobre a Ciência Política no Brasil Tema, Teoria e Método
Esta seção discute a relação da trajetória temática e teóricometodológica com os processos de institucionalização e de autonomização da disciplina a partir de três questões14 do roteiro de entrevista aplicado aos editores. A institucionalização de uma disciplina acadêmica não é um mero procedimento técnico, trata-se de um percurso onde são estabelecidos os parâmetros de comportamento e os princípios de cientificidade, além de serem elaborados os critérios de avaliação e financiamento. Esses procedimentos geram disputas e eventualmente consensos ou hegemonia na área. A construção das regras do jogo estabelece os limites espaciais e lógicos da disciplina, demarcando o centro e a periferia, o dentro e o fora, o superior e o inferior, no que diz respeito às suas instituições, produções e agentes (LEITE, 2015). Já o processo de autonomização da Ciência Política, que é intrínseco ao de institucionalização, tem a ver com a definição daquilo que se caberia supostamente designar como 14 Questão 1: Qual a sua visão sobre a trajetória teórico-metodológica da Ciência Política nos últimos 10 anos? Questão 12: Em sua opinião existe alguma grande questão nacional que tem sido pesquisada pelos cientistas políticos brasileiros nos últimos 10 anos? Questão 18: O relativo avanço metodológico da Ciência Política brasileira pode ser entendido como sinônimo de uma explicação mais abrangente e profunda da realidade política? Em outras palavras, é possível dizer que sofisticação metodológica é igual a refinamento teórico?
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Ciência Política e se dá em meio a confrontos, especialmente com a Sociologia Política ou a Sociologia da Política em torno da delimitação e da maneira como são/devem ser analisados os fenômenos políticos (REIS, 2015). Nesse sentido, diferentes concepções de democracia e a própria definição daquilo que é a política e, portanto, daquilo que cabe/merece ser estudado pela disciplina aparece na fala dos editores como algo ainda em disputa. Igualmente aos métodos utilizados pela disciplina. Alguns, como é o caso do editor Cicero de Araújo, da revista Lua Nova, remetendo a uma “abertura da agenda que é predominantemente institucionalista”, fazem a crítica do modelo hegemônico da disciplina que, no Brasil, segundo Limongi, Almeida e Freitas (2015) descobre a importância das instituições no bojo do debate sobre os caminhos possíveis para voltar à democracia a partir dos anos 80 e vê adensada a sua produção de cunho institucionalista a partir de meados dos anos 1990. Outros não compartilham dessa crítica, pelo menos de forma explícita. É o caso das editoras Janina Onuki, da BPSR e Fabíola Del Porto, da revista Opinião Pública. Igualmente do editor Charles Pessanha, da revista DADOS, que não mencionou as palavras (neo) institucionalismo e institucionalista sequer uma vez durante toda a sua entrevista. O editor Paulo Costa, da RSP, que também não mencionou em toda a sua entrevista a palavra (neo) institucionalismo e apenas uma vez utilizou a palavra institucionalista ao falar da trajetória da disciplina afirma que “a consolidação (…) [da] abordagem institucionalista (...) não implicou, felizmente, no sufocamento de outras áreas” . Temas, teorias e métodos praticados pela disciplina nos últimos 30 anos têm sido, em grande medida, pautados pela defesa do retorno, consolidação e funcionamento estável da democracia
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brasileira e hierarquizados pela comunidade acadêmica, pelos processos de institucionalização e de autonomização, mas, não só, também, pela preocupação manifestada pelos cientistas políticos a respeito da conjuntura política do país e de suas alternativas. Segundo Marta Arretche, editora da BPSR, “a CP brasileira, por tradição, (…) é essencialmente voltada para entender e interpretar o Brasil”. Não por acaso, quando perguntados sobre a existência de alguma grande questão nacional que tenha sido pesquisada pelos cientistas políticos brasileiros nos últimos 10 anos, a democracia e/ ou suas instituições aparecem como resposta oferecida pela maioria dos editores. Alguns enfatizam suas instituições políticas - ou seja, a governabilidade - e pensam na democracia formal; outros, valorizam a democracia substantiva e seus ideais de liberdade e igualdade defendendo uma definição de esfera política menos autonomizada e uma Ciência Política, em grande medida, animada por uma dimensão normativa e prática. Pensam, nesse caso, nas questões relacionadas à participação política. Trechos das respostas oferecidas pelos editores da RSP, DADOS, BPSR e RBCS podem ser vistos abaixo e permitem notar: uma preocupação com a ajuda que a disciplina pode oferecer na qualificação da capacidade dos cidadãos brasileiros de entender a democracia; que o interesse pelo tema democracia por parte dos cientistas sociais e políticos brasileiros se manifesta continuamente na DADOS, fundada em 1966; que, de fato, os processos de transição e consolidação democrática norteiam os estudos da área e, por fim, que a disciplina permite espaço, mesmo que marginal, para temáticas outras, que não as privilegiadas pela abordagem institucionalista, inclusive sintonizada com o Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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debate internacional. Inevitavelmente, a democracia (…) é a grande questão nacional, né... (...) o aperfeiçoamento da democracia. (...) nesse aspecto, a produção científica pode ajudar a sociedade brasileira a entender que ‘diabos’ é isso, por que a gente não tá numa sociedade com tradição de experiência democrática... (COSTA, P.)
Poderíamos dizer talvez que esta grande questão seja a democracia brasileira, pois dela derivam-se vários sub-temas altamente relevantes para a ciência política nacional na última década: participação, eleições, partidos, reforma política, etc. (BRINGEL, B.)
(…) eu acho que com o retorno da democracia teve uma leva de trabalhos inicialmente, né, final dos anos 80, 90, que investiram muito em estudar o processo de transição democrática e com a consolidação das instituições democráticas, então... comportamento eleitoral, instituições políticas e eleições (…) a gente tem também um avanço na área de instituições políticas, né, no sentido de ter uma discussão mais ampla sobre o papel
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de atores importantes, institucionais, do legislativo (…). (ONUKI, J.)
A relação executivo e legislativo (…) [e] a natureza do presidencialismo de coalizão foi[ram] intensamente debatidos no Brasil e chegou a um consenso... (…) O debate sobre o federalismo tem tido... centralidade no Brasil e têm colocado críticas extraordinariamente pertinentes à literatura internacional (…) a literatura sobre a pluralização da representação também tem sido uma literatura importante; ela, do ponto de vista do campo é uma literatura, digamos, com menor atenção, mas é uma literatura que está claramente sintonizada com o debate internacional. (GURZA LAVALLE, A.) Já o editor da RBCP, Luis Felipe Miguel, cita a reforma política e as discussões sobre o ‘lulismo’ e chama a atenção para o fato de que “a Ciência Política brasileira em grande medida tem deixado de lado a questão central do impacto das desigualdades sociais no funcionamento da nossa democracia”, deixando notar a crítica que faz à abordagem institucionalista, particularmente aos trabalhos pioneiros de Bolívar Lamounier que, segundo Limongi, Tavares e Freitas (2015), abriram caminho para a valorização das instituições no estudo da política brasileira e questionaram a suposta existência de pré-
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requisitos sociais para a instalação da democracia. Crítica, esta, que aparece explícita em outro trecho de Miguel, sobre a trajetória temática e teórico-metodológica da disciplina: (…) a CP brasileira, ela, tem tido um crescimento relativamente grande (…) mas a gente tem uma CP ainda muito restrita em termos de suas temáticas principais... Eu acho que a CP é muito institucionalista, tem dificuldade de admitir temáticas diferentes...Tem gente trabalhando com temáticas diferentes, mas estão sempre às margens da disciplina. É uma CP no geral mal-informada teoricamente (…) é uma CP que... tem simultaneamente uma formação metodológica, também, na média, muito precária, mas tem uma atração pelos métodos quantitativos que no entanto utiliza de uma maneira muito insuficiente. Renato Perissinotto, editor da RSP, afirma que um certo predomínio de um viés institucionalista, em alguns casos, com hegemonia de um institucionalismo de escolha racional, tem tudo a ver com o processo de institucionalização da área de CP e de separação da CP das outras ciências sociais. Segundo ele, apesar desse viés ter representado um avanço, porque contribui para produzir um conhecimento importante sobre as instituições políticas no Brasil que, até então, não se tinha, também apresenta limites na medida em que pode redundar numa CP que dialoga pouco com outras ciências sociais ou
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que olha pouco para outras dimensões da vida social que certamente afetam o funcionamento da política. Ainda, quando questionado sobre a existência ou não de uma grande questão nacional que tenha sido pesquisada pelos cientistas políticos brasileiros nos últimos 10 anos, o mesmo responde que a ciência política, pela hiperespecialização – que aumenta radicalmente o nível técnico da ciência, mas pode condená-la à irrelevância – perdeu o Estado como objeto; dedicou-se ao estudo aprofundado, e muito revelador, de política públicas específicas, mas deixou de lado o problema dos padrões de funcionamento do Estado brasileiro e suas origens históricas (PERISSINOTTO). Talvez, justamente por isso, Gurza Lavalle, sobre um grande problema a ser superado pela disciplina afirma: (…) a Ciência Política ainda não conseguiu produzir uma boa síntese... interpretativa, plausível... da transformação do Estado brasileiro e da sociedade brasileira no pós-transição (…) existe conhecimento específico sobre certas áreas de política (…) mas ainda não fomos capazes de interpretar essa transformação... (...) pra entender essa transformação, precisaríamos ser capazes de colocar atores sociais na cena, uma Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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coisa que a Ciência Política se mostrou insuficientemente capaz de fazer durante muitos anos, ou melhor, (...) não prestou a devida atenção durante anos, (...) e por não ser seu foco, não foi capaz de pensar que uma parte da dinâmica de funcionamento destas instituições tem a ver com a interação que elas estipulam com atores sociais... (…) [mas isso] não é um tipo de problema grande que um institucionalista preocupado com partidos vai se colocar. Ambos editores expressam nestes trechos pontos de vista coerentes com o perfil dos periódicos que editam, qual seja, com predomínio de abordagens heterogêneas, históricosociológicas e com equilíbrio entre os temas do Estado e da sociedade. As falas apresentadas evidenciam que a tensão entre abordagens ‘institucionais’ e ‘societais’ estão na agenda dos editores. Afirmação semelhante é feita pelo editor da DADOS, Breno Bringel, pois, segundo ele: (…) a questão da autonomização do campo da Ciência Política, (…) a partir do meu olhar como sociólogo, tem sido muito forte (...) dos anos 90 em diante no Brasil... (...) e isso leva a uma delimitação dos objetos, das discussões, [a uma] criação de campos autônomos né, ou relativamente autônomos de discussão... Isso, a meu ver, (...) leva a uma maior consistência teórico metodológica (...) mas, por outro
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lado, pode ser lido numa chave negativa (…) no sentido de uma CP que está se produzindo (...) com um olhar, digamos, muito focado em dinâmicas, processos e atores específicos. A respeito da necessidade de rever a agenda da Ciência Política brasileira – de conciliar os olhares das duas abordagens, ‘’polítológica’ e ‘societal’, para apreender a dinâmica que envolve Estado e sociedade civil – dando-lhe uma conotação mais interdisciplinar e plural, o editor da ‘Lua Nova’, deixando evidente o apelo para a interação, sentencia: (…) eu acho que a nossa sociedade tem uma relação bastante ambígua, entre o visível e a sombra, o oficial e o não oficial (...). Eu acho que sempre haverá uma ambiguidade, mas no caso brasileiro, eu acho que é muito mais acentuada, o que nos permitiria (...) até uma posição privilegiada pra estudar o fenômeno (...). E acho que a Ciência Política deveria, até numa interação mais profunda com a Antropologia e a Sociologia se preocupar (...) porque o institucionalismo tem a ver com o problema de definir a instituição pelo oficial, e aí, ela [a CP] acaba perdendo muito [d]a sombra que eu tô falando (…) [e isso, essa sombra] é um hábito social muito interessante de detectar e pesquisar...
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Esses dilemas também são recorrentes nas reflexões que fazem quando falam da trajetória da Ciência Política que se caracteriza, segundo Cicero de Araújo, ex-editor da Lua Nova, [pelo] afastamento da Sociologia (…) especialmente da chamada Escola Sociológica Paulista (...) e [pela] inclinação mais pra direção do Institucionalismo que é uma tendência já mais antiga nos EUA, mas que acabou chegando ao Brasil e... ganhando o chamado mainstream da pesquisa acadêmica na CP, combinada (…) com pesquisas quantitativas, com tratamento estatístico. Ao falarem sobre essa trajetória, os editores destacam a expansão e consolidação institucional dos cursos de pósgraduação; a criação da revista BPSR que está associada ao esforço que faz em direção à internacionalização da produção acadêmica da área; o papel da ABCP como associação científica que permite o debate sistematizado e periódico entre profissionais e estudantes da área; a importância da SCIELO que permite circulação aberta e online da produção qualificada; o crescimento e profissionalização dos periódicos acadêmicos e as mudanças que têm ocorrido na disciplina que era considerada mais ensaísta, engajada no espaço público e formadora de ativistas políticos. Ainda assim, muitas ressalvas são mencionadas. Adrian Gurza Lavalle, editor da RBCS, afirma que apesar da existência de um certo consenso em torno do fato de que está ocorrendo um processo de progressiva ampliação institucional da CP no Brasil, provavelmente
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associado a um processo paralelo de sofisticação metodológica, “não temos [na CP] balanços abrangentes suficientemente que olhem paras revistas Qualis de menores categorias e que olhem para aquilo que é a base da pós-graduação, que é aquilo que se ensina de fato nos programas, que é as teses de doutorado e de mestrado”. Isso significa, segundo ele, que “a questão é saber se aquilo que a gente olha quando olha para essas revistas [Qualis A, Qualis A1, Qualis A2] corresponde a uma tendência mais geral do campo (…) ” ou, como ele mesmo menciona anteriormente, a apenas a ponta de um iceberg. A discussão em torno de métodos aparece norteada pela definição do que vem a ser e qual a função da metodologia de pesquisa e, mais ainda, pela expansão e alcance do uso de pesquisa quantitativa. Marta Arretche, da BPSR, ao comparar o emprego das pesquisas quantitativa e qualitativa, afirma que: é mais fácil fazer pesquisa quantitativa (...) porque se você tiver algum treinamento em técnicas de tratamento estatístico, você baixa os dados pela internet e você faz uma pesquisa (...) as técnicas qualitativas são muito mais difíceis de serem realizadas porque você tem que coletar o dado diretamente, você tem um difícil problema de decidir quando você para de coletar dado pra saber se você Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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já tem evidencia suficiente... você tem muito mais claramente de resolver os problemas da subjetividade, né... (...) por esta razão os estudos quantitativos tem maior volume numérico... porque o custo pra fazer estudo quantitativo é muito menor (…) os desafios metodológicos da pesquisa qualitativa são muito maiores... (…) [de qualquer modo] quanti ou quali é só uma técnica... se você não conseguir interpretar os dados você fez uma má pesquisa. Ao falarem sobre os vínculos entre sofisticação metodológica e refinamento teórico, 10 dos 12 editores afirmam explicitamente que os fundamentos teóricos na construção de uma pesquisa científica são indispensáveis sob o risco do pesquisador “embarcar numa certa perfumaria metodológica”, nas palavras do editor da RBCP. Para o editor da Lua Nova, mesmo uma pesquisa metodologicamente sofisticada pode perder a sua relevância. Igualmente, nas palavras do editor da RSP, Paulo Costa, pois para ele, “sofisticação metodológica vem nesse compasso posterior [a um conjunto de conceitos que diz respeito à capacidade explicativa], sem o primeiro, ela não faz sentido”. As palavras da editora Flávia Birolli e do editor Gurza Lavalle convergem e são esclarecedoras nesse aspecto. Sofisticação metodológica, na minha opinião, corresponde à capacidade explicativa dos métodos. Se você tem métodos sofisticados
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com baixa capacidade de explicação, você tem um problema, e essa é uma tendência na área. (…) acho que permanece na área um grande fetiche pelo quantitativismo, existe uma ideia de que quanto mais números, mais potencial explicativo há nos trabalhos (…). Então, se você não tem nenhuma problematização teórica que te permita entender a complexidade daquela realidade, você pode adotar... métodos que sejam redutores daquela realidade e acreditar que você tá sendo capaz de produzir uma compreensão muito exata, muito objetiva...
A sofisticação metodológica permite lidar com a produção de evidência... sofisticada o suficiente, satisfatória o suficiente pra mostrar que essas proposições são ou verdadeiras ou erradas, ou que é preciso revisá-las e isso tem a ver com o tratamento dos observáveis (…). Mas essa sofisticação metodológica (…) não diz pra nós, a priori, o que observar (…). O que torna o método poderoso é sua conexão com teorias (...) que nos informam sobre quais as suposições que temos sobre o mundo, quais as questões que precisamos saber, porque precisamos sabê-las e quais seriam as implicações de saber essas coisas... do ponto de vista da sua generalização... Isso Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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é no mundo da teoria, não é no mundo da sofisticação metodológica. O ‘fetiche metodológico’ de que fala a editora Birolli tem a ver também com o que diz os editores Alvarez, da RBCS e Perissinotto, da RSP. Respectivamente:
“(...) se você aplica técnicas já consagradas, a ilusão é que basta aplicá-las, sem abrir o debate (...)”, “(...) nem sempre um trabalho metodologicamente perfeito é ambicioso o suficiente para produzir um avanço teórico” (Informação verbal).
Perfil editorial das revistas: produto das relações de força no interior da disciplina? 15
A combinação Qualis/CAPES e SCIELO exerce, na percepção dos editores, papel importante na reconfiguração do campo acadêmico, incluindo aí a do perfil editorial das revistas científicas. É quase consenso entre os editores que 15 Esta seção apresenta as respostas oferecidas pelos editores a quatro questões. Questão 6: Existe algo na criação e/ou trajetória da revista que pode ser destacado? Questão 7: O que pode ser dito sobre a Avaliação Trienal da CAPES? Questão 4: A revista passou por alguma ruptura/mudança no decorrer de sua trajetória? Questão 23: Qual o significado/importância da SCIELO para a revista?
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a admissão e permanência das revistas científicas na coleção SCIELO Brasil é sinônimo de maior visibilidade e de reconhecimento da qualidade para as revistas. No entanto alguns dos critérios de admissão e permanência de periódicos na coleção não cuprem tais finalidades, por exemplo, os que determinam a publicação de artigos no idioma inglês e/ou de autores que possuem afiliação institucional estrangeira. Em relação a esses critérios, alguns dos editores reagem defensivamente e questionam a relação entre os seus propósitos e os da internacionalização da produção científica brasileira. A Avaliação Trienal da CAPES, recentemente tornada quadrienal, de acordo com os editores, é importante e necessária para os programas de pós-graduação da área – porém, não suficiente; e apresenta limites. Particularmente, a avaliação da produção intelectual realizada por meio de um dos seus indicadores - produção qualificada dos docentes cuja qualidade é aferida pela Comissão de Avaliação de forma indireta, por meio do estrato Qualis dos periódicos na qual aparece publicada, que muitas vezes é questionada e discutida por alguns dos editores. Segundo a editora da revista Opinião Pública, Fabíola Del Porto, a SCIELO é “um canal de visibilidade (...) que se consolidou como referência acadêmica...” (Informação verbal). É também a base de dados online que no Brasil, de acordo com Gurza Lavalle, “resolveu o problema de circulação das revistas que era um problema endêmico, porque as revistas acadêmicas não tinham dinheiro pra circular”. De acordo com o editor Paulo Costa, da RSP, a SCIELO contribuiu para a diminuição do trabalho e dos gastos necessários na construção e manutenção de revistas impressas, pois
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(...). Quem produz a revista sabe que a parte de impressão gráfica é muito cara e trabalhosa, né... porque você tem que, além de montar os artigos - supondo que você já passou da parte acadêmica, da avaliação - você tem que diagramar e ao invés de simplesmente ir para a SCIELO, tinha que ir para a impressão, tinha que pensar na capa (...) Esse aspecto, embora não tenha uma conotação acadêmica, era muito relevante. Desgastava em termos de trabalho e de recursos financeiros. Para Pessanha, da DADOS, a importância da SCIELO, específica para a área de ciências humanas, reside no fato de que a SCIELO é o primeiro grande indexador internacional de prestígio onde as Ciências humanas são majoritárias. Em todos os outros, são majoritárias a biomédica e a tecnológica... [assim, segundo Pessanha, ] a SCIELO mostra a descoberta das Ciências Sociais pelo periódico científico. Pessanha, ao falar sobre a trajetória da DADOS, que em grande medida se confunde com a sua própria trajetória enquanto editor da revista, chama a atenção para dois pontos: “a coragem de se fazer uma revista de ciências sociais em 1966, em plena época do Ato Institucional Nº 2 (…) [e,] a proposta
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da revista, que era de ser uma revisita moderna.”. Em relação a esse último ponto, Pessanha destaca que, em companhia dos colegas das revistas biomédicas e tecnológicas, começou a ver “o que era uma revista científica”. A partir de então, sobre as implementações que fez na DADOS e que ajudou a fazer em outras revistas, ele afirma: Eu passei a dar uma atenção muito grande a esses requisitos da divulgação científica que sempre foram... até hoje é um pouco... esquecidos pelos cientistas sociais. Implementei um serviço de peer-review, a revista passou a ter um sistema de citação bibliográfica, de documentação séria... e a revista com isso foi ganhando prestígio. (…) se impôs até se transformar numa das revistas mais importantes da área. Não apenas de CS, mas da área biomédica e tecnológica. Isso me conduziu, inclusive, a um posto inusitado. Eu fui o único presidente da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) da área de ciências humanas. (…) o cientista social não ligava para citação, para número de página... pra nada disso... Eu comecei a formalizar a revista, colocar informações dos colaboradores (...) que depois eu ajudei a, inclusive, implantar, em outras revistas, como a revista da ANPOCS que eu ajudei a criar; como a revista... essa da ABCP, em inglês; a Revista Mana do Museu Nacional...
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No entanto, muito significativo, a despeito do relato acima, é a seguinte preocupação demonstrada por Charles Pessanha: “o problema do Scholar-One da SCIELO é que ele é feito para as ciências biomédicas... [e] isso é um pouco perigoso para as Ciências Sociais”. Segundo ele, Como que é um artigo de medicina? Introdução, Material e métodos, Discussão e Conclusão. (...) as pessoas reclamam muito nas outras áreas também, pelo fato das ciências biomédicas darem o tom da publicação acadêmica (…) por causa da hegemonia da medicina e da biologia... Por exemplo, em matemática não existe citação... como que cê vai avaliar essa produção por fator de impacto se não tem citação? (...) Então, tem certas coisas que tem que ser adaptadas... Agora, não ao ponto de descaracterizar completamente a revista de ciências humanas... É o que eu tenho visto nestes 30 anos que eu defendo as ciências humanas nesses Fóruns, na SCIELO que eu ajudei a fundar. Por quê? Porque se a gente faz tanta diferença, tanta mudança, tanta especificidade das ciências humanas, eles vão dizer: olha... então vocês vão fazer o seguinte... vocês não são revistas científicas ou acadêmicas... vocês não vem aqui pedir dinheiro... correto? Então, a gente tem que ter algum tipo de respeito às regras que norteiam o trabalho sistematizado, para não falar do trabalho científico, certo...
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O editor da RBCS, Gurza Lavalle, afirma que a SCIELO e a lista Qualis são, provavelmente, os responsáveis pela maior parte da causalidade que poderia explicar a transformação do mercado editorial acadêmico no Brasil. Ainda que longe de significar, para ele, a desconsideração de todos os benefícios já ocorridos, parece-lhe que “alguns desses benefícios estejam começando a ser contrabalançados com alguns efeitos que não são desejáveis”. Segundo Lavalle, Em outras épocas, não fazia muita diferença onde você publicasse, porque tinha revistas que circulavam mais em certos circuitos e você queria atingir certos circuitos. Mas hoje, (…) qualquer editor numa revista B3 ou C sabe (...) que ter artigos de qualidade para essas revistas é muito difícil porque as pessoas simplesmente não têm mais interesse em publicar ali. O que significa que (…) as exigências do Qualis passaram a ser significativas porque eles não conseguiam submissões por estarem avaliados muito baixo (...) O processo de produção editorial acadêmico está progressivamente se profissionalizando. (…) os periódicos começaram a competir entre si. (…) [e] a própria RBCS, que durante muito tempo foi uma referência obrigatória, hoje é uma referência entre muitas outras. [Por outro lado,] A SCIELO tem um peso extraordinário não só na modernização, na visibilização da produção, mas em empurrar Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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a comunidade acadêmica brasileira das CS a publicar em periódicos... [e não em livros] (…) Então, isso mudou os hábitos de publicação (…) a própria SCIELO ganhou condições de forçar as revistas a se adequar a certos padrões editoriais e ao fazer isso, as revistas tiveram que passar por um processo de modernização. Outras questões relacionadas à SCIELO e discutidas pelos editores têm a ver com o critério que estabelece a publicação de artigos em língua inglesa nos periódicos nacionais e com o fato de que traduções não são documentos possíveis de serem indexadas, publicadas e incluídas nas métricas de desempenho da SCIELO. A essas questões os editores da RBCP se posicionam de forma contestatória, conforme pode ser visto nas falas de ambos: há hoje uma orientação que vem da CAPES, que vem da SCIELO, pra que a gente publique textos no Brasil em língua inglesa. (...) Então, existe uma pressão conjunta para que a gente publique fora e para que a gente publique em língua inglesa nos periódicos nacionais e isso nos coloca, na minha opinião, numa posição que não é a da internacionalização, mas é mais e mais a de colonizados... a de... assumirmos que não temos condições de ter produções intelectuais em língua portuguesa. (Biroli, F.)
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(…) a SCIELO não quer mais que sejam publicadas as traduções e isso é uma coisa absolutamente elitista, porque a gente tem um público universitário que, em grande medida alunos de graduação e mesmo de pós-graduação…, tem dificuldade de ler em língua inglesa. Nós somos financiados com dinheiro público, num país pobre... [Então], publicação de artigos traduzidos é fundamental pra garantir que textos importantes do exterior estejam acessíveis aos estudantes brasileiros (Miguel, L.F.) Em situações contestatórias limites, a editora Marta Arretche afirma que a BPSR já preferiu deixar de cumprir o critério que trata da publicação de artigos cujos autores possuem afiliação institucional estrangeira. Isto, segundo ela, em prol da qualidade da publicação da revista. Tal situação pode ser notada em suas palavras abaixo: A gente leva em consideração os critérios que tão vigendo para a CAPES, tá... mas este critério não é cego. (...) na última avaliação [Trienal], isso também é um critério da SCIELO, existia um critério de que 30% dos artigos publicados tem que ser de estrangeiros... (…) a nossa taxa mais alta de rejeição é com os artigos de estrangeiros (…) os pareceristas recusam a publicação e nós vamos lá e lemos os artigos e vemos que eles Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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são ruins. (...) Esse critério a gente nunca usou para aceitar publicação... (...) a meta dos 30% nós não cumprimos, porque na verdade, esses dois objetivos tavam em contradição e nós optamos por um, que era a qualidade da publicação. (Arretche, M.) Já a forma como a CAPES avalia a qualidade da produção qualificada dos docentes - ou melhor; o fato dela avaliar, antes, o lócus no qual aparece publicada a produção científica do que, de forma direta, a produção intelectual dos docentes - aparece, nas palavras da editora Flávia Biroli, tensionada e relacionada com as formas, segundo Biroli, dessemelhantes de financiamento da produção e circulação do conhecimento. Além disso, ao colocar a questão da pluralização da área como mais um problema a ser pensado, Biroli abre espaço para se pensar o papel da CAPES diante das já estabelecidas relações centro-periferia e pluralidade-especialização presentes na disciplina. Segundo ela: (…) essas formas de avaliação não são neutras (...). Na minha opinião, o problema nem é a ideia de produtivismo que é muito mencionada. (...) O problema é como que a gente consegue critérios para avaliar não apenas a quantidade da produção, mas a qualidade dessa produção e, como é que a gente pluraliza de verdade a área, não apenas tendo periódicos, por exemplo, que tenham uma perspectiva mais plural da área, mas
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tendo, também, a partir da CAPES, uma política que seja de atribuição de relevância à pluralidade da área e não simplesmente de chancela pra posição que tem as correntes hegemônicas... (...) A CAPES tem uma política que não prioriza os periódicos na área de Ciências Sociais, na área de Ciências Humanas de maneira geral como algo importante na produção científica. Eu digo isso porque, como também na pesquisa, os nossos periódicos, eles, são poucos financiados. Quando financiados, são financiados com recursos muito precários em relação ao que é necessário para manter um periódico de qualidade. Então, isso é um problema muito importante, porque se aplicam a nós critérios que muitas vezes são critérios que vêm do debate sobre a chamada Ciências Duras, as áreas de Biológicas, de Exatas, só que nós não temos o mesmo tratamento. (Biroli, F.) Nas palavras do editor da RBCS, Gurza Lavalle, o modo como a CAPES opera nos departamentos acadêmicos (por meio de alocação seletiva de recursos materiais e simbólicos na universidade) e o que daí resulta (mobilização das forças alocadas nas universidades que estão interessadas em ter acesso a esses recursos), além dos efeitos decorrentes de tal operação (alterações na dinâmica de funcionamento das pós-graduações/reconstrução da política do departamento) Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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aparecem de um tal modo explicitadas que facilitam o entendimento de que a CAPES, por meio de recursos materiais e simbólicos externos, consegue mobilizar internamente as universidades gerando novas dinâmicas de funcionamento interno. Os consensos de equilíbrio gerados/aceitos no interior dos departamentos acadêmicos, somados às acomodações provenientes da ausência de um agressivo programa de progressão na carreira presentes nas universidades, são apresentados pelo editor da RBCS como exemplos, a partir dos quais é dificultada a capacidade de indução interna das universidades por si próprias. Deste modo, a CAPES ganha espaço/reconhecimento para atuar no financiamento e na avaliação da pesquisa científica via tais recursos/incentivos externos. Daí, as avaliações realizadas pela CAPES, recentemente tornadas quadrienais, terem como um dos seus objetivos aferir a qualidade da produção docente qualificada apoiada no Qualis-Periódicos. Nas palavras do próprio editor: Não tenho dúvidas que o Qualis tem uma enorme capacidade de influência …) porque é uma enorme máquina de indução... (…) A CAPES entra com aquilo que a universidade não pode fazer que é alocar seletivamente recursos. (…) e ao fazer isso, ela mobiliza as forças alocadas na universidade que estão interessadas em (...) ter acesso a esses recursos... e isso produz efeitos, né... (…) pode desempenhar um papel crucial para a construção da política do departamento. Como a Capes vai depender esses recursos
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da avaliação do departamento, ela tem operado no sentido de produzir uma... aceleração da dinâmica acadêmica dentro dos departamentos acadêmicos. (...) Então, (...) me parece que, grosso modo, o efeito da CAPES sobre as pós-graduações tem sido extremamente benéfico no sentido de produzir uma sintonia geral entre as diversas pós-graduações de que é preciso se comprometer com certos valores (...) e isso acaba mudando as opiniões das pessoas. Existia mais resistência à CAPES do que existe hoje; e (...) isso me parece salutar... acaba com alguns excessos. (...) É bom pra todo mundo. (…) acho positivo. Dito isto, as palavras dos editores da RSP e da RBCS no conjunto servem como alerta para a presença de forças políticas em disputa no campo e são consoladoras porque lembram que estas questões estão longe de serem exclusivas das Ciências Sociais ou, mais particularmente, da Ciência Política – tampouco, os problemas. Ainda assim depende, no caso da Ciência Política, mas igualmente de qualquer outra disciplina acadêmica, da posição que ela ocupa na hierarquia do conhecimento científico. E Ciência Política não pertence às grandes áreas do conhecimento já consolidadas e reconhecidas pelos pares e pela sociedade. Ela está em construção, ainda mais no Brasil. Depende também da instituição que a abriga e, no Brasil, não existem instituições com programas de pósgraduação em Ciência Política consolidadas em todas as suas Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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cinco regiões. (…) não dá nem para fazer a crítica pura e simplesmente, nem dá para ser ingênuo, [por]que isso [o Qualis] tem uma série de aprimoramentos, inclusive, tá sujeito às dinâmicas políticas, das correlações de força no campo. E, aí, ultrapassa a ciência política ou as ciências sociais, porque afinal, é a Qualis da Capes. Não é o Qualis de Ciências Sociais ou da Ciência Política. (Costa, P.)
(…) como o Qualis se tornou importante, existe uma disputa muito forte entre journals nacionais para ganharem o status A1. Isso implica em disputas, se você mudar a regra de que journal tem A1 ou tem A2 você muda a pontuação de um departamento... (...) [e] isso abre espaço para certas incertezas. (...) Não há consenso sobre isso na comunidade acadêmica e isso são temas muitos sensíveis. Então, provavelmente, nos próximos anos a gente se verá às voltas tentando imaginar saídas pras distorções produzidas pela lista Qualis, como se verá reagindo defensivamente a alguns dos critérios mais agressivos que a SCIELO está adotando no que diz respeito aos critérios de permanência dos periódicos na coleção de periódicos da
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SCIELO. (Lavalle, A.) Particularmente sobre o contexto de criação e a trajetória das revistas com destaque para as mudanças/rupturas ocorridas no tipo de conteúdo publicado em cada um dos sete periódicos, de maneira geral, é possível afirmar que, na percepção dos editores, cada revista tem alguma particularidade, até mesmo porque foram criadas em contextos políticos diferentes e com propósitos variados. Segundo os editores, todas, exceto a BPSR e a RBCS, em algum momento sofreram algum tipo de ruptura. Seja institucional, como foi o caso da DADOS ao migrar do antigo IUPERJ para o IESP-UERJ – processo que ocorreu entre 2010 e 2012; ou temática e teóricometodológica, como ficou mais evidente no caso da RSP, que de Teoria Política como tema predominante migrou para Instituições Políticas, Comportamento Político e Políticas Públicas nos últimos dois anos. Ou ainda a Lua Nova, que, por mais que se diferencie atualmente das demais revistas, porque ainda publica muita Teoria Política e Teoria Social, nasceu com propósitos claros de acompanhar e discutir a conjuntura política do país em diálogo profundo com os movimentos sociais. Foi particularmente o momento de inflexão da revista Lua Nova que lhe deu essa marca de revista forte em Teoria. Isso aconteceu quando a Teoria Política Normativa começou a ter peso na revista, quando da assunção dos editores Gabriel Cohn e Álvaro Vitta no início dos anos 90. Algumas revistas são mantidas e editadas por universidades. Outras, por associações profissionais, e a revista Lua Nova, pelo centro de pesquisa, reflexão e ação – como é denominado o CEDEC, centro de pesquisa que a mantém e a edita. Depende também Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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se foram concebidas e/ou permaneceram mantidas com ou sem apoio institucional, técnico e financeiro. A esse respeito a RSP e a RBCP encontram-se em lados diametralmente opostos. Segundo os editores das revistas: a primeira, criada a partir de um ato estritamente voluntarioso e absolutamente amador, sem apoio e recursos institucionais, com muitas dificuldades, numa universidade que não tinha tradição em ciências sociais e muito menos em ciência política, tornou-se, ainda assim, uma revista “bastante profissionalizada do ponto de vista da submissão de artigos, da produção de pareceres e da institucionalização dos recursos financeiros que a sustenta” e sua linha editorial tem cada vez mais priorizado estudos empiricamente orientados e quantitativos. A segunda, é uma revista que vem de uma Universidade que está fora do eixo Rio-São Paulo, com uma proposta de pluralização e de fazer avançar áreas marginais da Ciência Política e formas de abordagem da democracia que não ganham centralidade, por exemplo, no institucionalismo; que rapidamente conseguiu entrar na SCIELO e pode contar para o seu funcionamento, desde o seu renascimento em 2009, com suficiente apoio financeiro do Instituto de Ciência Política da UnB - instituição que a mantém e a edita. Algumas, como a RBCS, porque mantida por uma associação profissional, possui alta rotação de editores de forma a garantir que as três principais áreas das Ciências Sociais mantenham-se representadas no decorrer do tempo. A DADOS, revista mais antiga dentre as que fazem parte desta pesquisa, nasce com a proposta de ser uma revista moderna. “De patinho feio das Ciências Sociais a revista se impôs até se transformar numa das revistas mais importantes da área”, relata Pessanha, editor emérito da revista desde 2013. A Opinião Pública que “foi um
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espaço (…) para tratar em língua portuguesa e para trazer para o Brasil uma temática da Ciência Política quantitativa… (…)” foi a revista que mais se manteve estável dentre as analisadas na presente pesquisa e segundo sua editora, Fabíola Del Porto, estudos quantitativos sobre Comportamento Político e Políticas Públicas têm sido cada vez mais crescentes na revista. A partir desta breve caracterização das revistas, é possível notar a pluralidade de fatores que as circundam e algumas mudanças de tipo temática e teórico-metodológica, frutos dos efeitos da SCIELO e do Qualis-Periódicos, como já mencionados, mas, principalmente, dos processos de institucionalização e/ ou de autonomização da disciplina e de profissionalização dos periódicos. As palavras de Breno Bringel, editor da DADOS, e de Perissinotto, editor da RSP, respectivamente, são ilustrativas nesse sentido: Nos primeiros 20 anos da DADOS, o que havia basicamente na revista eram grandes tentativas de interpretação dos problemas brasileiros. Claro que tinha toda aquela discussão sobre o caráter ensaístico de alguns textos... (...) Eu acho que isso tem diminuído e tem a ver com a institucionalização do campo. Então, metodologicamente, nós avançamos na sofisticação de técnicas (...) mas, por outro lado, nós perdemos, em boa medida, esse olhar mais abrangente.
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(…) foi uma coisa que foi surgindo em função das pressões do campo... eu acho que esse momento [de ruptura] foi o momento em que a gente começou a perceber que (…) ou nós nos profissionalizaríamos um pouco mais, ou a revista ia acabar. (…) A partir de um certo momento (…) nós contratamos o Gustavo - contratamos, leiase: pedimos ajuda do Gustavo (...) e agora nós entramos com o Lucas, (...) também trabalha de graça e introduziu uma série de mudanças importantes, talvez a maior delas seja o Scholar-One [da SCIELO] que é um processo informatizado de submissão de artigos...
Limites, Impasses e Dilemas
Esta seção apresenta a percepção dos editores a respeito dos limites, impasses e dilemas enfrentados pela disciplina a partir de quatro questões feitas aos editores. A aceitabilidade, 16
16 Questão 19: Muitos dos artigos são publicados individualmente por professores dos programas nacionais de pós-graduação. O que o senhor pensa sobre a coautoria? Ela é importante e necessária para o avanço da ciência política brasileira? Questão 21: Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre o papel desempenhado pelos editores de periódicos científicos no Brasil, como é ser editor de revista científica? Quais são os limites, os benefícios e as dificuldades? Questão 24: Eu gostaria que o(a) senhor(a) citasse um grande problema que a ciência política brasileira ainda precisa superar e uma importante questão sobre o Brasil que caiba a essa ciência responder, mas que ainda não o fez.
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relevância ou suficiência das instituições políticas democráticas, enquanto objetos de análise próprios da Ciência Política brasileira, assim como o abandono progressivo da História e do viés sociológico pela disciplina foram assuntos discutidos amplamente pelos editores. Inclusive, o próprio significado dado à palavra política. Por exemplo, o editor da Lua Nova, ao referir-se à abordagem institucionalista, faz o seguinte questionamento: “por que a gente não pode chamar de instituição qualquer tipo de prática social reiterada, mesmo que ela não seja oficial?”. Algo semelhante é afirmado pelo editor Luis Felipe Miguel. Para ele, “o grande problema da CP, e não só [d]a brasileira, é, em geral, lutar contra essa sua tendência à autonomização da esfera da política em relação às outras esferas sociais”. Igualmente, “lutar contra a posição subserviente que ocupa em relação aos modelos da Ciência Política que vêm dos EUA (…) [e] entender o que significa democracia política nas circunstâncias de desigualdade social profunda”, são tarefas, na percepção do editor, a serem desempenhadas pela disciplina no Brasil, uma vez que, nas palavras do editor: A minha crítica à parte da CP institucionalista, que não vê a influência dos padrões de dominação presente na sociedade e tal..., no funcionamento desse mundo da política é que cada vez que você está reproduzindo uma interpretação do mundo que não vê esses problemas, você está escondendo a existência desse problema, cê está contribuindo para que eles não sejam
Questão 25: O que o(a) senhor(a) considera como sendo alguns dos limites, impasses e dilemas da ciência política no Brasil?
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atacados... Então, eu acho, é claro, não é a CP que vai resolver esses problemas... eu acho que isso é uma tarefa coletiva... mas, se nós temos recursos privilegiados, porque tivemos acesso a esses recursos, eu acho que cabe a nós tentar usá-los. Talvez essa crítica feita por Luis Felipe Miguel, editor da RBCP, à parte da CP institucionalista, possa ser lida, ao menos em parte, como produto do modo como a Ciência Política tem tentado solucionar a relação existente entre os seguintes termos: “independência epistemológica e utilidade pública ou social”, apontados por Paulo Costa, editor da RSP, como um dos desafios que é comum às ciências sociais. Crítica semelhante é feita por Breno Bringel, editor da DADOS, pois para ele: “boa parte das questões que são tratadas a partir de uma ótica mais institucional, podem ser olhadas também a partir de uma ótica mais sociológica, de uma Sociologia Política... e isso enriqueceria muito o debate nacional.” Assim como estes, outros editores questionam o alcance teórico e metodológico da abordagem neo-institucionalista. Para Perissinoto, o abandono do diálogo com a História precisa ser superado pela disciplina que, segundo ele, “saiu de um estágio ensaísta para outro, marcado pela hiperespecialização” e se tornou “demasiado ‘presentista’”. Para Marta Arretche, o principal desafio da disciplina, apesar do avanço alcançado na “compreensão da dimensão institucional”, é a necessidade da Ciência Política “avançar muito naquilo que se chama de Sociologia Política”, pois, segundo ela:
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(...) toda a teoria institucional, ela diz assim: as instituições afetam (...) como os conflitos são resolvidos. Mas os conflitos não são apenas entre atores institucionais, não é só entre o Eduardo Cunha e a Dilma Roussef. [Estes] representam os interesses da sociedade, interesses econômicos, interesses privados e sobre isso a gente sabe muito pouco. Outro problema a ser superado pela disciplina e que tem a ver com aquilo que é próprio da Sociologia Política, ou seja, com a defesa de uma análise dos fenômenos políticos, também, a partir de uma ótica sociológica, é citado por Adrian Gurza Lavalle, editor da RBCS. Segundo ele, A sociedade civil se institucionalizou, passou a assumir funções estatais; o Estado passou a fazer ativismo e essas duas coisas não estão separadas (...). A literatura [institucionalista] continua a olhar para essas duas coisas como se tratassem de fenômenos diferentes e como se não fosse preciso produzir uma interpretação que permitisse entender quais são as dinâmicas e os mecanismos que levaram a produzir isso. (…) [mas esse] não é um tipo de problema que um institucionalista preocupado com partidos vai se colocar (…) Cicero de Araújo, diante da atual pressão sob a qual vive o
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mainstream da Ciência Política praticada no Brasil, sugere que a comunidade científica adote um meio-termo, pois, segundo ele: A ciência política brasileira, pavimentada num mainstream institucionalista, respondeu muito bem, a meu ver, ao tempo de construção institucional da democracia no país. Mas agora, acho eu, os tempos estão mudando... só que não sabemos ainda em que direção as coisas tendem a decantar. Os cânones predominantes da disciplina ficam, com isso, sob enorme pressão. Mas isso não é necessariamente ruim, desde que a comunidade científica respectiva não ceda a dois extremos: abrir-se tanto a ponto de perder sua identidade (e densidade) intelectual; ou fechar-se tanto a ponto de perder completamente o senso do fluxo da realidade. Os editores, ao falarem sobre o papel que desempenham enquanto editores de periódicos científicos, apontaram diversas dificuldades pelas quais passam a disciplina e seus praticantes. Para eles, num país como o Brasil, em que o trabalho do editor de periódico científico não é reconhecido como uma ocupação profissional e, no qual, muitas das revistas científicas sobrevivem com dificuldades financeiras e pouco apoio institucional, o editor é o sujeito que realiza um trabalho gratuito e, às vezes, improvisado, porém, reconhecido
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pela comunidade acadêmica. Nas palavras de Cicero Araújo, “o editor é um ‘pé de boi...’ , é o sujeito que tem que usar horas extras do seu trabalho profissional para garantir que cada número saia (…)”. Os trechos abaixo são exemplos demonstrativos do papel decisivo que possui o editor de periódico científico na seleção prévia dos artigos que recebem para avaliação e, portanto, de imediato, na definição daquilo que aparece ou não publicado na revista. Segundo os editores das revistas Opinião Pública, Revista de Sociologia e Política, BPSR e DADOS nem todos os artigos submetidos às respectivas revistas são encaminhados para os pareceristas, pois: (…) a gente faz uma triagem nos artigos de tema e método… não é falar: isso aqui é ruim..., não vou nem mandar... [para o parecerista]. A gente confia que se for ruim os nossos pareceristas vão identificar... (…) a gente não seleciona – esse vai primeiro, esse vai depois –, a gente segue a fila [de publicação] (…) mas, às vezes, se tiver muitos artigos [numa mesma área], aí complica... porque... (…) a gente tem que achar gente nova... outras... Então, tem isso também... [que é um problema por conta da necessidade de encontrar novos pareceristas, escassos em determinadas temáticas, por vezes] (DEL PORTO, F.)
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(…) o editor (...) vai olhar o conteúdo do artigo, vai vê, primeiro, se tem aderência, se é um artigo acadêmico... [porque] você não vai batalhar pra conseguir um parecer para uma coisa que você já sabe que...vai gastar o trabalho do cara [do parecerista] à toa e o seu também, obviamente. Feito isso, vai para o parecerista. (COSTA, P.)
(…) o nosso editor-executivo faz uma triagem que é ver se o trabalho é original, (...) se ele é um trabalho no campo da CP, se ele é um artigo científico, né... porque às vezes chega um trabalho que é assim, um trabalho de final de curso, que tem 10 páginas e que... é impublicável, né. (…) Depois, nós apontamos o parecerista. Os pareceristas, a gente sempre procura pegar um europeu, um brasileiro e um americano [para cada artigo]. (ARRETCHE, M.) A dificuldade para encontrar pareceristas competentes e com tempo disponível para emitir pareceres é outro tipo de problema enfrentado pelos editores. Segundo eles, uma das dificuldades que encontram nesse sentido está relacionada com o fato de que o trabalho do parecerista não é uma atividade considerada pela CAPES para fins de avaliação do trabalho docente, tampouco dos programas de pós-graduação. Além
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disso, “a comunidade acadêmica é pequena para determinadas temáticas”, afirma Fabíola Del Porto, editora da Opinião Pública. O trecho seguinte, do editor Paulo Costa, da RSP, deixa notar essa problemática, pois, segundo ele: Ainda está sendo, na minha modesta opinião, em segundo plano ou mal engendrada no ambiente acadêmico, e, particularmente, na revista... a questão dos pareceres. Ou seja, os pareceres são, de um lado, extremamente importantes porque são os que decidem se (…) alguém vai publicar um artigo e assim por diante (…) e, paradoxalmente, a emissão de pareceres é mal regulamentada (…) [o trabalho do parecerista] é muito pouco valorizado, tanto é, que muitas vezes você pede um parecer e a pessoa pensa: puxa vida... Por que? Porque ela tem que parar o que ela tá fazendo pra ler... [o artigo que foi convidada a dar parecer] A relação editor-parecerista-autor também é uma das preocupações que possuem os editores pois, segundo Charles Pessanha, Um editor científico não pode ter preconceitos a metodologias e a teorias... (...) ele tem que ser uma pessoa justa... (…) porque você não pode pedir uma avaliação num artigo esperando de antemão que aquele Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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artigo vai ser ajudado ou prejudicado [por um ou outro parecerista]. Ou ainda, segundo Fabíola Del Porto, editora da Opinião Pública, o editor lida com as dificuldades advindas da administração do tempo, tanto do parecerista, como do autor, na expectativa de produzir, segundo suas palavras, “um número bacana e que contribua com o debate acadêmico [mesmo que um pouco fora do ‘calor da hora’]”. Trabalhos publicados em coautoria nas ciências sociais brasileiras são vistos pelos editores como algo recente, produtivo e benéfico, mas também como mero meio de multiplicar assinaturas de artigos. Quando produto de um trabalho em conjunto, segundo Perissinoto, editor da RSP: “capaz de expressar uma pesquisa coletiva em funcionamento”, a coautoria amplia as chances de realização de uma análise mais ampla e completa melhorando a qualidade da produção acadêmica. Um dos benefícios de trabalhos realizados em coautoria, segundo Cicero Araújo, é a possibilidade de uma “experiência de interação e de compartilhamento de perspectivas”, pois para ele: (…) quando você publica um artigo sozinho é raro você ter a possibilidade de ter um feedback de outras pessoas antes de você publicar, porque as outras pessoas tão tão ocupadas... estão, também, procurando publicar (…) Mas, quando você convida uma outra pessoa, ou até uma terceira é uma
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oportunidade de você fazer um feedback antes de publicar, para melhorar a qualidade do texto (…). Porém, quando a coautoria é artificial, ou seja, quando serve meramente como um meio de responder a uma demanda das instituições de avaliação do trabalho docente e dos programas de pós-graduação, para Charles Pessanha, editor da DADOS, “isso é considerado má conduta em ciência porque você está mascarando a produção, você está enganando, está mentindo... e tudo o que um pesquisador precisa ter é credibilidade nas suas palavras...”. Inclusive, segundo Pessanha, “um dos temas que mais se discute na ética da produção científica e divulgação científica é a coautoria... é onde [afirma ele,] você vê o maior número de comportamento... [de] má conduta em ciência...”. As palavras de Gurza Lavalle transcritas abaixo, apesar da extensão do trecho, se justificam porque em grande medida representa o que a maioria dos editores entrevistados pensa sobre a coautoria nas ciências sociais. Por motivos diversos, justificáveis ou não, nas CS nós não publicamos artigos com 15 coautores (…) De modo que o número menor de coautorias nas CS tem a ver com que não temos um modelo de trabalho no laboratório (…) A minha... compreensão a respeito da coautoria não é que ela seja necessária, ela é positiva, ela é altamente benéfica e eu tendo a acreditar que ela é cada vez mais inescapável se você quiser produzir conhecimento sobre Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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questões mais amplas que demandam... tecnologias mais sofisticadas, formas específicas de coletas de dados muito complexas e um grau de especialização considerável sobre temas diferentes. Com esse nível de especialização que tem hoje os desenvolvimentos metodológicos, teóricos e de conhecimentos de objetos específicos é difícil que alguém consiga reunir tudo isso... [para publicar] com o seu nome. (…) Então, a esse respeito acho que a coautoria, ela, é extremamente salutar desde que entendida como um processo genuíno de criação e envolvimento na produção do conhecimento em condições de igualdade daqueles que participam [da produção do conhecimento] (…) A RBCS como todas as outras revistas de CS, não tem indicações explícitas a respeito da limitação do número de autores. Isso não consta nas suas normas de publicação. Mas, provavelmente, recusará artigos, (...) que tenha um número muito elevado de... autores. A essas ressalvas colocadas pelos editores da RSP, da DADOS e da RBCS, juntam-se outras. Por exemplo, a de outro editor da RSP, Paulo Costa, que apesar de afirmar que a coautoria é algo positivo e fundamental, adverte: Não sejamos ingênuos de achar que isso
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também não passa por um aspecto de pressões institucionais que também tem um fator tanto positivo, quanto um fator meramente quantitativo (…) há uma pressão pra publicar, né. Então, se um professor pensava em publicar um artigo num período, ele tem que pensar em publicar três vezes mais isso. Como não necessariamente ele vai conseguir trabalhar três vezes mais isso, fazer pesquisa e produzir texto, a saída natural é... buscar coautoria, só que o que eu tô querendo dizer é que [se] as coautorias (...) ficarem só nessa dinâmica, elas não tão acrescentando muita coisa. Ampliar a cooperação entre os programas de pós-graduação, promover maior e profundo diálogo entre os pares, incluir a leitura de autores latino-americanos nos cursos de Ciência Política, melhorar as condições de trabalho docente e de pesquisa, consolidar a qualidade e a presença da Ciência Política em âmbitos nacional e internacional, diminuir as dificuldades existentes no que diz respeito às condições de ensino, produção, publicação e circulação internacional da ciência política nacional em língua inglesa, enquadrar os limites da democracia pensando na possibilidade de reavivar os ideais democráticos de liberdade e igualdade nas suas instituições, oferecer uma reflexão honesta a respeito das instituições políticas para a sociedade, revisar os critérios de avaliação das revistas e dos programas de pós-graduação levando em consideração as condições diferenciais de Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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produção acadêmica existentes no Brasil, dentre outros, também foram citados pelos editores como desafios a serem enfrentados atualmente pela disciplina.
Considerações Finais
De modo geral, a análise da percepção dos 12 editores entrevistados deixa notar explicitamente a defesa que parte da comunidade acadêmica faz da Sociologia Política enquanto forma de abordagem necessária na análise dos fenômenos políticos. Ao fazerem essa defesa, em contrapartida, criticam a abordagem institucionalista e o método quantitativo frequentemente por ela utilizada no estudo das instituições políticas formais. Essa tensão no campo, no entanto, pode ser entendida como produto dos processos de institucionalização e de autonomização da disciplina, que, embora ainda em disputa no Brasil, dão conta de hierarquizar o campo. A CAPES e a SCIELO são fundamentais nesse processo de hierarquização, uma vez que definem os critérios sob os quais a disciplina se curva, em maior medida e pouco resistente, à sua parte hegemônica, mas também à parte periférica, quando desejosa ou necessitada de ser reconhecida e, portanto, ‘merecedora’ dos incentivos materiais e simbólicos que se encontram disponíveis de forma desigual no campo. Em resumo, para alguns da área, a adoção do viés institucionalista no estudo daquilo que essa abordagem define como política contribui com a demarcação das
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fronteiras da disciplina mesmo limitando seu alcance temático e teórico-metodológico. Para outros, a hegemonia da corrente institucionalista no campo oferece o risco de um bloqueio do diálogo interdisciplinar e do abandono precoce da abordagem societal, fenômeno que jogaria sombra sobre objetos relevantes como a democracia enquanto fenômeno social e não só institucional. Aparecem, assim, a abordagem institucionalista e o método quantitativo como pano de fundo a partir do qual as críticas emergem nas falas dos editores, os limites, impasses e dilemas presentes na disciplina. Todos os 12 editores reconhecem os avanços na disciplina, principalmente os relacionados à expansão e consolidação dos programas nacionais de pós-graduação em Ciência Política e as questões que daí decorrem. Os encontros promovidos pela ABCP e a crescente profissionalização dos periódicos científicos são citados pelos editores como algo que proporciona, de forma periódica e sistematizada, o debate entre os pares. Nesse sentido, concordam com o que aparece expresso no relatório trienal 2010-2012 da CAPES da área de Ciência Política e Relações Internacionais. No entanto, dez dos doze editores entrevistados afirmam explicitamente que os fundamentos teóricos na construção de uma pesquisa científica são indispensáveis sob o risco de perda de relevância da pesquisa. Neste ponto, mais uma vez, a crítica aos trabalhos que se utilizam quase que exclusivamente de métodos quantitativos aparece na fala dos editores. No que diz respeito à trajetória dos periódicos científicos que editam, os editores afirmam que em grande medida, ao se verem diante da necessidade de se adequarem aos critérios das agências de financiamento, particularmente aos da CAPES, mas também aos da SCIELO, acabam definindo novos Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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rumos temáticos e teórico-metodológicos para as revistas. Por vezes, não sem resistência, afirmam eles. Evidência recente da adaptação das revistas pode ser observada a partir da redefinição dos perfis editoriais de algumas delas, que pode ter ocorrido em atendimento aos novos critérios da SCIELO , que passam a vigorar em 2016 — tal como a publicação de, no mínimo, 15% dos artigos da área de Humanas na língua inglesa. É o caso, por exemplo, do periódico RBCP, cuja nova equipe editorial anuncia na página da revista no Facebook Estimulamos a submissão de artigos exclusivamente teóricos, mas gostaríamos de destacar a preferência por trabalhos com abordagens empíricas baseadas em metodologias quantitativas ou qualitativas. Como um primeiro anúncio, informamos que a Revista agora aceitará artigos escritos em inglês e espanhol. Por último, anunciamos que a gestão da submissão e da avaliação dos artigos em breve passará a ser feita via plataforma SCIELO. 17
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Referências
HALL, Peter; Taylor, Rosemary (2003). As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova [online]. 2003, n.58, pp.193-223
17 Novos Critérios da SCIELO Brasil. Disponível em: <http://www.scielo.br/avaliacao/ 20141003NovosCriterios_SciELO_Brasil.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2016. 18 Disponível em: <https://www.facebook.com/rbcp.unb/?fref=ts>. Acesso em: 23 abr. 2016.
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NEAB LIMA BARRETO E O HOMEM DE DENTES NEGROS E CABELOS AZUIS Jules Ventura Silva
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LIMA BARRETO E O HOMEM DE DENTES NEGROS E CABELOS AZUIS Jules Ventura Silva
Resumo:
No presente artigo temos como objeto de análise Dentes negros e cabelos azuis (1920), conto que nos fornece uma chave de interpretação promissora sobre o significado político do projeto literário de Lima Barreto (1881-1922). Nesse sentido, partimos de uma reflexão sobre a condição marginal do referido escritor, com ênfase no significado socialmente vinculado que ele adquire em tempos de racismo científico. Depois, investigamos o texto ficcional de modo a explicitar como ele explora tal condição, no sentido mais trágico que ele possa ter e através de uma sobreposição de máscaras ficcionais. Por fim, apontamos para as formas de mediações sociais que o autor busca promover através do artifício literário de autoficção, que funciona de modo a lhe permitir dizer o indizível. Como demonstraremos, essa leitura possível do conto em questão nos sugere que o seu autor tinha por objetivo produzir um artefato artístico imbuído da função de promover uma forma de intervenção social. Isto através de uma espécie de politização da intimidade que lhe permite lançar luz não apenas para o seu caso de “desajustamento social”, mas também para um drama coletivo vivenciado pelas camadas letradas e não-brancas da Primeira República.
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Palavras chave: Marginalidade; Racismo científico; Literatura; Mediação.
Abstract:
In the present article, we have as an object of analysis Black Teeth and Blue Hair (1920), a tale that provides us with a promising key to the political significance of Lima Barreto’s literary project (1881-1922). In this sense, we start from a reflection on the marginal condition of this writer, with emphasis on the socially linked meaning that it acquires in times of scientific racism. Then we explore the fictional text in order to explain how it explores such a condition, in the most tragic sense it may have and through an overlap of fictional masks. Finally, we point to the forms of social mediations that the author seeks to promote through the literary artifice of self-fiction that works to allow him to say the unspeakable. As we shall show, this possible reading of the tale in question suggests to us that its author intended to produce an artistic artifact imbued with the function of promoting a form of social intervention. This is through a kind of politicization of intimacy that preterit him to shed light not only on his case of “social maladjustment” but also on a collective drama experienced by the literate and nonwhite layers of the First Republic. Keywords: Marginalization; Scientific Racism; Literature; Mediation. Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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O homem marginal em tempos de racismo científico
Oh! A ciência! Eu era menino, tinha aquela idade, andava ao meio dos preparatórios, quando li, na Revista Brasileira, os seus esconjuros, os seus anátemas [...] Eles me encheram de medo, de timidez, abateramme; a minha jovialidade nativa, a satisfação de viver nesse fantástico meio tropical, com quem tenho tantas afinidades, ficou perturbada pelas mais degradantes sentenças. Desviei a corrente natural de minha vida, escondi-me em mim mesmo e fiquei a sofrer para sempre.
Lima Barreto
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Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) foi um escritor mulato cuja vida e obra formaram uma unidade comovente onde a vida alimentou a obra e esta, por sua vez, parece também ter alimentado a vida: num ciclo iniciado com a escrita do seu Diário Íntimo (1900-1918) e terminado apenas com a sua morte, em novembro de 1922. A questão é que o referido escritor parece ter transformado a si mesmo na causa principal de sua literatura ao imprimir nela as tensões que ele vivenciava e promovia com as suas pretensões de 19 BARRETTO, Afonso H. Lima. Um Longo Sonho do Futuro. Diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas. Rio de Janeiro: GRAPHIA, 1993. p. 98.
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ocupar determinados lugares sociais como, por exemplo, o de Homem das letras. Entretanto, é verdadeiro também que ele depositara nela a esperança de que, ao explorar o próprio caso, poderia colaborar de modo decisivo para o reconhecimento da existência de um verdadeiro drama coletivo. Nesse caso, não o drama propriamente da exclusão, mas principalmente da assimilação precária vivenciada por tipos “não-brancos” no período pós-abolição da escravatura. Com efeito, Lima Barreto foi o primeiro intelectual negro a emergir no período de transição no Brasil de um regime escravocrata para uma nova ordem de classe e “liberal” - da perspectiva das “pessoas de cor” (BOSI, 1995, p. 274). Isso, não do ponto de vista do recém-liberto, mas das “pessoas de cor” livres que há muito já haviam constituído uma classe acomodada dentro da estrutura social escravocrata. Referimonos a pessoas com marcadores fenitípicos negros, “mulatas” em geral, que, de acordo com Freyre (2004), emergem como uma verdadeira potência social na segunda metade do século XIX e que puderam traçar trajetórias sociais de ascensão social diversificada, principalmente pelas vias abertas, pela instituição do apadrinhamento. De acordo com Needell (1993, p. 227), a instituição do apadrinhamento funcionava como um mecanismo de incorporação social de protegidos pelas elites brasileiras aos seus círculos sociais e, por conseguinte, a suas redes de prestações e contraprestações. Mecanismo esse que, por vezes, incluíam os filhos inconfessos de senhores de escravos, aliás, casos estes em que se enquadram os de João Henriques Lima Barreto e Amália Augusta Pereira de Carvalho - pais do escritor -, mas que se estende também aos seus filhos na medida em que eles lançaram mão desse mecanismo a fim de Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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lhes garantir uma possibilidade de ascensão social. Assertiva que se aplica principalmente ao caso de Lima Barreto que, por ser homem e o filho mais velho do casal, tornou-se o principal beneficiário desse tipo de investimento (SILVA, 2011). O fato é que junto com seu primeiro nome, que recebeu em homenagem ao seu padrinho, Lima Barreto herdara também de seus pais a proteção de Afonso Celso de Assis Figueiredo (1836-1912), político importante de sua época que lhe deu condições de receber uma educação em par de igualdade com a dos filhos das elites oligárquicas (BARBOSA, 1974, p. 94). Entretanto, a despeito de ter se engajado no projeto familiar de ascensão social por meio da ilustração, isso não o pouparia de passar como Isaías o “suplício premente, cruciante e onímodo” de sua cor(BARRETO, 2003, p. 10). A questão é que o escritor percebia com tristeza o fato que, devido à sua visível pertença étnico-racial, ele estava impedido de receber um tratamento social compatível com aquele recebido pelas pessoas brancas de mesma educação que a sua. No trecho abaixo, reproduzido de seu Diário Íntimo, ele registra essa melancolia coesa com a dureza advinda do reconhecimento de sua condição: Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. Encontrei Juca Floresta. Fiquei tomando cerveja na barca e saltei. É triste não ser branco. (BARRETO, 1993, p.84).
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Devido à sua condição ambivalente de mulato letrado, Lima Barreto estava condenado a levar uma vida entre meio, ou melhor, à margem de dois mundos, nesse caso: do mundo dos negros e do mundo dos brancos. Como observara Gilberto Freyre (1956, p.14), ele fora relegado a essa condição porque era letrado demais para ser considerado sociologicamente negro, e negro e pobre demais para ser considerado sociologicamente branco. Ao que acrescentamos o posicionamento orgulhoso demais para aceitar uma posição social qualquer, incompatível com a alta representação moral e intelectual que fazia de si mesmo. Mulato e orgulhoso, Lima Barreto encarou a sociedade patrimonialista nos olhos e se recusou a assumir perante ela a postura esperada das pessoas de seu nascimento, a dizer: obediência, humildade e fidelidade (BASTOS, 1995, p. 173). Desvinculando-se das relações de interdependência para com seu padrinho e abandonando o projeto familiar de tornar-se doutor de anel e sobrecasaca preta, ele se entregou ao ofício de “homem das letras” que era ser jornalista e escritor (COSTA, 2005). Nesse sentido, é preciso ter em vista que uma das razões de sua entrega ao ofício de escritor advinha do fato de ele tê-lo concebido como uma forma de levante, ao mesmo tempo intelectual e moral contra a elite branca e letrada da primeira república. Podemos verificar a assertividade dessa afirmação recorrendo a uma passagem de seu diário na qual ele registra o estado de melancolia profunda em que, por vezes, se encontrava e que o fazia pensar em suicídio: O que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande humanidade de que quero fazer parte.
Mas não é só não ser inteligente que me abate. Abate-me também não ter amigos e ir perdendo os poucos que tinha. Santos está se afastando; Ribeiro e J. Luís também. Eram os melhores. Carneiro (o Otávio), o egoísta e frio Otávio, está fazendo a sua alta vida, a sua reputação, o seu halo grandioso, e é preciso não me procurar mais. Eu esperava isso tudo; mas não pensei que fosse tão cedo. [...]
Eu os sabia desse feitio, principalmente o O. C. Ele tinha um lustre, um verniz de independência e desinteresse, de superioridade e de grandeza, mas a vida, a grande vida, a fortuna, as fêmeas e uma esposa assim, pedem outras coisas muito diferentes: submissão, respeito pelo estabelecido, companhias que não sejam suspeitas, etc.
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Eu fico só, só com os meus irmãos e o meu orgulho e as minhas falhas. (BARRETO, 1993, p. 60) Apesar de extenso, o trecho acima transcrito ilustra muito bem o fato de que o amor pela literatura, na forma visceral e ascetista que tomou Lima Barreto, está intimamente relacionada a um investimento em um projeto literário imbuído de um caráter redentor. Isso é particularmente verdadeiro quando consideramos as expectativas que ele depositava no Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) – seu romance estreia - que, nas suas palavras, tinha por objetivo: “fazer ver que um rapaz nas condições de Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito com seu cortejo, que é, creio, cousa fora dele”(BARRETO, 1956, p. 258). Concebendo o ofício de escritor como um sacerdócio, Lima Barreto abdicou de outros destinos que lhe estavam abertos para depositar toda a sua esperança de reconhecimento no valor de sua literatura. Entretanto, ele vivenciava em todas as dimensões de sua vida as questões típicas de sua condição marginal e colocadas pelo permanente conflito de lealdades que sofria. O problema é que o referido escritor estava ligado,
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por um lado, pela empatia decorrente das experiências de constrangimento e humilhação ao mundo dos negros, e pela educação e gosto ao mundo dos brancos. Deste fato decorre a aparente contradição que a vivência como pretendente à porta voz de um grupo do qual se sentia parte, mas não poderia conviver com ele em razão de sua ilustração. Como também os ressentimentos que alimentava em relação às pessoas brancas e ilustradas que se demonstravam, apesar de tudo, incapazes de reconhecer-lhe o drama. Implica desse conflito o agudo sentimento de exílio que experimentava. Exílio este que só pode reconhecer as razões quase no término de sua vida. Paradoxalmente, o lugar no qual ele registra essa especial lucidez foi em seu Diário do Hospício - escrito no período de seu internamento no Hospital dos Alienados do Rio de Janeiro: O meu transplante forçado para outro meio que não o meu, a necessidade de conivência com os de meu espírito e educação. Estranheza. A minha ojeriza por aqueles meus companheiros que se animam a falar de cousas de letras e etc. O J. P. que se animava a discutir comigo Zola e falar sobre edições, datas, etc. Entretanto, eu gostava dele. Rime mais que nunca quando, percebendo tudo isso, lembrei-me que me supunha um homem do povo e capaz de lidar e viver com o povo. Conclui que nem com ele, nem com ninguém (BARRETO, 1993, p. 192).
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A forma visceral com a qual Lima Barreto enfrentou as contradições sociais que se inscreviam em seu espírito, na forma desse permanente conflito de lealdades, não deixou de trazer-lhe consequências. Seu estado, por vezes febril com o qual se entregou ao trabalho de expiar as suas misérias, somado à dependência alcoólica fez-lhe, parafraseando Hidalgo (2008), se aproximar dos domínios da loucura: referindo-se por isso aos espaços internos dos hospitais para alienados. E foi nesses espaços que ele se defrontou com a psiquiatria alienista que, de acordo com Nascimento (2003, p. 24-28), abstraia da esfera da razão e da alma a etimologia da loucura para localizá-la na degeneração. Isto é, para situar a origem do mal nos caracteres hereditários e raciais dos indivíduos (COSTA, 2005, p 22). Recuperamos agora a expectativa que Lima Barreto mantinha de escapar do roll dos incapazes que a nossa antropologia oficiosa decretou e firma-se como homem das letras(COSTA, 2005). O termo que faz referência às disciplinas que incorporavam as técnicas antropométricas (criminologia, medicina legal e alienismo) e que serviam para diagnosticar casos de desvio social apontando para a existência de uma interlocução do autor com o racismo científico. Ou ainda, mais especificamente, com a teoria da degenerescência do mestiço, que pressupunha que a mistura entre raças diferentes e desiguais davam origem a um tipo fadado a desenvolver comportamento antissocial como: alcoolismo, criminalidade, loucura, misticismo, promiscuidade sexual (NASCIMENTO, 2003; WEYLER, 2006). Fazemos esses esclarecimentos porque eles nos dão condições de apontar para o fato de que a própria natureza da relação que Lima Barreto manteve com o artefato artístico acabou levando-o Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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a ir de encontro à profecia racialista do qual queria escapar. Em um texto, sem data, intitulado “Da minha cela”, no qual descreve a sua situação como interno do Hospital Central do Exército, afirma que o seu caso era de grande interesse dos médicos da época, pois, conforme ironizou, eles tinham interesse de obter dos literatos, como ele, subsídios aos seus estudos “A fim de que um dia se chegue a decifrar, explicar, evitar e exterminar esses dois inimigos da nossa felicidade”. Na ocasião, o escritor narra que havia sofrido, além dos inquéritos psiquiátricos, mensurações antropométricas recebendo o diagnóstico de que era brachyceplhalo que, conforme traduziu, significava que se tratava de um tipo inferior . A questão é que, aos olhos de um observador de sua época, ele poderia ser tomado como mais um caso tipo de degenerescência racial envolvendo um mulato (SCHWARCZ, 2011, p. 4). 20
20 Sobre esse episódio ler: BARRETO, Lima. Da minha cella . in: Bagatelas. Rio de Janeiro: Imprensa dos Romances Populares, 1923, p. 52-57.
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Figura1 - Charge de Lima Barreto
Fonte: Biblioteca Nacional21
Entretanto, ele não assumiu uma postura passiva em relação aos processos e técnicas de subjugação de suas faculdades mentais, ao contrário, encontrou sempre na literatura uma forma de afirmação intelectual. Destarte ele acabou desenvolvendo uma obra de natureza realista, egotista e militante por meio da qual buscou desenvolver um projeto político e literário imbuído de um caráter duplamente redentor, pois, ao mesmo tempo, individual e coletivo. Um dos textos nos quais encontramos de forma mais explícita e dramática esse confronto e enfrentamento do escritor com o racismo científico é no conto Dentes negros e cabelos azuis 21 Charge embutida no meio de um artigo sem assinatura publicado em 13 de Abril de 1918 no jornal A.B.C, na qual o autor comenta o episódio da prisão de Lima Barreto, enquanto esse embriagava-se nos arrabaldes de sua casa. Lamentando o tratamento humilhante por ele recebido pelos policiais que desconsideraram o fato de ele ter se apresentado como “homem das letras”. [Autor desconhecido] Analogias Pitorescas. A.B.C, Rio de Janeiro, n. 162, p. 16, 13/4/1918.
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de 1920. Ao tomar o referido conto como objeto de reflexão, pretende-se verificar como seu autor buscou tencionar a explicação científica de sua tragédia através da ficção.
Lima Barreto e o homem de Dentes Negros e Cabelos Azuis
Dentes Negros e Cabelos Azuis (1920) faz parte da antologia de contos Histórias e Sonhos (1918) e pode ser descrito como constituído de duas partes distintas, mas indissociáveis porque complementares, a dizer: a primeira parte, formada por um prefácio no qual Lima Barreto encarrega-se de apresentar o “autor” do referido conto - descrito como sendo um amigo de longa data do escritor; e a segunda parte, formada pela narrativa ficcional criada por Gabriel - autor da história protagonizada por um personagem portador dos atributos extraordinários que dão título ao conto. Embora o conto em questão não possa ser reduzido a nenhuma dessas duas partes, essa distinção preliminar torna-se necessária uma vez que ela revela as diferentes estratégias narrativas empregadas pelos “autores” de Dentes negros e cabelos azuis, bem como seus objetivos. No primeiro plano e em termos formais, essas diferentes estratégias resultam diretamente numa inflexão que encontramos no texto, que começa com uma descrição e termina com uma narrativa. A descrição, no caso, é realizada por Lima Barreto e consiste num esforço por parte do escritor de apresentar o “autor” de Dentes negros e cabelos azuis ao
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seu público; enquanto a narrativa criada por Gabriel, por sua vez, dramatiza a condição trágica de vida de um homem que se vê exilado em sua própria imagem/corpo. Contudo, a importância dessa inflexão formal realizada pelo escritor está na inversão de perspectiva que ela produz, pois, ao prefaciar a obra de Gabriel, Barreto busca nos fornecer um retrato da personalidade problemática do autor de Dentes negros e cabelos azuis a partir do qual ele explora traços de sua psicologia; enquanto Gabriel, a seu turno, constrói uma narrativa ficcional que tem como objetivo direto, por assim dizer, “se explicar”. De acordo com Lima Barreto, ele tomou conhecimento do Dentes negros e cabelos azuis em um dos seus encontros com Gabriel, um conhecido seu que apresentava comportamentos contraditórios que revelavam uma natureza dual, bifronte e em permanente conflito: “dando a crer que havia entre as duas partes um vazio, uma falha a preencher, que à sua união se opunha um forte obstáculo mecânico” (BARRETO, 2010a, p. 323) . Segundo o escritor, essa maneira “bi-face” de Gabriel se traduzia, por um lado, numa sensibilidade muito pronta à tentação delirante e, por outra, para a busca de satisfações materiais que acabaram por transformar a sua vida num “acúmulo de desastres”. Como nos indica Lima Barreto, esse comportamento contraditório apresentado por Gabriel refletia-se no caráter ambíguo com que se apresentava em seus círculos de amizade: Às vezes ele nos surgia com uns ares de letrado chinês, lido em Sai-Tsê, calmo, superior, seguro de si e contente de se sacrificar à lógica imanente das cousas. Não dava um ai, não se Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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lamentava, talvez temendo que o alarido de seus queixumes não desassossegasse a viagem do seu espírito “par-dela du soleil, par-dela de l’éther, par-dela des confins de sphères étoilées”.
Um dia o encontramos, eu e mais alguns da roda, e a um deles que lhe perguntava: “Que tu vais fazer agora?” aludindo às consequências do último desastre da sua vida, Gabriel responde:
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— Nada! O soberano bem não é agir.
Dias depois me confessava contemplativo que seguia idiotamente, pelas ruas e pelos bondes, os belos olhos negros de uma preceptora francesa. (BARRETO, 2010a, 322). Como nos informa ainda o escritor, era dos mais velhos o conhecimento que tinha com esse enigmático rapaz, tendo o iniciado nos encontros nos cafés e depois no estreitamento contínuo de suas relações dia a dia. Portanto, a análise que 22 nossa).
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“para além do sol, além do éter, para além dos limites das esferas estrelares.” (tradução
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fizera de sua personalidade representava o resultado das observações que ele foi acumulando ao longo do tempo e que, se por um lado lhe permitiam compor uma imagem do amigo que possibilita reconhecer nele a existência de um conflito psicológico insolúvel, por outro era incapaz de compreender a natureza das tragédias que o precipitaram, a não ser, deduzir que elas provinham, em parte, dessa mesma desorganização, como também das qualidades de seu caráter. Destarte, como não podia expiar as causas profundas do desajustamento da personalidade e comportamento do amigo, Lima Barreto resume-se a tão somente colher impressões de seu caráter: vendo no amigo um “queixoso”, um “amargo” a quem a “melancolia provinda de fugitivas aspirações impossíveis, o revestia de uma tristeza coesa”. Mas também deduzia que a razão dessa dor inqualificável decorria do fato de que ele era “muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer” (BARRETO, 2010a, p. 321). Como podemos concluir, a análise que Lima Barreto faz do autor de Dentes negros e cabelos azuis visa nos oferecer, da perspectiva de um observador exterior, elementos que nos permitam compreender o drama vivenciado pelo seu amigo. Nesse sentido, Lima Barreto antecipa com seu prefácio ao texto de Gabriel o olhar de seu público quando, paradoxalmente, ele buscaria fazer-se entender através de uma espécie de máscara ficcional. Acontece que num dos encontros que os dois teriam travado, Gabriel leu a Lima Barreto um conto de sua autoria, no qual buscara traduzir ao amigo atencioso a natureza e a dimensão de sua tragédia. Nesse sentido, o que Gabriel buscou fazer não foi contrapor diretamente a imagem que seu “amigo” havia construído dele, mas trazer à tona o Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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que ela deixava submersa. Destarte, Lima Barreto acaba se constituindo, ao mesmo tempo, destinatário da mensagem de Gabriel e seu portador que, mais tarde, encarregar-se-ia de trazê-la a público. Segundo Lima Barreto, foi numa tarde em que, indo à casa de Gabriel, ele encontrou seu “amigo” com uma fisionomia radiante como se “a iluminação interior que há muito sentíamos nele ia afinal exteriorizar-se”. Então, por ter-lhe adivinhado algo diferente no olhar, o questionara imediatamente: “— Que tens hoje, fui lhe dizendo, a tua apaixonada rendeuse ou achaste... o teu destino?”. Interpelado, Gabriel então interrompeu Barreto exclamando: “— Qual paixão, qual destino! [...] O sábio não tem paixões para melhor poder contemplar a harmonia do universo.” BARRETO, 2010a, p. 322). E depois dessa resposta enigmática, ele apresentoulhe o manuscrito “escrito com letra miúda e irregular em duas dezenas de papel almaço, cheias de paixão” no qual se encontrava a explicação da sua mudança de fisionomia. O referido maço de anotações apresentado por Gabriel à Lima Barreto continha uma narrativa sobre um homem que apresentava as características notáveis de ter dentes negros e cabelos azuis e o drama estava ligado ao fato de isso concorrer sempre para o seu desmerecimento. Entretanto, o aspecto trágico de sua experiência de mundo não se encontrava nesse fato apenas, e sim na sua “sensibilidade cultivada” que o levara a sofrer intensamente à “menor risota e o mais imbecil dito”, bem como no isolamento existencial que experimentava e na necessidade que sentia de encontrar meios de comunicar a sua dor, dando, assim, uma vazão criativa e não destrutiva para os ressentimentos que lhe eram provocados por tal situação. De acordo com Gabriel e através de sua criatura, no seu íntimo
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então, pousava uma “mágoa eterna” que o fazia carregar “um segredo exigente de comunicação” que engendrava-lhe uma constante preocupação, no sentido de encontrar meios de revelá-lo, fosse a quem não tivesse o refinamento do seu espírito e que não tivesse adivinhado ainda a “substância imortal que lhe animasse a vida”. Entretanto, embora alimentasse um desejo imenso de comunicação, carregava outro sentimento que o contradizia, a dizer, o medo de contar seus sofrimentos a alguém ou mesmo de confessá-los a si mesmo. Destarte, mesmo frente ao “mar augusto, verde e translúcido” nos confessa que, quando vinha seu desejo de contar-lhe o segredo, era para ser acompanhado no momento seguinte pelo “temor de que os ventos voltassem e trouxessem a vasta cidade”. Está claro que o receio de Gabriel advinha do medo de que, ao tornar público o seu sofrimento, suas palavras voltassem carregadas com os juízos mais fortes e comprometidos com aqueles que o feriam. A questão é que seu drama psicológico/ existencial poderia ser tomado como resultante de diferenças bastardas e desprezíveis, imputados à sua estrutura física, isto é, tal como se fossem consequência inescapável de sua “origem monstruosa”. De forma que essa condição o obrigava, então, a andar “pela senda estreita da humildade” com prudência da qual não podia se afastar “porque à direita há os espeques dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata” que ameaçava triturá-lo. A metáfora utilizada por Gabriel, que faz referência a uma passagem bíblica, é utilizada para exemplificar tanto a sua situação de isolamento, quanto o seu relativo desamparo frente a um ambiente hostil à sua sensibilidade. Além de servir também para distingui-lo da elite letrada e da massa Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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de não letrados que reproduziam suas, por ele consideradas, “idiotices”. Mas eis que em meio a essa massa homogeneizada pela adoção irrefletida de “preconceitos tolos e vis que “enterravam alfinetes” e o faziam sofrer imensamente, surge seu maior inimigo, a dizer, o doutor nacional, comparado a um grande corvo que não voa - em alusão à sobrecasaca preta e cartola que eram seus símbolos de distinção: Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui; inclino-me dali; e em tomo recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso. Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mira me surge recordado pelo berreiro que vem de baixo, em redor aos gritos: homem de cabelos azuis, monstro, neurastênico. E entre todos os gritos soa mais alto o de um senhor de cartola, parece oco, assemelhando-se a um grande corvo, não voa, anda chumbado à terra, segue um trilho certo cravado ao solo com firmeza — esse berra alto, muito alto: “Posso lhe afirmar que é um degenerado, um inferior, as modificações que ele apresenta correspondem a diferenças bastardas, desprezíveis de estrutura física; vinte mil sábios alemães, ingleses, belgas, afirmam e sustentam”... Assim vivo. E como se todo dia, delicadamente, de forma a não interessar os órgãos nobres da vida, me fossem enterrando alfinetes, um a um aumentando cada manhã que viesse... (BARRETO, 2010a, p. 327-
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328). Destarte, ele nos revela que seu drama existencial estava relacionado à sua condição marginal caracterizada: por um lado, pela sua “sensibilidade cultivada”, isto que o fazia sentir necessidade de travar contato com pessoas de mesma educação, por outro lado, devido mesmo ao fato de apresentar atributos físicos que o impediam de ter uma aceitação social plena. Gabriel estava, portanto, condenado a viver uma vida entre meio e a vagar pelas ruas sem rumo e perambulando sobre olhares, mistos de piedade e terror, que o subjugavam com base nos sinais de sua “origem bastarda”, isto é, miscigenada. É nesse sentido que ele revela a extensão do seu drama a partir da dimensão de seu inimigo, espécie de interlocutor indesejado, mas sempre presente, que se constituía numa sociedade inteira. Grupo do qual participavam, inclusive, seus amigos mais próximos que não deixavam de se referir a ele como “aquele, aquele de dentes negros e cabelos azuis”. Dessa impossibilidade de, por assim dizer, devolver em iguais proporções a violência que lhe fora infringida, o que imporia levantar-se contra toda sociedade e contra a parte dela que ele encontra em si mesmo, o homem de Dentes Negros e Cabelos Azuis tenciona-se entre: por um lado, a busca do prazer em coisas materiais, que não lhe proporcionam tamanha satisfação; por outro, o desejo de tornar-se autossuficiente ao desprezar as pequeninas coisas do mundo, “vislumbrando lugares distantes” e, por fim, buscando um fio de esperança na crença de que, ao ser capaz de comunicar seu drama, encontre entre esse mundaréu de inimigos, alguns amigos que se solidarizassem com sua situação ao torná-los capazes Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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de reconhecerem o motivo de tanta dor. A alegoria que Gabriel, espécie de máscara ficcional de Lima Barreto, utiliza para descrever sua maldição não poderia ser mais elucidativa da forma de violência que sofria. Condenado a ser, pelos lugares onde andava, um meio-humano/meio animal, isto é, como um tipo híbrido, ou ainda, o meio caminho entre uma coisa e outra, ele se vê assombrado por indolente símio (macaco). Corporificando o demônio e a danação eterna, essa figura faz referência direta ao imaginário evolucionista de onde saía esse entendimento, assim como representava o meio pelo qual exercia sobre o homem de dentes negros e cabelos azuis uma violência simbólica, em sua forma autodirigida: — Dói-me, sim! Dói-me muito. É o demônio que me persegue, é o perverso desdobramento da minha pessoa. E uma companhia má, amarga, tenaz que me esporeia e que me retalha. Ela vai junto a mim, bem junto, no caminho que trilho, haja luz ou haja trevas, seja povoada ou deserta a estrada. Não me abandona, não me larga. Dorme comigo, sonha comigo; se me afasto um instante dela ela volta logo, logo, dizendo-me ao ouvido baixinho, com um cicio cortante: estou aqui! É um símio irritante que me faz caratonhas e me vai às costas, pula na minha frente, dança, esperneia (BARRETO, 2010a, p. 326). A necessidade de traduzir pensamentos difíceis de serem
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disciplinados dentro das condições de sua emergência, diante de sua urgência de comunicação e da ausência de um interlocutor habilitado a reconhecer prontamente o seu sentido, ele é impulsionado a desenvolver estratégias de comunicação complexas. Destarte, ao buscar realizá-las sem sucesso ele coloca em xeque sua capacidade criativa e, consequentemente, a confiança em sua inteligência. Tudo concorrendo para convulsionar-lhe o espírito, para colocarlhe a meio caminho da glória ou do abismo, para fazê-lo crer superior a tudo e a todos, pronto a abandonar tal esforço por considerar autossuficiente, como se bastasse a si mesmo, resignado. Entretanto, tudo concorrendo para, no momento seguinte, fazê-lo considerar essa incapacidade como uma prova das acusações que lhe dirigem. Era assim quando sonhava com as possibilidades que se abriam à sua frente, quando estudava fórmulas de comunicação, quando esboçava em um papel uma solução vislumbrada e não encontrava meios de se fazer entender. Então, nesses momentos, quando a percepção do seu estado lhe vinha de maneira mais clara, ele sentia-se vencido, a considerar a possibilidade de sua “natural incapacidade cognitiva”. É verdade, mas palmilho tais lugares escravo do meu gênio, servo dos meus sentidos, que são inimigos do meu corpo; posso fugir deles, mas muito me custa seguir o curso imperioso dos meus nervos. Não sei... Não sei... Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma cousa ouço: lá vai o Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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homem de cabelos azuis, o homem de dentes negros... É um suplício! Tudo se apaga em mim. Isso unicamente brilha. Se um amigo quer referir-se a mim em conversa de outros, diz: aquele, aquele dos dentes negros... Os meus sonhos, as minhas leituras, são povoados pelos momos do símio. Se escrevo e faltam sílabas nas palavras, se estudo e não compreendo logo, o sagüi salta-me na frente dizendo com escárnio:— fui eu que a “cumi”, fui eu que não te deixei compreender... (BARRETO, 2010a, p. 327).
Politização da intimidade
[...] não tenho por onde aferir se as minhas Recordações preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento. Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública... Sofro assim de tantos modos, por causa desta obra, que julgo que esse mal-
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estar, com que às vezes acordo, vem dela, unicamente dela. Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite, quando todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo furiosamente. Estou no sexto capítulo e ainda não me preocupei em fazêla pública, anunciar e arranjar um bom recebimento dos detentores da opinião nacional. Que ela tenha a sorte que merecer, mas que possa também, amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor mais hábil que a refaça e que diga o que não pude nem soube dizer.
Lima Barreto
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De acordo com a Hidalgo (2008) o espaço autobiográfico em Lima Barreto situa-se ao meio caminho entre o autor e o personagem e, acrescento, a ficção funciona como mecanismo de mediação entre a realidade objetiva (social) e a realidade subjetiva (psicológica). Entretanto, essa forma de mediação promovida pelos “autores” não é aleatória, antes tem como objetivo direto promover uma forma de politização da intimidade. O conto em questão é um grande exemplo desse 23 Confissão feita pelo autor através de Isaias Caminha, uma das tantas máscaras ficcionais que utilizou (BARRETO, 2003, p. 40).
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escopo perseguido por Lima Barreto na confecção de suas obras ficcionais. Construído através de um processo criativo de sobreposições de máscaras, Dentes negros e cabelos azuis é todo atravessado por mecanismos de mediação que esgarçam as fronteiras entre a realidade e a ficção. O que não só permite que ele se esconda por trás de uma máscara ficcional, mas lhe abre também a possibilidade de dizer o indizível. Ou ainda aquilo que não é dito porque interrompido por toda forma de interdições construídas socialmente, inculcados pelos indivíduos e que se manifestam na forma de medo, vergonha e da angústia paralisante. Em uma palavra, é do olhar do julgamento do outro, do qual é preciso livrar-se para que algumas coisas possam ser ditas, mas é também é dele que se depende o reconhecimento daquilo que é dito. O sentimento de angústia experimentado pela criatura de Gabriel, por não poder, ou por não saber comunicar seu drama, é um exemplo da ciranda que cria esse círculo infernal. A questão que se colocava ao “autor” de Dentes negros e cabelos azuis, como não poderia deixar de ser, constituía-se a seguinte: como habilitar um olhar viciado por prejulgamentos? Lima Barreto certamente encontrou a sua resposta na confiança de que o artefato artístico, no caso a obra literária, pudesse servir como instrumento de conversão de inimigos em amigos. Afinal, não há dúvidas de que Gabriel esculpiu artesanalmente memória e ficção para criar um personagem que retratava sua tragédia de modo a sensibilizar os seus interlocutores. O fato de Lima Barreto ter se apresentado no prefácio que fez à obra de Gabriel, como seu amigo e, nesse caso, também como editor, demonstra essa desconfiança do escritor em relação aos destinatários de sua obra. Antecipando-se às
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exigências de seu público, ele encarrega-se de introduzir o leitor à sua obra, remontando o personagem que ele mesmo se tornara. Destarte, ele investe na descrição de seu personagemautor esquadrinhando esse olhar inquisitório que não deixava também de compartilhar. Comprometido a salvaguardar um sentido nobre à tragédia de seu personagem, que era também a sua, ele coloca-se então como um mediador ao filtrar a narrativa de Gabriel pela sua, como alguém que prepara o leitor para desnudar os olhos de seus prejulgamentos, antes de deixá-lo penetrar em sua intimidade. Desdobra-se a narrativa ficcional de Gabriel com um teor lírico, cuja reverberação obedece às oscilações do eu do Homem de Dentes negros e cabelos azuis. Entretanto, embora o leitor pudesse impressionar-se pelos atributos extraordinários do personagem, ele é levado a sensibilizar-se com seu sofrimento e a enxergar a origem de todo o mal no meio social. Isto é, nos significados socialmente atribuídos e perversos, culturalmente atribuídos às características extraordinários da criatura de Gabriel. É verdade que poderíamos traduzir tais tributos de forma arbitrária, como cabelo crespo e pele negra, o que pode ser uma interpretação com algum sentido. Mas essa tradução contemplaria apenas uma etapa da mediação produzida pela ficção, que acabaria estendendo à questão da particularidade do indivíduo a particularidade dos membros de um grupo identificados por esses índices de pertença racial. Quem compartilha da tragédia de viver e não tenha lugar devido aos julgamentos advindos de sua aparência, pode identificar-se com ele. Insistimos nesse ponto e afirmamos que o caminho ficcional aberto por Lima Barreto, no momento mesmo de construção do seu percurso, busca fazer a mediação entre uma experiência Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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individual, porque individualizada, e a experiência coletiva em suas múltiplas dimensões. Destarte, ele abre caminho também para uma forma de politização da intimidade, que visa a reconciliação na medida em que, nas suas palavras, se propõe a unir as almas aparentemente mais diferentes pela dor de serem humanos . Nesse sentido, a cultura da intimidade, tão necessária à perigosa e fecunda exploração do mundo subjetivo pelo escritor, serve para colocá-lo num lugar que o torna possível de ser ouvido, por um lado, como indivíduo, por outro, como porta voz de seu grupo e, em última análise, da humanidade (sociedade) com a qual deseja se reconciliar, apelando para sentimentos nobres como compaixão e solidariedade. Para concluir, retomamos aqui o significado histórico e político desse investimento para apontar o quão pretensioso e corajoso ele era. A questão é que ao explorar os próprios labirintos de sua subjetividade e pintar com traços fortes de sua psicologia o quanto ela tinha de fundamento social, ele demonstrava ter uma lucidez incrível. Destarte, não sem um pingo da ironia, esse escritor “mulato”, pobre e alcoólatra provava que tinha um mundo subjetivo imenso através da literatura que produziu e na qual deixou a marca indelével de sua personalidade. Desse modo, a um de seus textos, como o Dentes negros e cabelos azuis, à sua ficha antropométrica, poderíamos dizer mesmo que ele foi muito eficiente em desvendar os males das pessoas de seus nascimento. 24
24 Sobre isso ler: BARRETTO, Afonso H. L. O destino da Literatura. In: Um Longo Sonho do Futuro. Diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas. Rio de Janeiro: GRAPHIA, 1993, p. 384-395.
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NEAB FILOSOFIA DESDE A ÁFRICA: Descolonização e Contranarrativa Luís Thiago Freire Dantas
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Resumo A caracterização do discurso filosófico como tendo uma origem grega é um entendimento habitual entre os vários setores acadêmicos. Por essa forma, a indicação de uma filosofia não caracterizada por essa origem propicia uma desconfiança da validade de tal discurso. Parta opor a essa desconfiança, o presente artigo proporciona uma interrogação sobre a realização da filosofia desde África, isto é, como os povos africanos contribuem para a reflexão de conceitos filosóficos a partir da própria localidade. Assim, o artigo trará a descolonização e a contranarrativa como elementos que exemplificam o deslocamento do discurso hegemônico da filosofia para a produção da filosofia africana. Portanto, o artigo tem a perspectiva de problematizar o discurso filosófico para ampliar a definição de filosofia e sua interrogação de problemas universais. Palavras-Chave: Contranarrativa; Descolonização; Filosofia Africana.
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Abstract
The characterization of the philosophical discourse as having a Greek origin is a usual understanding between the various academic sectors. By this way, a philosophy not characterized by this source provides a distrust of the validity of such a speech. To oppose this distrust, this article provides a mark about the realization of philosophy from Africa, that is, as the African peoples contribute to the reflection of philosophical concepts from the locale itself. So, the article will bring decolonization and counter narrative as elements that exemplify the offset of the hegemonic discourse of philosophy for the production of African philosophy. Therefore, the article has the prospect of discussing the philosophical discourse to enlarge the definition of philosophy and its mark of universal problems. Keywords: African Philosophy; Counter-narrative; Decolonization.
As distinções do discurso filosófico
A produção do discurso filosófico contém certas peculiaridades que tendem a distingui-lo de outros discursos, já que o filosófico teria em si o caráter da racionalidade, da sistematicidade e da universalidade. Por esses tópicos, a filosofia seria uma atividade do pensamento que teria um rigor nos conceitos, pois, por meio do uso da razão, julgaria os problemas universais dos seres humanos. Apesar Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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de contrariamente a característica de universalidade ser atribuída ao discurso filosófico, habitualmente sugere-se uma certidão de nascimento, pois “filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana [...] é um fato tipicamente grego” (CHAUI, 2000, p. 21). Desse modo, estipular uma origem e desenvolvimento de um pensamento filosófico que não correspondesse diretamente ao solo grego o invalidaria como sendo uma filosofia. Problematizando esse viés, o presente artigo trata de uma pesquisa inicial que, por meio da articulação de conceitos do discurso filosófico africano, problematiza a necessidade de relacionar a filosofia ao espaço grego e/ou europeu. Dessa maneira, a atividade de filosofar desde África tem a pretensão de interrogar conceitos que condicionem a uma localidade específica do fazer filosófico e, por efeito, descreve a interrogação sobre os problemas humanos como fato mais habitual entre os diversos povos. Uma vez que, como escreveu Omoregbe (2002, p.18) “filosofar é refletir sobre a experiência humana para responder algumas questões fundamentais a seu respeito. [...] Quando o ser humano reflete sobre estas questões fundamentais na busca de respostas, ele está filosofando”, então a diferença de filosofia consiste muito mais na maneira em como se transmite e se preserva, ao invés de um modelo de reprodução de conceitos. Assim, ao Ndaw (2011) comentar que “filosofar em África é compreender que não há um monopólio da filosofia e que não tem um sentido em falar de ‘origem da filosofia’ ou dos ‘primeiros inventores da filosofia’” (NDAW, 2011, p. 625), o filósofo questiona justamente a necessidade intrínseca de atribuir tal atividade de pensamento como exclusivamente
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grega e/ou européia, quando as interrogações que estão presentes nesse discurso são próprias a todo e qualquer ser humano. No entanto, a restrição ou atribuição de humanidade por meio da filosofia não consiste em uma forma gratuita de indicar quem faz uso ou não de certo atributo civilizacional, mas em si mesmo há um julgamento do humanismo ocidental, pois “pretender-se com direito à Filosofia é reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente” (APPIAH, 2010, p. 131). Superlativos como “mais difícil e mais fundamental” também procuram avaliar a possibilidade de uma filosofia não-ocidental, ou seja, o Ocidente por entender-se como nascedouro da filosofia tem a prerrogativa de julgar se povos não-ocidentais têm ou são capazes do exercício de filosofar. E um dos casos refere-se à filosofia africana. O filósofo Mogobe Ramose (2011) explica que o questionamento da existência da filosofia africana pertence a uma pretensa autoridade em definir o significado e o conteúdo da filosofia e, obviamente, tal autoridade é situada em um contexto de relações de poder, pois “quem quer que seja que possua a autoridade de definir, tem o poder de conferir relevância, identidade, classificação e significado ao objeto definido” (RAMOSE, 2011, p. 9). O importante é quem teria esta autoridade, em outras palavras, quem arrogaria possuir a competência de julgar a definição e conteúdo da filosofia? “Os conquistadores da África durante as injustas guerras de colonização se arrogaram a autoridade de definir filosofia” (RAMOSE, 2011, p. 9). Além do que o movimento de tais conquistadores para deslegitimar certa sabedoria africana em detrimento da filosofia consistiu em um epistemicídio, “ou seja, o assassinato das maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados” (RAMOSE, 2011, Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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p. 9). Com isso, este artigo acompanha o raciocínio de Bruce Janz de que a pergunta não deve ser “o que é a filosofia africana”, pois é uma questão essencialista que tem como pano de fundo: A filosofia africana existe (tem o direito de existir)? Mas a pergunta deve ser: o que significa fazer filosofia neste lugar (africano)? Já que no desenvolvimento de tal pergunta “assume que já há um significado contido em um mundo-vida, em vez de supor que ele tenha de ser criado ou justificado” ( JANZ, 2008, p. 111). Por isso, a filosofia desde África incita uma interrogação que proporciona alguns elementos cruciais para a atividade filosófica em detrimento da tradição hegemônica: a descolonização e a contra-narrativa. Tais elementos opõemse à resistência de afirmar uma filosofia africana: o racismo colonial. Esse racismo contém certa característica, pois, conforme análise do filósofo camaronês Marcien Towa (2015), esse racismo atua através de um silogismo que pretende normatizar o humano e também construir limites diante da própria concepção de ser humano: 25
O homem é um ser essencialmente pensante, racional. Ora, o negro é incapaz de pensamento e raciocínio. Ele não tem filosofia, ele tem uma mentalidade pré-lógica etc.
Portanto, o negro não é verdadeiramente um homem e pode ser, legitimamente, 25 Silogismo é um modelo de raciocínio que tem como base duas premissas para alcançar uma conclusão.
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domesticado, tratado como animal. (TOWA, 2015, p. 27). Na lida de tal silogismo, transparece a normatização do caráter racional para impor uma humanidade e uma capacidade de filosofia. Por isso, filosofia e humanismo aproximam-se de ideias que foram construídas como maneiras de julgar os grupos humanos. Para contestar este raciocínio silogístico, o artigo conterá duas seções que problematizarão primeiramente o conceito de “Negro” para a contemporaneidade a partir das investigações do camaronês Achille Mbembe, com isso tratará do elemento da “descolonização” que modifica a compreensão habitual de atribuir aos povos oriundos do continente africano enquanto “manipuláveis” e por efeito aqueles indivíduos que expõem o fenótipo “Negro” como passíveis de objetificação. Com esta problematização, a segunda seção concentrar-se-á sobre o elemento da contra-narrativa por meio da filosofia de Marcien Towa, visto que essa filosofia trata as civilizações do Egito antigo e a da África negra enquanto possuidoras de uma correspondência histórica do pensamento africano que escapa das determinações modernas humanistas da origem e desenvolvimento da filosofia.
O “Negro” e a descolonização da ideia de humanidade
O processo de descolonização não consiste somente em uma atitude socioeconômica que a cultura local necessita ser
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pensada sem recorrer ao sentido da metrópole. Acima de tudo, a descolonização exerce uma atitude dos sujeitos colonizados em perceberem que as “civilizações” não conseguem manterse em via de realização do que prometera. Césaire (2006), no Discurso sobre o Colonialismo, afirma que, cada vez mais, a Europa, que arrogava como sendo a “civilização”, apresentouse como incapaz de resolver os problemas que elas mesmas criaram: o proletariado e o colonial. Por visualizar essa incapacidade “os colonizados sabem, a partir de agora, que têm uma vantagem sobre os colonialistas. Sabem que seus ‘amos’ provisórios mentem. Logo que seus ‘amos’ são fracos” (CESAIRE, 2006, p. 13). Assim, a descolonização consiste em perceber como aquele que se colocava como imagem referencial não possui qualquer sustentáculo e, por conseguinte, pode-se “provincializar a Europa” e nisto reinterpretar certos aparatos ideológicos do plano estético ao epistêmico, aquilo que simbolizaria o humano. Para contribuição desse questionamento, o livro Crítica da Razão Negra de Mbembe (2014) discute as compreensões filosóficas sobre a determinação do que é o humano através da categoria “Negro”. Um dos pontos dessa problematização é construído pela posição do autor em desenvolver um questionamento acerca da distinção entre entendimento e instinto, ou seja, mente e corpo: 26
a expressão ‘razão negra’ remete para o conjunto das deliberações acerca da distinção 26 No sentido apontado por Dipesh Chakrabarty: “Mas, claro, as margens são tão plurais e diversificadas como os centros. A Europa aparece diferente quando visto de dentro as experiências de colonização ou inferiorização em partes específicas do mundo. Ainda que, entretanto, são múltiplos locus de Europa e de variados colonialismos são o problema de apreender além das histórias eurocêntricas permanece um problema compartilhado através de limites geográficos” (CHAKRABARTY, 2000, p. 17).
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entre o instinto animal e a ratio do homem – sendo o Negro o testemunho vivo da própria impossibilidade dessa separação (MBEMBE, 2014, p. 63). Com isso, “Negro” seria uma categoria “esclarecida” por esse ponto de vista, conforme argumenta Mbembe (2014), no qual o pensamento europeu significou o “Negro” e a “Raça” enquanto um imaginário semelhante, ou ainda, associando um ao outro. Isso se deve na medida em que a tendência da tradição europeia abordou frequentemente a identidade, não em termos de pertença mútua (copertença) em um mesmo mundo, “mas antes na relação do mesmo ao mesmo, de surgimento do ser e da sua manifestação no seu ser primeiro ou, ainda, no seu próprio espelho” (MBEMBE, 2014, p. 10). Contudo, tal movimento consolidou-se na mente ocidental devido a três momentos importantes para tal construção: i) espoliação organizada: quando, em proveito do tráfico atlântico (século XV a XIX), homens e mulheres originárias da África foram transformadas em homens-objetos, homensmercadoria e homens-moeda; ii) acesso à escrita: datada no final do século XVIII, quando, pelo seus próprios traços, os Negros, estes seres-capturados-pelos-outros, conseguiram articular uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do mundo; iii) No início do século XXI, através da globalização dos mercados, a privatização do mundo sob a égide do neoliberalismo e do intrincado crescimento da economia financeira, do complexo militar pós-imperial e das tecnologias eletrônicas e digitais (MBEMBE, 2014). Acrescentado a isso, Mbembe (2014) interpreta o Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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neoliberalismo não somente como um modelo econômico, mas também enquanto a época ao longo da qual o tempo se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro e, por isso, os acontecimentos mundiais detém um valor de mercado que podem ser computados e avaliados conforme uma reserva de despejo que põe o resto como não utilizável ou, ainda, remanufaturado para atender às exigências do mercado. Dessa forma, o humano distanciar-se-ia do animal, pelo fato de que este não produz e, consequentemente, o “Negro” carregaria a imagem ambígua do humano-animal: “Se o homem se opõe à animalidade, este não é o seu caso, pois conserva, ainda de modo ambíguo, a possibilidade animal” (MBEMBE, 2014, p.63), ou seja, da não-produção. Observase esta caracterização já historicamente quando no império da Grécia antiga categorizava-se o escravo e o cidadão por meio da oposição entre homo faber e homo laborans , pois “existia ainda um conjunto de cidadãos livres, desobrigados do trabalho braçal. Eram completamente voltados para a prática da guerra e da política citadina como concepção da ‘vida ativa’, que se exerce no discurso político entre pares e adversários” (MOORE, 2007, p. 62). Por esse aspecto, podese dizer que o trabalho não dignifica os seres humanos, mas os distinguem através de uma ordem colonial que, conforme destaca Mbembe, possui a seguinte implicação: 27
A ordem colonial baseia-se na ideia segundo a qual a Humanidade está dividida em espécies e subespécies, que podemos diferenciar, separar e classificar hierarquicamente. Tanto do ponto de vista da lei como em termos
27 Tais termos significam respectivamente: o homem que vive do trabalho, como o artesão; e o escravo enquanto aquele que vive apenas para seu próprio corpo.
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de configurações espaciais, tais espécies e subespécies devem ser mantidas à distância umas das outras (MBEMBE, 2014, p. 119). Isso provém da percepção colonial do Ocidente perante os demais povos, pelo fato de que, conforme explica Ramose (2001), a racionalidade seria a alta diferenciação do humano perante os animais: “A definição de Aristóteles de ‘homem’ como um animal racional formou a base filosófica para o racismo no Ocidente. Para poder ser considerado como um ser humano era necessário ser racional” (RAMOSE, 2001, p. 4) e, a partir disso, impõe-se o selo do racismo que “é a afirmação de que outros animais de aparência humana não são verdadeiramente e plenamente humanos” (RAMOSE, 2001, p. 4). Então, se formos acompanhar o procedimento lógico da metafísica ocidental, atenta-se que o “Negro” no nosso mundo é habitado por um corpo estranho, já que não recusa peremptoriamente a animalidade. Dessa maneira, para Mbembe: Debater a razão negra é, portanto, retomar o conjunto de disputas acerca das regras de definição do Negro; como o reconhecemos; como conseguimos identificar o espírito animal que ele possui; em que condições pode a ratio penetrar e governar a animalitas (MBEMBE, 2014, p.63, grifos do autor). Por efeito dessa busca de governo da animalitas, para o
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autor, a filosofia europeia consolidou-se por meio de uma separação radical entre humano e animal, e, impulsionada pela modernidade, o distanciamento ocorreu também entre humanos. Distanciamento explicado por um dos influentes pensadores para a “Razão Negra”, Aimé Césaire. Este autor apresenta uma linha argumentativa acerca do “contato” entre colono e colonizado, perpetuado pelas diferentes formas de violência, de maneira que o Eu (fechado em si mesmo), na correspondência com o Outro (expõe o mundo), incita um não reconhecimento de humanidade para uma animalização e, por fim, uma coisificação: O colonizador ao habituar-se a ver no outro o animal, exercita em tratá-lo como animal, para acalmar sua consciência, tende objetivamente a transformar o mesmo em animal. Esta ação, este golpe de retorno pela colonização era importante assinalá-lo. [...] Nenhum contato humano, mas relações de dominação e de submissão que transformam o homem colonizador em criado, ajudante, comitre, chicote e o homem indígena em instrumento de produção. É a minha vez de anunciar a equação: colonização= coisificação (CESAIRE, 2006, p. 20, grifos do autor). Assim, racismo e especismo provêm de um movimento único que procura normatizar a própria humanidade diante da qual o “Negro” “serviu para designar não seres humanos como
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todos os outros, mas uma humanidade (e ainda) à parte, de um gênero particular” (MBEMBE, 2014, p. 88, grifos do autor) e isto compunha uma diferença explícita de manifestações em diferentes maneiras: somática, afetiva, estética e imaginária. Exemplifica-se uma das recusas de tais manifestações por meio de um racismo antinegro que “em seu aspecto estético, recusa o glamour e a beleza de negras e de negros como boas personagens de campanhas publicitárias para vender perfume, margarina, carros e brinquedos” (NOGUERA, 2014, p. 46, grifo do autor). E tais manifestações negras estão enclausuradas no Corpo, que, conforme a escrita de Fanon (2008), o negro é sobredeterminado pelo exterior, não sendo, apenas, remetido a uma ideia, mas, sobretudo pela aparição: Eu [homem negro] era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ancestrais. Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas – e então detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais, os negreiros, e sobretudo com ‘y’a bon banania’ (FANON, 2008, p. 106). Portanto, a decorrência de compreender o corpo “Negro” como símbolo da inseparabilidade entre humanidade e animalidade, desconhece que ao fim não há qualquer distinção perante o animal, já que o ser humano contém antes de tudo uma animalitas. No entanto, a atividade colonialista Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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necessitou orientar-se para o esquecimento dessa condição originária para julgar outros povos enquanto direcionados para a humanidade. Esta seria, assim, formada por um ideal que o julgamento movimentaria, conforme análise de Carneiro (2005), por certas características: “Auto-controle (domínio de si), como condição de constituição do sujeito moral; domínio da natureza, como condição de desenvolvimento das técnicas, do progresso, da ciência e do desenvolvimento humano” (CARNEIRO, 2005, p. 98). Entre estas pode acrescentar-se a filosofia, principalmente por causa da narrativa única de que a Grécia fora o espaço para o surgimento e, posteriormente, a Europa para o desenvolvimento. Em contraposição, a próxima seção consistirá em anunciar uma contra-narrativa da história da filosofia a partir do Egito antigo e sua correspondência na denominada África Negra.
A Contra-narrativa da Filosofia: do Egito antigo à África Negra
Em um dos seus ensaios, Walter Benjamin (1987) descreve que uma das posições do investigador historicista diz respeito ao método que atenta para uma época em específico, sem relacionar a investigação com as posteriores. Esse método teria como principal propriedade a empatia. Entretanto, isso gera um problema, já que o investigador torna-se empático quase naturalmente com a história dos vencedores, deixando os vencidos sem voz. E por isso Benjamin afirma a urgência de atentar para a tradição dos oprimidos, pois ela “(...) nos
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ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 1987, p. 226). Na tentativa de expor tal conceito de história, o elemento da contra-narrativa oriundo de uma filosofia desde África permite observar que a história tradicional da filosofia é precisamente a história dos vencedores, ou melhor, dos colonizadores. Para verificar como ocorreria a história da filosofia dos colonizados, a posição da contra-narrativa permite inicialmente verificar que a modificação do termo “filosofia” não significa por si mesmo um reconhecimento de uma produção de pensamento capaz de exercer um diálogo com a tradição que o imperialismo afirmou como sendo filosófica. Por esse aspecto, Marcien Towa (2015) explica que o processo inicial de uma contra-narrativa se põe como refutação do silogismo racista apresentado anteriormente, e essa refutação efetua-se por duas maneiras: ampliando o sentido da palavra ‘filosofia’ para reduzi-lo ao mito e isso exige uma nova antropologia filosófica, ou, conservando a palavra filosofia em seu conteúdo racional e apresentando a produção filosófica dos africanos. A segunda refutação propicia a Towa (2015) avaliar a diferença entre “Filosofia e antifilosofia”, já que “nem todas as culturas têm filosofia, mas todas são capazes de tê-la. [E] aquelas em que não se manifesta a reflexão filosófica parecem mais antifilosóficas que verdadeiramente afilosóficas” (TOWA, 2015, p. 28). Perante isso, o autor argumenta que as civilizações, como a hebraica, teriam em si uma posição contrária à filosofia, visto que o dogmatismo seria preponderante em todos os setores da sociedade de tal maneira que o mito do pecado original denota uma resistência ao discernimento racional que constrói Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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suas justificativas através de si mesmo sem recorrer a uma instância transcendente. Com isso, a rivalidade entre deus e o homem revela o despotismo divino sobre os seres humanos. Para exemplificar esta relação, o filósofo recorre à tentativa de Jó em tecer um debate sobre a punição divina aos maus e a própria recompensa, ao final, por causa da submissão perante o divino. Contudo, Jó presencia a impossibilidade de um debate com o deus, uma vez que não haveria um intermédio que equivaleria às perspectivas e, assim, Javé impõe a Jó o reconhecimento de impotência diante do determinismo dos elementos naturais. Este movimento de Javé apenas ratifica, para Towa, uma demonstração do despotismo que renuncia qualquer manifestação de pensamento autônomo: “A renúncia ao pensamento e à submissão consagram o rebaixamento e a humilhação do homem sob a autoridade de um deus hostil à razão, um deus que é apenas uma roupagem transparente do despotismo oriental” (TOWA, 2015, p. 29). Esta imposição de submissão na tradição hebraica permite ilustrar a recusa do colonizador sobre o pensamento autônomo de povos colonizados, pois, como Towa explica, através da luta de reconhecimento entre o senhor e o servo presente no processo hegeliano, há, na condição filosófica africana da atualidade, o reconhecimento de um jogo de diferenças que separam as produções epistêmicas do “colonizador e do colonizado” por meio do entendimento de que entre seres humanos há uma distância: O primeiro [senhor] se expressa, projeta, pensa, decide, ordena e, ao fazê-lo, afirma sua identidade humana genérica; enquanto, para o segundo [servo], logo que sai daquilo que
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o mestre estima sem importância, é proibido de se expressar, de pensar e de decidir; melhor dizendo, sua humanidade é reprimida, sufocada, negada (TOWA, 2015, p. 68). Desse modo, a filosofia africana apenas possuiria efetividade por meio da saída de condição servil na perspectiva descolonizar “as normas” do quê seria uma tradição filosófica. Perante isso, Towa (2015) adverte que “devemos alimentar, ao respeito de todo culto da diferença e da identidade, uma desconfiança sistemática, sem a qual corremos o risco de nos conformar dentro da servidão” (TOWA, 2015, p. 68). Para refutar essa servidão, necessita-se questionar qual a “realidade de uma filosofia negro-africana”? Na resposta a esta pergunta, Towa (2015) recorre à história do continente africano para explicar de que forma já se apresentava à África uma proposta de questionamento contrária ao dogmatismo. Para isso, o autor detalha, através da mitologia egípcia e dos contos populares camaroneses, esta divergência ao dogmatismo, pois “o pensador da África negra tradicional e o pensador Egípcio estão de acordo em recusar a onisciência e a perfeição ética a um ser qualquer e admitem que todo homem é capaz de adquiri-las em maior ou menor grau” (TOWA, 2015, p. 48). No que se refere ao pensamento na época do Egito faraônico, Towa (2015) aponta para três características: a preocupação pela síntese de todos os valores, sem excluir aquilo que aparece como diferente; a identidade entre o homem e deus; e a racionalidade como norma suprema do comportamento. Sobre a primeira, Towa escreve que a multiplicidade do panteão egípcio, por mais que houvesse um conflito entre os Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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deuses, estes se constituiriam enquanto membros de um só corpo. Isso poderia ser observado conforme o entendimento de que os mortos comparecem diante dos quarenta e dois deuses confessando a cada um a própria inocência: “pois no fundo, todos esses deuses são apenas um único e mesmo deus, e o grande deus não é um mestre que comanda os servos, mas um primus inter pares” (TOWA, 2015, p. 33, grifos do autor). E esta presença de unificação, para Towa, tem como principal exemplo os hinos de Rá, dos quais o filósofo destaca, principalmente, aquele que denota uma reflexão precisa acerca do Absoluto que exigiria uma reflexão filosófica, já que especula sobre o Existente anterior a toda e qualquer existência que permite uma concepção de ser presente em Plotino e até mesmo no materialismo dialético. Já sobre o traço da afirmação da identidade entre o homem e deus, Towa (2015) explica que a identificação dos faraós como deuses propiciou um envolvimento que rapidamente diluiu qualquer dicotomia, como o sagrado e o profano e, por esse modo, os homens “comuns” que atuavam conforme a justiça também se comunicariam com os deuses. Com isso, diferente das sociedades em que a cultura anti-filosófica tem o dogmatismo como ponto central do pensamento, o Egito faraônico para Towa, por possibilitar “o reconhecimento da igualdade fundamental entre os homens fornece a base do debate filosófico, do pensamento do Absoluto, o qual é apenas uma possibilidade do homem em si” (TOWA, 2015, p. 36). Já acerca da racionalidade como norma do comportamento, Towa explica que esta norma relaciona-se com a Maat, deusa 28
28 Theóphile Obenga explica que o Existente para os egípcios antigos corresponde ao Noun, isto é, “o ser primordial a partir do qual tudo existe: o deus-criador, o céu e a terra, os seres vivos, [aquele que] informa a totalidade do mundo, visível e invisível. O Noun faraônico, é a causa, a razão, o fundamento” (OBENGA, 1990, p. 60).
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egípcia do equilíbrio, que propicia à conduta egípcia exatidão e medida correta aplicada à verdade, à justiça e à ordem. A Maat não se apresenta como um código vindo do céu, como os mandamentos judaico-cristãos, mas ela impõe um dever ao Rei em manter a ordem, a justiça e a honestidade na vida social para o homem comum. Tem como consequência o respeito à justiça e à honestidade no relacionamento com os outros homens e pelo controle das paixões: “Maat circunscreve retidão, verdade, harmonia e justiça [...] responsável por pesar o coração dos que deixam o mundo dos ‘vivos’. Maat dá a medida da balança, o juízo pautado pela verdade” (NOGUERA, 2013, p. 150-151). Dessa maneira, o Egito antigo apresenta um caráter filosófico da tradição africana antiga, que não está deslocada do resto do continente, pois a denominada região da África negra, através dos contos populares, expõe a variedade filosófica africana. Esta, concentrada em uma tradição oral na qual, para Towa, a “preocupação principal parece ser ensinar a astúcia, a prudência e a reflexão” (TOWA, 2015, p. 39). Assim, ciclos de contos populares como os de Kulu-a-tartaruga, de Leuk-alebre e de Guizo-a-Aranha mostram que para o ser humano sair vitorioso dos diversos conflitos presentes na própria vida, necessita utilizar da inteligência: A promoção da inteligência humana à categoria de guia supremo e único no combate da vida contrasta violentamente com as tradições semitas dominantes que, relembremos, identificam tamanha pretensão para o mal, para o pecado por excelência (TOWA, 2015, p. 39). Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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E tais ciclos, por enfatizar o uso da astúcia e sagacidade, indicam que se guiar somente pela credulidade, pelo sobrenatural ou pelo mágico-religioso prolifera estupidez, entretanto, símbolos da inteligência como Kulu ou Leuk não são seres perfeitos, uma hora ou outra praticam atos repreensíveis por causa da desatenção. Dessa forma, a sabedoria nunca alcança a perfeição, estaria a todo instante aperfeiçoando-se e nós, humanos, nunca nos tornaríamos sábios. Tais considerações são afirmadas por Towa (2015) por meio de duas sentenças: “1º - O pensamento africano tradicional não coloca nada acima da inteligência; 2º - O pensamento fundamental africano recusa-se a reconhecer, em quem quer que seja, o monopólio da inteligência e da perfeição ética” (TOWA, 2015, p. 44, negritos do autor). E, portanto, ao explicar tais presenças históricas, a realidade de uma filosofia negro-africana não deixa tornar-se falseável. Isso devido ao fato de que as situações contemporâneas do continente africano motivam uma interrogação filosófica dos acontecimentos e, desse modo, o/a filósofo/a africano/a tem que observar as exigências oriundas da própria localidade. A saída deste dilema, de acordo com Towa (2015), converge para análise das condições africanas para afirmar uma produção epistêmica, visto que “o fim escolhido deve resultar de uma verdadeira reflexão, de um exame e de um julgamento pessoal, levando em conta dados essenciais do contexto histórico” (TOWA, 2015, p. 69). Diante desse aspecto, para refutar a narrativa ocidental sobre o discurso filosófico é necessário estabelecer a revolução como condição de todo renascimento cultural, uma vez que, conforme escreve Towa, “a revolução destrói a relação colonial de forças e coloca, de novo, o povo colonial em posição de fazer escolhas, de fazê-los respeitar
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e de concretizá-las no domínio político e econômico, mas também no da cultura” (TOWA, 2015, p. 70).
Considerações Finais
As possibilidades da filosofia desde África propiciaram neste artigo o desenvolvimento de dois elementos correspondentes quanto ao conteúdo: descolonização e contra-narrativa. Eles são equânimes no sentido de propiciar a povos subalternos possuírem uma voz autônoma e dialógica com os demais povos. Essa construção de voz e diálogo seria o cerne que este estudo inicial procurou expor, pois uma pesquisa sobre filosofia africana é um dos exemplos de resistir à “violência epistêmica” que, por exemplo, para a filósofa Gayatrik Spivak (2010) trata-se de um projeto de constituição do sujeito colonial enquanto o Outro, pois não “oferece um relato de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas” (SPIVAK, 2010, p. 48). Acrescenta-se a isso o fato de que, “aos olhos do conquistador, a vida selvagem não é mais que outra forma da vida animal, uma experiência horripilante, algo radicalmente ‘outro’ (alien), mais além da imaginação ou da compreensão” (MBEMBE, 2011, p. 40). Entretanto, justamente por esse radicalmente “outro” que se constroem as bases investigativas de uma filosofia descolonizada.
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NEAB RELAÇÕES RACIAIS E SEGREGAÇÃO URBANA: Trajetórias negras na cidade Mariana Panta
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RELAÇÕES RACIAIS E SEGREGAÇÃO URBANA: Trajetórias negras na cidade Mariana Panta
Resumo
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O objetivo deste estudo é analisar os processos de segregação espacial urbana da população negra em Londrina-PR, bem como alguns dos seus desdobramentos, sobretudo aqueles relacionados aos estigmas territoriais, à discriminação racial e às violências. Para compreender esta realidade, além da discussão teórica, a pesquisa apoia-se em dados quantitativos referentes à distribuição espacial da população negra em Londrina e em entrevistas qualitativas realizadas com pessoas negras habitantes de diversas áreas da cidade. Os resultados deste estudo - em desenvolvimento - mostram que a distribuição da população em Londrina obedece a uma orientação que vai impelindo para as localidades mais precárias os segmentos negros, contribuindo para a reprodução e consolidação do confinamento deste grupo social em espaços de segregação e invisibilidade, cuja cidadania é limitada. Constata-se assim que a população pobre e negra, além de ter sua vida pautada pelas dificuldades impostas pela pobreza, tem ainda de lidar com as manifestações concretas e subjetivas do racismo que 29 Fragmentos deste texto - previamente produzido de forma colaborativa com a Prof.ª Dr.ª Maria Nilza da Silva - foram publicados na Ata Acadêmica do ‘XXX Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología - ALAS - Pueblos en Movimiento: Un Nuevo Diálogo en las Ciencias Sociales’, San José, Costa Rica, 2015.
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impacta todas as esferas de sua vida social, incluindo o direito à cidade. Palavras-chave: Segregação; População Negra; Racismo.
Abstract
The aim of this study is to analyze the urban spatial segregation processes of the black population in Londrina, as well as some of its developments, especially those related to territorial stigmas, racial discrimination and violence. To understand this reality, beyond theoretical discussion, the research relies on quantitative data on the spatial distribution of the black population in Londrina and qualitative interviews with black people living in different areas of the city. The results of this study - developing - show that the distribution of the population in Londrina follows a direction that will impelling to the most precarious places black segments contributing to the reproduction and consolidation of the confinement of this social group in spaces of segregation and invisibility, whose citizenship is limited. It thus appears that the poor black population, in addition to your life guided by the difficulties imposed by poverty, has yet to deal with the concrete and subjective manifestations of racism that impacts all spheres of social life, including the right to the city . Keywords: Segregation; Black Population; Racism.
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Introdução
Nos primeiros anos da década de 50, do século XX, foi iniciada uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, financiadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Dentre os intelectuais estrangeiros que desenvolveram estudos sobre o negro no país, destacam-se Charles Wagley, da Columbia University, e Roger Bastide, da École Pratique des Hautes Études, Paris. Wagley e seus alunos desenvolveram pesquisas em municípios da Bahia, contando com a colaboração de Thales de Azevedo e Costa Pinto (1950). Bastide, por sua vez, empreendeu pesquisas na cidade de São Paulo em parceria com Florestan Fernandes (1955), que viria a se tornar corrente canônica de pensamento no âmbito do Projeto UNESCO. Também desenvolveram pesquisas na capital paulista Virgínia Leone Bicudo (2010, originalmente publicada em 1945) e Aniela Ginsberg (1955); Oracy Nogueira no interior paulista (1955); Luís Aguiar Costa Pinto no Rio de Janeiro (1952) e René Ribeiro no Recife (1956). Algum tempo depois, Florestan Fernandes fundou, na Universidade de São Paulo, a Escola Paulista de Sociologia, passando a contar com a participação de seus alunos, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso (1960), que desenvolveram estudos sobre a situação social do negro em Florianópolis. O Projeto UNESCO contribuiu amplamente não só para uma compreensão mais detalhada das especificidades das relações raciais no Brasil, mas também para o desenvolvimento das Ciências Sociais no país, sobretudo da
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Sociologia e Antropologia. É preciso considerar, porém, que antes da publicação dos estudos patrocinados por esta agência internacional, intelectuais e ativistas negros, dentre os mais destacados, Abdias Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos, já vinham denunciando as discriminações e os inúmeros problemas enfrentados pelos negros no país. Embora preteridos no âmbito acadêmico - principalmente naquele contexto - deixaram marcas indeléveis nas suas produções intelectuais, sobretudo no enfrentamento de problemas práticos e emergentes que impactavam a vida da população negra na luta antirracista e nas aspirações por uma efetiva transformação da realidade social deste contingente populacional, por intermédio de uma agenda política pautada na experiência do ativismo negro e, como defendia Guerreiro Ramos, em uma sociologia de caráter pragmático, em ato, isto é, em “mangas de camisa” . Para além de estudos meramente acadêmicos, as discussões sobre a condição social do negro era uma questão política e existencial para esses intelectuais. As pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto UNESCO e a produção de intelectuais negros marcaram profundamente a luta antirracista no Brasil da década de 1950, sobretudo em decorrência da substancial mudança no modelo de interpretação das relações raciais no país. O período foi marcado pela ruptura com o paradigma da “democracia 30
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30 Cf. MAIO, Marcos Chor. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, p. 141-158, out. 1999. 31 A sociologia propositiva e legitimamente nacional proposta pelo intelectual baiano visa uma atuação prática, com a priorização do desenvolvimento de pesquisas emergentes, conforme a realidade e os problemas específicos do país, isto é, uma sociologia em ‘mangas de camisa’ (sociologia em ato), contrapondo-se a uma sociologia importada ou “enlatada” (em hábito), que o levou a tecer duras críticas aos pensadores de seu tempo, bem como a ter suas propostas amplamente rejeitadas no âmbito acadêmico, naquele momento. Cf. REZENDE, Maria José. Guerreiro Ramos e a Sociologia em “Mangas de Camisa”: Uma proposta de intervenção nos processos de mudança social. Cadernos Ceru (USP), n.17, 2006.
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racial”, associado a Gilberto Freyre - vigorante entre os anos 30 e 50, mas com acentuada influência na atualidade - e pela ascensão de um paradigma sociológico que se destacava, primordialmente, através da produção intelectual de Florestan Fernandes, eminente crítico da interpretação freyreana, especialmente da tão propagada “democracia racial”, a qual alcunhou de mito. No final da década de 1970, tempo histórico em que o Movimento Negro contestava veementemente o mito da democracia racial, o campo de estudos sobre o negro no Brasil foi marcado pela imprescindível contribuição de Carlos Hasenbalg (por exemplo a obra de 1979). Em relação às principais pesquisas sobre raça desenvolvidas no país até então, o autor avançou substancialmente no sentido de evidenciar que a discriminação e as desigualdades raciais não deveriam ser compreendidas como resquícios do passado escravocrata, suscetível ao desaparecimento com o desenvolvimento do capitalismo e com a integração do negro na sociedade de classes, como acreditavam alguns estudiosos. É nesse ponto que o autor teceu críticas à orientação teórica de Florestan Fernandes e demais sociólogos da Escola Paulista de Sociologia. Enfatizou, em sua pesquisa, que a industrialização não suprimia a raça como critério de hierarquização social, pois o racismo era compatível com o capitalismo. O ponto crucial da pesquisa de Hasenbalg é que a exploração de classe e a discriminação racial se articulam como dispositivos de exploração da população negra e que a raça é determinante na ocupação de posições na estrutura de classes e no sistema de 32
32 Embora a expressão “democracia racial” não tenha sido criada por Gilberto Freyre, sua obra, especialmente Casa-Grande & Senzala, publicada pela primeira vez em 1933, estabeleceu as bases para a consolidação da ideia de um padrão harmônico das interações raciais no país, que se configuraria, na presumida “democracia racial”, referência central das críticas de Florestan Fernandes.
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estratificação social . O autor também foi pioneiro no desenvolvimento de estudos sistematizados sobre as desigualdades raciais no Brasil, contribuindo para a formação de uma nova geração de pesquisadores na temática, especialmente de pesquisadores negros, bem como forneceu subsídios, através de suas pesquisas, para aqueles que lutavam pela equidade racial. Na atualidade, diversos estudos sociológicos têm abordado as faces contemporâneas do racismo e a associação desse fenômeno multifacetado com outras formas de discriminação e estigmatização, que intensificam as desigualdades e preservam o “ciclo de desvantagens cumulativas” deste grupo social. As desigualdades raciais são constatadas nas mais diversas esferas da vida social, tais como educação, trabalho, habitação, entre outras. No caso do presente trabalho, busca-se promover o debate acerca das relações raciais e das dinâmicas de segregação espacial urbana. Este estudo reúne reflexões e questionamentos resultantes de uma trajetória de trabalho iniciada em 2006, junto ao Grupo de Pesquisa Estudos Afro-Brasileiros e Relações Raciais (CNPq/UEL), liderado pela socióloga Maria Nilza da Silva. Composto inicialmente por estudantes provenientes dos programas UNIAFRO e AFROATITUDE e, 33
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33 Este ponto é bem desenvolvido por Hasenbalg no Capítulo III: Estrutura de Classes, Estratificação Social e Raça, do livro: Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 34 Cf. HASENBALG, Carlos e SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro: Vértice, 1988. Cf. também: SILVA, Nelson do Valle. Extensão e natureza das desigualdades raciais no Brasil. In: GUIMARÃES, Antonio S. A; HUNTLEY, Lynn (Orgs.). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 33-51. 35 O Projeto UNIAFRO foi lançado pelo MEC no início de 2005 com o objetivo de estimular as universidades a contribuir para o cumprimento da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório e ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. 36 O Programa Integrado de Ações Afirmativas para Negros (Brasil AfroAtitude) foi uma parceria entre o Programa Nacional de DST e AIDS do Ministério da Saúde, e as universidades públicas que possuíam Programa de Ação Afirmativa para negros e adotavam o sistema de cotas para acesso ao Ensino Superior. O objetivo foi fortalecer as ações de combate à epidemia e as práticas para a
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subsequentemente, por outros estudantes interessados no estudo das relações étnico-raciais, nele destacam-se os projetos de pesquisa: Território e Segregação Urbana: O Lugar da População Negra em Londrina e A População Negra em Londrina: Memória e Realidade Social . Em março de 2009, o Grupo de Pesquisa deu origem ao Laboratório de Cultura e Estudos Afro-Brasileiros (LEAFRO/UEL) . Os projetos de pesquisa mencionados foram elaborados a partir da constatação de que a presença negra estava relegada ao ostracismo nos registros oficiais da história da cidade. Não diferente de outras localidades do país, Londrina, instituída oficialmente município em 1934, manteve, na sua construção historiográfica, invisíveis a história e a cultura negra. Passaram-se 80 anos para que a população negra tivesse maior visibilidade na cidade e os seus problemas fossem discutidos de forma mais ampla. Através das pesquisas sócio-historiográficas desenvolvidas nos últimos anos em Londrina, no âmbito teórico e empírico, constata-se que a população negra contribuiu substancialmente com a economia local, desde os primórdios da estruturação do município. Os braços negros constituíramse uma força de trabalho fundamental naquele contexto, que demandava árduas jornadas de trabalho na derrubada de matas e nas lavouras de café. Enfatiza-se, porém, que a atuação da população negra não se restringe ao trabalho 37
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implementação de ações afirmativas inclusivas, sustentáveis e permanentes através do apoio a ações diversas no âmbito acadêmico e assistencial, destinadas a estudantes universitários negros e cotistas. Na UEL o Programa teve dois anos de durabilidade e atendeu 50 alunos que receberam bolsas das instituições de fomento. Cada bolsista estava vinculado a um orientador e aos projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão. 37 Projeto de pesquisa coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria Nilza da Silva de 2006 a 2012. 38 Projeto de pesquisa coordenado pela Prof.ª Dr.ª Maria Nilza da Silva de 2009 a 2015. 39 O projeto de extensão foi instaurado com o financiamento da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) e é coordenado pela Prof.ª Dr.ª. Maria Nilza da Silva.
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braçal, ao contrário, é uma trajetória de luta, resistência e protagonismo no processo de construção do Brasil que merece visibilidade e reconhecimento na história nacional. Do mesmo modo, corresponde a uma trajetória repleta de amarras e emperramentos que impedem que este contingente populacional exerça a sua cidadania em plenitude. Dentre os inúmeros problemas que assolam a vida da população negra, chama atenção a intensa ocupação de áreas periféricas, pobres e estigmatizadas de diversas cidades brasileiras, o que acaba por limitar o acesso a bens e serviços fundamentais oferecidos pela cidade; consolidamse preconceitos e estigmas; amplia-se a vulnerabilidade à violência e à criminalidade, entre outros infortúnios. Dar visibilidade à maneira como essas precariedades e privações se constituíram e se vêm reproduzindo no cotidiano das formas de interações sociais urbanas é o que norteia esta proposta de trabalho. Nessa perspectiva, configura-se como problema central desta pesquisa a elevada concentração de negros em territórios segregados da cidade de Londrina e a acentuada estigmatização desse contingente populacional e dos seus territórios. Em virtude disso, este estudo se propõe analisar os processos de segregação espacial urbana da população negra em Londrina, bem como alguns dos seus desdobramentos, sobretudo aqueles relacionados aos estigmas territoriais, à discriminação racial e às violências. A relevância do problema a ser estudado está no aprofundamento 40
40 O conceito de território tem sido amplamente discutido nas Ciências Sociais, desde os estudos sociológicos precursores, como aqueles desenvolvidos no âmbito da Escola de Chicago. No entanto, neste estudo utiliza-se como referencial formulações que parecem ser mais próximas do contexto social analisado, como as noções trazidas por Raquel Rolnik. Para a autora, o conceito de território urbano refere-se ao “espaço vivido, obra coletiva construída peça a peça por um certo grupo social” (ROLNIK, 1989, p. 2).
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do debate teórico e na construção de caminhos possíveis para a consolidação de uma problematização sociológica sobre segregação espacial urbana circunscrita à questão racial nos campos científicos das Relações Raciais e da Sociologia Urbana no Brasil. Além disso, estudos situados territorialmente têm a vantagem de apreender as peculiaridades presentes em espaços específicos. Neste caso, as periferias pobres que contornam as cidades devem ser estudadas não apenas no que se tem de objetivamente comprovado, por intermédio de dados quantitativos, mas também por meio de dados qualitativos, capazes de revelar subjetividades que afetam a vida da população negra. Para estudar o problema da segregação urbana articulado à questão racial, além da discussão teórica, a pesquisa se apoia em dados quantitativos sobre a distribuição espacial da população negra em Londrina e em mais de 70 entrevistas qualitativas realizadas com chefes de família, negros e negras, moradores da cidade, que revelam algumas evidências das dimensões raciais da segregação urbana. Essas entrevistas foram realizadas por pesquisadores e estudantes vinculados ao Grupo de Pesquisa Estudos Afro-Brasileiros e Relações Raciais e ao Laboratório de Cultura e Estudos Afro-Brasileiros, que fizeram o levantamento do material empírico utilizando como recurso metodológico entrevistas em profundidade, estruturadas em histórias de vida e depoimentos orais sobre trajetórias e experiências cotidianas de pessoas negras, a maioria residente na cidade há mais de trinta anos. Todos os depoimentos coletados, gravados em áudio e transcritos na íntegra, foram sistematizados por meio do processo de (re) leitura, categorização e organização dos dados discursivos que agregam um conjunto de fragmentos de histórias de vida
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formando um rico material qualitativo para a interpretação de diversos eixos temáticos. As entrevistas qualitativas geram um material empírico amplo. Assim, convém ressaltar que não foi feita uma reconstrução extenuante do material coletado, mas sim buscou-se explorar os principais aspectos identificados nas narrativas dos depoentes com o intuito de evidenciar situações recorrentes, que fazem parte do cotidiano de significativa parcela da população negra no que se refere à ocupação e produção do espaço urbano. Em outros termos, está em curso um processo de revisão do material empírico já coletado pelos pesquisadores do LEAFRO, visando ampliar a identificação de mecanismos que atuam estimulando a segregação de contingentes negros e operam com as suas consequências.
Raça e Espaço Urbano no Brasil
Em linhas gerais, nos Estados Unidos as pesquisas sobre segregação focalizam extensivamente a questão racial, especialmente através da formação dos guetos negros e latinos. Nos estudos desenvolvidos na América Latina, no entanto, a análise do processo de segregação encontra campos mais amplos de discussões e pesquisas na categoria socioeconômica. Assim, os principais estudos desenvolvidos no campo da sociologia das relações raciais no Brasil, de modo geral, não abarcam a discussão sobre segregação. Do mesmo modo, no âmbito da sociologia urbana brasileira, embora existam diversas publicações que analisam diretamente a Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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questão da segregação espacial nas cidades, raça não aparece como uma categoria analítica relevante nesses trabalhos. O enfoque central dessas pesquisas encontra-se na questão das desigualdades entre as classes sociais, questões econômicas e de mercado imobiliário. A ideia geral é que, no contexto brasileiro, a segregação não comporta a questão racial e viceversa. Observa-se uma escassez da abordagem da questão racial nos estudos sobre segregação urbana desenvolvidos no Brasil, bem como a ausência de uma problematização sociológica da segregação urbana no campo das relações raciais brasileiras o que se relaciona, primordialmente, à comparação com a segregação nos Estados Unidos, onde historicamente a discriminação obteve o suporte de leis segregacionistas. Essa comparação é equivocada pelo fato de não se considerar as especificidades históricas, políticas, socioeconômicas, culturais e urbanas de cada país. Observa-se, porém, desde a década de 1990, uma tendência crescente na ampliação do debate sobre raça e espaço urbano no país. Entre os trabalhos que analisam os processos urbanos brasileiros tendo-se a raça como categoria analítica, cabe destacar as pesquisas desenvolvidas por Rolnik (1989), Telles (1993; 2003), Vargas (2005), Silva (2006), Campos (2012), Santos (2012) e França (2014). É importante ressaltar que os estudos que articulam raça e espaço urbano não 41
41 O uso do conceito “raça” segue as contribuições teóricas de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães: “Raça é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário, de um conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. As realidades das raças limitam-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite – ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos -, tal conceito tem uma realidade social plena e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite” (GUIMARÃES, 1999, p. 11).
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desconsideram questões econômicas e sociais. Eles ampliam o debate incorporando a questão racial, visto que as análises acerca da segregação socioespacial não têm sido suficientes para compreender as especificidades da população negra, que ainda hoje é maioria nos territórios marginalizados das cidades brasileiras. Rolnik (1989) chama atenção para o fato de que no gueto norte-americano a discriminação racial é aberta e a dominação branca explícita, enquanto no Brasil ambas são relativamente veladas. Para a autora, que desenvolveu pesquisas em São Paulo e no Rio de Janeiro, é cabalmente plausível falar em segregação racial, discriminação e dominação branca, visto que a história das duas cidades é marcada pela marginalização e estigmatização do território negro. O ponto crucial dessa análise está no fato de que no Brasil existiria uma espécie de “apartheid velado”. Assim, a segregação seria mascarada tanto quanto o racismo à brasileira (ROLNIK, 1989, p. 16). NoBrasil,Telles foi pioneiro em conduzir estudossistematizados para mensurar a segregação articulada ao componente racial, através da aplicação dos índices de segregação (índices de dissimilaridade, exposição e isolamento) muito empregados em pesquisas norte-americanas . Os resultados da pesquisa 42
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42 “O índice de dissimilaridade, ainda muito utilizado nos dias de hoje, constitui um indicador da relação existente entre a composição populacional das unidades de área (por exemplo, setores ou bairros) e a composição populacional de toda a área de estudo (cidade ou aglomerado urbano). Conceitualmente, este índice mede a proporção da população de um grupo que deveria se mudar para outras áreas para que a composição populacional em cada uma das unidades de área seja idêntica à da cidade como um todo” (FEITOSA, 2005, p. 43). 43 É importante ressaltar que não se trata de aplicar de forma mecânica teorias norte-americanas, elaboradas em contextos específicos, para analisar a realidade de nações latino-americanas. Ao contrário, seguindo as contribuições teóricas de Guerreiro Ramos, enfatiza-se a necessidade de se assumir uma postura crítico-assimilativa em face do patrimônio estrangeiro. Isso significa ter um compromisso consciente com o contexto analisado, considerando as peculiaridades históricas de cada localidade. Nessa perspectiva, as teorias e técnicas correntes nos centros acadêmicos hegemônicos, em especial europeus e norte-americanos, seriam utilizadas não como paradigma, mas sim como subsídio na interpretação dos problemas específicos de países em desenvolvimento como o Brasil (RAMOS, 1965, p. 120).
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por ele conduzida mostram que a segregação brasileira é moderada quando comparada à segregação extrema entre brancos e negros em algumas cidades dos Estados Unidos. No Brasil é comum brancos e negros conviverem lado a lado nos bairros pobres e a mistura racial no interior das famílias assegura ainda mais os relativos baixos índices de segregação. No entanto, o ponto fundamental da análise de Telles incide sobre o fato de que essa interação é geralmente limitada aos bairros pobres do Brasil e ocorre principalmente em ocasiões em que brancos pobres são minoria e os negros são maioria. Em contrapartida, os brancos das classes média e alta possuem poucos vizinhos negros - exceto à condição de serviçais (TELLES, 2003, p. 182-183). Em outros termos, a segregação com o componente racial é branda nas classes baixas e se torna mais acentuada nas faixas de renda maior. A metodologia empregada por Telles foi utilizada também por França (2014), o qual reafirmou, mediante pesquisas realizadas na cidade de São Paulo, que a segregação racial brasileira é intensificada nos estratos mais altos, ou seja, nas camadas médias e altas. A partir da utilização de dados do Censo de 2000, o autor evidencia: [...] considerando as faixas de renda domiciliar mais altas, a concentração dos negros em áreas periféricas é bem maior que a dos brancos, ao passo que a proporção de brancos destes estratos em áreas de elite é bem maior que a dos negros. Por fim, também demonstramos que os brancos, mesmo que de classes mais baixas, estão, comparativamente, mais representados em
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áreas mais ricas da cidade do que os negros. Assim, as distâncias se expressam não apenas nos maiores índices de segregação racial que verificamos nos altos estratos, mas também no fato dos brancos pobres estarem mais próximos das classes mais altas do que os negros pobres. Ou seja, as camadas mais altas são compostas majoritariamente por brancos, e os pobres que os cercam também são brancos (FRANÇA, 2014, p. 6). De modo similar, Oliveira (2002) analisou especificamente a segregação por raça e as formas históricas de exclusão racializada nas grandes cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro, onde as favelas são ocupadas predominantemente por negros. A partir da utilização do modelo clássico desenvolvido pelos sociólogos Douglas Massey e Nancy Denton , nos Estados Unidos, o geógrafo mostra como as favelas são ocupadas desproporcionalmente pelos negros em relação ao seu percentual na cidade. Assim como Telles, Oliveira retrata a segregação entre brancos e negros como moderada, ressaltando, contudo, que esta é apenas a face objetiva da segregação, que não revela a dimensão completa da experiência do confinamento negro em territórios marginalizados. O autor evidencia que o grau aparentemente moderado de segregação é intensificado quando se leva em consideração a condição social dos brancos que habitam as mesmas localidades, isto é, no interior de um mesmo território marginalizado, o negro permanece em 44
44 1988.
Cf. MASSEY, D. e DENTON, N. The Dimensions of Residential Segregation. Social Forces,
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desvantagens em relação ao branco. Cabe mencionar ainda o estudo conduzido por Silva (2006), que empreendeu sua pesquisa com base em dados quantitativos sobre a distribuição da população negra na cidade de São Paulo e qualitativos, apoiados em 50 entrevistas em profundidade realizadas com chefes de família, negros e negras, moradores da metrópole. A autora, através da análise dos aspectos da urbanização da cidade de São Paulo amplamente influenciados pela ideologia eugenista - mostra como os negros foram repelidos das regiões centrais e forçados a ocupar as regiões mais distantes, que são as grandes periferias atuais, nesse processo simultaneamente social e racial. A autora ressalta ainda que a restrita parcela da população negra que possui maior poder aquisitivo e reside em regiões mais favorecidas e bem localizadas, embora possa desfrutar de maior conforto, tende a ser discriminada por ocupar um lugar que, na concepção de muitos, não lhe foi destinado . Neste caso, verifica-se que a melhoria na condição econômica ou na posição social não se traduz em ausência de discriminação. A experiência da sociabilidade existe, mas fica limitada pela presença do racismo. Em 2008, Silva mostrou que, no Estado do Paraná, especialmente em Londrina, a trajetória da população negra é semelhante àquela vivida pelos negros em outras regiões do Brasil, já que a sua invisibilidade foi utilizada como estratégia do projeto civilizatório nacional, que disseminava a ideia de branqueamento e de uma população mais próxima do modelo europeu. Convém ressaltar que o período de criação e consolidação de 45
45 Cf. SILVA, Maria Nilza da. Nem para todos é a cidade: segregação urbana e racial em São Paulo. Brasília, DF: Fundação Cultural dos Palmares, 2006. Cap. 4: Menos excluídos e mais solitários.
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Londrina - década de 1930 - corresponde a um tempo histórico no qual o Brasil estava em total sintonia com as teorias raciais provenientes da Europa e dos Estados Unidos, implementando políticas solidificadas de branqueamento com o intuito de “aprimorar” a nacionalidade e estimular o seu progresso. Os fatores históricos associados à ausência de políticas públicas específicas, certamente acarretaram a extrema dificuldade de mobilidade social ascendente da população negra, que, ainda hoje, sofre em demasia os processos de segregação territorial involuntária . 46
O ‘lugar’ da População Negra em Londrina
Ao analisar-se a trajetória da população negra para Londrina - cujo fluxo migratório mais intenso se deu entre as décadas de 1940 e 1970, principalmente para o suprimento da mão de obra nas lavouras de café - constata-se que as famílias da maioria dos migrantes negros provém de Minas Gerais e do nordeste brasileiro. Naquele contexto, as intensas desigualdades regionais impeliram o grupo negro a se pôr em movimento, em busca de melhores oportunidades ou, ao menos, de condições mínimas de sobrevivência em regiões do país que emergiam como novos polos de desenvolvimento. 46 No estudo sobre processos urbanos é importante mencionar que existem dois tipos principais de segregação: a voluntária e a involuntária. A segregação voluntária decorre da ação organizada, cuja intenção segregativa encontra-se explicitamente presente na vontade desses grupos. O indivíduo ou uma classe de indivíduos opta por morar próximo às pessoas de sua classe social. É nessa perspectiva que se inserem, por exemplo, os condomínios fechados ou, como denomina Tereza Pires do Rio Caldeira (2000), os enclaves fortificados. Já a segregação involuntária, ao contrário da primeira, é aquela em que as pessoas são segregadas contra a sua vontade, isto é, por falta de opção. Nessa perspectiva, para Villaça (2001), a segregação nas periferias pobres das cidades brasileiras é involuntária. Segundo o autor, à medida que a segregação voluntária acontece, a involuntária também acaba acontecendo.
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Todavia, os deslocamentos das famílias negras não cessaram quando estas migraram para Londrina. Ao chegar à nova localidade, outra vez o grupo negro foi posto em movimento, porém, os seus deslocamentos passaram a ser intraurbanos, isto é, dentro da cidade em busca de moradia . O que chama atenção é que as primeiras favelas de Londrina, iniciadas na década de 1950 - Pito Aceso e Vila do Grilo foram justamente iniciadas por famílias provenientes de Minas Gerais e do Nordeste. Elucida-se assim que famílias pobres e negras que migravam para Londrina em busca de melhores condições de vida, muitas vezes não tiveram escolha a não ser a assumir ocupações precárias. Atualmente, Londrina é uma das principais cidades do Sul do Brasil e a segunda do estado do Paraná, constituindo-se de uma população estimada em 506.701 habitantes, dos quais 132.096, isto é, 26,07% são negros (IBGE, 2010). 47
47 Cf. PANTA, Mariana. Segregação Geográfica, Desigualdades Raciais e Migrações: Londrina como destino de fluxos migratórios mineiros e nordestinos (1940-1980). In: SILVA, Maria Nilza da; PANTA, Mariana. (Orgs.). Território e Segregação Urbana: o ‘lugar’ da população negra na cidade. 1ª ed. Londrina: UEL, 2014, p. 35-63.
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Quadro 1. Distribuição da população por raça/cor – Londrina – IBGE 2010
Fonte: Elaborado pela autora a partir de dados do IBGE: Censo Demográfico de 2010.
Ainda que a população negra represente 26% do contingente populacional da cidade, verifica-se que a história e a cultura negra, assim como o próprio grupo social, se desenvolvem à margem da sociedade, visto que a população negra está, na sua maioria, nos territórios segregados e estigmatizados da cidade, ao passo que representa um percentual ínfimo nos territórios mais valorizados e consolidados com maior poder aquisitivo. Como mostra o Mapa de Distribuição da População Negra em Londrina, a maioria da população negra está concentrada nas periferias pobres localizadas nas extremidades da cidade.
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Figura 1. Distribuição da população negra em Londrina (Região Urbana) 2010
Fonte: Silva (2014).
O mapa revela as dimensões objetivas da segregação espacial da população negra na cidade, constituindo-se como importante ponto de partida para o desenvolvimento de pesquisas qualitativas capazes de apreender aspectos subjetivos, difíceis de serem apreendidos em pesquisas quantitativas, como é o caso da discriminação. Ao empreender-se a pesquisa de campo focalizando trajetórias de vida de pessoas negras, acredita-se que aspectos recorrentes observados através de experiências individuais estejam relacionados a aspectos sociais mais amplos, ou seja, a problemas estruturais. Como mencionado previamente,
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na busca por compreender, de um modo mais completo, a condição social do negro em Londrina, além dos dados quantitativos relativos à distribuição espacial da população negra na cidade, a pesquisa apoia-se em entrevistas qualitativas realizadas com chefes de família, negros e negras, residentes em diferentes áreas do município. Quadro 2. - Bairros contemplados na pesquisa
Fonte: A autora (2014)
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Quadro 3 - Os entrevistados
Fonte: A autora (2017)
Sotero (2013, p. 27) mostra que, nos últimos tempos, houve o aumento do número de famílias chefiadas por mulheres, sobretudo por mulheres negras. No Quadro 3, que apresenta as características gerais dos entrevistados, chama a atenção o número de famílias chefiadas por mulheres negras. Observase que, das 42 mulheres entrevistadas, apenas duas não têm filhos. Das 40 mulheres que têm filhos, mais da metade (52,5%) chefia a família sozinha. Convém mencionar que boa parte dos entrevistados, 35,2%, não possui o ensino fundamental completo. A maior parte deles alega que foi possível frequentar apenas as séries iniciais (1ª a 4ª); 5,6% não são alfabetizados; 21% têm curso superior completo; e dos quatro entrevistados que têm curso superior incompleto ou em andamento, três ingressaram na Universidade Estadual de Londrina pelo sistema de cotas para negros. Entre os principais fatores que limitaram a inserção e permanência do segmento populacional negro na escola, segundo os próprios entrevistados, destaca-se a
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inserção precoce no mundo do trabalho. Evidentemente, a baixa escolaridade de significativa parcela da população negra interfere nas ocupações exercidas por este grupo social. Entre os homens negros, o trabalho braçal, mecânico e manual prevalece. Entre as mulheres negras, o serviço doméstico . 48
Racismo e Segregação
A distribuição da população em Londrina obedece a uma orientação que vai empurrando para as zonas mais precárias os segmentos pobres e negros. Convém ressaltar que, apesar das peculiaridades de cada contexto, essa realidade assemelha-se à experiência vivida pela maioria da população negra em outras regiões do país. Como escreve Hasenbalg (1979, p.118) “a raça, como traço fenotípico historicamente elaborado, é um dos critérios mais relevantes que regulam os mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social”. Compete à sociologia desvendar como e em que medida a raça também atuaria sobre a segregação urbana que, pelo visto, não se revela como um problema relacionado estritamente à classe social. Quando se analisam as trajetórias de pessoas negras que compõem o material empírico coletado, chama a atenção o itinerário urbano trilhado por elas e suas famílias. Observa-se 49
48 Cf. PANTA, Mariana; PALLISSER, Nikolas. Relações Raciais, Escola e Mercado de Trabalho: Trajetórias e desafios para as políticas sociais. In: XVII Congresso Brasileiro de Sociologia: Sociologia em Diálogos Transnacionais, Porto Alegre, 2015. 49 O sociólogo norte-americano Edward Telles, em estudos sistematizados desenvolvidos no Brasil desde a década de 1990, vem mostrando que os negros são mais propensos a viver em áreas de pobreza concentrada do que os brancos de mesma renda (TELLES, 2003, p.179).
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que, independentemente de se deslocarem muitas ou poucas vezes no interior da cidade, o que prevalece é um quadro de mudança para bairros mais vulneráveis socialmente e cada vez mais distantes daqueles com melhor infraestrutura, o qual permite constatar, na prática, a possibilidade de evolução inversa, discutida por Santos (2007). De acordo com o geógrafo, a evolução inversa se dá de duas maneiras: “seja quando um indivíduo muda para um bairro onde as condições de vida são ainda menos boas ou quando, no seu próprio bairro, vê as suas condições piorarem” (SANTOS, 2007, p.111). Avulta-se entre os entrevistados depoimentos que expõem dificuldades relacionadas à falta de acesso ou acesso limitado a bens e serviços essenciais oferecidos pela cidade, bem como maior propensão a sofrer diversos tipos de violência, que pode ser criminal, das forças policiais ou referente à violação de direitos humanos. No final da década de 1970, Hasenbalg (1979) verificou que cada nova geração de negros permanecia em desvantagem em relação aos brancos, visto provirem eles, desproporcionalmente, de famílias de baixa posição social. Somava-se a isso o racismo e a discriminação que continuavam a interferir amplamente no processo de mobilidade intergeracional restringindo as realizações dos negros, em comparação com os brancos de mesma origem social (HASENBALG, 1979, p.172,199). Nesse caso, a pobreza, as desigualdades e a segregação são intensificadas quando se trata de contingentes populacionais negros, realidade que perdura na atualidade. O negro, além de lidar com o racismo cotidiano advindo de atitudes individuais de uma parcela da população, sofre
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ainda com o racismo institucional , extremamente perverso, que atua de modo a estimular, preservar e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas, podendo atuar também nas instituições privadas, que direta ou indiretamente induzem a sua marginalização e até a exclusão, produzindo e reproduzindo a hierarquia social. De modo geral, nota-se que o confinamento negro em territórios segregados e estigmatizados da cidade é estimulado não apenas pelas classes mais abastadas, mas também pelo próprio Estado que, se por um lado, se encontra ausente nos territórios da pobreza no que diz respeito aos investimentos e à melhoria urbana, por outro, como analisa Hughes (2004, p.93), está presente na vida dos moradores das periferias pautado por mecanismos de controle social (perverso) e de repressão, intensificando a ordem segregacionista. Ao analisar o problema da segregação em algumas cidades norte-americanas, Marcuse (2004) conclui que o Estado articula-se estritamente com as classes altas, influenciando a formação dos guetos negros e, simultaneamente, a formação dos bairros brancos bem consolidados. O papel do Estado em controlar a segregação através da articulação com a classe dominante também é abordado por Caldeira (2000), Hughes (2004), Vargas (2005), Negri (2008) e Villaça (2011). Em virtude da explosão demográfica de Londrina, com o incentivo do governo municipal, passou-se a construir casas para a população mais pobre, destinando-lhes habitações que já nasciam em condições subnormais, em espaços desvalorizados e sem infraestrutura. Como analisa Lefebvre (2001, p.134), “o direito à cidade se manifesta como forma superior de 50
50 Cf. SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos Humanos e as Práticas de Racismo. Brasília: Câmara dos Deputados, 2013.
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direitos”. Contudo, o que se observa é que esses moradores não têm, de fato, direito à cidade, já que em determinados lugares a presença negra é indesejada. Londrina, com seus arranjos socioespaciais, contribui para a formatação de uma nova configuração para o confinamento negro em espaços de segregação e invisibilidade, cuja cidadania é limitada.
Discriminação, estigmas e violências
Não apenas os padrões de ocupação urbana no Brasil estão inexoravelmente ligados à raça, mas também as conceituações sobre raça derivam das várias formas como o espaço urbano é compreendido (VARGAS, 2005, p. 81). Se por um lado os territórios podem ser estigmatizados pela elevada concentração de negros, em decorrência da discriminação racial, por outro, as representações sociais e as políticas oficiais com relação aos lugares pelos quais eles estão excessivamente representados podem intensificar os estereótipos depreciativos e justificar a discriminação. A violência policial exercida nos espaços 51
51 Em dezembro de 2012 Londrina recebeu a instalação da primeira Unidade Paraná Seguro (UPS), projeto desenvolvido pelo Governo do Paraná que se assemelha às Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro, com a diferença que, no Paraná, não há participação do Exército Brasileiro. Foi a 12ª UPS instalada no Estado e a segunda no interior. O bairro escolhido para a instalação da UPS, com base no critério de índice de crimes, foi o Jardim União da Vitória, o maior assentamento urbano de Londrina, localizado na região sul. São mais de 30 policiais atuando no patrulhamento, diariamente. Cf. matéria publicada em 10/12/2012 no G1 Paraná: Segunda UPS do interior do Paraná é instalada em Londrina, no norte. Disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2012/12/ segunda-ups-do-interior-do-parana-e-instalada-em-londrina-no-norte.html. Acesso em: 20/07/2016. Conforme as notícias circuladas, o principal objetivo das UPSs é realizar ações integradas de desenvolvimento urbano e social, controle do crime (especialmente os relacionados ao tráfico de drogas) e o resgate da cidadania nas áreas que receberam as bases do policiamento comunitário. Contudo, como alerta Luis Antonio Machado da Silva, a simples ideia de que esses espaços precisam de policiamento diário indica que os moradores, em conjunto, são vistos com acentuada desconfiança, tanto pelo restante da população urbana, quanto pelas instituições de manutenção da ordem pública (SILVA, 2010, p. 4).
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segregados corresponde a um padrão histórico ainda em curso. Sabe-se que os “suspeitos” frequentemente mortos nas ações policiais são predominantemente negros. Os dados quantitativos relativos aos altos índices de violência letal contra jovens negros são conhecidos , no entanto, aspectos subjetivos devem ser considerados para uma compreensão mais completa das dinâmicas de discriminação. A proposta de investigação, que se encontra em andamento no âmbito do Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, além de propor a ampliação e aprofundamento do debate teórico sobre a questão da segregação espacial urbana articulada às relações raciais, centra-se nas seguintes questões: estigma territorial, discriminação racial e violências - O que os negros segregados falam sobre esses temas? De que modo residir em territórios estigmatizados e marcados por incessantes designações depreciativas impacta a vida de pessoas negras no que diz respeito às suas subjetividades (perspectivas, expectativas e atitudes)? Como constroem os vínculos de sociabilidade, considerando-se as suas relações com o território? Que estratégias utilizam para o enfrentamento das discriminações? A ideia não é apenas conhecer as experiências e opiniões de cada pessoa negra, mas suas experiências comuns como membros de um meio social. Assim, posteriormente, a tese irá tratar, de forma mais específica, do mundo dos agentes sociais envolvidos no processo de segregação espacial urbana involuntária que mais vêm sofrendo com as questões relativas às violências: os jovens negros, residentes nas localidades estigmatizadas . 52
53
52 Cf. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO. Brasília: SEPPIR/PR, 2012. 53 A escolha pelos jovens negros se dá em razão dos números oficiais nacionais existentes
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Para estudar esta realidade, a partir do Mapa de Distribuição da População Negra em Londrina-2010, foram selecionados dois bairros que se localizam em regiões distintas e estão entre aqueles com a maior concentração de negros da cidade: O Jardim União da Vitória, Zona Sul (o primeiro e o maior assentamento urbano de Londrina) e o Residencial Vista Bela, Zona Norte (Conjunto Habitacional com casas e apartamentos financiados pelo programa “Minha Casa Minha Vida”, do Governo Federal). Foram muitos os motivos que levaram à escolha desses bairros. Entre os principais estão: o elevado índice de habitantes negros, a localização às margens da cidade e a opinião pública de significativa parcela da população da cidade, que considera essas localidades violentas. Serão realizadas entrevistas qualitativas com jovens negros de 14 a 25 anos de idade, residentes nos dois bairros. Levando-se em conta a dimensão da investigação empírica empreendida no estudo, vê-se como necessário para a atualização e ampliação de conhecimentos, o aprofundamento teórico e metodológico que venha a contribuir para uma investigação inovadora, um constante desafio. 54
55
sobre violência, assim como pesquisas quantitativas e qualitativas que confirmam que estes são as maiores vítimas da violência no Brasil. Cf. FERREIRA, Helder et al. Juventude e Políticas de Segurança Pública no Brasil. In: CASTRO, Jorge Abrahão de; AQUINO, Luseni Maria Cordeiro de. Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009. 54 O Jardim União da Vitória, originado em 1985, localiza-se nas extremidades da Zona Sul de Londrina. É o primeiro e o maior Assentamento Urbano da cidade, no concernente à população e expansão. O bairro é uma ocupação urbana estigmatizada e demarcada pela marginalização social, onde os moradores enfrentam dificuldades referentes não só às precariedades do local, mas também às representações sociais depreciativas transmitidas pela mídia local (relacionada à violência e à criminalidade). Foi o primeiro bairro de Londrina a ter instalada uma Unidade Paraná Seguro (UPS), módulo policial fixo que faz o monitoramento intensivo do local no qual se instalou. 55 O Residencial Vista Bela localiza-se nas extremidades da Zona Norte de Londrina. Iniciado em 2009, é considerado um dos maiores canteiros do Programa “Minha Casa, Minha Vida”. O Conjunto Habitacional possui 2.712 moradias, construídas bem distante da região central de Londrina. O Residencial Vista Bela, além de acomodar famílias de baixa renda que obtiveram a moradia através do financiamento pelo Programa “Minha Casa Minha vida” acolhe também famílias provenientes de fundos de vale, áreas de preservação ambiental e demais ocupações irregulares.
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Considerações Finais
A análise da produção intelectual acerca do tema mostra que a segregação racial brasileira, em sua dimensão urbana, é moderada quando comparada à segregação extrema entre brancos e negros em algumas cidades dos Estados Unidos. Contudo, esse grau aparentemente moderado é intensificado ao levarem-se em consideração aspectos subjetivos, que evidenciam as inúmeras desvantagens da população negra em relação à branca de mesma condição social. Esse último aspecto é fundamental, como se averigua na pesquisa empírica desenvolvida no âmbito do projeto Território e Segregação Urbana: O lugar da população negra em Londrina. Constatase que a população pobre e negra, além de ter sua vida pautada pelas dificuldades impostas pela pobreza, tem ainda de lidar com as manifestações concretas e subjetivas do racismo que se manifesta em todas as esferas da vida social. As dimensões do racismo são planetárias e assumem novas configurações conforme a conjuntura social. Num contexto de amplo empenho dos movimentos sociais negros para o fortalecimento de políticas de ações afirmativas, que visam reduzir as desigualdades sociais, as ações de combate ao racismo, às discriminações e às desigualdades raciais devem ocupar um lugar privilegiado nas sociedades contemporâneas. Considerando-se a importância da articulação entre teoria e prática, isto é, entre produção científica e intervenção política, infere-se que a compreensão de problemas específicos sobre a condição social do negro no Brasil deverá converter-se em subsídios para a reflexão sobre os caminhos que se têm ainda a trilhar para a construção de sociedades mais justas e Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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equitativas.
Nota de Agradecimento
Agradeço amplamente a oportunidade de participar do Curso Intensivo de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós, promovido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), por meio do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), com financiamento da Fundação Ford. O curso contribuiu significativamente para o aprimoramento acadêmico, meu e de meus colegas, proporcionando-nos melhores condições para o ingresso em programas de mestrado ou doutorado.
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NEAB NAÇÃO, IGUALDADE E MODERNIZAÇÃO: Uma visão construtivista dos argumentos em torno das políticas de ações afirmativas (2010) Viritiana Aparecida de Almeida Nelson Rosário de Souza
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NAÇÃO, IGUALDADE E MODERNIZAÇÃO: Uma visão construtivista dos argumentos em torno das políticas de ações afirmativas (2010) Viritiana Aparecida de Almeida Nelson Rosário de Souza
Resumo
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Os conceitos de nação, igualdade social e modernização foram pensados no território brasileiro a partir dos vieses, dentre outros, de José Bonifácio de Andrada e Silva (17631838), Joaquim Nabuco (1849-1910), Paulino José Soares de Souza, o Visconde de Uruguai (1807-1866), Oliveira Viana (1883-1951) e Gilberto Freyre (1900-1987). Esses dois últimos tinham em comum uma perspectiva iberista quanto à formação do Brasil-Nação e que, como tal, impõem resistência às mudanças e ruptura em direção à visão moderna de democracia capitalista. Tendo em vista tal conjuntura, o objetivo deste trabalho é analisar como os especialistas em cotas raciais e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) problematizaram o argumento da ideologia de identidade nacional brasileira, igualdade social e modernização na audiência pública (AP) ocorrida no período de 3 a 5 de março de 2010 sobre políticas de ações afirmativas (AA). O problema que move esse artigo é o seguinte: como se deu o 56 Professor Doutor da Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e coordenador do grupo de pesquisa “Midiaculturas”: poder e sociedade. E-mail: nrdesouza@uol.com.br.
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processo de apropriação, interpretação e ressignificação dos três argumentos acima mencionados? Parte-se da hipótese de que os especialistas, bem como os ministros da Suprema Corte, ao problematizarem os argumentos da nacionalidade, raça e igualdade material reforçaram a ideia de progresso econômico. A questão da apropriação, interpretação e ressignificação dos mencionados argumentos será investigada através de uma abordagem teórico-metodológica das “midiaculturas”, útil para analisar as falas dos ministros e dos estudiosos em AA presentes no documento das Notas Taquigráficas e do Inteiro Teor do Acórdão disponível no sítio do STF – os quais constituem o corpus da pesquisa. A exegese corroborou, em apertada síntese, a premissa supra. Palavras-Chave: Argumentos. “Midiaculturas”. Ministros; Especialistas.
Abstract
The concepts of nation, social equality and modernization were analyzed in Brazil from different perspectives, among others, Jose Bonifacio de Andrada e Silva (1763-1838), Nabuco (1849-1910), Paulino José Soares de Souza, Visconde de Uruguai (1807-1866), Vianna (1883-1951) and Gilberto Freyre (1900-1987). Vianna and Gilberto Freyre had in common an Iberian perspective as the formation of the Brazil - Nation that, as such, require resistance to changes and break toward the modern vision of capitalist democracy Given this Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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situation, the aim of this study is to analyze how the experts on racial quota and the Federal Supreme Court (STF) problematized the argument of the ideology of Brazilian national identity, social equality and modernization at the public hearing (AP) occurred in the period of 3 to 5 March 2010 on affirmative action policies (AA). The main goal of this article is the following: how was the process of appropriation, interpretation and reinterpretation of the three arguments mentioned above? We started from the hypothesis that the experts and ministers of the Supreme Court, in order to problematize the arguments of nationality , race and material equality, they reinforced the idea of e conomic progress - what will be investigated through a theoretical - methodological approach of media cultures, useful to analyze the speeches of ministers and scholars in AA, presents in document of Stenographic notes and Judgment of full content available on the STF site - which constitute the corpus of this research. Exegesis corroborated, in brief summary, the premise above. Keywords: Arguments; Media cultures; Ministers; Experts.
Introdução
A palavra nação apresentou ao longo do tempo diversas significações. Contudo, isso não se constituiu em obstáculos para que estudiosos renomados, como Anderson (2008) e Hobsbawm (1990) se debruçassem sobre tal conceito a fim de defini-lo. Anderson (2008) defende: nação como sendo uma
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comunidade imaginada e soberana, uma vez que seus membros mantêm entre si um sentimento de comunhão, apesar de jamais se conhecerem. Em contrapartida, Hobsbawm (1990) vincula o conceito de nação ao desenvolvimento do Estado Moderno. Para ele, “o discurso nacionalista de Estado é o que cria as possibilidades para se pensar a nação, e não o oposto”. (HOBSBAWM, 1990, p. 19 Apud, TRINDADE, 2014, p. 4). Dessa perspectiva, o conceito de nação mestiça brasileira não passa de um grande mito que foi orquestrado através da ideologia da democracia racial. Pensadores, dentre outros, como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Joaquim Nabuco (1849-1910), Paulino José Soares de Souza - o Visconde de Uruguai (1807-1866), Oliveira Viana (1883-1951) e Gilberto Freyre (1900-1987) contribuíram de forma decisiva para a construção do imaginário de Brasil-Nação. Os dois primeiros autores exaltavam uma “perspectiva modernizadora, ainda que em compasso de espera: diante de uma sociedade em processo de formação, de uma nacionalidade heterogênea e amorfa, sem identidade” (TRINDADE, 2014, p.12). A ideia deles era de que o Estado brasileiro tinha o dever de tutelar e civilizar os indivíduos na luta contra os diversos tipos de atraso. Pensadores, dentre outros, como Oliveira Viana e visconde de Uruguai defendiam um viés diferente que o da valorização das raízes ibéricas (Portugal e Espanha) na formação da nação brasileira. Essa visão rejeitava as ideias de individualismo, mercado, contrato e democracia moderna. Por outro lado, enaltecia “a cooperação, a integração, o predomínio do interesse coletivo e comunitário sobre o individual, o personalismo, o patriarcalismo, etc.” (TRINDADE, 2014, p. Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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13). Pode-se dizer que o iberismo defendia um viés que era contrário aos ideais da ética do trabalho de matriz protestante. Oliveira Viana também defendia a política do branqueamento através da eugenia, bem como a manutenção do latifúndio na conjunção ao ideário de nação-mestiça. O discurso raciológico de Oliveira Viana, porém, entrava em decadência na Europa na mesma época em que era valorizado no Brasil. Nesse ínterim, surgiu a necessidade de que tal argumento fosse renovado face às demandas políticas e sociais que agitavam o Brasil, especialmente quando da ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Nesse contexto: Um autor se destacava no conjunto dos chamados “intérpretes do Brasil” por recuperar e revalorizar a representação da nação nos termos do iberismo: Gilberto Freyre (1900-1987). Com a publicação de seu Casa Grande & Senzala, em 1933, Freyre reeditou a temática racial e a identidade nacional, constituindo-as em chave para a compreensão do Brasil. Contudo, não as faz a partir do critério racista, ou raciológico, como na abordagem de Oliveira Viana. Tampouco elegeu o Estado como o agente central do processo de formação social. Ao contrário, Gilberto Freyre opera uma dupla inversão de termos: ao invés da raça, pensa a cultura; ao invés do Estado, pensará a Sociedade (TRINDADE, 2014, p. 18).
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A partir de um viés culturalista, Freyre (2008) desconstrói o discurso racista que alegava inferioridade atávica dos negros, exalta a figura do mestiço, e “supõe uma hierarquia, não mais racial, mas cultural, vale dizer, tendo como parâmetro a maior ou menor complexidade cultural ou grau de cultura” (TRINDADE, 2014, p. 19). Ele valoriza o sistema patriarcal brasileiro e contribui com a difusão do mito nacional de harmonia e equilíbrio social que, em tese, ocorreriam no Brasil. Mesmo com a ascensão do capitalismo observa-se que no Brasil a política de conciliação entre Casa Grande e Senzala sobreviveu, mas agora deslocada para o âmbito dos espaços urbanos. Verifica-se “uma leitura desconfiada da modernização, entendida por Freyre como destruidora de formas culturais mais ricas em nome da homogeneidade e igualdade entre os indivíduos” (TRINDADE, 2014, p. 22). Em suma, tanto a visão de Oliveira Viana (para quem o Estado deve formar a sociedade), quanto a de Freyre (de que sociedade civil é patriarcal) se reforçam mutuamente (TRINDADE, 2014). Ambas são “manifestações distintas de uma mesma perspectiva iberista quanto à formação do Brasil-nação, e que como tal impõem resistências às mudanças e rupturas em direção à ideia de um Brasil moderno” (TRINDADE, 2014, p. 22). Este fato foi investigado pelo sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) com o intuito de compreender o processo de integração do negro na sociedade capitalista. Para ele, a precária integração do ex-escravo na sociedade de classes “se deu em função de obstáculos estruturais à plena vigência daquilo que Florestan Fernandes denomina de ordem social competitiva, isto é, uma ordem social que contemplasse as virtudes da meritocracia, da igualdade de oportunidades, da competição Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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justa” (TRINDADE, 2014, p. 32). Suas pesquisas revelaram que um dos principais obstáculos à integração do negro ao mercado capitalista foi “o preconceito racial, que se traduzia em resistências abertas ou dissimuladas para sua admissão em pé de igualdade com os brancos” (TRINDADE, 2014, p. 33). Feito esse mapeamento histórico, o objetivo deste trabalho é analisar como os especialistas em ações afirmativas (AA) e os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) problematizaram o argumento da ideologia de Identidade nacional mestiça brasileira vinculada ao conceito de igualdade social e modernização capitalista na Audiência Pública (AP) ocorrida no período de 3 a 5 de março de 2010. O problema que move esse artigo é o seguinte: como se deu o processo de apropriação, interpretação e ressignificação dos três argumentos acima mencionados? Parte-se da hipótese de que os especialistas, bem como os ministros da Suprema Corte, ao problematizarem os argumentos de nacionalidade, raça, igualdade, sobretudo, a material, reforçam a ideia e modernização capitalista. Essa visão dos especialistas e dos ministros da Suprema Corte será investigada através de uma abordagem teórico-metodológica das “midiaculturas”, útil para analisar as falas dos ministros e dos estudiosos em AA presentes no documento das Notas Taquigráficas e do Inteiro Teor do Acórdão disponível no sítio do STF – os quais constituem o corpus da pesquisa. O artigo está estruturado da seguinte maneira: num primeiro momento será apresentado o arcabouço teórico-metodológico das “midiaculturas”. Num segundo momento, abordar-se-á o processo de apropriação e ressignificação do conceito de nação mestiça, igualdade e modernização. À guisa da conclusão, aponto caminhos de reflexão da disputa em tela.
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Abordagem Teórico-Metodológica das “Midiaculturas”
A perspectiva das “midiaculturas” agrega pensadores franceses como Eric Macé, Eric Maigret e Hervé Glevarec. Influenciada pela corrente dos estudos culturais da sociologia construtivista e da noção de esfera pública polifônica, a proposta das “midiaculturas” é fazer uma observação dos conflitos e tensões presentes, em diversas esferas públicas, uma vez que tais conflitos definem as representações coletivas (MACÉ, 2006). Nesse sentido, as “midiaculturas” também valorizam “a capacidade reflexiva dos públicos em suas práticas cotidianas” (SOUZA, 2015, p. 3). Ao analisar tal capacidade reflexiva do público, esta corrente teórica parte do pressuposto construtivista de que a realidade é construída socialmente pelo homem comum (BERGER; LUCKMANN, 2005). Segundo Berger e Luckmann (2005), as instituições sociais são criadas pelos indivíduos através de um processo em que o ator social interioriza e exterioriza o próprio ser no mundo social, o que revela que o mundo social se constrói a partir de pré-construções passadas. Assim, as formas sociais “passadas são reproduzidas, apropriadas, deslocadas e transformadas enquanto outras são inventadas” (CORCUFF, 2001, p. 27) nas práticas cotidianas dos atores sociais. As realidades sociais são, ao longo do tempo, objetivadas e interiorizadas pelos atores sociais, os quais interiorizam imagens, regras e objetos das gerações precedentes e as transformam, criando novas formas sociais. Há uma luta entre os grupos sociais na definição de quais imagens e símbolos serão interiorizados pela sociedade, uma vez que tais grupos buscam tornar sua visão de mundo Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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hegemônica. O grupo vencedor manipula símbolos, que por sua vez engendram relações assimétricas entre os indivíduos. Existem relações assimétricas causadas, dentre outras, pelo capital cultural, social, raciológico e econômico. As relações assimétricas são a causa dos conflitos sociais que se observam na esfera pública entre grupos hegemônicos e contrahegemônicos. Através de símbolos, os grupos em disputas criam significados que somente são apreendidos pela exploração cuidadosa entre as conexões macro e micro das instâncias dos processos sociais (CASTAÑON, 2009). Desta forma, os pensadores do construtivismo privilegiam o papel desempenhado pelas coletividades nos processos sociais, pois elas criam significados que são compartilhados entre os atores sociais que delas participam, construindo uma intersubjetividade. A produção de significados intersubjetivos possibilita que os atores sociais compreendam a realidade a partir de um ponto de vista particular. A abordagem teórica do interacionismo simbólico – uma das bases do construtivismo sociológico – trata dos processos de construção intersubjetiva dos significados. Essa perspectiva analítica revela que os símbolos, objetos de construção social da realidade, são apropriados pelos agentes em suas representações e comunicações e evoluem de práticas corporais a gestos vocais na medida em que os agentes sociais compartilham os símbolos de forma que façam sentido uns para os outros, dessa forma, pode-se falar na existência de uma sociedade. Para essa corrente de pensamento, são as ações individuais que definem e interpretam a realidade social, uma vez que o significado das coisas é resultado da interação social. Portanto, as ações dos indivíduos são quem constroem
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a sociedade. Logo, os significados ficam submetidos a um processo de interpretação, apropriação e ressignificação nestas interações. As “midiaculturas”, ao chamarem a atenção para os processos de apropriação, ressignificação e interpretação que emergem através dos conflitos ocorridos nos níveis macro e micro das instâncias sociais, se interessam em analisar a construção de sentido criado por indivíduos envolvidos de uma forma ou de outra nas teias de relações sociais mais complexas. As relações macro e microssociais dialogam para os pensadores da “midiacultura”, ao invés de trabalharem isoladamente. Nessa linha de raciocínio, um fenômeno global que se discute na esfera pública - como por exemplo, a AP das ações afirmativas, - atinge diretamente a vida particular dos indivíduos. Tendo isso em mente, a abordagem das “midiaculturas” é interessante para pensar o processo de apropriação, interpretação e ressignificação dos argumentos de identidade nacional brasileira, igualdade social e modernização problematizados na Audiência Pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal para debater as ações afirmativas para ingresso no ensino superior brasileiro ofertado pelas universidades públicas federais. A metodologia construtivista visa reconstruir as ações e discursos exteriorizados pelos atores em tela, uma vez que se parte do pressuposto de que a realidade social é construída historicamente e que os agentes sociais (no caso em tela especialistas e ministros) recorrem a pré-construções passadas (interiorizadas) a fim de interpretar e ressignificar os argumentos acima mencionados na luta pelas AA no Brasil.
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Apropriação e Ressignificação: identidade nacional mestiça / igualdade / modernização
Na AP promovida pelo STF o viés da identidade nacional brasileira foi defendido pelo ex-senador Demóstenes Torres (2003-2012), filiado ao partido Democratas (DEM). Formado em Direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG), Demóstenes Torres incentivou a criação do Movimento Pardo Mestiço Brasileiro (MPMB), em 2001 no Estado do Amazonas. Apropriando a ideia hegemônica de identidade nacional mestiça problematizada, dentre outros, por Gilberto Freyre na década de 1930, ele discute o preconceito contra o preto através do discurso da miscigenação. As negras foram estupradas no Brasil. A miscigenação se deu pelo estupro. Foi algo absolutamente forçado. Gilberto Freire, que hoje é completamente renegado, mostra que isso se deu de uma forma muito mais consensual e que, felizmente, isso levou o Brasil a ter hoje essa magnífica configuração racial (Notas Taquigráficas – Demóstenes Torres). Ao exteriorizar os estudos de Gilberto Freyre, Demóstenes Torres traz à cena também o repertório de Darcy Ribeiro, quando aponta que “temos uma história tão bonita de miscigenação. Darcy Ribeiro que hoje também é excomungado pelo movimento negro” (Notas Taquigráficas – Demóstenes Torres). O discurso de Demóstenes foi complementado pela
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fala da militante Helderli Fideliz Castro de Sá Leão Alves (MPMB), que afirmou que: O Sistema de Cotas para Negros na Universidade de Brasília, inversamente ao que defendia Darcy Ribeiro, idealizador, fundador e primeiro reitor da UnB, tem por base uma elaborada ideologia de supremacismo racial que visa à eliminação política e ideológica da identidade mestiça brasileira e à absorção dos mulatos, dos caboclos, dos cafuzos e de outros pardos pela identidade negra, a fim de produzir uma população composta exclusivamente por negros, brancos e indígenas (Notas Taquigráficas – Helderli Castro). O discurso de Helderli, por sua vez, é uma apropriação e ressignificação da retórica difundida pelo diretor da Rede Globo de Televisão, Ali Kamel, veiculada, no livro “Não somos racistas”, que afirma que o movimento negro brasileiro visa promover uma “Nação Bicolor”. Esse viés, por sua vez, é uma ressignificação do discurso de divisão racial veiculado em 2006 e 2008 pelos manifestos contrários às cotas raciais, com os títulos: “Carta Pública ao Congresso Nacional – Todos Têm Direitos Iguais na República Democrática” (2006) e “Cento e Treze Cidadãos Antirracistas Contra as Leis de Cotas” (2008). Ambos assinados, dentre outros, por autoridades como a professora Yvonne Maggie, o geneticista Sérgio Danilo Pena e o militante afro-descendente José Carlos Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Miranda, do Movimento Negro Socialista (MNS). Na AP o discurso da identidade nacional mestiça acima esboçado foi criticado pela vice-procuradora da República, Deborah Macedo Duprat, graduada e Mestre em Direito pela Universidade Nacional de Brasília (UNB) e coordenadora, no ano de 2004, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (com competência para atuar em ações referentes a populações indígenas e minorias étnicas). Segundo Deborah Duprat, Na percepção política, na vertente política, eu gostaria de lembrar que o grande episódio desse momento, dessa conjuntura é a Revolução Francesa, e pegar dentro da Revolução Francesa não só o princípio da igualdade que ela proclamou, mas principalmente a instituição do Estado-nação. E o que veio a ser o Estado-nação? O Estadonação é aquele cadinho da homogeneidade, onde se presume que, sobre um único território, há sujeitos que compartilham cultura, que compartilham língua, enfim, há um único povo ali assentado. Esse foi o modelo constructo do Estado-nação. E qual é o direito desse período? O direito vai ser o repositório de todas essas idéias. É um direito que também busca uma homogeneidade sob a perspectiva da igualdade formal, é um direito, em princípio, indiferente às diferenças, porque essa igualdade é de todos perante a lei, e é um direito que trabalha com a lógica kantiana, muito inspirada nas leis da
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ciência natural, em que observa regularidades e, a partir daí, lança leis gerais e universais (Notas Taquigráficas – Déborah Duprat). Nota-se no trecho acima que Deborah Duprat critica o fato de o discurso da identidade nacional mestiça estar atrelado ao conceito de igualdade formal. Para ela, o Estado Nação, ao defender a igualdade formal, desconsidera o fato de que os indivíduos são diferentes e não homogêneos. Esse argumento, por sua vez, foi apropriado pela advogada do partido Democratas (DEM), Roberta Fragoso. Graduada e Mestre em Direito, respectivamente pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e UNB, Fragoso foi assessora do ministro do STF Marco Aurélio Mello e teve como objeto de estudo em seu curso de pós-graduação a questão das cotas raciais nas universidades, sob a orientação do ministro do STF Gilmar Mendes. Para Roberta Fragoso, o discurso da igualdade formal deve fomentar a ideia de nação mestiça. Ideia oposta à de Gilberto Freyre, que era totalmente contra a ideia de igualdade. Tanto que ele criticava o viés de modernização porque este princípio fomentava a igualdade. Freyre era a favor das relações assimétricas e cooperativas entre Casa Grande e Senzala (TRINDADE, 2014). Roberta Fragoso defende o conceito de igualdade formal e não de oportunidade porque, segundo ela, é difícil definir em cada contexto social qual minoria tem direito às políticas de ações afirmativas. A “argumentação de estado social da igualdade formal para a igualdade material, não nos define o que em cada contexto social, em cada contexto cultural, venha a ser considerado minoria” (Notas Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Taquigráficas – Roberta Fragoso). A fala da causídica foi interpretada pelo advogado Fábio Konder Comparato, pois, segundo ele, se Roberta Fragoso não questionou as cotas previstas na Constituição Federal de 1980 para deficientes físicos, não deveria fazê-lo para os negros, uma vez que os princípios jurídicos que regem as cotas direcionadas a tais minorias são os mesmos que orientam a constitucionalidade de AA para negros: O artigo 37, inciso VIII:”VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;” Exatamente como na política de vagas para alunos negros no ensino superior (Notas Taquigráficas – Fabio Konder Comparato). A retórica do jurista Fábio Konder Comparato foi apropriada pelos grupos favoráveis às AA, que enfatizaram o discurso da igualdade material. As “cotas - antes de atentar contra o princípio da igualdade – realizam a igualdade material; por outro lado, elas são a porta de entrada para que estas instituições assumam o caráter plural” (Notas Taquigráficas – Déborah Duprat). O senador Demóstenes Torres apropriou-se da retórica da igualdade material problematizada supra e defendeu que se o problema é a igualdade de oportunidade, os ministros do STF deveriam implementar apenas as cotas sociais. O problema do Brasil: quem é discriminado
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no Brasil é apenas o negro? O negro é que é o alvo de toda discriminação que nós temos, ou será que o nosso problema é em relação ao pobre? Ou será que o nosso problema é em relação àquele que nada possui independentemente da sua cor? Nós temos hoje no Brasil dezenove milhões de brancos pobres, segundo o IBGE, qual tratamento nós vamos dar para esses brancos pobres no Brasil? (Notas Taquigráficas – Demóstenes Torres). O discurso de Demóstenes Torres, que vincula os conceitos de identidade nacional mestiça, igualdade formal e material, foi contemplado na retórica dos ministros. Tais conceitos foram abordados da seguinte maneira no documento do Inteiro Teor do Acórdão: O constitucionalismo é cumulativo; é crescentemente superavitário em termos de dignidade da pessoa humana. A liberdade ganhou o tônus da igualdade, o adjutório. Até não é nem adjutório, porque há quem afirme - eu também afirmo isso - que, como dizia Santo Agostinho: sem o mínimo de bem-estar material não se pode sequer servir a Deus. Muitas vezes, a igualdade no plano social é condição de desfrute das liberdades asseguradas pela Constituição e chamadas de fundamentais. Mas não basta a igualdade; Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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é preciso a fraternidade, a solidariedade. Esse tipo de constitucionalismo é chamado pelos italianos de constitucionalismo altruísta. É o que diz a Constituição aqui com todas as letras: as cotas raciais, como as políticas afirmativas em geral, se inscrevem nesse âmbito do constitucionalismo mais avançado, mais humanizado, que podemos chamar de fraternal, de solidário, de altruísta. Daí a diferença entre inclusão social e inclusão comunitária, que a Constituição faz. Se nós formos para o artigo, por exemplo, 203 da Constituição, inciso IV, encontraremos: “Art. 203. IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;”. É uma vida em comum no âmbito das chamadas relações de base, volto a dizer, definidoras do perfil do caráter coletivo. Se saltarmos, a Constituição é rica de normas que promovem, mais do que a inclusão social, a inclusão comunitária. Comunidade vem de comum unidade, vem de comunhão de vida, de sentimento, de pertencimento às instituições, todas reunidas, sintetizadas no conceito de nação (Inteiro Teor do Acórdão – Ministro Ayres Britto). Na Constituição Federal de 1988 não há uma definição
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clara do que o legislador entende por inclusão social e comunitária. Logo, fica a cargo do mesmo uma interpretação subjetiva. Nesse sentido, depreende-se do trecho acima que a Constituição valoriza mais a inclusão comunitária do que a social, ou seja, preza a integração do deficiente na vida comunitária, por exemplo, da universidade. Ou, em termos mais gerais, através da igualdade material defende a integração do negro e do indígena ao sentimento de pertencimento à comunidade imaginária de nação mestiça brasileira. A ideia de integração foi interpretada pelo advogado Carlos Frederico de Souza Mares-representante da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) da seguinte maneira: A proposta era integrar. Só que essas políticas de integração eram políticas também de imposição. Duras políticas de imposição que se impunham à integração, quer dizer, a chamada para dentro do Ocidente, também um castigo, uma punição de não se manter fora do Ocidente. Precisou duzentos anos para os nossos Estados nacionais reconhecerem que essas políticas de integração, essas políticas que chamavam para dentro do Ocidente tivessem que perder o caráter punitivo da perda da nacionalidade, da etnia, da raça, da língua, da cultura (Notas Taquigráficas Carlos Mares). De acordo com Carlos Mares, a política de integração do negro e do indígena à nação brasileira se deu pela imposição, Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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isto é, pela necessidade de que esses grupos subalternos interiorizassem a visão de mundo hegemônica da cultura ocidental. Todavia, ele deixa entender que atualmente nos Estados Nacionais promove-se a integração sem a necessidade de forçar, por exemplo, o índio e o negro à perda de sua língua, raça etc. Dentre os ministros que apropriaram o discurso da integração ao Brasil-Nação estão os abaixo citados: Esse era um desabafo elogioso que queria fazer à Casa que Deus me permitiu pertencer há um ano e poucos meses. Agora, essa causa em si, a causa da integração étnico racial, da judicidade dessa integração étnico racial no acesso acadêmico da comunidade afrodescendente, realmente traz inúmeros desafios (Inteiro Teor do Acórdão – Ministro Luiz Fux). Nota-se nos trechos acima que na questão da integração nacional está imbricada a noção de igualdade material, tanto que os ministros deixam explícito que as cotas visam à integração das minorias aos espaços institucionais, como por exemplo, as universidades. Para o Ministro Ayres Britto o conceito amplo de nação deve ser visto pelo ângulo da Constituição Federal de 1988, como se vê nas mensagens a seguir: O fraternal promove uma integração, possibilita a fraternidade, que todas as
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pessoas transitem em igualdade de condições, ao menos, aproximativamente, pelos espaços institucionais de que a sociedade se compõe (Inteiro Teor do Acórdão – Ministro Ayres Brito)
A Constituição é uma obra - eu vou incorrer num cacófato, mas é inevitável - da nação. O que é a nação produtora da Constituição? A nação é uma realidade permanente que ata a ancestralidade, a coetaneidade, ou contemporaneidade, e a posteridade. A nação é como um rio. O rio é um só rio, da nascente à foz. A nação é uma só nação, da primeira geração à última geração (Inteiro Teor do Acórdão – Ministro Ayres Britto). Citando o estudioso Mangabeira Unger, o ministro Gilmar Mendes acrescenta que o: Que mais quer a Nação agora é construir um modelo de desenvolvimento baseado em ampliação de oportunidades econômicas e educativas e em participação popular. Não será possível construir este modelo dentro do formulário institucional que, há muitas décadas, os nossos quadros dirigentes insistiram em portar e em copiar. (Mangabeira, palestra IDP apud Ministro Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Gilmar Mendes – Inteiro Teor do Acórdão). De acordo com os trechos acima mencionados, observase que o conceito de nação visa à ampliação do modelo de desenvolvimento econômico e à integração das minorias através do incentivo ao argumento da igualdade material. Nesse sentido, os negros seriam integrados à nação mestiça através da valorização das políticas de igualdade material (cotas nas universidades).
Apontamentos Finais
Analisando-se a fala dos ministros da Suprema Corte Brasileira a partir de um arcabouço teórico-metodológico das “midiaculturas”, observa-se que os argumentos de tais agentes sociais em torno da igualdade, nacionalidade, questão racial e modernização econômica se reforçam mutuamente, ao mesmo tempo em que se contradizem. Alguns estudiosos na AP informaram que o conceito de nação mestiça brasileira deve valorizar, sobretudo, a igualdade material, porque isso reforça o desenvolvimento econômico (Demóstenes Torres). Outros, porém, apesar de exaltarem o discurso da igualdade material deixam implícito que a integração, dentre outros, dos negros, apenas pelo ângulo da economia, não resolve o problema do preconceito racial (Déborah Duprat, Fábio Comparato). Já a advogada do partido Democratas defendeu que a nação mestiça deveria valorizar o desenvolvimento/
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modernização atrelado à igualdade formal. Argumentos que, devido à sua conexão, confirmam a hipótese supra – qual seja, a de que os argumentos de nacionalidade, raça e igualdade material reforçaram a ideia de progresso econômico. Além disso, nos permite problematizar o problema de pesquisa deste trabalho, uma vez que os discursos acima analisados parecem ser uma metamorfose da retórica de Joaquim Nabuco, José Bonifácio e Gilberto Freyre em torno da modernização da nação brasileira. Para José Bonifácio e Joaquim Nabuco a identidade nacional brasileira era heterogênea e não mestiça e que era dever do Estado civilizar os povos bárbaros (negros/índios) a fim de promover a modernização do país. Gilberto Freyre, por outro lado, era contra a modernização porque, na sua concepção, o progresso fomentava a igualdade entre brancos e negros e ele era a favor das relações assimétricas e cooperativas vigentes entre casa Grande e Senzala. Na AP houve uma ressignificação desses discursos pois, como mencionado anteriormente, havia tanto grupos contrários quanto favoráveis que defenderam a modernização através do fomento à igualdade material. A diferença entre eles é que os grupos pró-cotas defendem a modernização e a igualdade material vinculados à desconstrução do ideário de nação mestiça. Em contrapartida, os grupos contrários defenderam a modernização e a igualdade de oportunidade exaltando o próprio conceito de nação mestiça. Havia também discurso que exaltava a modernização e a nação mestiça, mas sob o prisma da igualdade formal (Roberta Fragoso). Na literatura acadêmica alguns estudiosos da AA defendem a ideia mencionada por Carlos Marés de que o Estado-Nação deve incentivar a igualdade material ao mesmo tempo que Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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tem como dever promover políticas públicas que valorizem a diversidade ao invés do ideário único de identidade mestiça. Vale investir na análise do fato de que os ministros do STF votaram por unanimidade as políticas de ações afirmativas, sobretudo, com base na retórica da diversidade/diferença como se vê nos dados da tabela a seguir: TABELA 1 – FREQUÊNCIA DE PALAVRAS NO INTEIRO TEOR DO ACÓRDÃO
FONTE: A autora (NVIVO, 2015)
Ocorre, porém, que o discurso da diversidade/diferença na fala dos ministros parece estar desconectado da problematização do conceito de nação-mestiça, ou seja, valoriza-se a diversidade, mas ao mesmo tempo se defende que o negro deve se integrar à nação mestiça. O que nos leva a acreditar que os ministros do STF, apesar de citarem bastante a retórica da diversidade, valorizaram, sobremaneira, o discurso da igualdade material entrelaçado ao conceito de nação-mestiça e modernização, tal como o fez Demóstenes Torres.
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Referências
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CASTAÑON, Gustavo Arja. Construtivismo social: a ciência sem sujeito e sem mundo. 2009.217f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. São Paulo: EDUSC, 2001. MACÉ, É. Les imaginaires médiatiques: une sociologie postcritique des médias. Paris: Éditions Amsterdam, 2006 SOUZA, N. R.. Aculturação e Identidade: o caso do seriado “sexo e as negas”. In: VI Congresso Compolítica, 2015, Rio de Janeiro - RJ. Anais do VI Congresso da Compolítica (2015). Rio de Janeiro - RJ: Compolítica, 2015. v. 1. p. 1-17. Disponívem em< http://www.compolitica.org/home/wpcontent/uploads/2015/04/GT5-Souza.pdf>. Acesso em 25 de outubro. 2016. TRINDADE, A. D. . Questão nacional e Questão racial no pensamento social brasileiro. In: Hilton Costa; Paulo Vinícius Baptista da Silva. (Org.). Olhando para nós mesmos: alfabetização da diáspora e educação das relações étnicoraciais. 1ed.Curitiba: NEAB / UFPR, 2014, v. 2, p. 15-45. Disponível em< http://www.neab.ufpr.br/wp-content/ uploads/2014/08/Texto-Alexandro-Dantas_Pensamentosocial.pdf>. Acesso em: 07 abril. 2016.
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NEAB SOBRE AS(OS) AUTORAS(ES)
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SOBRE AS(OS) AUTORAS(RES)
Andressa Ignácio da Silva
Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná sob orientação da Profª Drª Meryl Adelman, Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela mesma instituição. Bolsista CAPES entre abril de 2014 e março de 2016. Atualmente professora de Sociologia na Rede Estadual de Educação do Paraná. E-mail: andressaignacio@gmail.com.
Edicelia Maria dos Santos de Souza
Mestre em Ciências da Educação pela Universidad San Lorenzo (UNISAL); Graduada em Letras - Português; Especialista em Língua Portuguesa, Cultura e Literatura; Especialista em Educação Especial; Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais e Especialista em Educação Infantil. E-mail: edi.santos.souza@outlook.com.
Fabiane Helene Valmore
Mestranda em Ciência Política (Bolsista CAPES) sob a orientação do professor Nelson Rosário de Souza e Graduada em Ciências Sociais (UFPR, 2016) sob a orientação do professor
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Renato Perissinotto. Aos meus professores orientadores, à CAPES, aos editores entrevistados, ao Curso Intensivo de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós, promovido pela UFPR, ao Mallam Djau pela tradução do resumo e a todos que colaboraram com este trabalho, registro aqui os meus agradecimentos. E-mail: fh.valmore@bol.com.br.
Jules Ventura Silva
Aluno cotista-racial, Doutorando e Bolsista CAPES do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Ciências Sociais na UFPR tendo sido também cotista-racial do referido curso. E-mail: julesventura@yahoo.com.br.
Luís Thiago Freire Dantas
Doutorando em Filosofia – UFPR. Mestre em Filosofia – UFPR. Especialista em Educação das Relações ÉtnicoRaciais NEAB-UFPR. Agência financiadora: CAPES. Agradeço ao curso Pré-pós organizado pelo NEAB-UFPR que propiciou aos discentes e às discentes a entrada nos cursos de Pós-graduação de forma segura e com criticidade. E-mail: fdthiago@gmail.com.
Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Mariana Panta
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília), com período sanduíche no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Bolsista CAPES. Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pesquisadora vinculada ao Laboratório de Cultura e Estudos AfroBrasileiros (LEAFRO/UEL). E-mail: marianapanta@bol. com.br.
Viritiana Aparecida de Almeida
Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista CAPES, pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e do grupo de pesquisa “Midiacultura”: poder e sociedade. E-mail: viritianaalmeida@gmail.com.
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Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
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Programa de Formação Pré-Acadêmica: Afirmação na Pós do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal