Susan napier uma garota especial julia 371

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Uma Garota Especial - Susan Napier Julia 371

Baixinha e bem-humorada, Julia entrou na vida de Hugh como uma Tempestade Julie amava a vida que Hugh parecia ignorar Para 1 advogado sério e respeitado, aquela garota já havia ultrapassado os limites do suportável. Na estrada, provocara um acidente, culpando-o por isso. Não satisfeita, obrigara-o a dar-lhe carona, tomando-lhe o tempo com gracejos irreverentes . E agora...simplesmente invadia o seu quarto, pulando pela janela! “Richard!”, murmurou ela, aproximando-se da cama. Então era isso, aquela baixinha sardenta e leviana era a nova namorada de seu irmão! Hugh virou-se sobre o colchão e acendeu a luz... Copyright: Susan Napier Título original: “Love in the Valley” Publicado originalmente em 1985 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: Lúcia de Barros Copyright para a língua portuguesa: 1986 Editora Nova Cultural Ltda. — São Paulo — Caixa Postal 2372 Esta obra foi composta na Linoart Ltda. e impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A. 1


CAPÍTULO I A cozinha era moderna e bem aparelhada, os azulejos e os metais cromados brilhavam de tão limpos e polidos que estavam. Julie Fry se afastou da mesa, olhando o bolo que tinha feito.Grande, redondo, cheio de arabescos, apresentava folhas e flores em glacê de cores variadas, que ressaltavam seu belo aspecto. Ela suspirou. Seu professor da escola Cordon Bleu, em Paris, teria coberto os olhos, horrorizado com aquele confeito rebuscado. Ainda bem que dessa vez não precisava da opinião dele. Estava formada, com louvor, naquela que era uma das melhores escolas de arte culinária da capital francesa. Nesse instante Phillip Randolph, seu patrão e dono da casa, veio até a cozinha e olhou para o bolo sem entender muito bem o que era aquilo. — Meu Deus, o que é isso? — perguntou. — Não me pediu que criasse alguma coisa especial para o aniversário de Márcia? Bem, aí está. É bem de acordo com ela. Phillip deu uma risada gostosa, ambos sabiam por quê. Márcia, a namorada de Phillip, era vulgar, geniosa e exagerava muito em tudo o que fazia. A sua maneira de ser perturbava o moço alto e loiro, de maneiras refinadas.Pobre Phillip! Algum dia encontraria a garota dos seus sonhos. — Como sempre, você me deixa surpreso, Julie. Não podia ter pensado numa maneira melhor de expressar a personalidade de Márcia. Pelo menos o bolo é gostoso? Julie percebeu a malícia por trás dessas palavras. — Sem dúvida, uma bomba recheada com creme de chocolate e nozes. — Uma bomba? O que vai acontecer? Explodir na primeira mordida? — Quase isso. Coloquei rum suficiente para que ela entre em órbita. Phillip, desconcertado com a molecagem da amiga, perguntou: — Está com ciúme? — Demais! — disse Julie em tom zombeteiro, e começou a rir. Phillip tinha trinta e quatro anos, era um comerciante bonito e muito rico, prestigiado nas altas rodas da Nova Zelândia. As mulheres tentavam fisgá-lo, mas Julie não era dessas moças interesseiras e, talvez por isso, não se incluísse nesse grupo. — Nunca sei se está brincando ou falando sério —Phillip se queixou, enquanto ela guardava o bolo na geladeira. — Não gosta de mim? Nem um pouquinho? — Claro que gosto. Você é um amigo leal. — Só isso? Você não me acha atraente para ser seu namorado? Afinal, como é o seu príncipe encantado? — Moreno, inteligente, com bastante senso de humor e, não muito alto. — Ah!… Você está atrás de um latino, escuro e histérico! —Não seja preconceituoso. Isso que está dizendo é puro racismo ou será que “você” está com ciúme? — Mais ou menos. É que não me agrada a idéia de viajar e deixá-la só. Conseguiu outro emprego? — Nem comecei a procurar. Você vai mesmo embora no mês que vem, não é? Há muito tempo Julie trabalhava para Phillip, encarregando- se da cozinha da casa dele. Porém, o amigo viajava muito e, quando se ausentava por mais de um mês, pagava-lhe um salário extra e permitia que ela procurasse outro trabalho. Esse relacionamento fraterno estava acima das relações entre patrão e empregada. Normalmente, a oferta de empregos era maior que a procura, e Julie não se dava mal. —Sei de uma casa que talvez lhe interesse. — É mesmo? Onde? — Os Marlow vão passar o mês de agosto em Craemar e precisam de uma pessoa que tenha as suas qualidades. Julie suspirou feliz. Já tinha trabalhado com a família antes e haviam se tornado amigos. — Como ficou sabendo? — Julie indagou interessada. — Encontrei Constance Marlow no teatro, na semana passada, e mencionei que ia viajar por alguns meses. Ela logo perguntou se você estaria disponível. 2


— Que pena não me avisar antes! — Julie pedia a Deus que os Marlow ainda não tivessem contratado outra pessoa. — Esqueci. De qualquer modo, é bom ligar para Constance. — Phillip se afastou e, antes de sair, recomendou: — Julie, hoje não venho almoçar, mas seremos seis amanhã para jantar. — Está bem. Vou preparar um prato bem gostoso. — Depois que Phillip saiu, Julie ficou pensando sobre os Marlow. Geralmente eles passavam as férias de Natal na casa de campo, na península de Coromandel e nunca iam para lá em agosto. Por que essa mudança de planos’? Duas vezes, sempre por ocasião dos festejos natalinos, ela havia se encarregado da cozinha dos Marlow. Tinha trabalhado muito, com tanta gente para atender, mas a família era tão simpática e atenciosa que valera a pena. Sentiu saudades. Constance Marlow era uma das melhores atrizes da Nova Zelândia, e seu marido um diretor teatral de sucesso. Os filhos, seguindo os passos dos pais, também estavam engajados em diferentes projetos artísticos. Seria ótimo voltar a trabalhar para eles. Julie pegou o telefone e marcou uma entrevista com Constance Marlow. No dia seguinte, após preparar o jantar, ela pegou seu fusca e foi até Remuera, onde os Marlow viviam. Tocou a campainha, mas ninguém atendeu. Deu a volta na casa e encontrou Constance à beira da piscina, lendo um texto e tomando sol. Não a via há mais de um ano, embora tivesse ido a todas as suas estréias. Reparou que a atriz continuava formosa e cheia de vida, os olhos verdes estavam mais brilhantes do que nunca. — Julie, que bom vê-la outra vez! Sente e aproveite esse solzinho fraco de outono. Pela formação das nuvens, deve chover logo. — Estava estudando urna nova peça, sra. Marlow? — Não, é uma série para a televisão. Mas, por favor, me chame de Connie, senão vou começar a achar que estou ‘envelhecendo”. — Nem diga isso. Está cada vez mais jovem e bonita. — Obrigada, é o que eu precisava ouvir. Completei quarenta e nove anos na semana passada e sabe o que o diabo de meu filho Richard me ofereceu? Uma plástica de rosto! — ela riu,divertida com a brincadeira. — O que me preocupa não é a beleza física, mas a juventude interior, a do espírito. Julie acompanhou-a até o interior da casa. Era incrível pensar que aquela mulher fosse mãe de seis filhos, incluindo dois pares de gêmeos. Ela era extrovertida e gostava de tomar parte nas decisões da família. — Vai conosco para Craemar? Precisamos de você, Julie. Garanto que desta vez não terá muito trabalho, porque não receberemos convidados. Nem Hugh estará presente. Julie nunca tinha conhecido Hugh, o filho mais velho, advogado bastante famoso no país. —Mas vocês não vão para Craemar no Natal, como no ano passado? — Este ano não. Em dezembro cada um de nós precisa estar num lugar diferente. Michael será meu diretor numa peça no teatro Downstage, em Wellington. Richard participará de um filme cuja ação vai ser rodada na Ilha de Páscoa. Steve estará no Japão numa tournée e Rosalind estréia numa peça em Londres. Olívia está na Escola de Artes em tempo integral, e Charles, meu caçulinha, quer ficar com um amigo em Taupo. Julie lembrou de Charles. Com apenas catorze anos ele era o único membro da família que não tinha cabelo ruivo. Era quieto, tímido, e Connie o amava demais, embora algumas vezes não o entendesse muito bem. —Não posso imaginar Craemar sem uma grande árvore de Natal com seus presentes e toda a família reunida — Julie comentou. — Nossa casa fica bem diferente no inverno. Faz muito frio e por isso conservamos a lareira acesa quase o dia todo. Vai gostar. Espero que não fique cansada por nos agüentar durante um mês. —Pelo contrário, terei imenso prazer e gosto do inverno que vem chegando. Mas… se é só a família, a sra. Brabbage,a governanta, não dá conta do serviço sozinha? — Ela está com um problema. O marido foi operado do joelho. Já está em casa, mas ainda não pode se movimentar e precisa dela praticamente o tempo todo. Portanto, não podemos contar com sua ajuda. Duas vezes por semana ela cuidará da limpeza mais pesada, mas isso é tudo. Por isso pensei em contratar você. 3


— Obrigada por lembrar de mim — retribuiu Julie. — Eu é que fico grata por poder aceitar. Quando Phillíp me contou que ia viajar, achei que não se importaria se eu a contratasse. Eu já ia telefonar-lhe. Por algum tempo elas ficaram discutindo acertos e obrigações. Ficou combinado que Julie iria para Craemar com alguns dias de antecedência, a fim de preparar a casa para a chegada da família. Como a propriedade ficava afastada da vila, tudo deveria ser providenciado para que nada faltasse. Julie se encarregaria das compras e da organização dos cardápios. —Agora que já nos entendemos, vamos tomar um café — Connie propôs. Foram para outra sala, espaçosa e decorada com bom gosto, e Julie se pôs à vontade. Gostava dali porque o ambiente demonstrava aconchego, apesar de amplo. Connie foí para a cozinha e Julie sentou no sofá. — Julie Fry! — Uma voz possante se fez ouvir no melhor estilo dramático. — Ó forças do céu! Ó luz tênue que se revela, onde te escondestes, por tanto tempo? Surpresa, ela se virou para ver o jovem alto e sardento de cabelo vermelho como o fogo. Ele se aproximou e lhe deu um beijo estalado no rosto, para depois sentar a seu lado e passar o braço por seus ombros. —Você está encantadora! Vai ficar algum tempo conosco’? — Claro que sim. Não resisti à oportunidade de conviver com meu artista de televisão favorito — ela respondeu sem conseguir o mesmo tom exagerado que ele usou. Julie e Richard tinham se conhecido há alguns anos, em Londres, quando Julie trabalhava como chefe de cardápio na embaixada da Nova Zelândia e Richard fazia os estudos finais para se tornar o excelente ator que era. Ficaram muito amigos e gozavam de liberdade suficiente para brincarem um com o outro. — Como é, Richard. conseguiu um papel em que possa dizer alguma coisa. Ou vai continuar fazendo parte da multidão anônima? — lulie ironizou. — Sua bruxa! Sempre me perturbando não é? Sabe muito bem que tenho o papel principal! — Sei sim, e com certeza será o melhor Romeu de todos os tempos. —Tenho que ser. Com papai me dirigindo, ou represento direito minha parte ou... Os dois conheciam bem a fama de Michael Marlow. Ele era implacável com os artistas e os fazia ensaiar até a exaustão, só parando quando achava que a cena estava perfeita. —Li no jornal que Connie ganhou o papel da ama. Para ficar tudo em família, por que Rosalind não faz Julieta? —Não acha que seria meio…incestuoso? Além disso, papai encontrou uma artista perfeita para o papel, muito bonita e meiga, tem só dezesseis anos e, naturalmente, está tremendamente apaixonada por mim. — Pensei que todas as garotas estivessem — Julie alfinetou- lhe com mais uma indireta. Connie entrou, trazendo a bandeja com o café e, enquanto tomava a bebida quente, Julie se perguntou porque nunca se apaixonara por Richard. Ele era um homem atraente e haviam saído juntos várias vezes. — Por que não vem comigo até o teatro, Julie? — Richard propôs. — Vamos ter um ensaio mas depois poderemos jantar juntos. — Desculpe, mas tenho um compromisso para hoje. Um jantar para seis. —Não vai ser fácil agüentar este dom-juan alucinado por garotas, Julie. Em um mês ele é capaz de conquistar seu coração definitivamente. — Connie brincou procurando esconder o orgulho que sentia pelo filho. — Faça alguma coisa, Richard, por que não leva a louça para a cozinha? O rapaz levantou e Julie o ajudou. Depois de lavarem as xícaras e as guardarem, Julie avisou que ia embora. Num gesto dramático, Richard a abraçou, falando em tom solene: — “Não te rias de mim! Meu anjo lindo. Por ti as noites eu velei chorando Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo. Não tentes lutar contra o que existe entre nós.., — O que existe entre nós é apenas um pano de prato molhado, seu bobo. Preciso ir, tenho que servir um jantar. Richard apertou-a mais contra o peito e Julie, baixinha, não teve como escapar. — “Tu és, talvez, um sonho que passou, 4


Que se fundiu na dor, suavemente. Talvez sejas a alma, a alma doente Alguém que quis amar e nunca amou!” Julie não se impressionou. Já tinha ouvido esses versos de Florbela Espanca, numa das peças em que Richard tomara parte. No entanto, ele pôs o sentimento nos versos e Julie gostou de ouvir, mesmo soando artificial. Richard era um poeta e usava o seu dom com facilidade. — Richard, tenho que ir trabalhar — Julie insistiu, pensando no compromisso. — Está bem. Eu a deixo ir porque sei que vou tê-la só para mim em agosto. — Você e o resto da família, não se esqueça. — Por falar em família, tem visto meu irmão Steve? Ela negou com a cabeça. — Nem eu. Não o vejo desde a tournée pela Austrália. Não o achei muito bem. Julie procurou lembrar-se de quando vira o gêmeo de Richard pela última vez. Foi num show da televisão. O grupo Hard Times estava excelente, mas era Steve, com sua voz rouca, o cabelo vermelho brilhando, que dava ritmo ao conjunto. — O programa que vi na televisão foi um sucesso, o que há com ele? — Não sei. Steve não me disse nada, mas não estava entusiasmado com uma nova tournée. Viajam há muitos anos e parece que há desavenças no grupo. Acredito que seja cansaço. — Um mês em Coromandel será um excelente remédio — ponderou Julie. Richard sorriu matreiro e Julie o olhou curiosa, sem saber o porquê daquele sarcasmo. —Tranqüilidade e paz — ele explicou. — Isto é exatamente o que um dos membros da família não vai encontrar em Craemar, como desejaria. —Seu pai? — Não, papai gosta de movimento. É Hugh. Ele vai para Craemar conosco. —Mas Connie afirmou que ele não viria. Diz que Hugh não gosta de reuniões familiares. —É verdade. Ele foi aos Estados Unidos fazer pesquisas para um novo livro que pretende editar. E retornou alguns dias atrás. Como Craemar é um lugar tranqüilo, decidiu escrevê-lo lá, dedicando-se sem interrupções a esse trabalho. No entanto,pelo que vejo mamãe mudou todos os planos da família e resolveu ir para a casa de campo exatamente na época que Hugh escolheu, isto é, agora em agosto, bem antes do Natal. —Se ele realmente se incomoda com barulho, pode ficar em seu próprio apartamento até que a família volte para cá,não é? Lá ele poderá usufruir de toda a tranquilidade. — Nada disso. Hugh ofereceu o apartamento para um professor americano e também não pode ficar aqui, porque mamãe vai reformar a casa. Haverá um exército de pedreiros e pintores por todos os lados. Tenho que ir a Craemar ver a reação de Hugh. Vai ser uma ocasião memorável e não posso perdêla — Richard comentou, malicioso. — Não vejo o que é tão engraçado. —Você não conhece Hugh! Ele gosta de nós, quando nos vê um de cada vez. Mas quando a família toda está reunida.Mesmo para a comemoração de Natal ele precisa se preparar psicologicamente. —Talvez ele tenha necessidade de descanso e de silêncio. Como advogado precisa falar com muita gente, ser convincente e isso desgasta muito. — Julie não podia acreditar que Hugh pudesse ser introspectivo. Não estava de acordo com sua condição de advogado. - Ele não é criminalista, nem precisa convencer os jurados de que está com a razão. É um advogado comercialista, que só trata de contratos e questões fiscais. Julie ficou interessada. — Não gosta de Hugh? —Gosto até demais. Ele é parte de nossa família e sempre foi muito querido. Como é bem mais velho, sempre o vimos como o mediador de nossas brigas infantis e o respeitamos por seu critério. Acho que o mal começou aí. Deixamos que ele ficasse afastado, sem oportunidade de participar de nossas vidas. Agora espero que a reunjão de agosto o traga para perto de nós. — Enquanto isso você se diverte com a situação, não é? — lulie tentava imaginar a personalidade de Hugh. Ele lhe parecia monótono e aborrecido. Hugh lidava com direito comercial. Que decepção! Ela tinha imaginado que sua fama de advogado vinha do fato dele ser um defensor dos fracos e oprimidos do brilho que seus argumentos 5


sarcásticos e inteligentes pudessem ter no tribunal. Não podia acreditar que um Marlow, de cabelo vermelho, pudesse ser tão desinteressante.. Como podia ser tão famoso? — Tem razão. Não vejo a hora de vê-lo às voltas com mamãe e a família toda. Por mais que ele queira se livrar da confusão, não terá coragem de dizer não à mamãe. — Por que não o avisou dos planos de Connie? Ele poderia ter achado uma solução. — E evitar as cenas divertidas? Estive com Hugh quando ele convidou o professor para ficar em seu apartamento. É por isso sei que vai a Craemar. Mas ele me fez jurar que eu não diria nada a ninguém. Fiz só o que me pediu. Não contei nada,nem para ele, nem para o resto da família. “Pobre Hugh! Maus momentos o aguardavam” pensou Julie ao sair.

CAPÍTULO II

Depois da partida de Phillip, Julie passeou bastante com Richard Marlow. O rapaz era um companheiro encantador, incansável e de muito bom humor. Foram a festas, teatros, reuniões de amigos. Julie poderia pensar que essa constante companhia de Richard era um sinal de que ele estava interessado nela. Mas sabia perfeitamente que essa regra não se aplicava ao caso. Richard era um homem que prezava a liberdade, e nunca se comprometia com envolvimentos afetivos. Ele jamais se tornava sério com mulher alguma. Quando Richard a avisou de que ia para Craemar um fim de semana antes dela, Julie, num impulso de boa vontade, se ofereceu para preparar um cesto com provisões e comidas prontas. Richard aceitou tão depressa que ela ficou imaginando se ele não a havia manipulado para obter esse favor. Assim mesmo preparou a comida. — Não sei como lhe agradecer — falou ele, com seu modo exagerado. — Você foi um doce por me ajudar. — Por que vai para Craemar antes do resto da família? — Julie perguntou curiosa. —Quero estar lá antes que o grande Hugh chegue. Quero ver a cara de meu irmão quando souber que a casa estará cheia. —Você é impossível Richardi! O talentoso ator se afastou e pegou o carro, fazendo os pneus guincharem no asfalto. Julie balançou a cabeça, reprovando a atitude que acabara de presenciar. Logo se pôs a arrumar as malas para também partir. la passar o fim de semana com os pais em Ngatea, que ficava a meio caminho de Craemar. Desde sua viagem à Europa, para fazer o curso de culinária em Paris, Julie morava sozinha. No entanto, sempre que possível, procurava ficar alguns dias com a família, a quem amava demais. Depois dos abraços de boas-vindas, Julie se sentou para conversar com os pais. — Está feliz com sua profissão? — a mãe quis saber. — Muito. Me sinto realizada pois sempre gostei de cozinhar. Enquanto Phillip estiver viajando vou trabalhar para a família Marlow, que conheço há algum tempo, e sei que com eles não vou ter problemas. — Que bom que gosta da sua profissão, minha filha. Há tanta gente que trabalha com o que não gosta. Eu só acho que você leva uma vida muito solitária. Quando penso nos rapazes que conheceu… Nenhum deles lhe interessou? — Não, mamãe, nenhum. Julie se serviu de café e de um pedaço de bolo. Não entendia a preocupação da mãe, que confundia amizade com namoro. Ela não faria do seu casamento um acordo comercial, apenas para ter conforto. E até agora homem algum havia conseguido fazer seu coração bater mais forte. Julie olhou para a mãe, Nam Fry, também baixinha, e tentou imaginá-la quando solteira... Teria casado por amor ou por medo de ficar sozinha? — Esse Richard Marlow... — Nam Fry continuou. — Vocês não... — Não, mamãe. Não há nada entre nós. 6


O pai de Julie, até agora calado, percebendo que a filha se constrangia com o rumo da conversa, veio em seu socorro. — Pare de se preocupar com Julie. Ela é uma moça bonita e inteligente, e saberá escolher o homem que lhe aprouver na hora certa. Ainda é muito jovem e precisa passear e se divertir. Julie estava confusa. Era isso mesmo que queria da vida, naquele momento? Será que custaria tanto a amar? Ela não conseguia ser como suas amigas, que se apaixonavam e desapaixonavam a toda hora. Esperava por alguém que buscasse um grande amor, que lhe desse sentido à vida. Um amor que a deixasse sem fôlego ou fizesse seu coração bater alucinadamente. Claro, já tinha tido namorados, se divertira com eles, trocara carinhos, mas sempre faltara alguma coisa, algo que a completasse. Algo que ela não sabia descrever, mas que sentia falta. Achava que era necessário amar um homem, mas não qualquer homem. O fim de semana foi agradável com muitas conversas e brincadeiras. Julie matou a saudade dos pais e do irmão, um adolescente irrequieto, porém estudioso. No domingo à tarde ela se preparou para partir. Colocou as malas no carro, junto com seu velho liquidificador e o grosso livro de culinária. Por último, seu jogo de facas alemãs pois o que mais detestava em seus afazeres era não encontrar uma faca bem afiada. Agora estava pronta para enfrentar o trabalho. Despediu-se dos pais e deu um beijo no irmão. Este a olhou admirado. Julie parecia uma garota de quinze Sinos. Seu cabelo preso num rabo de cavalo, as sardas no nariz arrebitado, e os olhos azuis que se escondiam por trás de cílios longos e curvados, emprestavam-lhe um ar juvenil. Seu rosto angelical tinha uma graça ímpar, que combinava com sua pequena estatura. Julie dirigiu com cuidado. Seguiu a estrada costeira até Tapu e depois pegou a via 29 que atravessava as montanhas Coromandel para alcançar o outro lado da estreita peninsula. Ao deixar Tapu, a estrada cheia de curvas rasgava um cenário belo e selvagem. A floresta densa e muito verde formava o derradeiro refúgio para pássaros e animais, espantados pela colonização do homem branco. Acostumada a viver em cidades, Julie se encantou com o rico espetáculo da natureza. A estrada estava deserta e isso a deixava despreocupada quando seu carro, pouco potente, diminuía de velocidade a cada subida mais forte. Árvores enormes margeavam o caminho e, embora precïosas pelo porte imponente, cresciam protegidas da exploração humana por estarem em lugares muito pouco acessíveis. “Que paz, quanta tranqriihdade!”, ela suspirou feliz, “Por que os homens não se permitem o prazer de olhar a natureza? Por que se negam a receber esta energia revitalizadora?” Trabalhar a vida inteira sem notar uma vez sequer o vôo de uma mariposa era um absurdo para a sensibilidade de Julie. De repente, a calma de seus pensamentos foi quebrada. Pelo espelho retrovisor, notou que uma Maserati se aproximava em alta velocidade. Aquele carro precisava diminuir a marcha! A estrada era estreita demais e não havia lugar seguro por onde pudesse ultrapassar. Julie exigia o máximo do fusca. Continuava subindo a montanha, serpenteando entre abismos, e ainda faltava um bom pedaço para alcançar o topo. O motorista a seguia muito próximo, provavelmente esperando que ela parasse para deixá-lo passar. Que mal educado! Devia ser um ricaço qualquer, que se julgava dono do mundo só porque tinha um carro luxuoso e caro! Nesse momento um pássaro vôou baixo, quase que indo de encontro ao fusca. Julie se assustou e, bobamente, pisou no freio, puxando o carro para a direita. O fusca parou mas... o carro prateado não. Ela sentiu a batida seca na traseira. O idiota a tinha atingido! Julie rangeu os dentes de raiva. Devia ter parado logo e deixado o apressadinho passar, antes que ele amassasse seu fusca. Se ele estava atrás, deveria ter prestado mais atenção para evitar a trombada. Isso mesmo....Ia reclamar e só esperava que o sujeito tivesse bom-senso, Julie pôs a cabeça para fora e viu que o motorista parava no acostamento estreito. Ela respirou aliviada ao ver que ele possuía cabelos grisalhos. Ótimo! Sendo um homem mais velho, ela se sentia mais segura. Estava pronta para descer quando seu coração gelou. Viu o homem sair do carro e a cabeça prateada subir... subir, subir! Meu Deus, ele era um gigante! Alto, de ombros largos, o motorista foi se aproximando. Para surpresa de Julie, ele não era velho. Não podia ter mais que trinta e poucos anos. 7


Ela ficou parada, a boca aberta, sem ação. O gigante chegou perto, os olhos cinzentos estavam impassíveis. Ela esperou pelas palavras desagradáveis. — Você está bem? Julie apenas arregalou os olhos estupefata. Era incrível. Ele falava com calma! Mas não ia se deixar enganar. Os homens sempre são ciumentos com seus carros, e ela não ia se arriscar. —Estou. E você? —Então vamos ver o prejuízo. Era um convite para que ela descesse. No entanto, Julie hesitava. Olhou para as mãos do estranho. Eram grandes, bem de acordo com ele. Teve medo de deixar a proteção do fusca, mas acabou saindo. As suas botas de saltos baixos mal permitiam que chegasse ao peito dele. Levantou a cabeça. Não ia se deixar intimidar. Com passos decididos, ela deu a volta no carro e foi olhar o que tinha acontecido. Com o dele, nada! Ou melhor, apenas uns arranhões no pára- choque largo. Com razão o homem parecia tão calmo. Para possuir aquele carro precisava ter os bolsos recheados de dinheiro. Em compensação, o fusca tinha um aspecto lamentável, com a traseira torta e o pára-lama solto. O gigante se inclinou para ver os estragos e Julie o observou melhor. Ele vestia um terno de tweed, de corte impecável, e os sapatos de cromo alemão completavam-lhe a aparência refinada. Podia muito bem arcar com as despesas. — Não manteve a distância, senhor.Estava dirigindo colado ao meu carro — Julie afirmou. — O prejuízo não foi grande. Tem seguro, não tem senhorita? — Tenho, mas como a culpa não foi minha, não vou me responsabilizar pelo acidente. Julie ficou esperando pela discussão. No entanto, o homem ficou quieto, pegou um cartão de visita do bolso e nele escreveu algo. Ela fez a mesma coisa. Pegou um cartão na bolsa e escreveu seu nome e o da companhia de seguros, para depois entregá-lo. Com mãos trêmulas ela examinou o que ele tinha escrito. Um número de telefone sob seu nome.G. B. H. Walton’ Ela riu baixinho. Se lesse as iniciais ao contrário, seria “Homem Bonito e Grande”. — Você se diverte com acidentes? — ele perguntou, a voz paciente, como se falasse com uma criança levada. — Não, claro que não. — Julie ficou séria e pensou em algo para dizer. No entanto, o comentário que escapou de seus lábios foi: — Como você é grande! — Eu sei. Ela ficou mais sem jeito ainda e tentou consertar a situação, falando sobre o acidente. — Minha companhia de seguros vai procurá-lo. Julie voltou para o carro, deu a partida, mas o motor não funcionava. E agora? Ela não entendia nada de mecânica. — Não quer me ajudar? — ela pediu, pondo a cabeça para fora. — Não sei lidar com esse tipo de carro. — O estranho continuava tão calmo que Julie ficou ainda mais irritada. — Não é sócia de algum Automóvel Clube? — Não. Alguma outra sugestão? — Posso levá-la até o próximo posto de gasolina. Serve? — Não tenho outro jeito, tenho? O rapaz não respondeu mais foi até o fusca e carregou a bagagem para seu próprio carro, convidando-a depois para entrar. Ela se acomodou no assento de couro macio. Tudo ali era elegante e sofisticado, desde o painel de linhas sóbrias até as maçanetas prateadas e o tapete cinza claro. — Este carro é estrangeiro, uma Maserati. não é? — ela mais afirmou que perguntou. — Isso mesmo. — O que faz? — Ele anda, corre, me leva a lugares distantes. — Quis perguntar qual a velocidade que faz. — Está mesmo interessada? Gosta de carros? — Gosto e quero saber tudo sobre este. — Está bem. É um motor V8 com quatro carburadores. A velocidade máxima é de duzentos e trinta quilômetros por hora. 8


Ela soltou um assobio de admiração. — Já alcançou o máximo de potência? — Sim. Já ultrapassei os duzentos várias vezes. — Qual foi sua sensação? — Nenhuma. Precisava chegar rápido ao meu destino. Julie ficou sem graça e se voltou para ele. Aquele homem representava um desafio. Ele era calmo e comedido, seco demais para ser verdadeiro. Seria possível fazê-lo sorrir, perder aquele ar pomposo e severo? Ela reparou que ele estava bem colocado atrás da direção. Deveria ter um metro e noventa de altura, atraente, e o rosto bronzeado era bem formado, fazendo ressaltar as grossas sobrancelhas. Provavelmente seu cabelo tivesse sido castanho escuro, antes de adquirir o tom prateado. — Não comentou nada sobre o acidente — ela iniciou a conversa. — Nem perguntou porque brequei tão de repente. — Não foi necessário. Vi quando aquele pássaro a assustou. Sabe que os mynahs não são nativos? Foram trazidos para cá, se proliferaram rapidamente e quase estão se tornando uma praga. — O que quer dizer com isso? Que eu teria feito um beneficio se tivesse atropelado a avezinha? Isto seria uma judiação, mesmo que eles tenham se tornado um problema. — Bem, pelo menos teria evitado o acidente. Ela ficou zangada. —Aquele pássaro não foi o culpado, mas sim você, que não manteve distância. Por um momento eles ficaram quietos. Julie percebeu que não estava sendo honesta. Não podia pôr toda a culpa nele. —Desculpe. Sei que reagi precipitadamente ao frear daquele modo. Acho que me assustei. O estranho a olhou surpreso pela confissão. Reparou em sua aparência jovem, quase infantil. — Seus pais sabem onde você está’? — Claro que sim. E não pense que estou dirigindo sem habilitação. Tenho mais de dezoito anos. — Eu não tinha dúvidas a esse respeito. Ele tirou os olhos da estrada para fixá-los nos seios insinuantes de Julie. Depois reparou na cintura fina, nas coxas apertadas na calça de brim. —Gosta do que vê? — ela o provocou. —Vejo uma garota tentando agir como adulta. Realmente é urna visão deliciosa, Inesperadamente ela enrubesceu e mudou de assunto, perguntando: —O que você faz? — Trabalho — o homem respondeu mais uma vez sem alterar o tom de voz. — Eu também, mas agora estou deixando um emprego e indo para outro. —No que trabalha? —Serviço doméstico —ela respondeu de propósito, se subestimando. — Gosto do que faço, mas meus patrões. às vezes, se tornam inconvenientes. — Julie tentava quebrar a serenidade daquele estranho procurando deliberadarnente chocá-lo. — Não me surpreendo com isso, se trabalha com esse tipo de roupa justa que está usando. — É assim que eu gosto. Roupa justa, sem nada por baixo. — Então não pode se queixar da reação dos patrões, certo? — Não me incomodo, quando eles são simpáticos. Julie mal continha o riso. Era engraçadíssimo bancar o que não era e tentar conseguir arrancar um olhar espantado daqueles olhos frios. — O que seus pais acham disso? — Nunca conto o que faço. Eles ficariam bravos,porque são muito antiquados. Isso era verdade. Ela também era antiquada para os padrões da época, mas ele não precisava saber disso. Tinha sido divertido provocá-lo, embora ele não tivesse mordido a isca. Mas agora já estava na hora de parar’. — Posso ligar o rádio? — perguntou.— Gosto de música. Você também? Ele pôs uma fita no gravador e logo os acordes suaves de Bolero, de Rave!, encheram o carro. —É um grande estudo em orquestração e um ensaio do conceito do “crescendo”. Ouça! 9


“E cale a boca”, Julie acrescentou para si mesma. Ele parecia acostumado a mandar. O carro era dele, não era? Ela recostou no assento e fechou os olhos. Não entendia nada de música erudita, mas aquela lhe tinha contagiado. Quinze minutos depois, o carro parou suavemente num posto de gasolina. O estranho desceu e começou a explicar ao mecânico o que tinha acontecido na estrada, tomando todas as providências como se ela houvesse solicitado. Julie ficou furiosa. O carro era dela e o problema também. Além disso, tinha inteligência bastante para decidir o assunto. — Pode deixar que eu resolvo — disse zangada. — Porque não tira minhas malas do carro? Para sua surpresa, ele fez o que ela pedira. Com certeza devia estar louco para se livrar dela. Julie, então, combinou com o mecânico que guinchasse o fusca e o consertasse. Depois pensou como chegar em Craemar, que ficava a vinte quilômetros dali. Deveria ligar para Richard e pedir que a pegasse. O importante era não aceitar mais favores daquele estranho. Estava parada diante da bomba de gasolina, pensando, quando viu um caminhão se aproximar. Quando chegou mais perto, ela reconheceu o motorista, um colega do irmão, que ganhava a vida dirigindo um caminhão de um lado para outro do país. — Oi, Julie. Há quanto tempo não te vejo. O que faz por aqui? Julie ficou contente por encontrá-lo e num instante lhe contou o que tinha acontecido. — Quer uma carona? — John Seymour ofereceu. — Estou levando carga para Whitianga e tenho que esperar até amanhã para pegar outra de volta. Posso me desviar um pouco e deixá-la em Craemar. — Sério? Puxa! Nem sei como agradecer. — Ora, deixe disso! Ponha suas coisas na cabina enquanto vou comprar cigarros. Julie pôs o que era seu na boléia do caminhão e foi falar com o dono da Maserati. — Obrigada pela carona. Vou pegar outra aqui. — Acha que estará segura? — Não vejo diferença entre viajar com você ou com ele. Julie sabia por que o gigante lhe tinha feito essa pergunta. Vira que ela abraçara John e devia ter tirado conclusões erradas. Machista como era, nem lhe passara pela cabeça que ela podia conhecer o motorista do caminhão. — Como quiser — ele respondeu simplesmente,mostrando indiferença. Julie voltou para o caminhão e logo estavam a caminho. Quando saíram do posto ela ainda acenou para o homem grande ao lado da Maserati prateada. A viagem foi divertida pois John se mostrava um companheiro alegre e conversador. Ele pretendia passar a noite em Whitianga, na casa da tia, e convidou-a para jantar lá. Julie aceitou. Não precisava chegar em Craemar naquela tarde, pois só começaria a trabalhar no dia seguinte. Em todo caso, já que estavam no caminho, preferia deixar suas coisas e avisar Richard de que chegaria mais tarde. O caminhão era largo demais para entrar no caminho estreito que levava à mansão, em Craemar. John o estacionou na estrada e seguiram a pé até a casa, que mais uma vez despertou a admiração de Julie. Era antiga, datando de 1830, toda em estilo colonial. Tinha sido construída por um antigo colonizador, com colunas e batentes de madeira de lei e tijolos aparentes. Tinha dois andares e, devido a acréscimos posteriores, possuía um desenho assimétrico, que a tornava original. Julie gostava em especial da cozinha, grande e espaçosa, onde tinha todas as condições de trabalhar. Subiram os degraus do terraço e pararam diante da pesada porta de kauri, com dobradiças de cobre. Por alguns minutos bateram, sem obter resposta. — Quer dar uma olhada na garagem, enquanto dou a volta e tento entrar pela cozinha? — Julie propôs a John. Richard deveria ter saído,Jjulie pensou, enquanto procurava a chave da porta dos fundos sob os vasos de plantas. Encontrou-a exatamente onde Conníe lhe dissera para procurar. Abriu a porta e acendeu as luzes pois já começava a escurecer. Era sem dúvida um lugar bonito, em tons pastéis combinando com os armários de madeira natural. A cozinha estava impecável, sem um prato fora do lugar. Não havia sinal de Richard, nem da cesta que ela tjnha lhe preparado. Era de se estranhar!Nesse momento John voltou. 10


— Está tudo fechado e não vi nenhum carro na garagem. Acho que faz um bocado de tempo que ninguém vem aqui. — Pelo jeito Richard não veio — Julie comentou. — Vou dar uma espiada no quarto dele. Ela subiu e entrou num dos quartos, que se abria para o terraço da frente. Estava vazio, não tinha uma peça de roupa fora de lugar, embora houvesse lenha na lareira, pronta para ser usada. — Ele não está aqui — Julie falou quando desceu. — Talvez tenha mudado de idéia. Ela não disse nada mas sua mente fervilhava. Richard devia estar em algum lugar, com uma de suas garotas, se divertindo com a cesta que ela tinha preparado. Danado! Usara seu charme e acabara enganando-a. Mas ele que esperasse, pois na primeira oportunidade ia lhe dar o troco. Julie levou as malas para o quarto que ia ocupar, um dos acréscimos feitos na construção original. Era o único quarto no andar térreo. Acomodou suas coisas e depois foi para junto de John, não deixaria que a brincadeira de Richard a perturbasse. Não faltariam chances de se vingar. Já passava de meia-noite quando John a levou de volta. Ele quis descer e verificar a casa escura e vazia antes que ela entrasse, mas Julie recusou. Não era preciso. Ela procurou a chave embaixo do vaso de plantas, mas não a encontrou, procurou novamente, mas sem resultado. Que ódio! Com certeza Richard tinha chegado, apanhado a chave e nem pensara nela! Era o cúmulo da desconsideração! Estava frio, era tarde e ela não podia entrar! Julie voltou para a frente da casa e olhou para cima. A janela do quarto de Richard estava aberta. Diabo de homem! Dormia tranquilamente enquanto ela gelava do lado de fora. Tomou uma resolução rápida. Seguiu até o canto da casa onde havia uma escada de incêndio e subiu até alcançar o terraço. De lá foi até a porta de veneziana que dava para o quarto de Richard. Forçou o trinco. Como esperava, estava trancada. Voltou para junto da janela e, com cuidado, subiu a vidraça e se esgueirou para dentro. Não queria fazer barulho para que Richard não acordasse. Ele ia ter uma surpresa! Pé ante pé, ela deslizou pelo assoalho encerado e chegou junto da cama, antecipando sua vingança. Respirou fundo, pegou a beirada das cobertas e, num safanão, puxou-a de uma vez só. — Ricky, meu querido. Paixão! — ela falou, procurando imitar o jeito dele falar. — Não via a hora de estar junto de você. Julie abraçou o corpo deitado, apertando as unhas contra o peito que aparecia por baixo do pijama. —Meu amor! Seu nome está escrito em meu coração. Sou sua! — Ela mal continha a ansiedade, louca para ver a cara dele depois daquela inesperada brincadeira de mau gosto. De repente, Julie percebeu que alguma coisa não estava certa. Aquela altura Richard já devia estar gargalhando e também tomando atitudes teatrais. Além disso, Richard tinha o peito liso e ela encontrava um tórax cabeludo. Não era Richard! Julie se afastou, horrorizada, quando a figura deitada se sentou na cama e agarrou seu pulso. — Sinto muito desapontá-la, mas não sou o seu ‘amiguinho”. Julie sentiu o sangue gelar. Aquela voz, a frase educada e fria, soou conhecida. Não podia ser! Ela viu a figura se movimentar no escuro e acender o abajur de cabeceira. O dono da Maserati a olhava com firmeza. — Pelo jeito, tornamos a nos encontrar, mocinha.

CAPÍTULO III

—Mas como?!.. É você! — Julie, espantada, se afastou da cama. Nesse ínterim, o estranho se ajeitou melhor, seu peito cabeludo à mostra pelo pijama entreaberto. —O que faz aqui no quarto de Richard! — ela perguntou. — Como o que faço? É o único preparado para receber alguém, com lenha na lareira e a cama feita. A propósito, feche a janela. O ar está frio demais. 11


Julie, desnorteada, soltou a vidraça deixando-a cair com barulho. O estrondo fez com que ela despertasse do susto. Quando voltou para junto dele, encontrou-o sonolento. — Onde está Richard? Julie reconheceu que era uma pergunta estúpida. Se aquele homem fosse algum psicopata que tivesse dado fim a Richard, não iria dizer. Devia ter medo daquele gigante, mas,.. incrivelmente, não tinha. — Não fiz nada com Richard. Aliás, não tenho a menor idéia de onde ele se encontra e, para ser bem sincero, não me incomodo com isso. Já é tarde, estou cansado e gostaria de dormir. A voz dele continuava macia e profunda. O cabelo despenteado pelo sono caía displicentemente na testa larga e ele perdera o ar ameaçador. Julie chegou a se arrepender de ter interrompido seu sono. — Posso lhe pedir um favor, mocinha? Conte a todas as “amiguinhas” de Richard que ele não se encontra nesta casa. Isto serve pra você também. — Não sou namorada dele. — Julie se aborreceu com o termo, porque sabia o que ele queria dizer com isso, mas.., pela maneira como ela tinha se comportado no carro, pelo que havia dito, até que ele estava sendo lógico ao pensar assim. — Conheço Richard há muito tempo e… sou uma boa amiga dele, mas não sua “amiguinha” ou namorada. —É o que todas dizem. Gostaria muito de saber o que seus pais, tão antiquados, achariam desta situação. Julie achou melhor não insistir e sutilmente mudou o rumo da conversa. — Você é amigo dos Marlow? Se tivesse me contado que vinha para cá, poderia ter-me trazido também, — Não vejo por que falar sobre minha vida particular a uma desconhecida que apanho na estrada. Além disso, tive a impressão de que preferiu a companhia do motorista do caminhão. —Ele é um velho conhecido, do mesmo jeito que Richard. —Eu sei. Eles devem ter milhares de “amiguinhas” como você. Novamente o termo pejorativo. Julie, porém, não aceitou a provocação. Era melhor descobrir de vez quem era o desconhecido e o que fazia ali. — A sra. Marlow sabe que está aqui? — Não, mas posso lhe garantir que não ficará aborrecida quando souber. Julie estava cada vez mais intrigada. Seria possível que um membro da família já tivesse rompido as regras e convidado alguém? O melhor era ligar para Connie de manhã e lhe contar o que tinha acontecido. Mas… e se Connie lhe pedisse que pusesse o estranho para fora? Não tinha forças para enfrentá-lo! Talvez a sra. Brabbage conseguisse, uma vez que era grande e forte como ele. —Quem é você? Como entrou aqui? — Julie afinal perguntou embravecida. Ele hesitou antes de falar, como se não se sentisse na obrigação de dar explicações. — Com uma chave. Agora, por favor. — A que achou embaixo do vaso de flores! — Isso o punha entre o círculo dos poucos privilegiados que conheciam o segredo. — Por isso não consegui encontrá-la e fiquei fora naquele frio — ela se queixou. — Quer dizer que você não entra sempre pela janela da casa? Ótimo! Então, use a porta para sair — disse ele apontando a saída do quarto. — Pelo menos me diga quanto tempo vai ficar — ela pediu suplicando, pois entendia que cuidar daquele hóspede fazia parte dos seus afazeres. Ele se acomodou no travesseiro, fechou os olhos e suspirou fundo. Ficou tão impassível que seu rosto assumiu ares de um senador romano, daqueles que se vê em cinema. —Eu perguntei… —Julie falou mais alto, pensando que ele já estava cochilando. — Eu ouvi o que disse, mas sua curiosidade é inoportuna. Não podemos conversar amanhã cedo? Julie ficou impaciente. Que homem mais esquisito! Não queria saber nada sobre ela? —Não vai perguntar o que estou fazendo aqui? — Não preciso. Sei por que está aqui, precisamente neste quarto, Julie corou imediatamente. Como tinha sido estúpida. Sua atitude no carro, depois pegando carona com John e agora entrando ali intempestivamente e dizendo palavras de paixão. Isso só podia levá-lo a crer que era leviana. Ah! Que raiva sentia de si! —Também vou ficar nesta casa —Julie falou, sem que ele perguntasse. 12


— Não me diga! Então é “amiguinha” permanente? —Já disse que se enganou a meu respeito. Sou a cozinheira. Ele continuou impassível, afligindo-a mais ainda. —É mesmo? Como conseguiu emagrecer tanto, encolhendo desse jeito? A última vez que a vi era grande e forte, sra. Brabbage. —Não seja irônico. Sabe que não sou a sra. Brabbage. Estou aqui para substituí-la por algum tempo, devido à operação do marido. —Então é uma cozinheira.. e o que faz uma cozinheira numa casa vazia? — A casa não está vazia. Você está aqui, certo? — Inesperadamente.Então… para quem iria cozinhar, se é que sabe fazer alguma coisa? Julie, não se contendo de raiva, retrucou cheia de orgulho: —Sou diplomada como chef de cuisine pelo Cordon Bleu. —Quando foi a formatura? Quando ainda estava no berço? — Ora.., eu... eu... — Está bem. Como se prepara ovos Benedict? — O quê? — A pergunta tinha surgido do nada e a pegou desprevenida —é um prato... feito com ovos — ela gaguejou embora já tivesse preparado esse prato um milhão de vezes. Ele estalou os dedos. —Agora sei quem você é. Janette, sobrinha da sra. Brabbage! Deveria tê-la reconhecido por seu modo de agir. Apenas não deixe que sua tia saiba que você freqüenta o quarto de Richard durante a madrugada. Julie engoliu em seco. Sabia a quem ele se referia e “como” se referia, Janette era famosa em Craemar, como o exemplo de tudo aquilo que a sra. Brabbage e, pelo visto, ele também, achavam horrível na juventude atual. Não era nada agradável para ela ser confundida com uma garota independente, bonita e namoradeira, no pior sentido que o termo pudesse assumir. Certamente era essa a intenção daquele homem ao confundi-la com a moça. — Meu nome é Julie, não Janette, e até agora não me disse quem você é — ela retrucou, colocando os dedos no cós da calça e encarando-o, disposta a enfrentá-lo. — Você faz perguntas demais — respondeu entediado. Por fim, disse: — Sou Hugh. — Quem sabe agora ela o deixaria dormir em paz? — Hugh... quem? — Se conhece bem a família Marlow, devia estar familiarizada com todos os seus membros. Ou esqueceu do menos famoso dos filhos? Julie prendeu a respiração. Procurou lembrar o nome que havia lido no cartão que ele lhe deu. Recordou as iniciais G.B.H.. mas tinha certeza que o sobrenome não era Marlow. —Mentiroso! — O quê? — ele ficou surpreso. — Todos os Marlow têm cabelo vermelho.. — Charles não. — … e são altos e fortes, mas não gigantescos! Além disso você é velho demais! — Para quê? — Para ser Hugh. Você deve estar com uns trinta e oito anos. — Trinta e dois — ele corrigiu, e a sombra de um sorriso apareceu-lhe no rosto. —Pois parece mais velho, mas mesmo assim… Connie teria.. — Mentalmente ela fez as contas, mas cálculos não eram seu forte e ainda estava pensando, quando ele adiantou: — Quinze anos. No entanto, não tenho obrigação de explicar as ramificações de minha árvore genealógica. Pelo menos, não de madrugada. Definitivamente, boa-noite. Dessa vez Julie não discutiu. Estava perplexa por encontrar Hugh ali e por todos os acontecimentos do dia. Sentia-se cansada e com sono. Era melhor deixar as explicações para o dia seguinte. Quando saiu do quarto ouviu Hugh apagar a luz e tornar a deitar. Ela desceu as escadas e foi para seu quarto. De uma certa forma era bom saber que havia alguém mais em casa, principalmente uma pessoa tão forte e decidida. Sim, por mais confusa que estivesse, se 13


sentia segura com aquele membro da família Marlow, de personalidade cativante. Ainda mais naquela solitária noite fria. Ela teve a sensação de que mal havia encostado a cabeça no travesseiro quando ouviu barulho na cozinha. Meu Deus! Ele já estava de pé? Olhou pela janela e viu que era dia claro. O jeito era levantar e começar o trabalho. — Como vai, Julie? Acordei você? — a sra. Brabbage a cumprimentou. Vim trazer as compras que a sra. Marlow encomendou. — Já estava na hora de levantar. — Passei por aqui mais cedo porque depois vou levar meu marido ao médico. — Como vai ele? Está melhor? Por um longo tempo a sra. Brabbage contou sobre a operação do marido e os progressos que ele vinha apresentando. Depois enumerou as providências que tinha tomado para esperar a família. Julie ouvia, concordando com a cabeça, sem uma chance de falar. Quando a governanta parou para tomar fôlego, Julie comentou: — Pensei que fosse encontrar Richard aqui. — Hum… — a sra, Brabbage fez um muxoxo aborrecido. —Aprontei o quarto dele e até me ofereci para vir cozinhar, mas ele me ligou dizendo que ia passar o fim de semana em Tharnes, com uma garota. — O tom era visivelmente de reprovação. — Mas alguém está usando o quarto dele. A governanta ficou ainda mais irritada. — Não é possível! Depois de me avisar que não vinha, o sr. Richard não pode simplesmente aparecer por aqui. Ele não sobreviveria um dia sem alguém para cuidar dele. Deve ser o senhor Hugh. Eu lhe disse que podia ficar no quarto que estava preparado. Julie sentou, as pernas moles. Não podia ser verdade! — Ele é Hugh... Hugh Marlow? — Não. É Hugh Walton. — Como? Não é filho mais velho dos Marlow? — É sim, mas é adotado. — A sra. Brabbage pareceu absorta, perdida em suas recordações. — Eu estava aqui quando ele chegou, alto e magricela, quieto como um ratinho, os olhos cinzentos muito grandes, com uma voz que mais parecia um sussurro. Estava com doze anos. “Magricela? Ratinho? Olhos grandes?”, pensou Julie. — Estamos falando da mesma pessoa, sra. Brabbage? Achei Hugh mais parecido com um leão do que com um ratinho. — Agora ele é um rapagão bonito e forte, mas naquela época estava faminto e subnutrido. Era só pele e osso, precisava ver o apetite com que comia! Daí para a frente se desenvolveu com rapidez, sendo um ótimo aluno na escola. Agora está colhendo os frutos do que semeou. É um advogado famoso, tem seu próprio escritório, faz palestras em várias universidades e tem alguns livros publicados. — Ela suspirou, os olhos brilhando de emoção.— Ele merece! Qualquer dia vamos vê-lo como primeiroministro! Julie estranhou o entusiasmo da governanta. Em geral ela era muito crítica e comentava sobre tudo com uma boa dose de pessimismo. — Não sabia que os Marlow tinham adotado uma criança. —Não é segredo, embora os Marlow não sejam de contar detalhes sobre seus feitos. Tudo isso aconteceu há muito tempo e como o sr. Hugh não está ligado ao teatro ou à televisão, não aparece nos jornais e revistas de fofocas como é o caso do resto da tamília. — Disse a ele que a família vem para cá? — Ele já deve saber, não é? Aliás, achei muito estranho o sr. Hugh querer estar aqui com tanto movimento. Ele é muito reservado. “Reservado ou ingrato? Por que Hugh queria evitar a família que o acolhera como filho?”, Julie se perguntava. — Ele sempre vem para Craemar? — Agora não, mas quando estava na faculdade passava muitos fins de semana aqui, para estudar com tranqüilidade. Nunca deu festas alucinadas para bandos de irresponsáveis e transviados. 14


Julie sabia que a última frase era referente a Richard, a sra. Brabbage parecia reprovar todas as atitudes do irmão mais moço. — Os gêmeos, Richard e Steve, eram pequenos quando Hugh entrou na família, não é? — Julie estava curiosa e queria se aprofundar no assunto. — Tinham dois anos. Precisava ver a paciência com que o sr. Hugh os tratava, o carinho com que brincava com os irmãos. Ele sempre foi uma pessoa de muito bom coração. Julie ficou em dúvida. Quem seria o enigmático Hugh Walton? A pessoa dedicada e carinhosa que a sra. Brabbage parecia adorar, ou o advogado frio e calculista a que Richard se referira? — Por que os Marlow adotaram Hugh? O que aconteceu com os pais dele? — Na verdade, não sei. Acho que morreram e ele ficou sozinho no mundo. A governanta começou a guardar as compras. Para ela, o assunto estava encerrado, já que havia contado o que sabia. Julie olhou o relógio e este marcava sete horas. Uma idéia passou por sua cabeça. — A que horas Hugh costuma tomar o café da manhã? — Não se preocupe com isso. Em geral ele só toma uma xícara de café e mais nada. Agora vou subir e preparar o quarto dele, O sr. Hugh precisa de calma porque está escrevendo outro livro. ‘O ninho da águia!”, Julie lembrou. Connie havia lhe dito que tinha transformado o sótão num apartamento para o filho mais velho. Assim, a não ser durante as refeições, ele se isolava de todos. A sra. Brabbage subiu as escadas e Julie começou a colocar sua idéia em prática. Seria uma espécie de pedido de desculpas e explicação. Separou dois ovos, um pedaço de pão e algumas fatias de presunto,preparou o prato e estava terminando de pôr o molho quando a sra. Brabbage voltou para apanhar o limpa-vidros. — Já que vai subir poderia levar esta bandeja para o sr. Hugh? — Julie pediu. — Por que fez tudo isso? Já lhe disse que ele não come de manhã. —Ele gosta de ovos Benedict, portanto, não custa oferecer. Julie preparou seu desjejum, comendo-o na cozinha, ia começar a lavar a louca, quando ouviu: — Bom-dia. Ela se virou e viu Hugh com a bandeja na mão. Ele havia comido tudo. — Bom-dia. Quer uma xícara de café? Acabei de coar. — Não, obrigado. Gostei muito dos ovos, estavam deliciosos mas não precisa se incomodar. Não como de manhã. — Pois devia mudar de hábito. É importante que a pessoa se alimente bem na primeira refeição. Admite agora que sei cozinhar ou preciso lhe mostrar meu diploma? — Concordo que sabe fazer ovos Benedict. Quanto ao resto... só experimentando. Ela riu. Era a primeira vez que ele brincava. Ainda bem que tinha senso de humor e sabia ser simpático. — Vou esperar seu julgamento, então. — Não sou juiz, só advogado. Um sorriso amplo apareceu no rosto de Julie. — Está convencido agora de que não sou “amiguinha” de Richard? Eu o conheço há muito tempo e acho que somos bons amigos. —Uma coisa não exclui a outra, não é? — Hugh mudou de assunto. — Por que não usa a máquina de lavar louça? Julie não respondeu de imediato. Ela era um fracasso com máquinas elétricas, com exceção de seu velho liquidificador que também funcionava como batedeira, mas... ninguém precisava saber disso, não era? — Gosto de lavar louça — respondeu simplesmente. Parecia uma idiota, sem inteligência para nada, — Sinto muito pelo que aconteceu ontem à noite, não devia tê-lo perturbado daquele jeito, mas foi uma brincadeira que quis fazer com Richard. — Tudo bem. — Não podia imaginar um Marlow sem cabelo vermelho e.... — Eu sei. Você também não parecia uma chef de cuisine Cordon Bleu. É muito moça para isso. — Nem tanto. Estou com vinte e quatro anos, embora por ser pequena, pareça ter menos. — Não é só pela aparência, mas pelo comportamento, 15


— Não sou tão distraída como pareço, mas você assumiu um ar tão paternal e protetor que não quis ser indelicada. E além do mais estava certa de que diria que eu era inexperiente e por isso causei o acidente. Não foi o que declarou, quando fez o Boletim de Ocorrência? — Não chamei a polícia, Julie fitou-o admirada. Hugh tinha o dom de cativar as pessoas. Mal conhecia aquele homem, porém sentia que podia confiar nele. Ele sabia ser convincente no que dizia. Com razão era um grande advogado. — Não precisa mais se preocupar em preparar o café da manhã ou almoço para mim. Quando escrevo, perco a noção do tempo e gosto de beliscar o dia todo. Mas sempre desço para o jantar. — É só me avisar a hora em que quer a refeição e terei tudo pronto. — Sete horas está bem. Fiquei surpreso quando soube que Connie havia contratado alguém para substituir a sra. Brabbage, principalmente com a casa vazia e com tão pouco serviço para fazer. Julie não respondeu. Se dissesse que estava ali porque a família ia se reunir, deixaria Richard em maus lençóis, já que ele não tinha contado nada ao irmão. — Por que está aqui? — ele insistiu. Ela permaneceu quieta. —Você e Richard se encontram aqui? — ele continuou, — Claro que não! — ela respondeu zangada. — Richard, nós... eu,.. Sou só a cozinheira. —Chef de cuisine — ele corrigiu. —E pretende mostrar seus dotes culinários para Richard? Julie estava furiosa. Não só com Hugh por duvidava dela dessa maneira, mas principalmente com Richard por tê-la metido nessa situação. Por que deveria ficar quieta? Se Hugh perguntasse à sra. Brabbage em cinco minutos saberia a verdade, ia contar tudo e, se Hugh tomasse uma atitude com o irmão, bem feito! Assim ele aprenderia a parar com esse tipo de brincadeira. — A família toda vem para cá, para passar este mês. — Não diga tolices, eles sempre vêm no Natal. — Mas este ano vai ser diferente porque cada um tem um compromisso no fim do ano. Por isso resolveram ficar juntos agora. — Há quanto tempo sabe desses planos? — Connie me contratou há um mês. — Eu me pergunto se foi uma conspiração de família ou se Richard planejou tudo sozinho. Por que ninguém me avisou? Julie baixou os olhos. Não podia admitir que a culpa era toda de Richard. — Não precisa responder. Já entendi tudo. Richard quis fazer tudo a seu modo e provavelmente pensou em me dar a grande noticia. — Não seja tão severo com seu irmão.Ele apenas acreditou que era uma boa oportunidade para que você estivesse aqui, lembrando que você também faz parte da família. — Estou muito consciente de que sou um deles. Só quero saber em que ponto da história você se encaixa. — Em nenhum, sou apenas a cozinheira. Richard me contou que você desconhecia esta reunião e que não podia se furtar a ela já que emprestou seu apartamento e Connie vai reformar a casa. Eu não sabia quando você viria e, naturalmente, não forcei o acidente. Aliás, você também escondeu alguns fatos. Não contou que era advogado nem disse o seu nome. — Não vejo o por que. Você é bastante capaz de enfrentar situações difíceis. Deixou bem claro que eu era o único culpado pela batida. Hugh era uma constante surpresa. Quando esperava que argumentasse, ele ficava quieto e até admitia estar errado. Sem dúvida, era um homem envolvente. — Bem, vou subir e começar a escrever. Acho que a sra. Brabbage já terminou a arrumação. — Vai ficar? — Não tenho outra alternativa, tenho? — Richard disse que, quando soubesse do movimento por aqui, com certeza..... — Meu irmão é um palhaço. Meu apartamento no sótão é bem afastado do resto da casa e posso manter total privacidade se quiser. A família sabe que para cruzar aquela porta é necessário convite, portanto não temo sua intrusão. Quanto ao jantar, aprecio a companhia de todos por algumas horas. 16


Julie ficou impressionada. Como ele podia falar de maneira tão fria e distante sobre a família que o tinha acolhido, lhe dando um lar, amor e carinho? Por que ele assumia essa atitude? Seria por ter entrado na família com muita idade para se considerar parte dela? Como seria aquele homem na realidade? Seria frio e calculista o tempo todo? — Quando eles chegam? — Hugh quis saber. — Eu os espero a qualquer momento. Não ficou aborrecido? — Estou decepcionado, mas já que não posso fazer nada.— Ele se encaminhou para a porta. — Sempre pode gritar ou xingar para espantar a raiva. — Não. Prefiro trabalhar, é mais produtivo. Julie observou a figura estóica sair da cozinha. Trabalho. Era nisso que ele concentrava suas energias? Não sobrava nada para os outros, para diversões ou para si? Tudo nele parecia nebuloso, frio, intrigante. Todavia, uma estrela também era distante e enigmática, até que sua beleza fosse descoberta. Sublime e cintilante, contrastando com a noite escura. Poucas pessoas percebem a beleza de uma estrela. Ela amava a natureza. Adorava a liberdade do céu estrelado e via em Hugh uma estrela embaçada que necessitava resplandecer o seu brilho interior. “Vou descortinar G.B.H. Walton. Antes de deixar esta casa vou fazer brilhar esta estrela. Ou não me chamo Julie Fry”, ela pensou decidida.

CAPITULO IV

A primeira semana foi de muito serviço para Julie. Ela se esforçou bastante, até colocar tudo em ordem e se acostumar com a rotina da família. Quando enfim, conseguiu,o dia-a-dia se tornou mais fácil. Ela teve tempo de ir buscar o fusca e trazê-lo de volta, o mecânico arrumou o carro e, embora quisesse fazer outros reparos necessários, Julie deixou-os para mais tarde. Durante aqueles dias mal tinha visto Hugh. Ele se fechou no quarto e só descia para jantar, onde encontrava a família. Mesmo assim, Julie caprichava na cozinha, assando carnes e bolos, tentando despertar seu apetite. Queria impressioná-lo com aquilo que ela sabia fazer de melhor. O primeiro membro da família a chegar foi Richard, que apareceu na cozinha, se desculpando com Julie pois tinha encontrado uma velha colega do tempo do ginásio e não conseguira recusar seu convite para passar o fim de semana na praia. Julie ouviu tudo sem uma palavra, mas jurou intimamente que um dia ia à forra, esperando com tranqüilidade até que a chance surgisse. — Que pena que não estava aqui quando Hugh soube que haveria reunião de família — Richard comentou. — O que foi que ele disse? — Nada. — Não é possível! Ele deve ter ficado furioso, mas se controlou. Que pena! Perdi o espetáculo do ano. Julie não disse mais nada. Richard que achasse que sua brincadeira não tivesse dado certo. Assim ele aprenderia a não brincar com os sentimentos alheios. Depois de Richard, chegaram os outros Marluw. Eles vieram quase todos juntos, muito falantes e ruidosos cada um com mil aventuras para contar. Olívia e Rosalind estavam como sempre muito bonitas e Charles tinha crescido bastante, agora um moleque alto e bem desenvolvido que começava a perder os ares da adolescência para se mostrar um jovem decidido. Só Steve não parecia o mesmo. Estava sempre calado, o rosto tristonho, sempre afastado num canto. Ele se dava bem com Julie e parecia mais feliz ao lado dela. Durante o dia se ocupava fora da casa, com longos passeios ou mexendo no jardim. Mas à noite, enquanto Julie preparava o jantar, ele se sentava na cozinha e falava sobre ecologia, política e assuntos atuais da Nova Zelândia. Ela raras vezes o interrompia, mesmo quando discordava de sua opinião. Achava que ele precisava falar, pois sempre lhe dava a impressão de que tinha algum problema que tentava contar, mas não sabia corno. Os dias foram passando rotineiros. 17


Uma certa manhã, depois de preparar o café, Julie sentou para comer e seus olhos vagaram do jardim até a piscina de água muito azul. Estava absorta em seus pensamentos, quando notou que alguém entrava. Era Hugh. — Bom-dia, Julie. Gostaria que, mais tarde, servisse chá e biscoitos no terraço da piscina. Uma colega virá até aqui para levar parte do meu manuscrito para Auckland. — Está bem. Ela é sua garota? Julie mordeu o lábio. Era curiosa demais. — Isso faz diferença? — Claro. Se for, posso preparar algum prato especial. — Não é necessário, basta o chá e biscoitos. — Ela também é advogada? — Julie sabia que estava sendo inoportuna, mas queria conhecer as mulheres com quem Hugh se relacionava. — Não. Ela é professora de computação na universidade onde leciono. Seu nome é Ann Farrow, é inglesa e maior de idade. Acha que essas informações lhe bastam? — Casada ou solteira? — Julie ainda arriscou, indiferente ao sarcasmo dele. Hugh a olhou fixamente e por um instante ela achou que ele ia ser grosseiro. — Solteira. Sirva o chá por volta das onze horas, por favor. Dizendo isto Hugh se afastou. Uma especialista em computação! Era esse o tipo de mulher que interessava a Hugh Walton? Com certeza, com a frieza dele e a tecnologia dela, eles deviam fazer programas de computador, em vez de amor. Como seria Hugh ao amar uma mulher? Será que conservaria no rosto aquele ar distante? Ao tirar a roupa conservaria o jeito reservado e comedido? Como seria… nu? O desejo e o interesse por Hugh de repente afloraram. Ela se deu conta de que já não lhe bastava pôr a descoberto o âmago de Hugh. Precisava mais. Sentia-se curiosa pela nudez do corpo dele ou, pelo menos, isso agora a atraía tanto quanto o despir-se da alma dele. Com estes pensamentos ia se ocupando da pia e lavando a louça. Dali a instantes, Connie apareceu na cozinha. Na conversa, Julie mencionou a visita de Ann Farrow. — Até que ela demorou para aparecer. Ela vive atrás de Hugh. — Ann é uma pessoa simpática? — perguntou Julie. — É o modelo da perfeição. Bonita, calculista, inteligente, exatamente o que Hugh gosta. Na minha opinião, porém, ela é artificial demais. Só espero que Hugh compreenda que o que mais a atrai nele é seu bolso recheado e sua posição na faculdade. — O que você quer dizer com isto? Acredita que Hugh se deixaria enganar por uma… interesseira? — Ela é muito conveniente para ele, Julie, está sempre disponível e não exige mais náda. “Que monotonia!”, Julie pensou. Viver com alguém sem perspectivas, por conveniência ou comodismo, era o mesmo que prostituir-se. Era isso o que Hugh esperava encontrar numa mulher, alguém que se punha à disposição em troca de uma posição social elevada, uma jóia ou um cargo de assistente? Julie ia preparando a massa para assar os biscoitos. Enquanto fazia isso, Connie retirou-se para não atrapalhá-la. Com a massa que sobrou dos biscoitos, Julie teve uma idéia que achou brilhante. Seria sua vingança contra Richard. Sabia que ele gostava de assaltar a despensa à procura de coisas gostosas para comer. la fazer um bolo horrível, com ingredientes que não se misturavam, como mostarda e açúcar, sal e café. Para torná-lo atraente,capricharia numa cobertura de chocolate, tornando-o no preferido de Richard. Quando ele o experimentasse… ela teria se vingado. O bolo ficou pronto e ela suspirou feliz. Estava super atraente Ela o pôs num prato, cobriu com um pano e guardou na despensa. Naquela mesma tarde Richard deveria prová-lo. Quando ele visse aquela beleza e sentisse o aroma desprendido pela essência não ia resistir. Tirou os biscoitos do forno e os guardou numa lata até a hora de servir. Depois foi para o hall, onde encontrou Richard. — Oi, Julie. Tudo bem? Você é corajosa? 18


— Claro que sou. — Então vai subir a escada e descer pelo corrimão. Julie olhou a escada em curva e viu o perigo. Richard tinha cada idéia! Parecia um garoto de nove anos, mas em breve ela teria sua vingança. — Não posso, estou ocupadíssima. — Não minta. Se estivesse, não estaria aqui, mas na cozinha. Vamos, admita. Você está com medo. Antecipando o momento em que Richard provaria o bolo, ela se animou a aceitar o desafio. Pouco depois estava no alto da escada, olhando para baixo, onde Richard a esperava. — Desça, Julie, não tenha medo. Estou aqui para segurá-la. — Ela quase desistiu, mas Richard continuou insistindo, chamando-a de medrosa. Finalmente Julie montou no corrimão e se largou. Era muito mais alto e inclinado do que tinha pensado e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Fechou os olhos, soltando um grito de pavor. Mas já estava descendo, as pernas apertadas contra a madeira, tentando diminuir a velocidade. Richard deu um passo para trás, se afastando da escada. — Ricky, seu peste, volte para me pegar. Oh. Ela caiu em cima dele e os dois foram ao chão, pernas e braços misturados. Por alguns instantes ficaram ali deitados, quase sem fôlego. Julie tentou sentar e deu de encontro com as pernas de Hugh, seu corpo comprido, seu olhar gelado. — Oh... não! — Julie escondeu o rosto no pescoço de Richard, incapaz de enfrentar aquele olhar crítico e duro. — Sei que já conhece Richard, Ann, mas a senhorita de vermelho, deitada em cima dele é… nossa cozinheira. Ann Farrow, esta é Julie Fry — Hugh passou por cima deles e se encaminhou para a sala. Julie não sabia se estourava de raiva ou de vergonha. De soslaio, reparou em Ann Farrow. Ela era tudo aquilo que Connie havia dito. Bonita e sem um fio de cabelo fora do lugar. Richard, em compensação, quase estourava de rir, o que a deixava mais irritada. — Você não liga para esta situação ridícula porque leva tudo na brincadeira, Richard, mas eu... — Julie sentiu os olhos se umedecerem. — Não se importe com Hugh. Só ele, para fazer esse tipo de apresentação! Mas, já que estamos aqui, tão pertinho um do outro, porque não.. — ele baixou a cabeça e beijou-lhe docemente os lábios. — Richard, não, por favor. — Julie o empurrou, aborrecida não só pelo momento inoportuno, mas porque tinha percebido um brilho de desejo nos olhos do amigo. — Por que não? — Ele apertou-lhe a cintura delicada para mantê-la mais perto, depois beijou-a com paixão. — Já disse que não, Richard. — Ela o afastou com as mãos e sentou. Foi então que viu Hugh de pé, parado à porta da sala — Esqueceu do chá, Julie? Richard, existem lugares meno públicos e mais confortáveis para fazer o que vocês pretendem. Julie teve vontade de atirar um sapato nele, e acabar com aquela expressão, mas Richard caiu na risada. — Quando chegarmos à sua idade, provavelmente pensaremos do mesmo modo, querido irmão. Mas, quando se é jovem e se tem o sangue quente, qualquer lugar, qualquer momento é instante certo. Não concorda, Julie? Ela estava ocupada demais tentando levantar e não respondeu. Tinha visto que, com a queda, a saia se enrolara em sua cintura e tinha deitado com as pernas de fora. Correu para a cozinha tentando se recompor. Pôs logo a chaleira no fogo para preparar o bendito chá. O que estava acontecendo com ela que nada dava certo? Primeiro tinha sido o carro, depois a invasão do quarto de Hugh agora… Que situação terrível! Desse jeito seria impossível adquirir a confiança e o respeito de Hugh. Além disso, ela não era de forma alguma a moça leviana e inconseqüente que os olhos cinzentos de Hugh reprovavam.

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Preparou a bandeja. Colocou as xicaras e os pratinhos, e sep rou o bule de prata para o chá. Enquanto a água fervia, ird até o jardim, pegar uma rosa e pôr num vasinho para sensib lizar o coração de Hugh e. quem sabe, amenizar o vexame. Ao passar pela garagem, na direção do jardim, ela ouviu um ruído. Curiosa, abriu a porta e entrou. — Charles! E aqui que passa as manhãs? O que está fazendo? — Dando uma olhada no que tem por aqui. Julie notou-lhe as mãos sujas de graxa. — Está consertando alguma coisa? O rapaz pareceu embaraçado, mas depois contou, esperando a opinião de Julie. — Quero montar uma bicicleta, encontrei algumas peças e já comecei, mas ainda me falta muita coisa. — Que maravilha! E acha que vai conseguir? Você sabe o que fazer? Charles ficou entusiasmado com o interesse demonstrado por ela. — Descobri estas peças velhas na sexta-feira e comecei a montar, contudo, preciso de outras novas. Gosto muito de mecânica, tenho um amigo, com quem vou passar o Natal, que trabalha numa oficina com o pai. Ele me disse que poderia ajudá-los. Quem sabe se não posso aprender um pouco mais? — Acho ótimo. É isso o que quer ser, Charles? Um mecânico? — Ainda não sei, Julie compreendeu que o rapaz não admitia sua vocação porque a família esperava que ele seguisse o ramo das artes, mas seu entusiasmo por máquinas era mais do que evidente. — Já que entende de carros, poderia dar uma olhada no meu fusca? Parece que ele tem algum problema do motor. — Claro! Confia em mim, Julie? — Sem dúvida, o importante é que você gosta e por isso saberá o que está fazendo. Tenho certeza de que, se tiver dúvidas, procurará alguém que possa ajudá-lo. — Vou começar hoje mesmo — ele respondeu animadíssimo. — Mas não conte nada a mamãe, por favor, Ela não gosta que eu fique me sujando por aqui. — Charles mostrou as unhas pretas e a roupa manchada. — Se você realmente gosta de mecânica, um dia ela terá que descobrir e aceitar, não é verdade? — Eu sei, mas não já. Já basta a preocupação que meus pais tem com Steve. Não quero aborrecêlos ainda mais, Prefiro esperar até me formar no colegial e aí então estarei pronto para decidir o que quero seguir como profissão. — É muito razoável — Julie concordou. — Oh…O chá! Meu Deus! Deixei a chaleira no fogo! Ela correu para casa, pegando o atalho que passava pela piscina. Entraria pela sala de jantar e evitaria dar a volta pela casa. Já estava quase chegando lá quando parou, espantada. Hugh tinha a bandeja nas mãos e a punha sobre a mesinha de ferro trabalhada. Ele havia preparado o chá e a bandeja! Era tarde demais para dar a volta. Passaria por eles e se prontificaria a lhes levar o que faltasse. — Vi que já trouxe o chá. Ele a olhou e disse: — Está com o cabelo cheio de folhas. Julie, nervosa, passou a mão para retirá-las. Hugh devia estar pensando que ela e Richard haviam encontrado o lugar mais apropriado que ele sugerira há instantes. — Não é o que está pensando. Fui ver se encontrava uma rosa para colocar na bandeja. — É melhor se preocupar menos com a decoração e mais com as ordens que recebe. Julie sentiu-se humilhada. Tinha vontade de responder à altura, mas se controlou. Já ia embora, quando reparou que o bolo de chocolate estava na bandeja. Hugh não encontrara os biscoitos e pegou o bolo de Richard. — Este bolo é para o jantar — ela declarou. — Vou lhe trazer uns biscoitos deliciosos que acabei de fazer. — Não. Está bem assim, Julie, poderá fazer outra coisa para o jantar. Afinal, está aqui para isso, não é? — Mas os biscoitos combinam melhor com o chá e… — Ela estendeu a mão para pegá-lo, mas recebeu uma palmada nos dedos. 20


— Já lhe disse que vamos comer esse bolo — a voz de Hugh estava ameaçadora. — Agora queremos tomar o chá em paz.Pode ir cuidar de seus afazeres. Julie ficou aflita. Diria a verdade sobre o bolo? Ela o encarou e no mesmo instante perdeu a coragem. Automaticamente começou a se afastar, o cérebro lutando para encontrar uma saída. Olhou para trás e viu que Hugh cortava uma fatia e a colocava no prato de Ann. O que podia fazer? Tinha que ser algo drástico para impedi-lo de continuar. O quê?.. - A piscina! Deu uns passos para trás e se atirou, fingindo que tinha escorregado. Soltou um grito assustado quando entrou na água gelada. Suas roupas se tornaram pesadas e ela lutou para se manter na superfície. — Socorro! — gritou, fazendo o possível para que o pedido de ajuda parecesse real. Deixou-se afundar de novo, na esperança de que seu gesto dramático surtisse efeito. Para seu alívio, quando emergiu, viu Hugh à beira da piscina, a mão estendida. — Segure-se em mim — ele pediu, enquanto tentava puxá-la. Julie começou a subir e pôs o pé na borda da piscina. Foi então que percebeu que Ann continuava sentada, indiferente ao acontecido, e prestes a comer o pedaço do bolo. Que mulher! Não ligava para seu semelhante que estava se afogando! Nem mesmo Julie poderia dizer se sua próxima ação foi acidental ou de propósito. Ela segurou firme as pernas de Hugh e ele, tomado de surpresa, balançou por uns instantes para depois perder o equilíbrio e cair na piscina, esparramando água por todos os lados. Hugh afundou mas logo voltou à superfície, bem próximo dela, furioso. — Que diabo está querendo? — Desculpe, acho que escorreguei — ela falou com voz trêmula, morrendo de frio. Pelo menos tinha conseguido afastar Ann do maldito bolo. A garota vinha correndo em direção a Hugh. — Hugh.. — Julie começou a falar mas logo foi interrompida — Já disse e fez o suficiente por hoje. Guarde suas explicações para depois — Ele também estava com frio, o terno pingando completanente ensopado. — Vá para dentro e ponha uma roupa seca. Julie obedeceu, mas antes passou pela mesa de ferro, pegou o bolo e foi para a cozinha. Naquela noite, no jantar, Hugh já não parecia aborrecido. Julie teve esperanças de que tudo estivesse esquecido e perdoado. A conversa se generalizou, até que Richard tocou no assunto que ela procurava evitar. — O que deu em você, Julie? Hoje à tarde a vi entrar na piscina, com esse frio! E nem estava de maiô! Todos os olhares convergiram para ela. — Eu… escorreguei e caí. — Que nada! Eu estava no carro e vi, pelo espelho retrovisor, que você pulou dentro d’água. Hugh dominou o ambiente com sua voz potente. — Você pulou, não caiu? O silêncio se tornou pesado, desagradável, e até mesmo Steve, sempre tão alheio, a olhou com interesse. — E-eu... — gaguejou. — Nem se dê ao trabalho de negar. A culpa está estampada em seu rosto. Apenas quero saber o que a levou a agir assim. — Foi uma brincadeira. — Brincadeira! — Hugh mal conseguia se controlar. — Me puxar para dentro d’água também foi parte de sua diversão? Conseguiu me deixar embaraçado diante de um convidado importante, e ainda tem coragem de dizer que foi brincadeira? E meu terno de quatrocentos dólares que agora só serve para ir pro lixo? Acha isso engraçado? Julie se sentia pregada à cadeira, pequena e frágil diante da fúria do gigante. — Essa parte foi realmente um acidente. Eu… Novamente ela foi interrompida, dessa vez pelo barulho do punho batendo contra a mesa, fazendo balançar pratos e copos. — Não banque a inocente! Nem sei como conseguiu seu precioso diploma e muito menos como arranja empregos! É completamente irresponsável! Uma maluca! Julie estava a ponto de chorar, mas isso a tornaria ainda mais vulnerável. Tinha que responder alguma coisa que o atingisse. 21


— Pelo menos consigo rir e viver feliz, ao passo que você é duro, frio, distante. Não sente a vida. Sinto muito sobre o episódio da piscina. Pretendia até lhe dar explicações e… — E isso adiantaria alguma coisa? Acho que está na profissão errada, mocinha. Devia fazer parte de um circo, onde suas estrepolias estariam mais de acordo e seriam motivo para riso. — O que é bem melhor do que nunca rir — ela não agüentou mais. Se a situação estava ruim, iria ficar pior, mas ela não se calaria. — Acho bom lembrá-lo de que não é meu patrão,Connie me contratou e confia em mim. Quanto a seu terno, posso pagar o prejuízo assim que você me indenizar por ter amassado meu carro. Michael Marlow tentou arrefecer os ânimos, mas ninguém o ouviu. Os olhos estavam pregados no casal que discutia. — Não faz parte dessa família, Julie Fry, por mais que tente. Como você mesma disse, é empregada de Connie. Portanto, mantenha-se em sua posição — Ele levantou da mesa e procurou manter a calma. — Quando estiver menos histérica, ouvirei seu pedido de desculpas. — E saiu da sala batendo a porta. — Com licença. — Julie levantou-se e foi para a cozinha, atordoada. Não gostava de discussões e reconhecia os motivos de Hugh. Ela havia sido muito infeliz nos seus atos com ele. Agora era bem capaz que Connie a despedisse. Por que não manteve a calma? Por que se permitiu aquela explosão de raiva? Se chorasse seria muito melhor, pois teria desabafado, revelado sua angústia e arrependimento. Pela primeira vez se achava a pessoa mais errada do mundo. Relembrou os fatos, sua subida até o quarto onde Hugh dormia, a brincadeira com Richard na escada, a cena da piscina, o bolo… Aquelas não eram ações de uma pessoa adulta e madura. Podia ser alegre, descontraída, até mesmo inconseqüente, mas não com Hugh. Ele era diferente e levava a vida a sério. Precisava reparar o que havia feito. Ia pedir desculpas. Pouco depois Connie entrou na cozinha. — Sinto muíto, Connie. Não devia ter agido daquele jeito na mesa. — Não gosto de julgar as pessoas, Julie. Sei que Hugh pode ser enervante, mas você também não controlou seu temperamento. Gostaria de saber o que ocasionou a discussão. Julie contou os pormenores, sem se defender nem atacar Hugh. — Às vezes as circunstâncias nos levam a agir como criança, não é? — Tem razão, Julie. — Estou arrependida e vou me desculpar com Hugh. — Muito bom, acho que isso vai melhorar a situação. Connie pensou por um instante e depois continuou: — Vou lhe contar uns fatos que talvez a façam compreender melhor meu filho. Sei que ele é uma pessoa difícil, mas isso não significa que não saiba rir ou ser alegre. Hugh não guardou lembranças agradáveis de sua infâncias e isso o tornou amargo. Ele foi adotado e os motivos que o trouxeram a nós foram… muito tristes. Ele é desconfiado e por mais amor e carinho que lhe dediquemos, não conseguimos fazé-lo esquecer do passado. Portanto. não o julgo com severidade. — Meu Deus! Acho que o magoei profundamente! — Julic sentiu pena de Hugh. Gostaria de saber mais sobre a vida dele, mas não perguntou. Se Connie quisesse contar, era outra coisa. Saber que ele não teve uma infância normal aproximou-os mais ainda. Agora compreendia melhor a situação e se lastimava por ter agido como uma maluca. — Hugh se julga impenetrável, Julie, e deve ter-se irritado quando percebeu que você, alguém que ele mal conhece, pôde defini-lo com tanta precisão. — Obrigada por ter vindo conversar comigo. Connie, eu m sinto grata por sua amizade. Na primeira oportunidade vou m desculpar com Hugh. Eu estava errada, reconheço. — Sim, é isto mesmo que deve fazer para acabar com esta tolice. Verá que Hugh no fundo não é mau. Julie passou a mão no cabelo para ajeitá-lo melhor e foi par o hall, onde subiu a escada cheia de esperanças.

CAPÍTULO V 22


Pedras na janela a despertaram. Julie espreguiçou, para depois olhar o relógio na cabeceira. Seis horas. Era cedo! Novamente o barulho forte, e ela achou melhor abrir a janela para ver o que estava acontecendo. Richard, mais animado que nunca, deixou cair no chão o punhado de areia que pretendia atirar outra vez para acordá-la, “A gente começa a amar Por simples curiosidade, Por ter lido num olhar Certa possibilidade. E como, no fundo, a gente Se quer muito bem. Ama quem ama somente Pelo gosto igual que tem. Pelo amor de amar começa A repartir dor por dor, E se habitua depressa A trocar frases de amor. E, sem pensar, vai falando De novo as que já falou, E então continua amando Só porque já começou.” —Vá embora, me deixe dormir. — Você é muito mal-humorada de manhã, Julie. Não gosta de Paul Geraldy? — Gosto, mas você sabe que horas são? Ainda posso ficar na Cama por mais uma hora. O que está fazendo tão cedo? Richard deu uns passos para frente e para trás, como se dançasse ao som de uma música que só ele ouvia. — Aprecio as coisas boas da vida. Por que não vem comigo ver o nascer do Sol? — Não, muito obrigada. — Ela tremeu quando uma brisa fria passou. — Porque me acordou? — Meus pais vão para Hahei hoje e poderá tirar uma folga. Que tal irmos à praia Cook? — Acha que o dia vai ser ensolarado? — Ela olhou para o céu carregado de nuvens. — Vai sim, está muito frio para chover. —Está bem, vamos. — Sabia que não ia recusar. Prometo que vai se divertir. — Já falou com o resto do pessoal? Richard não respondeu e começou a se afastar. — Ei, Ricky, você fala com eles ou quer que eu os convide? 23


— Que outros, minha doce Julie? — Richard desapareceu. assobiando alegremente. — Bobo! — Julie fechou a janela e por alguns minutos se aninhou na cama quente. Tinha caído na armadilha. Evitava ficar a sós com Richard e havia facilitado. No entanto, sabia como agir. Depois de enfrentar Hugh, na noite passada, sentia-se capaz de resolver o pior problema. Ela armara-se de toda sua coragem para depois da conversa com Connie ir até o quarto dele. Ao subir a escada que levava ao sótão, cada degrau que vencia, punha-a mais nervosa. Bateu na porta de mansinho e Hugh a abriu, e cruzou os braços. —Posso entrar? — Não. Sua determinação enfraqueceu, mas ela tentou outra vez. — Por favor… vim para… quero. — Sei porque está aqui, Julie. Por que não fala o que deve e termina com isso de uma vez? — Você não está facilitando as coisas. — E deveria? Julie lutou contra suas emoções. Era difícil conservar-se humilde diante de tanta arrogância. No entanto, sabia que essa atitude brava e superior era a maneira de Hugh se defender. Ele custava a confiar nas pessoas e não ia permitir que ela se intrometesse em sua vida. Ela precisava ter calma. — Não posso entrar para conversarmos? Está frio aqui fora e... — Não, Julie. Vá direto ao assunto. — Se já sabe o que quero, não preciso dizer nada, não é? — Prefiro ouvi-la. — Foi tudo um mal-entendido! — Ela começou a falar depressa, dizendo coisas que para Hugh não tinham nexo: — O bolo não era para sua convidada, por isso tive que puxar você para dentro da piscina. A culpa é de Richard que… — Preciso trabalhar e não vou ficar aqui ouvindo uma conversa sem sentido. Julie respirou fundo várias vezes até se controlar. Baixando os olhos, disse: — Quero apenas lhe dizer que sinto muito. — Está bem. Aceito suas desculpas. Boa-noite! — Ainda não acabei de falar. — Ela o agarrou pelo braço antes que ele sumisse dentro do quarto. — Não? Acho que já a ouvi pedir desculpas. 24


— Mas ainda não lhe expliquei a razão do que aconteceu. Eles se olharam fixamente e Julie teve a impressão de que Hugh estava mais tranqüilo. —Talvez eu me arrependa por isso, mas… vou ouvi-la. Julie contou a história toda, e ele escutou até o fim sem fazer um único comentário. Então exclamou: — Meu Deus! Já não é suficiente termos um brincalhão na família? Você quer ser a segunda? Ela percebeu descontração em seus olhos e palavras. — Agora vai esquecer tudo, Hugh? — Você me julga capaz de dizer não? — Não tinha certeza. Às vezes é tão misterioso! Pensei que quisesse aproveitar a ocasião para se livrar de mim. — É essa a opinião que tem a meu respeito? Um homem duro, cruel e vingativo? —Não exatamente, mas por que não me deixa entrar para que possamos conversar e nos entender melhor? —Não é necessário. —Qualquer outra hora então? —Talvez. Boa-noite, Julie. — Até amanhã e obrigada por não se zangar pelo banho. Ela ficou tão contente por aquele episódio estar encerrado que ficou na ponta dos pés e deu um beijo no rosto de Hugh. Impressionada com a própria audácia, ela desceu a escada correndo e só parou quando se sentiu em segurança na cozinha. Naquela noite, quando Steve apareceu para o bate-papo de costume, ela não tinha o que dizer, seu pensamento vagava longe. Por duas vezes Steve reclamou que ela não o escutava e, na terceira, deixou um copo cair para lhe chamar a atenção. Julie ficou impressionada com Steve, o rosto pálido como cera, a expressão frustrada. Ela se desculpou e começou a recolher os cacos. Não entendia aquela reação tão violenta apenas por estar um pouco distraída. Ainda com preguiça, Julie acabou levantando. Na hora combinada esperou por Richard à porta da frente. —Não podemos ir nesse carro — ela comentou ao vê-lo chegar com o pequeno MG. — Não há lugar para todos. — Por que não’? Sentamos na frente e pomos a cesta de piquenique no chão. — E nós, onde ficamos? — Rosalind surgiu seguida de Olivia e Steve,que carregava outra cesta.

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— No meu carro cabe todo mundo — Steve propôs. Julie notou a irritação de Richard. Estava aborrecido por ela ter chamado os outros para o passeio, quando esperava ficar a sós com ela. Ótimo! Ricky merecia uma lição. — E Charles? Não o convidou também? — Richard perguntou danado da vida. — Claro que sim, mas ele preferiu ficar. Deixei preparados alguns sanduíches de “carne louca” para ele. Julie sentou ao lado de Steve e se lembrou de Charles, distraído com o fusca, cujo motor havia desmontado para limpar — Todos prontos? — Steve perguntou sorrindo. Para alívio de Julie ele parecia esquecido do incidente da vés pera e se mostrava alegre e bemhumorado. Chegaram à praia e estenderam a toalha na areia macia. A moças tiraram a comida das cestas e Olívia, mais falante do que nunca, não conseguia dizer três palavras sem mencionar o nome de Logan, sua mais recente paixão. — Quem é esse tal Logan? Julie perguntou a Rosalind quando ficaram sozinhas. — Nunca ouviu falar dele? É o playboy mais conhecido da região. Podia ser avô de Olivia. Deve ter perto de quarenta e cinco anos, mas Olivia o acha o máximo e se julga apaixonada por ele. Espero poder convencê-la de que isso não dará certo. — Não gosta dele por causa da idade? —Não só por isso, mas porque é um farsante. Quer influenciar a carreira de Olivia, quando, na verdade, não possui o menor senso crítico. Além disso, é mulherengo e já me passou uma cantada. — Acho que você está com ciúme ou inveja. Não tem sentido o seu preconceito bobo, além do mais, a decisão tem que ser de tua irmã. Ela é que sabe o que é melhor para ela. —É… Você pode ter razão. Mesmo assim, gostaria que Hugh conversasse com ela. — Hugh?! Pensei que ele não se envolvesse com os problemas da família, —Hugh procura se manter a distância, mas quando precisamos dele, sempre nos ajuda. Hugh dava mesmo a impressão de ser solidário. Tinha o dom da iniciativa para intervir onde fosse necessário. Porém, quando se tratava de seus próprios problemas, teria a quem recorrer? Ou preferia se fechar dentro dc si mesmo’? A não ser por eles, a praia estava vazia. As moças se divertiam comentando sobre a próxima peça em que iam tomar parte e Richard ainda aborrecido atirava pedrinhas na água e observava os círculos que se formavam. — Quer dar uma volta. Julie? —Steve convidou. — Gosto muito de história e posso lhe mostrar onde o Capitão Cook ancorou seu navio, o Endesvour, em 1769. — Vou sim. Alguém mais nos Ninguém se animou. Eles seguiram pela orla, enquanto Richard os olhava com ciúme.

acompanha? 26


— O que há com meu irmão? — Steve perguntou assim que se afastaram. — Ele está aborrecido porque tinha planejado o passeio só comigo e eu convidei você e suas irmãs. Não sei por que. de repente, Richard ficou tão apaixonado. Somos amigos há seis anos e, se nos amássemos. já teríamos notado antes. —Ricky é assim mesmo. Ele tem esses ataques de paixão. — É por isso mesmo não quero estragar a nossa amizade, confundindo-a com qualquer outro sentimento — Não acredita que ele esteja realmente apaixonado? Você é bonita, inteligente, charmosa. — Obrigada — ela sorriu com o elogio. — Conhecemos bem Ricky e sabemos quantas vezes já se disse apaixonado sem nunca levar nenhuma mulher a sério. Talvez ele agora esteja sentindo atração por mim, na falta de outra companhia feminina. O problema é que ele não suporta ser rejeitado. Aliás quem suporta? Steve mudou completamente ao ouvi-la. Ficou tenso, com a expressão angustiada. Sentou-se na areia, as mãos apertadas uma contra a outra, demonstrando o seu nervosismo. Julie prendeu a respiração, preocupada. Será, que havia algo de errado com ele? — Steve? — Você sabe, não é? — Acho que sim. Não quer conversal sobre isso? Ainda não é um caso grave, é’? — Depende do que acha grave. Tenho tomado estimulantes.Sei que estou me tornando dependente mas precisava de algo que suprisse minha crise de criação, minha angústia e solidão — Está tomando grande quantidade dessas drogas? — Agora, nada. Por que acha que estou neste estado, às vezes bem, outras insuportável? Faz três semanas que não tomo anfetamina, mas nem por isso a situação está mais fácil! Steve começou a contar como tinha começado, e tudo aquilo que estava engasgado na garganta veio para fora. Falou sobre os ensaios exaustivos, as gravações, as noites sem inspiração para criar novas canções para o grupo. À medida que o tempo passava ele ia lançando mão de novas doses de excitantes para se manter acordado e estonteante no palco. Depois engolia soníferos para descansar, até que se formou um círculo vicioso qu já não conseguia superar. — Minha voz se ressentiu, não só pela exaustão como pelas drogas. Nem lembro direito o que aconteceu em nossa última tournée, mas não tinha como fugir dela. Eu pareço viver um pesadelo e há muito tempo não componho uma música que goste. Não posso pensar,nem me concentrar,e não tenho mais estímulo para nada. — Alguém sabe disso? — Julie perguntou, pois para ela a falta de apetite, os nervos supersensíveis, períodos de letargia alternados com muita inquietação, tudo isso poderia ser interpretado como resultado de extrema fadiga e não do uso de drogas. — O pessoal do grupo desconfiou, é claro. Nas viagens ficamos todo o tempo juntos e é impossível fingir. Mas minha família não sabe, só você. — Não quer contar para seu irmão gêmeo? 27


— Nem para ele nem para ninguém. Meu pessoal não entenderia o porquê de minha atitude. Tenho que me virar sozinho. Se não tentar, se me apoiar em alguém, estarei apenas transferindo a dependência das drogas para uma pessoa. Julie não concordava. Todos precisavam um do outro, mas não ia discutir. Se ele procurasse a família tudo seria mais fácil. — Você já está no caminho de volta, Steve. Se há três semanas não toma nada, se possui consciência dos seus atos, isto já é uma vitória. — Espero que sim. Tenho medo de perder o controle, de nunca mais me livrar deste vício. Não sei se vou conseguir — Steve terminou a frase num soluço sentido. Julie segurou-lhe as mãos, abraçou-o com ternura, procurando mostrar seu apoio. Tinha pena dele, de sua luta interior, mas admirava-lhe a coragem de aceitar os seus limites. — Vai conseguir, tenho certeza. Na minha opinião devia contar tudo para seus pais. Eles te querem muito e poderiam ajudá-lo. Mas, se não quiser e precisar de um abraço amigo... estou aqui. — Obrigado, Julie. Não sei por que consigo me abrir com você e não com os outros. Agora compreendo a razão de Richard estar tão apaixonado. Você é a melhor das criaturas. Steve tocou os lábios de Julie com um beijo, que buscava compreensão. Julie deixou-se beijar, vertendo uma lágrima de pena. Eles voltaram para junto dos companheiros. Pelo jeito, eles tinham visto a troca de carinhos, porque as moças fizeram comentários maliciosos e Richard ficou ainda mais emburrado. Só alguns dias depois Julie compreendeu que se metera numa enrascada. Agora tinha os dois gêmeos atrás dela, embora por motivos diferentes. Com Richard fora direta e cortara as intimidades, mas com Steve. Como podia recusar apoio quando ele estava tão frágil e vulnerável? Para escapar um pouco do convívio com os gêmeos, Julie decidiu ir até a vila fazer as compras da casa. Poderia se demorar até a hora do jantar quando a família já estaria reunida e seria mais fácil evitar qualquer um dos dois. Cruzou o quintal para ir à garagem pegar o fusca,quando se lembrou de que ele estava desmontado. E agora? Tinha desistido de sair quando viu o carro de Hugh. — Vai até a vila,Hugh? Poderia me dar uma carona? Preciso fazer umas compras. — Estou a caminho de Whitianga. —Ah... —Não pode fazer as compras por lá? — Posso sim, mas preciso voltar a tempo de preparar o jantar. — Tudo bem. Entre. Ele contornou o jardim e seguiu para a estrada. — Sabe, Hugh, foi este carro que me impediu de acreditar que você fosse um membro da família. 28


— Por quê? Que tipo de veículo acha adequado à minha personalidade? — Um Mercedes,um B.M.W. — Compreendo. Sólido e confiável. — Exatamente. Não pude associá-lo a um carro esporte,veloz e perigoso. Hugh a olhou por um instante e depois voltou a se concentrar na estrada. — Sei que seu nome é G. B. Hugh Walton. O que quer dzer o “G” e o “B”? — George Bernard. — Nossa! Sua mãe devia gostar muito de George Bernard Shaw! — Duvido que ela tenha lido uma peça de teatro em toda sua vida. Julie hesitou. Aquela afirmação mostrava um certo ressentmento contra a mãe. Por quê? O que faltaria nela? Inteligência ou educação escolar? Julie gostaria muito de saber. — Gosto do nome Hugh. Ele é bonito. Só não combina com você. Hugh dá idéia de um homem menor, mais delicado. — Tem uma certa obsessão por altura, não, Julie? — É verdade, talvez por ser baixinha. — Os melhores perfumes aparecem nos menores frascos. — É o que dizem, mas também os venenos mais fortes — ela riu e olhou para ele, curiosa por descobrir se ele a julgava um perfume inebriante ou um veneno letal. Um sorriso alegre iluminou o rosto de Hugh, afastando sua sisudez característica. Os olhos se tornaram brilhantes e a expressão severa sumiu. — Pare o carro — solicitou Julie. — O que aconteceu? — ele assustou-se. — Nada, apenas pare. Hugh parou no acostamento e olhou para ela, interrogativamente. —Preciso de tempo para ver você sorrir, Isso é tão raro! Hugh não se aborreceu. Ficou feliz com o carinho demonstrado por ela. Para ele, o mundo era rotineiro, sem grandes emoções e a impulsividade de Julie arrancava-o desse marasmo. — Talvez esteja enganada,mas acho que por trás dessa aparência brava, você tem um coração de manteiga. — Isso é uma tese e, como toda tese, precisa ser demonstrada— Hugh falou em tom catedrático, pondo o carro em movimento. 29


Julie estava feliz. Tinha conseguido um grande avanço. As dúvidas e desconfianças tinham ficado para trás e seu relacionamento com Hugh havia se estreitado. Pararam em frente ao correio e combinaram que cada um cuidaria de seus compromissos, encontrando-se dentro de duas horas. — Vou aproveitar para comprar peixe — Julie disse. — Não se incomoda de levar o pacote? — Pode comprar. Poremos o embrulho no porta-malas para não sentirmos o cheiro. Julie foi até a rua principal, olhou as vitrinas e depois seguiu até a praia,onde chegavam os barcos dos pescadores. Ficou olhando a distância, até que um deles atracou. Havia boa variedade de peixe e ela comprou o suficiente para o jantar. —Tudo isso é para nós? — Hugh se admirou ao vê-la carregando a sacola cheia de embrulhos. —O peixe estava fresquíssimo e tenho boas receitas. Não vai atrapalhar, não é? Ou preciso pedir carona? — Está acostumada a pedir, não é? — Por que não? Novamente um sorriso leve descontraiu o rosto de Hugh. “Que bom!”, pensou Julie. Ele estava aprendendo a ver o lado divertido das coisas! Iam se dar bem! Voltaram para casa sem pressa de chegar, aproveitando o crepúsculo. Sem notarem, a conversa se voltou para a família Marlow. —Está judiando de meus irmãos, Julie. — O quê? —Isso mesmo. Fez com que os dois se apaixonassem por você e agora os mantêm a distância, sem se definir por um ou outro. Como Hugh sabia disso? Ele a andava espionando? Seguindo seus passos? —Namorar é muito divertido e faz parte da vida, mas não estou interessada em nenhum deles, assim como eles não estão em mim. Apenas brincamos. — Talvez seja um jogo para você, mas não para eles. Não nota a animosidade que existe entre os dois? — Não é nada sério, Hugh. Richard e Steve são gêmeos e se dão muito bem. — Justamente por serem gêmeos sempre houve muita competição entre eles. Não devia incentivar essa disputa e,se não quer nenhum, ponha a situação em pratos limpos. — Eles também não me levam a sério. — Você está redondamente enganada. Richard se envolve muito com o trabalho, será Romeu na próxima peça, e vê em você sua amada Julieta. Quanto a Steve, tenho a impressão dc que ele está atravessando uma crise e se apoia em você.

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Como Hugh estava a par do que se passava com os irmãos se praticamente não convivia com a família. Intuição? Sagacidade? — O que sugere que eu faça. Hugh? —Controle seus instintos. Julie ficou vermelha e indignada. —O que quer dizer com isso? Que eu ando por aí, seduzindo todos os rapazes que encontro? Pois é bom que lhe diga que, se você desse um pouco mais de atenção a seus irmãos. nenhum deles trataria de se agarrar a mim. Por que não conversa com eles e tenta ajudá-los em seus problemas? Ou é tão egoísta ou superior que só pensa em seus tratados de direito, que não consegue descer do pedestal em que vive para se misturar com o resto dos mortais? Hugh não respondeu e continuou a dirigir. — Diga alguma coisa, seria muito melhor discutir o assunto a ficar parado, imóvel como uma múmia. — Chega, Julie! — Chega, nada! Estou dizendo a verdade. Se seus olhos não se movessem diria que estava morto. Onde está sua vida? Nos livros? Naquele sótão isolado? Ou com a morena robotizada? — Já chegamos. Julie. Vamos descer. Ela nem tinha percebido. Imediatamente desceu do carro, mas voltou-se para dizer: — Você não sabe o que é amor, Hugh, portanto não tente me aconselhar no assunto. Julie bateu a porta do cano, com raiva. Foi então que ouviu um berro. Quase desmaiou de susto ao ver que tinha prendido os dedos de Hugh. — Meu Deus! Ela tornou a abrir a porta e viu os dedos dele amassados. No mesmo instante as unhas de Hugh ficaram roxas. A dor devia ser horrível, insuportável. — Deixe-me ajudá-lo. — Não me toque — Hugh gritou. — Nem chegue perto de mim. — Venha comigo até a cozinha. Vou pôr gelo para melhorar a dor. — Pode deixar que eu mesmo faço isso — ele gemeu, segurando a mão machucada com a outra, mal contendo a dor. —Sinto muito, Hugh. Quando estou zangada, não penso direito. — Você não pensa nunca. Não sei onde vou arranjar um lugar para ficar livre de você! —Na cozinha. Lá nunca me acontecem acidentes. Por favor, Hugh, deixe-me ajudá-lo. 31


— Não. Vá embora! — Hugh se dirigiu para casa e ela quis acompanhá-lo. — Não, Julie. Vá embora. Fiquei longe de mim! —Não vou machucá-lo. De que tem medo? — De que me mate. Só falta isso! — Ele andou mais depressa e sumiu dentro de casa. Julie ficou diante da porta, louca de vontade de entrar e cuidar dele, mas não ousou. Hugh estava furioso e não queria deixá-lo ainda pior. Voltou para o carro e pegou as compras. — Eu te ajudo com os pacotes —Michael Marlow apareceu e quando viu o rosto dela transtornado, se assustou. — O que aconteceu? Onde está Hugh? — Lá dentro. Fechei a porta do carro na mão dele. — Ele está bem? — Deve estar doendo horrivelmente, mas recusou minha ajuda e não deixa que eu entre na cozinha. — Bem, se ele ainda pode mandar, não deve estar tão mal assim. — Mas eu poria gelo e… — Hugh sempre foi assim, Julie. Quando pequeno, toda vez que se machucava recusava o auxílio dc Connie e se retirava para o quarto, como um animal ferido. Levou muito tempo para que Connie conseguisse fazê-lo aceitar sua ajuda. Daqui a pouco vou ver como ele está e o que podemos fazer para aljviar sua dor. Julie concordou com um gesto de cabeça, sentindo um nó na garganta que a impedia de falar. — Você também não parece muito bem. Está pálida e acho que precisa de um golinho de conhaque para se refazer do susto. Venha comigo. Ela se deixou levar, a mente completamente voltada para Hugh. — Não sei o que há comigo! Parece que a todo instante ocasiono acidentes, principalmente com Hugh. Mas desta vez foi pior! Ele disse que eu estava tentando matá-lo! Ela não agüentou mais. Ali mesmo, com os braços cheios de pacotes, começou a chorar copiosamente, o corpo sacudido por soluços. Michael, acostumado a lidar com mulheres temperamentais por causa de sua profissão, achou que o melhor era deixá-la chorar para que se livrasse de toda tensão. Abraçou-a, oferecendo- lhe o ombro para que ela encostasse a cabeça. Acariciou os cabelos sedosos, falou palavras de encorajamento, mas ficou pensando… pensando.

CAPÍTULO VI

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Hugh não desceu para jantar naquela noite. Julie se consumia de remorsos, imaginando que ele sofria uma dor atroz. Ficou preocupada e,na primeira oportunidade, perguntou a Michael como o filho ia passando. — Está melhor, não se preocupe. — Está doendo muito? — Ele não falou, mas está muito irritado. —Não sei como consigo me meter nessas encrencas — ela lamentou-se. — Isso acontece. Em compensação, com meus outros filhos você está se dando muito bem. Julie sorriu, embora intimamente soubesse que não era bem assim. Seu relacionamento com Charles era ótimo, mas com os outros dois... Richard continuava tentando conquistá-la e com Steve… tinha receio de se transformar no apoio que ele recusava receber da família. Por sorte tinha recomeçado a compor, o que a deixou feliz. Porém ele a chamava de musa inspiradora, o que a assustava. Por que não conseguia conservar apenas a amizade dos dois irmãos, sem que eles quisessem algo mais? Devia se livrar dessa situação antes que ela se agravasse. Era o que faria. Por muitos dias Julie procurou evitar os irmãos, mas eles sempre arrumavam um pretexto para estar junto dela. Uma tarde, vieram convidá-la para ir até a praia das Águas Quentes. Julie pensou por um instante antes de responder. Achou então que esta seria uma chance de falar francamente com eles, cara a cara, de uma vez por todas. Acabar com aquela situação consrangedora. Julie se instalou no carro de Steve, ficando no meio dos dois. Conversaram alegremente até chegarem à praia. Muito animados, os rapazes pegaram suas pás para cavar a areia. Com a maré baixa, eles escolheram um ponto pouco acima para fazerem o buraco que se encheria de água quente. Cavaram com determinação e pareciam competir. cada um tentando ser mais rápido que o outro. À medida que o buraco se aprofundava, foi se enchendo de água quente. O vapor se elevou para o ar frio e o buraco ficou cada vez mais largo e fundo. Imediatamente Julie tirou as botas e as meias e colocou o pé na água. Não podia acreditar que naquela tarde fria e cinzenta fosse possível ficar de maiô dentro da água. — É quente mesmo! — ela exclamou. — Não lhe disse? — Richard falou em tom de vitória. — Vá tirar a roupa enquanto alargamos o buraco — Steve aconselhou. Julie foi até as cabinas de madeira, tirou a roupa lá e ficou só com um minúsculo biquíni. Embrulhou-se na toalha mas, mesmo assim, só de chegar de volta à praia ficou arrepiada. Num instante estava dentro do buraco. Suspirou de alegria ao sentir o calor se irradiar por seu corpo. Aquela mistura de ar frio e água quente era deliciosa e completamente nova para ela. Em pleno frio podia ficar com o corpo molhado e não se enregelar.

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Richard e Steve foram para os vestiários e pouco depois voltaram, correndo para escapar do frio. Richard entrou primeiro e se colocou ao lado de Julie. Em compensação, Steve se acomodou em frente dela, de modo que suas pernas e pés se tocavam sob a água. Julie fingiu não notar a competição entre os irmãos para acercar-se dela, preparando-se para abrir o jogo com eles e assim encontrar uma solução para todos. — Quero muito falar com vocés. Os dois a olharam com interesse. — Não vou ficar aqui ouvindo vocês dois brigarem e... — Não fui eu que comecei — Richard reclamou. — Deve estar lembrada de que a idéia de vir aqui foi minha. Não convidei Steve, que veio porque quis. — Julie se dá melhor comigo do que com você. — Agora foi a vez de Steve retrucar. — Você a deixa louca com seus gestos teatrais e ensaiados, como se estivesse no teatro e não vivendo de verdade. —Vamos parar com isso? —Julie já estava cansada daquela briga. — Por que não perguntam o que eu penso, em vez de ficarem decidindo por mim? Vamos falar sério. Para começar, quero… — Estão se divertindo muito? Os três, espantados, olharam para cima e, através da nuvem de vapor viram Hugh, vestindo um grosso casaco de gola levantada, para protegê-lo melhor do vento. — Demais! — Richard respondeu, usando toda sua ironia. —Está maravilhoso! Steve concordou com o irmão, como há muito não acontecia. Julie ficou calada. Estava ali, quieta, a boca ainda aberta de espanto. Parecia uma sereia, a água escorrendo por seus seios insinuados pela pequenez da parte superior do biquini. Seus ombros mal tocavam a superfície e o cabelo, escurecido por estar molhado, se ajustava à cabeça, pondo em evidência as linhas do seu rosto bonito, e os olhos arregalados de surpresa. — Aconteceu alguma coisa? —ela por fim conseguiu articular preocupada. — Por isso veio até aqui? — Tenho recados urgentes. — Para quem? — os gêmeos falaram a uma só voz. — Zak.. — Hugh olhou para Steve, que estremeceu ao ouvir o nome de seu empresário —... quer falar com você. Precisa discutir detalhes de seu novo LP. Parece que algumas músicas terão que ser regravadas. — Ele que espere um pouco. Estou de férias. Julie suspirou feliz. Que bom! Steve havia superado a ansiedade. Era um bom sinal. Já não estava tão mal como supunha. — Zak diz que não. É melhor ligar para ele, Steve. — Hugh pôs as mãos no bolso do casaco. — Também tenho um recado para você, Richard. O diretor do filme telefonou, dizendo que precisa falar 34


urgentemente com você. Houve mudanças de horário. Pergunte a Olívia, que recebeu os telefonemas e sabe todos os pormenores. —Diabo! Logo quando a gente está se divertindo! —— O interesse próprio falou mais alto em Richard. — Você não se incomoda, não é, Julie? Podemos voltar aqui outro dia, talvez amanhã ou depois. —Infelizmente vamos ter que ir, Julie. — Steve já saindo da água e se embrulhava na toalha. — Julie não precisa acompanhá-los. Por que ela também vai perder a tarde? Depois eu a levo de volta — Hugh disse. — Mas... — Ora... Os gêmeos tentaram reclamar, mas Hugh continuou falando, agora se dirigindo diretamente a ela. — Você não se incomoda, não é? — Eu… não… é… Gostaria de ficar — gaguejou. — Então está resolvido. Vão indo rapazes. Podem deixar que tomo conta de sua namorada. Hugh olhou para ela e sorriu. Fazia tempo que Julie não o via contente e por isso sorriu também. Os gêmeos se afastaram correndo na direção do carro. —Você surgiu no momento certo. Hugh. Não sei como teria me saído com eles. Estavam tão briguentos! — Eu a preveni, certo? —Verdade, mas... Ei! Aonde vai? — Ela levantou depressa, a água deslizando por seu corpo bem torneado. — Vou até lá em cima, para tirar minha roupa. — Está… de maiô? ela perguntou assustada. — Posso lhe assegurar que sim e ainda acrescento que ele é bem mais discreto do que esse que está usando. A idéia de vê-lo sem as roupas convencionais a deixou excitada. Nas suas fantasias, já havia sonhado com isso. Viu quando ele se aproximava, a toalha nos braços, o peito descoberto a mostrar os. pêlos curtos, sobre o tórax queimado. As pernas longas e de músculos firmes moviam-se com graça, sustentando um corpo forte que sugeria segurança. A julgar pela aparência, jamais se diria que se tratava de um homem cheio de problemas. Aprisionado na redoma do autocontrole, Hugh parecia um animal em plena selva, à vontade, descontraído, consciente do seu poder. Julie sabia que aquela imagem era falsa. Com toda a sua fragilidade feminina, tinha mais força que Hugh. Ela não resistiu a esses pensamentos e inverteu a situação. Assobiou um sonoro fiu-fiu. 35


Ele entrou na água e esticou as pernas que tocaram as dela. Julie estremeceu com o contato, sentindo aquele muito mais íntimo do que o outro, quando partilhava a piscina com os gêmeos. O vento frio havia parado e uma fina garoa começou a cair. Julie inclinou a cabeça para trás para sentir as gotas frias sobre o rosto. Que contraste aquela sensação, ao mesmo tempo quente e fria! —Delicioso! — Julie exclamou e fechou os olhos. Quando os abriu, notou que Hugh a observava. — Por que veio trazer os recados, Hugh, se foi Olívia quem recebeu os telefonemas? — Eu me ofereci para vir. Por coincidência estava embaixo, descansando um pouco. — O grande Hugh, o trabalhador incansável tirando uma folga? É inacreditável! — Eu mereço, não? Já esqueceu que estou acidentado? — Só agora Julie reparava em seus dedos ainda enfaixados. —Dói muito? —Não, mas lateja um pouco. Michael me contou que você até chorou depois que me prendeu a mão. —Verdade. Fiquei tão aborrecida por ter agido como uma idiota e por não poder ajudá-lo, que só encontrei alívio nas lágrimas. Fiquei horrorizada de pensar que poderia ficar mutilado. Já pensou, um escritor que não pode escrever? — Por sorte sou destro e você prendeu minha mão esquerda. No entanto, costumo datilografar meus manuscritos e, para isso, preciso de ambas as mãos. — Oh… Quanto tempo acha que vai demorar para ficar bom? —Uma semana, talvez um pouco mais, Os dedos estão bem inchados. —Sinto muito se atrapalhei seu trabalho! No entanto talvez seja bom tirar uma folga. Viu como já começou a aproveitá la? Pode até bancar o cavalheiro galante e me salvar de Steve e Richard. — Não teria escapado sozinha? — Não sei. Não quero lançar um contra o outro e, na verdade, é difícil conversar com eles com calma e franqueza. Eles não param dc brigar. O que devo fazer? — Está pedindo minha opinião e ajuda? — Hugh parecia espantado. —Estou. — Bem, por que não introduz um outro homem na história? —Mais um? Isso não seria complicar o caso? — Não, se este outro foi forte e bastante seguro, suficientemente capaz de impressionar os gêmeos e fazê-los desistirem de você, para sempre. Julie prestava atenção no que Hugh dizia, mas sentia que por trás daquelas palavras havia uma segunda intenção. Só não podia descobrir qual.

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— Já que está me aconselhando, que acha de me dizer onde encontro um homem disponível? Tem o Charles,mas provavelmente eu seria acusada de seduzir menores. Não há mais ninguém por aqui. — Está sugerindo que eu não sou homem’? Julie engoliu em seco. — Sim, claro, mas... eu quis dizer,.. adequado. —Não sou adequado? Por causa de meu tamanho? Julie o olhou fixamente para depois rir com vontade. — Eu e você? Que absurdo! —Sei que me acha estranho e engraçado, mas daí até ser um absurdo, a distância é grande. —Nao é você, mas nos dois juntos. Julie não conseguia controlar o riso. Já imaginou? Eu e você! Tem que admitir que é engraçado! Depois de tudo o que aconteceu! — Eu não acho! — Não mesmo? —Se continuar a rir desse jeito vou ter que lhe provar que nada a meu respeito é absurdo ou ridículo. Julie parou de rir no mesmo instante, impressionada com a ameaça velada. Reparou em Hugh. que parecia ofendido e disposto a mostrar sua virilidade. —Não pode estar falando sério. Hugh. Você e eu. Ninguém iria acreditar.É ridículo! —Por quê? Nunca ouviu dizer que os apostos se atraem? Todos vão acreditar que estivemos lutando contra um sentimento que nos dominava e que agora resolvemos ceder. Podemos fazer com que acreditem. Não se esqueça de que minha família está acostumada a viver romances no palco e nas telas e acreditarão naquilo que lhes mostrarmos. Julie não entendia aquela mudança de atitude Hugh se revelou sempre tão distante que estranhava esse seu modo de agir. —O que está quereno?Se vingar de mim? Não vejo outra razão para esta proposta. Hugh a olhou por um breve instante para depois segurála pelo braço, chegando mais perto e impedindo-a de se mexer. Prendeu as pernas dela entre as suas, pressionando-a contra a borda do buraco, —O que está fazendo? — Julie estava assustada e ao mesmo tempo ansiava aquela proximidade Quantas vezes já se tinha perguntido como seria ficar perto dele, tocar sua pele quente, sentir a força do seu corpo. — Vou tirar esse ar de riso de seu rosto. Não...gosto que… riam,.. de mim. —As palavras eram intercaladas com beijos rápidos que iam das orelhas até o pescoço delicado. —Hugh! — Isso não podia estar acontecendo! Devia ser um sonho! —Vou acabar rindo mais, tenho cócegas, principalmente no pescoço. 37


— E na boca? Julie não chegou a responder Hugh deu-lhe um beijo forçando-a a abrir os lábios, ela esqueceu o motivo do riso e entregou-se sem vacilar, gozando daquele beijo, Único e irresistivél. Instintivameite deitou a cabeça para trás e movimentou a boca contra a dele, encorajandoo a continuar Hugh passou a mão pelo pescoço dela, puxandoa para mais perto, fazendo os dois corpos se aproximarem. Ela sentiu o contato com os músculos rijos e se arrepiou,Hugh sabia beijar como ninguém! Sua língua e lábios possuiam vida. Roçavam,pressionavam,descobriam o interior úmido de sua boca, provocando-a com tal intensidade que ela não se conteve de volúpia Julie podia sentir as carícias leves que Hugh fazia em suas costas, subindo as mãos por seus ombros arredondados e depois descendo até os quadris ondulantes que se moviam levemente como se levadas pelo movimento da água. Hugh soltou um gemido de prazer, fazendo a água oscilar ao seu redor. O som e as vibrações a atingiram e lhe deram uma Sensação estranha como se fizesse parte do corpo dele. Gemeu também, e agarrou os cabelos escuros de Hugh,entrelaçando os dedos neles, numa tentativa de fazê-lo parar com aquelas provocações que a deixavam alucinada. Os dois deslizaram na água. Apesar de grande, Hugh era ágil e a tocava com delicadeza. Julie parecia flutuar numa nuvem de magia. Pouco a pouco ela se afastou e, solta, colocou os pés no chão. Tinha a impressão de ter ido ao céu. Estava leve, quase etérea. — Onde aprendeu a beijar deste jeito? — perguntou para ter certeza de que não estava sonhando. — Não gostou’? Ele estava brincando? Não tinha sentido que ela quase derretera’? — Quando tirou seu diploma de advogado também fez curso sobre beijos? Hugh riu, mais com os olhos do que com a boca, maliciosamente. — Não, mas consegui provar que vai ser fácil fazer a família acreditar quando dissermos que estamos apaixonados, não concorda? As palavras esfriaram o entusiasmo de Julie. Preferia pensar que Hugh a tivesse beijado num impulso de paixão e não para lhe provar alguma coisa. — Tenho que admitir que sim, no entanto, e pergunto que vantagem você vai levar nisso. Está se oferecendo apenas para me livrar dos gêmeos ou... por quê? — Eu... — Hugh baixou os olhos e se concentrou por um instante no biquíni que escondia formas femininas tão bonitas. — Preciso de sua ajuda. — Ajuda? Para quê? — Estou com o tempo contado para entregar meu livro para a gráfica. Mando cada capítulo que fica pronto e assim já vão revisando uns enquanto preparo outros. Não posso me atrasar e preciso desesperadamente de uma datilógrafa. Poderia bater à máquina para mim, enquanto estou 38


impossibilitado? — Hugh ergueu os dedos enfaixados. — Poderia até matar dois coelhos com uma só pedrada. — O que quer dizer com isso’? — Você datilografa meu livro à noite e deixa que a família tire suas próprias conclusões. — Eles não vão estranhar o fato de você se envolver com um dos empregados 2 Os gêmeos sempre comentaram como você é sério e reservado. —Deixe-os comigo, —E se tentarem entrar em seu apartamento e constatarem que estou apenas trabalhando? —Corno já lhe disse antes, ninguém entra em meus aposentos sem um convite expresso. Julie procurou pensar rápido ,Hugh era o tipo de pessoa que sempre se saía bem em seus empreendimentos.Podia confiar nele. Além disso era bom saber que ele precisava dela. “Precisava”, não desejava? Ele fora bem claro, ela que não tirasse conclusões precipitadas —Naturalmente vou lhe pagar um salário pelo que fizer — Hugh acrescentou —Nada disso, Ou faço ou você trate de arranjar outra pessoa, —Está bem, aceito como urna gentileza sua porque estou machucado, Agora era evidente que Hugh estava satisfeito Danado! Tinha conseguido o que queria! — Quando quer que eu comece? — O mais rápido possível, hoje mesmo. Vou levá-la para jantar. —Sabe que não posso sair. Esqueceu que sou a encarregada das refeições da família? —Você tem direito a uma folga semanal, não tem? Que tal tirá-la hoje? Mamãe e papai vão sair com amigos e os meus irmãos podem muito bem se virar na cozinha por uma noite. Julie ainda hesitou.Connie provavelmente lhe daria a noite de folga,principalmente porque ia sair com o marido Mesmo assim duvidava se devia aceitar o convite.Por que a hesitação? Por causa de seus deveres ou...por seu receio de ficar a sós com o homem que a fizera perder a noção do tempo e do espaço com um beijo’? —Está bem, — Ótimo. Então vamos voltar para casa. Enrole-se bem na toalha que o ar está muito frio. Depois corra até a cabina. — Sim, senhor — ela obedeceu satisfeita. Julie levantou num salto, se enrolou na toalha e correu pela praia. Mesmo assim estava tremendo de frio quando se fechou na cabina para mudar de roupa.

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Que sensação esquisita a de ficar na água naquela tarde fria e de ser beijada de maneira tão sublime. Era demais para um dia só!

CAPÍTULO VII

Julie retirou a folha da máquina de escrever. Felizmente tinha se entendido com a IBM de Hugh e até agora não fizera nenhuma bobagem. Ela ergueu o olhar e viu Hugh sentado na poltrona de couro em frente à lareira. A música de Bach enchia o silêncio com sua beleza e Julie olhou o aposento, que era grande e confortável, muito apropriado ao dono. A sala espaçosa estava decorada com sobriedade. Um estofado em tons pastéis formava o ambiente da lareira, completado pela cadeira favorita de Hugh. Uma pequena cozinha aparecia por trás de um balcão baixo de madeira polida, onde se alinhavam duas cadeiras. Devia ser ali que ele lanchava. Por trás de uma divisória vazada ficava a cama, enorme, com um colchão de penas que a tornava supermacia. Ao lado, ficava a porta do banheiro. Vários spots iluminavam os diferentes ambientes e três janelas panorâmicas ofereciam o cenário bonito do jardim bem-tratado. Um belo tapete persa cobria o assoalho de tábuas largas, dando aconchego ao aposento. Há três noites Julie vinha datilografando o trabalho de Hugh e, pouco a pouco, ele se tornava mais íntimo. Pelo menos, já não a considerava um pacote de explosivos. Ao ajudá-lo ela recobrou novamente seu equilíbrio emocional. Com a convivência, Julie reparou em como suas personalidades eram díferentes. Ela gostava mais de rock, ele de música clássica. Enquanto ela se divertia com grandes romances ele lia textos técnicos. Ela era uma socialista, ele um liberal. No entanto, essas diferenças pareciam complementá-los. Cada vez Julie o conhecia melhor. Sua inteligência e bom gosto a fascinavam, mas ela lhe mostrava a grandeza das pequenas coisas. E o plano estava dando certo. Richard e Steve, assim como o resto da família, acreditavam que eles estavam vivendo um caso de amor. Hugh era sempre tão reservado que somente um olhar, um toque no braço de Julie, um simples sorriso, tinha o efeito de beijos e abraços. Ela suspirou. Como gostaria de beijá-lo de novo. Lembrava com prazer a maravilhosa sensação de estar junto dele na praia. — Chega por hoje? — Hugh percebeu que ela tinha parado de datilografar. — Bem… já são dez horas, mas ainda não acabei o capítulo seis. — Hum… — ele resmungou. — Sou cozinheira e não datilógrafa, lembra-se? Julie levantou e foi para perto dele. Sentou no tapete ao pé da poltrona, deixando que o calor da lareira a envolvesse. Reparou que Hugh riscava e reescrevia partes do que estava escrito à máquina. — Não aprontei essas folhas ontem? Por que está mudando tudo? 40


— Não tudo, só alguns trechos. Pensei bem e resolvi modif icar uma frases. Isto faz parte do processo de revisão. Julie dobrou as pernas, segurou os joelhos com os braços e o olhou com carinho. — Você é um perfeccionista, Hugh. Acho que ninguém consegue corresponder às suas exigências, nem mesmo você. — A lei é uma eterna procura pela perfeição e justiça,e ela é a base de meu trabalho. — Se as leis fossem perfeitas e justas não haveria necessidade de advogados para interpretá-las — Julie desafiou-o. Ela adorava provocar o seu liberalismo burguês, embora dificilmente alcançasse uma discussão. Todavia, naquele momento, percebeu os sinais de cansaço no rosto dele. Pôs-se a distraí-lo para afastá-lo das tensões de um trabalho muito absorvente. —Eu disse que a lei é uma eterna procura, sei que é impossível fazê-la perfeita. Por algum tempo Hugh discorreu sobre o assunto, sinal de que estava cansado. Julie escutou, sem prestar atenção, embalada pela voz melodiosa do advogado. — Deve ser ótimo professor. Não me canso de ouvi-lo. Com razão Connie diz que é o “Arrasa Coração” da faculdade. — Nunca usa sua inteligência para assuntos mais sérios? Gosta de levar tudo na brincadeira? Julie endireitou o corpo. —E você não consegue reconhecer um elogio? Ouvi e entendi tudo o que disse. Embora me soe pura hipocrisia. A imparcialidade da lei é cega para ver a justiça e enxergar muito bem quando se trata de favorecer um dos lados no jogo do poder. Claro que minhas opiniões não são baseadas em estudos universitários. No entanto como você, eu também sei pensar. Muito embora lhe custe aceitar que uma cozinheira possa refletir. —Sei disso. Você é excelente no que faz. —Saiba você que cozinha, é uma ciência ,uma arte que requer disciplina e muita prática Não me subestime pelo que faço. Adoro preparar pratos sofisticados, é o meu trabalho. Ele me realiza e não sinto vergonha dele. Às vezes pode ser muito duro e cansativo, por isso mesmo não perco as oportunidades de me divertir e de dar risada. Temos razões de sobra para chorar neste mundo. —Concordo com você, mas o que me deixa aborrecido é que, muitas vezes você se diverte.., à minha custa. —Não pense assim.Muito pelo contrário! Admiro imensamente o que faz, sua inteligência sua dedicação ao trabalho, e acho que é por respeitá-lo tanto que tomo a liberdade de falar com você neste tom. Só ajo assim com pessoas que gosto e você é um alvo irresistível! Confesse, Hugh: Em seu íntimo você também gosta, não é? Até percebo um ligeiro sorriso em seus olhos. — Você me conhece tão bem assim? — Não, mas estou tentando. 41


Hugh sorriu, divertindo-se, Julie sentiu-se feliz e, num ímpeto, se ofereceu: — Quer que eu venha terminar o capítulo seis amanhã depois do almoço? — Não quero que se canse demais. — Nada disso. Prefiro estar aqui do que enfrentando meus dois admiradores lá embaixo, — A situação ainda não melhorou?Tive a impressão de que sim. Hugh estirou as pernas e Julie sentiuse atraída para tocá-las. Antes que suas mãos deixassem de obedecê-la cruzou as em redor dos joelhos. — Richard e Steve já não estão se pegando, mas em compensação, não me deixem em paz, curiosos por saber o que está havendo aqui em cima. Sou péssima para mentir e muitas vezes não sei como agir. — Você dá um jeito, tenho certeza. Mas, se puder, pode vir amanhã, ou quando quiser, desde que me avise com antecedência. — Para quê? Não gosta da companhia de outras pessoas? — Julie adoraria aparecer no apartamento a qualquer hora, para conversar, dizer alô, ou mesmo só para vê-lo trabalhar. — Sua companhia me é muito importante no momento, Julie. Pena que para você isto seja um tanto aborrecido. Aborrecido! Se ele soubesse o quanto gostava de estar ali com ele! —Não seja bobo, Hugh. Embora os textos sejam difíceis, me divirto com a facilidade com que os escreve. Você adora o que faz, não é verdade? — Sim. É um trabalho gratificante. — Por que á tão cuidadoso com as palavras? Por que não diz abertamente o que sente? Tenho certeza de que lhe acontece o mesmo que comigo e minha culinária. Vivemos um caso de amor, em que nos demos incondicionalmente, concorda comigo? — Mais ou menos... — Precisa ser mais sincero consigo mesmo, Hugh. Richard é de opinião que não se dedicou ao Direito Penal para não se envolver com as pessoas, mas não creio que seja verdade. Quando fala sobre seus livros, seu trabalho, você fica entusiasmado,seus olhos brilham, você parece outro homem. Isto não é uma expressão de amor? — Não sabia que minhas emoções eram tão visíveis. Preciso tomar mais cuidado. — Por quê? O que há de errado em mostrar o que sente? — No mundo em que vivemos, um bom advogado tem que ser enigmático e nunca demonstrar o que realmente pensa — ele explicou. —Talvez na sua profissão, mas se fosse mais explícito, tornaria minha situação mais fácil lá embaixo. 42


—O que quer dizer com isso? — Precisa ver o que ouço dos gêmeos. Constantemente eles me perguntam o que vejo em você, dizem que, com sua índole fria, vai acabar com minha jovialidade, que é velho demais para mim, que… que não pode me dar o tipo de amor que mereço. — Encontrou uma resposta para lhes dar, espero — Claro que sim. —O que disse? — Que sabe beijar como ninguém e que depois de provar seus lábios, nenhum outro homem poderá me satisfazer. Que sinto arrepios na espinha a cada toque seu… — Ela interrompeu-se ao ver Hugh sorrindo, Como ele ficava encantador descontraído! —É verdade! E, de qualquer modo, fiz Richard calar a boca e não ficar repetindo que você tem idade suficiente para ser meu pai. —Richard sempre foi exagerado e continua sendo. Não ligue para o que ele diz. Hugh levantou e deu a mão para ajudá-la a erguer-se. Julie ficou de pé, muito próxima a ele. O contato daquelas mãos a fez tremer, a proximidade daquele homem tão envolvente deixava-a quase sem fôlego. Tinha vontade de se encostar em seu peito, abraçá-lo, beijá-lo, sentir as mesmas emoções inebriantes que tinha vivido na praia. Mas se conteve e olhou para o velho carrilhão que ornava a parede, se afastando de Hugh. — Quase dez horas! Preciso preparar o chá da noite. Antes que ele respondesse, ela saiu da sala, com medo de mudar de idéia e se atirar nos braços dele. Jutie foi para a cozinha, pôs a água para ferver e colocou no forno os pãezinhos que tinha preparado de manhã. Ainda estava ocupada, quando Connie apareceu, seguida das filhas. — Vim preparar o chá, Julie. Pensei que ainda estivesse ocupada com Hugh. Ele não vai descer? Não havia o menor traço de repreensão na voz de Connie.Ela parecia achar natural que a moça estivesse com o filho. — Não, ele vai trabalhar mais no livro. — Agradeço muito o que tem feito para ajudá-lo e, se puder, procure distraí-lo e fazê-lo rir. Não sei se já descobriu que por baixo daquele exterior reservado e sério existe um homem alegre e apaixonado pela vida. — Não vai ser fácil descobrir o lado brincalhão de Hugh — Rosalind interveio na conversa Julie retirou os pãezinhos do forno, fez o chá e Olívia ajudou a arrumar o carrinho e levou-o para a sala. Connie serviu o chá, Julie pegou uma xícara e foi sentar em seu canto favorito, ao lado da lareira. Era um momento gostoso, de reunião familiar, em que cada um contava o que tinha feito durante o dia. Steve pulou por sobre Charles, que estava no chão lendo um exemplar de Mecânica Popular, e foi sentar ao lado de Julie. — Terminei uma nova canção e acho que ficou boa. Não quer ouvi-la amanhã? 43


— Quero sim, mas não sei quando. Vou trabalhar com Hugh depois do almoço. — Não precisa fugir de mim! Só quero que ouça o que compus. Acho que ficou boa, muito boa mesmo. É um novo tipo de música, que nunca cantei antes, e preciso de sua opinião. — Ele olhou para o irmão gêmeo. — Não se preocupe mais com o que houve entre eu e Richard. Agora estou com a cabeça no lugar. — Fico feliz com isso. E... sobre o resto? Está tudo bem? — Sem dúvida. Foi um pesadelo que venci. Espere até ouvir minha canção, Julie, e então saberá que voltei ao que era. Ainda tenho a música dentro de mim. Já falei com Zak e lhe disse que volto a trabalhar quando estiver realmente bem. — Que bom que encontrou seu caminho, Steve. Você tem muito talento para desperdiçá-lo. — Eu me sinto forte Outra vez e não vou vacilar mais, prometo. Agora quero saber uma coisa. Você e Hugh estão mesmo… apaixonados? — Ele é o homem mais fascinante que já conheci e gosto muito dele. — Julie não conseguiu evitar de pôr a verdade nas palavras. Sim, disse a verdade, embora evitasse o termo “amar”. Mas, a cada dia que passava, estava mais certa de que o que sentia por Hugh era amor. Se não, como explicar a falta de fôlego quando o via, o desejo constante de tocá-lo? Quando a admiração se transformou em amor era difícil dizer, mas o fato é que sentia o coração palpitar descompassado e transbordar de afeição. E Hugh? Não imaginava o que pensava a seu respeito, mas ela tinha certeza de que ele sentia-se atraído por ela, Todavia, ele não era de se deixar levar pelos instintos ou emoções. Hugh guiava-se pela razão e percebia claramente as diferenças de temperamento que teriam que vencer, caso viessem a se amar. No dia seguinte Steve procurou-a e a fez ouvir sua nova canção. Era linda, um rock-balada de amor, crítico, profundo suave, muito bonito. — Vai ser um sucesoo, Steve! — Espero que sim, já que leva seu nome, agora estou feliz comigo mesmo porque me reencontrei com a inspiração Penso que de agora em diante serei capaz de compor com facilidade novamente. — Sem dúvida, Não vejo a hora de vê-lo brilhar no palco, a garotada suspirando e cantando com você. Julie deixou-o e foi para o quarto de Hugh. Para sua tristeza, ele estava de saída para Whitianga e ela iria trabalhar sozinha. Depois de datilografar várias páginas, Julie achou que a fita da máquina estava gasta e que precisava trocá-la. Tirou o rolo usado e procurou colocar o novo de maneira correta.Em poucos minutos estava com os dedos borrados de tinta, a fita amassada, sem saber mais como acertá-la Quanto mais ela mexia, pior ficava. Desanimada, cobriu a máquina e deixou para resolver o problema mais tarde. pois já estava na hora de preparar o jantar. Julie pegou o liquidificador, ia fazer molho escabeche para acompanhar o peixe fresco que chegara essa manhã. Precisava caprichar, pois iam comemorar a nova canção de Steve e o término da peça de Michael. 44


Lavou os filés de peixe, colocou-os numa travessa e cortou cebolas, alhos, pimentões,pimentas e várias ervas para fazer o molho, colocou tudo no liquidificador e ainda adicionou molho de soja, óleo e vários tomates sem sementes e sem pele. Com um zunido alto e forte, o liquidificador cumpriu sua tarefa. Agora era só acrescentar um pouco de água e sal. Julie estava tirando a tampa para colocar o que faltava, quando ouviu: — Que cheiro delicioso! Assustada Julie pressionou sem querer o botão que acionava a máquina. O tempero, oleoso e grosso, voou pela tampa aberta, espalhando o molho pelos quatro cantos da cozinha, — Desligue isso! — Hugh gritou, pondo a mão sobre o copo para impedir que o estrago fosse maior, — Não disse que nunca lhe aconteciam acidentes na cozinha? Julie, ainda tentando se livrar do molho apimentado que lhe queimava a boca, tossia como louca, as lágrimas escapando dos olhos fechados. Quando os abriu, quis sumir dali. Hugh também estava salpicado de molho, procurando absorver as manchas com seu lenço já melado e sujo. Ela não resistiu e começou a rir, a princípio nervosamente, pondo a mão na boca, para depois inclinar a cabeça para trás e desatar numa gargalhada sonora. As lágrimas desciam por seu rosto vermelho, o estômago doendo de tanto rir. — Desculpe, desculpe… — ela soluçou quase histérica. — Mas você está tão engraçado! — Já a preveni de que não se divertisse à minha custa, não foi? Antes que ela pudesse esboçar qualquer reação, Hugh a ergueu nos braços, levantando-a. Espantada, Julie segurou-se nele, em busca de apoio. — O que pretende fazer? — O que eu não deveria. Hugh baixou-a vagarosamente até que se apossou de seus lábios carnudos e penetrou na boca quente e úmida com sua língua experiente, punindo-a sob a forma de prazer. Segurou-a com facilidade como se ela não pesasse nada. Julie estendeu os braços e abraçou o pescoço forte. Sentiu que ele a inclinava para trás, as coxas potentes batendo contra as suas que continuavam pendentes, sem apoio no chão. Ele parou de beijá-la e deixou que seu corpo deslizasse pelo dele até que os pés pequenos encontrassem o chão. Dos ombros às pernas Julie sentiu o corpo queimado, o sangue fervendo mais ainda ao perceber que ele a desejava. Julie já não conseguia raciocinar. Baixou as mãos e elas encontraram o caminho por baixo da jaqueta que Hugh vestia, até ficarem em contato com a pele macia coberta de pêlos. Puxou-o para mais perto, trêmula de emoção, a boca entreaberta para receber outro beijo ardente. Hugh apertou-a contra si, seus dedos acariciavam o corpo encostado ao seu, para depois alcançar os seios rijos e carentes de Julie, provocando-lhe murmúrios de prazer. Hugh continuou se inclinando, movido pelo fogo do desejo. Ele a empurrou meigamente até deitá-la sobre a mesa suja de molho,seu corpo cobrindo o dela, seus olhos cinzentos colados no azul intenso que o fitava. — Hugh… — ela murmurou 45


— Ainda não terminei com você — ele ameaçou com voz rouca. — E tenho a impressão de que não se oporá ao que quer que eu faça. Ele tornou a se apoderar da boca trêmula, dessa vez com mais paixão, sem se importar com a possibilidade de alguém entrar na cozinha e pegá-los em flagrante. As mãos de Hugh deslizavam pelo corpo de Julie, seguindo o contorno dos seios grandes livres de sutiã, para depois tocar- lhes as pontas intumescidas Julie suspirou de prazer, a respiração ofegante. Arqueou mais o corpo para ficar colada ao dele, enquanto gemia baixinho, feliz por se entregar àquele homem que conquistara seu coração. Nunca ela havia sentido tamanho ímpeto para entregar-se. A necessidade vencia suas inibições, cegava seu raciocínio, fazendo-a apenas imaginar o deslumbramento que era estar com Hugh. Julie se sentiu desabrochar, abrir-se para a vida, o sangue pulsando com mais energia. Ela enroscou as pernas nas dele, ansiosa por trazê-lo ainda mais perto de si. Hugh a encarou por um momento, e depois foi limpando sua face suja de molho com beijos delicados que descompasa ainda mais o coração dela. — Hum… você está saborosa… picante! Beijá-la é como experimentar o fogo. Julie suspirou de prazer, inebriada pela paixão. Fechou os olhos, antecipando um frêmito de prazer. Quando os abriu, custou a focalizar o rosto de Charles, espiando interessado pela porta dos fundos!

CAPITULO VIII

Julie tentou se livrar de Hugh. Ele não a largou, mas olhou para o lado, a fim de descobrir a causa daquela recusa súbita. Quando viu Charles, endireitou o corpo, se alastando de Julie. — Um de vocês explodiu? — Charles olhou a cozinha salpicada de molho vermelho. Julie sentiu o rosto arder de vergonha e rolou pela mesa, ajeitando sua malha amarrotada. Hugh continuou se inclinando, movido pelo fogo do desejo. Tive um acidente com o liquidificador — ela explicou e. sem jeito, arrumou o cabelo que caía rebelde pela testa. —É mesmo? Você está bem? — Eu não a estava beijando sob prescrição médica, Charles,se é isso que quer saber —Hugh o interrompeu. Julie olhou para Hugh, que há poucos instantes a tinha deixado tão excitada. Como ele estava sereno! Não teria se perturbado? —Estava procurando por mim, Charles? — Ela estava refeita, de volta à realidade. — Estava sim. Como ainda não tenho carta de motorista, não posso sair com seu fusca para ver se ficou bem regulado. Você não quer vir comigo? 46


—Julie tem muito e que fazer nessa cozinha — Hugh se interpôs. — Eu vou com você. O rosto dc Charles se acendeu de alegria e os dois irmãos saíram juntos, já conversando sobre o que Charles tinha feito no motor Durante bastante tempo Julie licou tão absorvida com a limpeza que mal pensou em Hugh. Depois se ocupou com o jantar, tendo que preparar um outro molho para o peixe. Tudo pronto, ela foi se arrumar para a refeição e juntou-se família para os aperitivos. Michael lhe deu um copo de genebra que ela começou a tornar lentamente, os olhos perdidos em Hugh. — Que vestido lindo! —Olívia falou a seu lado. Para comemorar a ocasião, Julie havia posto um vestido vaporoso bem original. —Onde o comprou? —Eu mesma o fiz. —Uma obra-prima de beleza e graça, tal qual a mulher que o usa—Richard acrescentou com seu modo teatral. Julie riu envaidecida mas logo se conteve ao vei Hugh se aproximando e segurar sua mão para fazê-la dar uma volta, de modo que ele pudesse apreciar melhor. “Eu queria que tu perdesses a beleza e ficasses não a estátua mutilada que liberta e amplia o êxtase, mas a transfiguração do próprio esplendor... Eu, só eu, ficaria contigo.... E, de trazer-te em mim, eu seria a lorma ignorada de uma escultura perdida, de cuja perfeição os homens se recordam com nostalgia:’ Julie estava hipnotizada pela poesia inesperada de Hugh. E também pela maneira com que os olhos cinzentos a fitavam. Tinha a impressão dc que aquele olhar lhe tocava os seios visíveis sob a maciez do vestido. Era quase como se ele lhe tivesse feito uma declaração de amor — Muito bem, meu irmão. Parece que existe uma veia artística em você. Não desmente que é da família —Richard falou sarcasticamente. Hugh não deu atenção. Permaneceu ao lado de Julie, dando-lhe o braço para irem jantar. Durante a refeição, Hugh continuou a agir do mesmo modo, cheio de gentilezas dizendo palavras bonitas demonstrando claramente que Julie era seu grande amor. Passado o primeiro momento de confusão e encantamento Julie se perguntou se Hugh não estaria fazendo aquilo apenas para manter Richard em seu lugar e não deixar que ele conseguisse sua atenção. Na primeira oportunidade quando Hugh segurou sua cadeira para que ela levantasse ela murmurou. — Está sendo óbvio demais. Não vai enganar ninguém desse jeito, — Bobagem,todos estão encantados e Richard já quase desistiu de tentar conquistá-la. Era verdade, mas o coração de Julie doeu, ao pensar que a atitude de Hugh, tão agradável e romântica, fosse um disfarce, sem nenhuma sinceridade. Que pena! Sentia-se mal só de pensar, como Hugh seria se realmente estivesse apaixonado? Fazendo carinhos vindos do coração? Julie foi para a cozinha preparar o café. Ríchard encontrou-a lá. — Minha querida Julie, vim depositar meu amor a seus pés. 47


—Richard, você sabe que somos amigos, não é? Não confunda amizade com amor, o que não sentimos um pelo outro. —Ora, amizade, amor, qual a diferença? Não lembra o que disse Byron? ‘A amizade é o amor sem asas.” — Então é isso que somos, Richard. Somos kiwis —Julie se referiu ao pássaro nativo da Nova Zelândia, o único incapaz de voar. —Acho que sim.. — Richard começou, mas foi interrompido por Hugh. —Venham para a sala. Vamos fazer um brinde a Steve e M ichael. Hugh a abraçou, fazendo-a partilhar da sua taça de champanha. Julie se sentiu feliz como nunca em seus braços, mas estava preocupada. Ele teria ouvido sua conversa com Richard? Saberia que o irmão não representava mais problemas? E que Steve também não, já que estavam brindando sua recuperação? Não precisava mais viver aquela farsa amorosa, se os motivos tinham deixado de existir. Que droga! Precisava de mais tempo, para mostrar que poderiam… poderiam. De repente ela não agüentou mais ficar ali. — Com licença, vou deitar mais cedo. — Boa idéia. — Hugh pôs a taça sobre a mesa. Ela arregalou os olhos. O que ele estava pensando? — Está bem — Connie concordou, agindo como se eles fossem casados há muito tempo. — Mais um pouco nós também vamos deitar. Já tomamos mais champanha do que devíamos. Hugh e Julie saíram da sala e quando chegaram na escada, ela reclamou: — Você é pior do que Richard! Fez todos pensarem que…Não havia necessidade de ser tão.. tão… — Amoroso? —Libertino! Hugh riu. —O que é isso, Julie? Não gosta de ser o alvo das brincadeiras? Então era isso! Ele a estava castigando! Controlou-se para não expor toda sua fúria. Hugh não poderia imaginar o quanto ela estava sofrendo — Não perca seu senso de humor, Julie. Quem sabe agora você terá maior consideração pelas pessoas que não são extrovertidas como você. Nesse momento entraram no apartamento de Hugh e Julie viu a máquina de escrever, de fita nova, em ordem, os papéis arrumados sobre a mesa. Aproveitou a ocasião para desviar o assunto que tanto a perturbava —Não consegui mudar a fita da máquina, deixei tudo numa confusão! Pensei em lhe contar, mas... 48


— Não precisa dar explicação Julie, já basta as que ouvi hoje de Charles.Mas, da próxima vez, deixe que eu cuido disso, —Está bem, obrigada — Ainda bem que ia haver uma próxima vez! —Charles lhe contou que quer ser mecânico? —Contou. — E então? — Então o quê? — O que vai fazer a esse respeito? —Eu? Por que eu? —Você é o irmão mais velho. É um advogado. Na certa saberá defendê-lo diante de seus pais. —Bem, vou ver o que posso fazer. — Ótimo e, já que está com a mão na massa, que tal conversar com Olivia sobre o tal Logan? —Meu Deus! Todos vêm chorar em seu colo? — Não seja irônico só porque não precisa de meu colo para contar as mágoas. — Se eu usar seu colo, será para coisas muito diferentes. Julie sentiu o corpo arder e sua respiração se tornou curta e descontrolada. Aquela sensação voltava novamente espalhando se por seu ventre. Hugh compreenderia o que causava nela? Claro que sim! Pelo olhar dele, sabia que esperava esse tipo de reação. Bem,., não ia se deixar levar, —Estávamos falando sobre Olívia, certo? Ela... — Você interfere demais na vida dos outros, Julie. Deixe que cada um resolva seus próprios problemas. Não vou me envolver nisso. — Mas, Hugh, você já está envolvido! Se vai resolver o caso de Charles, se me ajudou a refrear a paixão dos gêmeos e comemorou o final da peça de Michael. Julie se calou vendo que Hugh ficava impaciente. Talvez tivesse ido longe demais, mas valera a pena. Mas não ia esticar demais a corda. — Estamos cansados demais para pensar em trabalhar agora, não é? Amanhã você me diz o que fazer com o texto. Boa-noite, Hugh. Ela desceu e foi deitar, deixando-o apalermado. Com o tempo, Julie descobriu que aquela noite tinha sido um marco importante em suas vidas. Ainda brincava com Hugh e procurava aborrecê-lo, mas agora era mais sensível e não mordaz, Hugh deixava que ela vasculhasse seu mundo. Com calma ensinava-lhe a apreciar música clássica e se divertia quando ela começava a dançar ao som de Beethoven ou Bach, porque compreendia que ela era diferente 49


ao interpretar o que ouvia. Eles foram se descobrindo, contentes e empolgados por verem que,embora de temperamentos diversos, podiam conviver em paz e alegria. A mão de Hugh já estava completamente curada mas, mesmo assim, Julie continuou a datilografar para ele, o serviço caminhava a passos lentos porque ficavam muito tempo conversando e pouco a pouco Hugh a entendeu melhor e passou a confiar nela. Contudo isso não significava que a amasse. Continuava reservado e era impossível transpor o muro que guardava seus sentimentos. Julie tinha certeza apenas de que ele a achava atraente, mas… Hugh seria capaz de amá-la, de se entregar como ela mesma estava disposta a fazer’? “Amar é muito desgastante”, ela pensou. É dor e prazer, tudo misturado. A alegria de estar junto da pessoa que representa o mundo e o esplendor secreto da espera que faz sofrer! Como amar era diferente de suas fantasias juvenis! Na verdade, esse sentimento não era instantâneo, mas crescia dia a dia, delicado e frágil, cheio de vida, adquirindo raízes que a abrangiam cada vez mais, para se tornar maior que a própria vida. Admirava-se de amar um homem tão diferente daquele idealizado na adolescência Amava o gigante de movimentos lentos, que calculava cada palavra que proferia, cuja atração residia mais no desafio que representava Uma noite, depois de trabalharem bastante, sentaram junto da lareira para conversar Hugh estava sem gravata, a camisa aberta, com as mangas arregaçadas — A sra. Brabbage me disse que era pequeno e franzino quando chegou aqui. Como conseguiu se desenvolver tanto? —Julie perguntou interessada. —Tive a motivação certa, na escola os outros meninos não me deixavan em paz e achei que o único jeito de enfrentar a situação era ficar forte para combatê-los —Que esporte praticou? Boxe? Judô? —Não gosto dc violência, por isso me dediquei à ginástica olímpica e à natação. —Chegou a participar da seleção para as Olimpíadas? — Não, odeio disputas. Apenas me exercitei para alcançar a forma física que deseiava, —Gostaria de ver o ponto que alcançou, não quer tirar a camisa? —Não sou exibicionista ,Julie, —Por que tanta timidez? Já o vi de calção, não foi? Para encorajá-lo Julie estendeu as mãos e começou a desabotoar-lhe a camisa e depois desceu-a pelos ombros, Hugh resistiu mas as mãos pequeninas de Julie deslizaram pela pele bronzeada, sentindo o calor que emanava irradiarse para o seu próprio corpo. —Por favor, Hugh. Hugh segurou a mão dela e colocou-a sobre seu coração para que ela sentisse seu pulsar, mais rápido que o normal, tal qual acontecia com o dela, Julie entreabriu os lábios e viu que o rosto de Hugh chegava mais perto, mais perto, 50


— Está com medo, Julie, mas é isso que quer, não é? Ela não respondeu mas arqueou o corpo para trás, enquanto Hugh a abraçava, apertando-a contra si. O beijo foi devastador e Julie correspondeu com prazer, jogou os sapatos para o lado e agarrou-se a ele, excitada com as sensações que a língua de Hugh despertava cm sua boca. —Você fica tão pequena em meus braços! Parece uma garotinha. — Não me sinto nada infantil agora — ela murmurou, temendo que ele recusasse e não satisfizesse a fome que a dominava. — Então mostre que já é crescida. — Hugh desabotoou os primeiros botões da blusa dela, enquanto lhe beijava a boca, os olhos, as orelhas, o pescoço. Julie torceu mais o corpo,tocando-o, respondendo aos beijos com carícias sensuais. —Tem razão, não é nada infantil. — Ele segurou os seios alvos, brincou com os bicos rijos, para depois mordê-los muito de leve. — Mesmo assim, já é hora de estar na cama. Hugh passou o braço sob os joelhos dela, carregou-a com delicadeza e colocou-a na maciez de sua cama. Ele também deitou, envolvendo-a com seu abraço. Suas mãos desceram pelas costas macias até alcançarem a cintura dela, onde abriu o zípcr da saia. Puxou-a para baixo, deixando-lhe as coxas à mostra. A calcinha transparente seguiu o mesmo caminho. lulie, trêmula de ansiedade, desejava ser tocada, descoberta, profanada. Com ansiedade e gula, ela se preparou para receber o homem amado. Ele a beijou, longa e ternamente, depois se afastou um pouco para admirar-lhe as formas do corpo. Julie estava nua, os seios e os quadris eram alvos, os pêlos entre as coxas roliças, loiros. Hugh soltou um suspiro profundo e seu rosto corou. Julie lhe acariciou a face, feliz por estar junto dele, completamente desinibida. No entanto, era a primeira vez que um homem a via nua. Era maravilhoso ver a expressão de desejo apaixonado que inundava os olhos cinzentos e saber que era capaz de excitá-lo a tal ponto que dificilmente ele se controlaria. Julie não sentiu medo pelo que ia acontecer. Pelo contrário, era o que desejava. Não era mais uma adolescente insegura, mas uma mulher dominada pelo desejo, lânguida e ansiosa, sem vontade nenhuma de quebrar o encanto daquele momento de urgência. Ele a beijou com suavidade, só as bocas se tocando, até que Julie, sem aguentar mais, virou de lado e pressionou seu corpo contra o dele, os bicos dos seios encostando nos pêlos do peito amplo, as coxas se abrindo para que ele se entrelaçasse nela, O beijo delicado passou a sensual, a língua ativa seguindo e explorando as profundezas úmidas, as mãos grandes se apossaram dela, puxando-a para si, fazendo-a ajustar perfeitamente ao corpo viril. Ela gemeu pelo excesso de prazer, deixando-se acariciar pelos lábios ardentes, gozando a proximidade do corpo que roçava contra o seu. Então isso era o amor! O contorcer a arrasadora tensão interior, essa força incontrolável que a fazia grudar-se nele para sentir sua masculinidade Era melhor ainda do que jamais sonhara!

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Hugh rolou com ela, deixando-a de costas sobre a cama, para depois chegar com o rosto muito perto do dela e abaixá-lo até os seios, para beijá-los com paixão. Ela enterrou os dedos no cabelo prateado, Puxando-o para mais junto de si, enquanto um grito estrangulado escapava de sua boca. —Hugh.. —Ela perdeu a noção do tempo e espaço, sabendo apenas que seu mundo eram os braços de seu amor, —Você me deixa louco, pequenina. Hugh afundou a cabeça entre os seios dela, e com calma deliberada, passou a língua pelos mamilos eretos, até colocá-los completamente dentro da boca, como se fosse sugá-los. Hugh gemia e suspirava, dominado pela paixão enquanto Julie fechava os olhos, inebriada de alegria, ela sentia ondas de emoção, uma sensação desconhecida se apossar de seus sentidos O cheiro gostoso de Hugh penetrava suas narinas o deslizar das peles uma contra a outra era tremendamente excitante, o ranger da cama sob seus corpos enlaçados era um som desconhecido e, sem dúvida, maravilhoso. Julie também o acariciou por inteiro descobrindo o que ele gostava. Sentiu que a pele de Hugh estava úmida viva, tensa. Hugh foi baixando a cabeça, depositou beijos na cintura dela, no umbigo para depois se deter entre suas pernas Julie prendeu a respiração achando que ia explodir de desejo, segurou a cabeça dele, olhou-o bem nos olhos, com excitação e assustada ao mesmo tempo. Hugh deitou sobre ela, tomando cuidado para não machucá-la — Não tenha medo, doçura. Ela não podia falar, tão grande era a necessidade de sua paixão. Vibrava sob os carinhos sensuais de Hugh. Ele que era dono do seu coração, agora teria seu corpo. — Hugh… amo você, faça amor comigo! —Você me deseja, é isso que quer dizer, não é? — Amo você! Ela sentiu que ele se retesava. — Não precisamos mentir, Julie. Aproveite o momento pelo que ele é. —Acha que estaria aqui. assim, se não o amasse? Hugh a encarou, o corpo parado, como se não houvesse mais vida nele. — Claro que sim, Julie. Desejo você e você me quer. Não há nada além disso. Ele começou a se erguer, quando ela insistiu: —Não vá embora. Fique. Quero fazer amor com você. — Admite que só exista desejo? 52


Se ela dissesse sim, poderiam chegar à consumação, porém,como mentir? — Não. Por um instante Hugh ficou dividido entre o desejo e a razão. Depois, o rosto impassível, ele rolou na cama e sentou, apanhando a calça que estava no chão, para vesti-la apressadamente. — Você é incrível, Hugh! Não vai fazer amor comigo porque afirmei que te amo? Que tipo de homem é você? —Você sabe as regras do jogo, Julie. Ele falava como se ela tivesse muita experiência naquilo! Mal ele sabia que era sua primeira vez! Mas agora não era hora de tocar nesse assunto. Julie viu que ele ainda estava excitado. Ela saiu da cama e sentou no chão ao lado dele, sem se incomodar com sua nudez. — Por que se retraiu, Hugh? Tem medo que depois eu faça exigências? É isso? — Não! Não complique mais as coisas, vista-se e vá. —Por quê? Não lhe pedi nada! —Não pediu mas mesmo assim sei que espera algo, se não agora. pelo menos mais tarde. Não quero me deixar envolver e nem você deve. —Agora é tarde demais, estou apaixonada por você,., e não há nada que possa fazer. —Vista-se. Ele ignorou os argurnentos embora precisasse fazer força para afastar os olhos da beleza nua que estava a seu lado. Julie viu que não adiantava insistir. A magia do momento fora quebrada e nada a traria de volta. Silenciosamente ela colocou a roupa. —Está bem, vou embora, mas não pense que isso muda alguma coisa. Amo você e não pretendo desistir. Aceito o risco do que sinto e você não tem nada a perder. —É o que você pensa! Por um instante Hugh a fitou com e olhar cheio de dor e Julie pensou que tivesse atingido seu coração. Mas, como ele permanecesse quieto, ela se retirou vencida Hugh ficou durante muito tempo contemplando as chamas na lareira sozinho com seus fantasmas

CAPÍTULO IX

Julie acordou depois de uma noite mal dormida, atormentada por pesadeios. Deveria estar arrependida e triste, até mesmo chorosa, mas, ao contrário, sentia-se cheia de esperanças.

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Tinha vivido momentos agradáveis com Hugh e jamais os esqueceria. Era bom lembrá-los, pensar neles, imaginar aonde teriam chegado se… Ela se espreguiçou langorosamente lembrando da felicidade de estar junto ao homem amado. Não ia aceitar a rejeição de Hugh. Ela devia significar muito mais do que uma conquista para ele. Senão, ele teria ido em frente, sem ligar a mínima para o que ela sentia. Além disso, Hugh tinha medo de amar e de tudo que estava ligado ao amor. Tinha certeza disso. Alguma coisa na vida dele destruíra sua confiança nas emoções. Isso mesmo! Hugh, por qualquer motivo, não podia e não queria se envolver emocionalmente. Estava explicada a obsessão pela privacidade, seu desprezo pelos sentimentos. Um dia ele devia ter sofrido muito e, mesmo convivendo com os Marlow, não conseguira se livrar das fortes raízes que o prendiam ao passado. Julie não se arrependia do que tinha feito. Não pôde guardar para si a imensidão de seu amor e teve que confessá-lo. E por isso mesmo, por amá-lo tanto, podia desculpá-lo. Hugh não a rejeitara, mas sim à idéia do amor. Ainda tinha mais sete dias ali em Craemar. Nesse meio tempo encontraria a maneira de penetrar nas defesas de Hugh e fazê-lo passar da amizade para o amor. Ele então compreenderia a alegria de estar ligado a alguém que o amava muito, que estava disposta a dar e receber amor. Julie levantou e começou a e vestir. De repente ficou preocupada. E se Hugh fosse incapaz de dar-se a alguém? Se conseguisse se envolver levando em conta apenas sexo, ela teria forças para enfrentar a situação e aceitá-lo assim mesmo? Que bobagem pensar nisso! Hugh tinha sido tão polido, tão gentil, que naturalmente teria um espaço no coração reservado para amar. Dependia só dela, fazê-lo feliz. Traria sorrisos aos lábios dele e afastaria para sempre o passado que o tornava frio e calculista Julie foi para a cozinha e preparou o desjejum. Assou croissants, preparou uma chocolatada quente e estava lavando a louça quando a sra. Brabbage chegou, carregando a roupa que tirara das camas para lavar. —Vou aproveitar para limpar o quarto do sr. Hugh. Odeio perturbálo quando está trabalhando Já que ele foi embora, Julie quase deixou cair o prato que enxugava —Ele foi embora? —A sra. Marlow disse que foi para Auckland a negócios. —Quanto tempo vai ficar por lá? —Três ou quatro dias, parece. — A governanta deixou a roupa na lavanderia e se afastou carregando o aspirador. Hugh tinha partido, sem nem ao menos dizer adeus! Julie ficou triste, o dia perdeu o brilho. Como Hugh podia ir sem uma palavra? A noite anterior não tinha significado nada? Ou, quem sabe, ele fora chamado por alguma emergência! Quando tornaria a encontrá-lo? O que ele diria? E ela? Passaria dias horríveis ansiosa, esperando revê-lo, só pedia a Deus que Hugh sentisse sua falta. 54


Julie trabalhou com afinco para passar o tempo. Finlmente Hugh chegou dois dias depois, pouco antes do jantar, quando estavam todos reunidos na sala para os aperitivos a família ouviu o barulho da Maserati e todos olharam para a porta. Porém não foi Hugh quem apareceu, mas Ann Farrow. Connie, depois de uns segundos de hesitação, se levantou para receber a moça. —Que surpresa! É muito bom tornar a vê-la, Ann, —Nesse momento Hugh surgiu logo atrás de Ann, —Convidei Ann para ficar uns dias conosco, mamãe.Sei que não se incomoda, não é? —Claro que não. Olívia pode ir para o quarto de Rosalind e Ann fica com o dela. Venham tomar um drinque, devem estar morrendo de frio. — Obrigada, — Ann se aproximou, o andar insinuante como o de um gato. Hugh acompanhou a moça, segurando-a pelo braço. Sentaram- se no sofá e Julie reparou que ela estava muito perto dele. —Não tenho aulas nesta semana e fiquei contente com a oportunidade de me afastar do movimento da Universidade. Quando Hugh me convidou, não resisti e aceitei. Julie olhou-a com raiva. Admitia que a moça era muito bonita. mas tinha os olhos cruéis. Não gostava dela. Ou... era ciúme’? Julie ficou quieta, enquanto a conversa fluía. Compreendia o jogo de Hugh. Era uma maneira de mostrar que o que acontecera entre eles não tinha o menor significado. Por uma vez os olhares dos dois se encontraram e Julie enviou chispas de raiva. Mas Hugh usava Ann como um escudo,mostrando que tipo de mulher fazia parte de seu mundo. Ann era sofisticada, racional e nunca perturbaria Hugh com protestos de amor. Muito bem, Hugh detestava cenas, mas ia ter que enfrentar uma. Ela não ia se deixar intimidar pela presença charmosa de Ann. Na primeira chance que tivesse ele veria quem era Julie Fry. A oportunidade surgiu quando Hugh foi levar as malas para cima. Julie deu uma desculpa e saiu da sala, alcançando-o no meio da escada. — Hugh.. Ele virou-se e encarou-a. — Quer que eu suba depois do jantar para continuarmos o livro? Você deve estar atrasado com ele. — Obrigado, mas não é preciso. Ann vai fazer a revisão para mim. —Não me diga que ela veio aqui para trabalhar! Por que eu não posso fazer isso? — Você lê francês? —Não. por quê? Ela lê? Pensei que fosse especialista em computadores. 55


— Ann é ambas as coisas. — E com certeza também bate bem à máquina, não é? — Não, mas isso eu posso fazer. Minha mão já está boa. Posso até dispensar sua valiosa colaboração. Hugh acabou de subir e Julie se precipitou atrás dele. — Espere um pouco, — Ela o fuzilava com os olhos. — Quero saber o que está havendo, — Nada. Estou levando as malas para meu quarto. Alguma objeção? — Tenho sim e várias, por que a trouxe para cá? — Se está se referindo a Ann, é bom que saiba que ela é uma velha amiga, muito acostumada a me ajudar em meu trabalho. Agora devo pedir permissão aos empregados para convidar alguém? — Não adianta ser sarcástico Hugh. Ou com isso quer dizer que baixou o nível a ponto de seduzir uma funcionária da casa? — Não seja ridícula! — Você parece tão decidido, Hugh. Então por que essa súbita timidez? Vocé me seduziu e depois se esgueirou para fora do ambiente como se fosse um ladrão para em seguida voltar trazendo a srta. Computador. Que tipo de atitude é essa? — Não vamos começar a divagar sobre modos dc agir. Sou dono do meu nariz e faço o que quero. — Já sei. Sou uma cozinheira pobre e ignorante e não estou à altura de intelectuais como você e sua querida srta. Computador. Pois é bom que saiba: Sou Julie Fry e não desisto facilmente das coisas, — Ela estava tão furiosa que sentia forças para enfrentá-lo de igual para igual. — Não existe nada para você desistir. Não acha que é muita pretensão achar que Ann está aqui por sua causa? Julie ficou quieta. Não era pertinente achar que Hugh se incomodava com ela. No entanto, seu coração lhe dizia estar certa, que Hugh tinha atração por ela e que essa atitude distante era um blefe, — Pensei que tivesse vindo para Craemar para trabalhar em paz, livre das pressões do escritório. Se sente tanta falta do auxílio da srta. Farrow, por que não lhe pediu que ficasse aqui quando veio da última vez? — Naquela ocasião não precisava dela, francamente, Julie, não vejo por que devo responder a esse interrogatório. — Não mesmo? Então vou lhe fazer uma última pergunta. Tem medo de mim? Hugh suspirou como se estivesse cansado daquilo tudo. — Está bem, Julie. como quiser, morro de medo de você.....— Sem interrupção ele continuou: — .. Espero que o jantar seja suficiente para mais dois. — Hugh acabou de subir a escada e entrou no quarto, deixando-a de boca aberta.

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Sujeitinho irrascível! Ele tinha admitido temê-la, mas com tanto desprezo, que não era possível acreditar no que havia dito. Ann se adaptou muito bem à situação, sempre muito alegre e falante. la e Hugh formavam o típico casal perfeito, altos e bonitos, discutindo assuntos que os dois entendiam bastante. Julie reconheceu que não podia competir com uma garota desse nível intelectual. Ficou então dividida entre os gêmeos, que agora a tratavam com uma camaradagem própria de amigos. Julie aproveitou para observar o comportamento de Hugh e Ann. Transparecia que se davam bem, mas não havia o menor indício de paixão. Ann era sensual e atraente, porém Hugh parecia pouco se impressionar com isso. Talvez ele precisasse de algo mais para estimulá-lo além de um corpo bonito e uma mente inteligente. Hugh precisava de alguém como. como.. ela! Julie sorriu tristonha. Seria tão bom se fosse verdade! Uma tarde Julie estava na horta tentando encontrar uns galhinhos de coentro quando encontrou sua rival. — Gosta de jardinagem? — Bastante — Julie respondeu aborrecida com a situação. — Termina seu trabalho aqui dentro de poucos dias, não é? Vai voltar com a sra. Marlow? — Vou sim. — Eu vou ficar mais algum tempo, com Hugh. Preciso ajudá-lo com o livro, já que somos amigos há muito tempo. Você foi muito boazinha por ter feito a datilografia. Também, depois de ter esmagado os dedos dele na porta do carro era o mínimo que podia fazer, não é’? Julie pensou que fosse estourar de raiva. Quem aquela fulaninha pensava que era? — Deve entender que, para Hugh, o trabalho é a meta primordial — Ann acrescentou, para mostrar-se íntima a ponto de compreendê-lo com perfeição. — Ele sempre o coloca acima de qualquer outra coisa.por isso, Hugh precisa de tranqüilidade e não de uma casa barulhenta e cheia de conversas. Além disso…— Ela continuou explicando a esperteza de Hugh em se promover à custa do trabalho, visando suas aspirações políticas. Julie a acompanhou de volta para casa. Era incrível como duas mulheres podiam ver o mesmo homem por ângulos tão diferentes! Ann acreditava no que dizia e mostrava um Hugh frio, sério, interessado apenas em crescer política e financeirameite ao passo que ela o via como alguém vibrante, sensível, aguardando apenas a pessoa certa para atirar-se num relacionamto de corpo e alma. Estaria certa? Ou tão apaixonada que criava uma imagem romântica de Hugh? Precisava com ele para aclarar aquela confusão, conversar Procuraria uma chance. Chance? Como arranjar uma, se Hugh procurava evitá-la? Foi Connie quem lhe deu forças para ir em frente em seu propósito. — Hugh não leva Ann a sério, leva? — Connie comentou com Julie na véspera da partida de Craemar, — Nunca pensei que ele gostasse dela. Até achei que você... — ela falou cheia de dedos. sem querer abordar o assunto diretamente — Ann parece se dar muito bem com a família toda — Julie respondeu sem tomar partido. 57


— É verdade, e isso faz parte de seus planos. Ann pertence a uma família tradicional da Nova Zelândia e seu objetivo é se tornar a esposa do primeiro-ministro Ela tem certeza de que Hugh chega lá. Mas… pode imaginar um primeiro-ministro cuja mãe é atriz e o irmão cantor de rock? Ela vai tratar de nos excluir da vida dele e já o vemos tão pouco! Se você… — O que posso fazer? Ann gruda nele como carrapato e Hugh ultimamente mal fala comigo! — Não pense que Ann esteja confiante Ela tenta laçar Hugh, mas não sei se consegue fazer progressos, Em todo caso, vou tirá-la do caminho e você trate de falar com meu filho, 0k? — Seria ótimo! Tenho tanto o que conversar com Hugh! — Pode deixar comigo. Hoje à tarde, depois do almoço, convido Ann para alguma coisa e o caminho fica desimpedido para você. Prometo ser bem discreta E foi mesmo. Connie pediu a Anonque a ajudasse com a leitura da nova peça. Elas foram para o escritório de Michael e no mesmo instante Julie subiu a escada correndo para bater na porta de Hugh. — Entre, Ann. Julie mordeu os lábios, com raiva, então a outra moça era bem-vinda, a qualquer hora do dia! Ela entrou e Hugh não escondeu sua surpresa. — Julie! O que faz aqui? Estou muito ocupado e não posso atendê-la. — Eu espero. — Julie sentou numa poltrona, colocou os pé sob o corpo, disposta a ficar ali tanto tempo quanto fosse necessário. Hugh fechou a caneta, arrumou seus papéis., mas não se levantou. — O que quer comigo? Alguma coisa importante? — Muito. Preciso conversar sobre eu, você e também sobre ela, que é a coisa mais chata que já conheci. — Ann é extremamente inteligente. — E bonita também — Julie concordou. — É uma chata bonita e inteligente. — Não seja infantil, Julie. — Não sou. Precisamos conversar e não evitar o assunto como já fez antes. Por que não é sincero comigo uma única vez, Hugh recostou na cadeira, o rosto impassível iluminado pela lâmpada forte. — É o que tenho sido, sempre, mas acontece que você não aceita. Admito que você é muito atraente e até que me torna impulsivo demais, mas o que aconteceu domingo à noite foi uma aberração. — Aberração coisa nenhuma! — Julie retrucou furiosa com aquela calma. — Já esqueceu que estivemos nus, juntos na cama, trocando carinhos mais eloqüentes que palavras? Só não no amamos de modo mais completo porque você teve medo de se envolver. — Julie, não torne as coisas mais difíceis do que já estão. 58


— Quero ir para a cama com você e sei que pensa do mesmo modo. Não sei o que é difícil no caso. — Você é tão ingênua assim? Não posso dar o que você quer. — Que diferença faz o que eu quero? O que você quer é que é importante. — É mesmo? Quanto sacrifício! Mas tenho uma regra, Julie nunca faço amor com mulheres que acreditam estar apaixonadas por mim. — Está bem, vamos fazer de conta que não te amo. — Isso não é possível! — Por quê? — Julie, você é insaciável? —O quê? — Vi você sair do quarto de Richard, ontem à noite. — Espionando? — Não, apenas passei por ali. — Você não vai começar com aquela conversa que sou amiguinha de Richard. não é? Nunca fui amante dele e nunca serei. Somos apenas velhos amigos. Richard sabe que amo você e estava tentando me ajudar. — Você não me ama, Julie, está encantada com a idéia do amor, só isso. Criou uma imagem de mim que não corresponde à verdade e é por essa imagem que se apaixonou. — Quem me dera que fosse assim! Seria muito mais fácil para mim. Adoro tudo em você, Hugh, até mesmo seus argumentos reacionários — Engano seu Julie. Mesmo suas tentativas de me aproximar da família mostram que você me imagina diferente do que realmente sou. Está querendo me mudar, para que eu me adapte à figura do homem que julga amar. — Não quero modificá-lo, Hugh, apenas descobrir quem você é. Preciso libertá-lo do seu passado que o impede de amar, ou de se deixar amar. — Que diabo você entende de traumas do passado! — Hugh falou zangado e Julie se encolheu mais na cadeira. — Sou o que sou e não tente lidar com o que não entende. Fique fora de minha vida e guarde suas perguntas tolas para você mesma. — Não sou xereta nem curiosa, Hugh. — Ela não tinha medo. Preferia essa explosão de raiva do que a calma deliberada. — Gosto de você e me preocupo com o que faz. Sei que não teve uma infância feliz, — Não preciso de sua piedade, nem de seu amor. Não sinta pena de mim porque estou feliz como sou. 59


Julie levantou e foi para junto dele. — Não tenho pena de você, Hugh, mas do garotinho franzino que exercitou o corpo para enfrentar quem o provocava. Você como homem, não precisa da piedade de ninguém e isso não ne faz parar de amá-lo ou desejá-lo. Só não pense que consegue viver sem amor, Hugh. Se Connie e Michael não o amassem você não seria o que é hoje, nem teria o carinho de seus irmãos e irmãs. Se negar o amor estará negando sua própria família. Hugh... Julie chegou para perto dele e acariciou o peito forte. Com o simples toque ele estremeceu e a fitou intensamente, enquanto suas mãos procuravam os quadris e o puxavam para junto de seu corpo, como se lhe fosse impossível ficar longe dela. Instintivamente Julie puxou a cabeça dele para mais perto, ficou na ponta dos pés e beijou-o, satisfeita. Quando sentiu que ele a apertava junto do coração, parou de beijá-lo para encostar a cabeça em seu peito. Por um longo instante eles ficaram presos nesse abraço, deixando que a paixão corresse livre de um para o outro. Mas no mesmo instante em que ela se julgou vencedora, tendo-o rendido em seus braços. Hugh afastou-a com violência,o rosto pálido, os olhos cheios de horror, cheios de tormento. — Não! Não! — Ele passou as costas da mão sobre a boca. tentando eliminar o êxtase que seus lábios tinham experimentado. — Eu me recuso a fazer alguma coisa que depois só nos trará arrependimentos. Hugh foi embora, batendo a porta do quarto com tanta força que até as paredes tremeram. Tinha saído do quarto e da vida de Julie, deixando-a sozinha, a contemplar um futuro desesperador

CAPÍTULO X

—Está engordando um pouco, hein, Julie? — Phillip Randolph comentou ao entrar na cozinha. Ele tinha voltado há três semanas e todas as noites recebia os amigos. Julie entupia-se de comprimidos e trabalhos para preencher o tempo e distrair-se. —Preciso experimentar o que faco, certo? Com tantos pratos gostosos em todo jantar vou acabar virando uma barriquinha. —Não a estou criticando. Pelo contrário, acho até que você está.. irresistivel! — Não diga bobagens. Julie, porém, reconhecia que tinha ganho uns quilinhos a mais. Em geral todo mundo emagrece quando tem um caso de amor malsucedido mas com ela se dava exatamente o contrário, estava sempre com fome e tinha a estranha sensacão de recompensar sua frustração comendo.., comendo. Intimamente ela se sentia vazia. Para não ficar gorda, Julie fazia exercícios todas as manhãs, andando e correndo. Talvez a atividade ao ar livre estivesse contribuindo para lhe dar aquela aparência saudável e bonita.

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No entanto, sua cabeça persistia com a mesma dúvida. Por quê? Ela se imaginando respostas e motivos para a atitude de Hugh. A princípio tivera confiança em si mesma e se julgara capaz de conquistá-lo. No entanto, sua própria inexperiência,sua ignorância da vida, a havia derrotado. Não lhe restava a menor esperança de conseguir o coração de Hugh. A última imagem que tivera dele tinha sido pelo espelho retrovisor, enquanto o fusca se afastava de Craemar. Até aquele momento acreditava que ele não a deixaria partir. Puro engano! Ela se afastara e Hugh não movera um dedo para detê-la. Por um instante Julie sentiu vontade de voltar e se atirar nos braços dele, implorar seu amor. Queria ficar a sós com ele em quaisquer condições, mas a figura imponente de Ann Farrow parada ao lado de Hugh, a tinha impedido. Julie nem conseguiu se lembrar da viagem de volta a Auckland. As estradas lhe pareceram comuns, sem novidades que pudessem distraí-la. Só se concentrava em suas lágrimas e no choro intenso. Fez força para odiá-lo. Seria mais fácil partir se o achasse cruel ou covarde, indigno de seu amor. Mas não conseguiu. O amor extravasava de seu coração e só pensava em Hugh com pena do que ele tinha sofrido na infãncia. Se pelo menos Hugh pudesse abrir-se com ela, contar o que lhe corroía a alma. O que o impedia de ser feliz. Tinha voltado para a casa de Phillip Randolph, aguardando os dias de trabalho com muita ansiedade. Realmente a sucessão de festas e recepções a tinham distraído um pouco,pois, como boa profissional, fazia questão de apresentar pratos dignos de figurarem na mesa de um rei. Mesmo assim, tinha consciência de seus sentimentos. Analisou- os profundamente e chegou à conclusão de que, mesmo que seu amor por Hugh enfraquecesse com o tempo, ele seria a melhor lembrança de sua vida. Sabia que não era retribuído, mas isso não o tornava menoi nem mais frágil. —Então, o que acha, Julie? — O quê? — Ela olhou espantada para Phillip, percebendo que estava tão desligada que nem sabia do que ele estava falando. — Não ouviu nada do que eu disse, não é? Contei que estou pensando seriamente em me mudar definitivamente para o Caribe. —Minha nossa Por quê? —Por causa do imposto de renda. Não teria que ficar lá o ano inteiro, mas apenas o suficiente para me tornar residente. —Está tentando me dizer que estou despedida? — Por que não presta atenção no que digo? Preciso repetir? Quero que venha comigo. É o que estou tentando lhe dizer desde que comecei a falar. Se o convite tivesse acontecido há alguns meses, Julie teria ficado radiante e aceitado na hora. Agora,a única coisa que pensou foi em como ficaria longe de Hugh Walton. — Pelo jeito não ficou muito entusiasmada — Phillip reclamou, — Bem, eu… Posso pensar a respeito? —Claro que sim. Tenho muito o que fazer por aqui e a imobiliária ainda não encontrou uma casa como quero. Haverá tempo de sobra para pensar.

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— A idéia de ir para o Caribe é fantástica, Phíllip. mas minha família está toda aqui e acho muito difícil ficar longe deles. —Nem está parecendo a garota esperta e independente que conheço como Julie Fry. O que aconteceu com você? Está apaixonad por Richard Marlow? — Não, eu..... —Tenha juízo. Lembre-se que artistas são instáveis. Trocam de mulher como trocam de roupa. Não gostaria de ver minha “Cordon Bleu” sofrer. — Não estou apaixonada por Richard Marlow. —Phillip não levou o assunto adiante, mas também não deixou que ela o esquecesse. Trouxe brochuras e recordes que falavam sobre o Caribe, tecendo vantagens de se viver num paraíso tropical, além de mostrar a beleza imensa do lugar. Julie o escutava e vez ou outra lia o que ele lhe trazia. Sabia que não era isso o que a convenceria a ir, uma vez que sua única vontade era ficar perto de Hugh. Julie sempre lia o jornal em busca de notícias dos Marlow, foi assim que ficou sabendo que os ensaios para Romeu e Julieta tinham começado e que a peça prometia ser um sucesso de bilheteria, soube também que o grupo Hard Times havia cancelado sua viagem ao Extremo Oriente porque o líder do grupo, Steve Marlow, estava se dedicando exclusivamente à composição de uma ópera-rock, que seria apresentada em breve num dos teatros de Auckland. Numa revista especializada em artes, Julie soube que Olívia Marlow, a artista mais promissora de Auckland, tinha ganho uma bolsa de estudos em Paris, sob a direção de um dos maiores atores da atualidade. Ela tinha recebido a bolsa de um doador anônimo, que se dizia interessado em descobrir novos valores. Julie sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Estaria enganada ou podia sentir ali o toque de Hugh? Seria uma atitude típica dele, permanecer anônimo e ajudar a irmã! Querido Hugh! Onde ele andaria? Ainda às voltas com a srta. Computador? Não podia se convencer de que Hugh se desse bem com uma mulher do tipo de Ann Farrow. Que horror! Pensar assim era dor-de-cotovelo! Tinha que se conscientizar de que seu romance com Hugh havia terminado. Não era possível existir amor de um lado só. Ela e Hugh eram fundamentalmente diferentes e jamais se dariam bem. Mas. mesmo tentando raciocinar e encontrar motivos que justificassem a separação, ela sofria porque… o amava Estremeceu quando a campainha tocou. Foi abrir a porta e ficou surpresa ao encontrar Richard. Num instante o rapaz entrou no apartamento, falando o tempo todo, contando sobre os ensaios, a família, sem que lhe desse uma chance de abrir a boca. Finalmente ele fez uma pausa, para depois perguntar. —E você, como vai? Parece estar desabrochando, como as flores na primavera. —Você não muda nunca, não é. Richard? Sempre com galanteios. —É verdade. Tenho personalidade definida. — Os dois caíram na risada. —Mas estou aqui por um motivo muito sério. — Richard procurou nos bolsos e acabou encontrando um envelope. — Eu lhe trouxe duas entradas para a estréia de Romeu e Julieta. Connie mandou dizer que faz questão de vê-la e reservou um lugar para você ao lado das meninas. Depois vamos comemorar o sucesso… ou lamentar o fracasso com urna pequena reunião. 62


Julie olhou para o envelope sem pegá-lo, pálida, como se temesse encontrar um bicho ali dentro, capaz de devorá-la. — Hugh não estará presente. Ele vai voltar para Craemar no fim de semana. Tem que resolver alguma coisa com seus livros. Voltar, Julie pensou. Então Hugh estivera em Auckland e nem a procurara? Definitivamente estava na hora de se convencer de que ele não queria nada com ela. Mesmo assim, procurou saber mais. — Ele ainda não terminou o que estava escrevendo? — Não sei se é o mesmo livro ou se é outro. Nunca se sabe muito sobre Hugh, não é verdade? — Richard reparou nas brochuras que Phillip deixara pela casa para que Julie as lesse. — Ei, o que é isso? Está pretendendo passar férias tão longe assim? Julie lhe contou sobre os planos do patrâo. — E você vai? —Não sei ainda, talvez. Pouco depois Richard se despediu e foi embora. Era estranho mas agora era comum se sentir solitária e triste. Estaria na mesma situação que Steve, atado a drogas? Por que Hugh era como um vício que tinha invadido seu sangue e sem o qual ela não conseguia viver. Pensava, agia, trabalhava, sempre com ele em sua mente. Teria encontrado o único e grande amor? Seria uma dessas pessoas incapazes de amar senão uma vez na vida? Por isso seu amor era tão imenso? Julie sacudiu a cabeça, preocupada. Desse jeito acabaria ficando louca. Tinha que riscar Hugh de sua vida, voltar a ser o que era. Ela o amava, sim, com todas as forças de seu ser. Mas o que isso adiantava, se ele não queria vê-la nem ficar perto dela? Com raiva por não conseguir dominar seus sentimentos, Julie foi de volta para a cozinha. Tinha que preparar um bom jantar para os novos convidados de Phillip. Gostava de sua profissão e sentia-se satisfeita. Não precisava de amor, de Hugh, de nada. Julie foi ao teatro sozinha. O saguão fervilhava de gente, todos comentando sobre a nova peça de Michael Marlow. A expectativa era grande e os comentários da crítica eram favoráveis ao grande diretor. Por um momento Julie se sentiu perdida no meio daquela multidão ruidosa. Reparou nos lustres grandes, magicamente iluminados, nos tapetes vermelhos que levavam à escadaria principal, nos espectadores bem vestidos. Tudo era muito luxo. Foi então que viu Olívia, Rosalind e Steve,juntou-se a eles e trocaram abraços de alegria por se verem novamente. Julie reparou em Steve e achou-o bem, o rosto alegre e jovial. Ele estava entusiasmado com a ópera-rock que compunha e tinha planos de encená-la em breve. Olívia estava nas nuvens. Muito animada, ela contou sobre a viagem a Paris e a oportunidade de estudar arte dramática com um dos melhores professores do país. Ela estava saltitante, entusiasmada demais para ficar quieta. — Não é marailhoso, Julie? Já pensou ficar em Paris, fazendo arte, e ainda por cima com uma bolsa de estudos? — Você merece e quando estrear numa peça vai se mostrar digna de pertencer à família Marlow. 63


Olivia riu com gosto e logo se afastou para cumprimentar um famoso crítico teatral. Rosalind chegou mais perto dc Julie. — Viu como Olívia nem mencionou o nome de Logan? — É verdade. Ela já superou essa fase? — Minha irmã está furiosa com ele e o chama de interesseiro. lmagine você que quando soube que ela tinha uma bolsa para estudar em Paris, propôs ir junto e dividirem o dinheiro entre os dois. Olivia quase estourou de raiva, mas valeu a pena porque o tirou da cabeça. — Bem, um problema a menos. As duas se encaminharam para a platéia. onde ja encontraram Steve e Olivia sentados. As luzes se apagaram e o espetáculo começou. Julie não conseguiu afastar os olhos do palco, encantada com a atuação perfeita de Connie e a direção segura dc Michael. Richard estava sensacional como Romeu. Foi envolvente, sublime, romântico. Realmente os Marlow tinham o teatro no sangue. A peça foi um sucesso e, quando terminou, os atores tiveram que voltar à cena por mais de cinco vezes para receber os aplausos do público, que aplaudia de pé. Julie e seus companheiros foram até o camarim para cumprimentarem a família. Havia flores por todos os cantos, abraços, parabéns, todo mundo falando ao mesmo tempo. sempre tecendo os melhores elogios ao considerarem a peça como “o sucesso do ano”. A gerência do teatro ofereceu champanha e salgadinhos, e a festa ficou animada. Julie exagerou do vinho espumante e, ligeiramente alta, comentava sobre a direcão e a situação dos personagens como se fizesse parte do meio artístico. Ela se sentiu livre, despreocupada, esquecendo a melancolia dos últimos dias. Acabou sentando num canto, antes que as pernas bambeassem e não a mantivessem de pé. Pouco depois Connie sentou ao seu lado. —A vida de uma atriz é uma loucura, não acha? —Julie concordou com a cabeça. —Gosto munto do que faço e o dia em que não puder mais pisar no palco sou capaz de morrer. No entanto, compreendo que se vive num mundo ficticio, em que a gente sai da nossa pele para adquirir a personalidade do personagem. Por isso entendo quando há gente que prefere ser secretária ou... mecânico. —Conversou com Charles? — Conversamos sim. Você também sabia das pretensões dele? — Charles me disse qualquer coisa, quando estive cm Craemar. Concordaram em que ele siga a carreira que quer? —Claro. É muito importante que cada um faça aquilo que tem vontade, não acha? Eu e Michael apenas insistimos para que ele termine o colegial e só então faça um curso de mecânica. Mas chega de falar sobre minha família. Quero saber de você. Ou-vi dizer que vai morar no estrangeiro — Na verdade ainda não me decidi. — O que está tentando fazer, Julie? Pôr o oceano entre vocês? Julie foi tomada dc surpresa e arregalou os olhos. 64


— Pensei que estivesse apaixonada por Hugh. — Eu também achei, Connie, mas ele disse que eu apenas gosto da idéia de amar, que o homem que amo existe apenas em minha imaginação. — Hugh é uma pessoa difícil. Eu o conheço bem e sei que ele jamais se permitirá amá-la. — Por quê? — Julie repetiu a pergunta que martelava seu cérebro há tanto tempo. —Sempre fui de opinião que as mães não devem se intrometer na vida amorosa dos filhos, mas creio que este é um caso especial. Gosto muito de você, Julie, e vi como Hugh se descontraiu e ficou feliz ao seu lado. Agora está de novo fechadão e distante. Ele é muito reservado e não mostra a ninguém o que sente. Conheco a causa de tudo e posso lhe dizer que a vida foi muito dura para ele. Seus ressentimentos têm raízes profundas. Ele não quer se machucar de novo. Julie não perdia uma só palavra, a cabeça clara como se não tivesse ingerido uma gota de álcool. Connie lhe falava sobre Hugh e isso era muito importante. — Vou lhe contar o que aconteceu com meu filho. Depois que souber de tudo, terá maior facilidade para tomar suas decisões Connie acomodou-se na cadeira como quem ia iniciar uma longa história. —Hugh nunca teve uma chance na vida. Chego a pensar que, desde o momento em que nasceu, estava predestinado a sofrer. Seu pai foi um alcoólatra de maus instintos, fraco em todos os aspectos, menos no físico. Tratava-se de umhomem grande e forte e, quando bêbado, se tornava violento. Sua esposa, Lídia, a verdadeira mãe de Hugh, era quieta e tímida, a bondade em pessoa. A natureza forma às vezes esses contrastes, mas sem dúvida era uma combinação perigosa. Pausadamente Connie contou a história toda, que pareceu a Julie ainda pior do que ela tinha imaginado. Sabia que Hugh tinha sofrido na infância mas nunca pensou que pudesse ser tanto assim. Através dos anos George Walton tinha transformado sua casa num verdadeiro inferno, exercendo sua tirania de bêbado sobre a mulher e o filho. Ele era bruto, selvagem, distribuia socos e pontapés, quebrava móveis, gritava como louco. Quando sóbrio, se arrependia, pedia perdão, chorava e prometia que nunca mais tomaria uma gota de álcool. Lídia Walton, passiva demais para tomar uma atitude, continuava com ele, envergonhada ou temerosa de pedir auxílio a alguém ou fazer alguma coisa que pudesse interromper aquela situação. A família mudava muitas vezes de casa e de cidade, seguindo o marido onde quer que ele encontrasse trabalho. Assim mesmo, os vizinhos os conheciam suficientemente bem para poder ajudar. —Pode imaginar como foi a vida de Hugh, crescendo nesse ambiente, vendo a mãe apanhar quase todos os dias e incapaz de intervir? Ele mesmo sendo reprimido física e mentalmente? Hugh sofreu castigos terríveis, ficando fechado durante horas em armários estreitos e escuros ou tendo que sentar à mesa proibido de comer! George Walton era perverso,um mestre na arte de punir, fazia o garoto olhá-lo enquanto ele quebrava e queimava tudo aquilo que o menino valorizasse, fossem livros, trabalhos escolares, roupas ou brinquedos. Chegou a um tal ponto que Hugh tinha medo de se afeiçoar a alguma coisa, de medo que o pai a destruísse para castigá-lo. Além disso, ele ainda sofria surras terríveis. Julie tremia, horrorizada com o que ouvia. Sentiu um ódio mortal do animal que torturava a mulher e o filho sem piedade.

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— Uma noite George foi longe demais— Connie continuou. — Lídia acabou no hospital, com duas costelas fraturadas e contusão cerebral de tanto levar na cabeça. As costelas perfuraram o pulmão, teve pneumonia e, era tão subnutrida, tão maltratada que não encontrou forças para resistir. Porém, antes de morrer, contou toda a história à polícia. Pensava em proteger o filho, quando ela não estivesse mais presente para levar a maior parte das pancadas. O coração de Julie sofria ao ouvir. Com razão ele era amargo, fechado em si mesmo! —Hugh foi para um orfanato e depois mudou de família para família, incapaz de se adaptar a nenhuma delas. Fiquei sabendo de seu caso e resolvi trazê-lo para nossa casa. Achei que no meio de outras crianças ele aprenderia a ser feliz. —Que bom que ele ficou com vocês e finalmente teve um lar! —É verdade. Acho que foí quando viu os gêmeos, tão pequenos e frágeis, que decidiu ficar e ser um de nós. Daí para a frente não mencionou mais o passado e tratou de se desenvolver. Praticou esporte, se tornou forte, estudou com muito ardor. Com sua inteligência brilhante recuperou o tempo perdido. Mas. — Connie se inclinou para Julie — ainda falta alguma coisa. Ele precisa aprender a amar e confiar em alguém. Precisa se envolver emocionalmente. Senão, vai acabar se unindo a Ann, e nunca descobrirá o sentido da vida. —Oh… Connie! — Julie a olhava com o rosto cheio de lágrimas. — Quero que Hugh confie em mim, mas não posso obrigá-lo a aceitar meu amor! — Mas ele quer esse amor! Por isso mesmo ele se afastou de você. Isso que estou tentando lhe mostrar. Não compreende como Hugh pensa? Tudo o que ele já gostou ou amou na vida lhe foi tirado ou destruído. Ele não ousa amar mais, com medo de perder o que é importante para ele. Tem medo de que ele mesmo possa destruir o que ama, que tenha herdado algo do pai. — Então... —Hugh tem se esforçado tanto para não ter sentimentos, que abafou a melhor parte de sua personalidade. Ele precisa se expandir, mostrar seu lado bom. Mas, como se julga capaz de machucar aqueles que ama, se nega a amar. — Mesmo assim.. isso não prova que goste de mim ou que me queira. —Eu sei, mas você poderia descobrir, de uma vez por todas. —Connie. eu. — Ouça, Hugh virá para cá domingo à noite. Vá procurá-lo, por favor. Se não por você, pelo menos por ele. Procure fazê-lo ver como está errado. Nós duas sabemos que Hugh é sensível e carinhoso, não é? Por favor, Julie, ajude-o. Não se impressione com a expressão severa ou com os modos bruscos com que ele se defende. Você precisa lembrar que, quanto mais ele sente. mais ele se tranca. — Não sei.. — Julie murmurou preocupada. Para Connie estava tudo bem, mas ela não podia se sujeitar a uma outra rejeição! — Sei que não vai ser fácil, querida, e que vai precisar de uma tremenda força de vontade para acomodar seus sentimentos com seu orgulho. — Hugh já me demonstrou uma vez que não me quer e eu… 66


— Mesmo assim, se você realmente o ama, precisa tentar! Só você pode conseguir e. se vencer, já pensou em como será maravilhoso ter o amor de Hugh? Em meu íntimo tenho certeza de que vocês poderão se entender. Não vale a pena se arriscar para ter Hugh para sempre? Ele não vale mais que seu orgulho?

CAPITULO Xl

Ter Hugh para sempre ! Essas palavras mágicas a impeliam para a frente. Sentada no fusca qie ia vencendo os quilômetros que a separavam de Craemar As palavras dc Connie não a deixavam em paz. A história da vida de Hugh esclarecia muita coisa, seu desejo de isolamento, sua falta de confiança em qualquer sentimento. Por que Hugh deveria acreditar na força do amor, se ele nunca lhe servira para nada? Nem mesmo a mãe, que o amava tanto, fora capaz de livrá-lo da tirania bestial do pai e ela mesma tinha morrido por confiar demais, por ser leal e continuar ligada a um marido que a maltratava, Naquela noite, após a reunião do teatro, Julie não conseguira dormir. Só pensava nele, em sua infância sofrida, em seu trauma. Queria estar junto, mesmo que ele não a quisesse. la ser difícil esperar até o domingo. Seriam dois dias inteiros, quarenta e oito horas de tormento e aflição. O jeito era abreviar o tempo e ir para onde ele estava. Julie esperou apenas que raiasse o dia, colocou algumas roupas numa sacola e escreveu um bilhete para Phillip, explicando sua ausência. O patrão ia ficar furioso, mas isso não era problema. Queria se concentrar apenas em Hugh e em como poderia fazê-lo ver a realidade; Não podia se valer de palavras suaves ou de gestos carinhosos. Elas não funcionariam com Hugh. Então… como? Não sabia, ia se deixar guiar pelo instinto, pelas reações dele. Tinha conseguido convencê-lo a ajudar Olívia e Charlcs e isso já era meio caminho andado. No momento certo saberia o que fazer ou como agir. O fusca se arrastava pela estrada molhada. Naquela madrugada uma chuva pesada havia deixado tudo encharcado. Uma garoa fina ainda continuava a cair. O limpador de pára-brisas funcionava com um barulhinho monótono enquanto ela cruzava a planície Hauraki. — Que tempo horroroso! —Julie comentou em voz alta. Ela esticou o corpo. já cansado pela tensão de dirigir. Quando chegou em Kopu reparou no aviso dizendo que a estrada via Tapu estava interditada. Com toda razão! Aquela via de acesso já era perigosa em tempo seco, molhada então. Não tinha importância, pois planejara ir pelo caminho mais seguro, através da base da península, contornando a costa. Era mais longe porém mais seguro. Mesmo assim, quando ela cruzou o rio Tairua estava com os cabelos em pé. O rio, normalmente uma corrente mansa, parecia ter inchado, dobrado de volume, lamacento e ameaçador.

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Julie parou e olhou ao seu redor. Viu que partes da estrada haviam cedido sob o impacto da chuva pesada e que alguns pedaços do morro tinham deslizado sobre a mesma. Sentiu medo. E se uma porção de terra caísse sobre o fusca enquanto ela passava? O que devia lazer? Voltar? Não! Estava cada vez mais próxima de Hugh e não ia deixar as coisas para depois. Ia em frente, com cuidado, rezando para que nada de ruim lhe acontecesse. Engrenou a primeira e o fusca seguiu devagarinho, valente, através da estrada enlameada. “Coragem”, ela dísse a si mesma. “Falta pouco agora. Só mais uma subida e poderei descer para pegar o vale.” Aliviada ela deixou as montanhas e seguiu a planície. Ali tudo parecia mais tranqüilo, mas estava cansada por dirigir. A dúvida a assaltou. O que estava fazendo ali? Como se tinha deixado convencer àquela loucura? Ele era capaz de comê-la viva por interferir em sua vida. Por duas vezes a tinha mandado embora. Deveria tentar uma terceira? Ela diminuiu a marcha, disposta a voltar mas, só de pensar em enfrentar os perigos vencidos, achou preferível seguir em frente. Continuou dirigindo com atenção redobrada, já que a chuva se tornava cada vez mais forte. O limpador já não dava conta de tanta água e por vezes ela mal sabia onde acabava a estrada e começava o acostamento. Finalmente viu que estava chegando a Craemar. Divisou a entrada em curva que a levaria até a casa e seguiu por ela, agora mais calma. Nesse instante um relâmpago iluminou o céu à sua frente, seguido de um trovão tão forte, que ela teve a impressão de que o fusca fora atingido. Gritou assustada e, sem querer, puxou o volante para a direita numa tentativa de se proteger O carro derrapou e acabou caindo na pequena vala que corria ao lado do caminho, e duas rodas ficaram atoladas na lama. Julie ainda tentou se livrar dali, mas acabou compreendendo que era inútil. Quanto mais forçava, mais as rodas se enterravan no barro. Ela desistiu e desligou o motor. Limpou o vidro embaçado e olhou para a casa. Viu que saía fumaça da chaminé do quarto de Hugh e que as cortinas estavam abertas. Julie olhou para o relógio. Nove horas. Tinha levado quase cinco para percorrer um caminho que geralmente demandava três. Com toda razão se sentia um trapo. Para completar, aquele trovão ensurdecedor que a deixara com tanto medo! Ia esperar mais um pouco dentro do carro e quando a chuva diminuísse daria uma corrida até a casa. Foi então que viu uma pessoa sair da garagem carregando um guarda-chuva. Rapidamente ela abriu a porta e pisou na grama encharcada, a chuva fria penetrando em seu jeans. — Hugh? Ele mudou de direção e foi para junto dela. — Julie! O que... Um outro trovão, forte como o primeiro, fez a terra estremecer. Julie não conteve um grito de pavor, estendeu os braços em busca de proteção e se agarrou à primeira coisa sólida que surgiu em sua frente. 68


— Meu Deus! A tempestade está terrível. Esse trovão estourou bem em cima dc nós julie comentou ainda trêmula, agarrando-se em Hugh. — Acho que… — Um som forte, que mais parecia um rugido de um animal, cruzou os ares e os interromperam. Imediatamente ele a agarrou pelo braço, largou o guarda- chuva no chão e, sem nem uma palavra, começou a correr para casa. —O que foi? Um deslizamento? — ela gritou no meio do vento cortante. Ele não respondeu e a levou para dentro de casa, subindo a escada que levava até o sótão. — O que é esse barulho? O que está acontecendo, Hugh? Ele a empurrou para dentro de seus aposentos. O lugar estava quente e aconchegante com a lareira acesa. Ainda sem responder as perguntas ansiosas, Hugh foi para a janela e ficou olhando para fora. Ofegante, Julie chegou perto dele e, através dos vidros, viu com horror o que estava acontecendo. Uma onda de lama deslizava sobre a frente da casa, cobrindo o jardim, arrancando árvores, avançando como um trator potente, destruindo tudo à sua frente. Atrás da lama seguia a enchente, a água devorando o pouco que sobrava, movimentando-se com urna velocidade incrível. —Estamos seguros aqui dentro? — Julie quis saber, chocada demais com a força daquilo. — Acho que sim. A casa fica em terreno elevado, mas seu carro não terá a mesma sorte. Julie estendeu o olhar e viu o pobre fusca com a água suja chegando até as janelas e já começando a flutuar. O barulho ameaçador foi diminuindo até se misturar com o da tempestade. A água, que jorrava em borbotões e parecia subir a cada segundo, diminuiu de intensidade. —De onde surgiu essa enchente? O riacho que corre ao lado do terreno é tão estreito e raso! — Julie exclamou impressionada. Hugh se virou e encarou-a pela primeira vez. — Como acha que acontecem as enchentes? — Hugh se mostrou sarcástico. — Choveu sem parar durante vinte e quatro horas. Onde pensa que essa água toda vai? Toda a península está inundada e Coromandel ficou isolada do resto do país. — É mesmo’? — Ainda bem que ela não sabia, senão não teria se aventurado até ali. — Não tenho rádio no fusca e não li o jornal de manhã. — Não é possível! Não sabia de nada? Metade da região do Thames está inundada e sem comunicações. Há pessoas ilhadas em casas e fazendas, esperando auxílio, e só podem ser retiradas com helicópteros. Todo o vale está devastado. Você atravessou a montanha, andou pelas estradas e não conhecia a situação? Hugh falava em tom tão acusador que Julie resolveu desviar o assunto 69


—Por que estamos aqui em cima se a água não chega a acançar a casa? —Porque a casa toda está fria e os móveis cobertos com lencóis. —Comprendo. Então,.. estamos salvos. — Esta casa existe há mais de cem anos e já enfrentou muitas enchentes. Se resistiu até agora, tenho certeza de que poderá enfrentar mais uma. Julie concordou com a cabeça e não pôde evitar estremecer de frio. Estava toda ensopada. — Se sente frio, fique perto da lareira. Está molhada e é muito fácil pegar uma pneumonia, Julie obedeceu e estendeu as mãos para as chamas quentes. Sentiu-se melhor e logo um calorzinho gostoso tomou conta de seu corpo. —O que estava fazendo na estrada, com um tempo tão horrível? — Hugh quis saber. — Estava à sua procura. — O quê? Quando saiu de Auckland? — Hoje de madrugada. — Veio de tão longe, com as estradas perigosas, enfrentando enchentes e tempestades? — Foi, mas eu cheguei bem, não é? —Você é completamente sem juízo! Uma louquinha! E para quê’? Se eu não estivesse aqui, o que teria feito? Dado mais voltas, enfrentando o inferno de novo? — Não sou louca, Hugh. Tinha consciência de meus atos e minha vinda foi deliberada. Connie me disse que o encontraria aqui. —E ela não lhe contou que daqui a dois dias eu estaria em Auckland? Se queria falar comigo, era só esperar mais um pouco. — Eu não pude esperar. — Julie levantou o queixo em atitude de desafio. — Não pôde esperar! Puxa vida, Julie, você podta ter se matado num dos precipícios da estrada! Bobinha! — Está bom, posso ser louca ou boba, como quiser. E daí? Você teria ficado muito contente se eu tivesse morrido? Só assim se livraria de mim! — Não seja tonta! Você não é mais criança! Hugh pegou-a pelos ombros e começou a sacudi-la. De repente já não a estava mais castigando, mas abraçando-a e beijando-a com paixão, a boca apertada contra a dela. Para Julie foi a resposta às suas dúvidas. Amava aquele homem incondicionalmente. — Não pode ficar com essas roupas molhadas. —Hugh se afastou rapidamente como se aquela umidade fosse contagiosa. 70


Julie ficou boquiaberta. Mal havia se refeito da alegria por aquele ataque de paixão, via Hugh mudar subitamente seu modo de agir. —Infelizmente minhas roupas ficaram no fusca. Não tenho o que vestir. — Vá tomar uma ducha enquanto procuro urna roupa das meninas ou de mamãe. — Tem água quente? Não há mais eletricidade, não é? —Temos um gerador aqui em casa. Era isso que eu estava fazendo na garagem, pondo-o a funcionar. Julie se deliciou com o banho. Era bom sentir-se quente e limpa, cheirando a sabonete, tomara que Hugh não encontrasse nada para ela vestir. Adoraria usar uma das camisas dele. Ou mesmo um paletó de pijama. Ficaria sexy, talvez até irresistível. e Hugh se sentiria compelido a beijá-la. Aí então... Ela sorriu, lembrando de como Hugh tinha ficado zangado, os olhos soltando chispas, os dentes rangendo, as mãos crispadas. Ótimo! Ele tinha sentimento, era humano, e a redoma de vidro onde se fechara já mostrava sinais de ruptura. Com mais um pequeno esforço... Julie se enxugou com uma toalha enorme e felpuda e vestiu o robe de veludo que Hugh achou no armário de Connie. Pôs a roupa dela para secar em frente da lareira e sentou-se no chão para comer o lanche que ele havia preparado. Conversaram um pouco e depois se concentraram em ouvir as últimas notícias que lhes chegavam através do rádio. Coromandel estava realmente isolada do resto do pais e na iminência de ser declarada em estado de emergência. “Esperam-se mais chuvas, com possíveis trovoadas e os ventos soprando com muita força na direção da costa. Provavelmente haverá uma melhora das condições meteorológicas ao cair da noite”, falou o homem encarregado da previsão do tempo. — Diabo! —Parece que vamos ter que ficar aqui mais um pouco — Julie comentou, percebendo como ele havia se aborrecido, —O sanduíche está delicioso. Não quer um? Hugh apenas acenou que não. Ela não teve dúvidas, pegou o outro pedaço de pão e comeu-o com avidez. Era a primeira vez que comia, desde o coquetel da noite anterior. Satisfeita a fome, Julie achou que chegara a hora de abordar o assunto que a trouxera ali. Não ia ser muito agradável, pois seria difícil prever a reação de Hugh, mas não ia se acovardar, — Não temos outra solucão senão ficarmos aqui até que a chuva passe e as águas voltem ao normal, o que vamos fazer pra nos distrair? — Julie piscou os olhos sedutoramente. Hugh reagiu imediatamente, levantou e deu uns passos pela sala, como se fosse um urso engaiolado. — Julie, se você veio até aqui apenas para me atormentar,eu..... — Atormentar? — Julie levantou e foi para junto dele. —Acha mesmo que minha presença pode lhe causar mal? — Ela deu uns passos para a frente, mas o robe era grande demais e ela tropeçou na barra, indo cair diretamente nos braços dele, o contato físico produziu efeito instantâneo. — Oh… Hugh. 71


—Julie, seja razoável, — Eu? Como quer que eu seja, se há pouco declarou que eu era louca e boba? — Ela se encostou mais nele. — Que tal sermos ambos um pouco tontinhos? — Aninhou a cabeça no ombro dele. — Não. — A negativa saiu de modo brusco. — Sim. — Julie inclinou a cabeça para trás e sorriu sedutora, olhando para a face severa dele, — Quando vai parar de lutar contra mim? Eu te quero e você também me quer... isso é uma coisa que não podemos negar. — Ela balançou os quadris de encontro ao dele, provocando-o, tentando provar que seu ponto de vista estava certo e que não havia maneira de provar o contrário. Julie se tornou ousada e enfiou a mão pela camisa de Hugh, sentindo-lhe o peito. Hugh retirou-lhe o braço mas Julie nâo se deu por achada. Baixou a mão para fazê-la entrar por baixo da camisa dele, até acariciar o peito amplo de outra forma. Ela podia não ter experiência no amor, mas seu instinto lhe ditava o que fazer para conquistar e seduzir um homem. — Posso lhe mostrar corno se divertir muito — ela falou quase num murmúrio. —Richard disse que eu sou muito boa na cama e que… —Não diga besteiras, Julie. Você mesma afirmou que nunca foram amantes. — É mesmo? —-ela soltou uma risadinha. —Talvez eu o esteja confundindo com alguém mais, só que não me lembro quem. Julie pôs o dedo na boca, como se estivesse fazendo um tremendo esforço para se lembrar. Logo depois começou a falar uma série de nomes masculinos que nunca existiram em sua vida. Viu que Hugh ficava cada vez mais furioso, os olhos tão cheios de raiva que estavam quase pretos. Ela continuou falando, esperando que logo conseguisse derreter o gelo que ainda envolvia o coração de Hugh. — Acho que agora me lembrei. Foi Steve. — Julie tinha notado que Hugh ficava ainda mais perturbado quando ela mencionava os gêmeos. — É. Isso mesmo. Foi Steve. Ele é um tremendo amante, tão arrasador que… — Cale a boca! Não quero ouvir, nem saber de nada. Fique quieta e saia daqui. Já! — Ir embora? Para onde? Não há lugar para onde ir. As estradas estão interditadas e… já esqueceu da enchente? Não vou conseguir nem transpor a porta da frente! Não podemos sair daqui, Hugh, nenhum dos dois. — Ela respirou fundo e continuou, sabendo que estava se arriscando muito diante da fúria de Hugh. — Por que não aproveitamos bem o nosso tempo? Ou tem medo de não estar à altura dos gêmeos? Ou tem algum complexo que o impede de.... Oh. Hugh… O grito amedrontado escapou dos lábios de Julie quando viu que ele avançava para cima dela, os punhos fechados e em posição de ataque, vencendo os últimos domínios do controle. Ele tinha uma expressão assassina e as veias do rosto se destacavam na pele queimada, pulsando selvagemente sob o impulso do ódio. A vontade de Julie era fugir dali correndo, escapar da ira incontrolável de Hugh. Mas se dominou, adquirindo confiança. Tinha que ir até o fim, se amava Hugh de verdade. Deliberadamente, ela continuou, a voz forte e decidida: —Pegue o ferro da lareira e me bata, Hugh. É isso que quer fazer, não é? Quer me fazer engolir o que eu disse? Então me obrigue.Me bata, me castigue, Hugh! Me force a pedir desculpas. 72


Ela ouviu o estralar dos dedos enquanto Hugh apertava as mãos com toda força. Ele gemia, ainda se segurando para não atingi-la no rosto, sua força cega e brutal aparecendo nos músculos contraidos, nos dentes que brilhavam. —Vamos, me bata. Sabe que é isso que quer. Vai se sentir bem, forte, dominante, macho. vamos. Hugh, me bata com força. Mostre que tipo de homem você é! Ele não aguentou mais e se atirou para ela com violência, os punhos erguidos. Julie soluçou, fechou os olhos, esperando o impacto do golpe. Sentia-se morrer, não acreditava que ele pudesse machucá-la.. Percebeu o deslocamento de ar quando o soco de Hugh não tocou seu rosto, mas atingiu a porta do armário às suas costas, afundando-a. —Não! Não! —Com um grunhido rouco Hugh bateu outra vez no armário, desesperado. — Meu Deus! — Ele olhou para a mão ferida e reparou na madeira despedaçada. — Não... Sua voz se tornou um murmúrio de derrota, como se toda sua força houvesse evaporado. Hugh era um gigante vencido, a cabeça caida para trás, os olhos fechados, o rosto descorado. —Não.. não… — ela se juntou aos gemidos dele, abraçou o corpo caído e chocantemente fraco, aninhando-o junto do seu peito para lhe transmitir força. Sentiu que ele tremia e consolou com palavras doces, com a imensidão de seu amor. — Não, querido, sei que nunca poderá me machucar. Nem por amor nem por ódio, nem no mais furioso acesso de raiva. Nós todos sabemos que você seria incapaz de me atingir. Desculpe. meu querido, mas tive que dizer aquelas palavras horríveis, precisava lhe mostrar que... Você é teimoso demais e jamais teria me acreditado se lhe dissesse, em vez de fazê-lo provar a verdade. Vagarosamente Hugh ergueu a cabeça e se afastou um pouco dela. Viu-lhe as faces bonitas cobertas de lágrimas, os olhos azuis implorando seu perdão. Ele compreendeu o que tinha acontecido. —Você.. — Ele engoliu em seco. — Voce.. fez tudo isso de propósito? —Desculpe, Hugh, mas agora compreende por quê, não é? O rosto de Julie se iluminou com um sorriso, antes que ela respondesse: — Confiei em você. — Fez de propósito — ele repetiu suavemente. — Sim. agora eu entendo. Fez de propósito —ele ainda disse, como se fosse difícil acreditar. Julie esperou, o coração batendo como louco. Ela prendeu a respiração quando Hugh a segurou pelo pescoco, tão apertado que ela podia sentir o sangue pulsar nas veias — Tudo aquilo que contou… sobre seus amantes —Foi tudo mentira —Julie murmurou, —Mentiras… Deus! Fez tudo de propósito! Tive vontade de matá-la! — Ele passou os dedos pelo pescoço delicado. Julie ficou muito quieta. tentando compreender o que se passava com ele. 73


— Mas você me provou que sou incapaz de matar... — Hugh a puxou para mais perto—... talvez exista uma maneira de eu poder fazê-la sentir um pouquinho o gosto da morte. — O quê?… — Os joelhos dela tremiam ao reparar como Hugh olhava seu corpo. Havia um brilho estranho naqueles olhos, que ela nunca tinha visto antes, um fulgor envolvente. — É assim que chamam o amor... uma pequena morte! —Hugh soltou o cinto do robe, puxandoo para baixo antes que Julie conseguisse reagir. Ele ainda a segurava pelo pescoço e aquela mistura de medo e de antecipação pelo que ia acontecer a excitava. instintivamente levantou os braços numa tentativa de se cobrir e proteger. Hugh riu. — Você vai ver. Julie, antes de terminar vou conhecer cada pedacinho de você por dentro e por fora. Hugh a beijou possessivamente, até que toda a boca de Julie fosse explorada com sensualidade extrema. Suas mãos grandes e experientes moviam-se pelo corpo jovem, apertando os seios fartos, descendo ao ventre, para ir mais além. Os dedos imitavam a invasão que sua língua fazia na boca sedenta de beijos. A enchente lá fora não era nada se comparada com as ondas de prazer que devoraram Julie ao permitir que Hugh se apossasse de seu corpo. Hugh estava à vontade, seguro do seu domínio. como se tivesse deixado para trás sua existência sofrida, para emergir revigorado e cheio de energia. Julie exultava de paixão, a pele em contato com o corpo viril, as coxas se entrelaçando, os lábios se tocando numa febre sem fim. Num instante Hugh se livrou das roupas e fez Julie deitar no tapete em frente ao fogo mortiço. Colocou o corpo no dela, movimentando-se com delicadeza, consumindo-a com o calor de seus beijos. —Julie… — ele murmurou, mordendo-lhes as orelhas pequeninas, fazendo com que as sensações crescessem dentro dela. Hugh deslizou para cima de Julie, que preparou-se para recebê-lo. Por um momento ela o sentiu tenso, mas logo ele se entregava ao desejo crescente, vencendo finalmente o último obstáculo. Seu gemido de triunfo se uniu ao pequeno grito dela. Depois ele explodiu na felicidade do amor realizado, levando os dois ao auge da paixão. Mais tarde, satisfeita e feliz, Julie estava aninhada nos braços de seu amado. — Não sabia que era virgem, Julie. Fui depressa demais? —Não. Foí um momento perfeito e não queria que nada fosse diferente. Amo você, Hugh. Ele a olhou demoradamente para depois apertá-la nos braços. — Julie… Richard tem razão. Sou muito velho para você, demasiado egoísta… Não posso fazêla feliz, nem lhe dar o tipo de amor que merece. Julie sorriu. Hugh não parecia acreditar no que dizia e, se o conhecia bem, isso era o mais próximo possível de uma declaração de amor. —Você é muito mais do que imaginava em meus sonhos, um amante maravilhoso. — Amante demais, talvez. — Ele fez uma pausa. — Ouça, Julie, estou tentando proteger você e não a mim, sei que conseguiu provar que não sou como meu pai e lhe sou grato por isso, mas existem 74


outras maneiras de se causar sofrimento em alguém. Somos diferentes, opostos. e talvez me ame agora, mas quando descobrir minha natureza pessimista, a maneira opressiva com que posso tratá-la, achará minha companhia insuportável. Não tenho seu temperamento alegre, que encara os fatos com naturalidade. Eu jamais teria ido procurá-la. Teria usado todas minhas forças para me convencer de que a vida era melhor sem você. — Sei disso, Julie não se sentia magoada. Tudo isso era parte do que Hugh era, parte da carga pesada que ele carregava nos ombros, da qual ela estava disposta a aliviá-lo. — Eu vim atrás de você, Hugh, e estou aqui agora. Amo você e sei que gosta de minha companhia. Fez amor comigo com muita delicadeza e ternura. Isso não é o suficiente para começarmos uma vida a dois? Ele ficou quieto por algum tempo. Quando falou, tinha os olhos perdidos no vazio. —Quem lhe contou sobre meus pais? — Connie. Fui à estréia de Romeu e Julieta e conversamos muito. — E você, com seu coração de manteiga, vôou de Auckland até aqui para bancar a psicóloga, não foi? — Bem. meu plano deu resultado. —Hum.. está ficando convencida — Para que discutirmos sobre isso? — Eu não queria que você tivesse invadido minha vida. Estava contente com o que tinha, mas de repente você apareceu e mudou tudo. Quando começou a datilografar para mim,tão cheia de vida, tão irreverente, acabou por seduzir-me. — Eu seduzi você? Está brincando? —Sabe que foi assim que aconteceu. —Hugh sorriu e Julie se sentiu ainda mais feliz. — Desde que surgiu em minha vida não tive mais sossego. Você me conquistou com seus olhos inocentes, sua boca sorridente, seu senso de humor inesgotáveI, seus acidentes incríveis! Fiquei fascinado! Você parecia feita para mim e acho que a desejei desde o dia em que a vi pela primeira ver. — Então…por que custou tanto a me aceitar? — Porque seu amor me assustou. Foi muito de repente, grande demais, e despertou perigos que eu não queria enfrentar. Compreendi que com você tinha que ser tudo ou nada e disse a mim mesmo que seria muito mais fácil ficar com o nada, — Ele encarou-a e seus olhos não abandonaram os dela. — Quer se casar comigo? Sei que não vai ser fácil, mas podemos tentar. — Quero sim — ela respondeu depressa, antes que ele retirasse a proposta. — Concordo que teremos momentos difíceis. mas as melhores coisas da vida não acontecem sem luta. Sei que somos diferentes mas nos entendemos bem. Você, com seu jeito sério, poderá me manter no chão e eu, sonhadora e despreocupada, posso levá-lo para cima das nuvens, o mundo será nosso. — Julie, é possivel possuir tanta felicidade’? 75


— Isto é só o princípio, querido. Eles riram contentes, — Gosto da maneira com ri. É o que mais me encanta em você. Acha que pode continuar sorrindo, se eu a possuir de novo? — Hugh... Acho que você mudou muito depressa! Mais uma vez eles se amaram com paixão, agora calmos e tranqüilos, gozando cada momento da convivência íntima, saciados, eles ficaram um nos braços do outro. — Amo você, Julie. Nunca pensei que confessasse isto um dia. —Como custou a admitir! — Levei tempo para me acostumar com a idéia, mas agora sei que é verdade. —Hugh. Eles trocaram um beijo longo, — Segundo a previsão do tempo, teremos ainda umas vinte e quatro horas sem comunicações, em que estaremos afastados do mundo, Julie. Devemos usar cada uma destas horas para nos amarmos. Hugh carregou-a nos braços para depositá-la na enorme cama macia. — Mas, Hugh… não precisa acabar seu livro para levá-lo a Auckland? —O trabalho que vá para o inferno! Estamos atravessando uma emergência, não ouviu pelo rádio? É nosso dever ajudarmos nossos semelhantes que..... Eu preciso muito de você, de seu amor, de seu carinho. Julie riu e logo Hugh estava rindo também. Era um bom começo, ela pensou. Sim, era um ótimo comeco Fim

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