Neolirium - Edição 0

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neolirium.com.br


Expediente: Projeto Experimental de Conclusão de Curso Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo Edição, redação e diagramação: Thais Andressa Perez Orientação: Profª Angela Loures Universidade de Taubaté - 2015

Confira o conteúdo online: neolirium.com.br


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Zine é_________? As nuânces do papel xerocado

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Os filhos do Vale Os caminhos da música independente Fábrica de Golpes

Lajä Records: A marca do Underground

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Anarkia Tropikal A cumbia punk de Santiago

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Taubaté is Beautiful A arte das ruas com o Coletivo Anartista

Cartas Iluminadas Literatura Beatnik

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André Yamamoto Portfólio Fotográfico

Literatura nas Sarjetas Poesia de Aron dos Santos

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Os quadrinhos mais Sujos do mundo Cristiano Onofre e as tirinhas mais sujas do mundo

O Diabo mora na Web

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Os caminhos ocultos da internet

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Uma revolução por

CLOSE

O que é ser Drag Queen?

Carne é Assassinato A luta a favor dos Direitos Animais

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Ode ao Picador de Gelo Série de ilustrações de Kayssa Mavrides


FANZINE

é ________?

As diferentes nuances do papel xerocado Fanzine sempre me pareceu uma palavra espacial, com uma sonoridade meio alienígena. Talvez pela sua fonética gringa, duas sílabas tiradas de outras palavras para formar uma nova, como um retalho colorido e meio brega. A etimologia é bem simples de entender: “fan” vem de “fanático” e “zine” de “magazine”, revista em inglês. Apesar disso, quando eu comecei a dizer por aí que ia fazer um fanzine, não foi muita gente que entendeu o que eu quis dizer. Em uma era em que tudo é digital e até mesmo as revistas e jornais impressos estão lutando pra sobreviver, querer que alguém saiba o que é fanzine é uma grande ambição. Os fanzines nasceram na década de 1920, quando uma galera que curtia ficção científica começou a fazer suas próprias revistas com histórias autorais, tudo de forma artesanal e até um pouco tosca. Poucos volumes, baixa qualidade de impressão e gráfica, davam uma cara peculiar aos zines, mas o que realmente diferenciava essas “revistas” era seu conteúdo. Além de ser um hobby que deixava os fãs mais próximos de suas paixões, a prática de se fazer fanzines se tornou um exercício de comunicação, expressão artística e ideológica. Começaram a surgir fanzines de tudo quan-

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to é assunto. Histórias em Quadrinhos, Música, Ativismo, Artes Visuais, entre outros temas que eram explorados pela ótica de grupos com pouca representatividade na mídia convencional. Quem escrevia fanzine não precisava ser necessariamente um profissional, mas, no improviso, se aprendia de tudo. Escrever, desenhar, fotografar, entrevistas, editar: tudo o que uma equipe de uma grande revista faria, só que sem um chefe. Aqui no Brasil, o surgimento dos fanzines tem muito a ver com a imprensa alternativa. A Ditadura Militar teve em resposta rebeliões políticas e intelectuais. As vozes não se calavam diante das autoridades, mostrando sua resistência em escritos que expressavam suas perspectivas culturais e ideológicas. O tabloide O Pasquim, criado em 1969, fez oposição ao regime ditatorial, representando a contracultura ao falar sobre assuntos como feminismo, sexo, drogas e outras pautas que só tinham espaço em publicações autônomas. Essa tradição só fortaleceu a ideia de que é sim possível se opor aos meios de comunicação dominantes, de maneira acessível e popular. Só é necessário papel, lápis e boa vontade. Henrique Magalhães, pesquisador e professor


de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba, passou a ter contato com fanzines de histórias em quadrinhos em meados de 1970. Começou a trocar “figurinhas” entre amigos que gostavam de histórias em quadrinhos e apaixonou-se pelos fanzines. “Foi um impacto para mim, que não tinha visto nada igual. Resolvi não só editá-los como estudá-los em pesquisas de Mestrado e Doutorado”, explica Henrique, que é dono da editora independente Marca de Fantasia. Os zines ganharam destaque principalmente nos anos 1970 e 1980, quando as vozes da contracultura chocaram o mundo (e lançaram moda). Antes mesmo do movimento punk se consolidar, havia um controverso bar chamado CBGB em Nova Iorque. Lá se apresentavam bandas como o The Stooges, Velvet Underground, Dead Boys, Patti Smith e os Ramones. Aquela cena musical que vinha se formando precisava ser documentada. Em 1975, quando o cartunista John Holmstrom teve a iniciativa de fazer um fanzine sobre a cena musical alternativa, seu amigo Legs McNeil não achou uma boa ideia. Acabou sendo

convencido pelo argumento de que repórteres ganhavam cerveja de graça. Foi assim que surgiu o zine Punk, que batizou um movimento que alcançou o mundo todo. Legs, John, Marry Harron, Lester Bangs e muitos outros colaboradores do zine, escreveram matérias sobre bandas que se tornariam lendárias. O zine punk Sniffin’ Glue também foi considerado uma das bíblias do gênero musical. Além de serem especialistas no estilo musical que agitava aquele grupo de jovens “sem futuro” do final dos anos 1970, os “zineiros” deram o primeiro passo para estabelecer um dos principais mandamentos da cultura de fanzines: o “Faça Você Mesmo”. Afinal, se as revistas não trazem o que eu quero ler, vou fazer a minha! O jornalista Eduardo Ribeiro, que trabalha na revista online Noisey, viveu o auge dos fanzines musicais brasileiros. Resolveu fazer um perfil completo de 15 títulos que marcaram época e a vida de muitas pessoas. “Foi lendo fanzines que descobri minhas bandas preferidas, que tomei contato com os ideais que carrego até hoje e com o barato de produzir um veículo de comunicação impresso, em todas as suas etapas”, conta Edu-

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Papel,tesoura, caneta, xêrox e uma ideia na cabeça

Do it yourself! ardo, que através dos fanzines fez amigos, trocou cartas e viajou o Brasil para acompanhar festivais de música e eventos alternativos. A série Zine é Compromisso traz entrevistas dos editores de fanzines como o Aaah, lançado no começo dos anos 1990. Quando Eduardo conheceu a publicação, estava de “saco cheio” das pautas das revistas culturais daquela época. O zine escrito por Márcio Sno falava sobre bandas de que Eduardo nunca havia ouvido falar e nem apareceriam tão cedo na mídia de massa. “Quando não existia internet, eram os fanzines que traziam as novidades”, explica o jornalista. Os fanzines musicais não transmitiam somente informações básicas sobre bandas que não eram muito conhecidas pelo público, mas fizeram um papel importante em reunir pessoas com os mesmos gostos para refletir sobre assuntos filosóficos, políticos e comportamentais. O que realmente diferenciava a abordagem dos zines ao falar sobre cultura, era o tom crítico e aprofundado de suas matérias. Quem escrevia, fotografava e entrevistava as bandas não eram jornalistas de redação, mas pessoas que frequentavam shows e man-

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tinham contato direto com a cena musical. Muitas pessoas que faziam zines, acabaram indo trabalhar na grande imprensa. Ainda que os fanzines informativos tenham se reduzido ou sumido com o tempo, o espírito underground continuou vivo, principalmente em publicações online. “Para esse tipo de comunicação, a internet é mais ágil e alcança mais aficionados, além de não ter praticamente custo e limite geográfico”, explica Henrique Magalhães. Na verdade, é uma questão de gosto. Ainda tem gente que faz fanzines impressos, como o Bob Nascimento, editor do fanzine Pixxarte desde 1995. Conheceu essa arte com um amigo anarquista e desde então vem fazendo edições com trechos de livros, entrevistas, poesias, resenhas de filmes e novos artistas. “Zine pra mim é um jornal, em que cada um trabalha uma ideia em coletivo e divulga da forma que quiser. Pronto”, simplifica o poeta. Bob também tem experimentado levar algumas coisas do fanzines para a internet, mas confessa que não é tão atrativo quanto fazer zine impresso. “A graça é você pegar


ele, você sentir, saber que é uma coisa que você fez e trabalhou por aquilo, que você conseguiu alcançar um corpo coletivo e montar ele do jeito que você quer”. É esse toque pessoal que torna o conteúdo dos zines único e honesto. Quem faz zine não faz somente para lucrar ou atingir um status. Existe sim o desejo de falar com o público de igual para igual, entregar aquilo que ele mesmo mesmo gostaria de ler. “Eu acho que o fanzine é um meio que você tem de ler de uma forma mais natural. Conheci coisas nos zines que não conheceria na mídia de massa”, explica Bob. Hoje em dia não é muito comum ver zines sendo trocadas pelo correio, mas a cultura zineira continua viva e muito forte. A maior prova disso é a Feira Plana, um evento que reúne anualmente centenas de editores independentes. A primeira edição aconteceu em 2012 na área externa do Museu de Imagem e Som de São Paulo e nas edições seguintes teve que ser ampliada para as instalações do museu, recebendo 12 mil visitantes somente em sua segunda edição.

Quem imaginou a Feira Plana foi a Bia Bittencourt, editora de vídeo da TV Folha. Ela começou como todo zineiro, entrando em contato com publicações independentes frequentando shows de punk e em banquinhas de disco vendiam publicações, todos sobre política ou música. Quando entrou na faculdade de Artes estudou sobre plataformas impressas de artes visuais que se aproximavam do conceito de fanzine. Caminhando pelas banquinhas da Feira Plana a gente vê fanzine de tudo. Publicações artísticas, impressões que nunca tinha visto antes, fotografias, histórias em quadrinhos... e dá pra pegar tudo na mão, tudo impresso, vivo, frente aos nossos olhos. Muita gente vendendo, trocando e comprando publicações em sua maioria artesanais. Mesmo numa feira tão grande e diversa, é muito difícil ver um fanzine que traga conteúdo informativo em suas páginas. A todo tempo, recebemos informações e propagandas através de nossos ouvidos, olhos e mãos. Saber de algo, hoje em dia, não é tão mais excitante como antes. Pode ser que os

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Feira Plana 2014 por Duarte fanzines tenham perdido seu poder informativo, assim como os jornais impressos vão perder algum dia, mas ainda há um caminho a ser explorado. A internet pode atrapalhar as coisas para alguns, mas ela é responsável pelo renascimento da palavra fanzine, ainda que não seja em seu sentido original. “Em vez de de veicular informações e novidades, os zines têm que procurar falar de temas. Discutir um assunto de maneira mais apurada”, opina Eduardo Ribeiro. Juntar texto com a estética apurada dos zines desta década pode ser o caminho para iniciar uma nova leva de publicações jornalísticas alternativas e pessoais. “A crise não é do impresso, mas sim do que e como está sendo veiculado no impresso”. Sempre gostei de nomes que remetem a coisas intergalácticas e sempre vou dar explicações astrológicas para minhas decisões. Como pisciana, sou avoada e gosto bastante de viajar em pensamentos remotos. Delirium é uma

palavra de sonoridade alienígena. Não que eu tenha escutado algum extraterrestre falar, mas faz sentido na minha cabeça. Delírio também é o nome de uma personagem de uma história em quadrinho chamada Sandman, escrita por Neil Gaiman. Ela é uma garota que cabelos coloridos que representa um estado do comportamento humano que deixa as pessoas fora do lugar, em confusão mental, em outra realidade. A personagem recebe os delirantes em um grande reino colorido, cheio de sensações, cheiros, contrastes e texturas. Um lugar onde os lunáticos são levados a sério, afinal, todas as ficções são histórias verdadeiras de realidades alternativas. O objetivo desse zine é reunir diversos planetas, conhecidos ou desconhecidos, alienígenas que estão infiltrados em nossos meios, quebrando rituais e cotidianos banais.

Sandman- Neil Gaiman

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Salve as Kamadas Líricas por Letícia Kamada

Os filhos do vale

Era uma vez uma estância no Vale do Paraíba, que tinha tudo para ser uma grande cidade. Precisava somente que seus homens tomassem consciência de seu fabuloso potencial, mas que não se esquecessem de continuar amando e respeitando seu próximo. 207 anos passaram pelo tempo, em uma corrida na qual a comunidade foi vencedora. TÁ - SALVE AS KAMADAS LÍRICAS 6


São José dos Campos. A cidade da tecnologia, da saúde, da segurança, da qualidade de vida, São José das Oportunidades. Por muito tempo, aqui não se falou nada além de avião. Ser artista é bem complicado. Ser artista no Brasil? Pior ainda. Em São José dos Campos então... Os que tiveram suas preces atingidas por esse tal de São José se perguntam: “tem algo para fazer neste final de semana?”. Um barzinho, quem sabe, onde um cara tocando violão vai cantar músicas manjadas pelo grande público. Se ele não tocar o que a gente quiser, vamos pra outro lugar. Ninguém merece pagar couvert artístico. Quem faz música autoral nunca fez muito sucesso por aqui. Talvez esse procurado su-

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cesso seja algo relativo de músico para músico. Sempre teve gente que fez música de qualidade em São José dos Campos, e aqueles que insistiram em fazer acontecer estão colhendo agora seus frutos, sem precisar rezar pra santo nenhum. Muitas vezes, para ver um milagre, basta plantar uma semente. O Coletivo da Árvore nasceu de um desejo mútuo de músicos e produtores culturais, fazer música ao pé da Árvore da Chuva, uma centenária Samanea Saman, que fica em frente à arena aberta do CEFE (Centro de Formação do Educador). Uma bela acústica e um belo cenário inspiraram algo que já acontecia faz tempo: gente inventando um monte de coisa maluca para fazer e convidando os amigos para participarem.


O Coletivo da Árvore, que é formado por Gabriel Sielawa, Camila Grun, Cadu Cando, Gabriel Salve, Dom de Oliveira e Marcelo Lira, se oficializou em 2013, colocando sua principal proposta em prática: ocupar o espaço público, que muitas vezes fica esquecido pelas autoridades. “Fazer arte em São José, uma cidade militarizada e industrializada... é como plantar uma árvore. Você está querendo novos ares, uma conexão. Queremos apresentar essa nova forma de viver, conviver, ser cidadão. Estamos semeando o tempo todo”, diz a voz serena de Gabriel Salve, um dos integrantes do grupo. Ele toca guitarra, baixo e canta no Salve as Kamadas Líricas e no Coletivo Estoril. Em uma tarde ensolarada, o Salve as Kamadas Líricas experimentou fazer um show que,

de longe, parecia silencioso. Os músicos tocaram ao pé da orelha do público, literalmente. A saída de som foi conectada a fones de ouvido individuais e assim foi criado um universo paralelo no Parque Santos Dummond. As réplicas de aviões e os tranquilos pedestres passageiros ficaram curiosos, pararam para assistir e quiseram entrar naquela bolha. “O que está vindo é uma geração mais curiosa”, analisa Marcelo Lira, que também é membro do Salve as Kamadas. “Está começando a ter mais público, então começa a ter mais banda. Quem antes estava fazendo música autoral, não tinha ninguém pra assistir. Hoje em dia conseguimos fazer show com bandas autorais na quadra do SESC e lotar, algo que era inalcançável para nós. Ou seja, algo mudou”.

experimente os novos frutos Coletivo Estoril Quem: Gabriel Salve, Camilo Araujo, Passarinho e Diego Prado. O que toca: O repertório autoral que passeia pelo rock, samba, frevo, reggae, manguebeat e maracatu.

Dom Pescoço Quem: Rafael Pessoto, Luiz Felipe Passarinho, Gabriel Sielawa, Miguel Nador, Dom de Oliveira O que toca: “Cinco caboclos botando quente nas pedradas”. Na banda o que prevalece é a música autoral somada ao suingue, à energia, à psicodelia e apimentada por ritmos latinos e brasileiros. São ondas sonoras para dançar, para pensar, para bem vibrar.

Homens de melo Quem: Gabriel Sielawa, Rafael Pessoto, Luise Martins, Romulo Scarinni e Luiz Oliveira. O que toca: O repertório da banda mescla influências do rock, jazz, blues, samba, funk e outros estilos musicais. O grupo conta também com a sonoridade de instrumentos diversos, como cavaquinho, ukulele e xilofone.

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CHCL por Renata Tonelli

Desde sua fundação, o Coletivo da Árvore tem realizado eventos que não são apenas uma distração para o público, mas sim experiências sensoriais que marcam a memória. O ápice desse trabalho aconteceu no mesmo dia em que grandes bandas tocavam lá perto da Árvore da Chuva, na Virada Cultural Paulista. O Coletivo organizou o Projeto Imersão e a Virada Off, shows que reuniram diversas bandas da região no auditório do SESC e na Casa Plural. As casas lotaram ficaram lotadas de gente com vontade de ouvir música joseense. A cena musical não é feita só de músicos, é um conjunto de pessoas unidas pelo propósito de valorizar a arte pura e verdadeira, vinda

do peito. “Tem cada vez mais gente curiosa, mais bandas, bandas melhores e isso está se alimentando”, explica Lira. O Coletivo da Árvore não é formado apenas por músicos, mas por gente que quer ver todo tipo de produção criativa sendo experimentada, como jornalistas, fotógrafos, bailarinos e atores; por pessoas que se atraem por uma só razão. Transformar música em movimento não é fácil. É necessário muito esforço, dinheiro e tempo. Para alguns artistas, fazer arte de forma independente é o único jeito de se fazer ter a voz escutada. “Se você não for protagonista, alguém vai te dirigir”, diz Salve. Esse é um dos principais motivos pelo qual a ideo-

protagonista, alguém vai te dirigir”

“Se você não for

Gabriel Salve 9


logia Do It Yourself (faça você mesmo) existe. A banda de hardcore CHCL carrega esse pensamento em todos os seus modos. Além de fazer música, o grupo, que é formado por Diego Xavier (guitarra), Eder Penha (bateria), Diego Esteves (baixo e voz) e Gustavo Magalhães (guitarra e voz), gerencia o Bigorna Discos, um selo independente que une várias bandas, realizando parcerias, eventos e produções de CDs. “Nós tentamos ir aprendendo a fazer de tudo. Fazer evento, divulgar, produzir... é complicado e nem sempre dá certo, mas nós fazemos. Tem que fazer”, explica Diego Xavier, que também é dono do Estúdio Wasabi, onde acontecem as gravações do selo. Atualmente, fazem parte do Bigorna as bandas Sin Ayuda, NOAH, Under Bad Eyes, Negative Mantras, entre outras. “O selo foi uma maneira que encontramos de ajudar as bandas, nos tornamos facilitadores”, afirma Gustavo Magalhães. Cair na ilusão de que tudo vai cair do céu quando se tem uma banda é fácil. O principal conselho do CHCL para as bandas que reclamam é exatamente o que eles fazem: correm atrás de seus shows, desenham as capas de seus próprios discos, lançam e distribuem seus

produtos em shows que eles mesmos fazem. “É preciso ver o que está ao seu alcance e fazer”, insiste Eder. “As pessoas se autossabotam quando acham que não vão conseguir fazer as coisas. Se você se propõe a fazer algo da forma mais positiva possível, não tem como o resultado não ser satisfatório”, completa Gustavo, que repete para quem quiser ouvir: o CHCL não quer sair da cena independente. “Nós escolhemos viver assim”. Naquele mesmo dia em que várias bandas independentes se juntaram para fazer concertos memoráveis em São José, o Parque da Cidade recebeu o Vanguart para a Virada Cultural Paulista. A banda de Cuiabá começou como os membros do Coletivo da Árvore, ou seja, esforçando-se para fazer tudo que tinha vontade, até chegar ao estrelato. Quando o vocalista Hélio Flanders subiu ao palco para se apresentar para quase dez mil pessoas, esbravejou “apoiem os músicos de sua cidade!”. O Vanguart sabe muito bem o que os filhos do Vale precisam: além da independência, é essencial que o público continue apoiando a cena, frequentando shows, comprando discos, lendo matérias sobre novas bandas e descobrindo novos sons a cada dia que passa.

ouça as bandas no site:

neolirium.com.br

Dom Pescoço por Jaíne Lima

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Fábrica de

S E P L GO

Fábio Mozine se divide entre sua paixão pelo punk, pelo Flamengo e pela sua gravadora independente, a Lajä Records. Quem conhece esse nome sabe muito bem que ele é um dos caras mais influentes da cena hardcore brasileira. Além de ser baixista da lendária banda capixaba Mukeka di Rato, a sua “curadoria” levou aos ouvidos de muita gente bandas essenciais, como o Ratos de Porão e o Dead Fish. Uma vez punk, sempre punk. Mozine se envolveu na cena principalmente pela sua ideologia: aprendeu que pode fazer o que quiser do seu jeito. Ele já participou das bandas Revolta Social, Carcará, Dr. Mobral, Amigos do Rei (Roberto Carlos Cover) e atualmente toca no Merda, no Os Pedrero e no Mukeka di Rato, a primeira banda que teve seu disco lançado pela Lajä, em 1998. A partir da criação da gravadora, o Fábio começou a ajudar as bandas na divulgação, no merchandising, no lançamento de discos e em tours. A escolha das bandas que integram o 11

selo sempre foi muito pessoal. Alguns dos grupos que fazem parte da Lajä são o Water Rats, uma banda garage punk que mistura sons dos anos 80 e 90, os Figueroas, que carregam o espírito brega da lambada, os joseenses “rock podre” do Lo-Fi, entre outras.


Na lojinha virtual do Lajä Records, é possível encontrar cd’s, vinis, fitas k7, camisetas, livros, canecas, bonés e todo tipo de tranqueira produzida por eles mesmos, tudo com a cara do underground de Vila Velha. Os desenhos toscos, os personagens escrachados e as cores berrantes constroem a identidade da marca, que não deixa de interligar tudo isso com a música. A Mukeka di Rato já teve a oportunidade de tocar para uma grande gravadora, mas o Fábio Mozine prefere continuar onde está agora, no quarto reduzido da Lajä, lugar em que pode fazer tudo ao seu tempo e da maneira que desejar. O recado que ele deixa paras as bandas novas é que os músicos não larguem seus empregos para tocar, mas que busquem outras atividades como o audiovisual, a arte gráfica, fotografia; atividades que ampliem a experiência musical, assim como a Lajä fez.

Conheça as bandas da Läjä:

laja.minestore.com.br

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ANARKIA

TROPIKAL A CUMBIA PUNK DE SANTIAGO

A primeira parte do bairro Bella Vista, em Santiago, no Chile, é infestada de bares caros. Turistas, em sua maioria brasileiros e argentinos, provam o destilado de uvas Pisco Sour e a Michelada, uma mistura de cerveja com sal, limão e merkén (pimenta em pó). Tudo é novidade: desde a culinária até os tipos de “tribos” que circulam por ali para chegar à segunda parte do bairro. Bares de hip hop, rock, reggaeton (ritmo tão popular quanto o funk no Brasil), teatros e galerias escondidas de arte alternativa. Na Rua Santa Filomena, os punks se encontram. Cabelos coloridos, jaquetas de couro, tatuagens, camisetas de bandas do punk rock. Alguns se arriscam em camisas havaianas e cabelos compridos, mas a maioria parece esperar por um show de típicos “power trios”, formados por guitarra, baixo e bateria. Todos esperam ansiosamente pelo concerto, sentados nas calçadas, conversando para passar o tempo. Eis que surge no palco do Bar Santa Filomena a principal banda da noite: Anarkia Tropikal. Qualquer roqueiro se assustaria ao escutar os primeiros acordes da primeira música, introduzida por uma flauta tipicamente andina, percussões, trompete e ritmos latinos. Anarkia Tropikal não é exatamente uma banda de rock, mas não deixa de ter sua raiz punk. Formada por Seleno (teclados e trompete), Wawito (baixo), Rata (voz e guitarra), Justin (bateria), Nico (guiro) e Motumbo (percussões), o Anarkia Tropikal define seu estilo como “Cumbia Punk Psicodelia”. Há quase dez anos na cena musical santiaguina, o grupo mescla a raiz da música popular latina com a essência do punk.

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A Cumbia nasceu nos “guetos” da Colômbia e se espalhou pelos países de castelhano da América Latina. Popularizado principalmente na Argentina e no Chile, a Cumbia ganhou novas facetas, tornando-se a voz das comunidades afastadas dos centros megalomaníacos, falando sobre o cotidiano das populações populares. O punk rock também se originou dos excluídos e não contentados, que usavam sua voz para relatar os problemas e preocupações dos jovens. A junção da necessidade de se expressar e a filosofia do “faça você mesmo”, faz da mescla entre punk e cumbia parecer mais do que certa. Eles entram no palco com os rostos cobertos por bandanas coloridas e o público vibra. A música é dançante, mas a euforia de ver a banda faz o público pular naquele espaço gentilmente apelidado de “sauna”. As noites de Santiago são frias, mas no bar Santa Filomena é sempre um inferno quando muitas pessoas se juntam. Ao decorrer do show, o público se solta e começa a dançar, seja em pares, sozinhos ou com muitos amigos. Algumas vezes, aquele ritmo psicodélico andino é tomado por guitarras pesadas e bateria marcante, o que causa um rebuliço no público, que se enfrenta em “rodas punk”.


A banda surgiu quando os integrantes faziam um “mochilão” pela Argentina. Resolveram continuar a tocar em Santiago, fazendo shows improvisados em ônibus circulares (prática comum na capital do Chile), nas ruas e para os amigos. Depois de um ano, começaram a organizar melhor a banda e em 2006, gravaram seu primeiro disco, intitulado Kumbia Not Dead. O lançamento do disco coincidiu com a movimentação estudantil do Chile, que levou mais de cem mil estudantes para as ruas da capital. Além das manifestações, os estudantes organizaram greves e eventos culturais para dar voz a suas reinvindicações. Esse movimento deu espaço também para “radicais”, como os “encapuchados” (mascarados, em português), que se protegem e atacam o estado de forma agressiva. Anarquistas, socialistas, liberais: todos estavam lutando pelos mesmos direitos quando se tratava de enfrentar um estado repressivo. As letras do Anarkia Tropikal se tornaram hinos para os jovens que participavam das manifestações. Músicas como Amor Encapuchado e La Cimarra és la Educación falaram diretamente com uma geração que havia esquecido o que era a cumbia e que buscavam apoio dentro de seus ideais de liberdade e justiça. “Não nos consideramos anarquistas, apesar de ter afinidades com o movimento político. Nós somos libertários”, afirma Nico, que conta que a cumbia sempre esteve presente na vida dos integrantes da banda. “Nas ruas, nos bairros, nas casas, a cumbia sempre fez parte da nossa cultura popular, apesar de não ter ligação com ideias políticas”. A banda resolveu mesclar o que tinha aprendido com as letras politizadas do punk rock com a tradição popular da cumbia, para passar suas mensagens não só para o público

restrito do rock. “Acreditamos que a essência da cumbia villera e do punk é a mesma, são ritmos simples, que podem ser tocados por qualquer um”, explica Rata, vocalista da banda. “Não somos músicos formados e o que é valorizado na nossa música é a força interior, a letra. A cumbia e o punk são ritmos marginais, antissistema, que estão próximos das camadas populares”. A banda já teve a oportunidade de fazer shows na Argentina, Colombia, Peru, Uruguai, Brasil, Bolívia. Em cada país que os “anarcotropicais” passaram, aprenderam sobre ritmos diferentes, formas de se fazer música e culturais distintas. No Brasil, eles puderam conhecer o samba, o que enriqueceu suas referências. “No final, percebemos que toda a América Latina tem características parecidas e enfrentam os mesmos problemas. Nós sentimos que nossa raiz está em todo o continente”. “Tem gente que gosta de punk e não gosta de cumbia e vice-e-versa. Mas é coisa de experimentar”, diz Nico, com um sorriso no rosto. Mesmo que você não seja próximo de nenhum dos dois ritmos, é muito fácil cair na dança com o Anarkia Tropikal. No final do show, a maioria do público se dispersa do bar Santa Filomena para a avenida principal, onde os ônibus vem buscar os bêbados, os animados e os dançarinos. O trajeto, feito a pé, faz com que todas as tribos se encontrem novamente. Perto dos ambulantes que vendem comidas rápidas para matar a fome do fim da noite, um grupo toca uma cumbia improvisada em um carrinho de sopaipillas (massa frita feita de abóbora). Os que estão em volta gritam e se animam, os turistas olham curiosos. Quando o sol já está quase nascendo, todos sabem que amanhã é outro dia para conhecer o revisitar novos ritmos e produzir novas alegrias.

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TAUBATÉ IS BEATIFUL Em um muro desgastado, vazio de cor, desfarelando em cimento, esquecido por todos assim como os labirintos de calçada que nos fazem cair, os artistas do Coletivo Anartista pintam um elogio à cidade em que moram. Taubaté, que fica a 130 km da capital, abriga os coronéis, os degenerados, os esquecidos e os artistas. Aqueles que sobraram de um tempo de ouro e aqueles que chegaram procurando alguma esperança. Taubaté, de finitas pedras altas, is beautiful. O Coletivo Anartista chamou a atenção do grande público quando a frase “Taubaté Is Beautiful” foi vista no abrigo de um morador de rua: a velha estação de trem, que fica no centro de Taubaté, logo ao lado da Rodoviária Velha. Gravada em um papel pardo, a frase dividia espaço com outra declaração de amor: “Silvia, te amo. Jerson”. Ambos os dizeres adornavam portas de madeira desgastadas, por onde antigamente apressados passageiros atravessavam em direção aos seus destinos.

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“Foi ironia mesmo”, confirma Marck Mendonça, um dos integrantes do coletivo formado por quatro cabeças. Marck, Aron Mendonça, Valdir Rodrigo e Wendell Paulista formaram o Coletivo Anartista em 2013, depois de uma exposição em conjunto. “Resolvemos conversar uma coisa só”, explica Valdir Rodrigo, que carrega uma das diferentes linguagens que formam o coletivo. A identidade do grupo tem como principal convicção fazer arte com total liberdade. Taubaté não é tão beautiful assim. “Colocamos a frase em lugares abandonados, cheios de lixo, degradados”. O grupo espalhou a frase nos lugares invisíveis da cidade, com o objetivo de chamar a atenção para a sensação de abandono de uma cidade que sofre com a falta de infraestrutura. Teve resultado. Um dos locais em que a frase “Taubaté is Beautiful” foi marcada, foi limpo logo depois da “pichação”. O recado foi dado e recebido.


Os quatro artistas produzem esculturas, instalações, telas, grafite e poesia. Eles utilizam uma mescla de diversas técnicas, como stencil, xilogravura, pintura e colagem, um apanhado de diversas referências artísticas que fizeram parte da trajetória de cada membro. “Nossas ideias se complementam, nós discutimos e as obras são feitas em conjunto”, explica Marck. Entre críticas ao capitalismo, ao patriarcado, ao consumismo,

à violência do estado e outras questões políticas, o Anartista realiza seus trabalhos sem nenhuma censura. “A gente faz um trabalho pensando no diálogo com o público”, afirma Valdir. Além dos trabalhos apresentados em exposições, o Coletivo Anartista faz intervenções urbanas nas ruas de Taubaté, como a popular figura de Amácio Mazzaroppi recriada em diversas óticas pela técnica de stencil. O Mazzaroppi

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do Coletivo Anartista ainda anda pelas ruas de Taubaté, afrontando as paredes e os taubateanos, vestido de punk ou no corpo da escultura “Davi” de Michelangelo. “Queremos valorizar o que está esquecido”, diz Wendell. Utilizando elementos da cultura popular de Taubaté e do Vale do Paraíba, as obras do coletivo também buscam a identificação com o público. Figuras conhecidas da região ganham uma nova roupagem, chamando a atenção também das gerações mais novas para esses símbolos desgastados. “A gente usa nossa vivência pra fazer arte. Não podemos fazer algo que não conhecemos”, defende Aron, ressaltando que o coletivo condena a “americanização” da arte contemporânea. “Muitos artistas reproduzem o que é feito lá fora e não reconhece o que está aqui”, completa Marck. Apesar desse processo de elitização da arte, o público regional não tem acesso aos mesmos estímulos da capital, que é infestada de museus e atividades culturais. “O pessoal daqui conhece como arte o que é oferecido pela prefeitura”, explica Aron. Para o coletivo, institucionalizar a arte não é o jeito certo para propagá-la. “É como adestrar o pessoal. Eles filtram o que a gente pode fazer ou não, onde pode pixar, o que pode pixar...”, critica Aron. “Se vão autorizar alguns a fazer arte na rua, por que não autorizam todo mundo?”, questiona o artista. O coletivo já foi chamado pela prefeitura para participar de projetos, o que foi chamado de “contradição” pelos membros do grupo, que utilizam suas obras para criticar o poder público.

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Qualquer coisa pode virar expressão na mão do Coletivo. Resto de madeira, garrafa, revistas, livros e até mesmo cavaletes de campanhas políticas são usadas pelos quatro, dando vida a instalações, telas e esculturas. Ainda que boa parte do material seja reciclado, manter-se de forma independente na arte é difícil. “Conseguimos uma grana vendendo camisetas, mas a nossa renda vem das nossas outras ocupações”, explica Valdir, que dá aulas de arte em escolas. Apesar de expor seus trabalhos em algumas galerias independentes, faculdades e outros locais, a principal atividade do Coletivo é fazer intervenções urbanas. “A arte na rua está sujeita a tudo”. Desde reações adversas da polícia, até elogios dos que passam pelas ruas e ganham um pouco de consciência quando veem trabalhos feitos sem intuito comercial. O lugar da arte do Coletivo Anartista não é no museu, onde a arte repousa e permanece muitas vezes adormecida. Os muros que conversam com o público podem ser apagados com tinta branca. Os papéis colados em postes podem ser arrancados. O material das instalações pode se degradar. “Nossa arte é efêmera e tudo pode ser ultrapassado”, finaliza Aron. Ainda que tenha durado pouco tempo, a arte aconteceu e teve um resultado, como uma pequena explosão dentro de uma mente. Assim como os carros, as pessoas e até quem sabe, o amor de Jerson, a arte é coisa de momento.


Iluminadas

30/08/2015 Caro Leitor, Cartas não são feitas para serem obras de arte. As palavras são como carros que transportam o destinatário para um local distante. Cartas são pontes de saudade, ligações de pensamentos, trocas de experiências. São conversas e histórias compartilhadas, assim como as matérias deste zine. Eu aprendi a escrever lendo cartas, apresentadas para mim como a “Literatura da Geração Beat”. Estes escritores me ensinaram o caminho para contar uma boa história. A autora

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Foi por volta de 1950 que Neal Cassady narrou suas aventuras pelo país em uma carta “rápida, louca, confessional, completamente séria e minuciosa”, destinada a Jack Kerouac, um estudante da Universidade Columbia, apaixonado pelas letras. O escritor aspirante descobriu então que não precisava necessariamente se adequar às regras editoriais da época para publicar um livro. Essa inspiração deu fruto à obra que foi um marco na literatura americana. On The Road, traduzido ao português como Pé na Estrada pelo escritor e pesquisador Claudio Willer, é considerado o primeiro livro da Geração Beat, um hino de independência do falso país da liberdade. A obra-prima de Jack Keroauc influenciou uma boa parte da geração dos anos 60, que lutava contra a cultura dominante, recusando viver o “estilo americano de vida”. O livro narra as viagens de Neal Cassady, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, os principais nomes da “Geração Beat”, um grupo de amigos que se encontraram em aventuras pelo país regadas a sexo, drogas e jazz, fazendo história ao gritar um “foda-se” às técnicas literárias vigentes, escrevendo suas memórias, alucinações e desejos com uma ganância despretensiosa, deixando que a caligrafia registrasse sem censuras tudo que passavam pelas suas sinapses mentais. A partir dos registros desses escritores, a Ge-

Eu

vi os

ração Beat não se estruturou apenas como um momento literário, mas também como um movimento social e filosófico. Kerouac resume a visão Beat como “uma geração de loucos, iluminados hipsters, fez subitamente a América ascender e avançar, seriamente a vadiar e a pedir boleia em todo o lado, esfarrapada, beatificada, bonita de uma nova forma graciosamente feia”. Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos jogaram uma bomba atômica na cidade japonesa de Hiroshima, milhares de jovens se viram em uma visão apocalíptica do mundo. A doença que acabaria com o sonho americano foi constatada a partir de sintomas irreversíveis. Servir uma nação, trabalhar das 9h às 17h, comprar, comprar e comprar não faziam mais parte dos planos de uma geração em caminho ao niilismo. Em 1955, na Six Gallery de Nova Iorque, Allen Ginsberg leu uma carta destinada a todos os loucos não conformados da Geração Beat. A primeira leitura do poema Uivo, o manifesto dos beatniks, foi um marco para a literatura de confronto. O texto tem períodos longos que foram pequenos poemas ritmados, assim como uma música de Jazz, marcados pela sonoridade repetitiva, narrando histórias de anti-heróis iluminados. “Quando Allen leu Uivo, foi como se o céu caísse sobre nossas cabeças. Um efeito ini-

expoentes da minha geração,

destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada

em busca de uma

dose violenta de qualquer coisa,

hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo

contato celestial

com o dínamo estrelado da

maquinaria da noite (...)

Uivo - Allen Ginsberg

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Aqui

Os que

estão os

loucos.

Os desajustados. Os rebeldes.

fogem ao padrão.

Eles não se adaptam às

regras. Você pode citá-los ou achá-los

desagradáveis,

glorificá-los ou desprezá-los. Mas

a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. E enquanto alguns os veem como loucos,

gênios. JACK KEROUAC - ON THE ROAD nós os vemos como

maginável. Ele dizia tudo o que aquele público desejaria ouvir, e dizia isso na linguagem deles, rompendo radicalmente com o estilo estabelecido.” disse o mestre de cerimônias da noite na Six Gallery, Kenneth Rexroth. De fato, o que veio a seguir foi uma revoada de diferentes movimentos da contracultura, que não questionavam somente os precedentes literários, mas também os musicais, de moda, comportamento, de gênero e sexuali-

dade. Os hippies, os punks, os góticos, todos aqueles que não se encaixavam nos moldes da sociedade, foram inspirados pelos tons de liberdade que a Geração Beat relevou. Quando Allen Ginsberg e Jack Kerouac se juntaram para visitar William Burroughs, encontraram seu tutor. O Velho Bill não tinha a ambição de ser escritor, mas suas histórias e filosofia de vida inspiravam os jovens e ansiosos escritores. Com toda sua experiência de

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vida, Burroughs era uma prova viva do não

conformismo. Seu primeiro romance, Junkie, foi publicado em 1953, depois da insistência de Allen Ginsberg, que estava impressionado com as habilidades de escrita do autor, mostradas em cartas que narravam suas aventuras e pensamentos de forma crua. O grupo passou por uma série de experiências juntos, viagens, saraus, exploraram novas drogas; tudo que sempre quiseram fazer, sempre a serviço apenas de seu querer, da tão desejada liberdade. Os escritores da Geração Beat não eram somente “hipsters” que disfrutavam de um estilo de vida privilegiado, regado ao hedonismo egocêntrico. Eles estavam abertos a novos caminhos e tinham a coragem de respirar novas histórias, sempre de olho nos “loucos” que encontravam em suas idas e vindas.

O autor de Naked Angels, livro biográfico sobre os escritores da Geração Beat, cita “A principal motivação para essa união (entre Jack Keroauc, Allen Ginsberg e William Burroughs), foi a capacidade de cada um de confessar honestamente ao outro seus sentimentos mais profundos. Uma tal exposição de assuntos particulares contrariava o espírito da época, mas levou a descobertas estéticas e intelectuais”. No livro As Cartas de Jack Kerouac e Allen Ginsberg, editado por Bill Morgan e David Stanford, é possível entender um pouco desse elo afetivo e literário que unia os expoentes da Geração Beat. Em narrações cotidianas, narrações do distante e divagações sobre o incerto, os escritores da Geração Beat inauguraram um marco na literatura mundial, uma escrita que rejeitava todas as regras, exceto uma: nunca quebrar o ciclo de correspondências.

s t a e B s o e r b so s i a m Saiba Memórias de uma Beatnik

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(1969)

A Geração Beat não foi feita apenas pelos seus quatro principais escritores, e tampouco não somente por homens. Diane di Prima participou do movimento tanto como escritora quanto editora. Ao completar vinte anos, deixou a universidade e se instalou no pedaço mais perigoso da cidade. Seu primeiro livro de poemas publicado foi This Kind of Bird Flies Backward (Esse tipo de Pássaro Voa ao Contrário), em 1958. Em seus escritos, questionou os padrões culturais, de gênero e políticos, afrontando até mesmo a justiça americana ao publicar poemas e escrever peças de teatro consideradas obscenas. No livro Memórias de uma Beatnik, publicado em 1969, descreve os primeiros dias da cena beatnik em Nova York, nos anos 1950.


The Beats:

A Graphic History

(2010)

The Beats é uma graphic novel em tributo à história dos beatniks em páginas desenhadas. Roteirizada pelo quadrinista Harvey Pekar, conhecido pela obra American Splendor, The Beats contou com a participação do artista Ed Piskor, da artista Trina Robbins e do desenhista Peter Kuper, da revista MAD. A graphic novel retrata as aventuras, encontros, desencontros e anseios dos escritores da década de 1950 com a dinâmica e ritmo dos quadrinhos.

HOWL

(2010)

De forma lúdica e experimental, o filme Howl, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, recria a primeira leitura do mítico poema de Allen Ginsberg. A narrativa construída de forma não linear é composta por cenas em que o ator James Franco entoa a voz enfática do autor e por animações que representam as passagens do texto.

Naked Lunch

(1991)

Adaptação do livro Naked Lunch, publicado por William Burroughs em 1959. Foi dirigido por David Cronenberg, o filme retrata de forma peculiar passagens de Naked Lunch e de outros livros de Burroughs. As cenas são verdadeiras “alucinações” tóxicas, que misturam a realismo com ficção científica. Assim como os livros de Burroughs, o filme tece cenas grotescas, paranoicas e recheadas de ritmo.

Kill Your Darlings

(2013)

O filme dirigido por John Krokidas descreve os acontecimentos anteriores ao assassinato de David Kammerer, pelo ponto de vista do jovem Allen Ginsberg. O episódio faz com que ele, Jack Kerouac e William Burroughs se aproximem ainda mais. Kill Your Darlings não fala sobre a obra dos beats, mas mostra suas personalidades, vivências e sentimentos.

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André Yamamoto André Yamamoto é formado em Design Gráfico e se envolveu com a fotografia ao trabalhar em um estúdio que buscava alguém sem experiência e “vícios da profissão”. Treinou seu olhar a partir da linguagem do fotojornalismo e retrata principalmente cenas urbanas, cotidianas e banais que vê em seu bairro. “Gosto do jeito que as pessoas caminham pelas ruas, como ficam sentadas na calçada. Fotografo gente tomando café na padaria, porque acho fantástico o fato de alguém estar ali sem pensar que aquele momento não existe mais depois que fotografei”, explica. 23


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O design gráfico e a história da arte e seus processos de criação também estão muitos presentes no que André fotografa. “A fotografia não nos permite ficar alheio ao que a gente vive no dia-a-dia. Estar atento a isso é a minha principal referência”. O fotógrafo consome diariamente informação e anota o tempo todo o que está vendo. “Utilizo o Pinterest (rede social de imagens) para me ajudar a guardar boa parte das referências visuais e as consulto 27


sempre, assim como livros que não necessariamente falam sobre fotografia”. André também faz parte do Coletivo SEMO, grupo formado por ele e pelos artistas Camila Morita e Danilo Ferrara, que desenvolve trabalhos focados na pesquisa do processo de criação coletiva e suas ramificações. “Algo que não pode faltar durante todo o processo criativo é a sensibilidade com as pessoas. É importante que se permita que o fazer seja o próprio processo”. 28


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Literatura nas sarjetas

Foto por Kas Hoshi “Qualquer idiota acha que tem algo útil para dizer”. O estouro das redes sociais foi o pri-

meiro passo para que o taubateano Aron dos Santos começasse a publicar seus contos e poemas. Afinal, se todo mundo pode, por que não ele, um apaixonado pelas letras, que escreve desde pequeno? O garoto era muito tímido. Não mostrava seus textos para ninguém, se sentia mal só de pensar em fazê-lo. Resolveu dar a cara a tapa, colocar tudo que implodia dentro de si para fora. Suas palavras explodem em histórias breves, cotidianas e cruas. De que maneira os cenários marginais descritos nos seus poemas se relacionam com você? Em todos os aspectos. Cresci perto de um puteiro e uma vila onde tinha todo tipo de gente. Meu pai teve um bar, onde eu cansei de dormi no chão. Sempre me identifiquei com a marginalidade que me cercava, me sentia à vontade no meio disso tudo. Eu preferia o anti-herói. Por isso falo da sujeira humana e escancaro as feridas que vejo, como se eu andasse machucado, sangrando o tempo todo. Sempre estive desse lado da cerca, do bando. Como você lida com essa exposição ao publicar seus textos? Qual é o papel do olhar do outro na sua arte? No começo ficava tímido e incomodado. Hoje em dia eu gosto, mas o incômodo é o mesmo. O artista tem que conviver com o medo e a qualquer forma de exposição, mesmo que seja ridícula. Eu sou egoísta e quase todos poe-

mas falam do que sinto direta ou indiretamente. Confesso que é prazeroso. Acho que no fundo sempre gostei de exibir. No começo sentia medo das pessoas me rejeitarem por eu falar o que penso. Depois pensei: “Quantas pessoas são rejeitadas por apenas existir? ” Hoje, como artista, eu gosto de ter esse incômodo e acho que é o mesmo que meu leitor tem que sentir. Talvez seja a outra face do tesão, vamos colocar assim [risos]. Como é seu processo criativo? Sentar e escrever. Sentar e pintar. Não tenho muito isso. Deixo as coisas fluírem, se bagunçarem dentro de mim ou no papel. Tem vezes que estou lendo e me brota uma ideia ou um verso perdido em que penso: “Será que não escrevi isso antes?”. É um processo natural. Como um esquizofrênico que conversa com mil vozes ao mesmo tempo e todas elas são você mesmo tendo algo a dizer.

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I.

II.

Meu deus tem dislexia. Bem vindo ao mundo onde os heróis tem cirrose Nunca foi a escola os meninos tropicam nos tem cirrose calhamaços de cédulas fuma maconha que seriam seu destino pico, cheira cola onde o amor fraqueja ao invés onde todos fracassam da merenda escolar e homens só trabalham Meu deus pede movidos a corda de um sexo oral dinheiro no farol. ou balançar de quadris. Mendiga pelas ruas Bem vindos! pelas avenidas a onde todos estão sozinhos é pederasta... com suas vértebras perdidas dorme nas calçadas procurando se apossar qualquer bebe Corote articulação que lhe cause o gozo vara a madrugada onde as árvores tombam sem dinheiro, como bêbados indigentes sem comida, onde se mata o filho sem nada... para não igual o pai Meu deus não tem futuro onde se reparte o pão nem esperança com a condição de entregar não é homem, o pedaço embolorado mulher, sejam bem vindo nem criança, aos rumores da vitória é só alguém ajoelhados em bandeiras Meu deus está nas ruas provando ainda mais que nas rodas de fogos nossas historia é uma fábula entre o fogo cruzado escrita por um péssimo publicitário. entre brigas de dinheiro Onde não passamos de personas os doutorados não gratas assalariados com a miséria. e deputados... Seja bem vindos Meu deus não liguem se forem currados vaga pela cidade em prol do progresso meu deus não teve nenhuma chance derramaram o seu sangue foi crucificado pela para que festeje. sociedade... 31


OS QUADRINHOS

mais sujos do mundo

Quem é o autor dos Quadrinhos mais Sujos da Face da Terra? Talvez a Terra seja suja demais para fazer um ranking justo. Quem sabe, essa definição realmente seja uma merda: quem define o que é sujo é o limpo ou o mal lavado? Cristiano Onofre rejeita a alcunha de “Cara mais Sujo da Face da Terra”, mas seus quadrinhos ficaram conhecidos com esse bordão, uma situação irremediável.

Os quadrinhos mais sujos da face da Terra é uma série de quadrinhos, tirinhas

e desenhos livres feitos por Cristiano Onofre, publicados principalmente no Facebook. O quadrinista é formado em Letras e faz de tudo um pouco: escreve, trabalha como professor, toca em projetos musicais, faz colagens, zines e roteiros para curtas-metragens, tudo de forma independente. Seu primeiro zine, feito quando ainda era um moleque, se chamava Fuck the System, ou seja, “Foda-se o Sistema”. A chama da sede de confronto com o velho inimigo foi acesa pela sua experiência com a cultura punk, um bando que sempre gritou a favor da liberdade e do protagonismo. Em seus trabalhos, Cristiano fala principalmente sobre a melancolia de uma geração engolida, mastigada e cuspida pela mídia de massas; sentimentos vomitados na calça-

da pela qual muitos passam e percebidos por ninguém. A sujeira, muitas vezes, passa a fazer parte do cenário, sem que ninguém se importe com ela. A devolutiva do público é esperada: a identificação com o cotidiano duro e real dos quadrinhos é natural, porque os rabiscos são feitos de forma espontânea. “Eu não consigo criar de forma muito planejada, nem esboço eu uso. Deve fazer uns dez anos que eu não compro uma borracha. Mas não é porque eu sou foda, é mais porque eu criei um jeito meu de desenhar em que eu me sinto confortável com meus ‘’erros’’ nos traços e com possíveis mudanças de caminhos dentro da estética”.

Faça você mesmo.

O que é o “Do it Yourself”? “Pra mim significa compreender que existe autonomia em todas as formas de atuação do ser humano. Seja na arte, no trabalho e na autogestão. Praticamente tudo na minha vida gira em torno desse pensamento”, explica Cristiano. Esse pensamento não significa apenas “tomar partido”, mas também fazer

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a diferença: produzir um “trampo” que seja o estopim para uma revolução (ainda que seja pequena). Os conceitos de “Arte Marginal” podem ser generalizados e simplificados, porque tratam de diferentes pessoas que tomam iniciativas a partir de distintas vivências. O que a Arte Marginal tem em comum é ouvir as ruas, enxergar além das amarras do sistema. “Acho que o papel da Arte Marginal é desconstruir conceitos impostos na nossa sociedade, principalmente de forma política”, explica o artista, que tem, em suas principais influências, pixadores de parede anônimos.

Qual é o valor da Arte? Em 2014, Cristiano realizou um leilão de 40 obras origi-

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nais, que seriam vendidas por preços obrigatoriamente abaixo de 10 reais. Quem garantisse o menor preço, levaria a peça em leilão. Quanto menos dinheiro oferecido, mais chances de levar a obra pra casa. O convite dizia “Vá, leve seu dinheiro, seu ódio pela arte e sua vontade de destruir tudo”. A ideia funcionou muito bem. Em dado momento, os lances não eram nem mesmo dados em dinheiro. “As pessoas ofereciam coisas como tapa na minha cara ou, então, contavam histórias de sua vida”, conta Cristiano. A proposta era discutir a mercantilização da arte de uma forma lúdica, prática e iconoclasta. O “Leilão do Lixo” serviu para evidenciar ainda mais que o lixo (e a arte) sempre releva a parte mais suja (e maravilhosa) de nós mesmos.


O DIABO MORA NA WEB 34


Uma das maiores questões do ser humano é a sua existência. Quem nos criou? Por que nos criou? De onde viemos, para onde vamos? Existe um Deus? Mesmo aqueles que se reconhecem como ateus temem aquilo que antagoniza com as “forças do bem”. O que fica oculto ao olhar prático, cético e autoconfiante dos homens causa receio. Um antigo ditado popular galego diz: “No creo en las meigas, pero haberlas, las hay” (não acredito em meigas, mas que elas existem, existem). Ao contrário do que denota o sentido da palavra em português, as meigas eram bruxas que faziam pactos com o diabo para fazer mal às pessoas. Não há nenhuma evidência que comprove sua existência, tudo passa de ficção. Mas você se arriscaria? Sempre que surge uma dúvida, o primeiro oráculo a ser consultado é a Internet. A “Terra de Ninguém”, uma teia cibernética de informações que vem de todo lugar possível, do presente, passado e quem sabe até do futuro. É difícil filtrar toda essa gama de códigos para achar exatamente o que você precisa. Uma simples palavra chave pode desencadear uma série de resultados distintos: pode surgir o oposto do que você pesquisou, informações errôneas, porcaria de todo tipo. Talvez o próprio diabo esteja tentando nos confundir. O site Morte Súbita está no ar desde 1996, com o objetivo principal de oferecer conhecimentos proibidos ao alcance de todos. Nada mais democrático que a internet para fazer isto. O manual do site explica que o Morte Súbita é “uma agência de blasfêmias e um santuário de heresias, que visa explorar realidades alternativas e dar suporte a mi-

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norias conceituais”. Se ainda não ficou claro, o site tem artigos que falam de Demonologia, Satanismo, Bruxaria e da Magia do Caos. Se você não está familiarizado com nenhum desses assuntos, uma simples pesquisa sobre “magia negra” no Google mostra que existem vários especialistas sobre o assunto na imensidão da web. A maioria deles pode ser encontrada em blogs, adornados com efeitos gráficos vindos lá do ano 2000. Muitos deles oferecem serviços como consultas, pactos, limpezas, rituais de amor e de vingança. Tudo muito profissional, o que deixa o visitante curioso (e possível comprador) com a certeza de que o interlocutor tem muita confiança no que está fazendo. O Morte Súbita com certeza atrapalha o trabalho desses médiuns e bruxos. Lá, o leitor pode encontrar o passo a passo de rituais completos, que podem ser feitos em casa como num passe de mágica (literalmente). O conteúdo do site é formado por textos de seus três principais fundadores, conhecidos pelos codinomes Óbito, King e Morbivts, além de colaboradores diversos e desconhecidos. O critério para ter um escrito publicado no site é simples: se um texto é absurdo suficiente para ser queimado na inquisição, ele é perfeito. O fundador do site entrou em contato com o ocultismo ainda na infância, através de uma mulher que praticava vodu, que trabalhava em sua casa. “De lá, fui caminhando no ocultismo e desenvolvendo minhas próprias teses e formas de interagir com o lado espiritual”, explica Óbito, que, de início, fez o Morte Súbita para reunir informações que queria


preservar. Aos poucos ele foi se tornando público e hoje tem recebe uma média de 100.000 visitas mensais. A tradição esotérica possuí duas vertentes opostas: o Caminho da Mão Direita e o Caminho da Mão Esquerda, que é o foco do site Morte Súbita. Esse trilhar é marcado pela busca do Deus interior e pelo poder individual. Um dos maiores expoentes dessa filosofia foi Aleister Crowley, expressa principalmente pela Thelema, ordem baseada na liberdade e na vontade individual. O ocultista foi líder de ordem secretas como a Astrum Argentum e a Ordo Templi Orientis, divulgando técnicas ritualísticas que quebravam tabus até mesmo dentro da magia. “Nós falamos aquilo que os donos das ordens não gostariam que você soubesse”, afirma Óbito. Apesar dos textos do site serem de assuntos distintos, a maioria tem em comum a abordagem irônica e sarcástica, que faz o leitor até mesmo questionar se o que está sendo falado é sério. A Política de Uso do Morte Súbita avisa: “Este é um site de ficção, que se passa em um mundo paralelo onde políticos são corruptos e os religiosos são fanáticos. Um mundo onde as esfirras chegam na sua casa antes da polícia ou das ambulâncias. Qualquer semelhança com a vida real é mera consciência”. A dualidade do real e da ficção fica à disposição do leitor, que não precisa necessariamente acreditar em alguma

doutrina, mas tem o direito de duvidar da que já conhece. Os conhecimentos obscuros, tão distantes aos leigos, na verdade, podem ser encontrados facilmente em uma pesquisa mais aprofundada. Sites como o Morte Súbita, o Teoria da Conspiração e outros portais que oferecem informações integrais sobre Ocultismo aos seus leitores, evitam que algumas pessoas sejam capturadas por charlatões. “O Ocultismo em geral trata os buscadores como crianças, quando na verdade, as pessoas sabem o que querem - seja dinheiro, sexo ou crescimento espiritual - e não há nada de errado com isso. Resolvemos jogar pérolas aos porcos e deixar eles se engasgarem, pisotearem ou fazerem o que quiser. Não há nada de errado em usar magia para fazer qualquer coisa, seja ela suja ou santificada”, explica Óbito. O Artigo 5º da Constituição Brasileira diz: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Apesar disso, o Morte Súbita já foi atacado diversas vezes por “fãs” evangélicos que tentaram derrubar o servidor, mas nunca tiveram resultado. “Eles sempre nos alegraram a cada tentativa”, afirma Óbito, porque, afinal, a receita do sucesso do Morte Súbita são nove doses de respeitabilidade social e uma dose de ultraje.

A Esoterra foi uma revista americana independente dos anos 1990. Focada na “cultura extrema”, principalmente em suas expressões nas artes visuais, música, cinema, literatura e ocultismo, a revista entrevistou diversas personalidades como músico Marilyn Manson, o quadrinista e ocultista Alan Moore e Leilah Wendell, líder da Associação Americana para Pesquisas sobre Necrofilia. O jornalista Chad Hensley manteve a revista por quase uma década, sempre abordando assuntos que confrontassem toda e qualquer convenção social vigente.

Acesse: www.mortesubita.org www.esoterra.org

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UMA REVOLUÇÃO

Algo mudou quando Tiago Liberato se “montou” pela primeira vez, sozinho, em seu quarto. Naquele momento, as roupas femininas coladas ao seu corpo se transformaram em armas. Tiago se transformou na drag queen Ikaro Kadoshi, que, assim como Ícaro na mitologia greco-romana, quis voar pela sua liberdade. Ao contrário do que aconteceu no mito original, as suas asas não derreteram quando chegou perto do sol, apenas o levaram para mais longe. Tudo o que conquistou a seguir veio da decisão de assumir a arte como meio de vida e seguir contra a corrente. A palavra drag surgiu da expressão “Dressed as a Girl”, ou “Vestido como ma Mulher”. A prática era comum quando todos os atores das peças Shakespearianas eram homens e, conse-

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quentemente, alguns tinham que assumir os papéis femininos. A prática que fez parte do entretenimento britânico por muito tempo tornou-se um incômodo quando as drags e os transexuais utilizaram-na para questionar a estrutura de gênero e a liberdade sexual. Na noite de 28 de junho de 1969, policiais invadiram o Stonewall Inn, um bar gay de Nova Iorque. Tudo aconteceu muito rápido: alguns conseguiram fugir, em pânico pelo medo não só de serem presos, mas de que suas famílias descobrissem sua homossexualidade. Os que continuaram no bar, tiveram que formar filas para serem interrogados de forma invasiva pelos policiais. Os homens que vestiam roupas do sexo oposto foram presos, assim como as mulheres que não estavam usando, pelo menos, três peças femininas.


A comunidade LGBT conquistou muitos direitos desde o confronto de Stonewall, mas a luta ainda não terminou. Quando uma drag queen sobe no palco, sob os olhares desafiadores do público e os holofotes coloridos, uma revolução acontece, seja ela feita de plumas, paetês, coreografias ou “closes”. A arte de se fazer drag não se contentou em ser apenas o ato de se vestir com roupas do sexo oposto. A evolução através das décadas transformou o drag em uma cultura de confronto, emergindo do underground até chegar ao consagrado mainstream. Marcelo Macrina era um garoto muito tímido. Depois que se juntou a um grupo de teatro amador, começou a se soltar, socializou-se mais e aprendeu a fazer caras e bocas. Quando tinha 15 anos, seus amigos o convenceram a participar de um concurso de dublagem no Clube Elvira, em Jacareí. Eles imitavam cantoras famosas da época, vestidos com perucas de loja de fantasia e maquiados com o batom da irmã. Logo, aquilo se tornou um pouco mais sofisticado, mas era tudo muito “trash”, improvisado e escrachado. “Nos trocávamos no banheiro do clube, que era usado por todos os clientes. Ficávamos lá mais de meia hora, e o povo xingava a gente. Entrava um homem e saía uma garota de saia rodada, de tênis iate, meia-calça azul

escura”, relembra Marcelo. Foi naquele momento que a drag queen Morgana Loren começou a dar seus primeiros passos. Na realidade, Marcelo nem sabia que essa palavra existia. Nos meados dos anos 1980, existiam as travestis e as transformistas, homens que se vestiam como divas do cinema e da música. Marcelo começou a frequentar boates gays em São José dos Campos quando tinha 17 anos e se apresentou como transformista pela primeira vez quando uma das artistas faltou. Inventou moda: falava palavrões no palco, era cruel com o público e todo mundo adorava. A elegância das transformistas mais velhas era irresistível, mas Marcelo conheceu gente mais nova que gostava das mesmas coisas que ele. Foi para São Paulo e conheceu a colorida cena “clubber”, gente que vinha de Nova Iorque com novas tendências e estilos. “Quando voltei para São José, não era mais transformista, era drag. Não sabíamos nem o que isso queria dizer, a gente achava que era rainha dragão”, conta Morgana, que causou revolta nas transformistas tradicionais, que a chamavam de “palhaço de luxo”. Mal sabiam que uma nova era da arte drag estava para começar. As boates começaram a ficar mais movimentadas. Mais drags surgiam, cada uma com um

DRAG É COLOCAR para fora o que há de melhor em mim

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drag é Liberdade, expressão, desafio, revolução

estilo diferente, infestando a noite joseense com alegria, música e performances marcantes. Ao decorrer dos anos, o público e as drags se transformaram. A chegada dos anos 2000 marcou a década da explosão das super models, da música eletrônica e das drogas. Alguns artistas se entregaram a moda e outros resistiram e se reinventaram. As perucas louras e a autoconfiança de Morgana continuam as mesmas, mas o nervosismo é inevitável ao subir ao palco. “Você nunca sabe como o público vai reagir”, afirma Morgana, que critica as drags que se importam somente em ser “mulheres bonitas” e fazem performances vazias. A rivalidade entre as drag queens passou a ser um assunto muito mais interessante do que a própria arte. “Antigamente, drag era contar história. Sobre que a gente gostava, do lugar que a gente vivia, do que havíamos passado”, explica. É fácil encontrar uma dúzia de artistas que reproduzem discursos vazios nas boates de todo o país, mas para Morgana ainda existe esperança. “A cada época encontramos uma definição diferente para o que é drag. Sempre vai ter alguém novo se interessando pela nossa arte”, finaliza.

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Ikaro Kadoshi também ascendeu das boates joseenses. Começou a se apresentar com 19 anos, quando ganhou um concurso de talentos na cidade. A partir dali não parou mais de fazer shows, chegando a ganhar o primeiro concurso da boate paulistana Blue Space, uma das maiores casas de show drag no Brasil. Tiago é facilmente reconhecido pelo seu visual andrógino, que mistura elementos de ambos os gêneros para formar seus looks memoráveis. “Quando se está aberto à criatividade, ela acontece de maneiras estranhas. Tudo virar um show ou um adereço, basta estar atento”. A drag queen explica que seu estilo é uma tela em branco. Ikaro pode ser quem ele quiser. “Drag é a arte de várias artes, que mescla a dança, a música, o teatro, a maquiagem... ser drag nunca é uma coisa só”, afirma o artista, que em suas definições da arte, define o drag como expressão do ser. Morgana Loren, que passou a infância e a adolescência retraído, escondendo das pessoas sua homossexualidade, acredita que drag é transformação. “Drag é colocar o meu melhor de uma forma extravagante. Enquanto Morgana, eu continuou sen-


do o Marcelo, só que de um jeito extrovertido e seguro”. Além de ser uma afronta ao sistema, a drag queen também é um personagem de si mesmo. Marcela Barroso morou em São José dos Campos até os 11 anos e conheceu a cena LGBT no Rio de Janeiro. Sempre ajudou seu irmão e seus amigos a se montarem como mulheres, e, dessa prática, derivou sua atividade profissional como designer de moda. Em meio às suas criações de maquiagem, performance e maquiagem, se descobriu Sirena Signus, uma drag queen “biológica”. Existe algo mais contestador do que uma mulher tomando partida em uma atividade considerada apenas masculina? As mulheres que fazem Drag são reconhecidas pelo nome Faux Queen, que significa “Falsa Rainha”. Apesar da nomenclatura de mau gosto, não existe nada falso nas drag queens mulheres. Sirena já sofreu preconceito no seu meio simplesmente por ser mulher, escutando “argumentos” de que drag mulher “não tem graça”, porque não há “ilusão” ou que é mais “fácil” se montar sendo mulher. “Quem faz esse tipo de crítica está preso ao padrão estético feminino associado às mulheres, assim como o masculino em relação aos homens”, explica Sirena. Como em qualquer ambiente, a representatividade

das mulheres no meio drag e LGBT ainda é baixa, e reivindicar a participação delas é um dever de qualquer artista que questiona a política através de sua arte. A Sirena é uma das personagens da websérie Drag-se, produzida pela produtora de vídeos SUMA Filmes. O programa tinha inicialmente dez episódios, mas graças à visibilidade do projeto, o canal conseguiu produzir 52 episódios, que são lançados duas vezes por semana. O Dragse mostra um pouco da vida e da filosofia de quem faz drag, mostrando a diversidade existente dentro dessa cultura. Tem drag musculosa, drag mulher, drag com barba, drag king e muitas outras que tem motivações e histórias que estão longe do imaginário do público. O show acaba, e as luzes se apagam. Os pés doloridos de tanto dançar em cima de saltos de 15 centímetros gritam por um recuo. Os artistas desvestem as roupas que serviram de escudo, tiram os cílios postiços dos olhos cansados e demaquilam o rosto pintado. Mesmo se desmontando, uma drag queen nunca tira a máscara que está colada a sua face. A pintura de guerra não será deixada de lado. Ser drag queen não é nada mais do que ser você mesmo, então, “drag-se”!

A essência drag é contestadora

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carne é assasinato Dida não chegou a conhecer sua mãe. Nasceu junto com seus irmãos em um local apertado, sufocante e controlado, sem ver a luz do sol. Apesar de sua aparência saudável, não foi considerado útil por não exercer a mesma função que sua progenitora de reproduzir outros milhares de filhos para o abate. Foi descartado, jogado como se fosse lixo, sem nenhum remorso, pois nem sua vida, nem sua morte, não tinham resultado rentável. Dida e seus irmãos tiveram sorte. Foram resgatados e acolhidos por pessoas que lutam para que todos tenham uma vida digna. A jornada foi difícil, alguns irmãos ficaram para trás e Dida tinha um problema na perna. Apesar disso, a vontade de fazer amigos não o parava. Logo conheceu seu melhor amigo, Douglas Geovanini, que aguentava suas “tagarelices” pela manhã. Ele só queria compensar o trauma que sofreu em seu nascimento, evitando ficar sozinho a qualquer custo. Talvez Dida soubesse que sua sorte havia virado completamente. Douglas, provavelmente, nunca teria que passar pelas dificuldades que Dida teve que

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passar, apenas por uma diferença: sua espécie. A incubadora que produz milhares de pintinhos, filhos de galinhas que são forçadas a botar até padecerem. Os animais que não são descartados são levados para galpões controlados, onde crescem até serem abatidos para dar origem a produtos que podem ser encontrados nas prateleiras do supermercado mais próximo da sua casa. Dois destinos tão distintos não se encontrariam se Douglas não tivesse se tornado vegano há mais ou menos sete anos. Depois de ver imagens de touros torturados em festas da Espanha, ele começou a refletir sobre pequenos atos em seu cotidiano que se aproximavam daquela crueldade que tanto julgou. Parou de comer carne e logo começou a boicotar todo tipo de produto de origem animal. Animais como cachorros de estimação expostos como mercadorias em Pet Shops e pintinhos, como o Dida, têm vivências completamente distintas, mas são tidos como propriedade de humanos. Eles não podem reivindicar nenhum direito, mesmo que seja


apenas o de não serem machucados. O Veganismo existe para defender aqueles que não podem ser ouvidos. “É respeitar outro indivíduo, mesmo que ele seja de outra espécie. Não é algo opcional. O respeito é obrigatório. É uma obrigação moral”, explica Douglas. Sua militância deu origem ao site Camaleão, mídia que divulga notícias e artigos desde 2012. O Camaleão cresceu e ultrapassou o meio virtual. A partir dele, formou-se um grupo principal de quinze pessoas que atuam no Vale do Paraíba, fazendo principalmente ações de rua para conscientizar as pessoas dos maus tratos sofridos pelos animais em diversas atividades humanas. Enquanto eu falava com Douglas sobre o projeto, em uma das ações de rua do Camaleão, muitas pessoas passavam pelo monitor montado na praça, que mostrava imagens do que acontece nas incubadoras, matadouros, laboratórios e outros ambientes em que a crueldade excede qualquer parâmetro humano. Algumas nem chegavam a olhar para a televisão. Outras paravam e observavam as imagens em choque. Um senhor soltou a coleira de seu cão de estimação para assistir ao vídeo. Qualquer um consegue identificar a violência e entender suas consequências. No entanto, as cenas gráficas de abates, escravidão, descarte de cadáveres, tortura que são rotina em indústrias de “bens de consumo” não são veiculadas em veículos da imprensa

de massa, por interesses políticos e empresariais. O Camaleão tem como objetivo levar esse tipo de informação às pessoas de forma acessível, para que possam criar consciência as questões que atingem a todos os seres que fazem parte de nosso sistema. “Primeiro, é preciso apresentar o problema às pessoas e então propor soluções”, afirma Douglas. Os animais são “sencientes”, tem sentimentos e possuem uma consciência assim como a nossa. Se eles sentem dor, felicidade, tristeza ou até mesmo sonham quando dormem, por que não são respeitados pelos humanos? Essa segregação se deve ao especismo, o “preconceito de espécie”. Para que essa “tradição” seja rompida, os humanos precisam abolir todo tipo de exploração animal. “Trabalhamos principalmente a área da educação”, conta Douglas. Ente as atividades do Camaleão estão exibição de multimídia, grupos de estudo, oficinas, panfletagem e diálogos abertos com o público. O grupo é responsável pela campanha “Seja Vegan”, que tem como objetivo divulgar informações sobre o Veganismo, ajudando pessoas que querem se tornar veganas. O “atendimento personalizado” teve início em chamadas de vídeo no Skype e o grupo pretende promover outras ações para propagar a ideologia vegana, como palestras e campanhas online. Os ativistas se surpreenderam quando encontraram Dida e seus irmãos ainda vivos. Esperavam encontrar naquele descarte, cadáveres que seriam usados para a ação de rua do Dia Internacional dos Direitos Animais. Nela, os participantes seguram cadáveres de animais em praça pública, mostrando ao público de forma quase grotesca as vítimas dos maus tratos animais. Dida poderia ser um daqueles animais que sensibilizaram várias pessoas que passaram pelo local na ocasião, mas teve a sorte de pisar o gramado, ver o sol, correr pela terra e piar até cansar. A vontade de viver do pintinho era tão grande, que foi um choque quando ele adoeceu e acabou morrendo devido a um câncer no pescoço. Assim, como todos os animais produzidos e criados em indústrias, Dida passou de sua data de validade, mesmo que sua resistência não tenha sido em vão.

Acesse: camaleao.org sejavegan.com.br

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ODE AO PICADOR DE GELO

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Na série Ode ao Picador de Gelo, a artista Kayssa Mavrides, 22 anos, usa o próprio corpo como referência para refletir situações pessoais na figura de uma personagem que usa um escafandro. Esse antigo equipamento utilizado para mergulho em grandes profundidades, tem sua estética desenhada para representar o corpo humano, que além de guardar histórias, também pode nos servir de armadura, escondendo nossas mágoas, aflições e desejos. O título Ode ao Picador de Gelo remete a um instrumento muito utilizado em práticas de lobotomia, o picador de gelo. A lobotomia, ou leucotomia, começou a ser praticada em meados dos anos 1930, para silenciar pacientes com doenças mentais. “Eu havia acabado de sair de um relacionamento abusivo quando comecei a série de desenhos e isso refletiu muito na minha produção”, conta a artista, que representa as cicatrizes que ficaram em sua memória da forma mais visceral possível. Além de compartilhar o trabalho artístico de Kayssa, este ensaio tem como objetivo dar voz às mulheres que, assim como Kayssa, sofreram em relacionamentos abusivos e continuaram caladas por muito tempo, sem encontrar uma maneira de expressar suas angústias.

Desde que comecei a tentar escrever sobre minha experiência em um relacionamento abusivo, descobri que isso é mais complicado do que parece. Pensei em escrever uma carta aberta destinada àquele que tanto me humilhou, me diminuiu e fez com que eu perdesse, por momentos, a capacidade de me amar e acreditar em mim. Porém, percebo que esta história não merece total linearidade, que este homem não merece ser citado e que minha experiência é mais comum do que aparenta. Hoje vejo que a única serventia daquele homem foi todo o incômodo que me causou, que resultou na necessidade de expressão, feita nesta série de aquarelas. Como pode alguém, por incompetência, falta de empatia e frustração, poder silenciar outra pessoa? Como pode aquele que chamamos constantemente de “companheiro”, ser o seu maior mal e esgotar a sua capacidade de respirar? Por nove meses, tive uma sobrevida. Algumas pessoas habitam estes relacionamentos por décadas. Somos todos escafandristas. Nove meses e voltei à casa dos meus pais. Nove meses e me entupi de psicotrópicos. Virei um vegetal. Dormia. Até isso trazia melhor sensação que ele, que me usava de banco, depósito de porra e bode expiatório. Hoje eu estou bem. Tenho problemas comuns, tenho um namorado e amigos que me amam no sentido literal da palavra, tenho alguma perspectiva para o futuro, tenho um novo lar, tenho a mim novamente. E você, o que você tem?

Kayssa Mavrides 44


Numa cidade entre milhares de cidades, Em um prédio entre milhares de prédios, Há uma janela com a luz acesa. Ali está ela, acordada no meio da madrugada mais uma vez Ao seu lado, na cama, tudo que consegue ver são as costas dele Que parecem, mais do que nunca, um muro inquebrável e impossível de escalar. Em seu sono pesado, ele nem imagina Todas as coisas que passam em sua cabeça E todas as vezes em que ela voltou no tempo, até o dia em que se conheceram Procurando pequenos detalhes, se perguntando quando e no que tinha errado. E a partir de que momento aquela faísca que o fazia bem quando o via Tornou-se uma chama que começou a queimá-la E quando o laço que os unia Se tornou uma corrente que a aprisiona e marca sua pele. Ela sabe que deixá-lo é a coisa certa a fazer Que sem ele, viveria bem melhor. Mas ainda há, dentro dela, alguma coisa Que a faz continuar bebendo desse amor amargo Na esperança de que um dia tudo volte a ser como era antes. Doce.

Maria Vitória Zeni

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você gostava de me ver assim, em cacos, e quando aparecia para me pegar no chão até pensava que você me colaria de volta mas você só estava pegando os pedaços que mais lhe agradavam para ornar sua obra de arte vanguardista e quando eu achava que finalmente podia fazer algum sentido eu só estava sendo exposta e vendida

“ “

Taís Quinhões

A terapia me ajudou muito, me fez enxergar que eu tenho esse padrão de confundir abuso com amor.

Anônima

Achava que morreria se não tivesse ele ao meu lado. Nao conseguia perceber o quao toxico era. Eu costumava romantizar nossos atritos. Percebi o quanto ele me botava pra baixo. Percebi que eu finalmente era livre, por mais que machucada. O feminismo me ajudou também. Minha autoestima mudou muito. Hoje eu nao preciso da aprovaçao de ninguem. Hoje eu me sinto mais bonita e suficiente, empoderada, dona de mim, mas tenho medo de me envolver. Eu tenho medo que aconteça de novo. Tenho medo de me cegar outra vez. Eu choro. Dói.

Anônima

“ “

Eu amo tirar fotos. Na época eu tinha até parado, porque tudo virava motivo pra ele ter ciúmes. Eu não podia ser espontânea.

Anônima

Ele me trata como um brinquedo. Um brinquedo que ele gosta muito, mas ainda sim é um objeto, que ele pega quando quer e depois joga fora.

Anônima 46


Uma vez, ele chegou em casa e viu que eu entornei molho de tomate no chão da cozinha. Ele me empurrou pela cabeça para o chão, me xingando. Pegou um pano de chão e desinfetante, esfregou na minha cara, nos meus olhos até arderem, enquanto eu chorava. Depois ele me puxou pelo cabelo até o quarto, me jogou na cama, de costas, e disse que ia ver se pelo menos para aquilo eu servia. Com o tempo as críticas foram aumentando, ficando piores, nada do que eu fazia prestava, e eu não me “esforçava” pra aprender, pra melhorar. Por mais que não seja visível, as pessoas resistem de alguma forma, ou demonstram que precisam de ajuda pra resistir e se libertar.

Luiza Fonseca

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