Projeto livro roberto mandetta

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ROBERTO MANDETTA


ROBERTO MANDETTA


FILOSOFIA DO PSICODRAMA R OBER T O MANDET TA


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FILOSOFIA DO PSICODRAMA

Sumário Introdução

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Parte 1 – A ORIGEM DO PSICODRAMA 1.1. Moreno e a crise de identidade do homem moderno 1.2. A ambiência sociocultural de Viena no primeiro quarto do século XX 1.3. A infância e a juventude de Moreno em Viena 1.4. O enfrentamento da autoridade de Freud e a questão da identidade judaica 1.5. A ascensão de Dioniso na cultura moderna 1.6. A descoberta da espontaneidade 1.7. A criação do Teatro da Espontaneidade 1.8. A pesquisa teatral e a primeira elaboração conceitual 1.9. A Revolução Criadora 1.10. Do Teatro da Espontaneidade ao Psicodrama 1.11. Síntese do projeto original de Moreno

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Parte 2 – O FUNDAMENTO FILOSÓFICO-RELIGIOSO DO PSICODRAMA 2.1. O caráter ontológico do conceito de espontaneidade 2.2. A busca pela cientificidade do método teatral Parte 3 – O PSICODRAMA COMO TEORIA ONTOLÓGICA 3.1. A busca humana pelo conhecimento da realidade 3.2. A pessoa como essência do ser humano 3.3. A autorrevelação da vida como fonte da autodeterminação da pessoa 3.4. A história das representações 3.5. O dinamismo das potências divinas 3.6. O fenômeno e a linguagem 3.7. Por uma ontologia da espontaneidade Parte 4 – POR UMA ANTROPOLOGIA DA ESPONTANEIDADE 4.1. O homem como ser espontâneo-criador 4.2. O conceito de papel e a constituição da realidade 4.3. O processo Self-Cosmos-Deus 4.3.1. Primeira etapa: a criação dos sistemas culturais mítico-religiosos 4.3.2. Segunda etapa: a criação dos sistemas culturais lógico-racionais 4.4. A emergência do Deus-Eu na cultura contemporânea

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Parte 5 – A SISTEMATICIDADE DA TEORIA DO PSICODRAMA 5.1. A concepção epistemológica da sociometria 5.2. A fenomenologia do psicodrama 5.2.1. Análise fenomenológica da ação psicodramática 5.2.2. Papéis e métodos 5.2.3. Os níveis de realidade 5.2.4. Tele e transferência 5.2.5. As técnicas psicodramáticas 5.2.6. A catarse de integração

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5.3. A teoria da matriz de identidade 5.3.1. O desejo de self 5.3.2. Os universos existenciais 5.3.3. Duas noções de eu: identidade x identificação 5.3.4. Contrastes entre as perspectivas ontológicas de Moreno e Freud 5.3.5. A constituição do self psicossomático 5.3.6. A divisão da experiência de self 5.3.7. O fenômeno da identificação 5.3.8. Correlações entre Moreno e Lacan 5.3.9. Freud e a questão das relações interpessoais 5.3.10. A teoria mimética de Girard aplicada à matriz de identidade 5.3.11. Psicossociodinâmica da constituição da identidade 5.3.11.1. No primeiro universo 5.3.11.2. No segundo universo 5.3.11.3. No terceiro universo 5.3.11.4. Psicossociodinâmica e integração da identidade 5.4. Psicopatologia e Psicodrama

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Parte 6 – A REVOLUÇÃO CRIADORA 6.1. A plausibilidade da revolução criadora na contemporaneidade 6.2. Por uma necessária crítica à sociedade do espetáculo 6.3. Por uma nova produção de subjetividade 6.4. O momento do Deus-Eu 6.5. A integração do sentido trágico pelo ator espontâneo-criador 6.6. O Deus-Eu e o drama cósmico 6.7. A ética do encontro como projeto político

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Parte 7 – APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICO 7.1. A aplicabilidade da teoria do psicodrama 7.2. Apresentação de caso clínico 7.3. Relato de ação psicodramática em contexto bipessoal 7.4. Analise psicossociodinâmica 7.5. Relato sobre o direcionamento do trabalho psicoterapêutico 7.6. Discussão sobre as implicações socioculturais da abordagem apresentada

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Introdução

Este livro se destina a apresentar o psicodrama como projeto de transformação da realidade do indivíduo, da sociedade e do mundo. Algo, portanto, que não se dirige apenas a alunos e profissionais da área. Infelizmente, grande parte do público leigo desconhece o que seja o psicodrama. Geralmente é conhecido como método de teatralização, por pessoas que já participaram de uma sessão de psicodrama, ou que já ouviram alguma história a respeito. Em breves linhas, trata- se de encenar situações pessoais ou coletivas trazidas pelos próprios participantes de um grupo, de modo improvisado, com objetivo terapêutico ou educacional. Menos conhecido é o fato de que há uma teoria que embasa este método, com conceitos e técnicas definidas. Porém, menos conhecido ainda, é que há uma filosofia que fundamenta a teoria do psicodrama. A tarefa específica a que aqui nos dedicamos é a articulação do que chamamos de filosofia do psicodrama, de modo fiel à concepção original de Jacob Levi Moreno, o seu criador. Estamos cientes de que a nossa busca de fidelidade ao pensamento filosófico de Moreno não nos exime da crítica, que possivelmente muitos estudiosos farão, de o trair. Como prega o famoso provérbio italiano “traduttore, traditore”, talvez não seja possível traduzir o pensamento de um autor sem traí- lo. Mas, como defende o semiólogo Umberto Eco, traduzir significa “dizer quase a mesma coisa”, quando o texto é interpretado com “apaixonada cumplicidade”, no empenho de identificar aquilo que, para nós, é o sentido profundo do texto. Por aí vai o nosso empenho: dizer o que interpretamos como o sentido profundo do conjunto da obra de Moreno, buscando ser seu cúmplice. Eco nos fala da possibilidade de fidelidade não como sinônimo de exatidão, mas de lealdade, honestidade, respeito, devoção. Evidentemente, não estamos nos referindo à tradução literária de um poema ou de um romance de uma língua para outra, tema a que se dedica Eco. Muito menos da tradução técnica dos textos de Moreno do alemão ou do inglês, língua em que foram escritos, para a nossa. Este trabalho já foi feito, e nos baseamos neste material, isto é, nos textos de Moreno traduzidos para o português, neste livro. Estamos falando, mais propriamente, da nossa intenção de fidelidade ao pensamento de Moreno, cientes de se tratar de uma interpretação do sentido profundo de seus textos. Mas o que queremos dizer com filosofia? São vários os significados atribuídos a este termo. Em sentido lato, qualquer concepção do mundo pode ser considerada como filosófica, desde os sistemas propriamente filosóficos, como também, por exemplo, o universo espiritual dos budistas ou da música dos Beatles. Em sentido mais restrito, a filosofia tem sua origem com os antigos pensadores gregos - Pitágoras, Parmênides, Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles, entre os séculos VI e IV a.C. - como um discurso de um certo tipo: o discurso racional. Os primeiros filósofos gregos se contrapunham ao discurso mítico, que através de uma narrativa situada fora do tempo, cujos protagonistas eram heróis sobrenaturais ou deuses, revelava, de acordo com a crença da época, a verdade da origem do mundo e da condição humana. Os primeiros filósofos também procuravam explicar a formação do mundo e a condição humana, todavia, desenvolvendo um novo tipo de discurso que adotava a racionalidade como meio, norma e critério da verdade. Com isso, a filosofia tomou para si a tarefa de crítica da mera opinião, dos pretensos saberes, das mistificações e superstições, na busca pelo conhecimento verdadeiro, visando alcançar o absoluto. Platão estabeleceu a filosofia no lugar da ciência suprema, reveladora das essências de tudo o que


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existe. Desde este início histórico, a filosofia vem sofrendo inúmeras transformações. A pretensão original da filosofia de ser o conhecimento por excelência, isto é, um conhecimento que ou é filosófico ou não é conhecimento verdadeiro, passou a ser combatida primeiramente pela religião, e depois, pela ciência experimental moderna. Para a religião, a verdade é revelada pelas Escrituras, o que deve conduzir a filosofia ao serviço da teologia. Para a ciência experimental moderna, a filosofia, enquanto conhecimento a priori, não passa de mera especulação, composta de suposições intangíveis ou quiméricas, não merecendo legitimidade. Apesar dessas oposições fundamentais, subsiste o esforço na contemporaneidade de encontrar caminhos para a legitimidade da reflexão filosófica. Como resposta à religião, surgiram basicamente duas atitudes por parte dos filósofos: desqualificar a religião como discurso racional, relegando-a ao campo da moral, a exemplo da abordagem de Kant; ou, aliar-se à religião na busca da verdade, sem subordinar-se a ela, isto é, sem abrir mão da sua autonomia. Como resposta à ciência moderna, surgiram também duas atitudes principais: reivindicar que apenas a filosofia é capaz de uma abordagem abrangente e sistemática dos diversos âmbitos da realidade, possibilitadora de uma integração da diversidade de conhecimentos obtidos experimentalmente pelas ciências, cada qual limitada ao seu âmbito particular da realidade; ou, abdicar desse ideal de sistematicidade do conhecimento, para servir como uma espécie de legislador do conhecimento científico, procurando formular os critérios epistemológicos, isto é, os critérios de validade ou legitimidade do discurso das ciências. Em suma, as inúmeras vertentes filosóficas surgidas ao longo da história correspondem aos inúmeros caminhos abertos pelo homem a fim de conhecer a si mesmo na sua relação com o mundo em seu todo. Mas o que tem a ver toda esta discussão sobre o que é filosofia com a concepção original do psicodrama formulada por Moreno? Permite-nos compreender que o pensamento de Moreno é filosófico na medida em que justamente questiona e procura descobrir a verdade do homem situado no mundo, sendo o psicodrama o método por ele concebido neste intuito. Procuramos neste livro aclarar a posição da filosofia de Moreno na história da filosofia, bem como, de que maneira esta contribui singularmente para a construção do destino humano. A teoria do psicodrama é portadora de uma estrutura conceitual articulada e complexa. Os conceitos de papel, ação psicodramática, protagonista, grupo, duplo, espelho, inversão de papéis, mais diretamente relacionados ao método e às técnicas, e de certo modo, mais concretos ou objetivos, são indissociáveis dos conceitos de espontaneidade, tele, coinconsciente, realidade suplementar, matriz de identidade, momento, entre outros, digamos, mais metafísicos. Entre todos estes conceitos formulados por Moreno, um deles ocupa o lugar central: o conceito de espontaneidade. Veremos de que maneira a descoberta do que Moreno chama de espontaneidade serviu como o grande conceito-chave da criação do Teatro da espontaneidade, matriz do que posteriormente veio a se desdobrar como o Psicodrama. Veremos também que o conceito de espontaneidade pode e deve ser compreendido como um conceito ontológico, ligado, portanto, ao que se entende em filosofia por Ser. Para Moreno, a espontaneidade é a expressão primeira, fundamental do Ser. O Ser, na sua essência, é espontâneo-criador. Neste sentido, a essência do homem é ser espontâneo-criador.


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A concepção do conceito de espontaneidade foi apresentada originalmente no primeiro livro teórico de Moreno, o “Teatro da espontaneidade”, de 1923, editado na Alemanha, surgindo apenas em 1947 a primeira edição americana, traduzida para o inglês a partir do original alemão pelo próprio Moreno. Geralmente não se fala dela. O que é normalmente ensinado e repetido, como uma espécie de “lugar-comum”, é o aspecto pragmático do conceito de espontaneidade, aspecto desenvolvido posteriormente nos Estados Unidos da América. A abordagem deste aspecto certamente reflete a influência do pensamento americano sobre Moreno, e tem seu interesse e importância. Mas não há qualquer razão para acreditar que Moreno tenha abdicado da sua concepção original do conceito de espontaneidade. Em momento nenhum refuta textualmente esta concepção. Mesmo porque não há contradição entre os desenvolvimentos posteriores da teoria e suas formulações iniciais. Pelo contrário, encontramos em seus textos posteriores, inclusive nos textos de seu pensamento maduro, publicados nas últimas décadas da sua vida, elaborações conceituais que aprofundam o sentido da sua concepção original de caráter ontológico. Trataremos, enfim, de mostrar a coerência do desenvolvimento do pensamento de Moreno no que se refere ao conceito de espontaneidade e a filosofia do psicodrama, do início ao fim da sua obra. Na concepção ontológica de Moreno o homem faz parte de um Cosmos em evolução, processo este direcionado pela espontaneidade. Como ser espontâneo-criador autoconsciente o homem deve assumir a responsabilidade por esta evolução. Neste intuito, deve adotar uma atitude crítica em relação às conservas culturais, isto é, a tudo aquilo que, uma vez por ele mesmo criado, tende a se autorreproduzir contrapondo-se à sua espontaneidade e criatividade, e, desse modo, à sua própria evolução e à evolução do Cosmos. Falamos aqui da dimensão ética da sua concepção ontológica. Esta atitude não se produz no indivíduo isolado, mas no indivíduo em relação espontâneo-criadora com outros indivíduos e com o Cosmos. O psicodrama deve se colocar a s erviço desse processo, prestando-se ao desenvolvimento da capacidade de expressão cocriadora de seus participantes. Neste sentido, a derradeira missão do psicodrama é servir como locus para esse verdadeiro processo de transformação, a um só tempo, do ser humano e do mundo. É o que Moreno chamou de revolução criadora. O psicodrama foi assim concebido como instrumento para o desenvolvimento da capacidade de expressão da espontaneidade humana, ajudando o indivíduo a sobrepor-se ativamente àquilo que se opõe a sua espontaneidade, inibindo-a. Presta-se desse modo a ajudar os seus participantes a religarem-se individual e coletivamente com a fonte do Ser, que também podemos chamar de Vida. Tal é o sentido da vida humana: religar-se à Vida. E tal é a missão do psicodrama: servir como instrumento viabilizador do processo de religação do homem como a fonte do Ser, com a Vida. A filosofia do psicodrama é portadora de uma profunda religiosidade e espiritualidade. Incorpora o que Moreno nos propõe em seu livro “As Palavras do Pai” como uma nova forma de experiência subjetiva de Deus: o Deus-Eu. Com isso, não renega as formas tradicionais da religião judaico-cristã ou de outras religiões. Pelo contrário, ajuda-nos a compreender a verdade delas de modo pessoal, na concretude histórica de nosso ser no mundo. Veremos como esta raiz religiosa do seu pensamento atualizou-se na forma de conhecimento científico com o desenvolvimento da sociometria, possibilitando “a hipótese do amor e da partilha mútua como princípio funcional


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poderoso e indispensável na vida de um grupo”.1 Cumpre-se ressaltar que esta perspectiva filosófico-religiosa se encontra em toda a estrutura conceitual da sua obra, inclusive no que diz respeito ao seu desenvolvimento científico. Nas palavras de Moreno: A total falta de compreensão de minha posição original a qual nunca abandonei e o poucocaso de muitos religiosos, bem como dos círculos científicos, não me impediram de continuar a desenvolver inovações técnicas que, esperava eu, fossem gradualmente estabelecer um mundo novo. 2 Meu argumento sugeria que a religião fosse experimentada mais uma vez, um novo tipo de religião, com suas inspirações modificadas e suas técnicas melhoradas pelos novos conhecimentos transmitidos pelas ciências [...]. Pode-se dizer que tentei fazer da sociometria o que “a religião sem ciência” não conseguiu alcançar no passado e o que “a ciência sem religião” não alcançou na Rússia Soviética. Todas as técnicas culturais e sociais desenvolvidas por mim no curso desses anos foram motivadas para servir a este propósito.3

Este livro tem como objetivo principal mostrar de que maneira a filosofia do psicodrama proporciona contemplar a sistematicidade subjacente à sua estrutura conceitual. Seguiremos os seguintes passos no cumprimento desta tarefa. Na primeira parte, buscamos descrever historicamente de que maneira se deu a concepção do conceito de espontaneidade, procurando determinar a matrix, locus e status nascendi desse conceito, com a criação do Teatro da espontaneidade em Viena no primeiro quarto do século XX. Procuramos também mostrar quais foram as referências religiosas, filosóficas e artísticas do pensamento de Moreno que o levaram a tal concepção, e como o nosso autor formulou a sua primeira articulação conceitual. Na segunda parte, tratamos da questão da busca da cientificidade através do desenvolvimento do psicodrama e da sociometria, tal como aconteceu depois da sua imigração para os Estados Unidos da América. Na terceira parte, buscamos mostrar que a teoria do psicodrama é ontológica. Para tanto, propomos uma incursão na história da filosofia, identificando os autores e conceitos filosóficos que nos permitem fundamentar o caráter ontológico do conceito de espontaneidade, ligando-o aos conceitos de ação e de pessoa da metafísica clássica. Na quarta parte, articulamos uma antropologia do psicodrama que nos permite compreender as proposições de Moreno de que o homem é um ser cósmico, cuja evolução histórica é alcançar o estágio do que denominou Deus-Eu. Na quinta parte, tratamos de articular a teoria do psicodrama de modo sistemático, tendo o conceito de espontaneidade como conceito central. Mostramos aqui a concepção epistemológica da sociometria, e de que maneira o método do psicodrama é fenomenológico. Na sexta parte, tratamos da plausibilidade do projeto da revolução criadora na contemporaneidade, e das implicações clínicas, educacionais, éticas e políticas de uma prática psicodramática efetivamente orientada pela filosofia do psicodrama. Na sétima parte, a título conclusivo, apresentamos o relato de uma sessão de psicodrama de acordo com o nosso quadro teórico. Algumas palavras sobre o meu envolvimento existencial na realização deste livro. Há mais de vinte anos, quando, já formado e atuante na área da psiquiatria, pela primeira vez me deparei com

1 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Goiânia, Dimensão, 1992, p 23. 2 Idem, p 23. 3 Idem, p 23.


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a obra de Moreno, intui que o projeto da revolução criadora poderia me conduzir à realização de meus anseios de participar da construção de um mundo melhor. Desde então, voltei-me ao estudo aprofundado da obra de Moreno, e me dando conta da fragilidade da sua articulação teórica, mais especificamente, da falta de uma fundamentação rigorosa de seus pressupostos, passei a me dedicar à reunião de elementos que me permitissem sanar esta falta. Com esta intenção, volteime ao estudo de um grande itinerário de obras e autores nos campos da filosofia, psicanálise, psicologia, antropologia, sociologia, teologia, ciências das religiões e das artes cênicas. O que me levou de volta às salas de aula da USP - onde havia me graduado como médico, e especializado como psiquiatra - para o mestrado em Educação, e a defesa da dissertação “Relações entre Imaginário, Teatro e Educação”. Este foi um primeiro passo, importante, mas ainda insipiente, da minha busca. Continuei a estudar, então, apenas como autodidata, deparando-me com uma intrincada rede de conhecimentos que me levou a uma compreensão mais profunda do legado de Moreno, e a me certificar do quanto a sua visão era verdadeiramente fecunda. Foi o que me impulsionou a escrever este livro. Neste percurso, talvez o mais importante tenha sido compreender que o meu desejo de construir um mundo melhor é comum e convergente com o de tantos outros sonhadores — entre profetas, santos, filósofos, cientistas, artistas, políticos — que não pouparam seus esforços na luta travada entre os homens ao longo da história da humanidade para realizá-lo. Que existiu um homem — e verdadeiro Deus — que encabeça o movimento deste desejo: Jesus Cristo. E ainda, que a história humana nada mais é do que a própria resultante deste desejo. Se isto é verdade — acredito que seja, esta é a minha fé — o que temos a fazer é nada mais do que reunir pessoas em torno deste desejo a fim de realizá-lo. Neste livro, falo tão somente a partir e sobre essa minha fé: fides in statu communicationis. Espero que pessoas que compartilham comigo este desejo se beneficiem do meu esforço. Como cristão católico, tomo como guia o ensinamento de João Paulo II: O Espírito Santo é Aquele que constrói o Reino de Deus no curso da história e prepara a sua plena manifestação em Jesus Cristo [...] que acontecerá no fim dos tempos. Nesta perspectiva escatológica os crentes são chamados [...] a redescobrir a virtude teologal da esperança, que por um lado, impele o cristão a não perder de vista a meta final que dá sentido e valor à sua existência inteira e, por outro, oferece-lhe motivações sólidas e profundas para o empenhamento cotidiano na transformação da realidade a fim de a tornar conforme o projeto de Deus.4

Vivemos na atualidade, como humanidade planetária, o agravamento devastador da situação diagnosticada por Moreno no início do século, na forma de uma degradação intolerável dos valores éticos e da dignidade da pessoa humana. Diante deste cenário, por inúmeras vezes me senti assaltado por rasgos de incerteza e enfraquecimento da minha fé. Dando voz ao advogado do diabo que fala em mim, hesitei diante da sua série de objeções. Por que, depois de dois mil anos de cristianismo, o mundo parece caminhar irremediavelmente para o pior? Como acreditar, depois de tantas tentativas logradas ao longo da história, que ainda há algo a ser feito que possa 4 JOÃO PAULO II. Audiências gerais, 03-07-91 e 11-11-98. Citado em: SANAHUJA, J.C. Poder global e religião universal. Campinas, Ecclesiae, 2012, pp 144-145.


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realmente mudar o rumo desta trajetória? Não seria mais sensato aceitar que o mundo é mesmo assim, produto de um homem que é — e permanecerá sendo — o lobo do homem? Que nada vai mudar, e ponto final? Por que não aceitar, com niilismo filosófico, o vazio da existência? Que não há um sentido da vida humana criado por Deus, mas apenas vãs tentativas de o homem conferir sentido ao que não há? Sendo assim, por que não se contentar hedonisticamente com os momentos de felicidade que podemos obter em nossas vidas, enquanto não nos chega a fatalidade abominável da morte? O advogado do diabo que fala em mim me diz que é nisso que um homem sensato, que alcançou a idade da razão (aludida por Sartre), que superou toda espécie de misticismo e ilusão deve acreditar. Confesso que tal argumentação me levou a duvidar da minha fé em Cristo. No entanto, paradoxalmente, esta mesma série de objeções foi o que me levou a me fortalecer nela. De fato, a tese diabólica se faz pertinente ao denunciar criticamente um tipo de fé que podemos chamar de fé ingênua. Com os filósofos da suspeita (na expressão de Ricoeur) — Nietzsche, Marx e Freud — aprendi a reconhecer que esta fé ingênua foi — e, talvez, continue sendo — o principal fator a alimentar a ignorância e a submissão de milhares de seres humanos à opressão de outros poucos. Todavia, não podemos nos deixar persuadir por tal argumento. Não, ao ponto de anular a nossa fé. Não podemos ceder ao seu fatalismo cínico e atroz que reduz o homem à mera poeira do universo. Contra esta redutora visão de mundo, procurei reunir aqui elementos que possibilitam demonstrar racionalmente o seu erro, e decidir, sem sombra de dúvida, pela esperança e a fé. Sim, é possível hoje superar esta realidade de um mundo sem Deus! E para tanto, é claro, não podemos ser ingênuos. Precisamos nos prevenir de que nos meios culturais da atualidade vigora a ideia — sustentada por certo niilismo da ciência, e pela ideologia individualista intencionalmente propagada por aqueles que, de todas as maneiras, incluindo as mais torpes, se empenham em garantir a manutenção de seu poder — de que a diversidade de religiões deva ser compreendida e respeitada como possibilitadora do direito individual de expressão e culto, ideia que a nada mais se presta que manter a divisão entre os homens. Precisamos de unidade e integração, e não de divisão e dispersão. E o que poderia nos unir como humanidade planetária se não a verdade e o amor que nos é dado pela graça de Deus? Em meu entendimento, a superação pela ciência do seu niilismo é um fator crucial para que possamos voltar a sustentar a realidade de um mundo com Deus. Uma ciência aliada à religião capaz de demonstrar a ilusão desta presunçosa ideologia que se autoproclama mensageira da liberdade, mas que não passa de liberdade de consumo ou de prazeres efêmeros, dispersando as atenções sobre o que não é essencial, e perpetuando a divisão dos seres humanos entre dominadores e dominados. Digo que podemos mudar porque adquirimos através da longa trajetória da história mundial o entendimento necessário acerca da nossa real condição como seres humanos, para darmos hoje um salto qualitativo dentro da ordem da cultura. O poder espiritual do homem — o poder do amor que nos liga a Deus, e uns aos outros em relação comunal — não se trata de mera “ilusão”, como muitos ainda nos querem fazer acreditar. Trata-se da relação com a nossa origem divina que podemos conhecer, e nos apropriar, através da nossa experiência pessoal. Está ao alcance de todos. Dou aqui meu testemunho de que foi através da minha experiência pessoal, em meio a anseios, contradições e dúvidas com as quais me deparei em minha vida, que vim a descobrir que


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o meu desejo de construir um mundo melhor, nada mais era do que a expressão intelectual do desejo primordial de me religar a essa origem, e que melhor se traduz no desejo de me encontrar amorosamente com os outros, para, assim, ser o que verdadeiramente sou. Daí acreditar que a mudança poderá acontecer na realidade concreta de nossas vidas, na medida em que cada vez mais pessoas venham a descobrir e se apropriar da possibilidade de se religar à origem divina comum a todos nós, o que nos possibilitará construir, juntos, um mundo onde o amor seja a lei. Cada um terá a sua importância singular no processo de criação conjunta e plural da realidade através de uma ética do encontro iluminada pela graça de Deus. Nada mais do que fazer valer na realidade cotidiana a mensagem trazida a nós por Jesus Cristo. Encontrei no conceito de Deus-Eu de Moreno a chave para aliar ciência, religião e arte em um projeto - como tratarei de demonstrar, ontologicamente fundamentado - de transformação do mundo na direção da religação do homem com sua origem divina. Neste sentido, o Psicodrama representa para mim o locus onde procuro operar a síntese de minhas referências e vocações, e religar-me, no sentido religioso da palavra, aos outros e ao mundo. Penso tal projeto não se trata de ilusão, loucura ou utopia, mas de uma possibilidade real, perfeitamente viável no mundo atual. Mas, não quero me alongar falando da minha história e da minha crença pessoal. Se o fiz, foi para introduzir a ideia condutora deste livro, compartilhando a dimensão afetiva do meu envolvimento e compromisso existencial com o projeto psicodramático iniciado por Moreno.


PARTE 1

A ORIGEM DO PSICODRAMA

FILOSOFIA DO PSICODRAMA R O B E R TO M A ND E TTA


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1.1. Moreno e a crise de identidade do homem moderno

Quando o jovem Jacob Levi Moreno abriu ao público as portas da casa alugada na Maysedergasse n° 2 para apresentações do Stegreiftheater — Teatro da Espontaneidade —, sonhava com uma revolução social através de uma revolução do teatro: a revolução criadora. Sua proposta era a da produção de uma nova dramaturgia na qual o público tinha participação ativa na criação da ação dramática. Aboliu o uso do texto teatral, a preparação prévia da encenação e a separação entre atores e espectadores, invertendo assim o procedimento dramatúrgico tradicional. Ao invés da apresentação de uma peça teatral como um produto ensaiado e acabado, os atores tornavam-se criadores de uma ação cênica improvisada que ganhava forma apenas no próprio momento da sua apresentação diante da presença do público. A cidade de Viena vivia a atmosfera de uma intensa efervescência intelectual. Era o momento imediatamente posterior à I Grande Guerra Mundial. Mudanças econômicas e sociais aconteciam ao passo acelerado do avanço do capitalismo. Artistas, cientistas e filósofos, mobilizados pela decadência dos valores tradicionais, pela inadequação destes valores como meio de adaptação do indivíduo a tais mudanças, e pelo sentimento de perda de identidade a ela associado, se voltavam a um grande questionamento da subjetividade. Em seu livro, “A modernidade vienense e as crises de identidade”5, Jacques Le Rider nos apresenta um panorama abrangente da busca de respostas em meio a este questionamento por parte de autores como Sigmund Freud, Carl Jung, Alfred Adler, Lou Andreas Salomé, Robert Musil, Hugo Von Hofmannsthal, Gustav Klimt, Martin Buber, Ludwig Wittgenstein, Gustav Mahler, Arnold Schönberg, entre outros psicanalistas, filósofos, escritores e artistas. Em comum, suas obras abordam o que Le Rider denominou como as crises e as estratégias de restauração do sentimento de identidade na modernidade. A passagem do século XIX para o XX foi um período crucial na história da cultura europeia e mundial, e Viena foi um palco particularmente importante neste cenário, em função das peculiaridades do seu processo de modernização socioeconômica. Nas palavras de Le Rider: A emancipação do indivíduo na ordem política e social, essa conquista da modernidade do fim do século dezoito e das primeiras décadas do século dezenove, emparelhava-se com a afirmação confiante e orgulhosa da individualidade nos domínios da ética e da estética. Não obstante, Schopenhauer e Nietzsche analisaram as ilusões e os males do individualismo, e essa crítica encontrou seu prolongamento na psicologia e na sociologia do final do século dezenove e no início do presente: a autonomia e a solidão do indivíduo aparecem como um dos fenômenos mais ambivalentes da condição moderna. A crise do individualismo, vivenciada sob a forma de uma crise do sentimento de identidade, se encontra no cerne da literatura e das ciências humanas, tanto nas obras de Hugo von Hofmannsthal como nas de Freud.6

5 LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993.


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Estudar o momento do nascimento do Teatro da Espontaneidade no contexto das circunstâncias histórico-culturais da sua época se justifica como percurso metodológico privilegiado, que nos auxiliará a definir com maior precisão o sentido da filosofia de Moreno. Como a obra de outros artistas e cientistas da época, a de Moreno também pode ser compreendida como uma estratégia de restauração do sentimento de identidade do homem no mundo moderno. Neste sentido, com a proposta do Teatro da Espontaneidade, Moreno se aproxima das principais estratégias em voga na época — de Nietzsche, Marx e Freud —, ao mesmo tempo em que se diferencia delas. Veremos que a proposta de Moreno, em comum com estas, apesar das diferenças, trata-se de uma busca pela emancipação da potência espontâneo-criadora do homem. Ao longo do século XX, houve grande empenho na propagação das ideias de Nietzsche e, sobretudo de Marx e Freud. O mesmo não sucedeu com as de Moreno. Apesar do ineditismo e da relevância da criação do Teatro da Espontaneidade, não surpreende que Le Rider não a tenha citado em parte alguma de seu livro. Por algum ou vários motivos, as invenções e contribuições de Moreno nos campos da psicologia, da sociologia e da arte teatral não obtiveram a credibilidade e a repercussão que poderiam ter alcançado tanto nos meios acadêmicos como para o grande público. Apesar de fugir ao escopo do nosso estudo investigar os possíveis motivos deste fato, levanto a seguir uma hipótese a esse respeito que considero bastante plausível. Podemos reconhecer no mundo atual a radicalização dessa crise de identidade do homem na modernidade de que nos fala Le Rider. Diante desse panorama, veremos de que maneira a obra de Moreno adquire importância fundamental para a transposição dos impasses que o individualismo narcisista e o patrulhamento ideológico do nosso tempo nos impingem, justamente por se diferenciar das de Nietzsche, Marx e Freud. No intuito, portanto, de compreender o momento da criação do Teatro da Espontaneidade, seguiremos o modelo estrutural proposto por Moreno para se estudar a origem de uma ideia ou de uma coisa. Segundo o nosso autor, status nascendi, locus e matrix são os três fatores de um mesmo momento que permitem abordagens distintas da origem de uma ideia ou coisa. Nas suas palavras: Não existe uma ‘coisa’ sem locus, não existe um locus sem seu status nascendi, e não existe status nascendi sem sua matrix. O locus de uma flor, por exemplo, é no canteiro onde ela cresce até desabrochar como flor e não no cabelo de uma mulher. Seu status nascendi é este algo que cresce, à medida que desabrocha da semente. Sua matrix é a semente fértil, ela mesma.7

Partindo dessa perspectiva, proponho avaliar as premissas fornecidas pelo autor em seus escritos a respeito das motivações que o levaram a criar o Teatro da Espontaneidade, as citações dos autores que lhe serviram como referência, assim como supor de que maneira o contexto sociocultural de Viena pode tê-lo influenciado nas escolhas que fez ao longo da sua trajetória. No meu entender, a matrix do teatro espontâneo é a ideia da espontaneidade. O seu status nascendi é o processo de pesquisa da espontaneidade ao nível experimental realizada por Moreno. O locus é a vida de Moreno no contexto sociocultural de Viena no primeiro quarto do século XX.

6 Idem, pp 11-12. 7 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. São Paulo, Summus Editorial, 1984, p 29.


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Nascido no ano de 1889 em Bucareste, capital da Romênia, filho de judeus sefarditas, Moreno emigrou com a família para Viena, não se sabe ao certo, se em 1895 ou 1896. Por lá, formou-se em medicina e psiquiatria, trabalhou como clínico geral e, paralelamente, dedicou-se a uma série de atividades que lhe serviram de preparação para a criação do Teatro da Espontaneidade. Sobre a sua pessoa e a sua vida, dispomos de poucas referências: a biografia escrita por René Marineau 8, sua autobiografia9, menções a fatos vividos, espalhadas em seus livros, e algumas inferências feitas por autores que estudaram a sua obra. Entretanto, antes de abordar a vida pessoal de Moreno, apresento ao leitor um esboço do panorama sociocultural da Viena da sua época, seguindo apontamentos dos historiadores Carl E. Schorske10 e Jacques Le Rider.11 Procuro neste esboço caracterizar o canteiro em que a semente da espontaneidade foi germinada na pessoa do nosso autor.

1.2. A ambiência sociocultural de Viena no primeiro quarto do século XX Haviam duas culturas, ora oponentes, ora complementares, na Áustria do fim do século XIX: a cultura da graça, como feixe de valores religiosos e estéticos ligados ao barroco; e a cultura da palavra, como feixe de valores morais, políticos e científicos ligados ao iluminismo. Segundo Carl Schorske, a cultura moral e científica da classe média liberal de Viena, como em outras cidades da Europa, era nesta época convicta, virtuosa e repressora, importava-se com o domínio da lei, e estava intelectualmente comprometida com o suposto metafísico do iluminismo. Porém, o burguês austríaco se distinguia de seus contemporâneos europeus sob o encanto da tradição pré-iluminista. O catolicismo austríaco concebia um mundo no qual o espírito de Deus, por meio da Sua graça, penetrava na natureza e a espiritualizava. Enquanto no norte protestante as realizações intelectuais se encontravam na filosofia abstrata e na arte da palavra escrita, na Áustria se encontravam na arquitetura, no teatro e na música. Nelas, verdade e valor se manifestavam sensorial e concretamente. O teatro era a principal forma cultural pela qual os vienenses de todas as classes conferiam sentido ao seu mundo. Os estudantes nas universidades beneditinas e jesuíticas eram preparados para desempenhar seus papéis no teatro do mundo. Graça, gestos e adaptabilidade faziam toda a diferença de um cavalheiro austríaco.12 Moreno mudou-se com a família para Viena em 1895 ou 1896, aos seis ou sete anos de idade. Por volta desta data, relata Schorske: Em 1887, a nova geração, Die Jungen, anunciou-se num [...] movimento chamado de “a Secessão”. Sua ideologia e sua retórica iniciais ainda faziam eco aos tons da cultura política radical da universidade das décadas anteriores. Sua declaração de guerra contra o espírito comercial e a corrupção e seu chamamento a uma regeneração da cultura austríaca por meio

8 MARINEAU, R. Jacob Levy Moreno 1889-1974. São Paulo, Ágora, 1992. 9 MORENO, J. L. J. L. Moreno: autobiografia. São Paulo Saraiva, 1997. 10 SCHORSKE, C. E. Pensando com a história. São Paulo, Companhia das letras, 2000. 11 LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. Op cit. 12 SCHORSKE, C. E. Pensando com a história. Op cit, pp 145-147.


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da arte [...] de um lado, explorações psicológicas da vida instintiva, em especial a de eros e a dissolução das fronteiras entre o eu e o mundo, entre pensamento e sentimento; de outro lado, a criação de uma beleza nova e aistórica, tanto nas belas-artes como nas artes aplicadas, para satisfazer as almas sensíveis dos esteticamente cultos.13

Motivados pela influência de Richard Wagner e Friedrich Nietzsche, a nova geração de escritores e artistas buscava reagir às mudanças sociais trazidas pela modernização econômica, técnico-científica e administrativa que se processava sob o impulso da revolução industrial e da expansão liberal e capitalística. Os jovens intelectuais procuravam transpor a decadência dos valores em vigor na sociedade fundando uma religião da arte. O instinto, a liberação sexual, a dissolução do ego, a sensualidade, a beleza, enfim, os valores dionisíacos defendidos por Nietzsche passaram a ser afirmados pela expressão destes artistas como maneira de transpor a decadência cultural da geração de seus pais. Uma espécie de aistoricismo emergia como uma tentativa de rompimento com o passado “em busca da verdadeira face do homem moderno”.14 Os jovens artistas e intelectuais vienenses davam, assim, os primeiros impulsos para a grande expansão cultural do modernismo no século seguinte. Freud, nesta época, encontrava-se com cerca de quarenta anos. Ao mesmo tempo em que com os seus estudos sobre o mito de Édipo compartilhava com a nova geração de artistas a retomada de temas gregos, à procura de novas bases para a construção de um novo homem, se distanciava deles ao propor, ao invés do rompimento com os valores paternos, a reconstituição da história familiar através da elaboração dos seus conflitos íntimos. Nas palavras de Schorske: A teoria de Freud, o legado mais amplamente difundido e visível do levante sociocultural vienense para o pensamento moderno, ocupa um lugar especial em seu próprio contexto histórico. A partir de sua resposta pessoal a sua experiência de jovem revoltado, Freud evitou identificar-se com o ‘moderno’ [...]. Formulou a sua teoria do conflito primordial entre pai e filho em sua extensa autoanálise, realizada entre 1895 e 1899. [...]. Enquanto seus companheiros definiam a tensão com os pais a partir da demanda por uma nova cultura, Freud não definia seu conflito paternal numa revolta contra os valores de seu pai, mas numa crítica de seu fracasso em viver plenamente conforme estes valores. [...]. Dessa forma, elevou a história pessoal, determinada na família, acima da história geral, determinada na cultura como um todo. Para ele, Édipo carregava todas as dimensões das relações familiares e de identidade, mas perdia o seu caráter rex. Ou seja, Freud omitiu o significado público do mito em favor de sua significação puramente psicológica [...]. Compartilhava o trauma da desintegração do liberalismo, mas submetia a singularidade dessa experiência à verdade eterna das relações pai-filho, em vez de interpretá-la como uma crise da cultura racionalista.15

Esta interpretação de Schorske sobre o posicionamento de Freud nos é de grande valia para compreendermos a diferença entre este e o de Moreno, diante do mesmo contexto sociocultural. Enquanto Freud não só não evitou o confronto com a cultura racionalista, como se apoiou nela e reforçou-a, Moreno procurou de fato romper com ela. E aqui formulamos a hipótese sobre o motivo pelo qual a obra Moreno permanece indevidamente pouco reconhecida e compreendida: 13 Idem, pp 152-153. 14 Idem, p 170. 15 Idem, pp 175-176.


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o racionalismo, comprometido com o individualismo e os ideais capitalistas, vigente na época e ainda hoje dominante na cultura. Isto nos ajuda a esclarecer a derradeira importância de Moreno para os dias de hoje, quando podemos retrospectivamente compreender a obra dos dois autores, e concluir, que Moreno — e não Freud — estabeleceu de fato uma nova base para a construção de um novo homem. Mas estamos antecipando algo que apenas ao longo da nossa exposição teremos reunido elementos suficientes para esclarecê-lo. Le Rider nos mostra que o movimento de contestação dos valores racionalistas não aconteceu, no seu conjunto, sem ambiguidades e conflitos. A obra freudiana, apesar de seu racionalismo, possibilitou, em certa medida, a recuperação da dimensão não racional do homem, ao tornar a exploração da psique e o aprofundamento da busca de si mesmo cada vez mais acessíveis, a um número cada vez maior de pessoas, contribuindo assim para a formação de uma nova subjetividade coletiva. Neste sentido, a produção científica de Freud pode ser compreendida como uma das mais significativas tentativas de restauração do sentimento de identidade do homem da época, alinhada à cultura da palavra, da moral e da lei, enquanto a produção artística dos vienenses se alinhava à cultura da graça. O Teatro da Espontaneidade se alinhava à cultura da graça. A nova subjetividade emergente trouxe em seu bojo um viés inesperado: o rompimento com o passado levou a uma despolitização da sociedade em função da subordinação do social ao psicológico.16 Ao mesmo tempo em que a emancipação psicológica era exaltada como modo de cada pessoa se diferenciar em meio à ordem social decadente, retomando os ideais da liberdade e da igualdade social e política do iluminismo, era recriminada por promover a alienação do egocentrismo e a perda das forças de coesão social. Nas palavras de Le Rider, esta nova subjetividade aparece como “um paradoxo singular: o ‘culto do eu’ se combina com a descoberta do vazio ou da fragilidade deste mesmo eu”.17 Para esclarecer este paradoxo se faz necessário distinguir duas acepções de “eu”, ou melhor, de “indivíduo”, vigentes nesta época. Na primeira metade do século XIX, Schopenhauer já havia alertado em seu livro “O mundo como vontade e representação” para o aprisionamento ocasionado pelo principium individuationis. O eu, em sua vontade individual, a fim de satisfazer o seu próprio bem-estar, se torna indiferente ao bem-estar do outro, tendendo a romper o grande encadeamento causal das coisas no mundo, em que tudo se encontra interligado. Neste sentido, para Schopenhauer, a individualidade se constituía como fonte contínua de sofrimento, não passando de um obstáculo para o homem. Nietzsche, por sua vez, no último quarto do século XIX, procurou diferenciar dois tipos de indivíduos. Um primeiro tipo, cuja subjetividade se formava pela identificação com os valores instituídos, procurava manter-se adequado à moral ascética determinada pelo racionalismo positivista, submetendo-se ao sofrimento impingido pela coação social, como uma vítima de uma suposta realidade que lhe era exterior. Tal indivíduo era limitado em suas ações, ressentido, tomado por sentimentos de vingança. Um segundo tipo, se dispunha a romper com esta subjetividade fixada socialmente, procurando afirmar-se em contínuo processo de superação de si, deixando de pensar a si mesmo como uma identidade, como algo uno e estático, para integrar as diferenças que ia descobrindo com o devir da sua existência, mesmo que para tanto fosse necessário se opor às normas sociais. Nietzsche demonstrou com este segundo tipo, a possibilidade paradoxal

16 Idem, p 178. 17 LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. Op cit, p 77


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de haver, concomitante ao processo de superação de si, uma expansão da subjetividade para além do autocentramento, da unilateralidade monolítica determinada pela identificação com os valores coletivos da época, manifestando a tendência intrínseca ao indivíduo de ampliação da capacidade de perceber e participar do todo interligado do mundo. Neste sentido, Nietzsche pregava a afirmação da vontade de potência e a abolição do princípio da identidade individual como o caminho que conduziria no futuro ao surgimento do super-homem, isto é, o homem enfim liberto de todo e qualquer cerceamento social. A nova geração de intelectuais vienenses, fortemente influenciada pelo pensamento nietzschiano, empregou os seus esforços em processos artísticos e científicos inovadores. Le Rider destacou algumas categorias axiais, direta ou indiretamente ligadas ao individualismo pregado por Nietzsche, para a compreensão das crises de identidade que atingiam os vienenses, e suas respectivas estratégias de superação. Como reação aos sentimentos de solidão, de fragilidade do eu subjetivo, de instabilidade das identificações internas e das identidades de fachada, certos pensadores da época de 1900 exploraram as possibilidades de restauração da identidade por meio daquilo que se poderia chamar de radicalização do individualismo. As figuras do místico (por exemplo, em Hofmannsthal), do gênio (como o entende Otto Weininger) e de Narciso (reinterpretado por Lou AndreasSalomé) se destacam como os três principais tipos de afirmação de autossuficiência do indivíduo de toda a comunidade humana, do ‘eu’ dobrado sobre si mesmo, e enfrentam diretamente o mundo. [...]. Essas utopias do misticismo, da genialidade e do narcisismo como formas de existência possuem em comum a aspiração a ultrapassagem dos limites impostos pela vida: abolem a divisão masculino/feminino e tendem a um ideal andrógino; aspiram à autodestruição de um eu que sofre por não aceitar as suas qualidades acidentais (sexo, raça,...) e à recriação de um eu mais perfeito.18

Enquanto a mística tradicional falava da união com o transcendente, “a mística da época de 1900 não busca senão a união do mundo e da Vida, a fusão do eu com um eu profundo”19, numa síntese entre o exterior e o interior, o mundo e o eu. Tais sínteses eram vividas como estados estéticos de felicidade, intensos e fugazes, seguidos por sentimentos de vazio e solidão, como podemos observar nos trechos da “Carta de Lorde Chandos” de Hugo Von Hofmannsthal citados por Le Rider: Um regador, um ancinho abandonado num campo, um cão deitado ao sol, um miserável cemitério, um doente, uma pequena casa de camponeses, tudo isto pode se tornar o receptáculo de minhas revelações. Cada um desses objetos, e mais mil outros parecidos dos quais um olhar ordinário se afasta com evidente indiferença, podem adquirir para mim, repentinamente, em um momento em que está absolutamente em meu poder de provocar, um caráter sublime e tão comovedor que todas as palavras me parecem demasiadamente pobres para traduzi-lo.20 Tenho então a impressão que meu corpo se constitui unicamente de caracteres cifrados com os quais posso abrir tudo, ou então que poderíamos estabelecer uma nova relação misteriosa com

18 Idem, p 12. 19 Idem, p 91. 20 Idem, p 88.


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toda a existência, caso nós nos puséssemos a pensar com o coração. Mas quando este encanto me abandona, já não sei dizer mais nada a seu respeito. Independentemente destes estranhos casos, dos quais não sei se devo atribuir ao espírito ou ao corpo, levo uma existência de um vazio dificilmente acreditável e tenho dificuldade em esconder de minha mulher o torpor de meu ser, e de minha gente a indiferença que me inspiram os negócios relativos às minhas propriedades.21

Já, o tema da genialidade, de certo modo acompanha, ou até mesmo se superpõe ao do misticismo. Otto Weininger elaborou uma teoria do gênio como um microcosmo vivo. Tendo desenvolvido extraordinariamente sua memória, a alma do gênio abrigava todos os tipos humanos e todo universo, gozando de uma compreensão ilimitada, assemelhando-se ao estado de união mística.22 Como utopia, pensava que cada homem deveria ser genial, e que por princípio poderia se torná-lo. A genialidade seria, assim, a virtualidade suprema da individualidade.23 Neste sentido, segundo o escritor Robert Musil: A experiência fundamental da mística nasce [...] de uma aspiração análoga à força do amor, de um poder anônimo de concentração, de um ajuntamento, de um reagrupamento interior de forças instintivas. Aquilo que é preciso vencer não é uma força adversa, nem uma inércia, nem um sofrimento, trata-se de uma paralisia [...]. O querer se desata, não somos mais nós mesmos, e, contudo, pela primeira vez, somos nós mesmos. A alma que desperta num tal momento não quer nada, não promete nada e nem por isso permanece menos ativa. Não precisa senão fazer a lei: seu princípio ético é o despertar, o impulso. Não há mais atividade ética, mas um simples estado no interior do qual o ato ou o ser imoral já não encontra espaço.24

Weininger e Musil alinhavam-se a Nietzsche ao creditarem ao gênio a capacidade de transpor a individualidade condicionada pela moral racionalista, a capacidade de dar vazão ao virtual poder de autocompreensão do homem e, desta maneira, criar novos valores. Lou Andreas-Salomé, com a sua defesa do narcisismo, alinhava-se também com eles, neste sentido. Tendo se aproximado de Freud e da psicanálise, formulou ao seu modo uma concepção alargada de narcisismo. Segundo ela, o narcisismo não se reduziria à libido, investida egocentricamente. Nosso próprio enraizamento num estado original no qual permanecemos incorporados, e ao mesmo tempo destacando-nos, como a planta está ligada à terra ainda que dela se afaste em seu crescimento em direção à luz [...]. A identificação intuitiva mantida com o Todo, a reunificação com o Todo como meta positiva fundamental da libido, [...] a volúpia de ir mais longe que si mesmo, de não se constituir de obstáculo para si mesmo enquanto eu durante o feliz reencontro como o estado original, ainda estranho ao eu.25

Freud, todavia, mais interessado em desenvolver a análise do psiquismo do que encontrar a sua síntese, em separar e organizar o que de outra maneira se perderia no caos original, não 21 Idem, p 90. 22 Idem, p 98. 23 Idem, p 99. 24 Idem, p 100. 25 Idem, p 111.


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compartilhava da inclinação mística de Lou Andreas-Salomé chegando a temer que ela aderisse ao sistema de Jung ou de Adler.26 Neste contexto de ultrapassagem dos valores culturais tradicionais, Le Rider nos aponta uma segunda categoria de crises de identidade na modernidade vienense: as crises da identidade masculina. A autoridade patriarcal fora posta em questão, o feminismo começava a sua ascensão, a redistribuição dos anteriormente fixados papéis masculinos e femininos se processava. Deu-se o início da busca, por parte de homens, da redefinição da sua identidade sexual, à medida que descobriam a feminilidade em si mesmos. No campo da arte, podemos reconhecer sinais desta busca, por exemplo, em Weininger, na sua rejeição angustiada da feminilidade: “o ódio à mulher não é jamais outro senão o ódio mal resolvido do homem contra a sua própria sexualidade”27; ou, no louvor aos valores matriarcais expressos nas figuras femininas telúricas, ao mesmo tempo ameaçadoras e sedutoras, retratadas nas pinturas de um Gustav Klimt. No campo da ciência, Freud defendia a bissexualidade constitutiva do ser humano, que se manifestava no homem como medo da castração e na mulher como inveja do pênis. Adler, diretamente influenciado por Nietzsche, argumentava que a supremacia abusiva do princípio masculino na cultura levava à vontade de poder tanto por parte do homem como da mulher a querer ser homem. No homem, o sentimento de inferioridade relacionado à percepção de traços femininos em si mesmo, como, por exemplo, a submissão e a passividade, poderia conduzi-lo a uma necessidade neurótica de afirmação viril. Na mulher, a vontade de poder poderia levá-la a agir de modo masculino, por exemplo, agressiva ou impositivamente. Adler considerava essa aspiração comum como um hermafroditismo psíquico.28 Paralelamente, Jung descrevia as manifestações do arquétipo do feminino — que chamou de anima — nos homens, e as manifestações do arquétipo do masculino — o animus — nas mulheres, como contrapartidas inconscientes às disposições conscientes em ambos os sexos. Uma terceira categoria axial apontada por Le Rider é a da crise da identidade judia, expressa na confrontação entre judeus e não-judeus, na ascensão dos movimentos do antissemitismo e do sionismo. Le Rider nos mostra como esta categoria se encontra inextricavelmente entrelaçada com a da crise de identidade masculina. Para exemplificar isto basta citar a interpretação do simbolismo da circuncisão judia por Groddeck: O prepúcio é cortado para cortar todo traço feminino da insígnia da masculinidade: isto porque o prepúcio é feminino, é a vagina na qual é metida a glande masculina [...] Nos judeus, ocorre diferentemente: se cortam o prepúcio [...] eliminam assim a bissexualidade do homem, retiram do masculino o caráter do feminino. Renunciam, deste modo, em favor da divindade bissexual, à sua inata similitude divina; através da circuncisão o judeu se torna somente homem. Que se considere a particularidade do caráter judeu: não existe povo na Terra que seja tão manifestadamente masculino.29

Le Rider aventa a formulação de uma teoria das raízes comuns ao antifeminismo e ao

26 Idem, pp 109-111. 27 Idem, p 280. 28 Idem, p 201. 29 Idem, p 283.


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antissemitismo30, baseando-se no argumento de Freud: O complexo de castração é a mais profunda raiz do antissemitismo, já que, desde sua mais tenra idade, o menino houve dizer que se corta qualquer coisa no pênis do judeu — ele compreende: um pedaço do pênis — , e isto lhe dá o direito de desprezar o judeu.31

Para concluir esta breve análise, diria que ela nos ajuda a reconhecer a generalização e a radicalização destas crises de identidade no nosso mundo contemporâneo, também chamado pós- moderno. De lá para cá houve uma intensificação dos antagonismos em meio às contradições. Razão ou fé? Individualismo ou gregarismo? Feminilidade ou masculinidade? Na busca pela resposta destes e outros paradoxos, a experiência vienense foi precursora da tendência atual à psicologização, à personalização, ao repúdio dos grandes sistemas ideológicos, ao culto narcísico do eu, à mescla das identidades sexuais, ao reavivamento dos misticismos que observamos na atualidade.

1.3. A infância e a juventude de Moreno em Viena A família de Moreno emigrou de Bucareste em 1895 ou 1896, devido a dificuldades econômicas. O pai aproveitou a oportunidade de trabalho numa companhia cujos escritórios tinham sede em Viena. Passaram a morar no “segundo bairro”, entre judeus e outros refugiados. Nesta época, Jacob tinha seis ou sete anos. Na escola, foi um bom aluno. Sentava-se na primeira fileira da sala de aula, e logo se destacou por sua curiosidade e inteligência. Seus pais costumavam se desentender, mas, a despeito disto, Moreno recordava a sua infância como o tempo mais feliz da sua vida. Apenas recentemente descobriu-se a verdadeira data e local de nascimento de Jacob Levy: 18 de maio de 1889 em Bucareste. Aliás, este foi o nome inscrito em sua certidão de nascimento. O nosso autor adotou por escolha própria na vida adulta o prenome de seu pai, Moreno Nissim Levy, como sobrenome. Em sua autobiografia, publicada postumamente em 1985, Moreno declara uma outra “estória” a respeito de seu nascimento: Nasci numa noite tempestuosa, num navio que singrava o Mar Negro [...], na madrugada do Santo Sabath [...]. Ninguém sabia a bandeira do navio. Seria um navio grego, turco, romeno ou espanhol? O anonimato do navio deu início ao anonimato do meu nome e ao anonimato da minha cidadania. [...]. Nasci como um cidadão do mundo, um marinheiro que se mudava de mar em mar, de país para país, destinado a desembarcar um dia no porto de Nova York.32

Não se pode senão especular sobre os motivos que levaram Moreno a criar uma lenda acerca do seu nascimento. Marineau sugere que esta estória incorpora a realidade com o simbolismo da sua imaginação, tratando-se de uma biografia psicodramática e não de uma 30 Idem, p 284. 31 Idem, p 285. 32 MORENO, J. L. J. L. Moreno: autobiografia. Op cit, p 20.


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biografia historicamente analítica, pista fornecida pelo próprio Moreno em seu livro “A primeira família psicodramática”.33 Esta estória foi utilizada por Moreno após a emigração para os Estados Unidos. Na Europa usava seu verdadeiro lugar e data de nascimento, como, por exemplo, constam nos registros da Universidade de Viena. A estória faz alusão às raízes judaicas, espanholas, turcas, gregas e romenas da sua ascendência, bem como, ao seu especial interesse pelo anonimato. Quanto as suas raízes familiares, tanto por parte de pai como de mãe, provinham da comunidade judaica sefardim que vivia na Espanha, anteriormente ao ano de 1492, quando os Reis Católicos proclamaram o édito que ordenava a todos os judeus que se convertessem ao catolicismo ou deixassem o país. Os ancestrais paternos se estabeleceram então na Turquia, em Constantinopla, com o sobrenome Levy. Os maternos, não se sabe ao certo, se fixaram na Turquia ou na Grécia. As duas famílias se encontraram na Romênia, mais especificamente em Bucareste, após terem imigrado para lá, provavelmente durante a guerra entre a Turquia e a Rússia, em meados do século XIX. Moreno Nissim Levy, seu pai, era comerciante. Trabalhava como autônomo, viajava com frequência, e era relativamente pobre. Tinha 32 anos ao se casar com Paulina Iancu, de 14. Antes de se casar, em função da morte de seu pai, seus irmãos mais velhos a colocaram num convento católico em Bucareste, onde ficou sob influência da cultura e da língua francesas, e quase se converteu ao catolicismo. Foram também seus irmãos que promoveram o casamento, sob muitos aspectos, de conveniência. Aos 15 anos, deu a luz ao seu primeiro filho, Jacob Levy, durante a ausência do pai, que estava em uma de suas viagens de negócios pelos Bálcãs vendendo artigos turcos. O casal ficava separado a maior parte do tempo. O pai, quando não estava viajando, estava em atividade na comunidade sefardim, ajudando amigos e vizinhos. Em casa, falava pouco, mas mantinha a autoridade. A mãe, poliglota, logo aprendeu o alemão, adaptando-se à vida vienense com facilidade. O mesmo não ocorrera com o pai, que apresentava dificuldade para aprender línguas. Bem educada e até refinada, bem-humorada e supersticiosa, deu educação a seis filhos. O primeiro, Jacob, chamado por ela de Jacques, seria o preferido. Alguns episódios ocorridos a Moreno em seus primeiros anos são de fundamental importância para a compreensão de seu extraordinário interesse pela ideia de Deus, que o acompanhou ao longo de toda a sua vida, motivando-o nas suas escolhas e no seu processo criador. Sua mãe teve papel central na gênese deste interesse. Moreno com um ano de idade foi acometido de raquitismo, manifestando um estado grave da doença. Paulina, supersticiosa, tendo sido abordada por uma cigana que proferira uma profecia a respeito de seu filho, deu-lhe crédito. Seguindo suas orientações, colocava diariamente o filho sentado sobre um monte de farinha, com pouca roupa, para pegar sol. A profecia era a de que Moreno seria um dia um grande homem, sábio e bondoso, que reuniria em torno de si gente de todo o mundo. Moreno foi curado, e sua mãe passou a ver nele uma criança com um destino especial. Este episódio certamente serviu como fonte de elementos imaginários constituintes do seu futuro sonho. Paulina, seguindo a sua crença, deve tê-lo apoiado em tudo que pudesse conduzi-lo neste sentido, como, por exemplo, em suas brincadeiras de fazer-se de Deus.

33 Idem, p 22.


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Aos quatro anos e meio, Moreno já demonstrava ter introjetado este destino. Estando com outras crianças no porão de sua casa, propôs-lhes: “vamos brincar de Deus com seus anjos?”. As crianças concordaram que seriam os anjos, enquanto Moreno, Deus. Puseram-se a colocar cadeiras sobre cadeiras até alcançar o alto teto do porão, para primeiro construir o céu. Moreno trepou nelas com a ajuda das outras crianças até se sentar, muito à vontade, na cadeira do topo. Perguntou-lhe uma das crianças: — “Por que você não voa?” Esticou seus braços para tentar, caindo lá de cima e fraturando o braço direito. Esta passagem se tornou famosa e emblemática como uma das experiências seminais de Moreno, no processo que o conduziria à criação do Teatro da Espontaneidade. O próprio Moreno, em comentários posteriores, reconheceu a cena de infância como o primeiro psicodrama privado, estabelecendo conexões entre a sobreposição de cadeiras e o palco psicodramático, as crianças como egos-auxiliares, e a si próprio no duplo papel de diretor e protagonista. Na formação das suas crenças religiosas, foi instruído pelo rabino Bejarano nas crenças judaicas, ao mesmo tempo em que se identificava com Jesus, influenciado por sua mãe. Marineau sugere que a obsessão de Moreno pela ideia de Deus pode ser compreendida não só em função dos ensinamentos religiosos que recebera, mas sobretudo pela questão edipiana. Moreno amava e idealizava seu pai, embora o mesmo estivesse frequentemente ausente de casa. Costumava tomar o seu partido contra a mãe e os tios. Fez viagens para Calasari e para Constantinopla, quando pode estar com ele a sós e conhecê-lo de outra maneira, como alguém experiente e sábio. Por volta de 1905, a família mudou-se mais uma vez, desta feita para Berlim. Descontente com a mudança, recebeu o consentimento de seus pais para voltar a morar em Viena, retomando seus projetos e amizades. Novos problemas, em 1906, levaram a família então para Chemnitz, ainda na Alemanha. Nesta época, quando o relacionamento entre os pais estava a ponto de se romper, tentou aproximá- los, mas sem sucesso. Desde então, nunca mais viu o pai, que voltou à Constantinopla constituindo nova família. Zangou-se com a mãe, considerando-a culpada pela separação, passando a apresentar comportamento de revolta junto à família, e também na escola. Frequentemente discutia com professores e faltava a aulas. Sentiu a injustiça da situação como um sinal de que Deus o havia abandonado, sendo tomado por sentimentos de depressão. Nas palavras do jovem adolescente: Por que você criou o Universo em primeiro lugar? Poderia ter-nos poupado a todos de viver. [...]. Por que não começou tudo por mim? E por que enfim me criou? Eu não me sinto bem. Não gosto de mim.34

Tempo depois, voltou a se reconciliar com Deus: Foi aos 14 anos que cheguei à minha epifania, numa noite em que andava sem destino pelas ruas de Chemnitz [...]. Procurando enxergar onde estava, percebi que estava num parque, diante de uma estátua de Jesus Cristo iluminada pela pálida luz da lua. [...]. Queria que Jesus saísse da pedra para me falar. [...] Parado ali diante dela, sabia que tinha que tomar uma resolução que haveria de determinar o curso futuro de minha vida. Acredito que todos os homens devam tomar tal resolução na juventude. Este era o momento da minha decisão. O que haveria eu de escolher: minha identidade com o Universo, com a família particular ou com o clã do qual eu provinha? Resolvi-me pelo Universo, não porque minha família fosse inferior a qualquer outra, 34 Idem, p 35.


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mas porque deseja viver como representante de um cenário mais amplo do que aquele a que pertenciam os membros de minha família. [...]. A pequena estátua diante de mim assinalava que Jesus tinha tomado o caminho do Universo e aceito todas as consequências que isto envolvia. Significava para mim um objetivo que me impulsionaria e que, daí por diante, todas as minhas ações, decisões e encontros teriam que ser pautados em conformidade com esta visão de vida. [...]. Parado ali, diante de Cristo, em Chemnitz, comecei a acreditar que eu era uma pessoa extraordinária, que eu estava no planeta para cumprir uma extraordinária missão.35

Por volta de 1906, Moreno tinha na verdade 17 anos. Podemos vislumbrar nesta passagem da adolescência, a maneira como Moreno construiu a sua identidade para a vida adulta. Arriscando um exercício de interpretação psicanalítica poderíamos dizer que Moreno encontrou, neste episódio, uma saída para a crise edipiana instalada com a separação dos pais. Não dispondo de elementos para elaborar o conflito familiar em termos concretos, buscou o universal. Decidiu-se por levar a sua vida longe da mãe e dos cinco irmãos mais novos, de maneira a não ter de assumir o lugar do pai no seio da própria família. Assim, identificado com Jesus Cristo, preferiu adotar o papel psicodramático de pai da família universal da humanidade. A separação da família não lhe foi fácil. A mãe, especialmente, tinha necessidade dele, mudando-se novamente para Viena. Mas ele se recusou a viver com ela e a família. Recusava também a ajuda financeira dos tios. Criticava a hipocrisia do sistema escolar, e a falta de justiça e de ética da sociedade. Optou por levar uma vida independente e, para se sustentar economicamente, passou a trabalhar como professor particular. Seguiu-se um período de dois anos de intensa busca espiritual. Fez todo o tipo de leitura, e não se aproximou de religião alguma. Manteve-se também a distancia de todas as facções, grupos ou movimentos de jovens: cristãos ou judeus, de direita ou de esquerda. Convenceu-se de que “a ação era mais importante do que as palavras, que a experiência era a melhor mestra, se comparada aos livros”.36 Nas suas palavras: Extensas e fervorosas leituras religiosas, filosóficas e estéticas prepararam o palco interior e psíquico para o período decisivo que ia chegar. As leituras religiosas centralizavam-se no Velho e no Novo Testamento dos santos Paulo, Agostinho, Orígenes, Benedito, Francisco, em mestre Eckhart, Ângelo Silesius, Friedrich Novalis, o Apócrifa, o Sohar e Jezirah, Blaise Pascal. Os escritos de Sören Kierkgaard provocaram grande impacto em toda a Europa no começo do século XX, e eu também fiquei fascinado. Entre os filósofos que mais me absorviam, achavamse Spinoza, Descartes, Leibniz, Kant, Fichte, Hegel, Marx, Schopenhauer e Nietzsche. Entre os romancistas e poetas estavam Dostoievski, Tolstoi, Walt Withman e Goethe. Por esta lista é claro que eu compartilhava estes livros com muitos de minha geração, mas a minha reação a eles é que me deslocava. Minhas leituras não eram sistemáticas. Um livro aqui, outro acolá. [...] Um dos resultados de todas as minhas leituras de teologia e filosofia foi uma oposição violenta não tanto contra os remédios oferecidos pelos escritores, que eram excelentes e lindamente expressos, mas contra o seu comportamento como indivíduos e representantes dos valores que apregoavam. Eles prediziam desastres a menos que um curso de ações prescritas por eles 35 Idem, p 36-37. 36 Idem, p 40.


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fosse seguido, mas deixavam que políticos oportunistas e astuciosos conduzissem o mundo. Com algumas exceções, eles mesmos nada faziam. Escondiam-se atrás de livros profundos e sermões maravilhosos. Pareciam pensar que seu trabalho terminava ao escreverem seus livros ou pregarem os seus sermões. Nenhum deles irrompeu do livro para a realidade... .37

Entrou para a Universidade de Viena em 1909. Como havia abandonado a escola antes de obter o diploma, foi barrado no ingresso à faculdade de medicina. Teve que concluir o programa de estudos com o estudo de filosofia, para só então em 1910 iniciar os estudos médicos. Seu objetivo era atuar como médico de família. Neste período, conheceu Chaim Kellmer, um jovem judeu criado na tradição hassídica, estudante de filosofia, com quem veio travar uma intensa amizade. Juntos, e com mais três estudantes de medicina, fundaram a “Casa do Encontro”, para novos imigrantes e refugiados. Os recém-chegados eram ajudados a preencher papéis, tirar documentos, encontrar empregos. Numa placa estava escrito: “Vinde a nós, vós de todas as nações. Aqui vos daremos abrigo”. Formavam uma comunidade baseada em seus princípios, uma espécie de religião centrada na espontaneidade, na criatividade, nos encontros, no anonimato. Reuniam-se para discutir problemas práticos, questões espirituais tais como a volta de Cristo, cantar, fazer brincadeiras. Desta maneira, ao término adolescência, após o período de isolamento íntimo que se seguiu ao embate com a família, a escola e a sociedade, deu início ao percurso de juntar-se a outros para se converter no homem profetizado pela cigana e acalentado pela mãe. A respeito deste novo período, encontramos as seguintes palavras de Moreno: Tornar-me profeta não foi algo repentino. Foi um crescimento lento, gradual e cujos determinantes podiam ser rastreados até minha tenra infância. [...]. Comecei a desempenhar o papel. Não queria apenas me tornar profeta, mas também parecê-lo. [...]. Às vezes, parecia-me que eu esta criando um tipo, um papel que, uma vez encontrado, não poderia ser mais abandonado.38

Costumava trajar um manto verde-escuro que caía quase até os tornozelos, deixou crescer a barba, ruiva e rala, que pelo formato parecia com a representação pictórica de Cristo, com a intenção de parecer paternal e sábio, antecipando a velhice. Tinha 21 anos.

Quanto aos princípios da sua filosofia, vejamos como os descreve: Eu tinha a ideia fixa de que um único indivíduo não possuía autoridade, de que devia se tornar o porta-voz de um grupo. Deve ser um grupo, o novo mundo deve sair de um grupo. Portanto, sai por aí, para encontrar amigos, seguidores, gente boa. Minha nova religião era a religião do ser, da própria perfeição. Era a religião da ajuda e da cura, pois ajudar era mais importante que falar. Era a religião do silêncio. Era a religião do fazer alguma coisa por ela mesma, sem recompensa, sem reconhecimento. Era a religião do anonimato. [...]. Se o amor e o companheirismo surgissem, seriam desfrutados e conservados no momento, sem calcular possíveis retornos e sem expectativas de qualquer compensação.39

37 Idem, pp 40-41. 38 MARINEAU, R. Jacob Levy Moreno 1889-1974. Op cit., pp 46 e 47. 39 Idem, p 47.


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Com Kellmer, chamou a estes princípios filosóficos de “seinismo”, o que quer dizer, a ciência do ser.40 Ser: no momento, no aqui e agora, no ato da existência, no fluxo espontâneo da vida. Certamente, a experiência hassídica de Kellmer foi de grande importância na formulação destes princípios. O Hassidismo era uma seita religiosa surgida dentro do judaísmo no século XIII, em torno da pessoa de Baal Shem Tov, na região da Europa Central — Polônia, Lituânia, Ucrânia —, influenciada pela Cabala. A ênfase hassídica recaía sobre o contato pessoal, a alegria de viver, o conhecimento da presença de Deus em todas as coisas, e não sobre a doutrina contida nos textos religiosos. Uma religião voltada à prática, às ações concretas. Quebrava, neste sentido, com a tradição dos cultos judaicos. Ao invés do rabino, como diretor religioso, surgia a figura do “tzaddik”, de um homem com grandes virtudes que levava aos caminhos de Deus, muito mais pelo seu entusiasmo e devoção, em seus contatos pessoais, do que pela doutrina. O declínio da seita se deu em meados do século XIX, talvez pela perda da espontaneidade dos tzaddiks ao se tornarem dinásticos.41 Kellmer deve ter reconhecido em Moreno a figura de um tzaddik, pela liderança espontânea que exercia na Casa do Encontro, pela sua personalidade alegre e criativa, pela sua vocação para a ação, em contraste com a sua própria personalidade, mais recatada e reflexiva. Por seu turno, Moreno recebia o reconhecimento que necessitava para forjar a sua imagem de profeta. Em 1915 publicou “Convite a um Encontro”, uma série de três brochuras que contém certo número de ensaios e poemas. Na segunda delas, encontramos o poema “Convite a um Encontro”, que veio a se tornar o leitmotif de Moreno. Um trecho se destaca:

Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face, E quando você estiver perto arrancarei seus olhos E os colocarei no lugar dos meus; Arrancarei meus olhos E os colocarei no lugar dos seus; Então verei você com seus olhos E você me verá com meus olhos.42

Em 1911, começou a se encontrar repetidas vezes com crianças nos jardins do Augarten, um parque público perto do palácio do Arquiduque. As crianças interrompiam as suas brincadeiras para ouvir as estórias que Moreno lhes contava. Para ele: A parte mais importante da estória é que eu estava sentado ao pé de uma árvore como um ser saído de um conto de fadas e que as crianças tivessem sido arrastadas a mim por uma flauta mágica, e sido removidas corporalmente de seu ambiente insípido para um mundo de fadas. Não era tanto o que lhes contava, o conto propriamente dito, era o ato, a atmosfera de mistério, de paradoxo, o irreal virando real. Eu ficava no centro, constantemente saía do pé da árvore e me sentava mais alto, num galho. As crianças formavam um círculo, um segundo círculo atrás do primeiro, um terceiro atrás do segundo, muitos círculos concêntricos. O céu era o limite.43

Esta vivência com as crianças foi para Moreno intensamente marcante. Através dela, sentia

40 ALMEIDA, W. C. Moreno: encontro existencial com as psicoterapias. São Paulo, Agora, 1990, p 23. 41 FONSECA FILHO, J. S. Psicodrama da loucura. São Paulo, Agora, 1980, 65-71. 42 MARINEAU, R. Jacob Levy Moreno 1889-1974. Op cit., p 59. 43 Idem, p 51.


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apoderar de si um estado de ânimo que reforçava o sentido da sua busca, um guia a lhe orientar durante todo o percurso da sua vida. Toda vez que eu entrava em uma nova dimensão da vida, as formas que eu vislumbrava com meus próprios olhos, naquele virginal universo, erguiam-se à minha frente. Eram os modelos para todas as ocasiões em que eu me esforçava por visualizar uma nova ordem para as coisas ou para criar uma forma nova. Tinha uma certeza absoluta destas visões. Parecia que me dotavam de uma ciência da vida antes que a experiência e o experimento atestassem a sua precisão. Quando entrava na casa de uma família, numa escola, numa igreja, na Assembleia, ou em qualquer outra instituição social, revoltava-me contra todas elas em todos os casos; eu sabia que haviam se tornado distorcidas e eu conhecia um modelo novo e pronto para substituir o antigo.44

Paralelamente, como estudante de medicina foi muito aplicado e competente. No curso de psiquiatria, dedicou-se especialmente à pesquisa voltada para os sonhos. Teve a oportunidade de trabalhar na clínica psiquiátrica da Universidade e no Hospital Psiquiátrico de Steinhof. Mas não gostou do que viu. Para ele, não havia terapia alguma. Os pacientes que entravam nas alas do hospital ficavam lá até morrer. Neste momento, ainda não tinha ideia de que viria a trabalhar no campo da saúde mental. Seu objetivo era vir a ser médico de família. Obteve o título de médico em 1917. Foi nesta época que teve um encontro casual com Freud. Segundo Moreno: Enquanto eu trabalhava na clínica psiquiátrica da Universidade de Viena, assisti a uma das conferências do Dr. Sigmund Freud. O Dr. Freud tinha acabado de fazer a análise de um sonho telepático. Enquanto os estudantes se alinhavam ele me perguntou qual era a minha atividade. Respondi-lhe: ‘Bem, Dr. Freud, comecei no ponto onde o senhor desistiu. O senhor atende as pessoas no ambiente artificial do seu consultório. Eu as encontro nas ruas, em suas casas, no seu ambiente natural. O senhor analisa seus sonhos e eu tento estimulá-las a sonhar de novo. Eu ensino as pessoas a representar Deus’... O Dr. Freud olhou para mim como se estivesse perplexo e sorriu.45

Moreno, apesar de aparentemente arrogante, disse a verdade a Freud. Atendia as pessoas nos locais onde viviam, e não procurava analisá-las, mas estimulá-las a ser. Um bom exemplo disso aconteceu em 1913, quando passou a visitar as casas de prostitutas. Tudo começou após um episódio vivido pessoalmente. Numa tarde, andando por uma rua, uma linda garota sorriu para ele, e mal começaram a conversar um policial levou-a embora. Sensibilizado pela discriminação sofrida pela garota, veio-lhe a mente o que La Salle e Marx tinham feito pelas pessoas da classe trabalhadora: que se tornassem respeitadas, que tivessem dignidade pelo seu trabalho. Seguindo este lema, não queria reformar ou analisar as prostitutas, mas fazer com que elas pudessem se organizar e se cuidar melhor, garantir-lhes autonomia. Moreno tratava de reuni-las em grupos de oito a dez garotas, duas a três vezes por semana em suas casas. As conversas tratavam de seus incidentes diários. Inicialmente desconfiadas, porque associações católicas de caridade tinham frequentemente tentado intervir em suas vidas, aos poucos foram se abrindo mais. Primeiramente alcançaram resultados superficiais, como conseguir advogados ou médicos que as tratassem. Depois reconheceram o valor mais profundo das reuniões, que podiam se ajudar mutuamente.

44 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 16. 45 MARINEAU, R. Jacob Levy Moreno 1889-1974. Op cit., p 44


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Outro episódio significativo desta atitude ocorreu no campo austríaco para refugiados da Primeira Guerra Mundial, em Mittendorf, por volta de 1915. Milhares de pessoas tiveram que deixar suas casas no Tirol do Sul por ocasião da invasão do seu território pelos italianos. As pessoas ficavam amontoadas em barracas, sem que se levassem em consideração suas preferências e afinidades. Moreno, prestando serviço como médico, coletou observações a respeito das interações entre as pessoas nas barracas, entre as barracas, e entre estas e as fábricas locais criadas dentro do campo; para então sugerir às autoridades do campo quanto a possíveis reagrupamentos das mesmas para a melhoria do convívio. Tanto neste episódio, quanto no anterior, percebemos a coerência de Moreno na aplicação dos seus princípios filosóficos nas suas atividades como médico, voltando-se para a vida prática e o convívio em grupos. Como Marx, certamente influenciado por ele, Moreno se preocupava com a dignidade e autonomia do trabalhador. Mas, pelo que podemos entrever numa passagem da sua autobiografia, não concordava que isto devesse ocorrer através de partidos políticos, competição ou guerras pelo poder. Nas suas palavras: Havia grupos comunistas e socialistas na universidade enquanto estive lá. Como outros grupos, eles se envolviam em demonstrações, comemorações e trocas de socos. Na universidade, o mais importante era controlar o grande salão de entrada, e todos os grupos políticos estavam empenhados numa constante competição pelo poder para ver quem era capaz de se apoderar daquele salão. [...] Os nazistas propunham a conquista do mundo, para os alemães assim poderem governá-lo. Os comunistas queriam conquistar o mundo para a classe trabalhadora. Em contraste, os primeiros existencialistas salientavam que a própria existência era algo sagrado. Eles já tinham o mundo. Não precisavam conquistá-lo. Sempre que viam a existência ameaçada, procuravam restaurá-la na sua forma nativa.46

Repudiando a atitude tanto dos comunistas como dos nacionalistas, alinhava-se a dos existencialistas. Esta passagem deixa claro que via a existência como algo sagrado que não deveria servir como objeto de conquista e poder. De qualquer maneira, se interessava pelos movimentos sociais. Mas, divergindo dos interesses políticos dominantes na época, quis restaurar a existência ameaçada por intermédio do seu próprio projeto revolucionário: através do teatro. Já formado, em 1919, passou a clinicar em Bad Vöslau, uma cidade pequena a 40 quilômetros de Viena. Foi designado pelo prefeito como médico-chefe da indústria têxtil local. Estando muito bem de dinheiro, resolveu não cobrar pelos serviços prestados às pessoas da cidade. Visitava-as em suas casas, principalmente as pobres. Teve muito êxito, criando a fama de fazer milagres, tornandose conhecido como o “wunderdoctor” (médico maravilhoso). Moreno frequentemente ajudava famílias em suas próprias casas, propondo que representassem de novo situações que tinham inicialmente trazido sofrimento. Descobria, com esta prática, o benefício psicológico deste tipo de representação, que promovia uma espécie de distanciamento reflexivo, a “desdramatização” das situações vividas, e até mesmo o riso. Chamou esta abordagem espontânea de “teatro recíproco”.

A partir de 1918, passou a integrar um grupo de escritores que reunia poetas, filósofos e

46 MORENO, J. L. J. L. Moreno: autobiografia. Op cit, p 64.


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sociólogos. Estavam desanimados com a guerra, à procura de alternativas para a sua sociedade que se desintegrava. Neste contexto, surgiu a ideia da publicação de um jornal, que veio a se chamar “Daimon”. O jornal foi publicado por cinco anos, sendo que nos dois primeiros, contou com Moreno como codiretor. Durante o seu período de existência, conseguiu obter contribuições de grandes escritores, entre Max Brod, Ernest Bloch, Martin Buber, Oskar Kokoschka. Uma de suas contribuições pessoais foi o artigo “A divindade como comediante”, publicado em 1919. Este artigo foi escrito a partir de um episódio real ocorrido em 1911. Uma das versões da estória foi que, certo dia, Moreno entrou com um amigo em um teatro, cuja peça, “Assim falou Zaratustra”, era baseada no livro de mesmo nome de Nietzsche. Moreno e seu amigo fizeram parar o ator que estava para interpretar Zaratustra e objetaram que ninguém, senão o próprio Zaratustra, poderia fazer o papel. O diretor da peça e o autor apressaram- se em vir em defesa do ator. Por fim, Moreno anunciou que ele estava presenciando o fim do teatro tradicional e que o tempo estava pronto para o nascimento do único teatro verdadeiro, no qual cada ator haveria de representar a si próprio, não um papel. A polícia foi chamada, Moreno e o amigo foram levados diante de um juiz, tendo que prometer que não interfeririam nas peças de outras pessoas.47

Evidentemente, reconhecemos aqui a ideia do Teatro da espontaneidade foi lançada como um desafio. Moreno anunciara in situ o conflito, que veio a explicitar no seu artigo, vivido pelo ator em seu foro íntimo. Para concluir este tópico sobre a vida de Moreno, relato o episódio que originou o livro “As palavras do pai”, publicado anonimamente em 1920. Pouco tempo depois de chegar a Bad Vöslau, conheceu uma jovem católica chamada Marianne Lörnitzo. Apaixonou-se à primeira vista. Apesar das inúmeras mulheres com quem já havia mantido relações, com Marianne estabeleceu uma relação especial. Há muito desejava uma mulher que acolhesse as suas fantásticas e utópicas idéias, que o amasse não só física, mas espiritualmente. Com ela, partilhou algo que mantivera em segredo por tanto tempo: que ouvia vozes quando criança. Tinha medo que pudessem rir dele ou achá-lo anormal. Para a sua satisfação e confiança, Marianne nada achou de errado, como também partilhou com ele suas vozes interiores. Foi quando, certo dia em sua casa, na companhia de Marianne, começou mais uma vez a ouvir vozes. Na sua autobiografia, expressou-se sobre este momento: De repente, senti-me renascido, comecei a ouvir vozes, não como um doente mental, mas como alguém que sente que pode ouvir uma voz que atinge todos os seres e fala a todos os seres na mesma linguagem, uma linguagem que é compreendida por todos os homens, dá-nos esperança, dá- nos direção, dá a nosso cosmo direção e sentido. O universo não é exatamente uma floresta bravia ou um feixe de forças selvagens. É basicamente criatividade infinita. É essa infinita criatividade que é verdadeira em todos os níveis da existência, seja ela física, social ou biológica, esteja na nossa galáxia ou em outras extremamente distante de nós; no passado, no presente ou no futuro ela nos enlaça a todos. Estamos todos ligados uns aos outros pela

47 Idem, p 57.


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responsabilidade de todas as coisas. Não existe responsabilidade limitada, parcial. E nossa responsabilidade faz de nós automaticamente cocriadores do mundo.48

Neste episódio, acredita Moreno que Deus falou em primeira pessoa. “Eu ouvi “Eu”. Não ouvi “Ele” ou “Tu”. Eu ouvi “Eu””.49 Tamanho foi o grau de sua excitação que transcreveu as palavras que ouvia nas paredes de um quarto de sua casa. Ao terminar a tarefa caiu exausto. Pela primeira vez na história da humanidade Deus se pronunciara em primeira pessoa. Organizou então aquelas palavras, transcrevendo-as num livro intitulado “As palavras do Pai”. Trata-se de uma espécie de poema longo em que o próprio Deus se autodefine como pura espontaneidade criadora. Na primeira estrofe, temos: Eu sou Deus, O pai, Criador do Universo. Estas são Minhas palavras, Palavras do Pai.50

Poderíamos interpretar psicanaliticamente esta ideia como uma fantasia de onipotência, mais um sintoma de seu complexo edipiano, de sua recusa em aceitar a ambivalência de seus sentimentos pelo seu pai. A presença de Marianne acolhendo suas fantasias de onipotência, como o fizera sua mãe em sua infância, servia para mantê-lo num estágio infantil do desenvolvimento psíquico. Todavia, em contrapartida, para além do reducionismo da interpretação psicanalítica, podemos compreender que, neste evento da sua vida, lhe foi revelado o princípio fundamental da sua filosofia. Podemos ver neste evento a derradeira manifestação do que Moreno veio a chamar de “síndrome de Deus”, ligando os pontos entre a profecia da cigana no seu primeiro ano de vida, a brincadeira de ser Deus aos quatro anos e meio de idade, a identificação com Jesus Cristo diante da sua estátua numa rua de Chemnitz aos dezessete, o desejo de se tornar ele próprio um profeta, os encontros com as crianças nos jardins de Viena (em que ocupava o lugar central como contador de estórias, um lugar próprio de Deus) aos dezenove, e a experiência mística das palavras do Pai por volta dos trinta. Experiências seminais que o guiaram em seu percurso produtivo até a maturidade. Ao refletir retrospectivamente sobre elas, Moreno pode reafirmá-las: “o único modo de ficar livre da ‘síndrome de Deus’ é dramatizando-a”.51 Podemos reconhecer no comentário de Moreno acima transcrito a sua postura crítica frente ao seu, digamos assim, “estado alterado de consciência”. A sua autocrítica descaracteriza esta passagem como indício de algum transtorno mental como paranoia, megalomania ou narcisismo. Evidencia a sua saúde mental. Ele mesmo compreendeu o ocorrido como uma experiência transcendental que poderia ter acontecido a qualquer pessoa, em qualquer época ou lugar.52 No meu entender, trata-se de uma experiência mística, próxima das dos profetas da tradição judaicocristã, bem como, das descrições de estados xamanísticos e êxtases dionisíacos, considerados por muitos autores como precursores da ação teatral. Caso tivesse procurado Freud para submeter-se a uma análise, este provavelmente lhe diria que o seu desejo inconsciente de desposar a mãe e matar o pai, para ocupar-lhe o lugar, fazia com que tivesse esta obsessão, esta ideia fixa a respeito de tornar-se Deus. Teria Moreno, deste modo, levado adiante o seu projeto teatral? Ou, dobrandose à autoridade de Freud, convertendo-se psicanalista? 48 Idem, pp 72-73. 49 MORENO, J. L. As palavras do pai. Campinas, Editorial Psy, 1992, p 16. 50 Idem, p 37. 51 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol. I. Goiânia, Dimensão Editora, 1992, p 27. 52 MORENO, J. L. As palavras do pai. Op cit.,p 9.


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1.4. O enfrentamento da autoridade de Freud e a questão da identidade judaica Tendo sido contemporâneo de Freud, tendo vivido na mesma cidade que ele, sendo médico como ele, sendo judeu como ele, Moreno teve que enfrentá-lo, ou melhor, enfrentar a influência da sua autoridade, para se autoafirmar. Em sua autobiografia, comenta sobre o seu único e intrigante encontro com Freud. Aquele da conversa sobre sonhos. Chamou-lhe a atenção que enquanto ele tinha pouco mais de vinte anos, e estava apenas começando a sua produtividade, Freud tinha 56 e estava no ápice da sua. Ambos usavam barba: a dele, loiro-avermelhada, longa, pois nunca a havia aparado; a de Freud, grisalha, pequena e bem cuidada, uma barba “social”. Nas suas palavras: Exceto pela minha filiação biológica, eu nunca consegui ser um “filho” para ninguém. Nos meus primeiros anos de vida, tentei e consegui me tornar um “pai” muito cedo. Apesar de jovem, era tão insubordinado quanto Freud. Ambos éramos pais mandões – no meu caso, em potencial. Era como se o chefe desconhecido de uma tribo da África travasse conhecimento com o rei da Inglaterra. Da mesma forma, era um pai contra o outro. Naquela época o reino de Freud era maior do que o meu, mas ambos estávamos no mesmo planeta.53 Moreno se opunha a Freud, sobretudo, quanto ao método. Não gostava do ambiente do consultório, do atendimento individual, deslocado da comunidade. Mais do que isto, não se contentava em simplesmente analisar; queria criar. Esta diferença é origem religiosa. Vejamos: A gênese do psicodrama encontrava-se intimamente relacionada à gênese da Deidade. Tentei compor em minha mente a figura de Deus no primeiro dia da criação. Ele deve ter sido conhecedor e sábio, um Ser que pode penetrar no abismo do universo com os olhos, de modo semelhante a um budista ou um psicanalista. Percebi então, gradativamente, que a mente de Deus não poderia operar como a de um budista ou psicanalista. Flutuando sobre o caos no primeiro dia, Ele estava lá para criar e não para diferenciar e analisar. À medida que os dias da criação prosseguiam ou até mesmo após tudo ter sido concluído, ele deve ter se tornado um analista – em momentos de devaneio ou desilusão com o resultado. Dificilmente Ele teria criado alguma coisa se tivesse começado com a psicanálise. O mundo provavelmente não teria sido criado. Concluo, portanto, que Deus foi antes de tudo um criador, ator, psicodramatista.54 É interessante considerar que Moreno e Freud tinham em comum a origem judaica. No caso de Moreno, o fascínio pela ideia de Deus, desde a tenra infância, encontra-se intimamente ligado à sua formação religiosa. Leitor da Bíblia, sua iniciação no texto sagrado se deu aos quatro anos, numa escola bíblica sefardita, com as palavras inaugurais do livro do Gênesis escritas em hebraico: “No princípio Deus criou o céu e a terra”. O impacto deste primeiro contato com a escritura foi tão grande que o marcou para sempre: a imagem do Deus criador. Quanto a Freud, recebeu de seus pais uma formação secular. Não frequentara sinagogas, não aprendera o hebraico, não observara as prescrições religiosas em sua vida doméstica. Em momento nenhum negou a sua identidade judia, mas fez questão, por reiteradas oportunidades, de manifestar o seu ateísmo. 53 MORENO, J. L. J. L. Moreno: autobiografia. Op cit, p 76 54 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol. I. Op cit., p 24.


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Elaborou a sua interpretação psicanalítica, no tocante à religião, sobretudo em obras como “Totem e tabu”, “O futuro de uma ilusão” e “Moisés e o monoteísmo”. Para ele, a religião dizia respeito às demandas éticas da cultura humana. A religião se prestaria a aliviar o homem da sua angústia frente aos poderes da natureza, como defesa de ordem psíquica às ameaças do destino e aos danos que os homens causam uns aos outros em sua vida comum. O desejo infantil de uma instância protetora, aplacando o sentimento de impotência e insegurança, seria a raiz da necessidade religiosa. Deus seria a nostalgia de um pai ancestral protetor. Freud qualifica a religião como uma ilusão, como uma crença engendrada pelo impulso de satisfação de um desejo infantil, prescindindo de sua relação com a realidade.

Enquanto Moreno identificava-se com a figura de Deus no primeiro momento da criação, Freud identificava-se com a figura de Moisés. O seu último livro, “Moisés e o monoteísmo”, teria sido fruto desta identificação. Neste livro, defende a teoria de que Moisés teria sido na verdade um nobre de estirpe egípcia, em vez de um judeu adotado por uma princesa, que por volta de 1357 a.C. transmitiu ao povo judeu, escravizado no Egito, o culto de Aton: um monoteísmo rigoroso, adotado pelo faraó Amenhotep IV. A liderança de Moisés conduziu o povo judeu ao êxodo; mas este, ainda muito afeito ao politeísmo primitivo, acabou por abandonar Aton por Yahweh, um deus cruel, vingativo e sanguinário. Na versão freudiana, Moisés não chegou a conhecer a terra prometida porque foi assassinado pelo próprio povo, que não aceitava mais a sua teologia exigente e inflexível. Apenas oito séculos mais tarde, surgiu um outro profeta que, tomando o nome de empréstimo ao primeiro Moisés, fez com que o povo se submetesse à doutrina rigorosa que houvera rejeitado. O tema do parricídio aparece aqui mais uma vez, o mesmo da horda primitiva de “Totem e tabu” e da tragédia de Édipo. A interpretação freudiana volta a virar-se para si própria. Freud sentia-se como um pai que temia ser assassinado. Sentiu-se ameaçado por Jung, Adler, Rank e Ferenczi, entre os mais conhecidos, que divergiram da sua doutrina das vicissitudes da sexualidade, exigente e rigorosa. Peter Gay, em sua biografia sobre Freud, comenta que: A figura de Moisés, disse Freud a Lou Andreas-Salomé em 1935, assombrara-o durante toda a vida. A vida inteira de alguém é um longo tempo, mas um quarto de século antes, em 1909, ela havia realmente comparado Jung a um Josué que tomaria posse da terra prometida da psiquiatria, ao passo que ele, Freud, o Moisés, estava destinado a vislumbrá-la apenas à distância.55

É interessante constatar que Freud, mesmo não se reconhecendo religioso, sentiuse compelido a esclarecer a sua identificação dentro da tradição religiosa judaico-cristã. Nesta identificação, viu-se como um pai, como o profeta de uma doutrina rigorosa que conduz a uma ordem superior, que subjuga as forças irascíveis da natureza representadas pelo politeísmo primitivo. Pai ancestral a todo o momento ameaçado de morte por estas forças: as pulsões sexuais. Passando a Moreno, ele nos esclarece que o significado da palavra “Pai”, utilizada em seu livro “As palavras do Pai”, não deve ser entendido literalmente. Trata-se de uma metáfora genealógica sobre a cadeia total de ancestrais, não só humanos, mas também animais e todos os outros organismos anteriores à existência humana. Tem assim uma conotação de coidentidade com todo o universo. Ao invés da palavra “Pai”, que tem uma conotação masculina, poderia ser também utilizada a palavra “Mãe”, “progenitor”, ou qualquer outra equivalente no sentido de um

55 GAY, P. Freud – Uma vida para o nosso tempo. Companhia das Letras, São Paulo, 1995, p 547.


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retorno à origem, ao Deus criador. De modo que, podemos concluir, tanto Moreno como Freud se inseriram na tradição judaicocristã; entretanto, identificados com mitos diferentes. A história de suas formações religiosas nos ajuda a compreender as diferenças entre as suas doutrinas. Retomando a linha pela qual iniciamos, das crises de identidade frente a decadência dos valores tradicionais, avaliemos ainda o contraste entre estes dois homens no que diz respeito à identidade judaica. Viena, desde meados do século XIX, mas, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, foi um dos palcos europeus da ascensão do antissemitismo. Surge então a questão: como cada um deles buscou construir a sua identidade judaica em meio à tensão do antissemitismo? Freud sentia que grande parte da resistência a sua teoria se devia ao fato de que a quase totalidade de seus correligionários naquela época eram judeus. Em 1906, quando Jung se associou ao movimento psicanalítico, Freud relevou o valor extraordinário deste acontecimento, não só pelo porte intelectual de Jung, mas por tratar-se de um cristão, filho de pastor protestante, o que dava credibilidade à psicanálise como uma ciência não judaica, universal. Le Rider nos aponta que na época das suas dificuldades com Jung, Freud, numa correspondência endereçada a Karl Abraham em 1908, manifestou a ideia de que a psicanálise teria algo a ver com uma disposição de espírito especificamente judia: Seja tolerante e não esqueça de que, para dizer a verdade, é mais fácil para você do que para Jung seguir meus pensamentos porque, em primeiro lugar, é inteiramente independente, e também pela circunstância de pertencermos a uma raça comum, você está mais próximo da minha constituição intelectual, enquanto que ele, como cristão e como filho de pastor, não encontra o seu caminho em minha direção, senão lutando com grandes resistências interiores. Sua aproximação possui, assim, muito mais valor. Diria que foi somente com a sua chegada que a psicanálise foi libertada do perigo de se tornar um assunto nacional judeu.56

Como mencionei acima, Freud, apesar de não observar os preceitos da fé judaica, sempre assumiu a sua identidade judia. Entretanto, procurou uma posição de neutralidade política na sociedade vienense. Segundo a tese de Schorske, desiludido quanto a uma possível ação política frente ao antissemitismo, Freud procurou um acerto de contas com uma sociedade que contestava o lugar dos judeus por outros meios, os da ciência e do pensamento radical.57 Em 1935, quando o antissemitismo se tornou agudo, as vésperas da Segunda Guerra Mundial, em vista das novas perseguições, Freud escreveu “Moisés e o monoteísmo” como uma busca da resposta à questão de “como o judeu veio a ser e por que atraiu sobre si esse ódio imortal”.58 Foi o seu derradeiro ajuste de contas com a tradição, a um só tempo, religiosa e política, a que pertencia. Moreno, por sua vez, relatou em sua autobiografia que relutava em anunciar o fato de ser judeu. Queria manter uma neutralidade misteriosa. Considera que o seu judaísmo pode estar envolvido na sua decisão de ser anônimo nas suas primeiras publicações. Mas, um incidente ocorrido na época em que se mudou para Bad Vöslau para trabalhar como médico do sistema público de saúde fez com que assumisse de uma vez por todas a sua identidade judaica. Envolvido 56 LE RIDER, J. A modernidade vienense. Op cit., p 384. 57 SCHORSKE, C. E. Pensando com a história. Op cit., pp 213-237. 58 GAY, P. Freud – Uma vida para o nosso tempo. Op cit., p 547.


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amorosamente com Marianne, que era uma jovem cristã, muito ligada às sociedades alemãs nacionalistas da cidade, tendo sido inclusive secretária de um dos grupos mais radicais, começou a se espalhar um rumor de que Moreno talvez fosse judeu, o que tornaria um ultraje a relação que mantinha com Marianne. Certa feita estavam juntos numa estação ferroviária local esperando pelo trem, quando um grupo de uma dúzia de homens, a maioria adolescentes, todos vestidos com uniformes de grupos pró-nazistas os rodearam. Um deles parou diante deles e rosnou: “judeu!”. Imediatamente Moreno revidou com um soco derrubando-o no chão. Depois, tendo o homem levantado, olhou firme nos seus olhos e nos dos demais com toda a intensidade que pode reunir, o que os levou a se afastar sem dizer uma palavra. Nas palavras de Moreno: Esse incidente um pouco trivial se tornou importante por duas razões: de um lado, eu me vi, por um momento, como Moisés, que derrubara um egípcio, dono de um escravo, só porque ele insultara um patrício de Moisés. Senti-me bem por ter enfrentado sem medo um grupo de homens que poderiam facilmente me ter esfacelado. Quer fosse o histórico Moisés um egípcio, quer fosse um judeu, era irrelevante. Ele se tornou um judeu no momento em que derrubou o egípcio. Da mesma forma, tornei-me um judeu no momento em que derrubei o nazista. Obviamente se é um judeu, um alemão, ou um francês só em momentos de forte identificação com a sua herança. Ninguém é judeu, alemão ou francês o tempo todo.59

Tal incidente ocorreu por volta de 1920, muito antes da eclosão da perseguição que levou milhares de judeus ao extermínio. Moreno, por ironia do destino, teve a oportunidade de sentir na pele a força destrutiva da hostilidade antissemítica muito antes de Freud. Teve a oportunidade de ser espontâneo num ato criador que lhe permitiu atualizar a virtualidade da sua herança identitária. Já Freud, acabou por seguir a sua inclinação analítico-reflexiva escrevendo um livro sobre o tema. Ponderando sobre este episódio, Moreno, por fim, agradece pela sua sorte: Se eu não tivesse tido a experiência do amor de uma cristã por um judeu, a luta de um judeu contra a prevalecente mediocridade de uma sociedade germânica na ocasião, a inveja contra mim, e aquele desejo de vingança, eu poderia nunca ter desenvolvido a intuição de que eu devia deixar a Europa a tempo de encontrar um novo refúgio nos Estados Unidos. Eu era o pássaro migratório que sentia os ventos frios do outono antes que começasse realmente soprar contra ele.60

1.5. A ascensão de Dioniso na cultura moderna Ainda nos falta avaliar esta crise de identidade do homem na modernidade sob a perspectiva que vamos aqui denominar como a ascensão de Dioniso na cultura moderna. A fim de esclarecer o significado deste enunciado, valemo-nos do conceito de mitanálise da sociedade do antropólogo francês Gilbert Durand, uma vez que este nos permite interpretar a ambiência cultural de Viena do primeiro quarto do século XX sob a perspectiva da mitologia. Segundo Durand, a ambiência cultural de uma sociedade se define como a conjunção de valores instituídos e instituintes operantes em um espaço civilizacional que determina não

59 MORENO, J. L. J. L. Moreno: autobiografia. Op cit, p 110. 60 Idem, p 112.


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apenas conscientemente, mas também inconscientemente, as atitudes individuais, os modos de vida, as maneiras de pensar e as diversas inter-relações sociais, econômicas, políticas, ideológicas, religiosas. A vida em sociedade se constitui, portanto, através dessa conjunção. Neste sentido, observa-se que a alternância de valores que determinam a ambiência cultural de uma sociedade, ao longo da sua história, corresponde a alternância de mitos reitores subjacentes ao real social. Um dado mito reitor determina os valores instituídos de uma sociedade por um período de longa duração, geralmente de dois séculos. Enquanto isso, um outro mito, de modo latente, determina os valores instituintes, emergentes. A ambiência cultural de uma sociedade é resultante, portanto, da interação dinâmica entre, no mínimo, dois mitos reitores. A mitanálise de Durand esclarece, desse modo, a alternância de valores de uma sociedade através de um modelo topológico no qual os atores sociais se encontram imersos, formado por dois níveis: o da cultura patente, dos valores instituídos, conscientes; e o da cultura latente, dos valores instituintes, inconscientes. Esta dinâmica acontece através de um duplo movimento: por um lado, o movimento de racionalização progressiva dos valores emergentes operado pelos representantes da ideologia no poder; e, por outro, o movimento de desqualificação progressiva das valores instituídos operada pelos representantes das vanguardas culturais, entre marginalizados ou dissidentes da estrutura de poder. Em suma, determinados mitos se sobrepõe valorativamente, de tempos em tempos, sobre os demais, determinando a ambiência de uma época. Analisemos então o contexto sociocultural vienense através desta perspectiva mitoanalítica. Inúmeros autores utilizam o termo racionalismo prometeico para denominar o tipo de racionalismo característico da cultura do fim de século XIX. Prometeu, figura do panteão da mitologia grega, é considerado “o pai dos homens” por ter-lhes dado o fogo, roubado de Zeus. Fogo que serve de metáfora para a razão, a ciência e a tecnologia, utilizadas pelo homem para vencer a natureza, na sua imprevisibilidade e obscuridade. Prometeu representa a fé no homem contra a fé em Deus. Define uma ideologia racionalista, positivista, humanista, progressista, cientista e ateia, voltada para a busca de uma sociedade perfeita. Assim, toda a vida social é pensada em função de um futuro, no qual o desenvolvimento centrado no trabalho, na racionalização das atividades, no produtivismo, e na circulação do dinheiro, o conduzirá à bem-aventurança social. Tudo deve ser quantificado: medido, pesado, classificado; tudo deve ser estatisticamente verificável para ter validade, para que se possa acreditar. O tempo é rigorosamente medido — tempo é dinheiro — e aproveitado em função dos negócios — negação do ócio. O que se expressa na conduta metódica e na burocratização da vida. É o triunfo da objetividade abstrata sobre a subjetividade existencial. Prometeu é assim um mito patriarcal e heroico, carregado da ideia da superioridade dos valores masculinos. Esta descrição corresponde, como vimos, à cultura da palavra, nos termos de Schorske. Neste sentido, Prometeu é o mito reitor contra a qual os artistas e intelectuais vienenses se voltavam na busca de novos valores para o homem moderno. Estes novos valores, instituintes de uma nova visão de mundo, foram encontrados pelos artistas e intelectuais vienenses junto ao movimento cultural do romantismo alemão sobre o trágico, iniciado por Schiller no final do século XVIII, e que teve Nietzsche como um de seus expoentes.61 Tratava-se da retomada da tragédia grega, da busca de uma nova inteligibilidade — filosófico e artística — da mesma, a fim de promover uma renovação da cultura. Nietzsche foi decisivo neste processo, por ter exaltado a figura de Dioniso como senhor da sabedoria instintiva e criadora contra todos os tipos de dogmatismos vigentes na época. Para Nietzsche, a regeneração da cultura seria possível apenas com a afirmação da vida criadora através da força dionisíaca, o que equivale dizer, com a transvaloração 61 MACHADO, R. O nascimento do trágico. De Schiller a Nietzsche. Zahar, Rio de Janeiro, 2006.


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de todos os valores. Em seu primeiro livro, “O nascimento da tragédia”, publicado em 1872, introduz a figura de Dioniso, na sua relação com Apolo — deus das formas acabadas, perfeitas — , para explicar a origem da tragédia. Dioniso, contrariamente a Prometeu (figura que remonta a Apolo), não é heroico, não é sobredeterminado pelos valores masculinos, embora seja masculino e fálico. Dioniso representa uma consciência andrógina, onde o masculino e o feminino estão primordialmente unidos. Sua natureza é contraditória, reunindo valores supra-humanos — celestes, espirituais — e infra-humanos — ctônicos, animalescos. É o deus do corpo e das emoções. O surgimento dos cultos a Dioniso remonta a religião primitiva, ligada à natureza, das primeiras civilizações agrícolas. Buscava-se o erotismo, a fertilidade, a fecundidade, a comunhão e a cooperação com a natureza e os deuses, a libertação da alma dos limites terrenos através do êxtase, isto é, do sair de si, da dissolução da individualidade, da união com o uno-todo alcançando, assim, a imortalidade. Adotando a forma da representação trágica, entre os séculos VII e VI a.C., os ritos dionisíacos foram bastante modificados. Com a cena teatral, a abolição dos limites da individualidade passou a ser apenas representada, transformando-se num fenômeno estético. O sair de si por parte do espectador passou a ocorrer pela identificação subjetiva com o sofrimento do herói trágico representado pelo ator. Desta maneira, a profanação e a democratização dos cultos dionisíacos deu origem ao teatro. Tratou-se de um processo eminentemente político, a serviço dos interesses das classes dominantes, do controle ideológico, da adaptação social, funcionando como instrumento de conservação do ethos social. O importante a ser considerado aqui é que, para Nietzsche, enquanto o impulso dionisíaco leva à dissolução da individualidade, o impulso apolíneo conduz à individualização. O trágico humano se manifesta pelo embate entre estes impulsos. Sob o impulso apolíneo, o homem se deixa iludir pela ideia da permanência, de ser lembrado após a morte, daí, a querer lutar para provar a sua virtude, a excelência dos seus valores. O impulso apolíneo conduz o homem à individualidade, entendida como uma aparência de perfeição, produzida para si mesmo; uma ilusão protetora contra o horror do acaso, da imprevisibilidade do destino, do caos, da desmedida, do sofrimento, do lado sombrio, da transitoriedade de todas as coisas. Porém, se por um lado a individualidade permite certo sentimento de estabilidade frente a impermanência, por outro, restringe a liberdade, impede a expansão da vida para além daquilo que foi estabelecido, tendendo a estagnação. Já, o impulso dionisíaco destrói as aparências tomadas como verdades absolutas desvelando a possibilidade de viver com alegria, o prazer e a dor decorrentes dos eternos ciclos de construção e destruição da vida. A crise da identidade masculina na modernidade pode ser entendida como uma das expressões do ressurgimento de Dioniso e do trágico na cultura. Com a expansão do liberalismo, impulsionado pelo capitalismo, a conquista por parte das mulheres de papéis até então reservados aos homens, no mercado de trabalho e na cena política, levou ao desmoronamento da imagem tradicional do homem, vinculada à exaltação de qualidades antes consideradas exclusivamente masculinas. A autoridade patriarcal e a supremacia hierárquica dos homens sobre as mulheres foram postas em questão, gerando neles sentimentos de indeterminação e incerteza. Todo este questionamento sobre as diferenças entre os gêneros masculino e feminino levantada pelo intercâmbio dos papéis sociais tradicionais, em outras palavras, pelo questionamento das aparências apolíneas determinadas pelos papéis sociais tradicionais,


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possibilitou a abertura para a vivência e compreensão, por parte dos homens, de aspectos reprimidos das suas personalidades associados à feminilidade. No campo da ciência psicológica, Freud defendia a bissexualidade constitutiva do ser humano. Adler argumentava sobre a vontade, tanto do homem como da mulher, de querer ser homem, em função da supremacia abusiva do princípio masculino na cultura, uma espécie de hermafroditismo psíquico. Jung descrevia as manifestações do arquétipo da anima nos homens, e do animus nas mulheres, como contrapartidas inconscientes às disposições conscientes em ambos os sexos. Cada um a seu modo, teorizou sobre a figura do andrógino e a possibilidade de integração psíquica de aspectos inconscientes relacionados às diferenças sexuais. Os homens mais esclarecidos, à medida que descobriam a própria feminilidade, passaram a perceber a necessidade de redefinição da sua identidade masculina. Emergia assim o ideal da androginia e da recriação de um eu mais perfeito, afeito ao instinto, à sensualidade, ao Eros, à liberdade sexual, à beleza, à vida em comunhão com a natureza, à comunidade, superando as antigas restrições determinadas pelas diferenças de gênero. Por outro lado, muitos outros buscaram o caminho de uma afirmação viril e misógina, numa rejeição angustiada da feminilidade. A cultura da graça em Viena, descrita por Schorske, é um exemplo da ascensão de Dioniso na cultura. Ao longo de todo o século XX, esta vem se propagando, transformando os valores sociais mundo afora. Embora os valores patriarcais com os quais a ordem burguesa se identifica continuarem dominantes, passou a existir uma desconfiança na promessa prometeica de um futuro perfeito. A concepção de tempo transformou-se. O trabalho não é mais objetivo de vida. O ascetismo deu lugar ao hedonismo, aos cuidados com o corpo, à busca pelo prazer no aqui e agora, à valorização do tempo livre, ao estar-com e o fazer-junto. O número crescente de manifestações coletivas como passeatas públicas, festas que reúnem multidões, grandes celebrações esportivas e artísticas, tribos urbanas, refletem essa mudança de valores. Na análise do sociólogo Michel Maffesoli, as novas gerações passaram a viver um “presenteísmo”62, sendo os mass media (televisão, rádio, jornais e revistas, internet) os grandes propulsores desta nova visão do mundo. A vida moderna passou a se organizar em torno de imagens, na teatralidade do cotidiano. Com o desgaste das certezas e das convicções fornecidas pelo racionalismo, “em lugar de dominar o mundo, de querer transformá-lo ou mudá-lo — atitudes prometeicas —, opta-se por unir-se a ele pela contemplação”.63 Assim, deixa-se de querer controlar o ambiente para interagir com ele. Deixa- se de querer separar, classificar, distinguir, e desse modo, por oposição, ser diferente, enquanto atitude própria do individualismo, para contagiar-se afetivamente pelo outro, em um movimento de “sair de si”, imitando o outro, partilhando ideias e sentimentos comuns, enquanto atitude própria do coletivismo. Nesta perspectiva, as diversas modulações da aparência — a moda, o espetáculo “ao vivo” (artístico, esportivo, político), a publicidade, a televisão, a internet — formam um conjunto significativo, um conjunto que, enquanto tal, exprime bem o percurso da sociedade desde então. O corpo tornou-se um elemento de mediação e interação entre o eu, o mundo natural e o social. Daí a importância da estética — no sentido do termo grego aisthesis — como conhecimento sensível, afetivo, emocional, imanente ao corpo em interação como o outro e o ambiente. Entretanto, esta ressurgência das imagens e do mítico, sob a égide de Dioniso, pode tornar-se perigosa. Dioniso também é o deus dos excessos, dos paroxismos, dos desregramentos, da loucura, da violação dos limites. Há uma tendência monopolizante, totalitária, em Dioniso. Neste sentido, Dioniso não é democrático, não há lugar para a diferença. Não foram à toa os esforços, ao longo dos tempos, de

62 MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 1984. 63 MAFFESOLI, M. A transfiguração do político. Porto Alegre, Editora Sulina, 1997, p 136.


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circunscrever-lhe limites, de algum modo cerceá-lo. Pensemos nas manifestações coletivas que podem chegar, paroxisticamente, à barbárie, quando manipuladas por líderes — de gangues de rua a torcidas de futebol, de partidos políticos a seitas religiosas — insanos. Além disso, Dioniso mistifica, idolatra, investe de pompa, deifica, com a mesma facilidade que derruba, que denigre, na sua tendência ao “tudo ou nada”, conduzindo a uma verdadeira “lavagem cerebral” embrutecedora do ser humano, ao consumismo grosseiro, à efemeridade das coisas. Isto nos ajuda a compreender como os mass media promovem desde o culto a personalidades do mundo político, artístico ou esportivo, que não dura mais do que um breve período (os “quinze minutos de fama” assinalado por Andy Warol), à circulação banal de informações, produtos eletrodomésticos ou crenças que se tornam indispensáveis e descartáveis com a mesma facilidade. Podemos compreender assim a banalização e a alienação sob a égide de Dioniso. Esta abordagem nos permite avaliar o quanto a resposta elaborada por Moreno à crise de valores da sua época foi adequada, por corresponder às demandas relativas à mudança sociocultural que se processava. Veremos adiante que a escolha de Moreno pela forma teatral foi decorrente da sua intuição da existência de uma natureza primordial, ligada ao sagrado, que precisava encontrar as circunstâncias favoráveis a sua expressão. Moreno intuiu, podemos supor, a ascensão de Dioniso na cultura. Estava na vanguarda de seu tempo. Todavia, a cultura prometeica, racionalista e individualista, ainda era dominante na época, como ainda hoje, sobretudo no meios acadêmicos, o que reforça a nossa hipótese sobre o motivo pelo qual a obra Moreno permanece indevidamente pouco reconhecida e compreendida. Voltando ainda à questão da revalorização dos valores femininos na cultura, faz-se importante considerar que as raízes religiosas da formação de Moreno, particularmente, sua admiração pela figura de Jesus Cristo através do olhar de sua mãe, permitiram a ele tornar-se o criador do Teatro da Espontaneidade. Lembremos da identificação de Jesus com sua mãe Maria. Jesus, ao atender ao seu pedido de dar o vinho para a festa de casamento de que participavam, demonstrou o seu espírito matriarcal, afeito à proximidade, à sensualidade, à alegria, à comunhão comunitária. Este espírito, que encontramos na filosofia de Moreno, coincide também com o do hassidismo, aí já dentro da tradição dos cultos judaicos. Além disso, retomando o que dissemos a pouco, a atitude de Moreno não era propriamente patriarcal, apesar do título de seu livro publicado na época: “As palavras do Pai”. Nosso autor argumenta que utilizou a palavra “Pai” como uma metáfora genealógica sobre a cadeia total de ancestrais. Ao invés da palavra “Pai”, que tem uma conotação masculina, poderia ser também utilizada a palavra “Mãe”, no sentido de ancestral representante deste sagrado primordial, propiciador da vida em comunhão com a natureza e a comunidade. É sabido que Nietzsche, para melhor defender os valores dionisíacos, opôs-se veementemente aos valores cristãos. Viu neles nada mais que ressentimento, má-fé e desejo de vingança contra a vontade de potência, da qual Dioniso é a figura emblemática. De fato, devido à ênfase dada pela Igreja, ao longo da história, ao pecado e à culpa, e assim, à condenação da vida instintiva, a crítica de Nietzsche dos valores cristãos, se faz pertinente. Todavia, tal crítica é apenas parcial e, portanto equivocada. Pois que esta ênfase, dada pela Igreja, pode ser compreendida como decorrente do domínio da ordem patriarcal na civilização ocidental. De modo que a interpretação patriarcal, que levou a melhor na História, não corresponde ao fato da existência de valores ligados à dimensão matriarcal no cristianismo dos primeiros tempos. Valores que foram culturalmente reprimidos, em detrimento daqueles ligados à dimensão patriarcal.


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Quanto a Freud, se defendeu a hipótese da bissexualidade constitutiva da condição humana, foi no contexto de uma dinâmica de forças em que uma ordem superior — a ordem patriarcal — subjuga as forças irascíveis da natureza representadas pelas pulsões sexuais ou pelo politeísmo primitivo, conservando assim a supremacia do masculino sobre o feminino, numa inclinação patriarcal e apolínea. Moreno não chegou a teorizar sobre estas questões. Mas o fato de ter buscado no teatro o espaço para a expressão do ser humano na sua totalidade, de propor uma expressão teatral que, conforme veremos logo a seguir, procurava romper com as aparências apolíneas das conservas culturais dando vazão a livre manifestação da espontaneidade, demonstra nitidamente a sua inclinação dionisíaca. Não é correto caracterizar a proposta moreniana simplesmente como a de um retorno à ordem matriarcal, nem como a de uma rejeição da ordem patriarcal, mas como a de uma possível complementaridade e integração entre os dinamismos matriarcal e patriarcal, dionisíaco e apolíneo. No tempo da criação, terra e céu, macho e fêmea, são aspectos de um uno-todo indissociável. A este respeito, veremos mais adiante que Moreno define o homem como ser cósmico, justamente no sentido religioso da sua potência de religação com o uno-todo indissociável.

1.6. A descoberta da espontaneidade Na introdução de seu livro “O Teatro da Espontaneidade”, escrita para integrar a edição americana de 1947, Moreno recorda a ideia fixa que o guiou em seu processo de pesquisa e criação no período vienense. Eu sofria de uma ideia fixa, de algo que [...] tornou-se minha fonte constante de produtividade, [...] a existência de uma espécie de natureza primordial, imortal, que retorna rejuvenescida como um primeiro universo que contém todos os seres e no qual todos os eventos são sagrados. Eu gostava deste reino encantado e planejara não abandoná-lo jamais.64 Moreno começava a vislumbrar a existência de um fator espontâneo-criador — chamou-o de espécie de natureza primordial, na citação acima — que estabelece a ligação entre o self humano e o Self universal65, em outras palavras, entre o homem e Deus. Produzidas as circunstâncias favoráveis para a sua expressão, este fator levava o homem a um aumento da sua força de expressão, à expansão de seu ser, à expressão da sua genialidade. A revolta de Moreno contra as instituições sociais — a família, a escola, a igreja, ou qualquer outra — passava a ser explicada pela teoria da espontaneidade. As instituições se encontravam distorcidas, deformadas, muito aquém do que poderiam ser, em função de algo que as degradava: as conservas culturais, isto é, as convenções, os estereótipos, os produtos de processos acabados. O sagrado de que fala Moreno se contrapõe a este estado de coisas. Moreno experimentara um outro modo de vivenciar as relações impregnado “de mistério, de paradoxo, o irreal virando real” nos encontros com as crianças nos

64 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 15. 65 Idem, p 21.


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jardins do Augarten. Um sentimento-evento que passou a querer reproduzir no intuito de rejuvenescer as instituições sociais. Em função desta ideia fixa, esforçava-se para visualizar como poderia contribuir para recuperar a natureza primordial do ser humano, cerceada pelas conservas culturais, colocando-o novamente em contato com a dimensão divina que o conduziria no futuro à união permanente da humanidade.66 Valendo-se da sua formação médica e de seus estudos filosóficos, Moreno conseguiu extrair da sua “síndrome de Deus” o conceito-chave da sua obra: a espontaneidade criadora. Seu percurso existencial até aquele momento lhe serviu como aquecimento para o que ainda estava por vir: a formação de um grupo de teatro — o Stegreiftheater — , a produção de apresentações públicas deste grupo entre 1922 e 1923, e a publicação do livro de mesmo nome, anonimamente, em 1923. Criar o Teatro da Espontaneidade foi, neste sentido, o modo encontrado para recuperar a natureza espontâneo-criadora do homem em seu contexto sociocultural. Nada podia estar mais distante da minha mente do que o palco e o seu aparato cênico. Eu estava lutando com as ideias de Deus, Self e Liberdade, da mesma forma que muitos outros jovens de minha geração, com a diferença de que percorri um caminho incomum para abordá-las, o novo método do teatro, Teatro da Espontaneidade e Catarse.67 Com o crescente avanço da racionalidade técnico-científica e administrativa, e da consequente burocratização da vida, houve um decréscimo da fé religiosa. Esta mudança de perspectiva fora anunciada por Nietzsche como a morte de Deus. Vimos que, fortemente influenciados pelo pensamento nietzscheano, os jovens vienenses empregavam os seus esforços em processos artísticos nos quais se dispunham a romper com as normas sociais decadentes, na busca de novos valores para as suas vidas. Falavam, neste sentido, de uma “religião da arte”. Procuravam se afirmar como artistas numa contínua superação de si, ampliando a capacidade de perceber e participar do todo interligado do mundo, ultrapassando os padrões instituídos. Possuíam em comum o que Le Rider chamou de radicalização do individualismo, a afirmação de autossuficiência do indivíduo de toda a comunidade humana, seguindo a orientação nietzscheana. Para Nietzsche, a genialidade seria a capacidade de transpor a individualidade condicionada pela moral da comunidade e criar novos valores. Para tornar-se gênio, um indivíduo deveria se opor aos valores gregários. Moreno se alinhava a estes jovens artistas em sua busca para resolução dos impasses do seu tempo. Porém, enquanto estes se voltavam para si próprios, Moreno se voltava para o grupo, para a comunidade. Para Moreno o gênio é a manifestação do self em um indivíduo na medida em que se expressa espontânea e criadoramente no aqui e agora do encontro com o outro. Neste aspecto, divergia radicalmente de seus contemporâneos. Nas suas palavras: A Viena de 1910 era aquela que se constituía numa arena de demonstrações para as três formas de materialismo que desde então se tornaram os indiscutíveis senhores do mundo daquela época, a saber, o materialismo econômico de Marx, o materialismo psicológico de Freud, e o materialismo tecnológico do navio a vapor, do avião e da bomba atômica. Todas as três formas de materialismo, apesar de reciprocamente dissidentes, tinham tacitamente um denominador

66 Idem, p 25. 67 Idem, p 15


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comum — um medo e um despeito profundos, quase que ódio, contra o self criativo e espontâneo (que não deve ser confundido com o gênio individual, este último sendo uma das suas representações).68 O materialismo apontado por Moreno era o da rejeição da religião do amor. Para Marx, a religião era o ópio do povo; para Freud, uma ilusão infantil. “Ambos refutavam a ideia de uma comunidade baseada no amor espontâneo, na generosidade e na santidade, na bondade positiva e na cooperação pura”.69 Apesar de Moreno não ter incluído Nietzsche no rol dos grandes pensadores que rejeitaram a religião na modernidade, Nietzsche também o fizera, veementemente, e, como dissemos, exercia uma forte influência sobre os intelectuais da época. Nietzsche empreendera grande parte das suas críticas justamente no combate à hipocrisia dos valores cristãos do justo, do verdadeiro, do bom, que norteavam a moralidade das sociedades europeias, e serviam como fundamento para a fé num mundo estável e consistente. Contudo Marx, Freud e Nietzsche, cada qual ao seu modo, buscavam a emancipação do homem através da superação daquilo que restringia a sua plena liberdade. Para Marx, a alienação do trabalhador da sua força produtora promovida pelo capital; para Freud, os desvios psicopatológicos da libido em torno do complexo de Édipo; para Nietzsche, a coerção da vontade de potência pelo niilismo dos valores morais judaico-cristãos. Moreno também lutava pela emancipação do homem, mas, contrariamente a Marx, Freud e Nietzsche, propunha que “a religião fosse experimentada mais uma vez, um novo tipo de religião, com suas intenções modificadas e suas técnicas melhoradas pelos novos conhecimentos transmitidos pela ciência”.70 De acordo com os valores da nossa sociedade, apenas alguns indivíduos são reconhecidos como geniais. Evidentemente, em grande parte pela expressão da sua criatividade, mas, sobretudo pelo alcance social de seus feitos. Um Beethoven, um Da Vinci, um Einstein: poucos são os tidos como gênios. Todavia, segundo Moreno, a genialidade não seria um atributo de alguns poucos, de uma elite intelectual. Não era o privilégio de indivíduos dotados de talentos excepcionais. Também não era a virtualidade suprema da individualidade a ser atualizada, nem, tão pouco, um imperativo categórico, à moda kantiana, pelo qual cada homem deveria se tornar.71 Para Moreno, somos todos gênios potenciais, pois a genialidade não é um atributo individual, algo a ser desenvolvido individualmente, mas, uma qualidade das relações revelada nos encontros. É-se gênio sendo espontâneo-criador, o que só acontece nos encontros. Se a grande maioria dos indivíduos não manifesta a sua genialidade é devido à inibição da espontaneidade pelas conservas culturais no espaço das suas relações interpessoais. Em função do modo como se dá o processo de socialização a que somos submetidos, a tendência é sermos dominados pelas conservas culturais, isto é, pelos produtos culturais instituídos em nossas vidas, das máquinas que fazemos uso, passando pelas modas do vestuário, até os significados associados ao que nos acontece e as imagens pelas quais nos reconhecemos e somos reconhecidos pelos outros. Desta maneira, para que a genialidade possa se manifestar em uma pessoa, faz-se necessário produzir as circunstâncias necessárias para a sua expressão espontânea, transpondo o cerceamento que as conservas culturais exercem sobre ela. Moreno teve a clara percepção de que em seu ambiente sociocultural, não seria adequado fundar uma seita religiosa ou desenvolver um sistema teológico para levar adiante o seu projeto de recuperação 68 Idem, p 17. 69 Idem, p 22. 70 Idem, pp 22-23 71 LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. Op cit, p 99.


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da natureza primordial do ser humano, a plena manifestação da espontaneidade- criadora conduzindo a autointegração da humanidade. “Ninguém consegue, numa época materialista, desempenhar os papéis de deuses ou de santos sem fazer com que lhe joguem à cara a pecha de loucura ou de criminalidade”.72 Escolheu então, procurando adequar-se ao seu ambiente, o trajeto do teatro, com o intuito de “oferecer à humanidade uma espécie de religião dramática”.73 O palco teatral modificado, como lugar para o self do ator e sua criatividade espontânea, não para a reprodução de conservas culturais de Shakespeare ou dos gregos. “O teatro consistia num retiro seguro para uma revolução na surdina, oferecendo possibilidades ilimitadas para a pesquisa de espontaneidade ao nível experimental”.74 Tendo formação científica, em vez de considerar o elemento espontâneo-criativo como algo irracional da natureza, ou como algo místico, que algumas pessoas teriam e outras não, tomou a espontaneidade como objeto de estudo dentro do procedimento científico habitual. Primeiramente, tratou de produzir o elemento espontâneo-criativo dentro de si, de isolá-lo e investigá-lo. Depois, passou a testá-lo e medi-lo em outras pessoas. Moreno chamou a esta série de experimentos de “pesquisa de espontaneidade ao nível da realidade”75, ou ainda, “pesquisa de espontaneidade ao nível experimental”.76 Quanto a produzir dentro de si o fator espontâneo-criador, Moreno menciona que “às vezes, é obvio, quando o processo de aquecimento me carregava até as alturas do êxtase, eu representava Deus e infeccionava os outros para que atuassem comigo. Noutros momentos, eu considerava criticamente minha produção, meu próprio alter-ego como num espelho”.77 Moreno certamente referiu-se aqui ao episódio que originou “As palavras do pai”. Não chegou a esclarecer se nesta ocasião teve a intenção consciente de produzir dentro de si o elemento espontâneo criador. Mas, suponho que esta experiência tenha sido por ele preparada através de um processo de aquecimento intencional, que acabou por carregá-lo ao estado de êxtase místico. Esta citação também reforça o que disse anteriormente sobre a crítica que ele próprio fazia a respeito destes estados.

1.7. A criação do Teatro da Espontaneidade O berço inaugural do teatro espontâneo foi a Komoedian Haus, um teatro comercial de Viena. A sessão aconteceu no dia 1° de abril de 1921, Dia das Mentiras, entre as 7 e 10 horas da noite. Eu não possuía um elenco de atores nem uma peça. Apresentei-me nessa noite sozinho, sem preparação alguma, perante uma plateia de mais de mil pessoas. Quando a cortina foi levantada, o palco estava vazio, com exceção de uma poltrona de pelúcia vermelha, de espaldar alto e armação em talha dourada, como o trono de um rei. No assento da poltrona havia uma coroa

72 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 18. 73 Idem, p 16. 74 Idem, p 17. 75 Idem, p 18. 76 Idem, p 19. 77 Idem, p 18.


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dourada. O público compunha-se, além de uma maioria de curiosos, de representantes de estado europeus e não-europeus, de organizações religiosas, políticas e culturais. Quando me lembro de tudo isto, fico espantado com minha própria audácia. Foi uma tentativa de tratar e curar o público de uma doença, uma síndrome cultural patológica de que os participantes compartilhavam. A Viena do pós-guerra fervia em revolta. Não tinha governo estável, nem imperador, nem rei, nenhum líder. Tal como a Alemanha, a Rússia, os Estados Unidos e, na verdade, todo o mundo povoado, também a Áustria estava inquieta, em busca de uma nova alma. Mas, falando em termos psicodramáticos, eu tinha um elenco e uma peça. O público era o meu elenco, as pessoas que enchiam ao teatro eram como outros tantos dramaturgos inconscientes. A peça era o enredo em que haviam sido jogados pelos acontecimentos históricos e em cada um desempenhava um papel real. [...], todos foram por mim convidados a subir ao palco, sentar-se no trono e atuar como um rei, sem preparação prévia, e diante de um público desprevenido. O público era o júri. Mas deve ter sido uma prova muito difícil. Ninguém passou nela. Quando o espetáculo terminou, verificou-se que ninguém havia se considerado digno de tornar-se rei e o mundo continuou sem líderes. A imprensa vienense na manhã seguinte mostrou-se muito incomodada com o incidente. Perdi muitos amigos mas registrei, calmamente: ‘Ninguém é profeta em sua própria terra’, e continuei com minhas sessões perante assistências de países europeus e nos Estados Unidos.78 Não estando habituadas a este tipo de situação, poucas pessoas subiram ao palco. A maioria, principalmente as autoridades, deixou o teatro antes do término da sessão. Apenas alguns de seus amigos deram-lhe apoio. A imprensa no dia seguinte foi sarcástica, contribuindo para que muitos de seus amigos, escritores e poetas do grupo Daimon, se afastassem dele. Consolou-se, observando ironicamente que “ninguém é profeta em sua terra”. Penso que há um duplo sentido nesta frase: com o termo ninguém estaria se referido a si próprio ou às pessoas do público? À medida que Moreno se distanciava do grupo literário, aproximou-se de gente do teatro. Passou então, a partir de 1922, a produzir apresentações de peças teatrais improvisadas abertas ao público na companhia de um grupo de atores, o Stegreiftheater. As apresentações ocorriam numa casa alugada por Moreno na Maysedergasse n° 2, em Viena. Na sala principal, onde aconteciam as apresentações, cabiam entre cinquenta e setenta e cinco pessoas. O grupo era formado por atores e atrizes como Anna Höllering, George Kulka, Robert Müller, Peter Lorre, Hans Rodenberg, Moissi e Robert Blum. Ocasionalmente, Elisabeth Bergner se juntava ao grupo. Após algumas semanas com críticas favoráveis da imprensa, o auditório costumava estar lotado. O grupo de atores representava peças improvisadas, conforme era proposto pelo público. Outras vezes, usava notícias retiradas de jornais, técnica chamada de “jornal vivo”. Entretanto, passado algum tempo, a reação do público mudou. As apresentações aconteciam sob um clima de suspeita. Se atingiam um bom resultado artístico, parecia ao público que tinham sido ensaiadas, um embuste; se o resultado era ruim, sem vida, o público julgava não ser possível uma espontaneidade real. Moreno entendia tal oposição como resistência por parte do público e da imprensa.

78 MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo, Cultrix, 1987, pp 49 e 50.


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Os componentes da plateia haviam sido criados, em todos os departamentos da vida, ciências e artes, de modo a utilizar-se de conservas culturais, a depender delas, e a não confiar em sua própria espontaneidade. A única espontaneidade que aprenderam a apreciar é a que decorre da conserva ‘animada’.79 Referia-se, obviamente, ao teatro tradicional, nada menos que o principal baluarte cultural e artístico de Viena. Insistiu durante algum tempo nesta iniciativa, sentindo-se na incumbência de modificar a atitude do público. Moreno interpretou esta reação como resistência ao novo, à mudança, “acostumados que estavam a depender das ‘conservas culturais’ do drama e a não confiar na criatividade espontânea”.80 Resistiu, por algum tempo, dando continuidade ao seu projeto nestes moldes. Sentia-se na incumbência de modificar a atitude do público. Neste contexto, Bárbara, na vida real Anna Höllering, foi a protagonista do passo decisivo que daria em seu percurso: o uso sistemático do valor terapêutico da dramatização de um conflito no palco. Tínhamos uma jovem atriz, Bárbara, que trabalhava para o teatro e também participou num novo experimento que eu havia iniciado, o jornal vivo e improvisado. Ela era uma atração principal, por causa da sua excelência em papéis de ingênua, heroicos e românticos. Logo se evidenciou que ela estava enamorada de um jovem poeta e autor teatral que nunca deixava de se sentar na primeira fila, aplaudindo e acompanhando atentamente cada uma de suas atuações. Desenvolveu-se um romance entre Bárbara e George. Certo dia, o seu casamento foi anunciado. Entretanto, nada mudou; ela continuou sendo a nossa principal atriz e ele, por assim dizer, o nosso principal espectador. Um dia fui procurado por George, seus olhos usualmente alegres refletiam uma grande preocupação. — Que aconteceu? — perguntei-lhe. — Oh, doutor, não posso suportar isso. — Isto o quê? — olhei-o inquisitivamente. — Aquela criatura doce e angelical a quem vocês todos admiram se comporta como um ser endemoninhado quando está a sós comigo. Fala numa linguagem desabusada e quando me enfureço com ela, como sucedeu a noite passada, não hesita em me esmurrar. — Calma, — disse eu. — Venha ao teatro como de costume e tentarei achar um remédio. Quando Bárbara chegou aos bastidores do teatro nesta noite pronta para desempenhar um de seus papéis habituais de pura feminilidade, eu detive-a. — Escute, Bárbara, você tem se portado maravilhosamente bem até agora, mas receio que esteja ficando muito rotineira. As pessoas gostariam de vê-la em papéis mais terra-a-terra, que retratem a vulgaridade e a estupidez da natureza humana, a sua realidade cínica, as pessoas não só como elas são, mas piores do que elas são, as pessoas como se comportam quando são impelidas a extremos, em circunstâncias incomuns. Você gostaria de tentar isso? — Sim, — respondeu com entusiasmo. — Alegra-me que tenha falado nisso. Faz tempo que penso que eu deveria oferecer ao nosso público uma experiência nova. Acha que posso fazê-lo? — Tenho confiança em você disse eu. Acabo de ler a notícia de que uma rapariga de Ottakring

79 Idem, p 9. 80 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 9.


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(um bairro pobre de Viena), prostituta de rua, foi atacada e assassinada por um estranho. Ele ainda está em liberdade e a polícia procura-o. Você é a rapariga. Este aqui (assinalando Richard, um dos nossos atores) é o apache. Preparem a cena.81 Esta foi a primeira de uma sequência de cenas em que ela, a cada nova sessão, continuou representando estes papéis abjetos. George ia informando Moreno sobre as mudanças que foram acontecendo com Bárbara, e na relação entre os dois: Ainda tem acessos de mau humor em casa, mas perderam a intensidade de antes. São crises mais curtas e, a meio delas, não é raro sorrir e, como ontem, recordar cenas semelhantes que representou no teatro. Ela ri e eu também rio, pois também me recordo. É como se cada um de nós visse o outro num espelho psicológico. Rimos os dois. Às vezes ela começa rindo antes de ter o acesso de mau gênio, prevendo o que vai acontecer. Finalmente, excita-se e acaba por ter o acesso, mas este carece da veemência habitual.82 Bárbara e George testemunharam o efeito terapêutico transformador das suas vidas. Passaram a encontrar a si mesmos, e um ao outro. Moreno descobria assim a catarse do ator, uma catarse ativa, a que veio chamar de catarse ética; em contraste com a catarse passiva e estética do espectador.83 Esta descoberta veio a se alinhar com suas experiências com dramatizações com pacientes, a que chamou de teatro recíproco, em Bad Vöslau. Com a debandada de alguns de seus atores para o teatro tradicional, quando passavam a fazer sucesso, Moreno percebeu a inconveniência de levar a sua proposta teatral adiante nestes moldes. As descobertas que vinha fazendo sobre os efeitos terapêuticos das dramatizações, deram- lhe a certeza da opção pelo teatro terapêutico. Os atores foram transformados em egos-auxiliares, e a ação cênica, numa oportunidade para tratar as pessoas nas suas relações. De modo que o psicodrama, o sociodrama e a psicoterapia de grupo surgiram após a imigração de Moreno para os Estados Unidos em 1925, como desdobramentos da sua experiência inicial com o Teatro da espontaneidade.

1.8. A pesquisa teatral e a primeira elaboração conceitual Encontramos em “O Teatro da Espontaneidade” a descrição da pesquisa teatral de Moreno. Nosso autor procurou organizar neste livro interligando a ideia de espontaneidade à de self. Uma complexa trama conceitual surge a partir deste núcleo. Assim podemos compreender os conceitos de estado de espontaneidade, ato criativo, momento, drama espontâneo, conserva cultural, catarse ativa — ou catarse do ator, ou ainda, catarse ética — , aquecimento, treinamento da espontaneidade. Nesta trama, a espontaneidade emerge inextricavelmente ligada à ação criadora do ator. “Minha visão de teatro foi moldada segundo a ideia do self espontaneamente criativo”.84 “No teatro de minhas visões cada partícula

81 MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo, Cultrix, 1987, pp 52-53. 82 Idem, p 53. 83 Idem, p 39. 84 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 17.


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havia sido transformada, não só a estrutura do palco. Tinham primazia o self do ator e sua criatividade espontânea”.85 O primeiro passo dado por Moreno na organização de seu livro foi definir a forma do teatro da espontaneidade por contraste com a forma do teatro tradicional. Nas suas palavras, a tentativa desta mudança concretizou-se de quatro formas: 1. Eliminação do dramaturgo e do texto teatral por escrito. 2. Participação da audiência, ser um teatro sem espectadores. Todos são participantes, cada um é um ator. 3. Atores e plateia são agora os únicos criadores. Tudo é improvisado: a peça, a ação, o motivo, as palavras, o encontro e a resolução dos conflitos. 4. O antigo palco está desaparecido; em seu lugar desponta o palco-espaço, o espaço aberto, o espaço da vida, a vida mesma.86 Para Moreno, o teatro tradicional é “um teatro como se — deslocado”.87 Argumenta que com a entrada do dramaturgo e do texto escrito, bem como, com a divisão entre atores e espectadores, houve um deslocamento do verdadeiro locus do teatro. Esta ideia já aparecera alguns anos antes no artigo “A divindade como comediante”88 de 1919 sobre o episódio real transcorrido em 1911, quando interpolou um ator em cena aberta questionando-o sobre os motivos que o levavam a representar um papel, no caso o de Zaratustra, e não a ele próprio. Neste texto, escrito na forma de diálogo, o espectador transforma-se em ator na medida em que se descobre em conflito com os indivíduos que atuam no palco, com a falta de espontaneidade deles. Moreno afirma que “o verdadeiro locus do teatro é o teatro para a espontaneidade”89 porque é aí que o self do ator pode se expressar integralmente, transpondo a divisão do self promovida pela conserva cultural do texto e das convenções do teatro tradicional no momento crucial da sua atuação. Ao meramente espelhar a verdadeira estrutura teatral, o teatro tradicional acaba por dissolvê-la. Com a sua proposta, Moreno quis valer a “primazia do self do ator e sua criatividade espontânea” no espaço teatral. O homem de gênio, para Moreno, seria aquele capaz de realizar uma expansão do seu próprio self em sua existência. O palco do teatro espontâneo foi, portanto, constituído originalmente como um locus para a expressão integral do self do ator, para a expansão da sua força, ultrapassando a divisão do self promovida pelas conservas culturais do texto e da separação entre ator e espectador. Se um ator movido pelo seu self quiser ser criança, sendo na realidade um velho; se quiser ser mulher, sendo na realidade um homem; se quiser ser um cão, uma pedra, ou qualquer outra parte do Self; se quiser ser o próprio Deus, encontrará no palco do teatro espontâneo o locus para a sua expressão. O self do ator poderá se expandir para além dos limites coercitivos das conservas culturais, não só do texto teatral, mas da sua identidade biológica, psicológica, social, sexual. Integra novas ideias e atributos ao seu próprio self. No Teatro da espontaneidade todos os homens são mobilizados e se deslocam do estado de

85 Idem, p 17. 86 Idem, p 9. 87 Idem, p 30. 88 Idem, pp 36-41. 89 Idem, p 30.


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consciência para o estado de espontaneidade, do mundo dos feitos reais, dos pensamentos e sentimentos reais, para um mundo de fantasia que inclui a realidade potencial. As pessoas deslocam-se da coisa em si para a imagem da própria coisa, a qual inclui a coisa em potencial. Os valores da vida são substituídos pelos valores da espontaneidade.90 O agente, o poeta, o ator, o músico, o pintor de improviso tem seu ponto de partida não fora de si, mas em seu interior, no ‘estado de espontaneidade’. Isto não é uma coisa permanente, [...] é o estado de produção, princípio essencial de toda experiência criativa. [...]. Não é conservado, nem sequer registrado. O artista do improviso deve aquecer-se, deve realizá-lo caminhando morro acima. Assim que estiver realizando o caminho para o ‘estado’, este se desenvolve com toda a força.91 É acionado por um ato da vontade, aparecendo segundo a sua própria natureza. Não é criado pela vontade consciente que, frequentemente, atua como obstáculo inibitório, mas sim por uma liberação que, na verdade, é o surgimento desimpedido da espontaneidade.92 De acordo com o texto, parece evidente que para Moreno a manifestação da espontaneidade é uma eventualidade no encadeamento normal da vida de uma pessoa. Surge como uma ruptura deste encadeamento, como um estado psicológico distinto, no qual passa a existir uma abertura para a experiência de uma realidade potencial. Justamente pelo contato com esta realidade potencial, por intermédio da imagem, do imaginário e da imaginação, se torna possível criar. Vale a pena ressaltar que em vários textos posteriores, de diferentes épocas, encontramos o termo “realidade suplementar” nesse mesmo sentido de realidade potencial. Moreno denomina como categoria do momento a temporalidade constitutiva dos estados de espontaneidade. O momento acontece justamente com a ruptura no encadeamento temporal normal, quando uma nova temporalidade ligada à espontaneidade e à criatividade é manifesta na ação de uma pessoa como ato criador. No momento, o self do ator se expressa espontânea e criadoramente. O tempo adquire um significado diverso daquele que lhe é normalmente atribuído. Enquanto o presente vivido é percebido como pertencente a um encadeamento entre o passado e o futuro, numa linha do tempo; o momento é percebido como um rompimento deste encadeamento, no qual o passado e o futuro adquirem novos sentidos. O estado de espontaneidade, apesar de ser acionado pela vontade do indivíduo, sendo assim, voluntário, depende de estímulos ou técnicas específicas para ser produzido, num processo que Moreno denominou como aquecimento, o qual será estudado adiante. Isto, porque se faz necessário a liberação de bloqueios que normalmente inibem a manifestação da espontaneidade. Estas noções contrastam com as do senso comum. Costuma-se dizer que tal indivíduo é espontâneo quando habitualmente fala ou age de acordo com seus impulsos imediatos. Para Moreno, este indivíduo pode

90 Idem, pp 45-46. 91 Idem, p 58. 92 Idem, p 59.


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não estar sendo espontâneo, mas simplesmente agindo de modo repetitivo, reproduzindo comportamentos previamente aprendidos. A esta altura, estamos em condições de compreender o que vem a ser um ato criador. Fica claro que a condição para que este aconteça é o estado de espontaneidade. A principal característica de um ato criador é a sensação de surpresa, de inesperado, de novidade, até mesmo de irrealidade que o acompanha, associada à percepção de mudança da realidade da qual o mesmo emerge. Além disto, o que é muito importante, esta sensação não surge somente como uma tomada de consciência de algo. No momento do ato criador, independentemente da consciência ou da percepção que possa ter, o indivíduo encontrase ativo, intervindo efetivamente para a mudança da realidade em questão. Por outro lado, mesmo com um grande grau de consciência, um indivíduo pode estar sendo passivo, ou reativo, meramente repetindo comportamentos estereotipados. Durante o processo de aquecimento para atingir o estado de espontaneidade, o ator se vê em confronto com quatro formas de resistência: (a) as resistências que decorrem de suas próprias ações corporais na apresentação de papéis; (b) as resistências que decorrem de sua personalidade particular na produção de ideias; (c) as resistências que decorrem das ações corporais, ideias e emoções dos outros atores que trabalham com ele, e (d) as resistências que decorrem da audiência. As duas últimas são resistências interpessoais.93 As resistências podem ser entendidas de modo geral como conservas culturais. Há uma forte tendência, resultante do convívio social, à conservação daquilo que se apropria. Com o devir, a mudança que acompanha um ato criador pode ser pressentida como ameaçadora. Pode significar uma perda, real ou ilusória. Daí, a resistência ao ato criador. De modo que ideias, sentimentos ou comportamentos podem se tornar conservas culturais, funcionado como formas de resistência ao ato criador, inibindo o estado de espontaneidade. Este mecanismo ajuda a compreender a eventualidade dos estados espontâneos. A produção teatral ao proporcionar esta eventualidade pode servir ao ator como uma experiência de reconhecimento das conservas culturais, de que maneira elas promovem a inibição da sua espontaneidade, bem como, de que maneira pode haver uma transposição criativa das mesmas. Deve-se considerar a existência de uma dialética entre o ato criador e a conserva cultural. Aquilo que surgiu no momento do ato criador como forma de liberação, pode vir a se tornar no futuro uma nova conserva cultural. O ator que se conscientiza desta dialética, passa a ter cada vez menos receio da mudança, e a estar mais propenso a buscar voluntariamente estados de espontaneidade em sua vida.

Ainda mais um comentário sobre a questão das resistências. Conforme foi mencionado por Moreno, elas podem surgir em função da relação entre os atores, ou entre estes e a audiência. Para que se atinja o estado de espontaneidade grupal e, consequentemente, o ato criador coletivo, deve-se tomar o cuidado de colocar em foco a origem interpessoal das mesmas. Enquanto as resistências dizem respeito aos indivíduos, pode-se dizer que a produção teatral encontra-se no âmbito do psicodrama; na medida em que se pode

93 Idem, p 64.


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reconhecer a origem interpessoal das mesmas, passa-se ao âmbito do sociodrama. Com a interação dos atores durante o processo de aquecimento para o estado de espontaneidade, vai se delineando o drama espontâneo. Enquanto o drama no teatro tradicional é apresentado como obra acabada, reproduzida diante de uma audiência; o drama espontâneo é apresentado no momento da sua produção, no seu status nascendi. Cada ator é um cocriador do drama. Mesmo aquele que se encontra apenas assistindo também é cocriador, na medida em que a sua simples presença interfere na ação dos atores que estão diretamente envolvidos na execução da cena. No teatro tradicional, apesar dos atores estarem sujeitos à interferência da audiência, eles são treinados a não se deixar afetar por ela, de modo a não alterar o rumo do drama encenado, previamente estipulado. Se, por acaso, alguém na audiência suspirar profundamente, rir, ou disser algo em alto e bom som, isto deve ser negligenciado. Já, numa produção teatral espontânea, o rumo da ação não se encontra decidido de antemão. Neste sentido, o drama espontâneo é decidido no momento da sua produção. Moreno em sua pesquisa interessou-se também pela questão da catarse, procurando estabelecer a diferença entre o modo como esta ocorre no teatro espontâneo, em contraste com a do teatro tradicional, definida por Aristóteles na sua “Poética”94 como o “efeito trágico” sobre o espectador. Vamos ao texto do filósofo grego: A tragédia é imitação [mimesis] de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que suscitando terror e piedade, tem por efeito a purificação [katharsis] dessas emoções.95 Aristóteles descreve o efeito da encenação do drama trágico promovido no espectador como uma purificação. Isto acontece através das sucessivas etapas do desenvolvimento do enredo, que segue uma estrutura definida. O desenrolar das ações é construído de tal modo que o espectador é levado a se identificar com o herói trágico. Após realizar feitos que revelam a grandeza do seu caráter, o herói trágico se vê surpreendentemente diante de uma situação que promove uma reviravolta em seu destino. Numa crise de valores, reconhece o seu erro, a falha em seu comportamento que promoveu a reviravolta, e sofre as consequências. O espectador sente um crescente aumento da sua tensão emocional, sendo tomado por sentimentos de terror e piedade que finalmente são aliviados com o desfecho do drama. A este alívio emocional que ocorre ao espectador durante a encenação do drama trágico, Aristóteles chamou de katharsis (catarse). A explicação psicológica deste fenômeno é a seguinte. O espectador se identifica, de modo mais ou menos consciente ou inconsciente, com a personagem do herói representada. O que possibilita mobilizar e revelar aspectos da sua própria vida, potenciais ou atuais, no drama encenado da personagem. Em outras palavras, se dá conta de que o que acontecera ao personagem poderia muito bem ter acontecido com ele próprio. Desta maneira, ao sofrer as emoções e sentimentos mobilizados pela encenação, sente vicariamente as consequências da transgressão de limites morais. A catarse, isto é, o alívio das tensões, é

94 ARISTÓTELES. Poética . In: Aristóteles II - Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1984. 95 Idem, p 245.


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acompanhada de um sentido pedagógico: o espectador aprende a reconhecer e a se conformar com os limites morais apresentados no drama. Aristóteles não menciona em parte alguma da “Poética”, ou de outros escritos, o que se passa com o ator. Entretanto, este é o foco de Moreno. A condução do ator ao estado de espontaneidade e ao ato criativo proporciona um efeito terapêutico para o ator. Na medida em que este cria o drama, se torna capaz de se libertar dele. Moreno introduz assim a ideia de uma catarse do ator. Enquanto no teatro tradicional o espectador encontra-se passivo diante do drama, no Teatro da espontaneidade o ator encontra-se ativo. O ator, no momento da própria criação do drama, pode intervir de acordo com o seu próprio self, atualizando impulsos ou ideias em estado potencial, valendo-se da liberdade de experimentação proporcionada pelo espaço teatral. Segundo Moreno, “a catarse é gerada pela visão de um novo universo e pela viabilidade de novo crescimento (a ab-reação e a descarga de emoções são apenas manifestações superficiais)”.96 O universo determinado pelas conservas culturais é assim ativamente transposto. Neste sentido, Moreno denomina a catarse do ator como catarse ativa. Passemos então para a última etapa do nosso percurso: a questão da produção teatral espontânea. Moreno discute esta questão em seus vários aspectos: as técnicas para o ator individual, as técnicas da ação interpessoal, a movimentação corporal dos atores, a direção da produção, a escolha do tema ou do enredo, o desenvolvimento do conflito no drama, o tempo de duração, o uso de cenários, máscaras e figurinos. Comecemos pelas sugestões técnicas para o ator individual. Nas palavras de Moreno: O ator individual deve ser produtivo a todo o momento. Portanto, a tarefa da técnica é o domínio do momento e a rápida eliminação de todas as resistências internas. Esta proeza, que permite às imagens emergirem em liberdade, o domínio das resistências internas e o início da produtividade — que é difícil de ensinar por meios intelectuais — pode ser adquirida.97 A aquisição desta proeza, ou seja, da capacidade de atingir e manter estados de espontaneidade no momento da produção teatral, se dá “pelo treino em espontaneidade”. Considerando os principais problemas encontrados na prática, Moreno apresenta algumas sugestões técnicas. O ator deve aquecer-se partindo de dentro para fora. Deve voltar-se para seu corpo, emoções, movimentos, ideias, sentimentos. Adverte quanto à tendência para a fala, num exercício puramente intelectual, sem que se tenha alcançado o estado de espontaneidade. Uma vez alcançado este estado, aí então a fala será condizente com o mesmo. Sugere mantê-lo sob controle, evitando tanto se aquecer demasiadamente como perder o aquecimento. Como a ação é coletiva, o ator dever procurar não permanecer voltado para si. Deve atuar e permitir que os outros atuem, compartilhando a produção da ação. Quanto ao conflito, recomenda ao ator não apresentar uma versão prematura do mesmo, intensificando-o gradativamente. Moreno limita-se a dar estas sugestões em linhas gerais. Não as aprofunda com exemplos. Não apresenta as descrições de seu trabalho prático. Entretanto, isto parece ser intencional como medida educacional. Para Moreno, o processo reprodutivo de aprendizagem deve passar para o segundo plano. Neste sentido, “recomenda-se aos dramaturgos que não ponham suas produções dramáticas no papel

96 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 65. 97 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 71.


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e sim que as deixem amadurecer aos poucos, a partir de experimentos em espontaneidade”.98 Bastaria, portanto, aos experimentadores, noções gerais da técnica. Cada ator pode se incumbir de descobrir as suas próprias técnicas. Quanto à ação interpessoal, Moreno adverte quanto ao surgimento da resistência externa quando diversos atores interagem numa situação. Fala de uma criatividade interpessoal capaz de se sobrepor às resistências, e de um treinamento cooperativo, quando cada ator pode “ser produtivo e socialmente presente, receptivo à produção dos outros e à própria produtividade, ao mesmo tempo”.99 Quanto à movimentação corporal dos atores, Moreno postula que deve ser evitado todo nexo causal entre palavra e gesto. O ator deve aprender a desvencilhar-se dos antigos clichês. Através de exercícios de espontaneidade, deve estocar movimentos corporais que possam ser associados livremente à produção do drama por força de uma ideia emergente, ou como reação sensível aos estímulos inesperados que advém do seu parceiro. O ator espontâneo deve continuamente estar em prontidão para a produção de movimentos espontâneos. As apresentações públicas do Stegreiftheater consistiam de peças teatrais improvisadas por um grupo de atores coordenados por Moreno. Nestas apresentações, Moreno desempenhava o papel de diretor. Sua principal incumbência era a de regular a interação dos atores durante a apresentação: sugerir ideias, distribuir os papéis-tarefas, o argumento, a duração da apresentação. Fazia isto preparando diagramas de notações para auxiliar a sua tarefa e a dos atores. Nestes diagramas os atores podiam visualizar o motivo, os papéis e o argumento do drama espontâneo que deveriam incorporar. Os diagramas continham indicações sobre a posição que cada um dos atores deveria ocupar no palco, num sistema de ações coordenadas, que incluía: o entendimento prévio do que representariam; a divisão do problema em tantos e tantos motivos centrais, cada motivo sendo expresso em uma cena, que podia, por sua vez, ser dividida em diversas situações; o tempo médio de uma cena; o tempo total da produção. A escolha do tema e do enredo precisava estar comprometida com o momento do grupo e do público. O grupo de atores representava cenas conforme o tema proposto pelo público. A escolha de uma notícia colhida de um jornal do dia, técnica chamada de “jornal vivo”, era costumeiramente utilizada. Entretanto, não era a única maneira de se chegar a um tema. Moreno procurava pesquisar quais eram as questões concretas que verdadeiramente preocupavam o público no momento. Toda a paramentação era feita diante do público. Ambientes eram criados de improviso com pedaços de madeira, vidro ou papelão de vários tamanhos, cores e formas. Máscaras e roupas eram escolhidas, ou mesmo, feitas, no momento das apresentações, com auxílio de um alfaiate. Fica difícil saber ao certo como eram os procedimentos no momento das apresentações. Para se ter alguma ideia, podemos nos reportar à clássica descrição feita por Moreno do caso Bárbara. Trata-se de um jornal vivo, em que Moreno aparece como diretor da produção. Sugere a ela tomar o papel de uma prostituta de rua que será atacada e assassinada por um estranho, orientando-a a se comportar de modo vulgar, estúpido, a chegar a extremos. Bárbara responde que sim com entusiasmo, demonstrando estar aquecida para tomar o papel.

98 Idem, p 97. 99 Idem, p 72.


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1.9. A revolução criadora No bojo das inquietações de seu tempo, do esforço comum de filósofos, artistas e cientistas para a superação das crises de identidade do homem moderno, Moreno almejava que o seu novo jeito de fazer teatro proporcionasse uma transformação social em ampla escala. Tratava-se do projeto de “reencontrar uma posição para o homem no universo”100, condizente com a sua essência espontâneo-criadora. Denominou este projeto revolução criadora. O Teatro da Espontaneidade foi projetado como o locus dessa revolução. Em vez de investir na luta política pelo poder estatal, à semelhança do marxismo ou do nazismo, fundou seu projeto revolucionário no âmbito da arte e da cultura. O aqui e agora da ação cênica passava a estar ao serviço da experiência emancipadora da potência de autonomia, liberdade e criatividade comum a todos nós, através da qual o homem poderia no futuro encontrar o seu verdadeiro lugar no universo: o lugar da igualdade como criador entre criadores, como cocriador. Moreno almejava assim a transformação, a um só tempo, do indivíduo, da sociedade e do cosmos. Vimos que a passagem do século XIX para o XX foi um período crucial na história da cultura europeia e mundial, e Viena, um palco particularmente importante neste cenário, em função das peculiaridades de seu processo de modernização socioeconômica. À época, a cidade vivia uma atmosfera de intensa efervescência intelectual. Era o momento imediatamente posterior à 1a Grande Guerra Mundial. Mudanças econômicas e sociais aconteciam ao passo acelerado do avanço do capitalismo. Artistas, cientistas e filósofos, mobilizados pela decadência dos valores tradicionais, isto é, pela inadequação destes valores como forma de adaptação do indivíduo a tais mudanças, bem como, pelo sentimento de perda de identidade associado a todo este estado de coisas, promoviam um grande questionamento da subjetividade no meio cultural. Uma época de crise em que o marxismo e o freudismo ganhavam força junto à sociedade como caminhos para a transformação do homem. Criar o Teatro da Espontaneidade foi o instrumento idealizado por Moreno para que o homem moderno pudesse, individual e coletivamente, buscar respostas a sua crise de identidade e, as encontrando, se transformar. A ideia da espontaneidade lhe serviu como guia em seu processo de pesquisa e criação. Como vimos, a ideia da espontaneidade surgiu em sua mente quando anos atrás se reunia com as crianças que frequentavam os jardins do Augarten. Experimentara alí um modo diferente de se relacionar com elas que muito o impressionou, um modo de ser que associou a uma espécie de natureza primordial, a um primeiro universo da existência humana regido pela espontaneidade. A ideia era que esta forma de experiência primordial pudesse de alguma forma ser recuperada, e para que isso fosse possível seria necessário transpor aquilo que a inibia no mundo moderno, as conservas culturais, sobretudo as tecnológicas, que rapidamente proliferavam. Lembremos que Moreno chamava de conserva cultural a todo e qualquer produto final de processos criadores — ideias, linguagens, instrumentos, técnicas, conhecimentos, leis, hábitos, papéis sociais etc — nas suas formas acabadas e mecanicamente reproduzidas. Deixando-se dominar pelas conservas culturais, o homem adota formas fixas de sentir, pensar, se relacionar. Não cria, não inova. Limitase a reproduzir estereotipadamente o estabelecido. Repete mecanicamente o que lhe transmite o professor na escola, o padre na igreja, o apresentador do noticiário da televisão. De modo que as criações acabam por adquirir maior valor do que os criadores. Uma lastimável inversão de valores. As criações sobrepostas aos criadores. Com isso, as instituições sociais de modo geral — a família, a escola, a igreja, o teatro,

100 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Campinas, Editorial Psy, 1993, p 15.


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a universidade — encontravam-se distorcidas, deformadas, muito aquém do que poderiam ser. Toda uma economia dominada por produtos acabados e resultados alcançados. Os fins justificando os meios. Toda uma opressão sobre a sociedade conduzindo-a à uniformização, ao imobilismo, à indiferenciação do indivíduo dentro da coletividade, à massificação cultural. Neste processo o homem se robotiza, se torna um autômato. De modo que Moreno via no uso indiscriminado da tecnologia uma grave doença sociocultural. Na mesma época, em perspectiva similar, Martin Heidegger denunciava o perigo da crescente supremacia tecnológica na sociedade moderna que nos força a uma entrega cega à técnica.101 Charles Chaplin, em seu filme “Tempos Modernos”, apresentava uma brilhante ilustração deste drama, em especial na marcante cena em que Carlitos ‘quase enlouquece’ apertando engrenagens de uma máquina. Esta cena ilustra bem a tese moreniana de que o aqui e agora dos processos de criação, a singularidade do fazer, estava sendo progressivamente substituída pela reprodução mecânica das conservas culturais. Max Weber definia o estado social da época como Entzauberung ou “desencantamento do mundo”: conduta metódica da vida, iconoclastia, burocratização da vida social, sustentados pelos fluxos de racionalidade prática e da articulação entre a técnica e a política. 102 Walter Benjamim, por sua vez, descrevia a modernidade em ascensão como a “era da reprodutibilidade técnica”, apontando para a perda da “aura” da obra de arte, isto é, a perda da sua autenticidade como existência única no lugar em que se encontra exposta.103 Diante deste quadro, impunha-se a tarefa acabar com o domínio das conservas culturais sobre a espontaneidade. A natureza primordial do homem não devia continuar sendo cerceada pelas diferentes formas de convenções, estereótipos, padronizações, técnicas e protocolos vigentes que cada vez mais dominavam as formas de vida. Neste sentido, o Teatro da Espontaneidade tinha como objetivo servir como locus na sociedade no qual as pessoas teriam a oportunidade de reencontrar a conexão com a própria espontaneidade, libertando-se do cerceamento que as conservas culturais lhes impingiam, transformandose a si mesmas e ao mundo. A revolução criadora tratava-se assim de um projeto de recuperação da natureza primordial do homem, através de um novo método que conduziria cada eu individual à sua expressão mais autêntica, à expansão de seu ser, ao verdadeiro encontro com os outros e com o mundo. O método teatral, nas suas palavras, “se destinava a oferecer à humanidade uma espécie de religião dramática”104 que não tinha como modelo o palco de Shakespeare ou dos gregos, mas, a própria natureza, dando assim primazia ao self do ator e a sua criatividade espontânea. Compreendemos aqui a expressão “religião dramática” utilizada por Moreno em seu sentido forte. A escolha, como ele mesmo declarou, pelo trajeto do teatro invés de fundar uma seita religiosa, foi diretamente influenciada pelo seu contexto sociocultural (lembremos da popularidade da proposta de Nietzsche de uma “religião da arte”; e da “cultura da graça” de Viena, descrita por Schorske). Vimos que a ideia de Deus ocupou um lugar fundamental, tanto na sua formação pessoal como na gênese e desenvolvimento da sua obra. Tanto assim, que foi através da sua experiência pessoal com a busca pela espontaneidade — a qual interpretou como uma experiência transcendental105 — que chegou à sua concepção do Deus-Eu. Moreno queria proporcionar a todos uma 101 HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2006, p 28. 102 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Martin Claret, 2002. 103 BENJAMIM, W. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas - volume 1. São Paulo, Brasiliense, 1985, p 116 104 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 16. 105 MORENO, J. L. As palavras do pai. Op cit, p 9.


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experiência similar a sua, e entendeu que o caminho mais apropriado dentro do contexto sociocultural em que vivia era o teatro. Uma nova forma de experiência religiosa para o homem moderno, entendida como religação do homem com si mesmo e com o universo. O caráter religioso da revolução criadora pode também ser compreendido como forma de reação ao materialismo e ao avanço tecnológico em voga na época. Depois da morte de Deus, anunciada por Nietzsche, o materialismo — sob a batuta das ideias de Freud e Marx — se expandia cada vez mais, e dominava a cena cultural. Apesar de Moreno reconhecer a grande contribuição à ciência destes autores, considerava que os caminhos por eles traçados acabavam por alienar o homem de si próprio. Nas suas palavras: Os apóstolos modernos do agnosticismo, ao terem rompido os liames que uniam o Homem a um sistema divino, a um Deus supramundano, cortaram em sua entusiasmada pressa um pouco mais do que deviam e assim eliminaram o próprio self do Homem. No mesmo ato de emanciparem o Homem de Deus, emanciparam o Homem de si próprio.106 Contrariamente a estes autores, Moreno propunha que “a religião fosse experimentada mais uma vez, um novo tipo de religião, com suas intenções modificadas e suas técnicas melhoradas pelos novos conhecimentos transmitidos pela ciência”107, proporcionando o que a “religião sem ciência” não conseguiu alcançar no passado, e o que a “ciência sem religião” não conseguiria alcançar no futuro. Neste sentido, fez questão de ressaltar que não excluía alguns dos conhecimentos fundamentais que o marxismo e a psicanálise trouxeram à luz. Contudo, a favor da sua visão, defendia “a hipótese da espontaneidade criadora como força propulsora do progresso humano, acima e independente da libido e de motivos socioeconômicos — o que não nega o fato destes fatores estarem frequentemente inter-relacionados”.108 A radicalidade de seu diagnóstico tinha como meta terapêutica não só o indivíduo, mas a coletividade humana. Antecipando o que hoje podemos obviamente constatar como padrão hegemônico da vida contemporânea, Moreno nos alerta sobre a tendência das conservas culturais de ocupar cada vez mais espaço na vida das pessoas, à custa do espaço de relação interpessoal, subtraindo assim o locus da espontaneidade. Ao afirmar a espontaneidade como potência comum a todo homem, nos propõe uma reversão da inversão de valores operados pela cultura moderna: a supremacia do ser criador e dos processos de criação. Moreno almejava uma efetiva transformação social através de uma sociatria: a libertação das pessoas do cerceamento das conservas culturais, levando-as a recuperação da sua espontaneidade. Com seu novo jeito de fazer teatro, nos propõe um locus onde as pessoas possam resistir aos processos de massificação cultural recuperando a sua natureza espontâneo-criadora. O aqui e agora da ação cênica como experiência emancipadora da potência de autonomia, liberdade e criatividade comum a todos nós, propiciando ao homem a oportunidade de encontrar o seu verdadeiro lugar no universo: o de criador entre criadores, o da igualdade como cocriador.

106 Idem, p 21. 107 Idem, pp 22-23. 108 Idem, p 23.


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1.10. Do Teatro da Espontaneidade ao Psicodrama Após o período vienense, Moreno imigrou para os Estados Unidos, em1925, onde o seu projeto acabou por se desenvolver na direção de suas outras criações: a sociometria, o psicodrama e a psicoterapia de grupo. Chegou a promover uma série de experimentos e exibições com audiência pública na linha do Stegreiftheater por lá: no Carnegie Hall (1929), Civic Repertory Theatre (1930), Mansfield Theatre (1948). Mas estes não alcançaram, na ambiência americana, a tão sonhada repercussão que Moreno esperava, de certo modo, repetindo o que acontecera em Viena. Num balanço que aparece no prefácio da edição americana, nova e aumentada de 1973 de “O Teatro da Espontaneidade”, Moreno nos conta que as suas ideias começaram lentamente a influenciar o Group Theatre e os seguidores de Stanislavski, e que Elia Kazan empregou o método psicodramático no Actor’s Studio. Fala-nos também da sua observação de que, nos últimos anos, tornara-se visível a tendência americana de ultrapassar o antigo dogma do teatro, na tentativa de incorporar os espectadores na ação, mas com objetivos sociais e políticos no sentido de Brecht e de outros dramaturgos. O teatro revolucionário moderno, tanto na Europa quanto na América, desenvolveu-se efetivamente na direção do Teatro da Espontaneidade, mas ainda não está capacitado a transpor a antiga e dogmática barreira. O Living Theatre e o Open Theatre, na América, ainda estão vinculados à conserva dramática.109 De fato, Moreno deixou de lado, porém, não renegou a origem teatral do que veio a ser a marca registrada do seu legado, o emprego especificamente terapêutico do teatro: o psicodrama. Nas suas palavras: Posteriormente, descobri uma solução mais feliz no ‘teatro terapêutico’. Cem por cento de espontaneidade era mais facilmente alcançada num teatro terapêutico. Era difícil esquecer as imperfeições estéticas e psicológicas no ator normal, mas era mais fácil tolerar imperfeições e irregularidades numa pessoa anormal, num paciente. Por assim falar, as imperfeições eram de se esperar e até mesmo bem-vindas. Os atores foram transformados em egos auxiliares e, dentro do clima terapêutico, também eram tolerados. O teatro da espontaneidade desenvolveu uma modalidade intermediária de teatro — o teatro de catarse, ou psicodrama.110

Levanta por fim a questão do futuro do teatro, lançando uma espécie de profecia: Dos milhares de institutos teatrais e do número crescentes de centros psicodramáticos em todos os países, haverão de surgir, lentamente, novos talentos e novos métodos. Serão estes que irão criar o teatro do futuro. Teatro e terapia estão intimamente entrelaçados. Aqui também, contudo, existem vários degraus. Haverá o teatro puramente terapêutico, haverá o teatro destituído do objetivo terapêutico, e também haverá diversas modalidades intermediárias.111

109 Idem, p 13. 110 Idem, p 10. 111 Idem, p 14.


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1.11. Síntese do projeto original de Moreno O projeto moreniano surgiu em resposta a assim chamada crise de identidade do homem moderno, voltando-se, não propriamente para a transformação do indivíduo isolado, mas para a transformação do grupo, da comunidade, da sociedade como um todo. Desse modo, Moreno reuniu em torno de seu projeto as grandes aspirações em voga em seu meio sociocultural: as de uma religião da arte de inspiração nietzschiana; as de uma revolução social de inspiração marxista; e as de uma exploração psicológica profunda de inspiração freudiana. Rejeitou, contudo, o materialismo da época e desses autores, encontrando no conceito de espontaneidade, o princípio espiritual-religioso a partir do qual se abre como possibilidade a integração do homem consigo mesmo, com os outros, com o universo como um todo, e com Deus. Veremos na segunda parte de que maneira o nosso autor pensou a religação entre ciência e religião através do desenvolvimento do psicodrama e da sociometria, a fim de proporcionar o que a “religião sem ciência” não conseguiu alcançar no passado, e o que a “ciência sem religião” não conseguiria alcançar no futuro. Acreditamos que a grande tarefa a ser hoje abraçada por nós psicodramatistas é retomar este projeto revolucionário, compreendendo a sua urgência no mundo atual.


PARTE 2

O FUNDAMENTO FILOSÓFICO-RELIGIOSO DO PSICODRAMA

FILOSOFIA DO PSICODRAMA R O B E R TO M A ND E TTA


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2.1. O caráter ontológico do conceito de espontaneidade Após a sua imigração para os Estados Unidos da América, em 1925, Moreno tratou de desenvolver a teoria do psicodrama tomando como ponto de partida a sua experiência com o Teatro da espontaneidade em Viena. Como vimos na primeira parte, essa experiência foi conduzida desde a adoção de um princípio filosófico-religioso fundamental, qual seja, o da existência de um fator — a espontaneidade — que estabelece a ligação entre o self humano e o Self universal, o homem e Deus. Como cientista, e não propriamente como artista ou religioso, tomou a espontaneidade como objeto de estudo dentro do procedimento científico habitual. Tratou, primeiramente, de produzir tal fator dentro de si, de isolá-lo e investigá-lo. Depois, passou a testá-lo e medi-lo em outras pessoas. Procuraremos mostrar a seguir que: a) Moreno não abandonou esta posição filosófico-religiosa em nenhuma das etapas da sua construção teórica, como foi por ele mesmo enfaticamente ressaltado; b) na busca por conferir cientificidade à sua prática, optou pelo caminho da reunião entre a ciência e a religião; c) esta posição pode ser filosoficamente aclarada como ontológica. Recordando o contexto da criação do Teatro da espontaneidade, Moreno foi mobilizado pelas fortes mudanças socioculturais associadas ao que ele denominou “as três formas de materialismo que desde então se tornaram os indiscutíveis senhores do mundo daquela época, a saber, o materialismo econômico de Marx, o materialismo psicológico de Freud, e o materialismo tecnológico do navio a vapor, do avião e da bomba atômica”.112 Na sua interpretação, essas formas de materialismo tinham em comum “um medo e um despeito profundos, quase que ódio, contra o self criativo e espontâneo”113, conduzindo o homem à perda da sua espontaneidade diante do crescente domínio das conservas culturais sobre as suas ações. Atravessando o que chamou de sua “síndrome de Deus”, Moreno compreendeu que seria preciso que o homem transformasse a sua atitude existencial diante desse contexto sociocultural, desenvolvendo a atitude do ator espontâneo- criador, uma atitude pautada pela busca da verdade nos encontros com os outros e da corresponsabilidade pela situação ética do homem no mundo. O homem havia adoecido devido ao seu modo de produção cultural, e a sua cura se encontrava na recuperação da sua espontaneidade. Desse modo, o palco do Teatro da espontaneidade foi dimensionado para viabilizar a transformação da sociedade rumo à revolução criadora, isto é, rumo ao desenvolvimento de uma nova forma de atitude existencial, individual e coletiva, resultante da recuperação da espontaneidade do homem no mundo moderno. Passado quase um século, constatamos o acerto do diagnóstico de Moreno. Assistimos, nos dias de hoje, a um radical agravamento da situação por ele descrita. O homem encontra-se ainda mais prisioneiro de seus produtos culturais, ainda mais desorientado na sua existência, devido à crescente alienação de seu verdadeiro ser causada pela indiscriminada manutenção deste padrão patológico. Isso nos faz acreditar no acerto da sua proposta terapêutica, e nos fortalece na intenção de colocá-la em prática. Todavia, apesar de Moreno ter estabelecido os elementos teóricos e técnicos indispensáveis para tanto, o fez apenas como um esboço geral, não os desenvolvendo suficientemente bem na sua sistematicidade. Além disso, a recepção da teoria pelos seus seguidores ainda não conferiu o devido valor ao princípio filosófico-religioso do conceito de espontaneidade, muitas vezes o renegando, a fim de privilegiar o seu

112 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 17. 113 Idem, p 17.


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aspecto pragmático. Devido a esta falta, a teoria do psicodrama recebeu aportes que podemos considerar indevidos, por exemplo, da psicanálise, posto que incompatíveis com o princípio filosófico-religioso do conceito de espontaneidade. Apesar de ter se valido de inúmeras referências filosóficas, Moreno não estabeleceu a sua teoria com o rigor conceitual de uma teoria propriamente filosófica. Acreditamos que o trabalho de articulação da teoria do psicodrama desde o conceito de espontaneidade como princípio ontológico, aclarando as suas implicações antropológicas e epistemológicas, possa servir a uma revivificação da prática do psicodrama no século XXI. Defendemos aqui a tese de que Moreno procurou fundar a teoria do psicodrama ligando o conceito de espontaneidade ao conceito de self, não numa perspectiva especificamente biológica, psicológica ou sociológica, mas, ontológica. Isso se esclarece na medida em que procuramos compreender o que Moreno designa por self a partir das seguintes proposições: Por self eu quero dizer qualquer coisa que reste de você e de mim depois que a mais radical redução de “nós” for feita por reducionistas passados e futuros.114 É fácil de se concordar que organismo individual e self não sejam a mesma coisa, conquanto não possam ser separados com muita clareza. O self é o cadinho de experiência oriunda de muitas direções. Uma destas dimensões do self é a social; outra, a sexual; outra, a biológica; outra, a cósmica; mas, o self é mais do que qualquer uma destas dimensões.115 Minha tese é que o locus do self está na espontaneidade. [...] Quando a espontaneidade está a zero o self está a zero. Conforme declina a espontaneidade, murcha o self. Quando a espontaneidade cresce, o self se expande. [...] Uma é função do outro. [...] O self é como um rio que flui da espontaneidade.116 Um primeiro aspecto que estas proposições nos permitem entrever diz respeito à irredutibilidade do self a qualquer dimensão particular da existência do ser humano: biológico, psicológico, social, cósmico, sexual etc. Um outro aspecto diz respeito ao self como cadinho da experiência humana. Cadinho é um utensílio dos laboratórios de química que serve como recipiente onde se misturam substâncias, um recipiente para experiências. Com esta analogia, Moreno nos leva à compreensão do self como locus da experiência humana ligada à espontaneidade, no qual todos os âmbitos da existência humana encontram-se presentes e interconectados.

Mas o que é — em termos não negativos nem analógicos, mas, positivos — o self, para Moreno? O termo self, na tradução direta do inglês, significa o eu, o si mesmo, a própria pessoa. Na tradição filosófica há basicamente duas noções de eu, diametralmente distintas: uma primeira, ontológica, ligada aos conceitos de ser e pessoa da metafísica clássica; a outra, epistemológica, ligada aos conceitos de subjetividade, consciência, cogito ou eu transcendental da filosofia moderna. Moreno não chegou a explicitar se com o termo self está se referindo a uma ou outra perspectiva filosófica. Contudo, apesar de haver falta de

114 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 21. 115 Idem, p 20. 116 Idem, p 20.


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rigor conceitual nas proposições acima citadas, podemos inferir que o seu conceito de self é ontológico, correspondendo ao de pessoa da metafísica clássica. Isso se deve ao fato de Moreno ter ligado o conceito de self a outros dois conceitos filosóficos: de Cosmos, e de Deus. O termo ontologia é empregado em filosofia, desde o século XVII, para designar a ciência que estuda o ser. Seguindo a etimologia — do grego ontos, ser; e logos, discurso, razão —, ontologia quer dizer discurso racional sobre o ser, teoria do ser. Procuramos aclarar o significado deste termo — bem como os de Cosmos, Deus e pessoa, e todos os demais termos filosóficos por nós empregados — na terceira parte deste livro. Ao final da mesma, poderemos verificar a profunda coerência do pensamento de Moreno no que se refere ao caráter ontológico da sua teoria.

Destacamos as seguintes proposições relativas ao conceito de Cosmos: A existência do universo é importante, é realmente a única existência significativa; é mais importante que a vida e a morte do homem como indivíduo, como tipo de civilização, como espécie. Depois da ‘vontade de viver’ de Schopenhauer, da ‘vontade de poder’ de Nietzsche, e da ‘vontade de valer’ de Weininger, eu partilho a ‘vontade do valor supremo’ que todos os seres pressentem e que os une a todos. Daí coloquei a hipótese de que o Cosmos em devir é a primeira e a última existência e o valor supremo. Apenas ele pode atribuir sentido à vida de qualquer partícula do universo, seja o homem ou um protozoário. A ciência e os métodos experimentais, se têm a pretensão a serem verdadeiros, precisam ser aplicáveis à teoria do cosmos.117 O homem é um ser cósmico; é mais que um ser psicológico, biológico e natural. Pela limitação da responsabilidade do homem aos domínios psicológicos, sociais ou biológicos da vida, faz-se dele um banido. Ou ele é também responsável por todo o universo, por todas as formas do ser e por todos os valores, ou sua responsabilidade não significa absolutamente nada.118 O Cosmos [...] é basicamente um processo infinito de criação [...] que se desabrocha em todos os níveis da existência, seja ela física, sociológica ou biológica, em nossa galáxia ou em outra, no passado, no presente ou no futuro.119

No que diz a respeito do conceito de Deus, destacamos: Deus é pura espontaneidade.120 Ele [Deus] é o centro de uma esfera de dimensões infinitas, a partir do qual uma luz criadora flui continuamente, em todas as direções e, para o qual, os raios de criatividade retornam ainda maiores, de todas as partes, formando assim uma rede multidimensional de relações. Por conta da coidentidade de Deus com toda a agência criadora do Universo, Ele está, não somente, no centro, mas também em cada ponto da periferia do Universo e em cada ponto de seu meio.121

117 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Op cit, p 15. 118 Idem, p 15. 119 Idem, pp 13-14. 120 MORENO, J. L. As palavras do pai. Op cit, p 29. 121 Idem, pp 23-24.


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Como Deus é inseparável do Universo e o Universo é inseparável de cada homem que vive nele, necessariamente cada homem é inseparável de Deus. [...] Porquanto tudo que acontece é essencialmente o próprio Deus acontecendo-se.122 O cerne do problema não é nem Deus nem a negação da sua existência, mas, sim, a origem, a realidade e a expansão do Self.123 Na introdução de seu livro “Psicoterapia de grupo e Psicodrama”, de 1959, Moreno explica que utiliza a palavra religião valendo-se do significado da sua raiz etimológica, o verbo religare: religar, tudo reunir, ligar em conjunto. Trata-se da “imaginação de um universalismo cósmico”.124 Lê-se nesta perspectiva as seguintes passagens: A maior dificuldade quanto à expansão do self na direção de um verdadeiro domínio do universo não reside na invenção de instrumentos por meio dos quais alcançar-se-ia esse objetivo e, sim, no próprio Homem. Este é inepto e inerte e sua espontaneidade encontra-se em estágio embriônico de desenvolvimento. Portanto, não é o retardo das ciências sociais em comparação com as físicas o que detém o progresso; esse retardo se verifica antes nas limitações do Homem e na sua falta de preparo para a utilização de instrumentos e métodos que lhe permitam vencer seus desafios biológicos, sociais e culturais.125 Não há dúvida de que o Homem deva retroceder em seu caminho, partindo do plano existencial secular até reencontrar o plano sagrado, partindo do tecnológico e voltando até o plano espiritual, a fim de que a crescente expansão do self possa recuperar um equilíbrio interno; é um paradoxo, mas o método de realização do santo e o método tecnológico do médico, os dois extremos — no meio dos quais se enquadram o método de realização do biometrista, do psicometrista, do sociometrista, etc — devem encontrar-se, fundir-se antes que novamente possa despontar a aurora da esperança.126 A ideia de Deus tornou-se uma categoria revolucionária, deslocada dos primórdios do tempo para o presente, para cada self, para cada eu individual.127 Meu primeiro impulso foi proporcionar uma nova visão de Deus e fazê-la [a humanidade] enxergar num instante a religião universal do futuro que eu tinha certeza que iria por fim unir permanentemente todas as pessoas em um único reino.128 Nas passagens supracitadas, Moreno utiliza os termos Cosmos e Deus, do mesmo modo como o fez com o termo Self, de forma imprecisa. Define o Cosmos com a existência do universo, a primeira e última existência, que se manifesta como o devir de um único e infinito processo de criação. Quanto

122 Idem, p 24. 123 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 21. 124 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Op cit, p 14. 125 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, pp 22-23. 126 Idem, p 23. 127 Idem, p 25. 128 Idem, p 25.


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a Deus, atribui a Ele ser pura espontaneidade e criatividade. Apesar de diferenciar Deus do Universo, atribuindo coidentidade e inseparabilidade entre ambos, não esclarece exatamente qual a real diferença entre estes. Esta imprecisão certamente dá ensejo a supor que o autor defenda uma posição filosófico do tipo panteísta, isto é, de uma identidade absoluta entre ambos. Veremos adiante que Moreno em seu livro “Quem sobreviverá?”, fala de Deus explicitamente como o Deus da tradição judaico-cristã129, e desse modo, como o Criador de tudo o quanto existe, isto é, do Universo, não podendo ser considerada panteísta por este motivo. Voltaremos a este ponto adiante, para considerações complementares. Compreendida, portanto, dentro deste quadro referencial, a teoria do psicodrama tem por fundamento o princípio filosófico-religioso Self-Cosmos-Deus. Três faces de um mesmo princípio, que não são semanticamente idênticas, mas que se encontram intrinsecamente relacionadas. A “expansão do self”, “o Cosmos em devir”, “o próprio Deus acontecendo-se”, são expressões utilizadas por Moreno como o mesmo significado: o infinito processo de criação, em evolução através da história, que acontece independentemente da iniciativa do homem, mas do qual o homem pode espontaneamente escolher participar. A religação do homem com a espontaneidade criadora do Self-Cosmos-Deus — a revolução criadora — acontecerá na medida em que o conjunto da humanidade se apropriar dessa possibilidade, escolhendo-a livremente, tornando-se responsável por ela. O significado profundo da sua proposta teatral pode ser definido, portanto, como o da promoção da religação do homem com a sua natureza primordial, reconectando o self humano ao Self universal, o homem a Deus.

2.2. A busca pela cientificidade do método teatral Moreno encontrou, na ambiência americana, uma linha de desenvolvimento mais promissora para o seu projeto: o teatro terapêutico. Procurou fundamentar a sua prática teatral cientificamente, voltando-se preferencialmente para o caráter terapêutico da mesma, pode ser considerado um dos precursores, senão o grande fundador, da psicoterapia de grupo. Daí a criação do psicodrama, mais especificamente, do método psicodramático, como método para uma nova forma de psicoterapia. Nas suas palavras: O psicodrama coloca o paciente num palco onde ele pode exteriorizar os seus problemas com a ajuda de alguns atores terapêuticos. É um método de diagnóstico, assim como de tratamento. Um de seus traços característicos é que a representação de papéis inclui-se organicamente no processo de tratamento. [...]. Através de técnicas como as do ego-auxiliar, da improvisação espontânea, da auto-apresentação, do solilóquio, da interpolação de resistência, revelam-se novas dimensões da mente e, o que é mais importante, elas podem ser exploradas em condições experimentais. 130 Assim, o modelo do Teatro da espontaneidade, criado em Viena, desdobrou-se como espaço vivencial para a abordagem do sujeito ou paciente com finalidade diagnóstica e de tratamento. Este se torna o protagonista de um drama, do mesmo modo improvisado no palco, juntamente a outros atores, convertidos em egos-auxiliares. As técnicas utilizadas se prestam a incentivá-lo para que ouse agir no palco 129 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol.1. Goiânia, Dimensão, 1992, pp 44-46. 130 MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo, Cultrix, 1987, p 231.


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de acordo com o que ele sente, de modo mais profundo e explícito do que normalmente o faz na realidade da sua vida social. O diretor passa a ter três funções: produtor, terapeuta e analista. O público, por sua vez, reveste-se da finalidade de ajudar o paciente, como também de ser ajudado, beneficiando-se dos efeitos terapêuticos produzidos pela ação do paciente- protagonista, e da interação com ele. O psicodrama surge como método de psicoterapia de grupo. Encontramos um sinal claro de que aspecto científico da produção teatral-terapêutica é visado por Moreno, por exemplo, pela utilização da expressão “condições experimentais”, que retoma do momento em que pesquisara o fator espontaneidade nos primórdios do Teatro da espontaneidade. A diferença agora é que o caráter artístico deixava de ser visado, para que o caráter propriamente terapêutico ganhasse o primeiro plano. Isso não quer dizer que os aspectos religiosos e artísticos, inerentes à própria prática, deixassem de estar presentes. E é evidente que Moreno devia estar ciente disso. A passagem para o que alguns autores denominaram “etapa científica” de seu percurso, corresponde, de acordo com a nossa interpretação, ao enfoque na busca pela cientificidade de seu projeto, algo que esteve presente desde o início com a descoberta do fator espontaneidade, e seus primeiros experimentos “vienenses”. O método psicodramático foi assim concebido para promover, sob condições experimentais testadas e aprovadas, a recuperação da espontaneidade dos indivíduos, patologicamente afetados pelo domínio indiscriminado das conservas culturais sobre as suas pessoas. Nesta etapa, Moreno buscou desenvolver teorias que conferissem cientificidade à sua produção. Procuremos aqui enumerá-las: a) teoria da espontaneidade; b) teoria do papel; c) teoria da matriz de identidade; d) teoria dos estados coinconscientes e da interpsique; e) conceitos de encontro, tele e transferência; f) conceito de catarse de integração; g) conceito de momento; h) teoria da sociometria; i) teoria dos universais: tempo, espaço, realidade e cosmos; j) definições de técnicas (duplo, espelho, inversão de papéis etc); e métodos (sociodrama, psicodrama em senso estrito, axiodrama, role-playing etc). Veremos em capítulos subsequentes, de que maneira estas teorias e conceitos foram articulados por Moreno, e como podemos explicitar a sistematicidade subjacente a esta estrutura conceitual, tendo o conceito de espontaneidade como conceito central. Buscamos assim estabelecer algo que o próprio Moreno não se ocupou em realizar: a sistematização da sua teoria. Nosso primeiro passo será mostrar como Moreno, em sua busca por tornar a sua teoria e prática científicas, e desse modo, aceitas pela comunidade médica, não renegou a sua teorização anterior, de caráter religioso e filosófico. Pelo contrário, tratou de aprofundá-la. O caminho desbravado por Moreno foi a criação da — assim por ele denominada — sociometria, cujos fundamentos foram originalmente apresentados em seu livro “Quem sobreviverá?”, publicado nos Estados Unidos da América em 1933. No bojo da sociometria, encontramos os princípios fundamentais de uma nova epistemologia das ciências humanas que legitima o lugar da subjetividade singular, existencial, concreta, em um método de conhecimento científico, relativizando o ideal de objetividade do conhecimento da ciência moderna. Tal inovação é resultante da sua busca de como pensar a reunião entre ciência e religião. A indicação mais precisa — ainda que apenas esboçada — de como Moreno realizou esta operação se encontra na seguinte passagem do livro supracitado. Apesar da sua extensão, faz-se importante que seja citada por inteiro: Raramente estamos conscientes de que o papel do cientista objetivo teve por modelo a ideia da Divindade imparcial. Como se espera que os pronunciamentos de Deus tenha validade


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suprapessoal, também dos pronunciamentos dos cientistas espera-se impessoalidade. [...] Ele é objetivo, neutro, descomprometido. É o relator imparcial dos eventos, à medida em que ocorrem. Esta Divindade imparcial e abrangente, o Deus de Spinoza, tem sido o modelo do cientista físico e um bom modelo, mas não tem sido adequado para as necessidades do cientista social, pelo menos, não inteiramente. Enquanto este era estatístico [...] o modelo passava. Tão logo se ateve ao Nós e às coletividades de atores, o modelo necessitou de extensão. Parece-me significativo, então, que a necessidade desta extensão primeiro apareça a nível religioso, muito antes de os operadores científicos conscientizarem-se dela. Foi em meu livro filosófico “Diálogos do Aqui e Agora” e, mais tarde, em meu “Palavras do Pai” que acrescentei nova dimensão à Divindade, dimensão que inconscientemente sempre existiu, mas nunca havia sido convenientemente explicada teoricamente: a dimensão do “Eu” ou Deus na “primeira” pessoa (contrastando com a do “Tu”, do Deus dos cristãos, e a do “Ele”, do Deus da tradição mosaica), a dimensão da subjetividade, a dimensão do ator e criador, da espontaneidade e criatividade. A dimensão da subjetividade não destitui a Divindade da objetividade, neutralidade e imparcialidade do modelo antigo, mas abre o caminho para o exercício da empatia cósmica, o amor e a participação íntima, em outras palavras, para o psicodrama de Deus. No dogma cristão, a tendência era relegar a subjetividade para o Filho e a objetividade para o Pai, mas do ponto de vista da especulação ontológica, esta divisão causou inúmeros problemas. Desde o seu aparecimento, tem sido a causa e pretexto para a antropomorfização da divindade e o disfarce do homem como Deus. Bem, é este novo modelo de uma Divindade “operacional”, anunciado em “Palavras do Pai”, que serviu de escada ao meu sistema sociométrico desenvolvido para atingir objetivo totalmente diferente: a procura de modelo com a objetividade científica das ciências sociais. O maior modelo de “objetividade” que o homem jamais concebeu foi a ideia de Divindade, um ser que sabe e sente com o universo pois Ele o criou, um Ser de infinita habilidade de penetrar todas as facetas do universo e ainda assim permanecer completamente livre de “preconceitos”. 131 Nesta passagem, ao falar de Deus como modelo de seu sistema sociométrico, Moreno inscreve a sua perspectiva filosófico-religiosa no campo da ciência. Ao situar a sua reflexão dentro do contexto abrangente da metafísica clássica e da tradição religiosa judaico-cristã, aborda a questão central da filosofia moderna, a questão epistemológica, isto é, a questão da faculdade-de- conhecer, em seus termos fundantes: a relação entre objetividade e subjetividade. Coloca seu discurso, portanto, no cerne do debate filosófico sobre a ciência. Mas, antes de abordarmos a questão epistemológica, tratemos introdutoriamente de uma outra questão, também apresentada na passagem supracitada: a da inscrição da sua experiência pessoal de Deus no campo específico da tradição religiosa judaico-cristã. Como vimos na primeira parte, Moreno nos fala em seu livro “As Palavras do Pai”, de 1922, a respeito da experiência transcendente em que ele serviu a Deus como profeta, representando Deus dramaticamente, isto é, agindo como Deus, em primeira pessoa, como um Eu. Moreno explica essa sua experiência como resultante da possibilidade aberta no curso da história da humanidade por um longo processo de subjetivação da experiência de Deus, que “inconscientemente sempre existiu, mas nunca havia sido convenientemente explicada teoricamente”. Denomina como Deus-Eu

131 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol.1. Goiânia, Dimensão, 1992, pp 44-46.


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esta “nova” forma de experiência de Deus, que se diferencia do Deus-Ele da tradição mosaica e do Deus-Tu do Novo Testamento, sem destituir-lhes a realidade. Considera a tradição cristã como um desdobramento da tradição judaica, e o Deus-Eu como um novo patamar de subjetivação desse processo evolutivo no mundo contemporâneo. Na tradição judaica, Deus é compreendido como Criador do mundo, enquanto o homem é compreendido como criatura, feita a sua imagem e semelhança. O Deus dos hebreus da antiga civilização Oriental se encontrava na imensidão do espaço, invisível, inatingível, desconhecido em seus mistérios. O povo era monitorado por um Criador Supremo todo poderoso que estava fora do mundo: um Deus-Ele. Com o advento histórico da vinda do Cristo, Deus passou a ser compreendido na pessoa de um Tu, encarnado em um homem que habitou este mundo chamado Jesus. Adquiriu assim nova feição, servindo como um modelo mais próximo e concreto para o desenvolvimento da individualidade humana: um Deus-Tu. Nessa linha evolutiva, Moreno nos propõe uma nova figura de Deus: o Deus-Eu. Trata-se de uma nova forma de experiência subjetiva de Deus que não renega as anteriores, pelo contrário, leva o sujeito a compreender a verdade de cada uma delas de modo pessoal, existencial, na concretude histórica de seu ser no mundo. Esta interpretação se alarga, aprofunda e se esclarece ainda mais através de algumas citações colhidas nos textos de apresentação e introdução da edição americana de “As Palavras do Pai”, de 1971, nas quais Moreno explica mais claramente o significado desta experiência. Deus jamais se transforma, mas a concepção de Deus criada pelo homem está sempre mudando. [...] Agora, há um novo Deus, uma nova voz da experiência, uma nova via de comunicação com o Deus que vem do próprio Eu, através de mim, através de você, através de milhões de “Eus”. [...] Tínhamos um único Deus, e agora, de repente, ao apresentar a ideia de Deus, a ideia da criatividade para todos os indivíduos, de súbito podemos ter milhões de deuses. 132 Encontramo-nos frente a uma nova ideia: com finalidade de dar sentido à existência, devemos achar o caminho da criatividade e permitir-nos uma comunicação direta e uma maior identidade com o Criador. Desse modo podemos vir a ser não somente uma parte da criação, mas parte do Criador. [...] Deus aninha-se no coração do homem e o homem se entrelaça com Deus, o passado infinito atualiza-se e Deus torna-se uma realidade no aqui e agora. 133 A Divindade tem, além dos sinais objetivos de sua existência no Universo, uma existência subjetiva que Lhe é própria, [...] em um nível diferente da subjetividade do homem. 134 Devemos ver a Divindade como coexistente com todos os atos criativos dos homens e, na verdade, Ela é a verdadeira essência deles. 135 Retoma esta linha de explicação em seu último livro “Psicodrama. Terapia de ação & Princípios da prática”, publicado pela primeira vez em 1969.

132 MORENO, J. L. As palavras do pai. Campinas, Editorial Psy, 1992, pp 12-13. 133 Idem, p 25. 134 Idem, p 162. 135 Idem, p 158.


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O fato surpreendente da religião moderna foi a substituição, se não o abandono do SuperDeus cósmico, enganoso, por um simples homem que chamava a si próprio de Filho de Deus: Jesus Cristo. O admirável em seu caso não era a instrução ou o saber intelectual, mas o fato da encarnação. [...] No mundo psicodramático, o fato da encarnação é central, axiomático e universal. Cada um pode representar a sua versão de Deus através de seu desempenho e desta forma comunicar a sua versão aos outros. Este foi o significado elementar de meu primeiro livro, em que proclamei Deus-Eu. [...] E é com o Deus-Eu que estamos todos conectados. É o Eu que se torna Nós. [...] Foi uma significativa transformação do Deus cósmico dos hebreus, do Deus-Ele no Deus de Cristo vivo, o Deus-Tu. Mas foi uma transformação mais desafiadora a do Deus-Tu para o Deus- Eu, que põe toda a responsabilidade sobre mim e sobre nós, o eu e o grupo. 136 Moreno trata de religar a imagem do homem à imagem de Deus enquanto Criador. Podemos entender esta proposição como um claro indicativo da inserção da sua filosofia à tradição judaico- cristã. Neste aspecto, diferencia-se, por exemplo, do panteísmo de um Spinoza, que identifica Deus com o mundo negando a ideia de Deus como Criador. Além disso, contrariando a referência religiosa da sua origem judaica, afirma a ideia da encarnação, a exemplo de Jesus Cristo. De modo que, a ideia de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus significa que o homem não é apenas criatura, parte da criação, mas, na sua coidentidade com Deus, também criador. É justamente neste sentido que se assemelha a Deus: como ser espontâneo-criador. O homem é capaz participar da subjetividade de Deus atualizando-a em seu ser-no-mundo, isto é, no aqui e agora de seus atos espontâneo-criadores. O relato da sua experiência transcendente nos serve de modelo para que também nós possamos realizar nossas experiências de Deus a partir de nosso Eu pessoal. Trata-se de um novo caminho para a religiosidade e a espiritualidade do homem contemporâneo, que se alinha à tradição religiosa judaicocristã, ampliando-a sem contradizê-la. Moreno concebeu assim o psicodrama como locus da produção de uma nova subjetividade através busca da identidade com Deus, em Deus, encarnando Deus. Esta passagem esclarece também, com maior precisão, o que dissemos anteriormente a respeito da compreensão de Moreno da história como um processo do Self-Cosmos-Deus. O homem é impelido a tomar parte da história mundial não através de alguma iniciativa isolada ou independente do seu próprio self, mas como participante de um movimento realizado pelo Self e através dele. É a partir da consciência de seu papel de criador, “entrelaçado com Deus”, e não numa pretensiosa (e inconsciente) ilusão de independência de Deus, que o homem pode efetivamente agir criativamente, em identidade com Deus sem se confundir com Deus. A história possui um sentido, uma teleologia: a conquista pelo homem do lugar a ele destinado de criador entre criadores, da igualdade dos homens como cocriadores do cosmos em comunicação direta e identidade com o Criador. Falamos aqui dos princípios fundamentais do que podemos denominar como uma antropologia moreniana. Voltaremos, adiante, a este tema, buscando compreender o movimento evolutivo da história mundial, bem como, as implicações desta compreensão para a prática do psicodrama.

136 MORENO, J. L. Psicodrama. Terapia de ação & Princípios da prática. São Paulo, Daimon, 2006, pp 33 e 34.


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Passemos então à questão sobre como a sociometria foi concebida por Moreno de modo a fundamentar epistemologicamente o método do psicodrama. Em seu processo de produção teórica, tornouse claro para ele que havia uma inadequação da epistemologia moderna na sua aplicação às ciências sociais, que residia numa limitação do modelo da relação sujeito-objeto por ela estabelecido. A compreensão dessa limitação permitiu a Moreno elaborar uma nova resposta à questão da separação metodológica entre sujeito e objeto no campo das ciências sociais. Esta resposta lhe apareceu em um exercício psicodramático: colocando-se no papel de Deus, propôs-se a experimentar o sistema sociométrico no cosmos. Vejamos como ele descreve esta experiência: A gênese do psicodrama encontrava-se intimamente relacionada à gênese da Deidade. Tentei compor em minha mente a figura de Deus no primeiro dia da criação. 137 Deus não era apenas um Imitador de Deus no sentido literal. Se Ele tivesse sido apenas Deus, Narciso apaixonado por Si mesmo e por Sua própria expansão, o universo nunca teria sido criado. Somente por ter se tornado “amante” e “criador” é que pôde criar o mundo. Caso Deus retornasse, não viria como indivíduo, mas sim como um grupo, como uma comunidade. Ele só foi criador na proporção e extensão na qual tomou a forma do universo, apenas na medida em que Sua ideia no plano humano pôde tomar a forma de um grupo, de uma comunidade, é que Sua existência e Sua imortalidade foram asseguradas. 138 A gênese da sociometria foi o universo métrico da criação de Deus, a ciência da “teometria”. O que sei sobre sociometria, aprendi, em primeiro lugar, com minhas especulações e experimentos em planos religioso e axiológico. Para encaixar o sistema sociométrico no mundo de Deus fiz com que Ele atribuísse a cada partícula do universo um pouco de espontaneidade e criatividade, criando, assim, inúmeras oposições para Si próprio, as contra-espontaneidades de inúmeros seres. Isto o tornou dependente de todo ser, e devido à enorme extensão e distribuição através de espaços infindáveis, quase desamparado. Isto nos tornou, porém, a nós e a todos os seres, muito mais dependentes d’Ele do que seríamos caso não compartilhássemos um pouco da sua iniciativa e responsabilidade. Esta distribuição de espontaneidade e criatividade nos tornou parceiros, iguais. Ele era para servir, não para comandar, para coexistir, cocriar e coproduzir, nada para Si próprio, tudo para os outros. Tal fato forneceu à sociometria o modelo do observador objetivo por excelência, o “olho objetivo” de Deus. Para Ele, todos os eventos tem mérito igual. Ele não tem preconceitos. O ódio e a estupidez estão tão próximos no Seu coração quanto o amor e a sabedoria. 139 Moreno nos chama a atenção para o fato de que o cientista utiliza na sua tomada de papel de observador objetivo, inconscientemente, o modelo da divindade imparcial, do “olho objetivo de Deus”. Cita, como exemplo disso, o modelo formulado por Spinoza. Todavia, critica a limitação desse modelo quando transportado do cientista físico para o cientista social. Por isso, propõe um novo modelo para se alcançar a objetividade científica nas ciências sociais, retomando a ideia de Divindade como modelo de

137 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol.1. Op cit, p 24. 138 Idem, p 27. 139 Idem, p 28.


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objetividade, mas, de modo diferente do que até então fora concebido por outros filósofos. No modelo de Moreno, Deus permanece ocupando o papel de observador imparcial e objetivo, de modo a garantir a verdade, validade ou legitimidade do conhecimento científico produzido. Acrescenta, contudo, um novo papel ao modelo antigo: o papel de cocriador, de coprodutor do conhecimento, na medida em que Deus compartilha a iniciativa e a responsabilidade de seu papel de observador com os participantes do experimento. Desse modo, Deus torna-se modelo epistemológico do socius para as ciências humanas, no qual todos os membros do experimento grupal adquirem novo status: o de corresponsáveis pela observação e a produção do conhecimento. Falamos aqui dos princípios fundamentais do que podemos denominar como uma epistemologia moreniana. O que foi dito até aqui nos serviu para situar filosoficamente a questão levantada: a do caráter ontológico da teoria do psicodrama, e suas implicações antropológicas e epistemológicas. Na próxima parte, trataremos de apresentar elementos retirados da história da filosofia que nos permitirão melhor esclarecer os pontos até aqui apresentados.


PARTE 3

O PSICODRAMA COMO TEORIA ONTOLÓGICA

FILOSOFIA DO PSICODRAMA R O B E R TO M A ND E TTA


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3.1. A busca humana pelo conhecimento da realidade A jornada da humanidade na busca pelo conhecimento do mundo e de si mesma teve início com a sua própria origem. Faz parte da própria essência do homem situar-se de modo autoconsciente diante do mundo. Mas apenas com o advento da filosofia passou a buscar este conhecimento de modo racional e sistemático. No intuito de melhor compreender de que maneira buscamos hoje compreender o homem e o seu papel no mundo através da teoria do psicodrama, propomos investigar de que maneira esta teoria se inscreve na história da filosofia. Acredito que a melhor forma de fazer isso seja adotar o procedimento metodológico moreniano, questionando acerca do locus, matrix e status nascendi da filosofia. A filosofia teve a sua origem histórica na Grécia Antiga, por volta do século VI a.C.. Os primeiros filósofos buscavam conhecer a ordem do mundo e da condição humana racionalmente, contrapondo-se ao discurso mítico que, de acordo com a crença na época, era tido como a fonte de todo e qualquer conhecimento verdadeiro. O mito era uma narrativa, uma forma de representar, relatar, estabelecer e fixar um acontecimento ocorrido em um tempo primordial e atemporal — in illo tempore — , mediante a intervenção de entes sobrenaturais — entre deuses, deusas e heróis — , sendo assim a narrativa da origem de uma dada realidade do mundo e da condição humana.140 O pensamento mítico era um fenômeno primariamente religioso. Experimentado em rituais, definia o significado e o valor dos atos humanos considerados reais, eternos, posto que derivados das divindades. Assim, a estrutura normativa da ordem social — os interditos, as leis, os papéis dentro da hierarquia social, as técnicas de caça, agricultura etc — era determinada pelo modo de pensar mítico, intrínseco à religião. O homem grego encontrava-se então — de acordo com a hipótese comumente aceita pela antropologia contemporânea — no primeiro estágio da humanidade, caracterizado pela vigência de sistemas culturais mítico-religiosos que operavam como estruturas afetivo-cognitivas das sociedades, assim chamadas, primitivas ou arcaicas. O homem primitivo pressentia que as divindades exerciam poder sobre ele de modo autônomo, à sua revelia. Por isso, devia reverenciá-las, cultuá-las, para que não se voltassem contra ele. Só estaria a salvo de toda sorte de ameaças, se cumprisse às prescrições míticas transmitidas em seus rituais. Desse modo, a religião não constituía um setor à parte da vida social. O social estava penetrado em todos os seus aspectos pela concepção míticoreligiosa. Coube aos primeiros filósofos, não apenas a recusa dos mitos como princípios explicativos da realidade, mas o desenvolvimento de um novo tipo de discurso que adotava a racionalidade como meio, norma e critério da verdade, no intuito de revelar o conhecimento da realidade tal como ela é. Tratava-se de um novo modo de pensar caracterizado pelo exercício da razão — o discurso racional — , e não mais pela crença na vontade de uma ou outra divindade a qual se devia prestar culto, desmascarando assim o caráter mistificador e falsificador da realidade próprio do discurso mítico. O conceito de cosmos tem sua origem neste contexto sociocultural, com os assim chamados pensadores pré-socráticos. O cosmos, enquanto totalidade do existente, possuía uma ordem intrínseca à sua existência. Até então, a ordem do cosmos era atribuída à relação das divindades entre si, dentro de um sistema politeísta. Daí, a principal preocupação destes pensadores era conhecer a estrutura ordenadora do cosmos racionalmente, contrapondo-se ao conhecimento vigente. Duas cosmologias desta época se destacam pela influência que tiveram na evolução do pensamento filosófico. Na cosmologia de Parmênides,

140 BRANDÃO, J. S. Mitologia grega, Vol. I. Petrópolis, Vozes, 1994, p 36.


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o cosmos é uno, contínuo, eterno, imóvel, estável, perfeito, acabado em si mesmo, sem princípio nem fim, apesar das aparentes mudanças, consideradas ilusórias. Contrariamente, na de Heráclito, o cosmos é constituído pela multiplicidade de coisas ou entes em permanente conflito, num jogo de forças antagônicas. A unidade cósmica, sob constante ameaça de desarticulação, é resultante deste conflito. Platão, no século IV a.C., valeu-se do axioma formulado por Parmênides “o ser é, o não-ser não é ”como princípio de seu filosofar. Este axioma define a afirmação da necessária existência do ser como caminho da verdade. O ser é aquilo que existe necessariamente, isto é, que sempre existiu e sempre existirá, de modo que verdadeiro é o que pode ser afirmado como imutável, imóvel e indivisível, em oposição ao que é mutável e aparente. Platão procurou demonstrar que para se alcançar o conhecimento verdadeiro de algo, a episteme — conhecimento correspondente à realidade das coisas como estas são em si mesmas, isto é, à essência das coisas — , é preciso se opor a outro tipo de conhecimento, à doxa — mera opinião que se faz das coisas, baseadas em concepções irreais ou errôneas, dependentes de como o sujeito as vê — portanto, relativamente a fatores circunstanciais como apetites, preferências, situações, interesses, crenças, limitações. Retomando o ensinamento de Sócrates, ele nos mostra que o método a ser empregado para se alcançar a episteme é o método dialético, qual seja, o diálogo racional entre participantes interessados na descoberta do que uma coisa verdadeiramente é, na sua essência. Alcança-se assim o conhecimento do “ser enquanto ser”, na expressão de Aristóteles, isto é, do discernimento entre o que uma coisa é e o que ela não é. Este é o sentido de se conhecer racionalmente: revelar as coisas como estas necessariamente são, conhecer a realidade como ela é, independente da diversidade de opiniões que se possa ter da mesma. Platão estabeleceu assim a filosofia no lugar da ciência suprema, reveladora das essências de tudo o que existe. Desde então, atribuiu-se à filosofia a tarefa de crítica da mera opinião, dos pretensos saberes, na busca pelo conhecimento verdadeiro, visando- se alcançar o absoluto da existência. Cumpre-se ressaltar que a filosofia de Platão, bem como a de seu discípulo Aristóteles, não rompeu totalmente com a concepção mítico-religiosa, conservando dois de seus princípios fundamentais: a ideia da existência de uma ordem intrínseca ao cosmos, isto é, à realidade, ao ser; e de que o homem é parte integrante desse cosmos. Compreende-se, neste sentido, caber ao homem a tarefa ética de se adequar racionalmente a esta ordem para bem viver. Daí, o início da prática de uma “nova pedagogia”. Desde que todo e qualquer homem encontra-se naturalmente habilitado a pensar racionalmente, quando orientado ou educado para tanto, as antigas explicações mítico- religiosas passaram a ser gradativamente recusadas, não só entre os filósofos, mas em todos os setores da sociedade, na medida em que o uso do pensamento racional, de maneira cada vez mais sistemática, servia ao ordenamento das formas de vida em sociedade. Com isso, o mundo dos deuses foi substituído pelo mundo das ideias, nos termos de Platão; ou formas essenciais, nos termos de Aristóteles. Empregando a razão para conhecer as relações entre si das ideias ou formas essenciais, o homem grego passou a prescindir das suas divindades, dependendo apenas de si mesmo para ascender à ordem do mundo. Assim, por exemplo, a manifestação de uma doença deixava de ser entendida como obra de uma divindade, para quem dever-se-ia prestar algum tipo de culto sacrificial, para ser explicada como mero fenômeno da natureza, sobre o qual se poderia intervir através de alguma intervenção humana mediada pelo conhecimento. A famosa pergunta aristotélica pelo “ser enquanto ser”, neste contexto, compreende-se como a pergunta pelo ser como realidade metafísica, para além da realidade física. O ser é o que tudo une e interliga, o que existe em comum a tudo o que se apresenta na realidade física de modo concreto e


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determinado, isto é, a todo ente, podendo se tratar tanto de uma coisa qualquer, de uma flor, de uma pedra, como também de um ser humano. A questão sobre o ser nos remete à busca pela ordem do real, pelo que se encontra na origem constitutiva do mundo, pelo conhecimento do fundamento comum a todas as formas de ser, pela verdade por trás das meras aparências mutáveis das coisas. O conceito de Deus aparece já entre os gregos. Em Platão, como a ideia suprema do Bem. Em Aristóteles, como vivente eterno e perfeito, como ato puro. Séculos depois, entre os estoicos, Deus é a força ativa, sopro divino, presente no interior de todas as coisas. Mas foi apenas com a filosofia escolástica na Idade Média, ligada à Igreja e à doutrina cristã, que Deus passou a ser entendido como o Ser supremo, causa primeira e perfeita do universo. Com o advento do cristianismo, os primeiros padres buscaram fundamentar racionalmente os dogmas cristãos empregando os princípios filosóficos gregos com esta finalidade. O longo período medieval de mais de dez séculos, que ligou a antiguidade à modernidade, foi caracterizado pela confluência dessas duas tradições culturais: a religião judaico-cristã e a filosofia grega. Podemos dizer que o resultado desta confluência foi a própria fundação da cultura ocidental. Para o homem medieval, a natureza física, mundana, era derivada de uma outra natureza, metafísica, sobrenatural, divina. A fé lhe era indispensável para aceitar a verdade divina, sobrenatural, transmitida pelos dogmas da religião, uma vez que ele não podia explicála por si mesmo pelo exercício da razão. Por outro lado, a razão lhe era indispensável como propedêutica à compreensão profunda desta verdade através da descoberta do seu próprio íntimo, da sua alma. Santo Agostinho, o primeiro grande filósofo cristão, que viveu nos séculos IV e V da nossa era, empenhou-se em mostrar de que maneira fé e razão são “as duas forças que nos levam a conhecer”: crede ut intelligas — “crê para compreender”; e, inseparavelmente, intellige ut credas — “compreende para crer”. Este processo cultural alcançou seu ápice com a filosofia de Santo Tomás de Aquino, no século XIII. Em suma, os princípios fundamentais da concepção de conhecimento e dos modos de conhecer, que muito sumariamente acabamos de descrever, são os seguintes: o pensamento humano é parte integrante da totalidade auto-ordenada do ser, identificada com o cosmos, pelos gregos, e com Deus, pelos cristãos. Deriva-se daí o postulado da coextensividade entre ser e pensar e, consequentemente, da possibilidade de se alcançar o conhecimento dos entes, sejam estes abstratos, como formas geométricas e números, ou concretos, como flores, pedras, ou homens. A busca pelo conhecimento é guiada pelo ideal de um conhecimento unitário e sistemático da totalidade do ser — da realidade, do mundo — , da qual os entes, em comum, participam. Esta concepção — assim chamada metafísica — foi conservada como o fundamento inabalável do pensamento no mundo ocidental até o advento da filosofia moderna, iniciada por Renè Descartes. Descartes, no século XVII, formulou uma nova concepção filosófica a partir de uma radical contraposição à tradição metafísica. Falamos aqui da separação sujeito-objeto, fundante da ciência moderna. Como Descartes chegou a esta concepção? Em um exercício de meditação, procurando identificar um princípio irrefutável que servisse como ponto de partida a todo e qualquer conhecimento válido, constatou que poderia negar a existência de tudo, até mesmo de seu corpo, menos a evidência de que é capaz de pensar. Concebeu assim o pensamento como algo puro, distinto, separado da matéria do mundo, inclusive de seu próprio corpo. Daí a proposição nuclear da sua filosofia: “penso logo existo”; ou seja, o sujeito (eu) é na sua essência pensamento, todavia distinto dos conteúdos que lhe aparecem, isto é, que nele


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se manifestam a partir de fora, da matéria, enquanto objetos. Esta separação entre pensamento (espírito) e matéria (corpo), permitiu a Descartes demonstrar que, sendo a natureza puramente material, poderia ser conhecida matematicamente. O que serviu para corroborar as descobertas revolucionárias de Galileu acerca do movimento dos corpos astrais, e a sua medição ou quantificação. Inaugurava-se assim uma nova época da história: a modernidade. Época que se caracterizaria pela decisão humana de construir e organizar o mundo, reduzido à sua natureza material, baseando-se exclusivamente neste novo saber, e nos processos que permitem dominá-lo. Kant, pouco mais de um século depois, se encarregou de radicalizar a concepção de Descartes. Segundo o filósofo alemão, não é possível conhecer as coisas em si, mas apenas as representações que o homem faz delas. Pois, todo conhecimento que se possa obter dos objetos depende do crivo do modo de conhecer próprio do homem, isto é, da sua subjetividade. Kant defendeu a posição que o sujeito humano, enquanto autoconsciência transcendental, ocupa o lugar de ponto separado do mundo, o que lhe capacita a representar de modo objetivo os dados percebidos através da sua sensibilidade, conferindo inteligibilidade a tudo quanto existe no mundo. Estabeleceu, neste sentido, um dualismo absoluto entre, por um lado, a subjetividade, com suas representações — imagens, ideias, conceitos — e, por outro, o mundo, enquanto conjunto dos objetos existentes a serem racionalmente determinados. Entre estes objetos, encontram-se também o ser humano — reduzido à sua materialidade objetiva — e o universo como um todo. Portanto, para se conhecer racionalmente é preciso partir do conhecimento da estrutura da subjetividade humana enquanto subjetividade transcendental. Em outras palavras, é preciso partir do conhecimento das categorias transcendentais, a priori, da subjetividade — espaço, tempo, causalidade etc — que organizam e tornam possível o conhecimento através da experiência. Este é o sentido da chamada revolução copernicana ou virada transcendental de Kant: o conhecimento das capacidades e limites da subjetividade humana, em sua estrutura e modo de operar, é o que possibilita a obtenção de conhecimentos válidos sobre os objetos, aproximar-se conceitualmente da objetividade das coisas, sem contudo verdadeiramente alcançá-la. Logo, para que um conhecimento possa ser considerado válido, adquirindo estatuto científico, deve obedecer empiricamente aos limites do modo de conhecer da subjetividade humana, os quais são aprioristicamente determinados. Com Kant, o realismo da antiga concepção metafísica é criticado na sua “ingenuidade”. O filósofo deve abandonar a pretensão de conhecer o “ser enquanto ser”, isto é, de conhecer os entes, as coisas em si, na sua realidade própria, intrínseca, pois há um abismo intransponível entre o pensamento humano e a realidade do mundo. De partícipe do mundo, o homem passa a ocupar o lugar de ponto separado do mundo. Deve-se deixar de lado a pretensão ingênua de conhecer as formas essenciais dos entes através do método da especulação metafísica, sujeito a equívocos das mais variadas ordens, para se voltar a obtenção de conhecimento dos entes através do método experimental, isto é, do controle rigoroso dos dados empíricos obtidos nas experiências com os objetos estudados. A chamada virada da filosofia moderna se esclarece, neste sentido, como a virada da ontologia para a epistemologia. O termo epistemologia é empregado em filosofia para designar a teoria dos processos do conhecimento, mais especificamente, do conhecimento científico. Trata-se do questionamento sobre as condições de possibilidade de se conhecer, de se fazer ciência. Como vimos anteriormente, o prefixo grego episteme, refere-se ao conhecimento racional e, por isso, verdadeiro, de um dado objeto, diferenciando-se da doxa, isto é, da mera opinião. Através do questionamento epistemológico, procura-se


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definir o que determina a validade de um dado conhecimento obtido pela investigação científica, se um dado conhecimento pode ser considerado verdadeiro ou falso do ponto de vista científico. Esta mudança foi o grande fator determinante da instituição das ciências modernas, pois, possibilitou estabelecer os princípios fundamentais que, de modo geral, garantem um alto grau de objetividade acerca dos objetos investigados experimentalmente, e assim, a validade científica dos conhecimentos produzidos. Destacamse três princípios fundamentais: 1) a existência de leis universais, de caráter matemático, que governam a natureza; 2) a descoberta empírica dessas leis pela experiência científica; 3) a reprodutibilidade perfeita dos dados ou achados experimentais. Com a aplicação experimental destes princípios houve uma crescente produção de conhecimentos sobre os mais diversos elementos da realidade, na medida em que estes passaram a ser reconhecidos e estudados como objetos, inclusive o próprio homem. Surgiram assim as várias disciplinas das ciências naturais e suas subdivisões, como, por exemplo: a física, e posteriormente a mecânica quântica; a biologia, e posteriormente a genética. Neste contexto, o homem aparece como um objeto entre outros. Enquanto objeto, passa a ser estudado pelas assim chamadas ciências humanas — como a sociologia, a psicologia, a antropologia, a história etc — nos moldes das ciências naturais. A epistemologia da ciência moderna, ainda triunfante no mundo contemporâneo, se baseia em uma dupla crença: por um lado, na crença em uma objetividade pura, absoluta; por outro, em uma subjetividade transcendental, idealística, abstrata, que serve como critério para essa objetividade. O sujeito kantiano (eu transcendental), a exemplo do cartesiano (cogito), corresponde a esse ideal de subjetividade (pura, idealizada, abstrata). Entende-se daí, portanto, a necessidade metodológica de subtrair do experimento científico todo traço de subjetividade pessoal e concreta do pesquisador para se alcançar o conhecimento objetivo da coisa a ser conhecida, sendo o homem uma dessas coisas. O resultado desta maneira de pensar foi o advento de um pensamento racional altamente impessoal, que exclui o lugar da subjetividade singular, existencial, encarnada, nos processos de produção do conhecimento. Compreendamos a inadequação desse modelo quando aplicado às ciências humanas. O homem é estudado na sua condição de objeto, destituído da subjetividade ligada à sua condição de pessoa. Descreve-se o seu comportamento objetivamente, procurando explicá-lo teoricamente. Mas descarta-se a priori a perspectiva do homem como sujeito que observa a si, aos outros e ao mundo, do qual participa como ser historicamente encarnado através de suas relações interpessoais. Neste modelo, a subjetividade pessoal é descartada, simplesmente porque a metodologia científica, emprestada das ciências naturais, não comporta a sua abordagem experimental. O conhecimento científico produzido nestes moldes, rompendo com a predecessora visão integrada da realidade, fornece-nos uma visão fragmentada da realidade, pois cada ciência particular produz dados que se limitam a descrever o seu objeto específico, sem relação com os demais (produzidos pelas outras ciências), separado da totalidade do ser. A busca pela articulação de novos princípios capazes de viabilizar uma nova perspectiva abrangente e integradora da realidade (do conjunto de conhecimentos acerca da realidade), não foi apenas colocada em dúvida, mas abandonada, a favor da pluralidade conflitiva das ciências particulares, cada qual com a sua própria fundamentação, o que implica uma necessária e aparentemente intransponível fragmentação do conhecimento sobre a realidade, e sobre o que nos interessa em especial, o homem.


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Contudo, o antigo ideal filosófico de uma visão unitária e sistemática da realidade como um todo, da qual a totalidade dos entes participam de modo indissociável, não foi completamente abandonado. Foram feitos esforços no sentido de superar a aporia do dualismo sujeito-objeto do paradigma da filosofia moderna, destacando-se, entre os mais conhecidos, o de Hegel no final do século XIX, e o de Heidegger, no começo do XX. Apesar dos avanços produzidos por ambos autores nesta direção, seus esforços não alcançaram o êxito pretendido. Deixaremos para explicar os motivos da inadequação dessas tentativas em 3.7 (capítulo sete desta terceira parte), quando apresentarmos de que maneira as abordagens de M. Henry e L. B. Puntel nos permitem articular uma resposta que — assim acreditamos — efetivamente supera tal aporia. Na direção oposta, assistimos ao longo do século XX a uma acentuada rejeição da metafísica clássica, e de toda e qualquer visão unitária e sistemática da realidade, propagada por correntes filosóficas como o neopositivismo e o desconstrucionismo. Esta rejeição é justificada por tais correntes, através de uma série de argumentos; algo que também foge ao nosso escopo explicitar em detalhes. Basta-nos, entretanto, apontar o argumento principal: o da crítica ao dogmatismo e ao autoritarismo que caracterizou a atividade filosófica ligada à metafísica ao longo da história. Podemos — aliás, devemos — concordar com esta crítica, uma vez que damos por conceitualmente ultrapassados os limites que o dogmatismo ligado a uma certa forma de especulação metafísica impõe ao pensar. No entanto, a posição filosófica dominante na atualidade — genericamente designada relativismo — que invalida a priori toda e qualquer possibilidade de uma compreensão abrangente e integrada da realidade, acaba por cair na mesma posição que rejeita, tornando-se dogmática. Para além de qualquer relativismo, argumentamos a favor da articulação de uma compreensão abrangente e integrada da realidade, não dogmática e não autoritária, capaz de orientar a formação de um amplo e fecundo consenso acerca de uma refundamentação comum das ciências. Como momento conclusivo do percurso traçado até aqui, é interessante nos darmos conta de que a história da filosofia — ao menos do ponto de vista que tomamos para compreendê-la, sem nenhuma pretensão dogmática, pois, consideramos não só a mera possibilidade mas a validade de outros pontos de vista, tanto conflitantes como complementares ao nosso — , é a história da busca do homem pela inteligibilidade da realidade em que se encontra inserido, e de seu papel dentro desta realidade, através do uso da sua capacidade racional. Com o advento da filosofia, o homem aprendeu a se sobrepor à sua capacidade imaginativa — que tem o mito como paradigma — na busca de uma maior inteligibilidade da realidade, tendo em vista a totalidade da realidade, a realidade absoluta. Com a descoberta do discurso lógico-racional, o discurso mítico-religioso que o precedia perdeu a sua supremacia como fonte única da verdade. Veremos adiante, quando apresentarmos a filosofia positiva de F. W. Schelling, que a relação entre a filosofia e o mito é muito mais profunda e complexa do que pudemos mostrar até aqui. No mais, a pergunta sobre a distinção entre discurso racional e discurso mítico continua atualíssima, na medida que o discurso mítico, longe de ser uma peça arqueológica, continua vivamente presente na cultura contemporânea, de forma, inclusive, surpreendentemente acentuada. Toda esta problemática não é apenas pertinente, mas, crucial para os nossos propósitos, na medida em que continuamos nos indagando sobre o verdadeiro lugar e papel do homem no mundo. Neste intuito, prosseguiremos em nosso percurso filosófico questionando acerca do momento de ruptura entre a filosofia moderna e a metafísica clássica. Como vimos, este momento corresponde ao da separação estabelecida por Descartes entre pensamento/espírito/sujeito e matéria/corpo/objeto.


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Ao assim proceder, Descartes renegou o conceito ontológico de pessoa da metafísica clássica, alterando desastrosamente a noção que o homem faz de si mesmo. Daí a compreensão deste conceito revestir-se de importância fundamental para o futuro do homem, na medida em que esta compreensão possa vir a restaurar sua potência de ser o que verdadeiramente é.

3.2. A pessoa como a essência do ser humano A noção de pessoa apresenta antecedentes históricos complexos, percorrendo diversos territórios semânticos, desde a linguagem filosófica, passando pelas linguagens jurídica, teológica até a teatral. Todas essas linguagens deixaram seus traços na acepção de pessoa. No sentido filosófico mais geral — reunindo tanto aspectos levantados pela metafísica clássica quanto pela filosofia moderna — , compreende-se por pessoa um sujeito de relações: um eu em relação com os outros, com o mundo e consigo mesmo. O atributo central do conceito de pessoa é o da relacionalidade. O homem é dotado da capacidade de experimentar a si mesmo como um sujeito autoconsciente relacionado a um corpo próprio, a uma vida psíquica ou mundo interior, e a uma presença a si mesmo como ser no mundo. O que equivale a dizer que todo homem percebe a si mesmo como identidade única, singular, situada no espaço-tempo do mundo, em relações com as coisas, os outros e o mundo como um todo. Desde este locus relacional, encontra fundação e se manifesta a sua capacidade de agir como um sujeito consciente de si, de se autonomear como “eu”, de falar na primeira pessoa. Neste sentido, diferentemente dos outros animais, o homem é capaz de elevar a sua situalidade, ou seja, seu lugar no mundo, à condição de autossitualidade consciente no mundo. Todo e qualquer sujeito humano, reconhecendo objetivamente a sua singularidade como pessoa no mundo, é capaz de reconhecer também a igualdade dos outros seres humanos como pessoas, e de estabelecer encontros de pessoa para pessoa. Como um “eu” é capaz de dirigir sua atenção a um outro como um “tu”, e de receber atenção recíproca deste outro “eu” como um “tu”. Em suma, enquanto pessoa é capaz de interagir com os outros enquanto pessoas através de relações bilaterais, de reciprocidade. Complementarmente à noção filosófica, compreende-se por pessoa, em sentido jurídico, o homem como sujeito consciente e moral, responsável pelos seus atos e escolhas, e, portanto, imputável de culpa. Em sentido teológico, dizer que o homem é pessoa equivale a dizer que foi criado à imagem e semelhança da Pessoa de Deus pai, sendo, por isso, capaz de estabelecer relação pessoal com Deus, e com os outros como irmãos. Ligada também à linguagem teatral, a palavra pessoa deriva etimologicamente de persona, que, em latim, significa máscara, no sentido de personagem ou papel. Neste sentido, dizer que o ser humano é pessoa significa que este se relaciona com os outros e o mundo através de papéis. Tratemos agora de apresentar o conceito de pessoa desenvolvido por Karol Wojtyla. Talvez seja do conhecimento de poucos que Wojtyla, antes de se tornar o papa João Paulo II, foi também filósofo, recebendo o grau de doutor em filosofia em 1954 com a tese intitulada “O sistema ético de Max Scheler como meio de construção de uma ética cristã”, na qual avalia a viabilidade de uma ética católica baseada no sistema ético do fenomenologista Max Scheler. Suas investigações filosóficas refletiam, a esta época, a necessidade de estabelecer um firme substrato antropológico para o campo da ética em suas intenções eclesiásticas. Wojtyla


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havia encontrado anteriormente, nos seus anos de estudo em teologia, junto à metafísica realista de Santo Tomás de Aquino, o conceito fundamental para a construção dessa perspectiva antropológica: o conceito ontológico de pessoa. Porém, foi a fenomenologia que lhe possibilitou a abordagem mais adequada ao tema central da sua teorização: a experiência da vivência subjetiva do ser humano. Reunindo estas duas referências filosóficas — o tomismo e a fenomenologia — , chegou a uma nova formulação do conceito de pessoa através de uma interpretação personalista da ação humana, transformando criativamente os campos da antropologia filosófica e da ética. Estas ideias se encontram expressas em seu livro “Osoba i czyn”, que se traduz do polaco por “Pessoa e ação”, de 1969; texto que ganhou tradução para vários idiomas como o inglês, o italiano o espanhol, o francês, o alemão, mas ainda não para o português, como também em artigos e conferências. Não chegou a elaborar neste livro uma filosofia personalista sistemática, mas uma antropologia personalista de orientação ontológica. É considerado um dos expoentes do personalismo — corrente filosófica que utiliza o conceito de pessoa de maneira fundamental e sistemática — no século XX, ao lado de autores como M. Scheler, E. Stein, M. Buber, E. Mounier, J. Maritain, G. Marcel, J. M. Burgos, J. Seifert. Comecemos pela referência à metafísica de Santo Tomás de Aquino. Seguindo a interpretação dos filósofos tomistas contemporâneos Jacques Maritain e Ettiene Gilson, o Ser para Tomás é o que subsiste por si mesmo — esse per se subsistens. Neste sentido, é a existência — única, indivisa, imutável, eterna, necessária, absoluta, abrangente — que precede é procede a tudo quanto existe no mundo, inclusive à própria existência do mundo. Isso significa que Santo Tomás defende a primariedade ontológica na existência. Fala-se, neste sentido, de existencialismo tomista. Mas, para que se possa compreender o existencialismo da ontologia de Santo Tomás é preciso que se esclareça de que maneira esta foi articulada a partir da ontologia de Aristóteles, à luz da teologia cristã. Aristóteles, como dissemos a pouco, introduziu na filosofia o questionamento sobre o “ser enquanto ser”. A noção de ser foi por ele articulada através das noções de substância e acidente, matéria e forma, potência e ato. O termo substância é utilizado para designar o ser ou ente individual que permanece o mesmo enquanto passa por modificações, isto é, por acidentes. Todo e qualquer ente é composto por matéria e forma ou essência. A essência, enquanto princípio formativo, é individualizada pela matéria, a qual, por si mesma, é indeterminada. Configura-se assim a natureza individual de cada ente. Um ente individual existe em seu ato de ser. A noção de ato é inseparável da noção de potência. O ato é uma atividade de atualização, em que a essência de algo passa de um estado potencial a um estado atual. A inteligibilidade de um ente é dada pela sua essência. O ser humano através da sua inteligência é capaz do ato de apreender as essências dos entes individuais. O movimento de tudo quanto existe no cosmos corresponde à atualização da potência dos entes, causada em primeira e última instância por aquilo que Aristóteles concebeu como o Ser ou Deus, isto é, aquilo que para além da física (metafísica) é entendido como o vivente eterno, perfeito, imóvel, imutável: o Ato em estado puro, subsistente em si. Santo Tomás tomou para si a incumbência de interpretar a obra de Aristóteles à luz da doutrina cristã, justamente quando a reedição da mesma, desaparecida desde a Antiguidade, passou a circular nos meios intelectuais no século XIII, ameaçando os dogmas da doutrina cristã, sobretudo pelas interpretações dos filósofos muçulmanos Averróis e Avicena. A esta época, a filosofia escolástica permanecia sob a influência da obra de Santo Agostinho, que se baseara principalmente no neoplatonismo de Plotino. A importância da obra de Santo Tomás, neste sentido, foi estabelecer uma nova base filosófica à teologia


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cristã, substituindo a orientação platônica pela aristotélica. A superação das aporias da filosofia de Platão, realizada por Aristóteles, foi assim introduzida na explicação racional da teologia cristã. O ponto principal foi a superação do dualismo platônico, isto é, da separação da realidade em dois mundos: o mundo sensorial dos corpos, e o mundo inteligível das ideias. Segundo o argumento crítico de Aristóteles, faltou a Platão o conhecimento da causalidade formal das essências. Esse conhecimento foi o que conduziu Aristóteles a sua concepção dos entes como compostos de matéria e forma ou essência, existentes em ato em um mundo único, sem separação. Para Santo Tomás, o Deus das Escrituras corresponde ao Ato puro, desde que tal concepção seja corrigida em alguns aspectos fundamentais. Segundo Aristóteles, o Ato puro é a causa impessoal que coloca o mundo em movimento, operando a passagem da potência (estado de essência) ao ato (existência) dos entes. Santo Tomás retifica esta teoria argumentando que Deus, como Ato puro, isto é, como Existência (esse ipsum subsistens), é o criador pessoal do mundo e da totalidade dos entes enquanto criaturas. Esclarece, desse modo, a estrutura e o dinamismo da natureza física da criação divina. Depois dessa rápida introdução à metafísica aristotélico-tomista, passemos ao conceito de pessoa em Santo Tomás. Este remonta à filosofia patrística, que o relacionou ao mistério da Trindade e ao mistério da Encarnação da Segunda Pessoa Divina. A pessoa corresponde ao mais alto grau de perfeição no mundo das criaturas, que se realiza em grau incomparavelmente mais perfeito em Deus. Deus criou seres individuais (supposituns), como sujeitos portadores de essências, que existem e agem concretamente; e não essências, a que seriam acrescentadas existências em um segundo momento. O ser humano é pessoa na medida em que é um suppositum naturae rationalis. Em outras palavras, é um sujeito individual (suppositum) que tem uma essência, a alma humana, cuja natureza é racional (naturae rationalis), isto é, intelectual, espiritual. É portanto, seguindo Aristóteles, um compositum humanum, uma composição de matéria (corpo) e forma (alma). Operando através das faculdades espirituais da inteligência e da vontade livre ou liberdade, a alma humana realiza o papel de dar forma à personalidade psicológica e moral de cada ser individual. Além dessas faculdades espirituais, intrinsecamente independentes da matéria, a alma humana opera também por intermédio de faculdades sensoriais (percepções, desejos), dependentes da matéria. Encontra-se assim voltada ao desenvolvimento da pessoa, ao crescente aumento de seu grau de perfeição. Ressaltemos aqui que uma pessoa, enquanto composto de corpo e alma, é vista pela filosofia tomista como uma unidade ôntica integrada e indivisível. O termo ôntico coloca em primeiro plano o caráter existencial, empírico do sujeito, deslocando para um segundo plano o que pode ser designado tradicionalmente como ontológico, ligado à noção de essência. Esta visão foi radicalmente subvertida por Descartes com a separação por ele operada entre pensamento e matéria, alma e corpo, sujeito e objeto. A unidade substancial do ser humano, na sua realidade objetiva (suppositum), aparece separada em duas substâncias na filosofia cartesiana: a substância pensante (alma ou sujeito), e a substância extensa (corpo ou objeto), que se relacionam entre si de maneira paralela sem formar um todo indivisível. Com esta divisão, surge na cultura moderna a tendência de identificar o sujeito ou a pessoa com a consciência, entendida como instância independente do existir e do agir humanos, estes sim, ligados ao corpo. A consciência, desse modo, identificada com uma subjetividade transcendentalizada, torna-se objeto de experiência interna, de introspecção, o que vai ser particularmente desenvolvido pela fenomenologia no século XX; enquanto o corpo, dotado de estrutura material sujeita às leis da natureza e ao determinismo natural, torna-se objeto de experiência externa, orientada pelas metodologias das ciências naturais.

Wojtyla operacionaliza a integração da metafísica aristotélico-tomista e da fenomenologia através do


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conceito de pessoa, a partir da análise da relação bilateral entre teoria e prática. Trata-se, fundamentalmente, de um procedimento metodológico. A metafísica aristotélico-tomista oferece o argumento básico para a compreensão da prática como dependente da teoria, isto é, da prioridade da teoria em relação à prática, sintetizado pelo adagio filosófico operari sequitur esse. Ou seja, precisamos primeiro conhecer teoricamente o ente, enquanto agente da ação, para só então podermos discutir com fundamento o tema da sua ação, isto é, a prática. Wojtyla defende que esse modo de proceder deveria ser empregado em todas as ciências que estudam o homem no âmbito das suas ações como a antropologia cultural, a sociologia, a psicologia, a medicina. Isso fica ainda mais evidente no caso da ética, “porque é impossível formular normas justas, praticamente verdadeiras (e, portanto, justificadas teoricamente), isto é, princípios do agir humano, sem uma resposta profunda à pergunta: o que é o homem?”.141 Porém, pergunta-se também se o procedimento oposto, que vai da prática à teoria, ou, da ação ao ser, não seria válido, pelo fato de haver uma relação recíproca, bilateral, entre os mesmos. Neste caso, tratar-se-ia de responder a uma outra pergunta: de que maneira podemos compreender a natureza do ser humano a partir da experiência que este tem da sua própria ação? Em outras palavras, como o homem age subjetivamente? Tais perguntas levaram Wojtyla ao reconhecimento, por um lado, do conceito de pessoa da metafísica aristotélico-tomista como base para a fundação de uma antropologia filosófica de caráter ontológico, aberta à experiência do sujeito como observador da própria ação; e, por outro, da posição adotada pela fenomenologia, no que se refere à busca de conhecimento sobre a consciência humana. Descobre, assim, a complementaridade existente entre as duas posições, mediada pelo conceito de pessoa, viabilizando a superação da contradição entre as mesmas. Além disso, reabilita o realismo da ontologia, no qual o homem participa do ser enquanto unidade psicofísica indissociável, integrando-o à investigação da subjetividade através de métodos experimentais. Esta complementaridade se baseia na coerência entre o “agir” humano e o “ser” humano. Nas palavras de Wojtyla, “o homem só pode agir na medida do seu ser e do modo do seu ser”.142 Da compreensão desse fato antropológico fundamental emerge o princípio da sua proposta metodológica: a pessoa se revela através da ação.143 Ou seja, o ser em ação — existência — é o que revela a pessoa — essência — , e não o contrário. Propõe, assim, a análise da estrutura ontológica da pessoa tomando a ação humana — melhor dizendo, a experiência que o sujeito humano faz da sua existência — como ponto de partida. A experiência é a etapa mais básica da cognição humana. O bebê, na mais tenra idade, já possui a capacidade de experienciar o que lhe acontece em sua vida, ainda que de modo predominantemente sensoperceptivo e afetivo; momento em que suas faculdades cognitivas — em particular, a razão — estão presentes apenas como potencialidades a serem atualizadas. Desse modo, a experiência pode ser considerada como um tipo de entendimento que está na origem de todo o processo de compreensão: das coisas, do mundo, de si mesmo. Isto é, todo o conhecimento que o sujeito humano pode obter encontra-se, de um modo ou de outro, necessariamente vinculado a esta etapa básica.

141 WOJTYLA, K. Teoria-praxis: um tema humano y cristiano. Conferencia inaugural al Congresso Internacional “Teoriapraxis”. Génova-Barcelona. 1976, p 4. 142 Idem, p 5. 143 WOJTYLA, K. La subjectividad de la persona. P 7.


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Segundo Santo Tomás, o sujeito possui uma estrutura cognoscente composta por faculdades sensoriais e espirituais da alma — sensoperceptivas, afetivas, psicomotoras, volitivas, intelectuais — interconectadas e complementares, funcionando conjuntamente como uma unidade orgânica. A atividade da alma encontra-se direcionada à realização do sujeito como pessoa, processo este que se dá a partir e através da ação. A experiência de se constituir como pessoa — um eu, um si mesmo — é dada ao sujeito humano em sua existência através de seus atos, melhor dizendo, através da sucessão de atos na sua história de vida. Podemos dizer, neste sentido, que a ação humana encontra- se orientada à atualização da essênciapotência do sujeito humano, qual seja, realizar-se — concretamente, empiricamente, existencialmente — como pessoa. Estes apontamentos nos conduzem àquilo que Wojtyla considera o coração de seu livro “Pessoa e ação”: a questão da autodeterminação da pessoa. A faculdade da alma diretamente orientada à ação humana, porque determinante em última instância da mesma, é a vontade, entendida como um querer espontâneo. As demais faculdades — sensopercepção, afetividade, inteligência — estão também, evidentemente, relacionadas à ação, mas apenas indiretamente. Um exemplo pode ajudar a esclarecer o que estamos a dizer. É fato evidente ao senso comum que um sujeito pode tanto agir de acordo com determinado impulso afetivo, tal como o desejo de comer chocolate, como se opor a este impulso, agindo contrariamente ao mesmo, dependendo da sua vontade. Isso, porque há uma diferença fundamental entre a experiência de algo que simplesmente aparece ao sujeito, como sentir desejo de comer chocolate, e a experiência de ser agente da ação, de um ato, neste caso, efetivamente comer ou não um pedaço de chocolate. Trata-se da experiência da eficácia da vontade como causa eficiente — termo aristotélicotomista — da própria ação. O entido de eficácia em relação à própria atividade está intimamente conectado ao sentido de responsabilidade pela mesma, conferindo caráter axiológico e ético ao ato. Pois, a cada ato humano, concorre a consciência de valores e a ponderação intelectual e afetiva de motivos — refletindo, muitas vezes, o conflito e a luta entre os mesmos dentro de um indivíduo —, antes que o ato seja efetivamente realizado. A vontade é entendida, neste sentido, como poder de autodeterminação da pessoa.144 É importante ressaltar que esse poder de autodeterminação não se limita à faculdade da vontade, mas deve ser referido ao dinamismo da alma em seu todo, ao conjunto das suas faculdades, que se concretiza na ação, constituindo a pessoa. Claro está que o sujeito é capaz de escolher o seu modo agir, conferindo aos seus atos a marca de sua livre e espontânea vontade. Fala-se, portanto, da liberdade como poder de autodeterminação. Até aqui a análise de Wojtyla permanece dentro do quadro teórico da metafísica aristotélico- tomista. Neste ponto, propõe uma mudança de orientação metodológica: o emprego do método fenomenológico. Do grego phenomenon, aparência, a palavra fenômeno assume na linguagem normal o sentido de aparência sensível que se contrapõe à realidade, sendo geralmente considerado manifestação desta, mesmo quando faz alusão a uma aparência paradoxal, insólita ou ilusória. O termo fenomenologia aparece na obra de Lambert em 1734, com o sentido de doutrina da aparência. Em seguida, é retomado por Kant e Hegel. De acordo com Kant, entende-se por fenômeno tudo o que aparece ou se manifesta à consciência como objeto de experiência possível, isto é, sob condições particulares, características da estrutura cognoscitiva

144 WOJTYLA, K. La estructura personal de la autodeterminacion. P


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do homem. Por isso, é preciso discriminar os fenômenos das coisas em si mesmas. Neste sentido, fenômeno não é o objeto que se manifesta em si mesmo, mas o objeto que se manifesta ao homem nas condições limitativas específicas que esta relação implica. Da perspectiva kantiana, o termo fenômeno designa o objeto específico do conhecimento humano, isto é, os dados da experiência enquanto objeto das ciências naturais. Hegel, por sua vez, se vale do conceito de fenômeno em sua obra “Fenomenologia do espírito”, de 1807, para propor uma história do desenvolvimento progressivo da consciência, desde a simples sensação até a razão universal ou “saber absoluto”. Mas foi com Husserl, no início do século XX, que a fenomenologia surgiu como um movimento filosófico que propõe como tarefa central a exigência de respeitar o que se manifesta — ou seja, os fenômenos — enquanto se manifesta. O conceito de fenômeno passa por uma transformação, na medida em que se entende por fenômeno aquilo que aparece ou se manifesta em si mesmo, como é em si, na sua essência. A noção de fenômeno não se opõe mais à coisa em si, sendo antes a sua manifestação. Neste sentido, a tarefa da investigação filosófica é revelar, através do seu rigor metodológico, as essências das coisas em meio às suas aparências sensíveis. Contudo, Husserl mantém o significado crítico proposto por Kant, pois reconhece que não é possível o conhecimento de um objeto a não ser através do conhecimento das condições particulares da estrutura cognoscitiva do homem, ou seja, da consciência como a sua fonte de constituição. Emprega o termo intencionalidade para designar o ato pelo qual a consciência se relaciona com o que se encontra diante de nós. A consciência é intencional, pois é sempre um ato de se lançar na direção de algo, de fazer aparecer algo, de fazer com que algo seja visto se tornando consciente. Sendo assim, todo e qualquer fenômeno deve ser referido ao ato de consciência que o visa. A fenomenologia, como ciência dos fenômenos, surge portanto como projeto de reconduzir os fenômenos, tais como são percebidos pela consciência, às suas essências, através do método da redução eidética, que consiste basicamente em expurgar os fenômenos psicológicos de suas características empíricas aparentes e levá-los para o plano da generalidade essencial. O método é principalmente descritivo, procurando elucidar tudo o que se apresenta à consciência na busca pela descrição das essências. Isso é feito pela operação da epochè (colocar em parênteses), que consiste em suspender qualquer crença imediata ou tese natural daquilo que pretendemos conhecer com rigor fenomenológico. Passemos então à análise da ação humana proposta por Wojtyla. O primeiro fenômeno a ser descrito é a de que esta é uma atividade consciente. Mais que isso, é reservado ao sujeito humano a experiência de ser agente autoconsciente da própria ação. Nesse campo de experiência, o sujeito aparece, por um lado, como um objeto entre outros no exterior do mundo, por exemplo, quando vê a imagem de seu corpo refletida em um espelho; e por outro, como o sentimento de uma presença interior, um existir em si. O primeiro caso é explicado pela intencionalidade da consciência, que faz com que o sujeito apareça a si mesmo como um objeto. Todavia, a intencionalidade não explica o segundo caso. Há um dinamismo interior ao sujeito que só se deixa pressentir como o sentido de uma interioridade, de um existir em si, que confere a consciência o caráter de autoconsciência. Apenas na medida do experimentar-se como um ser autoconsciente é que entramos em contato com a verdadeira realidade do nosso ser. Como vimos no capítulo anterior, com a filosofia moderna — iniciada por Descartes e consolidada por Kant — a consciência foi identificada como fator constituinte do ser. Segundo esse modo de entendimento, o ser só é acessível através da sua aparição à consciência, uma consciência pura, isto é, distinta e separada


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do ser. Wojtyla no faz ver, com a compreensão da realidade da pessoa, que a filosofia moderna opera uma inversão do entendimento do papel da consciência no dinamismo do ser, pois, é a partir do ser (do existir) da pessoa que a consciência é constituída. Neste sentido, faz-se necessária uma reversão dessa inversão. Nas suas palavras, “a realidade da pessoa exige a restauração da noção de ser consciente, um ser que não é constituído por ou através da consciência, mas que, a bem-dizer, constitui de alguma maneira a consciência”.145 No que se refere à ação, “apesar de a consciência condicionar a ação como atividade consciente, a consciência mesma não produz ou forma a ação”.146 Logo, a consciência advém do existir e do agir do suppositum humano, e não o contrário. Fica assim evidente a incoerência da ideia de consciência pura adotada pelo modelo cartesianokantiano-husserliano. A consciência neste modelo — denominada cogito na terminologia de Descartes, ou sujeito transcendental na de Kant — não passa de uma abstração, resultante de uma operação de redução da realidade — denominada epochè na terminologia de Husserl. Esta redução, operada pelo método fenomenológico, se presta a excluir os conteúdos subjetivos nos atos de cognição do sujeito, visando alcançar a objetividade das coisas, tais como estas são na realidade. Enquanto método de conhecimento é plenamente válido. No entanto, deixa de reconhecer que a realidade da pessoa, como um existir em si, é a própria fonte da consciência. Se, por um lado, a investigação experimental da subjetividade através do emprego do método fenomenológico é útil no que se refere ao aclaramento dos aspectos objetiváveis da mesma; por outro, é preciso que se reconheça o seu limite no que se refere a abordagem do existir em si da pessoa, que pode apenas ser pressentido como uma presença interior, imediatamente anterior à intencionalidade da consciência. Veremos adiante, com mais detalhes, que esta virtualidade do existir em si da pessoa não se trata de algo extra-fenomenal, mas, trans-fenomenal; e de que maneira a própria fenomenologia, conduzida à sua radicalidade, acaba por confirmar o quadro ontológico aristotélico-tomista. A análise da subjetividade da ação humana nos mostra assim que ela possui um caráter duplo. Por um lado, um caráter transitivo, ligado aos objetos ou valores intencionalmente visados pela consciência, portanto, mediado por alguma causalidade externa. E, por outro, um caráter intransitivo, relacionado exclusivamente ao existir em si da pessoa, enquanto causalidade interna de autodeterminação da ação, independente de qualquer mediação da consciência. Desse modo, o existir e a ação humana é originariamente independente da consciência. Todavia, no instante subsequente do aparecer do mundo, isto é, da fenomenalidade estudada — e erroneamente absolutizada — pelo modelo cartesiano-kantianohusserliano, torna-se intimamente vinculado à consciência. Passemos agora à questão da constituição do eu (ou ego). Como já dissemos, o sujeito humano é capaz de se autonomear como eu. Esta capacidade está ligada à intencionalidade da consciência, quer dizer, ao fato de o sujeito aparecer para si mesmo como um objeto entre outros do mundo, portanto, como uma representação de si, ou melhor, como uma autorrepresentação. Neste sentido, o eu é constituído a partir do existir e do agir do sujeito, através da mediação da consciência na sua relação com o mundo, na forma de uma autorrepresentação. Reconhecendo-se em seu ser no mundo nessa determinada forma, é capaz de elevar a sua situalidade, ou seja, seu lugar — existencial, empírico, concreto — no mundo, à condição de autossitualidade consciente no mundo como uma identidade histórico-biográfica. Em outras palavras, o eu

145 WOJTYLA, K. La subjectividad de la persona. P 10. 146 WOJTYLA, K. Paticipacion o alienacion? P 3.


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é constituído através da ação, em um processo histórico-biográfico que se dá a partir da intransitividade de seu existir em si, ou seja, da imanência de seu ser pessoal, mediado pela transitividade das suas relações conscientes com os objetos e valores do mundo. Este processo tem como fonte permanente a vontade da pessoa, que se manifesta como poder de autodeterminação de si. Ao eu compete assim a autopossessão, autogoverno e autorrealização de si mesmo como pessoa. Há ainda que se falar de um outro aspecto do processo da constituição do eu, e consequentemente, da realização da pessoa. Trata-se do aspecto relativo ao que se costuma denominar como transcendência. Em sentido etimológico, o termo transcendência significa “passar para lá”, “ultrapassar”. Na perspectiva da metafísica clássica, esse termo remete à ideia de uma dimensão do ser radicalmente separada e infinitamente superior ao mundo, a transcendência divina. Contrapondo-se a essa noção, a fenomenologia inscreve a transcendência no mundo através da intencionalidade da consciência. A consciência tende a se relacionar com aquilo que ela não é, ou seja, para um além dela própria. A temporalidade é a própria expressão desta transcendência, pois através dela é visado, para além do presente (o que é), o passado (o que já não é) e o futuro (o que ainda não é). Wojtyla chama este tipo de transcendência, estudada pela fenomenologia, de transcendência transitiva. Através de sua ação consciente, o sujeito se encontra, a cada momento, em permanente movimento de ultrapassagem do que é, transformando-se através das relações com os objetos e valores por ele visados, assimilando o que lhe aparece no mundo ao seu ser pessoal. Exemplo disso são as transformações experimentadas pelo sujeito através do uso de um instrumento de trabalho. A transcendência transitiva, decorrente da abertura intencional ao mundo operada pela consciência, não explica, contudo, toda a potencialidade de transcendência do ser humano. Wojtyla nos remete a existência de uma transcendência de outra natureza, a transcendência intransitiva. Trata-se da abertura do ser humano à transcendência divina. O sujeito humano encontra-se coextensivamente ligado a Deus através da abertura ao bem e à verdade divinas, enquanto valores que transcendem ao mundo, mas que lhes são afetivamente imanentes através de seu existir e agir, independente de qualquer mediação da consciência; poderíamos também dizer, de modo pré- reflexivo. Falamos aqui do amor que une a pessoa humana à Pessoa Divina, enquanto a afetividade de seu existir em si que a pessoa experimenta como “matéria prima” da sua ação. A vontade da pessoa, enquanto faculdade autodeterminante da ação, aparece à consciência como uma necessidade de eleger entre valores para decidir como agir. O sentido de eficácia em relação à própria atividade está intimamente conectado ao sentido de responsabilidade pela mesma, o que confere caráter axiológico e ético ao ato humano. A cada ato, concorrem valores de natureza transitiva e de natureza intransitiva: por um lado, valores culturalmente estabelecidos, ligados à contingência histórica, ideológica, política, epistemológica do mundo; por outro, valores relativos ao bem e à verdade divinas, imanentes à vida interior do sujeito através da sua afetividade. A liberdade humana não se reduz, portanto, à eleição entre valores do mundo, isto é, a valores ligados a contingências culturais cujo homem é a única medida. O homem pode ser verdadeiramente livre na medida em que se reporta ao mundo relativizando os valores ligados a contingências culturais que o assediam, tomando como base a afetividade imanente a sua ação. Entendemos assim a verdadeira liberdade como poder de decidir agir pelo bem, quer dizer, orientado pela verdade contida na afetividade imanente à ação; ou, contrariamente, agir pelo mal, ignorando ou negando essa verdade, sob as inúmeras formas de mentira, engano ou ilusão. O ato ético significa, desse modo, agir segundo essa verdade — que podemos chamar de verdade do coração, verdade do amor — e não


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contrariamente a ela. A liberdade implica, portanto, a busca pelo discernimento do bem e do mal, enquanto valores transcendentes ao mundo, mas imanentes à existência do homem através da sua afetividade. Voltaremos a este ponto a seguir, quando procuraremos mostrar em detalhes, ainda fenomenologicamente, de que maneira isto acontece. Falta-nos ainda explorar a questão da relação entre os sujeitos humanos a partir da ação. Esta questão é abordada pela fenomenologia como a questão da intersubjetividade. Husserl emprega o termo intersubjetividade para designar a relação entre o eu (ego) e o outro (alter ego). Partindo do princípio fundamental do método fenomenológico, qual seja, da consciência — subjetividade ou eu —, procura demonstrar que esta é estruturada intersubjetivamente, e não de modo solipsista. Em seu livro “A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental”, Husserl toma em consideração a inscrição da consciência no “mundo-da-vida”, esse mundo de compreensibilidade universal da vida humana, no qual o eu já se encontra sempre aí, onde intuitivamente vivemos na simples experiência. Trata-se, em outras palavras, do universo representativo tal como é concretamente encontrado (pré-dado) na ação dos sujeitos humanos. Chega a esta dimensão através de uma epoché abrangente (em seu entendimento, a mais radical possível) que exclui todas as ciências, com os seus respectivos conhecimentos sobre o mundo. Com isso, mostra que a constituição do mundo-da-vida se trata de uma realização intencional, não da subjetividade isolada, mas da interação intersubjetiva entre os sujeitos. Isso se dá através da sobreposição de sínteses intencionais que se estendem de sujeito a sujeito, com muitos estádios e estratos pelos quais estas se entrelaçam. Na realidade, cada sujeito apreende o mundo a partir da sua própria perspectiva. Cada sujeito completa e enriquece a percepção dos outros acerca do mundo. Sem essa partilha e essa troca, nenhuma cultura seria possível. Desde aí, a objetividade pode ser estabelecida através de um ponto de vista trans-subjetivo, o que é feito no plano da ação pela comunidade de sujeitos. O sentido não é outra coisa que modos de validade, referido aos sujeitos como intencionadores e efetuadores de validade. Husserl procura, desse modo, resolver a tensão, intrínseca à fenomenologia, resultante da exigência de descrever um mundo que precede à consciência, e de mostrar, por outro lado, que é a consciência que constitui todo o sentido. A abordagem de Wojtyla da relação eu-outro nos conduz para além do que foi estabelecido pela fenomenologia de Husserl. Enquanto a análise husserliana da intersubjetividade limita-se à descrição do universo de compreensibilidade da vida no mundo como linguagem comum no qual a intencionalidade da consciência se inscreve, Wojtyla propõe a análise de um outro aspecto, ainda mais fundamental e abrangente, complementando, desse modo, a compreensão da relação eu-outro. Propõe que esta seja analisada a partir da consciência de que o outro é um outro eu, do aproximar-se conscientemente do outro desde a experiência vivida do próprio eu. Neste sentido, o outro nos aparece não racionalmente, mas, existencialmente, afetivamente, como um próximo. A diferença entre as abordagens dos dois autores está no princípio filosófico adotado por cada um: no caso de Husserl, o idealismo transcendental, de cunho racionalista; no de Wojtyla, o personalismo, de cunho existencial. Esta diferenciação é crucial para a vida prática, na medida em que nos permite situar a vida social dos sujeitos humanos entre os pólos da participação e da alienação. O conceito de participação é utilizado por Wojtyla para definir a atividade de um eu em seu interagir com um outro, tomando tanto a si como ao outro como pessoas. Não se trata de uma atividade universal, mas sempre inter-humana, única e irrepetível. Pode


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tanto ser unidirecional como recíproca. Como pode também simplesmente acontecer de não se atualizar, de permanecer apenas como uma potencialidade. Como se atualiza a participação? Basicamente, a partir da consciência de que o outro ser, frente a mim, também é um “eu”. É o que nos orienta a agir com o outro buscando experimentá-lo como possuindo as mesmas potencialidades afetivas e cognitivas que o nosso próprio eu. Agindo desse modo, atualizamos o nosso próprio eu, ao mesmo tempo que proporcionamos que o outro faça o mesmo. O outro se torna assim nosso próximo. Participamos da mesma humanidade enquanto pessoas. A atualização da participação surge assim, a cada um de nós, como uma tarefa. O mandamento do amor contido no Evangelho pode ser compreendido como expressão desse chamado, desde dentro de nosso eu, para experimentar o outro ser humano como um outro “eu”, para participar efetivamente daquilo que é a nossa verdadeira humanidade, atualizando essa potencialidade igualmente existente em todos nós. Independentemente da religião ou da visão de mundo que professamos, temos de aceitar esta tarefa sobretudo pelo seu significado ético. Faz-se necessário, nesse intuito, um certo impulso interno, nem sempre aparente. Como descobri-lo, ou desocultá-lo? Pois não há como amar quem quer que seja a não ser desde o íntimo de nosso “eu”. Sobretudo aquele outro que não elegemos ou optamos de acordo com nossas preferências, mas que nos é dado interagir pelo simples fato de que, por algum motivo circunstancial, se encontra frente a nós. Dizíamos a pouco que agimos pelo bem, que praticamos o ato ético, quando nos orientamos pela verdade presente na afetividade imanente à ação. Acrescentemos agora: dentro do contexto da experiência vivida na interação com o outro. Neste contexto, os afetos de um e outro encontram-se mutuamente implicados. Completemos então a questão levantada: como descobrir dentro de nós a vontade de fazer o bem? Tomemos como exemplo ilustrativo o episódio do Evangelho narrado por João, da mulher que após ser pega cometendo adultério foi trazida por doutores da Lei e fariseus para onde estava Jesus, a fim de colocá-lo à prova e ter um motivo para acusá-lo. Ela teria sido apedrejada até a morte caso Jesus não intercedesse com as célebres palavras: “quem de vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra” (João: 8,7). Com esta frase simples, Jesus ativou a relação eu-outro em cada um dos presentes que intencionavam apedrejá-la, baseados na antiga lei que punia o pecado do adultério com a morte (Levítico: 20,10). Até o momento da intervenção de Jesus, a relação eu-outro se encontrava potencializada dentro de cada um dos presentes pela influência da antiga lei. Com as palavras de Jesus, cada um pode experimentar aquele outro ser humano — a mulher pecadora — como um outro “eu”, atualizando afetivamente a verdade de que nenhum homem pode julgar e condenar um outro, porque nenhum homem está isento de pecado. Nesta passagem, nenhum dos presentes ousou apedrejá-la porque deixaram de agir por obediência a um mero condicionamento moral, cultural, para agir segundo o impulso afetivo espontâneo de querer para o próximo o mesmo bem que quer para si. Jesus propiciou a cada um dos que estiveram ali presentes a participação na humanidade do outro e a reconexão interior com si mesmo. Para concluir, algumas palavras sobre o conceito wojtyliano de alienação. Como é sabido, este conceito foi adotado por Marx. Na filosofia marxiana, os seres humanos são alienados por seus produtos: sistemas econômicos e políticos, propriedades, trabalho, inclusive pela sua religião. Tal concepção da alienação transfere o problema para além de nós mesmos, isto é, para as estruturas da realidade social. A tarefa que se impõe, neste caso, é a mudança das estruturas — econômicas, políticas, trabalhistas, religiosas — alienantes que constituem a sociedade de fora para dentro. Então, a idade da alienação chegará a seu


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fim, sendo substituída pelo reino da liberdade, quando todos terão a oportunidade de autodeterminação. Por tudo o que já dissemos, não será difícil compreender o grande equívoco desta concepção filosófica, pois ela deixa de fora o essencial: a participação de cada sujeito na humanidade do outro, o tornar-se pessoa a que cada um de nós está intrinsecamente, teleologicamente predestinado. Isso não quer dizer que não seja necessário mudar as estruturas da sociedade atual. Mas, de que adiantaria visar quaisquer dessas mudanças se primeiramente não nos voltarmos à participação da humanidade dos outros como pessoas? O que nos aliena é a negação da nossa capacidade de participação, a negação da realidade da nossa existência como pessoas, operada pelas mais variadas ideologias surgidas ao longo da história da humanidade. Tais ideologias, nas palavras de Wojtyla, “destroem a relação eu-outro, debilitam a capacidade de experimentar a outro ser humano como outro eu, e inibem a possibilidade da amizade e dos poderes espontâneos da comunidade (communio personarum)”. 147 As estruturas da sociedade devem, sim, ser avaliadas e reformuladas, mas segundo critérios que possibilitem o desenvolvimento da participação e da nossa autodeterminação como pessoas.

3.3. A autorrevelação da vida como fonte da autodeterminação da pessoa Há ainda um aspecto fundamental a ser estudado com mais detalhes no que diz respeito à temática da pessoa. Trata-se da análise fenomenológica do existir em si, do caráter intransitivo, da realidade “invisível” da pessoa humana. A análise empreendida por Wojtyla tem o mérito de reconhecer este aspecto, mas não avança quanto à descrição do seu dinamismo. Como vimos no capítulo anterior, Wojtyla procede a uma análise fenomenológica da subjetividade a partir da ação, dentro do quadro da metafísica aristotélicotomista. Dizíamos que o emprego do método fenomenológico é útil no que se refere ao aclaramento dos aspectos ligados à intencionalidade da consciência, porém deixa de reconhecer que a realidade da pessoa, como um existir em si, é a própria fonte da consciência. O método fenomenológico restrito ao conceito de intencionalidade não é capaz de tornar “visível” (objetiva) a realidade da pessoa, porque esta é irredutivelmente “invisível” (subjetiva). Dizíamos também que esta virtualidade ou interioridade do existir em si da pessoa não se trata de algo extra- fenomenal, mas, trans-fenomenal. Queremos dizer com isso que este aspecto não se encontra fora da fenomenalidade, mas presente desde o interior de todo e qualquer fenômeno. Buscaremos neste capítulo aclarar estas proposições de difícil compreensão dado o seu caráter paradoxal. O cumprimento desta tarefa nos conduzirá, por sua vez, ao aclaramento da fenomenalidade própria do existir em si da pessoa, e de seu dinamismo. Para tanto, vamos recorrer à obra do filósofo fenomenologista francês Michel Henry, que viveu no século XX. Segundo Henry, há uma crise da fenomenalidade que advém do próprio conceito de fenômeno originado na Grécia. Atravessando todo o desenvolvimento da filosofia ocidental, este acabou por se tornar a grande aporia de toda a filosofia moderna. Na fenomenalidade — digamos, grega — o que se mostra, o que aparece, é a exterioridade, o “fora de si”, o outro, o diferente; nos termos de Husserl,

147 Idem, p 12.


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o objeto intencionado pela consciência. A aporia está em que a intencionalidade mesma é incapaz de assegurar a sua própria promoção à condição de fenômeno. Não é a intencionalidade que realiza a sua própria revelação, uma vez que o aparecer do ente não é o auto-aparecer do aparecer. Qual seria então o fundamento do método fenomenológico? Tal questão, colocada por Michel Henry, permitiu-lhe articular uma nova compreensibilidade à fenomenologia. Ele nos mostra que o fundamento do auto-aparecer do aparecer não é senão a autorrevelação originária da vida. Em “Ser e Tempo”, Heidegger defende a tese de que a presença para o sujeito humano do horizonte de visibilidade em que consiste o aparecer do mundo, isto é, o seu estar-aí (Dasein), se cumpre na forma da captação do próprio tempo, isto é, da temporalização da temporalidade (die Zeitigung der Zeitlichkeit). Toma por base de sua análise fenomenológica a descrição feita por Husserl das três formas da intencionalidade constitutivas da consciência interna do tempo: protensão do futuro, consciência do agora e retenção do passado. Com essa tese, o mundo deixa de ser confundido com a soma das coisas que se mostram nele, com o conjunto dos entes, para ser compreendido como o seu próprio aparecer possibilitado pela captação do tempo. Heidegger esforça-se assim para explicar que o aparecer do aparecer — isto é, a fenomenalidade — acontece com a captação do tempo. Contudo, o mundo permanece determinado pela perspectiva grega do “fora de si” (espaço exterior) que “está aí” (no tempo). Teria resolvido Heidegger a aporia do fundamento da fenomenologia? Na obra supracitada, o autor não vai além desse ponto: que o aparecer do fenômeno é coextensivo à temporalização da temporalidade que se desvela ao ente humano como Dasein. Mas, Heidegger não se dá por satisfeito com essa formulação, e em sua investigação subsequente procurou pelo “ser” da intencionalidade, criticando Husserl por ter situado a mesma no interior de uma consciência como se dentro de uma “caixa”. A partir da compreensão de que existe uma diferença ontológica entre o ser e os entes, o ser e o mundo, Heidegger conduz a sua investigação até a explanação do ser através do conceito de acontecimento apropriativo (Ereignis). O ser é ao mesmo tempo o impensado pela filosofia e a condição do pensamento. O ser nunca vige sem o ente, ao mesmo tempo que o ente nunca é sem o ser. O ser revela-se no ente, ao mesmo tempo que se retira dele e é por ele encoberto. O conceito de acontecimento apropriativo é utilizado para indicar este duplo movimento paradoxal. Contudo, o procedimento de Heidegger teve como implicação deletéria confinar o aparecer ao ser- no-mundo, isto é, à exterioridade, ao fora de si. O modo de aparecer do ser-no-mundo permite-nos identificar toda e qualquer coisa do mundo na sua diferença objetiva, mas não nos permite dizer nada além de que “isso existe”, “há”. Esse modo de aparecer é indiferente a tudo o que ele desvela, e é incapaz de lhe conferir a existência. O desvelamento do aparecer faz ver o que há, mas não o cria, isto é, não está em condições de pô-lo na existência. De modo que o ser-no-mundo não é a essência de toda fenomenalidade possível. Há uma outra fenomenalidade, anterior, originária, que serve de esteio à intencionalidade, que o conceito de Ereignis não dá conta de aclarar. Michel Henry argumenta, neste sentido, que tanto a crítica de Heidegger a Husserl, como todo o desenvolvimento da sua investigação, não tem, do ponto de vista fenomenológico, nenhuma validade ou justificativa. Isso porque o objeto próprio da fenomenologia não é precisamente o fenômeno, o que aparece, mas o ato de aparecer. Ressalta que foi Husserl quem introduziu esta distinção fundamental sobre a qual a fenomenologia se funda, na sua especificidade, como ciência. A fenomenologia trata do ato de aparecer, isto é, do modo “como” os fenômenos se dão a nós e nos aparecem, do “como” da sua doação. Quer dizer, a especificidade da fenomenologia reside em não se ater propriamente ao conteúdo


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do fenômeno, mas à maneira como ele nos aparece, à sua fenomenalidade pura. Assim, a fenomenologia husserliana inverte a lógica estabelecida pelo senso comum, de que é porque as coisas antes de tudo são que elas podem aparecer a nós, afirmando que é na medida em que o aparecer aparece que o ser é. O ser é sempre segundo em relação ao aparecer, que o funda. A importância da distinção husserliana é ter colocado a fenomenologia antes da ontologia, subordinando esta a aquela, não com o desígnio de desqualificá-la, mas ao contrário, de lhe estabelecer um fundamento seguro. Portanto, é o aparecimento da intencionalidade que deve ser posto em questão, algo nem sequer cogitado por Heidegger, com o seu desvio para a ontologia na busca pela fundamentação da fenomenologia. Henry nos mostra que o modo de fenomenalidade que serve de esteio à intencionalidade, sendo a sua condição de possibilidade, é a autorrevelação da vida. É a explanação desse modo de fenomenalidade — que nos é invisível, mas que podemos ter acesso em nós mesmos como pessoas — o que viabiliza, de uma vez por todas, a superação da aporia do fundamento da fenomenologia. O autor articula, neste intuito, uma fenomenologia da vida, cuja tarefa consiste em pensar fenomenologicamente a autorrevelação da vida. Vida que se revela a si mesma antes de qualquer intencionalidade, que o fora de si do aparecer do mundo em sua estrutura fenomenológica intencional é incapaz de revelar. Não se trata aqui, portanto, de responder como se dá a vida segundo o modo da fenomenalidade do ser no mundo, como, por exemplo, através de teorias baseadas em dados objetivos obtidos pelas ciências naturais (biologia, física, química). Trata-se, antes, de responder a pergunta pela essência da vida, pela vida transcendental. Henry parte da intuição de uma Arqui-inteligibilidade da Vida: uma inteligibilidade originária, precedente ao aparecimento do mundo, entendida como o Verbo de Deus. Trata-se de um outro tipo de inteligibilidade que, diferentemente da cadeia de razões ou de evidências de nossa maneira habitual de perceber o mundo, ou a nós mesmos, não toma a forma de significações ou conceitos, representações ou imagens, mas se compõe de realidades invisíveis neste mundo, despercebidas pelo pensamento. No “Prólogo” do Evangelho de João, encontramos o célebre versículo (1,14): “E o Verbo se fez carne”. Como é de conhecimento de todos, fala-se aqui da Encarnação do Verbo na pessoa de Jesus Cristo. O dogma central do cristianismo é interpretado, desse modo, como a manifestação do Verbo de Deus, que se dá na carne, na pessoa de Jesus Cristo, como autorrevelação da Vida. A Vida engendra a Si mesma, na medida em que experimenta a Si mesma, em seu movimento interno, único, absoluto, de autoengendramento. A Vida se manifesta mas não aparece, no sentido do mostrar-se no fora de si do mundo. O manifestar-se da Vida se produz na intimidade de um movimento de autoafetividade, na imediatez de um viver anterior a qualquer separação entre um dentro e um fora. Há uma interioridade recíproca da carne e da Vida: não há Vida sem carne, e não há carne sem Vida. Podese assim definir a Vida como pura “experiência de Si”, de um Si singular e real — o Primeiro Si Vivente — coextensivo ao Verbo enquanto autorrevelação do Verbo, em seu fazer-se Carne. O Primeiro Si Vivente é o Cristo, como nos diz o apóstolo Paulo na “Carta aos Colossenses” (1,15-17): “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito, anterior a qualquer criatura; porque nele foram criadas todas as coisas, tanto as celestes como as terrestres, as visíveis como as invisíveis: tronos, soberanias, principados e autoridades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas, e tudo nele subsiste”. Toda vida possível — e, portanto, a nossa — encontra-se dentro desse movimento de autoengendramento e autorrevelação da Vida. O Antigo Testamento já dizia sobre o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó que ele é o Deus dos viventes. A vida real que partilhamos como viventes é produzida por esse movimento da Vida.


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Viver, neste sentido, corresponde ao processo comum a todo ente vivo — a todo sujeito (suppositum), nos termos da metafísica clássica — de experimentar a si mesmo na imanência em que a Vida é gerada. Com a criação, a transcendência de Deus se dá como a imanência da Vida na carne de cada vivente: o fenômeno da Encarnação. Trata- se em primeiro lugar de uma experiência afetiva, sentida na carne, feita de impressões vividas entre prazeres e sofrimentos, fome e sede, desejo e fadiga, força e alegria. Neste sentido, o modo em que a vida se revela é o de um pathos, isto é, da passividade de um fruir e de um sofrer cuja matéria fenomenológica é a carne, não um corpo objetivo que nada sente em si mesmo, mas como afetividade pura, impressionalidade pura, em seu perceber-se a si mesma. A questão da Encarnação foi objeto da reflexão dos assim chamados Padres da Igreja, e tema de todos os grandes concílios nos primeiros séculos do cristianismo. Os Padres reiteradamente afirmaram que a carne de Cristo é semelhante à nossa, uma carne que não poderia ser composta de outra coisa além de carne humana, o que contradizia os preceitos fundamentais do pensamento grego que na época dominava a ambiência cultural. Para um grego ou um romano, o homem diferia do animal na medida em que, além da carne, que definia a sua animalidade, possuía a capacidade de formar significados, de falar, de perceber ideias. Isso porque o homem possuía o Logos, do qual qualquer outro animal era desprovido. Eram instruídos pela filosofia platônica, que apregoava a separação entre o corpo e a alma. Enquanto o corpo, confinado ao mundo sensível, encontrava-se predestinado à morte; a alma, como partícipe do mundo inteligível, sendo possuidora do Logos, encontrava-se predestinada à eternidade. De modo que, para um grego, ouvir que o Logos (Verbo) se fez carne soava simplesmente absurdo. Significaria desfazerse da condição humana, da sua essência, não ser mais que animal. Como entender então que a vida numa carne mortal seria a garantia de eternidade e salvação? Haveria um significado oculto em tal afirmação? A carne de Cristo poderia ser apenas uma carne aparente? Uma matéria astral, psíquica, ou espiritual? Seria sua carne uma alma? Para um grego ou um romano isso aí sim seria concebível. Mas não está dito que o Verbo tomou um corpo, que assumiu o seu aspecto; portanto, não se trata de forma, de aparência, mas de realidade. É em si mesmo, em sua realidade, que o Verbo se faz carne. Os Padres da Igreja tiveram como difícil tarefa explicar de que maneira o homem extrai a sua condição, a sua essência, da própria carne. Os concílios foram palco de um ferrenho combate contra o pensamento grego, contra sua desvalorização do sensível e do corpo. O que estava em jogo era o enfrentamento entre a concepção grega do corpo e a concepção cristã da carne. Os Padres tiveram que combater sistematicamente as tendências heréticas de um cristianismo gnóstico, elitista, intelectualista, que negavam o cerne da fé cristã ensinada na Igreja — a Encarnação e Ressurreição de Jesus Cristo — , acusando o seu dogma fundamental de se tratar apenas de um simbolismo para ingênuos. A gnose não queria para Cristo uma carne real como a nossa, uma carne terrestre, material; mas sim, transparente ao olhar do espírito, inteligível. A questão central debatida nos concílios foi, desse modo, o mistério da Trindade. Como pode Deus se fazer homem através do Verbo fazendo-se carne, e isso numa só e mesma pessoa? Como compor uma existência na junção de duas substâncias concebidas como separadas? Como essa união do Logos a um corpo perecível poderia garantir uma promessa de imortalidade? Os Padres se esforçaram por compreender a natureza da carne de Cristo como igual à da nossa carne, como sendo a mesma. Tertuliano argumenta em seu De Carne Christi que “não há nascimento sem carne nem carne sem nascimento”, e que “o nascimento tem uma dívida com relação à morte”. Pois é nisso que a natureza de Cristo é igual a nossa, em uma carne votada à morte. Se Cristo nasceu, é porque


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sua missão era morrer pela salvação do mundo. Teve de nascer para viver na matéria do mundo, em uma carne terrestre, sentindo as mesmas impressões afetivas que nós sentimos— cansaço e descanso, tristeza e alegria, dor e prazer — , compartilhando assim o destino dos homens. Até morrer, e só então ressuscitar. O verdadeiro motivo da rejeição da heresia é a afirmação fundamental da realidade da encarnação de Cristo, da carne por ele assumida, de tudo que ele sentiu, inclusive a extrema agonia em Getsêmani e o abandono antes de morrer no Gólgota. Do contrário, se a natureza da carne de Cristo fosse outra — celeste, astral, psíquica, espiritual — , a identificação real do homem com Deus estaria reduzida à mera aparência, a uma espécie de mistificação. Como argumenta Irineu, tratar-se-ia de Cristo um enganador, de um impostor, exortando-nos a suportar o que ele próprio não suportou. Para Irineu, a carne é capaz de receber e conter a sabedoria e o poder de Deus que provê a vida, mas que se desdobra na fraqueza. Henry interpreta esta proposição fundamental de Irineu da seguinte maneira: é através da carne, na imanência da Vida, que é comunicada ao homem a Arqui-inteligibilidade da Vida que constitui sua realidade, seu poder e sua fraqueza, sua eternidade e sua finitude. Henry nos propõe, a partir deste outro modo de inteligibilidade, desta Arqui-inteligibilidade da Vida, uma inversão da fenomenologia: a substituição do aparecer do mundo — dado pela intencionalidade da consciência— pelo aparecer da vida — dado pela afetividade transcendental da qual a carne é feita — como princípio fundamental da fenomenologia. E, consequentemente, da ontologia. Nessa inversão, a fenomenalidade do Logos cristão é anterior, primeira, originária; a do Logos grego é posterior, segunda, derivada. De modo que o Logos cristão é a condição de possibilidade do Logos grego. Como isto acontece empiricamente? Para responder a esta questão, o fenomenólogo francês parte do conceito husserliano de impressão. Henry procede a uma análise fenomenológica da impressão — enquanto elemento sensual puro, em si mesmo estranho à intencionalidade — como elemento constituinte da interface fenomenológica entre o aparecer da vida e o aparecer do mundo. Segundo Husserl, a realidade da consciência se divide entre dois elementos distintos: um elemento impressional (material, sensual, não intencional), que denomina elemento hilético; e um intencional, denominado noético. Para exemplificar esta distinção, tomemos o caso da percepção da cor de um objeto qualquer, como a superfície de uma parede vermelha. Enquanto o elemento hilético corresponde à pura impressão subjetiva da cor vermelha, o elemento noético corresponde à área observada da parede. Dessa maneira, a superfície da parede vermelha, exterior a consciência, é tornada visível. Por outro lado, tanto a cor impressional como a intencionalidade que a torna visível, pertencem à consciência. Não é difícil reconhecer aqui a definição de Aristóteles da oposição entre matéria e forma. O olhar intencional atravessa a matéria, composta de impressões, em si disformes, fazendo dela um dado sensível da realidade, in-formando a matéria, dando-lhe o aparecer, fazendo dela um fenômeno. A impressão, assim desvelada pela intencionalidade, é como que arrancada de seu lugar de origem — a carne — para ser lançada sobre o objeto. Deixa de ser percebida como impressão, para tornar-se uma qualidade sensível do objeto. Henry atribui a esse pôr-fora-de-si da impressão a causa da grande ilusão do “mundo sensível”. Trata-se da crença indevida de que a verdade impressional (sensual, sensível) encontra-se no aparecer do mundo, no fenômeno, e não na revelação própria à impressão, a qual é assim ocultada. Um exemplo nos ajuda a entender este tipo de ilusão. É um absurdo atribuir a uma parede, exposta por muito tempo ao sol, a qualidade sensível de “estar quente”, porque “estar quente” é uma impressão — de uma carne que sente


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a si mesma — , e não de um objeto puramente físico, incapaz de sentir a si mesmo. Henry propõe então restituir à impressão a sua essência, isto é, o seu poder de revelação a partir do dar-se a sentir a si mesma, isto é, passivamente, intimamente, no pathos da vida singular de um sujeito, a imanência da Vida absoluta. O autor nos mostra que o deslocamento da impressão para fora-de-si decorre da temporalidade do fluxo da consciência. Lembremos, para compreender este deslocamento, da concepção de Husserl das três formas da intencionalidade — protensão do futuro, consciência do agora e retenção do passado — constitutivas da consciência interna do tempo e do aparecer do mundo. Pois, assim sendo, no instante seguinte em que uma impressão é atual, presentemente vivida, nenhuma parcela da sua realidade própria subsiste. Ela é assimilada a uma consciência retencional, entrelaçada a uma consciência do agora, e ligada a uma protensão. Desse modo, as modalidades impressionais — sensações, emoções, sentimentos, desejos — — da nossa vida são assimiladas a “aparências”, “imagens”, “representações” que povoam a consciência, sem realidade em si mesmas. Com isso, deixa-se de reconhecer a realidade específica da nossa carne, invisível à consciência. Trata-se da realidade de um Si que se experimenta como vivente em meio à indivisibilidade do fluxo de impressões da sua carne, em um estado de afetividade pura anterior a qualquer intencionalidade, enquanto participa do movimento de autorrevelação da Vida absoluta. A inversão da fenomenologia proposta por Henry resulta de uma epochè ainda mais radical do que a utilizada por Husserl para chegar ao mundo-da-vida. Colocando entre parênteses o próprio mundo-da-vida — enquanto mundo representacionalmente constituído que toda consciência encontra, na sua presença originária, e no qual se inscreve — e, com isso, uma fenomenologia confinada ao aparecer do mundo, revela uma fenomenologia anterior, primeira, originária ao aparecer do mundo, que lhe serve como a própria condição de possibilidade. Uma fenomenologia da vida, que se desdobra em uma fenomenologia da carne. Anterior à inteligibilidade da ideia ou do conceito, determinada pela intencionalidade da consciência, há uma Arqui-inteligibilidade, invisível à luz do mundo, fonte única do real enquanto autorrevelação do Verbo de Deus, a qual temos acesso em nós mesmos através da nossa carne, da nossa experiência afetiva, sensível, como viventes. O horizonte de visibilidade do mundo — Logos grego — não é possível a não ser pelo fato da nossa encarnação como filhos de Deus — Logos cristão — , a exemplo da Encarnação do Filho de Deus, do Primeiro Si Vivente, da pessoa de Jesus Cristo. Retornando ao quadro da metafísica aristotélico-tomista, vemos que a fenomenologia da vida não apenas lhe é consoante, como amplia a sua compreensibilidade, explicitando de que maneira se dá empiricamente o pôr-no-ser da criação dos sujeitos (supposituns), e particularmente do sujeito humano e da sua essência como pessoa. À pessoa é dado o poder de, a partir da sua afetividade, do pathos da sua carne, alcançar o Logos, entendido aqui como a inteligibilidade de Deus e da Vida. Com os demais sujeitos vivos, o sujeito humano partilha a mesma Vida absoluta que se autorrevela a cada ente vivo como um se experimentar a si mesmo. Entretanto, diferentemente dos animais (vegetais, bactérias etc), cujas vidas encontram-se limitadas a um puro sentir (experiência patética de si), cujas impressões servem como mero signo de estímulo e resposta na relação com o meio ambiente, a vida do ser humano não se restringe simplesmente ao imediato. A impressividade de seu sentir — o pathos da sua carne — serve de esteio à intencionalidade da consciência, e assim, ao inteligir da realidade. Isso é o que permite ao homem possuir um mundo no sentido próprio, não restrito a um puro meio ambiente, na sua imediaticidade, tal como acontece com o animal. Como dissemos anteriormente, através da ação, o


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sujeito humano sempre transcende o que foi no momento anterior, atuando para além dos seus limites. A transcendência transitiva, decorrente da abertura intencional ao mundo operada pela consciência, leva o homem a perguntar por absolutamente tudo, a desenvolver teorias de tudo, a ampliar sempre mais a sua inteligibilidade do mundo (Logos grego). Por outro lado, a transcendência intransitiva, ligada à afetividade, à experiência do pathos da sua carne, o leva a partilhar os valores da Vida absoluta, encarnando cada vez mais a pessoa que é em si, a exemplo da Encarnação do Filho de Deus, do Primeiro Si Vivente, da pessoa de Jesus Cristo (Logos cristão). Falamos aqui do movimento teleológico da história do ser humano: tornar-se pessoa à imagem e semelhança de Deus na imanência da autorrevelação da Vida. Veremos a seguir de que maneira podemos compreendê-lo como movimento da história filogenética da humanidade, através do qual cada sujeito humano, na sua individualidade, reproduz em sua ontogênese. Trata-se do movimento dialético de um processo de libertação do homem de tudo aquilo que o limita, encerrando-o às contingências do mundo. Partindo da sua condição originária de criatura dotada de livre-arbítrio, o homem é capaz de alcançar, ao longo desse processo, a sua real liberdade. Isso pode efetivamente acontecer pela livre escolha de abrir-se à autorrevelação da vida, de acolher e consentir o que é em si, tendo como modelo Jesus Cristo. Desse modo, o direcionamento do sujeito humano para o mundo tem como alvo a autodeterminação de seu ser como pessoa-espírito: autoconsciente, inteligente e livre. Diferentemente da liberdade absoluta de Deus, a liberdade humana é caracterizada por um paradoxo fundamental: é limitada por uma estrutura corporalbiológica situada em um mundo histórico específico, que em muitos aspectos a condiciona, porém, é capaz de ilimitadamente transcendê-lo e, assim, permanentemente reconstruí-lo; o que equivale a dizer que o espírito humano participa criadoramente da Criação de Deus.

3.4. A história das representações Em seu livro “Genealogia da psicanálise”148, Henry aborda a descoberta fundamental da psicanálise de Freud, o inconsciente, reconhecendo como seus precursores Schopenhauer e Nietzsche. Henry aponta Schopenhauer como o primeiro filósofo a reintroduzir a vida no mundo do pensamento, tal como concebido pela filosofia moderna, apresentando-a como essencial, estranha à esfera da representação. Segundo Schopenhauer, todo o nosso mundo de representações está condicionado por um querer-viver, uma vontade, que é uma força. Mas, uma força cega. A vontade é a coisa em si, a fonte de todo o fenômeno, impulso cego, incontrolável, que apenas ao ascender às suas formas de objetivação, por meio do mundo da representação, adquire conhecimento do seu querer. Influenciado pela concepção de mundo de Schopenhauer, Nietzsche equipara o dionisíaco ao mundo da vontade — em seus termos, vontade de potência — e o apolíneo ao da representação. Enquanto o impulso apolíneo leva ao princípio de individuação, isto é, à luta — ágon — do homem pela afirmação de si como indivíduo através de formas fixas de experiência de vida, representadas pelos deuses olímpicos e seus ideais de beleza, equilíbrio, sapiência, tranquilidade, justa medida; o dionisíaco leva à desmedida — hybris —, destruindo a tendência do eu de tomar as aparências apolíneas como verdades absolutas, possibilitando assim a liberdade, a expansão da vida para além dos

148 HENRY, M. Genealogia da psicanálise: o começo perdido. Curitiba, Editora UFPR, 2009.


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limites estabelecidos por toda e qualquer forma estabelecida. Para Nietzsche, tratam-se dos dois lados de um mesmo movimento de afirmação integral da vida, de um ciclo eterno de vida e morte, de eterno retorno do mesmo. Em Freud, esta força cega aparece denominada como pulsão. Desde o inconsciente, a pulsão impele o homem às suas realizações como ser cultural. Toda a edificação da civilização e da cultura decorre do recalcamento das suas demandas pulsionais. Henry aponta criticamente o fato de Freud, ao vincular o inconsciente à representação, ter desperdiçado a oportunidade de estabelecer o conceito psicanalítico de inconsciente como dimensão alheia a toda e qualquer determinação operada pela consciência, como sendo — a bem da verdade — o seu a priori ontológico. Na seguinte passagem, Henry expressa o que estamos a dizer: É a ausência de toda e qualquer elaboração ontológica da essência da fenomenalidade que leva, correlativamente, à indeterminação total do conceito ontológico do inconsciente e ao seu abandono por Freud em proveito dos diversos conteúdos empíricos que vão tomar o seu lugar e servir para defini-lo: experiências infantis, representações recalcadas, pulsões etc. [...] Que significa, então, o inconsciente do ponto de vista ontológico? Qual o alcance filosófico da psicanálise antes da sua queda no naturalismo ôntico? 149 Há uma ambiguidade do conceito de pulsão da teoria freudiana. Por um lado, a compreensão da pulsão como atividade inconsciente dotada do poder de produzir sintomas psiconeuróticos, sonhos, atos falhos etc, desloca a concepção até então dominante que reduzia o psíquico ao poder da consciência e da representação na direção de um domínio inexplorado, de um ‘inconsciente eficiente’. Com isso, o inconsciente deixa de ser entendido como um vazio, simplesmente uma ausência de consciência, para ser entendido como um jogo de forças, um dinamismo. Nas palavras de Henry, “é o transporte deliberado da força e da potência sob todas as suas formas para fora do campo da representabilidade que é prescrito”.150 Contudo, por outro lado, para Freud, a pulsão adquire existência ou realidade psíquica apenas na condição de estar vinculada a um representante, o que o leva a instituir uma dissociação entre a pulsão e o que a representa na psique, seu representante psíquico. Daí, o surgimento do conceito de “representação inconsciente”. Da perspectiva fenomenológica descoberta por Henry essa conceituação é equivocada, pois deixa de reconhecer a existência ou realidade da pulsão enquanto poder — intangível, invisível — de autorrevelação da Vida, independente de toda e qualquer forma de representação. Tal equívoco pode ser explicado pela incapacidade de Freud e seus seguidores de reconhecer criticamente a limitação epistemológica imposta pelo paradigma da filosofia moderna, que, como vimos anteriormente, encerra a realidade ao campo de representação efetivado pela consciência. Para Henry, o conceito de representação inconsciente se trata de uma aberração na medida em que aniquila justamente aquilo que foi a grande contribuição da psicanálise à ciência: a descoberta do inconsciente como o outro da representação. Assim, a heterogeneidade irredutível do inconsciente se desvanece, este se torna homogêneo à consciência. Vejamos os termos de seu argumento (que inclui a citação de uma passagem da “Metapsicologia” de Freud): Imagina-se que há representações inconscientes porque há recordações nas quais não se pensa

149 Idem, p 327. 150 Idem, p 338.


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atualmente, representações ‘latentes’, ou ainda representações recalcadas: ‘Esta [a representação inconsciente], uma vez recalcada, permanece no sistema Ics como formação real’. Como se estas representações estivessem formadas, existissem a título de conteúdos representativos efetivos independentemente do ato que as forma, portanto, de sua realidade formal.151 Henry chama a nossa atenção, nesta passagem, para um aspecto da maior importância. Não podem existir representações inconscientes — latentes, recalcadas — de algo que não tenha sido de alguma maneira experienciado, mas, tão somente, memórias de acontecimentos formadas no momento de um ato. Perde-se o conceito de inconsciente como o outro da representação, na medida em que se acaba equiparando o que seja o inconsciente com uma forma de memória. Neste sentido, compreende-se o recalcamento — peça mestra da doutrina da psicanálise — como determinado pelo horizonte ontológico de uma metafísica da representação, dentro do quadro teórico da filosofia moderna. Para Freud, de acordo como o “Projeto de psicologia científica”, a pulsão é o representante psíquico de processos somáticos, de energias físicas. De modo que, segundo o modelo da representação, o psíquico é o equivalente, um sucedâneo, um epifenômeno da realidade somática. Com isso, Freud queria preservar a especificidade do psíquico contra toda redução físico-biológica. Sua “solução” foi dissociar os processos psíquicos dos estados físicos postulando-os como modalidades da vida consciencial, fornecendo assim uma chave à sua compreensão, uma vez que a consideração física desses processos não oferece nenhum acesso à qualquer compreensão. Neste sentido, a sua proposta metodológica se volta exclusivamente à abordagem da vida consciencial dos indivíduos. Outro elemento essencial descoberto por Freud é a relação intrínseca da pulsão com o afeto, ou a afetividade. De seu ponto de vista, o afeto é — ao lado da representação — um representante da pulsão. Todavia, o afeto não é inconsciente, nem pode sê-lo. No processo do recalcamento, o sentimento de amor ou ódio, por exemplo, não pode deixar de ser “conhecido”, mas sim o seu sentido, relativo à representação à qual estava primeiramente associado. Portanto, é o sentido ligado a uma representação primeira, original, que se torna “desconhecido”, isto é, “inconsciente”, e não propriamente o sentimento em questão, que continua a aparecer, entretanto, ligado a outra representação. Da perspectiva fenomenológica proposta por Henry, a afetividade é o fundamento do inconsciente e da pulsão, não seu representante. Neste sentido, o que pai da psicanálise descreve é “o processo da própria afetividade no qual, não cessando de se autoafetar e, assim, de aparecer, de ser ‘conhecido’, diz Freud, ela se transforma segundo as modalidades prescritas por sua essência”.152 Pode se falar, assim, que, ao nível ôntico da realidade, acontece uma história da afetividade como um processo no qual determinadas representações ligadas aos afetos são recalcadas, enquanto estes mesmos não são suprimidos, mas modificados qualitativamente. Desse modo é aclarada a relação entre, por um lado, a fenomenalidade da vida, entendida ontologicamente como movimento do auto-aparecer do aparecer de uma afetividade pura, de uma impressionalidade pura, anterior a qualquer intencionalidade e a qualquer representação; e, por outro, a fenomenalidade da ek-stasis, do ser-no-mundo, como história das representações que emergem deste movimento intangível e invisível da vida.

151 Idem, p 339. 152 Idem, p 345.


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O ponto final ou comum de todos os afetos pelo recalcamento não é a supressão dos afetos, mas o declínio das suas potencialidades próprias até o seu desenlace como angústia. Henry destaca o inestimável valor da contribuição de Freud no que se refere à compreensão da angústia, melhor dizendo, da produção da angústia no devir do ser humano. A este propósito, cita as seguintes passagens da “Metapsicologia” de Freud: Quanto ao destino do estado afetivo associado à representação recalcada [...] consiste em suportar a transformação em angústia, qualquer que tivesse podido ser sua qualidade em condições normais. Essa transformação do estado afetivo constitui, sem comparação, a parte mais importante do processo de recalcamento.153 É este [o estado afetivo] que, quando recalcado, encontra-se precisamente substituído pela angústia, qualquer que seja a sua qualidade própria. A angústia constitui então a moeda de troca corrente em que são mudadas ou podem ser mudadas todas as excitações afetivas, quando seu conteúdo foi eliminado da representação e sucumbiu a um recalcamento. 154 Retornemos ainda uma vez ao “Projeto de psicologia científica” para melhor determinar como é produzida a angústia. O “sistema nervoso” ou o “organismo” recebe dois tipos de excitações: do universo exterior, representado pela letra grega — ; e do próprio organismo, pela —. Esta caracterização corresponde, em termos fenomenológicos, respectivamente: a receptividade à ek-stasis, à objetividade do mundo, ao “fora”; e a receptividade ao em si mesmo, à subjetividade absoluta como subjetividade viva, ao “dentro”. Valendo-nos da terminologia de Wojtyla, apresentada em capítulo anterior, a primeira é fonte da ação transitiva; a segunda, da ação intransitiva. Enquanto é possível ao “organismo” subtrair-se a excitação vinda de fora através de uma reação motora apropriada — por exemplo, submergindo sob uma onda do mar que arrebentaria sobre seu corpo —, não é possível se subtrair a excitação vinda de dentro, pois não é possível desenvolver uma separação de si mesmo, escapar-se de si mesmo. Este tipo de excitação que vem do interior do próprio organismo corresponde ao que Henry denomina como o pathos da vida, como algo que temos de passivamente sofrer de modo necessário, inalienável, irrecusável. “Ela é o próprio afeto como sobrecarregado de si, suportando-se a si mesmo e não podendo escapar de si — como essência da vida”. 155 Segundo Freud, o que pode suprimir temporariamente esta necessidade é a sua satisfação. Na conceitualização do “Projeto”, há uma quantidade de energia investida no sistema — a própria energia da vida, nos termos de Henry — que não pode ser eliminada totalmente (pois isso seria a morte), mas pode ser reduzida a um nível mais baixo possível, o que é sentido pelo organismo como um prazer, ao passo que seu aumento ou sua manutenção em um grau elevado provoca o desprazer. Daí o regime que governa o destino da pulsão ser o que foi denominado por Freud “princípio do prazer”. A atividade dos aparelhos psíquicos, e desse modo, o controle das excitações, se encontra submetida ao princípio do prazer. O recalcamento é dirigido por uma fuga diante do desprazer, ao nível da vida consciencial, não propriamente ao acréscimo da excitação (seu equivalente físico-biológico). Assim, não se deve confundir o físico e o psíquico, como se o psíquico pudesse ser reduzido ao físico. O próprio Freud, em “O problema econômico do masoquismo”, relativiza a tese do “Projeto” para reconhecer que o prazer pode corresponder a um aumento de tensão

153 Idem, p 346. 154 Idem, p 346. 155 Idem, p 351.


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e o desprazer, a uma diminuição. A tensão em questão se trata mais propriamente de um sentimento de tensão, fenomenologicamente descritível, e não de uma quantidade fisicamente mensurável. A regulação do movimento prazer-desprazer assim se traduz por “uma dialética da própria afetividade e nela se absorve por completo”. 156 Em “Para além do princípio do prazer”, Freud introduz uma nova pulsão: a pulsão de morte, que se manifesta como compulsão de repetição, como retorno do recalcado, visando restabelecer a inércia da vida orgânica, e em último caso, o estado de inorganicidade. Retoma aqui, mais uma vez, o ideal cientificista do “Projeto”, de quantificação das energias investidas no sistema neuronal, neste caso, com o recurso do princípio da entropia, que postula a tendência para o estado Q = 0, isto é, para a gradativa liquidação da energia (libido) até a sua total abolição. Para que o princípio do prazer possa operar é preciso que a energia livre do organismo esteja previamente vinculada a uma compulsão de repetição (pulsão de morte). Sendo assim, de acordo com a interpretação de Henry, “o prazer é justamente a experienciação interior dessa autodestruição em seu cumprimento, a sua fruição é como que o consentimento secreto da vida à morte”. Em vez de se opor ao princípio do prazer, a pulsão de morte é idêntica a este. O movimento da fruição da vida nada mais é, portanto, que o seu retorno ao inorgânico. Nas palavras de Henry: Freud não tem cura”. 157 “Não apreendeu da vida mais que seu fundo obscuro, esse lugar das primeiras angústias no qual, encurralada contra si mesma, seu único sonho é fugir de si. Seguiu o caminho da liquidação de si até o final, não reconhecendo na vida mais que esse rosto atroz da pulsão de morte, presente desde o ‘Projeto’ de 1895. 158 Falávamos a pouco de uma história das representações que emerge do movimento intangível e invisível da vida. Segundo Freud, pelo que acabamos de mostrar, as representações que o indivíduo humano produz em sua vida são determinadas desde a pulsão, a libido, e desse modo, desde a formação do inconsciente, que ocorre tanto através do recalcamento como do retorno do recalcado. Acrescentemos agora a hipótese de que esta história se inicia a partir da formação de uma primeira representação ligada a uma experiência primitiva de satisfação que suprime uma angústia primordial. Toda uma série de representações subsequentes advém, assim, desde uma primeira representação, compreendida como representação originária do processo de ontogênese da vida consciencial de um indivíduo humano, isto é, de sua história de vida. Uma segunda hipótese decorre logicamente desta primeira: que o processo de filogênese da vida consciencial da humanidade é análogo ao que ocorre ao nível da ontogênese de cada indivíduo, tal como o descrevemos. O processo de exteriorização da vida humana como ser-no-mundo, portanto, como ser histórico, desde a sua origem imemorial, advém, neste sentido, de um insuperável malestar, de uma tendência cujo destino é o de retornar permanentemente ao estado de insatisfação, todavia, aliviada por momentos transitórios de satisfação. Na expressão emblemática de Henry, “a intuição oculta no freudismo, segundo a qual toda a vida é infelicidade, [...] [é a de que] o inconsciente como tal está separado da realidade e, desse modo, é desejo, e desejo sem fim”. 159

Mas, esta versão da história da vida humana corresponde a toda verdade? O desejo humano como

156 Idem, p 350. 157 Idem, p 355. 158 Idem, p 356 159 Idem, p 342..


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manifestação da força, do poder da vida, é realmente — como procura demonstrar Freud, na esteira de seu precursor Schopenhauer — uma força cega, que confina o homem a uma infindável busca de experiências de satisfação, que se limita ao trabalho de reinvestimento do que já foi uma vez representado, não fazendo mais do que ressignificar, a cada momento, a experiência original de satisfação, o vínculo já estabelecido? Será mesmo que a vida humana, desse modo, se limita a se fazer acompanhar por um cortejo de representações que não possuem em si sentido algum além de escapar da sua infelicidade? E se não é de fato assim, como é então? É preciso compreender que esta interpretação da vida humana, e antes, da vida em seu todo, é produto de um pensamento determinado pelo horizonte ontológico da filosofia moderna, de uma metafísica da representação que o impede de ir além do solipsismo da consciência. O cerne do problema está no fato de que a realização do desejo, limitada ao horizonte da representação, não traz em si o momento da realidade, melhor dizendo, da existência. Trata-se, por isso, de uma pseudorrealização, isto é, de um movimento de reprodução sem fim — retorno do recalcado — de algo passado, no qual o indivíduo permanece fechado à realidade, a um só tempo, de si mesmo, do outro (enquanto um tu) e da vida em seu todo. Nessa pseudorrealização, o eu permanece identificado a representações — imagens idealizadas de si — que o mostram em algunas de seus aspectos ao mesmo tempo em que o mascaram, impedindo-o de se revelar como a pessoa que é em si. Tudo isso ocorre dentro de um domínio imaginário, constituído por uma profusão de símbolos e fixações imaginárias que não lhe fornecem mais do que espelhos fantasmagóricos, nos quais o seu eu jamais verdadeiramente está. O grande problema está no fato de que, imerso dentro desse horizonte ideológico-cultural, o indivíduo é impelido a não compreender a natureza do seu desejo. É preciso superar criticamente todo tipo de ideologia para que possamos voltar a sentir a impressividade de nosso sentir como a matéria-prima que nos é dada à experiência como pathos da vida, conduzindo-nos a partilhar os valores da Vida absoluta. Apenas desse modo encontramos a via que possibilita a nossa realização como pessoas aptas a participar livre e ativamente do movimento teleológico da história da humanidade: tornarmo-nos filhos de Deus. Mas, como fazer isto na prática? Como pode o indivíduo descobrir a si mesmo, ou melhor, participar da criação de si mesmo como pessoa em meio à profusão de fixações imaginárias com as quais se depara no horizonte do mundo? Se, por um lado, Freud estava certo em vincular o tratamento do indivíduo tomado por sintomas psicopatológicos — o mesmo que dizer, por fixações imaginárias — à análise do desejo (pulsão), reconhecendo a sua proveniência no corpo; por outro lado, errou, ao reduzir a pulsão às energias investidas no sistema neuronal, aos processos somáticos reduzidos ao nível físico-químico. Reduziu assim a força, o poder, a energia da vida, ao que Henry chama de corpo orgânico. Contudo, a força da vida possui outra origem: o corpo absoluto. Avancemos, então, um pouco mais, através da abordagem da questão do corpo articulada por Henry, pois o corpo é a chave da resposta para a questão do desejo e, desse modo, do destino humano. Em seu livro “Filosofia e fenomenologia do corpo”, Henry procede a uma análise fenomenológica da ação, mostrando que esta permanece sempre na esfera da imanência, isto é, jamais “sai de si mesma”. Daí


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afirmar que a ação “não é uma vida que se representa a si mesma, mas uma vida que age”. 160 Isso implica, no caso da ação humana, que é o eu ou a pessoa que ao sair de si mesmo, se representa a si mesmo; não a ação. Conclui então que a ação é uma modalidade da subjetividade absoluta, é uma “essência subjetiva”. Lembremos, de passagem, que tal concepção coincide com a demonstrada por Wojtyla, de que a ação revela a pessoa. Toda esta análise nos permite reconhecer que há uma diferença entre um corpo subjetivo e um corpo objetivo, pois, o corpo que age — corpo subjetivo — não é o corpo representado — corpo objetivo. O corpo subjetivo é o conjunto de nossas potencialidades que são atualizadas no momento da ação como poder, força, forma efetiva e eficaz de energia. Trata-se do “eu posso” que nos faz, por exemplo, agarrar algo com as mãos, ouvir sons com os nossos ouvidos, ver cores como os nossos olhos. O corpo objetivo, por outro lado, é o que aparece no mundo como uma pluralidade de atos corporais, e desse modo, como representações. Segundo Henry, o corpo deve ser abordado ainda por outras duas perspectivas fenomenológicas: a de um corpo orgânico, e a de um corpo absoluto. Henry não credita ao corpo orgânico, entendido como locus das estruturas somáticas e dos processos físico-químicos, a proveniência da força, da potência, da energia que o faz agir. Tal proveniência encontra-se, antes, no que denomina corpo absoluto. Este não tem mãos, ouvidos ou olhos, pois não se trata de algo ôntico, com propriedades empíricas. Trata-se de um Arqui-Corpo: um corpo originário, subjetivo, portador de uma Arqui-inteligibilidade na qual toda a Potencialidade do Ser encontra-se implicada. É o Arqui-Corpo do Primeiro Si Vivente, revelado em sua perfeição na Encarnação de Jesus Cristo — Logos cristão. É devido a esse corpo absoluto, enquanto essência de toda subjetividade, que a nossa ação nos é revelada em primeira pessoa como pathos da vida; é nele onde reside a sua fundação existencial. O corpo entendido, portanto, como essencialmente subjetivo — como um “eu posso” (potencialidade) que se atualiza na ação, cuja materialidade e substancialidade não deve ser confundida com a do corpo orgânico —, é uma modalidade da vida da subjetividade absoluta. Numa antropologia cristã, o corpo subjetivo recebe o nome de carne. Para concluir, respondamos à última questão levantada. A força da vida não é cega como pretenderam Schopenhauer e Freud. Há nela um sentido, uma teleologia que nos conduz a transcender o horizonte irremediavelmente fragmentado das representações que o homem produz em seu ser-no-mundo, para aquém ou além da relatividade fantasmagórica, infeliz, impotente e vazia de uma vida limitada a este horizonte. É através da experiência do nosso corpo em ação, da sua força, do seu poder, em meio ao pathos da vida, que descobrimos o nosso verdadeiro eu, desvencilhando-nos de toda e qualquer fixação imaginária, de toda e qualquer idolatria — em termos religiosos. Religamo-nos à Vida absoluta, encarnando os valores absolutos — da verdade, do bem, da beleza — que se encontram como potencialidades (inconscientes) no pathos da vida. Caminhamos rumo à nossa plena realização como pessoas, e, desse modo, a uma vida plena de sentido.

160 HENRY, M. Filosofia e fenomenologia do corpo. São Paulo, É Realizações Editora, 2012, p 245.


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3.5. O dinamismo das potências divinas Para melhor compreendermos o dinamismo intrínseco à ação humana e a história das representações, recorreremos a uma outra referência filosófica que se coaduna perfeitamente ao quadro ontológico aqui articulado, sobretudo, pelo seu existencialismo realista: a filosofia positiva de F. W. J. Schelling. Este autor, participante junto a Fichte e Hegel do movimento conhecido como idealismo alemão, ocorrido na primeira metade do século XIX, propôs a compreensão da história da humanidade enquanto manifestação do dinamismo das potências divinas na constituição e desenvolvimento da consciência do sujeito humano. Ampliamos desse modo o quadro ontológico que já contava com as abordagens fenomenológicas de Wojtyla e Henry, com a abordagem de Schelling, que também pode ser considerada fenomenológica avant la lettre. Comecemos com uma breve apresentação da filosofia positiva de Schelling. O autor estabelece uma divisão da filosofia como um todo em duas vertentes: a filosofia negativa, da qual foi partidário na primeira fase do longo itinerário de sua obra, que se inicia em 1795 com a adesão ao idealismo subjetivo, passando posteriormente pela elaboração das filosofias da natureza, filosofia da identidade e filosofia da arte; para então apresentar, a partir de 1821, a sua última filosofia — spätphilosophie — como filosofia positiva, que inclui as suas filosofias da mitologia e da revelação. Do início ao fim da sua atividade filosófica, Schelling buscou resolver o problema da dualidade que, conforme mostramos em capítulo anterior, foi implantado no período moderno por Descartes e Kant, tornando-se a grande aporia da filosofia. O momento de inflexão do pensamento Schelling, a partir do qual ele passou a articular a sua filosofia positiva, ocorreu com a compreensão de que o pensar filosófico, desde a sua origem entre os gregos antigos, se distingue entre dois modos de colocar o princípio ou fundamento do questionamento acerca da realidade: por um lado, postulando o ser como pura essência, totalmente acabada, existindo por si, e elevando-se a existência necessária; por outro, assumindo como ponto de partida a efetiva existência das coisas, a pura existência, a exterioridade radical. Os dois modos são distintos, mas intrinsecamente relacionados e complementares, uma vez que a realidade é uma só. Numa metáfora, seriam como os dois lados de uma mesma moeda. No contexto da filosofia moderna, posterior a Kant, o primeiro modo corresponde à negação das diferenças particulares — ou subjetivas — da experiência, com o propósito de entender a natureza a priori da consciência humana; enquanto, o segundo modo, corresponde à compreensão dos aspectos particulares da existência como manifestações positivas da ordem essencial, vislumbrada pelo primeiro modo. Dito de outra maneira, enquanto o primeiro modo nega a pluralidade — aparências — a fim de entender a unidade — essência —; o segundo pressupõe a verdade da essência no intuito de entender as coisas e eventos particulares como aparências verdadeiras dessa unidade.161 O primeiro modo é definido por Schelling como filosofia negativa, pois parte da negatividade do conceito, e não da positividade do próprio existir, que define o segundo modo, o da filosofia positiva. Reconhece na sua filosofia da identidade, articulada na primeira fase da sua obra, um exemplo de filosofia negativa. Daí ter proposto a sua última filosofia como filosofia positiva, de modo a complementar o escopo da sua filosofia inicial.

161 DAY, J.“Voegelin, Schelling, and the philosophy of historical existence”. Univesity of Missouri Press, Columbia, Missouri, 2003, p 128.


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A filosofia da identidade de Schelling, de 1804, parte do conceito da essência da realidade como uma unidade dos opostos — sujeito-objeto, espírito-natureza, necessidade-liberdade —, enquanto totalidade concreta. Esse princípio — o Absoluto — não é nem subjetivo nem objetivo, mas identidade do subjetivo e do objetivo. Procurou assim, a partir do conceito de Absoluto, suplantar a dualidade implantada pela filosofia moderna. A sua iniciativa foi pioneira no contexto do idealismo alemão, sendo anterior à de Hegel. Mas, a tempo, percebeu que a mesma não lograra o êxito almejado. O texto de sua autoria “História da filosofia moderna – Hegel”162, de 1827, apresenta uma linha argumentativa de especial relevância para a explicação da sua transição da perspectiva negativa para a positiva. Buscou neste texto aclarar a necessidade da filosofia positiva contra o plano filosófico de Hegel exposto na “Ciência da Lógica” de 1812. Procuremos, a seguir, refazer os passos principais da sua linha argumentativa. Logo no primeiro parágrafo do texto supracitado, Schelling situa o horizonte da sua argumentação: “o ponto no qual toda filosofia sempre se encontrará ou em concordância ou em conflito com a consciência humana universal é o modo como ela se explica sobre o supremo, sobre Deus”.163 Ao longo da tradição filosófica, Deus sempre ocupou o lugar de resultado, de ideia suprema, conclusiva. Inclusive para Kant, é entendido como ideia necessária para a conclusão formal do conhecimento humano. Schelling admite ter adotado em sua filosofia anterior — filosofia da natureza e filosofia da identidade — o mesmo processo de entendimento. Ressalta, contudo, que, mesmo neste primeiro desenvolvimento da sua filosofia, Deus não aparece como mero resultado de um processo objetivo, isto é, como objeto; mas, como sujeito, “como aquele que estava também no começo, e que, portanto, aquele sujeito, que passa através do processo inteiro, no começo e no prosseguimento já é Deus, antes de, no resultado, ser posto também como Deus, [...] fora de sua divindade [...] como um outro do que si mesmo”. 164 Refere-se aqui à diferença entre a ideia ou conceito Deus, posto pela consciência humana como resultado de um longo processo cognitivo de racionalização de Deus, através do qual a sua ideia aparece como lógica; e Deus em sua existência própria, anterior à consciência humana. Compreende-se, neste sentido, a crítica que Schelling desfere contra Hegel: o fato de que, no sistema hegeliano, Deus não ter outro lugar além de ser colocado como conceito. A filosofia negativa adquire com Hegel a sua formulação mais radical, na medida em que retira de Deus o seu poder e liberdade como sujeito criador do universo, o seu lugar como primeira pessoa da Trindade. “Deus não é nada outro do que o conceito, que gradualmente se torna ideia autoconsciente, como ideia autoconsciente se destitui na natureza retornando desta a si, se torna espírito absoluto”.165 Neste caso, o movimento do conceito corresponde à atividade universal absoluta, o verdadeiro criador é o conceito. “Hegel retorna, pois, ao mais negativo de tudo o que se deixa pensar, ao conceito, [...] tão livre como possível de toda determinação subjetiva, nessa mediada o mais objetivo [...]. E esse conceito para ele é o do ser puro”.166 De modo que a representação inteira do processo dialético descrito na “Ciência da Lógica” de Hegel “é ilusória, e propriamente não aconteceu nada, tudo se passou somente no pensamento, e esse movimento inteiro era propriamente apenas um movimento do pensar. [...] não se trata de modo nenhum de existência, daquilo

162 SCHELLING, F. W. J. Obras escolhidas / Friedrich von Schelling; seleção, tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; coleção Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1984. 163 Idem, p 157. 164 Idem, p 157. 165 Idem, p 159. 166 Idem, p 160.


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que efetivamente existe e, portanto, tampouco de conhecimento nesse sentido, mas somente das relações que os objetos assumem no mero pensar”. 167 Ou seja, a dialética hegeliana não se presta a conhecer o que efetivamente existe, os processos reais da história, pensados a partir da existência de Deus; limita-se a ordenar o desdobramento das categorias do pensamento de uma perspectiva lógica. Isso porque “os conceitos como tais não existem de fato em parte nenhuma a não ser na consciência, são, pois, tomados objetivamente, depois da natureza, não antes dela; Hegel retirou-os de seu lugar natural, ao pô-los no começo da filosofia”. 168 Teria assim o dever de se confessar como filosofia meramente negativa, de admitir o limite de seu escopo, de abandonar a pretensão infundada de se fazer passar pela “filosofia absoluta”, que não deixa nada fora-de-si, de modo a abrir espaço para a filosofia que se refere à existência, isto é, para a filosofia positiva. Schelling propõe, desse modo, a complementaridade das perspectivas “pois o negativo, o pólo negativo, em sua pureza, não pode estar em parte alguma sem exigir, prontamente, o positivo”.169 Tendo esclarecido este ponto, Schelling trata de reabilitar a sua filosofia da identidade de modo a torná-la o fundamento da sua filosofia positiva, articulada nas formas das filosofias da mitologia e da revelação. Explica que, na sua formulação inicial, a filosofia da identidade tomou como ponto de partida o Absoluto enquanto sujeito-objeto fora de nós, independente de nós, isto é, o sujeito objetivo primordial, o subjetivo em sua plena objetividade. Não corresponde, portanto, de forma alguma, ao objetivo entendido como conceito, tal como o de ser puro de Hegel. Diferencia-se também do eu de Fichte que é somente, para cada um, o sujeito de sua própria consciência. “Fichte deseja como começo algo imediatamente certo. Este era para ele o eu, do qual ele queria assegurar- se por intuição intelectual como de algo por imediatamente certo, isto é, de algo indubitavelmente existente”. 170 Contudo, para Schelling, o que é retirado da intuição intelectual, por abstração, não é o nosso eu pessoal, mas o sujeito-objeto liberto de toda subjetividade, o conteúdo universal de todo ser. 171 O Absoluto, como unidade-totalidade originária, não é nem sujeito perante si mesmo, nem objeto para si mesmo, de tal modo que o sujeito e o objeto não são fundamentalmente diferentes um do outro; o Absoluto é essa indiferença mesma. Deve, portanto, haver um movimento de progressão do Absoluto à subjetividade da consciência humana — isto é, do sujeito objetivo primordial à consciência de que somos um eu, um sujeito —, cuja inteligibilidade possa ser articulada como processo objetivo, real; não como mero movimento do pensamento. Resta então a Schelling explicar como o Absoluto sai da sua indiferença para tornar-se o mundo finito, até a emergência da consciência humana. Esta é a tarefa da filosofia positiva. Neste sentido, propõe tratar da história mundial como o caminho percorrido pela própria consciência, desde seus primeiros passos, na natureza, portanto, na esfera do empírico, “até o ponto em que o sujeito, que passou através da natureza inteira, que chegou a si, que possui a si mesmo (o eu), por certo não encontra mais os próprios momentos anteriores deixados para trás na natureza, mas encontra os conceitos deles [...] dos quais a consciência agora põe e dispõe, como de uma posse inteiramente independente das coisas e que ela aplica por todos os lados”.172 O início desse processo, que põe em relação o Absoluto e a consciência humana, é descrito como o momento da emergência da consciência da humanidade enquanto processo mitológico. A partir daí, a identidade indiferenciada originária começa a se manifestar através da diferenciação dos pares de opostos sujeito-

167 Idem, p 158. 168 Idem, p 166. 169 Idem, p 158. 170 Idem, p 170. 171 Idem, p 170. 172 Idem, p 166.


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objeto, espírito- natureza, necessidade-liberdade, infinitude-finitude, transcendência-imanência, e assim por diante. Schelling argumenta que a mitologia não se trata exatamente de uma infantil descrição antropomórfica da natureza, de personificação de fenômenos naturais, de mero conhecimento alegórico, conforme apregoavam muitos dos seus contemporâneos; mas, advém do original e imemorial ato constitutivo da autoconsciência ou consciência de si dos sujeitos humanos, estando ligada à gênese da linguagem e das primeiras formas de vida adotadas pelos mesmos. A originalidade da concepção de mito de Schelling é a de que este é uma realidade objetiva, não sendo alegórico, mas sim tautegórico, isto é, expressão daquilo que é, afirmação de si mesmo, autoexplicação. Logo, para se compreender um mito não se deve buscar um sentido oculto nas representações mitológicas, mas tomá-las tais como se apresentam, em seu sentido próprio. Schelling aproxima-se assim, metodologicamente, da atitude fenomenológica. Encontramos na citação do autor por J-F Courtine, o pressuposto fundamental da sua interpretação: “a mitologia contém a sua própria história e não precisa de outros pressupostos; ela se explica perfeitamente sozinha, e os mesmos princípios que constituem materialmente seu conteúdo são também as causas formais de sua geração inicial e de sua origem”.173 Ela deve ser apreendida em sua coesão interna, sendo que nenhum elemento pode receber sentido se for tomado separadamente. A mitologia na sua progressão, na qual as figuras divinas — entre deuses, deusas e heróis — se sucedem ou se substituem umas às outras, remetem-se umas às outras, formando um sistema, de modo a podermos apreender a necessidade natural de seu desenvolvimento. Isso se deve ao fato dela pôr em cena os princípios — as potências divinas, como veremos a seguir — que comandam o seu aparecimento e a sua história. Neste sentido, os deuses não são figuras abstratas, mas fatos concretos da consciência humana, realidades psíquicas que apareceram historicamente aos sujeitos humanos a partir das suas interações com a natureza, com os outros e com Deus. Ainda nas palavras de Schelling, “a mitologia não pode se explicar, ela mesma, no começo, ela não pode conceber seu próprio começo, mas somos nós que o explicamos, assim como a mitologia chegada a seu fim e tornada consciente de si mesma o explicou”. 174 Isso quer dizer que é só a posteriori, considerando o conjunto dos fenômenos, as etapas sucessivas do processo, que adquirimos um ponto de vista privilegiado para explicá-la desde o seu começo. Schelling se refere aqui, especificamente, ao ponto de vista alcançado pela doutrina dos mistérios de Elêusis e da Samotrácia, que revela o sentido da sucessão histórica dos deuses, deusas e heróis da mitologia grega. O autor ainda nos mostra que, entre todas as mitologias desenvolvidas em outros povos, apenas a mitologia grega progrediu de modo a desvendar a sua autoexplicação a quem participasse dos rituais concernentes a estes mistérios. Para interpretarmos o desenvolvimento histórico da mitologia, que, como acabamos de dizer, pode ser apreendido de modo exemplar na mitologia grega, precisamos entrar agora na teoria das potências divinas de Schelling. O termo potência é empregado com o significado de “poder- ser”, no mesmo sentido de Aristóteles. O processo da consciência humana se dá pelo desdobramento das potências divinas, isto é, das potências originariamente presentes em Deus, como processo teogônico na forma de mitos, melhor dizendo, de uma sucessão de mitos. Detenhamo-nos em descrevê-lo sucintamente a partir da cosmogênese, isto é, da criação divina do universo material.

173 COURTINE, J-F. A tragédia e o tempo da história. São Paulo, Ed. 34, 2006, p 218. 174 Idem, p 219.


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Deus criou o universo material, não por necessidade, mas, pela sua livre decisão, estabelecendo uma divisão em sua própria existência, isto é, criando dentro de Si mesmo uma subdivisão em relação a Si mesmo, chamada transcendência. Isso significa que Deus permanece como tal, isto é, como transcendência, relativamente ao universo material, que passa, desde a sua origem, a evoluir temporalmente como parte de Si, como Sua imanência. Não se trata, portanto, de uma transcendência absoluta de Deus, mas de uma transcendência relativa à imanência do universo material. Esse processo substancial acontece em estágios de desenvolvimento regidos pelas diferentes potências divinas. Daí a imanência do processo cosmogônico se tratar na verdade de um processo teogônico, que vai desde o surgimento da matéria e da energia, à formação dos elementos químicos, das galáxias, do planeta onde vivemos, da vida das plantas e animais, até à nossa existência como humanos. Encontram-se originariamente presentes em Deus três potências: A1, A2 e A3. Essas potências não são possibilidades para um mundo futuro, mas, antes, possibilidades para Deus. Se fosse o primeiro caso, a criação do mundo não teria sido uma decisão livre de Deus. Enquanto possíveis determinações do ser, não mostram o que o ser é, apenas o figuram, sendo necessária a atualização do processo substancial, que acontece em fases ou estágios sucessivos regido pelo dinamismo (jogo de tensões) entre as mesmas para que o ser efetivamente exista. Deus, em Si mesmo, na Sua transcendência, como acabamos de dizer, se diferencia desse processo, recebendo a denominação Ao. Pode-se dizer, neste sentido, que as potências A1, A2 e A3, encontrando-se em Ao, são transcendentes ao processo substancial. O processo tem início com o prius (Ao) — que na filosofia da identidade é chamado de Absoluto —, com a saída da sua indiferença, de seu relativamente puro não ser, como “o que atrai” (A1), isto é, como aquele “que quer a si mesmo como si mesmo, [...] o sujeito anteriormente indiferente em sua, doravante, atração-de-si-mesmo”.175 Nessa auto-atração, “o atraído” (B), é o ser que se configura materialmente como natureza. “O que atrai” (A1), por ter atraído o ser, posto por ele mesmo fora-de-si, e desde então, ligado com esse ser, é o primeiro objetivo — primum Existens — o Real. Dá-se, assim, a origem da diferença primordial: a identidade, constituída como unidade fundamental (Ao), se subdivide, isto é, se diferencia, se atualiza como natureza, constituindo-se como a dualidade fundamental (A1 — B), portanto, como o Real, como aquele que se torna sujeito na medida em que se torna objeto de si, e desse modo, como algo necessariamente delimitado, restringido. A atualização de B é relativa porque retém sua potencialidade diante das outras potências. O jogo dialético de tensões entre as potências assim se estabelece: na medida em que B se torna atual, como antítese material do espírito (A1), a tese espiritual (A2) e sua síntese (A3) são instantaneamente implicadas.176 O infinito se “finitiza”, ocultando-se como o interno da exterioridade. O processo substancial, iniciado a partir da primeira potência (A1), entendida como o querer a priori, anterior a qualquer determinação, portanto, como vontade, progride na medida em que o sujeito (A1 — B) se eleva às potências superiores (A2 e A3) ligadas ao desenvolvimento da interioridade e da espiritualidade. Neste sentido, para Schelling a natureza não é Deus, não cabendo classificar o seu sistema como panteísta. A natureza é o que, por um lado, resiste à revelação do espírito, e por outro, vai progressivamente adotando cada uma das formas objetivas encontradas no universo material, desde as formas inorgânicas dos átomos e moléculas químicas, da escala evolutiva dos organismos vivos, até a emergência da consciência

175 Idem, p 160. 176 Day, J. Op cit, pp 139-140.


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humana e a sua história. Nessa progressão dialética, a natureza vai adotando propriedades espirituais sempre superiores. O grau seguinte sempre acaba por fixar o anterior, e isso acontece necessariamente até que seja engendrada a totalidade das formas objetivas. De modo que o movimento não repousa até que o objeto tenha se tornado inteiramente igual ao sujeito. Compreende-se assim o processo substancial como a progressiva subjetivização da natureza até a consciência humana, criada à imagem e semelhança de Deus. Porém, cumpre-se ressaltar que, diferentemente do sistema de Hegel, a progressão não termina com um fim da história, o que equivale a dizer, com a completa elucidação do conceito de puro ser. Como não é o conceito de puro ser que fundamenta o processo, mas, o Deus vivo, em Seu incomensurável mistério, este processo é infinito. Isso implica que, mesmo sendo possível ao homem transcender infinitamente a sua consciência atual a graus espirituais sempre mais elevados, por mais que esse grau se eleve, Deus permanecerá eternamente transcendente à consciência humana. Portanto, o homem jamais alcançará a plenitude infinita de Deus, jamais será Deus. Passemos então ao estudo da origem e desenvolvimento da consciência humana. A tese de Schelling é a de que esta, desde a sua origem natural entre os hominídeos, há cerca de cem mil anos, reproduz em sua evolução temporal o dinamismo das potências divinas na cosmogênese (tal como o que sucintamente acabamos de descrever). A antropologia schellinguiana se propõe, desse modo, a estudar a evolução da humanidade através da história da consciência humana, a partir do seu fundamento ontológico — o Deus vivo —, constatando que esta se origina empiricamente, com o surgimento da representação mítica e, portanto, como fenômeno primariamente religioso. Com esse passo metodológico, Schelling deixa o campo estrito da especulação metafísica para incluir o campo da experiência que o homem faz de si mesmo, segundo a perspectiva das filosofias da mitologia e da revelação. A filosofia positiva chega à religião, portanto, da mesma maneira que chega à natureza real, ao homem real, à consciência real; em uma palavra, enquanto fenômeno, em seu contexto empírico, histórico. Quer dizer, não toma a religião como fonte de autoridade, mas como objeto qualquer, em relação com todos os demais objetos. De modo que tal filosofia não deve ser compreendida como “religiosa”, no sentido de “revelada”, mas como “científica”, pelo fato de eleger um objeto — o fenômeno da revelação divina —, cujo estudo empírico pode ou não confirmar o seu pressuposto ontológico. Neste sentido pode ser considerada fenomenológica avant la lettre. Schelling pressupõe que, em um primeiro momento, a consciência humana encontra-se identificada à potência Ao. Trata-se de um momento real, porém, metaempírico e supra-histórico, posto que préreflexivo, isto é, anterior à experiência autoconsciente, à capacidade de conhecer-se como um eu objetivo. Dito de outro modo, o homem não tem ainda neste momento a consciência de si mesmo, mas a consciência em sua pura substancialidade, vivendo como uma arquiconsciência abismada na contemplação de Deus, cuja vontade está em repouso.177 Nos termos ontológicos de Schelling, o homem nesta circunstância “é a consciência de Deus, ele não tem essa consciência, ele é essa consciência, e é justamente por este não ato, por esse não movimento que ele coloca o verdadeiro Deus”.178 Uma humanidade existe primordialmente em uma completa identidade inconsciente com a natureza divina, não tendo nem consciência de si nem do divino. O homem não só desconhece ser a consciência de Deus, como também, por isso mesmo, não

177 COURTINE, J-F. A tragédia e o tempo da história. São Paulo, Ed. 34, 2006, p 234. 178 AZEVEDO, C. A. A spätphilosophie de F.W. Schelling e o desdobrar da consciência humana. Kriterion, Belo Horizonte, no 130, Dez./2014, p 557.


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a deseja ou intenciona. Tal estado é algo que simplesmente lhe foi dado, e nele vive em seu completo desconhecimento. Em termos teológicos, isso equivale a dizer que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. A origem empírica e histórica da consciência humana, tal como a conhecemos e experimentamos, advém como um segundo momento, marcada pela separação sujeito-objeto — pela intencionalidade, em termos fenomenológicos. A passagem é regida pela atualização da potência A1, que no primeiro momento encontrava-se em estado potencial, indiferenciada, enquanto poder-ser que conduz à autoconsciência. Para a arquiconsciência do homem não havia separação, mas, uma não-separação sujeito-objeto. A consciência humana surge justamente com esta separação, que nada mais é do que o resultado da operação de voltar a si, como sujeito, tornando-se para si um objeto. O homem histórico surge devido a esta operação da consciência, tornando-se capaz de se reconhecer como um eu na dimensão da temporalidade e da finitude, isto é, como ser- no-mundo. O movimento da arquiconsciência original do homem para a consciência tal como a conhecemos, marcada pela separação sujeito-objeto, é decorrente de um acontecimento real, denominado por Schelling como Abfall — Queda. Como é sabido por todos, o livro bíblico do Gênesis é um relato sobre as origens do mundo e da humanidade, em que é narrada a criação do homem e, subsequentemente, a sua queda. Deus aparece na narrativa do Gênesis como divindade única, criador de toda a natureza e do homem. A humanidade é o centro da criação, feita à Sua imagem e semelhança. Há um projeto de Deus para a humanidade representada pela figura do primeiro homem, Adão, e da primeira mulher, Eva: agir conforme a Sua vontade a fim de partilhar a vida fraternalmente em sua plenitude. Dá-se então a queda. Ao desobedecer a Deus, sob a sedução da serpente, comendo o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, Adão e Eva são expulsos de seu lugar de origem, o Éden, e assim destinados a conhecer a escravidão e a morte. Trata-se evidentemente de um mito, não de uma história real. Mas, como vamos mostrar a seguir, todo mito é uma narrativa simbólica de um acontecimento real. Schelling utiliza este mito para exemplificar o momento da emergência da autoconsciência humana na natureza (A1 — B). A queda corresponde ao momento em que Adão e Eva — representação do homem original — provam do fruto proibido, e são, por esse motivo, expulsos do Éden — representação da arquiconsciência humana — por Deus. Contudo, Schelling não se contenta em apresentar a narrativa judaico-cristã como único exemplo, estabelecendo paralelos com outras mitologias, mostrando que a mesma noção aparece também na mitologia grega, assim como em narrativas de outras proveniências, tratando-se de uma noção universal. Lê-se no texto bíblico que a serpente seduz Adão e Eva a se tornarem como Deus (Gênesis: 3,1-5). Vejamos o texto integral referente a esta passagem: A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus havia feito. Ela disse para a mulher: “É verdade que Deus disse que vocês não devem comer de nenhuma árvore do jardim?” A mulher respondeu para a serpente: “Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer’”. Então a serpente disse para a mulher: “De modo nenhum vocês morrerão. Mas Deus sabe que, no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal”.


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O momento da tentação representa a possibilidade apresentada à arquiconsciência original de ser tal como o outro, de tornar-se outro. Representa a origem do desejo; a vontade posta em movimento. Isso se traduz em termos fenomenológicos como o poder-ser em sua acepção transitiva, isto é, como a intencionalidade da consciência. Inaugura-se assim a capacidade da consciência humana de se relacionar com aquilo que ela não é. O que a coloca, a cada momento, em permanente movimento de ultrapassagem do que é, transformando-se através das relações com os objetos e valores por ela visados. A temporalidade é desse modo compreendida como a própria expressão deste movimento, na medida em que para além do momento imediato, isto é, do presente (o que é), também são visados o passado (o que já não é) e o futuro (o que ainda não é). A morte, de que fala o texto bíblico, corresponde à abertura à dimensão da temporalidade e da finitude do ser-no-mundo. Sendo assim, a Queda marca para a consciência humana o seu acontecimento primordial, o começo da história. Segundo Schelling, tal acontecimento é imemorial. A consciência nada pode se lembrar do que aconteceu antes do ato que a gerou porque é alterada completamente por este ato. É, desse modo, separada da sua condição anterior. Somente as consequências da Queda ficarão registradas na memória, e esta corresponde à história da mitologia. A criação da mitologia, isto é, da sucessão de representações de Deus — entre deuses, deusas e heróis — que resultou no politeísmo, foi causada justamente por esse afastamento original da consciência de Deus, que gerou nela a necessidade de religar-se ao seu estado original, anterior à Queda. Assim, o lugar — anteriormente absoluto de Deus — na relação essencial entre a consciência humana e Deus, passou a ser ocupado por representações mitológicas, na medida em que estas foram sendo criadas imaginativamente a partir de fatos empíricos, concretos, históricos, experienciados pela consciência humana em seu ser-nomundo. Retomando o que dissemos anteriormente, a consciência faz com que o sujeito humano, em sua experiência como ser-no-mundo, perceba a si mesmo como uma identidade, isto é, como um eu singularmente situado no espaço-tempo do mundo, indissociavelmente relacionado com as coisas, os outros em seu entorno, e com o mundo como um todo. Desde este locus relacional, o homem é capaz de elevar a sua situalidade, ou seja, seu lugar no mundo, à condição de autossitualidade consciente no mundo. Compreende-se assim a criação da mitologia como a primeira etapa da busca do homem pela sua autossitualidade consciente no mundo, que acontece através da apreensão imaginativa da ordem inteligível interna ao mundo. Neste sentido, apesar de criadas imaginativamente, tais representações não são meras ficções inventadas artificialmente; correspondem à ordem do objetivo, do real. Na terminologia de Schelling, tais imagens não são alegóricas, mas, tautegóricas, pois “os deuses são seres que existem realmente; em lugar de ser uma coisa e significar uma outra, eles não significam senão aquilo que são”.179 São teofanias, imagens nas quais encontram-se simbolizados aspectos parciais, relativos, do ser único e absoluto de Deus, representando diferentes etapas do desenvolvimento da consciência humana na sua busca pela inteligibilidade da ordem interna ao cosmos (natureza, universo). Assim, o conjunto das relações simbólicas entre os entes divinos retratam simbolicamente a estrutura da ordem interna do cosmos. Por isso, estes são também denominados deuses intracósmicos. Falamos, desse modo, do processo de criação de símbolos pela consciência humana em seu ser-no-mundo. Voltaremos a este ponto no capítulo seguinte para maiores detalhes.

179 COURTINE, J-F. Op cit, p 212.


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O processo mitológico, assim entendido como o movimento feito pela consciência direcionado para o reestabelecimento da sua relação originária com Deus, trata-se de um processo ao qual a consciência encontra-se naturalmente submetida. Dizer que tal processo é natural equivale a dizer que não se atribui a Deus nenhuma participação no mesmo. Deus, como tal, não possui papel ativo, não intervém de forma alguma. Diz-se, neste sentido, que Deus permanecera obscuro, escondido, desconhecido— deus absconditus —, durante esta primeira etapa do processo histórico da constituição da consciência humana. Como veremos a seguir, a Revelação de Deus — enquanto processo sobrenatural, dependente da vontade livre de Deus — aconteceu como uma segunda etapa, que só pode ocorrer sobre a base existencial formada pela consciência mitológica. A Revelação de Deus pressupõe, como seu fundamento, o anterior obscurecimento de Deus durante o processo mitológico; enquanto este, por sua vez, pressupõe a anterior arquiconsciência original, em completa identidade inconsciente com Deus. Mas, seguindo o questionamento levantado por Cruz, como “a religião verdadeira pode se fundamentar na falsa”?180 O politeísmo mitológico — conhecido como paganismo — se trata de uma falsa religião, não por haver nele uma total falta de verdade, mas por ser uma deformação da verdade cristã. É uma deformação da verdade decorrente de uma situação circunscrita: estando a consciência fora de Deus, as potências divinas A1, A2 e A3 encontram-se, não em unidade, mas disjuntas, cindidas, em conflito. É justamente devido ao conflito dialético entre as potências divinas que a sucessão de representações de divindades foi produzida; estas representam justamente as várias etapas ou eventos deste conflito. No processo da Revelação, pelo contrário, Deus se manifesta à consciência humana na unidade das suas potências, tal como ele é, sobrenaturalmente.181 Por intermédio da cisão ocorrida no momento da Queda, se rompeu na consciência humana a unidade das potências divinas. Contudo, tal unidade — a sua essência autêntica — reaparece à consciência no momento em que se revela precisamente o verdadeiro Deus. Nas palavras de Schelling, revela-se “o sobrenatural como tal, pois o conceito de revelação, ou de alguém que se revela pressupõe já um obscurecimento originário: revelar-se pode fazê-lo somente o que antes permanecia escondido” 182 Neste sentido, a Revelação só pode ser compreendida em conexão com o desenvolvimento religioso geral, e, portanto, concretamente, com o paganismo, porque a base experiencial da mitologia se faz necessária para a Revelação, tratando- se de um fenômeno tanto ontológico como histórico. Deus ofereceu ao homem através da Sua Revelação a possibilidade de voltar a se unir a Ele, não mais de maneira indiferenciada como no momento da arquiconsciência original, mas através do Seu conhecimento — o logos de Deus. Com a Revelação, torna-se possível ao homem compreender a sua filiação divina, isto é, o fundamento da sua consciência na unidade de Deus, em Deus, com Deus, e ao mesmo tempo, diferenciarse de Deus. Se, por um lado, o conteúdo da Revelação — a eleição do povo judeu como povo de Deus, e o advento de Jesus Cristo como salvador da humanidade — não é compreensível pelo mero uso natural da razão, uma vez que, sendo sobrenatural, sobrepassa a capacidade racional humana; o é, por outro, através da experiência humana — fática, concreta, histórica — passível de se abrir à relação pessoal que Deus, por Sua livre vontade, proporcionou ao homem através dos profetas de Israel, e da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. A Revelação libertou a humanidade do paganismo, na medida em que “a realidade de uma

180 CRUZ, J. C. Ontología de la razón en el último Schelling. Pamplona, Cuadernos de Anuario Filosófico no 8,1993, p 166 181 Idem, p 168. 182 Idem, p 168.


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liberação está em relação direta com a realidade do poder de que somos liberados”.183 Enquanto os mitos são representações das potências em conflito, que se manifestam cega e impessoalmente, a Revelação tornou possível a religião livre, espiritual, a verdadeira inteligência livre e o conhecimento da verdade: o logos cristão. Fica assim claro que a Revelação não depende do homem, da natureza humana, mas da vontade de Deus de se revelar à consciência humana, sobrenaturalmente. Deus só se revela ao homem comunicando-se pessoalmente com o homem, em momentos por Ele determinados. Isso aconteceu na história judaico-cristã, como pode voltar a acontecer a qualquer ser humano individual, como um ato da Sua livre vontade. Porém, como o homem é um ser inteligente e livre, é livre para se abrir e aderir à manifestação de Deus em sua vida, ou para se rebelar e rejeitá-la. O pecado corresponde à matriz de toda dualidade, contraditorialidade e ambiguidade da posição do homem no mundo, situado entre a verdade eterna presente a si de modo indiferenciado em sua consciência anterior à Queda, a verdade que perdura falsificada, obscurecida, escondida nos mitos que regem a sua visão do mundo, e a verdade revelada por Deus, a ser por ele existencialmente descoberta dentro de si. O pecado pode ser interpretado como a “ilusão” que surge ao homem de ser como Deus, isto é, de escolher ser o que quiser, de ser posição-de-si, independentemente de Deus. Nas palavras de J-F. Courtine:

O que se revela ao homem por meio dessa possibilidade é a eventualidade de ser livremente o que ele é; a possibilidade de ser o que ele é, não fortuitamente, mas porque ele o teria posto livremente: o que a ele se apresenta — para dizer a verdade, de maneira enganosa — é a possibilidade da posição-de-si, de retomar a sua essência como posta por si. Numa palavra, ser como deus! [...] A emergência dessa possibilidade no horizonte faz aparecer a ambiguidade, a indecisão da consciência. 184 Trata-se, neste sentido, de uma liberdade ilusória, posto que baseada em uma mentira, qual seja, de um poder-ser independentemente de Deus. Cabe ao homem reconhecer-se em pecado nas suas concessões — conscientes e/ou inconscientes — ao paganismo, que acabam inevitavelmente por lhe aprisionar na contradição e na indecisão, conduzindo-o ao infortúnio; e escolher pela sua salvação, procurando ouvir verdadeiramente a palavra de Deus, permitindo que esta transforme a sua vida através do reestabelecimento da unidade das potências divinas em seus atos. A tarefa consiste em separar o joio do trigo, discernir entre a parcela de verdade contida na ilusão mítica, isto é, naquilo que foi fixado culturalmente ao longo da história como figuras mitológicas, tais como Zeus, Prometeu, Afrodite, Dioniso etc — que se presentificam no mundo contemporâneo nas variadas formas de ideologias — enquanto possibilidades existenciais, que podem sim ser experienciadas positivamente, desde que, compreendidas como mediações transitivas, relativas à natureza do mundo; e a verdade una de Deus — o logos cristão — , que viabiliza a relação constitutiva com a transcendência intransitiva, instaurando o eu consigo mesmo, com o próximo e com Deus. O mal reside justamente em tomar a parte pelo todo, em hipostasiar uma verdade relativa, a qual implica imediatamente o seu oposto, como uma verdade absoluta, o que implica em esconder, camuflar, manter inconsciente o seu oposto, como uma sombra que resiste em se deixar ver. Em outras palavras,

183 Idem, p 166. 184 COURTINE, J-F. Op cit, pp 234-235.


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há um conflito intrínseco a esta pseudoverdade que tende a permanecer oculto. Podemos observar essa ambiguidade da consciência humana refletida na ambiguidade do comportamento do deuses da mitologia. Por exemplo, a história de Ícaro, da mitologia grega, contém símbolos cuja significação psicológica é relativamente fácil de compreender, seguindo a interpretação de Paul Diel.185 Preso no labirinto de Minos — símbolo das regiões perversas —, Ícaro recebe de seu pai Dédalo asas construídas com cera — símbolo do intelecto —, a fim de que, utilizando-as para voar, conseguisse fugir da sua clausura. Não levando em consideração o conselho de seu pai, voa em direção ao sol — símbolo do espírito — aproximando-se insensatamente do mesmo, o que leva as asas de cera a derreterem, e à sua queda fatal no mar — símbolo da vida. Neste exemplo, a ambiguidade reside no uso das asas de cera/intelecto: se por um lado, esse uso pode conduzir a uma ascensão espiritual; por outro, pode levar à derrocada do sujeito, caso a sua ambição de elevação seja vaidosamente desmedida. Toda a psicologia humana pode ser desenvolvida a partir da análise desta ambiguidade e das diferentes atitudes do homem em relação a ela. A busca pelo bem deve então necessariamente passar pelo reconhecimento desta ambiguidade e da permanente indecisão da consciência situada nesta posição-de-si. A possível superação desta situação nos foi dada pela Revelação de Deus. Cabe ao homem a decisão de encontrá-la em sua vida, cultivando a verdadeira liberdade de ordená-la pelo logos cristão.

3.6. O fenômeno e a linguagem A linguagem é um tema recorrente do pensamento desde a Antiguidade Grega, ganhando na contemporaneidade crescente investigação em vários campos do conhecimento tais como a psicanálise, a linguística, a crítica literária, a filosofia da linguagem. Para os nossos propósitos o tema da linguagem é do maior interesse, haja vista termos reiteradamente falado do logos grego e do logos cristão. O termo logos é polissêmico, significando simultaneamente discurso, razão, raciocínio, juízo, conceito, definição. Nossa tarefa agora será aclarar a relação entre fenômeno e linguagem. Comecemos retomando as análises de M. Henry, que nos mostram — como aponta Heidegger em “Ser e Tempo” — que o logos “deixa e faz ver a partir daquilo sobre o que discorre”186 enquanto possibilidade originária da linguagem, na medida em que “não podemos falar de uma coisa qualquer sem que ela previamente se mostre a nós. Assim também tudo o que diremos dela e poderemos dizer dela, todas as prédicas que formularemos a seu respeito obedecem a essa condição incontornável”.187 Isso significa que os fenômenos da linguagem encontram-se subordinados à fenomenalidade, a ponto de se identificarem com ela. Entretanto, neste caso — e aqui entra a crítica de Henry a Heidegger — “fenomenalidade e logos são compreendidos no sentido grego: o aparecer que um e outro designam é o do mundo”.188 Trata-se aqui de uma limitação da fenomenalidade ao ser-no-mundo, quando o que se mostra, o que aparece, é a exterioridade, o “fora de si”, o objeto intencionado pela consciência. Dentro deste limite, a linguagem

185 DIEL, P. O simbolismo na mitologia grega. São Paulo, Attar, 1991, pp 49-61. 186 HEIDEGGER, M. Ser e tempo (Parte I). Petrópolis, Ed. Vozes, 1988, p 63. 187 HENRY, M. Encarnação. Op cit, p 66. 188 Idem, p 66.


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reproduz a carência do aparecer, ela repete a sua estrutura e a sua função, qual seja, a de dizer — conceituar, designar, definir — o mundo, entendido como a totalidade de seus entes. Como mostramos em capítulo anterior, Henry aponta esta limitação como a grande aporia de toda a filosofia moderna, ligada ao próprio conceito de fenômeno originado na Grécia Antiga. Repetindo o que dissemos, a aporia está em que a fenomenalidade do ser-no-mundo é incapaz de assegurar a sua própria promoção à condição de fenômeno, de realiza a sua própria revelação, uma vez que o aparecer do ente não é o auto-aparecer do aparecer. Como nos mostra Henry, o fundamento do auto- aparecer do aparecer é a autorrevelação originária da vida: o logos cristão. Isso significa que a base fenomenológico-ontológica do logos grego é o logos cristão. A questão que então se levanta é a seguinte: se ambos — logos cristão e logos grego — são essencialmente linguagem, haveria uma perspectiva filosófica capaz de determinar de que maneira ambos se articulam linguisticamente? Enquanto Heidegger, depois da abordagem fenomenológica de “Ser e Tempo”, dedicou-se ao estudo da linguagem, entendida como logos grego — temática cujos ensaios e conferências aparecem reunidos em “A caminho da linguagem” —; Henry não chegou a se dedicar ao estudo da linguagem, tratou de determinar o logos cristão através de uma fenomenologia da carne e da encarnação. Encontramos na obra de L. B. Puntel os elementos filosóficos que nos auxiliarão a determinar de que maneira os logos grego e cristão se articulam. Apesar de Puntel não recorrer à fenomenologia, nem ao conceito de logos no desenvolvimento da sua teorização, é possível correlacionar adequadamente tais termos à sua própria terminologia. Puntel é um filósofo brasileiro-germânico contemporâneo, cujas obras principais “Estrutura e Ser”189 e “Ser e Deus”190 publicadas originalmente na Alemanha, respectivamente em 2006 e 2010, retomam a tentativa de superação do dualismo sujeito-objeto e de reestabelecimento da metafísica, a partir da reviravolta linguística da filosofia. Revendo a história desta “reviravolta”, o seu início pode ser creditado aos estudos de lógica e semântica de Frege, que datam do final do século XIX e início do XX, nos quais procurava construir uma linguagem “artificial” com a precisão necessária para exprimir as estruturas lógicas. Nesta linha, surgiram os trabalhos de Carnap e B. Russell, passando pelo primeiro Wittgenstein, do “Tractatus Lógico-Philosophicus” de 1922. Depois deste primeiro momento, que se concentrou nos aspectos sintático e semântico da linguagem, passou-se à abordagem do terceiro aspecto da linguagem, antes negligenciado: o pragmático. Neste campo, encontram-se os trabalhos do segundo Wittgenstein, das “Investigações filosóficas”, e as teorias dos atos da fala de Austin e Searle. A filosofia analítica, uma das mais representativas correntes filosóficas da atualidade, teve sua origem nesta linha de pensamento. As pragmáticas de Apel e Habermas também apareceram neste contexto, nas décadas de sessenta e setenta. Surgia assim um novo paradigma filosófico no qual a linguagem, de objeto da reflexão filosófica, passa a ocupar o lugar de fundamento da reflexão filosófica, enquanto elemento constitutivo de todo pensar. O que equivale a dizer que o nosso acesso à realidade é necessariamente mediado pela linguagem. De tal modo que as questões filosóficas devem passar a ser resolvidas através da análise das estruturas da linguagem perguntando-se, por um lado, pela significação ou o sentido de expressões linguísticas — dimensão semântica — e, por outro, pelas condições de possibilidade de sentenças intersubjetivamente válidas a

189 PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. São Leopoldo, RS, Ed. Unisinos, 2008. 190 PUNTEL, L. B. Ser e Deus. São Leopoldo, RS, Ed. Unisinos, 2011


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respeito do mundo — dimensão pragmática. Apel e Habermas permaneceram atados ao dualismo sujeitoobjeto por terem se fixado na dimensão pragmática, postulando a intersubjetividade como a verdadeira esfera transcendental, no lugar da subjetividade — solipsista — de Kant. Diferentemente destes autores, Puntel reconheceu a dimensão semântica como dimensão ontológica, que abrange fundamentalmente a dimensão pragmática, e, desse modo, a esfera da subjetividade ou da intersubjetividade. É justamente esta identidade entre a dimensão semântica e a dimensão ontológica o fundamento que possibilita a superação do dualismo sujeito- objeto e o projeto de devolver à filosofia o seu status sistemático original por uma via nova, visando uma abordagem interconectada e integrada de todas as possíveis temáticas filosóficas — o ser, a verdade, a natureza, o homem, a sociedade, a história, a ética, a estética, Deus etc — de modo coerente, em uma teoria única e abrangente, transpondo a atual aparentemente intransponível fragmentação do conhecimento, e a incomunicabilidade no seio da comunidade de cientistas. Essa abordagem foi por ele denominada Filosofia sistemático-estrutural. A tese central da Filosofia sistemático-estrutural é a da expressabilidade universal, como característica fundamental da estrutura imanente do Ser. A linguagem é a instância correlata a essa expressabilidade universal, portanto, coextensiva ao Ser. Fala-se aqui da linguagem no sentido maximal, que já está dada com a imanência do Ser em seu todo, não sendo, neste sentido, um produto humano. Desse modo, há duas formas diferentes de compreensão da linguagem: a) como sistema composto por símbolos linguísticos resultante da produção histórico-cultural de sujeitos humanos; b) no sentido maximal, acima mencionado, não forçosamente como “linguagem natural”, mas “como um sistema semiótico no sentido ilimitado e com todas as possibilidades inerentes a este fato”.191 Essa diferença explica a unilateralidade antirrealista da posição epistemológica da filosofia moderna: o esquecimento total da linguagem maximal ou absolutamente universal, reduzindo a linguagem em seu todo a uma produção humana. Puntel nos mostra que há interconexão rigorosa entre linguagem e ser. O autor emprega o termo estrutura para designar as relações e interações de uma entidade, de um domínio, de um sistema, de um processo etc, imanentes ao Ser em seu todo, entendido como a interconexão de todas as relações e interações existentes. Pode-se dizer, desse modo, que o Ser em seu todo possui uma estruturalidade ontológica imanente, e que, coextensiva a esta estruturalidade, há uma expressabilidade do ser. Neste sentido, estruturalidade e expressabilidade do Ser correspondem aos dois lados de uma mesma moeda, o que equivale a dizer que ser é linguagem. Neste sentido, a filosofia é definida como “teoria das estruturas universais do universo irrestrito do discurso”.192 O método proposto por Puntel para a atividade filosófica consiste, então, em explicitar como estão interconectadas a dimensão das estruturas e a dimensão do universo irrestrito do discurso — ou seja, do Ser —, enquanto dado universal a ser compreendido ou explicado. Por dado, entende-se um conteúdo informativo linguisticamente articulado. Os dados se encontram contidos na linguagem normal ou natural, ou seja, articulados no universo do discurso faticamente — historicamente, intersubjetivamente — constituído. Parte-se, assim, dos dados da linguagem normal, isto é, de proposições linguísticas, compreendidas como proposições candidatas à teoria ou à verdade. Mediante um processo de correções de seus aspectos semânticos, trata-se de determiná- las teoricamente no sentido da máxima inteligibilidade alcançável,

191 PUNTEL, L. B. Estrutura e ser. Op cit, pp 39-40. 192 PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Op cit, p 147.


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buscando aclarar a interconexão da dimensão das estruturas e do universo irrestrito do discurso. Trabalha-se assim com a problemática da determinação da linguagem. Determinação da linguagem quer dizer correção sintática e verdade semântica. Quando uma sentença ou proposição é completamente determinada, obtém o estatuto de verdade, significando que ela alcançou real e literalmente a estrutura ontológica visada. Neste sentido, verdade nada mais é que o status completamente determinado da linguagem, quando esta exprime uma dada estrutura ontológica. Uma proposição teórica, seja ela filosófica ou científica, deve procurar explicitar com a máxima determinidade as relações e interações estruturais de uma entidade, sistema, processo etc, alcançando a sua verdade semântica. Puntel descreve três planos de determinação da linguagem: a) o plano do contexto da vida cotidiana; b) o plano pragmático; c) o plano semântico. A cada um desses planos pode ser associado a presença implícita de um operador, relativo ao qual uma dada sentença ou proposição é compreendida. O primeiro plano é o das sentenças proferidas na vida cotidiana, através da assim chamada linguagem normal ou natural. Aqui, a determinidade da linguagem é produzida por um fator puramente externo à linguagem, a saber, o contexto cotidiano. Quando, por exemplo, alguém diz que “a neve é branca” no contexto cotidiano, o seu significado é prontamente evidente devido a referência estabelecida por este contexto. Podemos assim supor a presença implícita do operador de contexto precedendo esta sentença: “está contextualmente dado” que a neve é branca; o que implica que a determinidade da sentença simplesmente não é avaliada ou explicitada para ser considerada como verdadeira. Porém, a grande maioria das sentenças da linguagem normal não satisfaz as exigências semânticas para se alcançar real e literalmente as coisas — entidades, eventos, processos etc —, isto é, para atingir o status completamente determinado da linguagem, pois o discurso praticado na vida comum encontra-se submetido a inúmeras casualidades e indeterminações, como opiniões pessoais, ideologias, desconhecimento de fatos a serem ainda descobertos etc. Em outras palavras, as sentenças proferidas podem conter diferentes graus de indeterminação relativos a distorções da verdade produzidas pelos sujeitos falantes. Em casos como estes, a linguagem cotidiana torna-se questionável, perdendo a sua determinidade, devido à emergência de questões que interrompem a comunicabilidade habitual dada pelo seu contexto. Devido a essa ruptura no plano do discurso cotidiano, eis que surge o segundo plano de determinação das sentenças, o plano pragmático. Tal nome se deve ao fato de o fator de determinação das sentenças ser uma ação. Supomos aqui a presença implícita do operador “é afirmado que” como garantia da determinidade de uma dada sentença. Trata-se de um plano ao mesmo tempo externo e interno à linguagem, cujas sentenças proferidas são determinadas mediante a produção de uma ação, efetuada por um ou mais falantes, a qual confere um status diferenciado à sentença, qual seja, a sentença passa a receber a sua determinidade semântica através de um fator externo à linguagem — uma ação comunicativa —, e um fator interno à linguagem — a articulação linguística dessa ação. Imaginemos, por exemplo, a situação na qual o fenômeno natural da neve é desconhecido por uma comunidade de falantes, uma vez que nenhum deles sequer chegou a ver ou ouvir falar do mesmo. Um sujeito desta comunidade, na volta de uma viagem na qual pode observar tal fenômeno, ciente de que traz um dado desconhecido, fora do contexto normal de comunicação, procura convencer os seus interlocutores acerca do fenômeno por ele constatado. Para tanto, argumenta afirmativamente que existe algo chamado neve, que possui tais e quais características, sendo que uma delas é ser branca. Daí proferir a sentença: eu afirmo que a neve é branca. Podemos reconhecer aqui, por analogia, o modo de proceder na construção do conhecimento científico. O cientista


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procura estabelecer uma situação experimental adequada — colocando-se de fora do contexto normal de comunicação — com a intenção de constatar através dessa ação algo que normalmente ou naturalmente não se tem acesso. O dado obtido passa a ser então afirmado como conhecimento científico, adquirindo tal status. Todo e qualquer conhecimento científico situa-se, portanto, neste segundo plano de determinidade da linguagem. O terceiro plano, o plano semântico, é o fundamental, pois, sem o mesmo, os outros dois não poderiam existir. Trata-se do plano em que ocorre autodeterminação da linguagem, na medida em que a determinidade de uma sentença é dada de modo puramente interno à linguagem, não comportando nenhuma referência a fatores externos como contextos cotidianos ou experimentos científicos. Aqui, a linguagem realmente atinge aquilo o que quer, ou deve significar de modo determinado, fazendo com que a estrutura ontológica da expressibilidade do Ser seja aclarada. Quando uma sentença comporta a presença implícita do operador semântico “é verdade que” ou “é o caso que”, isso significa que tal sentença pode ser considerada como expressão linguística de uma estrutura ontológica. Voltando ao nosso exemplo, a proposição “a neve é branca” precedida pelo operador semântico “é verdade que” significa que não há nenhuma restrição em compreendê-la como conhecimento universal, não condicionado por contextos cotidianos ou experimentos científicos. Desse modo, o plano semântico é o plano abrangente que funda a possibilidade da intersubjetividade humana, e assim, da comunicabilidade linguística entre os homens. A determinação da linguagem no plano contextual-cotidiano, que permite que nos comuniquemos uns com os outros, certos de que não nos confundimos acerca da realidade, decorre dela possuir status de consenso intersubjetivo entre os sujeitos humanos, previamente estabelecido no plano pragmático de determinação da linguagem. Por sua vez, a afirmação de um consenso intersubjetivo somente é possível sob a necessária pressuposição de uma determinação interna à linguagem, independente dos sujeitos humanos. Passemos agora à concepção de Ser da filosofia sistemático-estrutural, visando ampliar um pouco mais a nossa compreensão da relação entre linguagem em ser. Puntel toma a crítica de Heidegger à metafísica como ponto de partida da sua abordagem do Ser. Para Heidegger, esta — dos gregos aos modernos — se ocupou apenas dos entes, esquecendo-se do Ser como tal, independente dos entes, isto é, do Ser na sua diferença ontológica, confundindo o Ser com os entes. De modo a definir erroneamente o Ser como um ente supremo: o bem, o motor do universo, a natureza, Deus etc. Por isso, chamou-a pejorativamente de ontoteologia. Em vista desse esquecimento do Ser, propõe como a grande tarefa da filosofia o aclaramento do sentido do Ser. Seu intuito é a superação tanto da metafísica clássica como da filosofia moderna da subjetividade. A chave dessa tentativa é a concepção do Ser como dimensão originária, que abrange tanto a subjetividade como o conjunto dos entes. Heidegger propõe a tese de que “à verdade pertence o fato de que o Ser nunca se essência [west, vige] sem o ente, de que o ente nunca é sem o Ser”; portanto, de que é impossível tematizar o próprio Ser sem tematizar ao mesmo tempo os entes. O seu conceito de Ser como Ereignis, ou acontecimento apropriativo, se esclarece à luz dessa tese. Como, segundo ele, Ser e tempo estão intimamente interligados em seu “se dar”, dito de outro modo, em seu “acontecer”, o sentido do Ser encontra-se submetida ao autodesvelamento do próprio Ser, na medida em que este se dá a conhecer com o tempo, isto é, epocalmente, na história, o Ser se revela em um duplo movimento denominado aletheia: ao mesmo tempo em que se revela, encobre a própria revelação. Neste sentido, compreende-se o ser como o “Se dá” historicamente


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condicionado, isto é, como Ereignis.193 Encontramos aqui a ênfase dada pelo autor ao caráter relacional entre Ser e homem no interior do Ereignis, o “comum-pertencer” entendido como o estar disponível por parte do Ser a uma possível apropriação por parte do homem. Nesta perspectiva, as doutrinas do ser em cada época histórica — de Platão a Nietzsche — são entendidas como respostas “a um apelo que fala no destinar que a si mesmo oculta, que fala no ‘Se dá ser’”.194 De modo que a “história do ser significa destino do ser”.195 Isto é, o modo próprio do acontecer do ser se dá como um destinar, cabendo ao homem pensar — para além do esquecimento do ser — o sentido daquilo que permanece velado no ente manifesto, ou seja, daquilo que se encontra destinado e ainda por vir. Dizer sobre o ser é uma tarefa sempre provisória, preparatória, para o sentido mais profundo que, em cada caso, se antecipa como um dizer precursor. Cabe ao homem a escuta do ser, da verdade do ser que se desvela na abertura à sua possibilidade mais própria, originária. Puntel se posiciona criticamente em relação a concepção de Heidegger. Por um lado, reconhece a sua extraordinária intuição, qual seja, de ter visto a questão do Ser como tal, na sua diferença ontológica, como objeto fundamental da filosofia. Porém, discorda dele quanto ao tratamento dado à questão. Considera que ele fracassou em sua tarefa devido as deficiências e incoerências da sua concepção do Ser como Ereignis, na medida em que mistura componentes teóricos com componentes etimológicos e poéticos, ignorando completamente a dimensão da teoricidade e suas potencialidades. Em contraposição a ele, Puntel parte do princípio básico de que a filosofia é uma atividade que deve se ater à dimensão da teoricidade para aclarar as suas temáticas, buscando a máxima determinidade nas suas proposições, conforme apresentamos a pouco. Para Puntel, a tarefa consiste em fazer com que apareçam no quadro da explanação do Ser os momentos estruturais imanentes que caracterizam o Ser como tal, na forma de enunciados sistemáticocompreensivos com estatuto teórico rigoroso. Importante frisar que estes momentos competem ao Ser como tal, independentemente de sua relação com os entes. Ou seja, mesmo que não existissem entes, o próprio Ser teria estas características. E neste ponto a abordagem de Puntel se diferencia radicalmente da de Heidegger. Se, por um lado, faz referência ao intelecto e à vontade humanas, por outro, isso só ocorre em vista da apuração dessas características, de modo que não se depara com o problema da impossibilidade de tematização do Ser sem os entes proposto por Heidegger. O primeiro momento estrutural imanente do Ser como tal é a inteligibilidade universal. O fato de que a inteligibilidade do Ser é acessível ao intelecto humano, não significa que nós, como cognoscentes finitos, estejamos em condições de articulá-la completamente. Podemos intuir a amplitude do Ser em termos gerais, mas só conseguimos apreender segmentos da sua inteligibilidade total. O segundo momento é o da coerência universal do Ser como tal, não como mera ausência de contradição, mas, positivamente, como interconexão de todas as interconexões. Pode-se assim dizer que a coerência é sistematicidade. Compreende-se o Ser, por esta perspectiva, como interconexão universal, como estruturalidade universal, como a estrutura de todas as estruturas, como a mais original e abrangente das estruturas. O terceiro momento é o da expressabilidade universal do Ser como tal, termo que já apresentamos anteriormente. A quarta característica estrutural imanente se diferencia das três anteriores na medida em que esta não é apreendida em referência ao intelecto, mas à vontade humana. A metafísica clássica emprega o termo

193 HEIDEGGER, M. Tempo e Ser. in: Heidegger – Os pensadores. São Paulo, Ed. Abril, 1983, p 269. 194 Idem, p 262. 195 Idem, p 261.


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bom/bem para designar aquela característica do Ser que apela ou corresponde à vontade. Neste sentido, o quarto momento estrutural imanente do Ser como tal pode ser denominado bondade universal. O Ser é concebido por Puntel como uma unidade primordial, uma meta-dimensão que abrange duas dimensões distintas: a do Ser como tal, e a da totalidade dos entes em geral. Para demonstrar que o Ser em seu todo só pode ser pensado como bidimensional, se incumbe de refutar a tese contrária, a tese do “onicontingencialismo”, isto é, de que tudo é contingente, defendia sobretudo por filósofos e cientistas de orientação materialista ou fisicalista. Com base nas modalidades ontológicas “possível-necessáriocontingente”, demonstra a impossibilidade da mesma. “Se tudo fosse contingente, então o nada absoluto seria possível; ora, o nada absoluto não é possível; logo, nem tudo é contingente”.196 A possibilidade do nada absoluto é paradoxal, pois, possibilidade é sempre possibilidade-de-ser. Portanto, não se pode negar a existência de uma dimensão que não pode, a partir de si mesma, em nenhuma circunstância, não ser — a dimensão absolutamente necessária do Ser, nos termos de Puntel — sem ser autocontraditório. A dimensão dos entes contingentes, por outro lado, é aquela suscetível à temporalidade, à finitude, ao não ser, ou, ao deixar de ser. A dimensão absolutamente necessária do Ser corresponde àquilo que o ser humano, a partir da sua experiência religiosa, designa por Deus. Cumpre-se ressaltar, que não se trata aqui de uma relação de analogia, mas de identidade, uma vez que o Ser absolutamente necessário é entendido como Ser espiritual-pessoal absoluto-criador. Diz-se ‘Ser’ e não ‘ente’, porque o Ser espiritual- pessoal não é um ente, nem mesmo no sentido de um ente supremo ou primeiro. 197 A dimensão contingente foi criada pelo Ser absolutamente necessário através da sua decisão livre de “pô-la no Ser”. “Ao pôr entes contingentes no Ser com a sua ação criadora, Deus cria dentro de si mesmo uma ‘subdivisão [Unter-Schied]’ em relação a si mesmo, que chamamos de transcendência”.198 Não há, desse modo, uma transcendência absoluta, mas apenas uma transcendência relativa do Ser absolutamente necessário em relação à dimensão contingente dos entes. Sendo assim, a transcendência de Deus se dá relativamente ao mundo na total autoimanência do Ser absolutamente necessário, enquanto posta no Ser como dimensão contingente dos entes. Em termos mais simples: os entes estão em Deus, mas há uma dimensão de Deus que perdura independente dos mesmos. Para prosseguir na tarefa de uma determinação mais ampla do Ser absolutamente necessário é preciso que se examine a história das Suas decisões livres, em outras palavras, que se compreenda de que maneira a liberdade absoluta de Deus se manifestou — e continua a se manifestar — na história mundial. Trata-se assim da tarefa de articular uma teoria metafísica da história mundial, utilizando um enfoque metodológico que o possibilite adequar dados naturais, históricos, culturais, religiosos, científicos etc, procurando aclarar as interconexões entre estes dados e as estruturas do Ser. Segundo Puntel, todas as temáticas relativas ao ser humano são esclarecidas a partir da explanação da sua constituição estrutural como pessoa. O conceito de pessoa, recuperado em seu conteúdo metafísico-teológico esvaziado pela filosofia moderna, diz respeito ao ser espiritual, dotado de inteligência, vontade e liberdade, na sua coextensionalidade intencional com o Ser absolutamente necessário ou Deus, dotado de inteligência, vontade e liberdade absolutas. Em termos semântico-linguísticos, trata-se da

196 PUNTEL, L. B. Ser e Deus. Op cit, p 215. 197 Idem, p 222. 198 Idem, p 244.


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coextensionalidade intencional do espírito humano com o universo irrestrito do discurso. O sujeito humano só pode ser determinado como aquilo que ele de fato é a partir da referência da sua intencionalidade com a dimensão absoluta do Ser. Experimenta a si mesmo como uma unidade, uma totalidade singular, uma identidade pessoal, que se articula no dizer “eu”. O caráter específico dessa unidade reside em se situar no Ser em seu todo, ou universo irrestrito do discurso, em relação a todos os demais entes, eventos, processos etc; sendo, portanto, determinado pela sua capacidade de elevar a sua situalidade à condição de autossitualidade consciente no Ser em seu todo. Esta capacidade lhe possibilita transcender infinitamente a si mesmo, na medida em que permanentemente ressignifica a sua situalidade. Enquanto a dimensão do mundo está prontamente “dada” à intelecção humana, o Ser em seu todo se encontra, a princípio, amplamente indeterminado. Partindo da intelecção de coisas particulares (entes) de seu entorno no mundo, o homem é capaz de progredir na determinação de interconexões cada veza mais amplas, até a interconexão de todas as interconexões, a dimensão do Ser ou Deus. O sujeito humano, através da sua corporalidade, situa-se no espaço-tempo do mundo natural: um mundo exterior, pelo corpo (objetivo); e, um mundo interior, pela psique (subjetiva). Contudo, a dimensão corporal é insuficiente para explicar a especificidade de seu ser espiritual. Diferentemente dos demais entes da escala evolutiva da vida natural (bactérias, plantas, animais), não existe para o sujeito humano vinculação necessária entre estímulo e resposta, a sua vida não se restringe simplesmente ao imediato. Como ente cuja ação se realiza no espaço aberto à linguagem, o homem nomeia, conceitua, distingue, sintetiza, o que implica a negação de todo e qualquer limite e exterioridade, levando-o a sempre transcender a facticidade imediata da vida, a sempre ultrapassar a si mesmo, isto é, o que foi em um momento anterior. O homem encontra-se assim, desde a sua origem, aberto à possibilidade de formular respostas livres dos determinismos que o círculo funcional dos instintos garante às outras espécies de animais na luta pela vida. Encontramo-nos aqui diante da questão da liberdade humana. Como explicá-la? Do ponto de vista puramente biológico, a liberdade é algo negativo, pois, corresponde à falta de ordenação precisa entre estímulo e resposta, característica dos animais, o que implica na ocorrência de muito mais defeitos, erros ou inadequações no comportamento humano em relação a estes. De outro modo, em vez de pensar a liberdade humana como algo negativo, resultante de uma falta constitutiva ao nível orgânico, a filosofia sistemático-estrutural possibilita compreendê-la como algo positivo, isto é, como plena emergência do espírito no mundo. Isso significa que não há como reduzir a capacidade espiritual de expressar o Ser em seu todo à dimensão corporal-orgânica. Em sua constituição ontológica, o sujeito humano é ao mesmo tempo limitado à finitude, pela sua dimensão corporal-orgânica, mas aberto à totalidade, à infinitude, ao absoluto, pela sua dimensão espiritual. Em suma, o ser humano situa-se no Ser em seu todo como uma unidade corporal-espiritual, que reúne finitude e infinitude, exterioridade e interioridade, particularidade e universalidade, imanência e transcendência. Ação humana, em seu movimento histórico, é entendida como um processo determinado pelas decisões livres de Deus. Nesse processo, o sujeito humano encontra-se intencionalmente direcionado a autodeterminar-se como pessoa, através da sua busca pelo conhecimento da inteligibilidade do Ser em seu todo ou universo irrestrito do discurso, o que equivale a dizer, através da plena determinação da linguagem. Segue-se deste ponto o argumento que serve como uma prova indireta de que a dimensão absolutamente necessária do Ser deve ser concebida como Ser espiritual absolutamente necessário:


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considerando-se a existência de entes contingentes espiritualmente constituídos — os entes humanos —, como supor que a dimensão absolutamente necessária não seja espiritualmente constituída, mas algo diferente, algo como uma natureza não espiritual originária? A tese de que a dimensão absolutamente necessária é espiritualmente constituída possui claramente uma inteligibilidade maior do que a da tese oposta, qual seja, de que essa dimensão não é espiritualmente constituída. Do ponto de vista lógico, a negação de que a dimensão absolutamente necessária é espiritualmente constituída é simplesmente inexplicável. Uma dimensão absolutamente necessária do Ser não espiritualmente constituída teria um grau ontológico mais baixo do que o do espírito humano contingente; não sendo, portanto, possível explicar o espírito humano a partir de uma dimensão absolutamente necessária do Ser assim concebida. Portanto, a dimensão absoluta não é vista e determinada a partir da perspectiva do homem, mas o inverso. A filosofia estrutural-sistemática de Puntel vincula-se assim à grande tradição da metafísica clássica na medida em que reabilita as grandes questões abandonadas pela filosofia devido ao abismo instalado por Kant entre o pensamento humano e o Ser, reintegrando a subjetividade ou o espírito humano como participante indissociável e coextensivo com o Ser. Compreender o Ser como a unidade primordial de todas as estruturas ou interconexões significa compreender que entes, eventos ou processos do mundo encontramse interconectados de modo geral ou universal na meta- dimensão do Ser enquanto interconexão de todas as interconexões ou a mais abrangente das interconexões. Desse modo, o Ser na sua bidimensionalidade abrange as polaridades linguagem e mundo, dados e estruturas, espírito e matéria, sujeito e objeto. É interessante perceber aqui as analogias que podem ser feitas neste ponto. Estes pólos correspondem aos conceitos de mundo inteligível e mundo sensível de Platão; forma e matéria de Aristóteles; res cogitans e res extensans de Descartes; subjetividade transcendental e coisa em si de Kant; ultrapassando, contudo, as aporias das teorias estabelecidas por estes autores. Incorporando a reviravolta linguística da filosofia, possibilita, ao mesmo tempo, superar o “realismo ingênuo” da busca do “ente enquanto ente” da metafísica clássica, como também, o “antirrealismo” da metafísica da subjetividade transcendental. Podemos dizer, adotando a terminologia de Manfredo de Oliveira, que se trata de uma metafísica pós-transcendental.199

3.7. Por uma ontologia da espontaneidade Com o que acabamos de explanar — de 3.1 a 3.6, em que apontamos a aporia da filosofia moderna, passando pelas abordagens de Wojtyla, Henry, Schelling e, finalmente, de Puntel, todas elas empenhadas na busca pela sua ultrapassagem — reunimos os elementos indispensáveis para — através da conjunção dos avanços da fenomenologia e da filosofia da linguagem contemporâneas — enfrentar a questão sobre o que é a espontaneidade. Antes de começarmos a respondê-la, é imprescindível esclarecer os motivos pelos quais propomos reunir diferentes perspectivas filosóficas, com diferentes terminologias, já que isso podeira ser interpretado como um ecletismo injustificável. Bem, a seleção das quatro perspectivas particulares por nós adotadas obedece à necessidade de reunir o conjunto do esforço histórico do ser humano de “conhecer a si mesmo”

199 OLIVEIRA, M. Antropologia filosófica contemporânea. São Paulo, Paulus, 2012, p 133.


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— tal como Sócrates definiu o objetivo da filosofia há mais de 2.400 anos. Mas, por que essas quatro perspectivas e não outras? Qual o critério dessa seleção? Em primeiro lugar, pelo motivo já exposto de que as quatro estão comprometidas com a busca da ultrapassagem da aporia da filosofia moderna, que condiciona a atual fragmentação do conhecimento do homem acerca do mundo e de si mesmo, e da sua possível integração através de uma perspectiva abrangente e unificadora da realidade. Em segundo lugar, por que há uma coerência intrínseca entre elas, na sua intenção de recuperação da metafísica clássica, agregando a esta elementos teóricos alcançados na modernidade. Tal coerência se manifesta na intercambialidade dos termos utilizados para designar, digamos, os mesmos fenômenos. São todas elas declaradamente ontológicas. Todas também se declaram alinhadas à tradição religiosa judaico- cristã, na medida em que assumem a existência de Deus como Ser espiritual-pessoal-absoluto- criador. Além disso, utilizam em comum os conceitos de potência, ato/ação, fenômeno/linguagem, pessoa e processo histórico, como conceitos centrais da sua teorização. Por isso, propomos fundar o discurso da nossa perspectiva ontológica sobre a coerência conceitual dessa convergência de intenções. Tomemos então como ponto de partida as definições que o conceito de espontaneidade recebeu na história da filosofia, formulada originalmente por Aristóteles, e depois, modificada por Leibniz e por Kant.t A raiz etimológica da palavra espontâneo e seus derivados é o latim sponte, cujo significado é por livre vontade. Interessado no estudo das causas das ações, isto é, da investigação racional da causalidade do que acontece tanto no mundo natural como no mundo humano, Aristóteles distingue duas noções ligadas à espontaneidade pensada como causa de uma determinada ação: a noção de automatos, enquanto algo capaz de automovimento, que utiliza em seus trabalhos sobre a filosofia da natureza; e a noção de ekoúsios, enquanto uma ação que pressupõe a intervenção de um agente, que utiliza em seus tratados de ética. Em seu livro “Ética a Nicômano”, desenvolve o conceito de espontaneidade como conceito moral, definindo como espontânea a ação cujo princípio se encontra no agente. De modo que se pode traduzir ação espontânea por ação voluntária. O que não significa, necessariamente, que esta deva ser consequente a uma escolha, ou deva ser racional. Animais e crianças são capazes de agir espontaneamente, mesmo que não sejam capazes de fazer escolhas ou compreender racionalmente as circunstâncias pelas quais decidem agir de um modo ou de outro. Diz-se, neste sentido, que um bebê mama espontaneamente quando está com fome. Por outro lado, uma ação é não espontânea ou involuntária quando é feita compulsoriamente, como no caso de alguém arrastado pelo vento; ou por ignorância, no caso de alguém que entra em um lugar proibido por desconhecer a proibição. Isso significa que a ação humana é espontânea apenas nos casos em que for deliberada através de um julgamento prático (mesmo que irrefletido ou irracional, como no caso de um crime passional). A teoria aristotélica da espontaneidade foi retomada na Idade Média, sofrendo apenas pequenas variações. Com o Renascimento, esta teoria passou a ser questionada por ser insatisfatória para explicar a liberdade humana. Se o agente, na deliberação da sua ação, encontra-se atrelado a sua espontaneidade e, consequentemente, ao determinismo das suas predisposições naturais, psicobiológicas, de que maneira poderia agir livremente? Não se questiona aqui se o ato espontâneo pode ser livre de coações externas, mas se pode ser livre da necessidade relativa à sua natureza. Na filosofia de Spinoza, por exemplo, é negada esta possibilidade. Neste contexto, Leibniz propôs, através de uma reelaboração do conceito de Aristóteles, que a liberdade é a espontaneidade com inteligência, reunificadas pelo poder de escolha. O homem age 200 SGARBI, M. Kant’s concept of spontaneity within the tradition of aristotelian ethics. Studia Kantiana 8, pp 121- 140.


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livremente quando é capaz de deliberar a sua ação através da inteligência fazendo escolhas racionais; não de modo necessário, mas contingentemente, isto é, caso a caso, de acordo com as circunstâncias. Entretanto, segundo Sgarbi, Leibniz não se limitou em conceber a espontaneidade moralmente, como o fez Aristóteles. Ao afirmar que “a espontaneidade, como um atributo da razão, é a origem de todas as representações e volições”201, estabeleceu um novo entendimento da relação sujeito-objeto, introduzindo o conceito de espontaneidade no âmbito epistemológico. Como vimos em 3.1, a revolução copernicana de Kant representou na história da filosofia a passagem da pergunta sobre o ser dos entes (âmbito ontológico) para a pergunta sobre o sujeito transcendental (âmbito epistemológico). Nesta passagem, Kant conferiu ao conceito de espontaneidade de Aristóteles o status de pedra angular de seu sistema, postulando uma espontaneidade pura, absoluta, transcendental, como causa a priori de toda e qualquer causa empírica, concernente ao mundo natural, sendo assim capaz de começar por si mesma a série de eventos fenomênicos de acordo com a lei natural. Trata-se da liberdade, enquanto princípio causal da autodeterminação de todo agente. Para Kant, não é possível explicar a liberdade de acordo com princípios empíricos, não devendo ser procurada na natureza, pois lhe é transcendente. Há, portanto, dois tipos de causalidade: empírica, segundo a natureza; e transcendental, segundo a liberdade. O homem é capaz de agir livremente, na medida em que a razão estabelece para a vontade a lei de seu agir, na forma de imperativos categóricos. A liberdade transcendental é a ratio essendi da lei moral, enquanto esta é a ratio cognoscendi daquela; uma razão que pode começar uma ação a partir de si mesma, isto é, sem depender de nenhuma outra causa. O sujeito humano se desprende, desse modo, do determinismo das causalidades naturais atreladas à sua condição animal. Diferentemente de todos os outros animais, a liberdade lhe permite o acesso à moralidade e à autonomia da vontade, e desse modo, opor-se aos determinismos naturais. Tendo como essência a liberdade, o homem é um ser moral que se autodetermina como pessoa, considerada como um fim em si mesma. Desse modo, tem como finalidade em sua vida se realizar como vontade autônoma e autorresponsabilidade. Neste sentido, Kant corrobora as características tradicionais atribuídas ao conceito de pessoa pela metafísica clássica. Por outro lado, destrói a noção de união substancial de alma e corpo postulada pela mesma, como vimos em 3.2. O entendimento do sujeito empírico como sujeito de representações significa que a pessoa deve ser compreendida como uma unidade lógica, e não como uma unidade substancial. O eu-empírico é o eu-objeto, dado como fenômeno que aparece para si através da intuição do tempo, sendo assim onstituído pelas determinações do sentido interno, único local de apreensão do psiquismo. Além do âmbito da moral, Kant nos mostra que a espontaneidade também se encontra intrinsecamente ligada ao âmbito do conhecimento, daí se falar do seu papel fundamental na epistemologia kantiana. A espontaneidade absoluta é a causa a priori do entendimento e da razão na produção de conhecimentos a partir das percepções fornecidas passivamente pela sensibilidade. Tanto as percepções como os conhecimentos são compreendidos como representações. A imaginação transcendental, enquanto faculdade que produz imagens, estabelece a mediação entre a receptividade da sensibilidade e a espontaneidade do entendimento, operando a síntese de juízos, isto é, a ligação das diversas representações segundo a forma do tempo. Dito de outro modo, a forma temporal do fenômeno é resultante do efeito da espontaneidade 201 Idem, p 126.


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do entendimento sobre a sensibilidade, tornado possível — em um primeiro momento — pela imaginação. A razão, por sua vez, torna possível — em um segundo momento — pensar a totalidade do entendimento. Nosso próximo passo será o de retomar o conceito de espontaneidade de Moreno, buscando mostrar: a) que o mesmo se trata de um conceito ontológico; b) que podemos definir o homemcomo ator espontâneo-criador; c) que podemos compreender a história como processo do Deus-Eu. Tomemos então a primeira questão: de que maneira podemos demonstrar que o conceito de espontaneidade se trata de um conceito ontológico? Em 2.1, levantamos a questão de se o conceito de espontaneidade, na sua vinculação estabelecida por Moreno ao conceito de self (eu, pessoa), alinha-se à ontologia da metafísica clássica ou à epistemologia da filosofia moderna. Dissemos que pelo fato do mesmo ter sido por ele vinculado também aos conceitos de Cosmos e de Deus, tratava-se de um conceito ontológico. Pois encontramo-nos agora munidos dos elementos teóricos indispensáveis para confirmar esta proposição, de modo a esclarecer de que maneira a posição filosófica de Moreno se inscreve na história da filosofia, conferindo à mesma uma nova perspectiva. Como vimos acima, Aristóteles introduziu o conceito de espontaneidade na filosofia, definindo-o, a partir da noção de ekoúsios, como atributo da ação de um ente na qual a origem do movimento instrumental para tal ação reside no próprio agente; em outras palavras, quando a origem da ação de um ente está nele mesmo, no seu próprio poder de executá-la ou não. Como tal, uma ação espontânea pode ser atribuída a grande parte dos seres vivos na sua interação com o meio ambiente, especificamente, quando a ação reside no agente. Por exemplo, quando um sapo diante de um inseto, sua presa, age em um determinado momento preciso para capturá-lo com o movimento da sua língua. Diferencia esta definição de espontaneidade de uma outra relacionada à noção de automatos, isto é, de algo capaz de automovimento — por exemplo, a gasolina que queima espontaneamente quando um palito de fósforo aceso cai sobre a mesma —, como uma ação que se determina pelo seu caráter casual, incidental, a partir de um fator externo ao agente — neste caso, o fósforo aceso. No caso do sujeito humano, a ação espontânea se reveste de um caráter ético ou moral. A palavra ética deriva do termo grego éthos, que significa hábito, sendo o equivalente etimológico do termo latino mores, costume, da qual a palavra moral é proveniente. Aristóteles analisa a atividade prática do homem em sua vida social em função de um “estado” do sujeito, que é de certo modo a cristalização de hábitos ou costumes adquiridos desde a sua infância. A virtude ética se traduz como a cristalização de bons hábitos. A ética se situa na dependência da política na medida em que são as leis justas que, em última instância, estabelecem os comportamentos corretos que dão os bons hábitos. Neste sentido, o homem age espontaneamente de acordo com a formação moral de seus hábitos. É preciso compreender a ética aristotélica em relação à ética platônica para compreender a sua originalidade. Como vimos em 3.2, Aristóteles rejeitou o dualismo platônico, isto é, a separação da realidade em dois mundos — o mundo sensível dos corpos e o mundo inteligível das ideias —, rejeitando, consequentemente, a teoria platônica das Ideias, e com isso, a univocidade do inteligível, baseada na noção de que o único objeto próprio da ciência são as Ideias. Alternativamente, adotou a pressuposição da plurivocidade do objeto da inteligência, expressa na sua máxima “o ser se diz de muitas maneiras”. Aristóteles especifica as ciências segundo o diferente uso do logos — entendido como linguagem e razão —, de acordo com o objeto a que se aplica. O que o levou à divisão das ciências quanto aos seus diferentes objetos, e a determinação do método próprio de cada uma. Daí a sua classificação genérica dos saberes


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entre: a) ciências teóricas, como a matemática e a física, destinadas a objetos que permanecem sempre idênticos a si mesmos, obedecendo à necessidade do inteligível, visam a contemplação da verdade de seus objetos; b) ciências práticas, como a ética e a política, destinadas a objetos que sofrem variação em seu modo se apresentar devido à intervenção da sua liberdade, isto é, os agentes humanos, visam a excelência do seu agir, que se nomeia pelo termo eudaimonia; c) ciências poiéticas, destinada a objetos produzidos ou fabricados pelo homem, como as obras de arte ou as máquinas, visam a perfeição da sua utilidade.202 Interessa-nos particularmente, a separação estabelecida por Aristóteles entre ciência teórica e ciência prática, e as suas implicações no futuro curso da filosofia. Essa separação se explica da seguinte maneira: tendo demonstrado que a excelência do sujeito humano em seu agir se encontra em tomar o bem como um fim em si mesmo, resta a questão de conhecer o que é o bem para poder praticá-lo, e assim alcançar a eudaimonia. Devido a sua rejeição da teoria platônica das Ideias, e consequentemente, da Ideia do Bem, Aristóteles propõe como método examinar os gêneros de vida que a tradição grega enumera como capazes de produzir o estado de eudaimonia. Detém-se, assim, no âmbito do empírico, onde não tem lugar os métodos da demonstração dedutiva ou da argumentação dialética, próprios das ciências teóricas. Outro aspecto ainda a ser considerado é o da relação intrínseca entre o bem, a eudaimonia e a liberdade, em face da necessidade do destino e dos azares da sorte. Ser livre significa agir espontaneamente escolhendo o bem, portanto, independente de fatores externos ao agente da ação. Segundo Lima Vaz, a filiação dos problemas kantianos “o que posso fazer?” e “o que devo fazer?” — que serviram de tema para dois de seus principais livros, respectivamente, “Crítica da razão pura” e “Crítica da razão prática” — remonta às tradições platônica (razão teórica ou razão pura) e aristotélica (razão prática). Com o seu conceito de “razão pura prática”, Kant reintegra a herança aristotélica na platônica.203 Porém, não através de uma metafísica ontológica (logos do ser), mas, de uma metafísica epistemológica (logos do sujeito do conhecimento). Seguindo a intenção do racionalismo moderno, a evolução do pensamento de Kant o guiou rumo a articulação de uma moral rigorosamente racional, fundamentada no postulado de uma liberdade transcendental que se manifesta empiricamente como autonomia da vontade e uso prático da razão, e cuja síntese é o dever de obedecer a lei moral. Suprimido o fundamento transcendente da liberdade assegurado pela metafísica clássica na ontologia do Bem, Kant tratou de garantir-lhe a condição transcendental, a priori, definida por sua espontaneidade absoluta. O passo decisivo dessa operação foi demonstrar que a Razão pura é igualmente prática, isto é, contém a possibilidade de uma determinação da vontade a priori, independente de qualquer fator empírico. Tal determinação permaneceria no âmbito de uma simples suposição, se não implicasse a existência de um fato sobre o qual se apoiasse o pretenso alcance real do uso prático da Razão pura. Pois, a existência deste “fato da Razão” é atestado pelo próprio exercício da autonomia da vontade pelo sujeito empírico na obediência à lei moral. Neste sentido, a lei moral nos é dada como um fato que não pode ser explicado por nenhum dado do mundo sensível. A reintegração da herança aristotélica na platônica operada por Kant é assim compreendida através da demonstração de que a ciência prática — a Ética — pode ser determinada segundo as exigências da razão, seguindo a orientação platônica, sem que se precise recorrer a dados empíricos, seguindo a orientação aristotélica. Podemos observar que esta operação se tornou possível graças a modificação, feita por Kant, do conceito de espontaneidade de Aristóteles. Enquanto para Aristóteles a espontaneidade é um atributo de

202 LIMA VAZ, H. C. Escritos de filosofia IV – Introdução a ética filosófica 1. São Paulo, Ed. Loyola, 2002, pp 113- 116. 203 Idem, pp 316-317.


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uma ação que tem como princípio o seu agente, permanecendo, enquanto conceito, no âmbito da Ética, e não no da Metafísica; para Kant a espontaneidade é elevada à esfera metafísica — segundo a sua concepção não ontológica de metafísica — da Subjetividade Transcendental como Liberdade Transcendental. Tanto Aristóteles como Kant tentavam responder ao mesmo problema: a contradição entre o determinismo ou necessidade da natureza e a liberdade do espírito. O conceito de espontaneidade serviu a ambos como fator de resolução dessa contradição, levando, todavia, a concepções distintas. Enquanto na concepção ontológica de Aristóteles, a liberdade é fundada na objetividade do bem; na concepção epistemológica de Kant, a liberdade é fundada no apriorismo da Razão prática. Ambas concepções carregam aporias que não nos cabe aqui abordar. Toda essa discussão nos conduziu ao ponto onde almejávamos chegar: também Moreno formulou o seu conceito de espontaneidade como resposta à questão da liberdade. É fundamental que possamos inscrever desse modo, não só o conceito moreniano de espontaneidade, mas a teoria do psicodrama na história da filosofia. Quais seriam então os princípios teóricos que nos permitem — seguindo a intuição de Moreno — definir o conceito de espontaneidade como conceito ontológico? Para Moreno, “Deus é pura espontaneidade”. Como podemos compreender esta proposição a partir dos conceitos de espontaneidade de Aristóteles e Kant? Recapitulando brevemente: em Aristóteles, a espontaneidade é um atributo da ação autônoma, livre, de um agente; em Kant, é a espontaneidade absoluta ou pura, enquanto postulado da subjetividade transcendental, a priori, que fundamenta a possibilidade da liberdade do sujeito empírico. Recordemos, do que dissemos em 3.2, que o ponto principal da superação do dualismo platônico proposto por Aristóteles foi o conhecimento da causalidade formal das essências, que levou-o à concepção dos entes como compostos de matéria e forma ou essência, existentes em ato em um mundo único, sem separação. O Ato puro é a causa impessoal que coloca o mundo em movimento, operando a passagem da potência — estado de essência — ao ato — existência — dos entes. O que seria então o Ato puro senão a espontaneidade pura de um agente primordial — entendida no sentido apriorístico de Kant — que fundamenta ontologicamente a ação de todo e qualquer ente? A questão é que para Aristóteles esta noção era inconcebível. A sua noção de Ato puro, enquanto motor do universo, não era um agente, mas uma causa impessoal. Devemos aqui lembrar que no mundo grego de Aristóteles ainda se desconhecia a concepção judaico-cristã de um Deus criador, entendido como agente pessoal transcendente que fundamenta a imanência da ação de todos os agentes individuais na realidade objetiva do mundo. Seria necessário esperar por Santo Tomás para mostrar que o Ato puro aristotélico corresponde ao Deus das Escrituras, desde que tal concepção seja corrigida em alguns aspectos fundamentais. Deus é concebido por Santo Tomás como Ser ou Existência — esse ipsum subsistens —, isto é, como o que subsiste por si mesmo — de modo único, indiviso, imutável, eterno, necessário, absoluto, abrangente —, precedendo é procedendo a tudo quanto existe no mundo. Dizer morenianamente que Deus é pura espontaneidade significa, portanto, que Deus é o ser subsistente dotado de liberdade para agir por si mesmo, sendo, desse modo, a fonte a priori da ação espontânea de todo e qualquer agente mundano, o que inclui, logicamente, o sujeito humano. Kant pretendia com o postulado da espontaneidade absoluta assegurar epistemologicamente o uso da Razão prática, isto é, o uso da liberdade por parte do sujeito empírico para obedecer a lei moral, suprimindo assim o dogmatismo da ontologia da metafísica clássica. Como vimos em 3.1, a rejeição kantiana da ontologia era devida a compreensão de que não se pode conhecer objetivamente nada do que


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transcende à experiência fenomenológica e, portanto, não se pode fundar o conhecimento metafísico da existência de Deus, a não ser dogmaticamente. Por isso, reveste-se de importância crucial para a coerência do sistema kantiano a compreensão da lei moral — enquanto ratio cognoscendi da liberdade transcendental — como fato da Razão, isto é, como algo passível de ser determinado racionalmente a partir da experiência, e portanto, de modo não dogmático. À luz da filosofia moderna, é inconcebível dizer morenianamente que Deus é pura espontaneidade, posto que se trata de uma proposição dogmática, isto é, inverificável pela experiência fenomenológica. De modo que não podemos nos satisfazer com a nossa primeira resposta, acima formulada. É preciso superar a crítica kantiana para que não sejamos taxados como dogmáticos. De acordo com Oliveira, a perspectiva filosófica de Kant consiste na inversão metodológica da metafísica clássica: ao invés do nosso conhecimento se configurar conforme os objetos, os objetos é que se guiam conforme o nosso conhecimento. Neste sentido, “todos os elementos necessários para o conceituar de algo provêm da própria esfera do conceituar e não da coisa”.204 Kant está correto considerando que “a dimensão do conceituar possui um caráter ineliminável, pois tudo o que fazemos teoricamente se situa necessariamente nessa esfera”.205 Porém, a posição por ele adotada teve como consequência insustentável a dicotomia radical entre sujeito e objeto, espírito e natureza, pensamento e ser, linguagem e mundo, teoria e realidade. Hegel tentou superar esta dicotomia tratando de tematizar a própria atividade de conceituar — o pensamento conceitual —, mais especificamente, o sistema de todas as determinações do pensamento enquanto tal, na medida em que este é sempre pensamento do todo no sentido objetivo e subjetivo. Propôs-se, neste sentido, a determinar na “Ciência da Lógica” as categorias do pensamento como expressão da identidade entre sujeito e objeto, de modo que o pensamento se revela dialeticamente como um apreender do próprio ser, uma expressão da sua estrutura inteligível. No entanto, Hegel em vez de superar a dicotomia, radicalizou-a ainda mais, na medida em que a dimensão do ser enquanto ideia absoluta, ou pensar absoluto, nada mais é na realidade do que a própria subjetividade absolutizada. Schelling, como vimos em 3.5, apontou criticamente a falha do sistema de Hegel argumentando que a representação inteira do processo por ele descrito é ilusória, visto que não se presta a conhecer o que efetivamente existe, os processos reais da história, pensados a partir da existência de Deus. Ao limitar-se a ordenar o desdobramento das categorias do pensamento de uma perspectiva lógica, Hegel não percebeu que “os conceitos como tais não existem de fato em parte nenhuma a não ser na consciência.” 206 Schelling argumenta que ao longo da tradição filosófica Deus sempre ocupou o lugar de resultado, de ideia suprema, conclusiva. Inclusive para Kant, Deus é entendido como ideia necessária para a conclusão formal do conhecimento humano. Se, por um lado, apesar de poder ser pensado, Deus não pode conhecido pela razão pura como objeto real; por outro lado, é necessário admitir a sua ideia, bem como, a da liberdade, como garantia para o uso prático da razão.207 Neste contexto, Schelling reconhece a diferença entre a ideia ou conceito Deus, posto pela consciência humana como resultado de um longo processo cognitivo de racionalização de Deus, através do qual a sua ideia aparece como lógica, e Deus em sua existência própria, anterior à consciência humana. Daí compreender-se a proposta schellinguiana de superação da dicotomia radical entre sujeito e objeto. Para ele, Deus é o Absoluto enquanto sujeito-objeto fora de nós, independente de nós, anterior a nós, isto é, o sujeito objetivo primordial, o subjetivo em sua plena objetividade. Neste

204 OLIVEIRA, M. A. Antropologia filosófica contemporânea. São Paulo, Paulus, 2012, p 107. 205 Idem, p 111. 206 SCHELLING, F. W. J. Obras escolhidas / Friedrich von Schelling; coleção Os pensadores. Op cit , p 166. 207 LIMA VAZ, H. C. Op citt, p 329.


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sentido, deve haver um movimento de progressão do Absoluto à subjetividade da consciência humana, cuja inteligibilidade pode ser articulada como processo objetivo, real; e não como mero movimento do pensamento, tal como propôs Hegel. A passagem do Absoluto para o mundo finito, até a emergência da consciência humana, é postulada por ele como o processo de criação de Deus, não por necessidade, mas, pela sua livre decisão, estabelecendo uma divisão em sua própria existência, isto é, criando dentro de Si mesmo uma subdivisão em relação a Si mesmo. Deus permanece como tal, isto é, como transcendência, relativamente ao universo material, que passa, desde a sua origem, a evoluir temporalmente como parte de Si, como Sua imanência. Tal processo, como vimos em 3.5, acontece em estágios de desenvolvimento regidos pelo dinamismo das potências divinas. Com Schelling, a tematização da atividade de conceituar adquire assim um novo método, proposto como tarefa da filosofia positiva. Trata-se de descrever fenomenologicamente a história mundial como o caminho percorrido pela própria consciência, desde seus primeiros passos, na natureza, portanto, na esfera do empírico, “até o ponto em que o sujeito, que passou através da natureza inteira, que chegou a si, que possui a si mesmo (o eu), por certo não encontra mais os próprios momentos anteriores deixados para trás na natureza, mas encontra os conceitos deles [...] dos quais a consciência agora põe e dispõe, como de uma posse inteiramente independente das coisas e que ela aplica por todos os lados”.208 Como vimos, este processo acontece através de duas etapas distintas: a da mitologia e a da revelação. Ao final, aparecem reunificados pela atividade filosófica os pares de opostos sujeito-objeto, espírito-natureza, necessidadeliberdade, infinitude- finitude, transcendência-imanência etc. Contudo, com Schelling ainda nos situamos no quadro teórico da filosofia da subjetividade. A questão levantada por Heidegger sobre o sentido do ser — a partir da compreensão de que existe uma diferença ontológica entre o ser e os entes, o ser e o mundo, como vimos em 3.3 —, continha a preocupação de superar o privilégio da subjetividade transcendental, na medida em que o ser não é nem o ente de Aristóteles, nem a coisa em si de Kant, mas emerge como sentido originário que se mostra a si mesmo. Na primeira fase de seu pensamento, de “Ser e Tempo”, o ser humano é o lugar de abertura à manifestação do ser, o Dasein. A subjetividade deixa de ser, como em Kant, a instância determinante do sentido de tudo, para ser entendida como abertura ao que se mostra, isto é, ao ser. A sua perspectiva filosófica aqui é fenomenológica, descrevendo o que aparece na facticidade do ser-no-mundo. Na fase tardia, reconhecendo o fato de a abordagem fenomenológica permanecer limitada pela referência necessária ao sujeito, e assim, presa por ambiguidades, propôs uma inversão: “não pensar o ser a partir do Dasein, mas, ao contrário, pensar o Dasein a partir do ser”209, operação expressada pelo conceito de acontecimento apropriativo (Ereignis). No atuar da vida se dá o seu sentido-fundamento, daí esta se revelar como essencialmente histórica. Desse modo, perguntando pelo sentido do ser, Heidegger entendeu a filosofia como interpretação da vida fática, ligando-a à tradição hermenêutica. Quanto à filosofia de Schelling, foi enquadrada por Heidegger como ontoteológica, por não ter tematizado o ser na sua diferença ontológica. Será? Procuraremos apresentar a seguir a tese oposta. Michel Henry argumenta que o procedimento de Heidegger teve como implicação deletéria confinar o aparecer — a fenomenalidade — ao ser-no-mundo, isto é, ao visível, à exterioridade, ao “fora de si”,

208 Idem, p 166. 209 OLIVEIRA, M. A. Op cit, p 118.


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aos objetos intencionados pela consciência. Como vimos em 3.3, o modo de aparecer do ser-no-mundo permite-nos identificar toda e qualquer coisa do mundo na sua diferença objetiva, mas não nos permite dizer nada além de que “isso existe”, “há”. Esse modo de aparecer é indiferente a tudo o que ele desvela, e é incapaz de lhe conferir a existência. O desvelamento do aparecer faz ver o que há, mas não o cria, isto é, não está em condições de pô-lo na existência. De modo que o ser-no-mundo não é a essência de toda fenomenalidade possível. Há uma outra fenomenalidade, anterior, originária, que serve de esteio à intencionalidade, que o conceito de Ereignis não dá conta de aclarar. O discurso de Heidegger permaneceu confinado ao logos grego, isto é, à limitação da fenomenalidade ao ser-no-mundo. Dentro desta limitação, a linguagem é compreendida redutivamente como o designar, definir, conceituar o mundo. De modo que toda atividade teórica, filosófica ou científica, permanece confinada a este limite. Esquece-se, todavia, que esta linguagem não é a única que existe. Há uma outra dimensão da linguagem correspondente ao invisível, à interioridade, ao “em si”, ao sujeito da consciência: a autorrevelação da Vida, o logos cristão. Como observa Henry, levar em consideração certos temas religiosos fundamentais nos permite descobrir um imenso domínio desconhecido do pensamento considerado racional. Longe de se opor a uma reflexão verdadeiramente livre, o cristianismo colocaria a filosofia tradicional e seu corpus canônico diante de seus limites, para não dizer diante de sua cegueira.210 O que caracteriza esta linguagem? Em que difere radicalmente do logos grego? De que maneira o precede e abrange? O logos cristão se trata de uma palavra oculta que “reside no ‘segredo’ em que Deus nos vê”.211 Trata-se da relação essencial que une a palavra e a vida, tal como a experimentamos em nós. A palavra da vida se endereça a nós de modo radicalmente diferente da palavra que se mostra na exterioridade do mundo. Como a palavra do mundo revela um conteúdo que lhe é exterior, é capaz de afirmar uma realidade quando esta não existe — e assim de enganar, de mentir —, havendo sempre a necessidade de ser verificada, validada, legitimada. De outro modo, através da palavra da vida o que se revela e o que é revelado formam algo uno e, por isso, intrinsecamente verdadeiro. Todas as palavras provenientes de modalidades da vida, como o sofrimento ou a alegria, possuem a singularidade de constituírem algo uno com o que elas nos dizem. As características decisivas da palavra da vida — que é a de Deus — podem ser assim resumidas: cada uma é dada a si mesma, se experimenta a si mesma, é revelada a si como uma palavra de Verdade, incapaz de mentir, tal como o sofrimento ou a alegria. Não há representação na palavra da vida, mas expressão daquilo que é. Quando, por exemplo, se sofre verdadeiramente, e se fala desse sofrimento, não se fala sobre ele, indiferente a ele; fala-se a partir dele, de modo uno com o que diz uma carne sofredora, nos termos de Henry. Em termos fenomenológicos, a possibilidade da palavra do sofrimento se sustenta na palavra da Vida, quer dizer, na autorrevelação da Vida. Isso significa que na palavra da autorrevelação da Vida há equivalência entre estrutura ontológica e semântica. E esta é a chave fundamental para se compreender a linguagem em sentido universal, como o Logos — o universo irrestrito do discurso, nos termos de Puntel —, se fenomenaliza. A mediação de um sujeito que produz uma representação do fenômeno que aparece diante de si na forma de uma proposição linguística — logos grego —, funda-se na experiência da sua afetividade, da vida que se autorrevela na sua

210 HENRY, M. Palavras de Cristo. São Paulo, É Realizações Editora, 2014, p 95. 211 Idem, p 101.


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carne — logos cristão —, de um irrenunciável sentido dado pela Vida; o mesmo que dizer, por Deus. Vimos em 3.6 que a linguagem é a instância correlata à expressabilidade universal, enquanto característica fundamental da estrutura imanente do Ser, portanto, coextensiva ao Ser. Fala-se aqui da linguagem no sentido maximal, que já está dada com a imanência do Ser em seu todo, não sendo, neste sentido, um produto humano. O erro fundamental da posição epistemológica da filosofia moderna — incluindo a de Heidegger — foi ter reduzindo a linguagem universal a uma produção humana. Puntel esclarece que há um plano fundamental e abrangente da linguagem, o plano emântico, que funda a possibilidade de um consenso intersubjetivo, no plano pragmático de determinação da linguagem, como sistema composto por símbolos linguísticos resultante da produção histórico-cultural entre sujeitos humanos, correspondente ao logos grego. No plano semântico ocorre autodeterminação da linguagem, na medida em que a determinidade de uma sentença é dada de modo puramente interno à linguagem, não comportando nenhuma referência a fatores externos como contextos cotidianos ou experimentos científicos. Aqui, a linguagem realmente atinge aquilo o que quer, ou deve significar de modo determinado, fazendo com que a estrutura ontológica da expressibilidade do Ser seja aclarada. Não é difícil correlacionar aqui o plano semântico de autodeterminação da linguagem como o plano de autorrevelação da Vida. Puntel nos diz que quando uma sentença comporta a presença implícita do operador semântico “é verdade que” ou “é o caso que”, isso significa que tal sentença pode ser considerada como expressão linguística de uma estrutura ontológica, visto que não há nenhuma restrição em compreendê-la como conhecimento universal, não condicionado por contextos cotidianos ou experimentos científicos, em outras palavras, por uma subjetividade transcendental. A palavra da vida, que se experimenta a si mesma, revelando-se a si como uma palavra de Verdade, o logos cristão, é o locus onde a linguagem se autodetermina. Fica assim demonstrado de que maneira o logos cristão — que é a palavra de Deus — funda a possibilidade do logos grego. Podemos enfim voltar à proposição de Moreno de que Deus é pura espontaneidade, supondo a presença implícita do operador semântico “é verdade que” Deus é pura espontaneidade. Supera-se assim a obrigatoriedade do uso do operador kantiano “a partir da perspectiva da subjetividade transcendental é o caso que”, e portanto, a dicotomia sujeito-objeto da filosofia moderna, que enquadra o discurso de Moreno como não científico, ou místico-supersticioso, ou poético- metafórico, ou infundado-incoerente. Dizer que Deus é pura espontaneidade significa assim dizer que a ação espontânea do sujeito humano encontra-se intrinsecamente ligada a autorrevelação da vida através da afetividade da sua carne, e dessa maneira, ligada à Vontade de Deus. Todo o nosso esforço até aqui foi o demonstrar de que maneira podemos conceber o conceito de espontaneidade a partir de um fundamento filosófico-científico de caráter ontológico.


PARTE 4

POR UMA ANTROPOLOGIA DA ESPONTANEIDADE

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4.1. O homem como ser espontâneo-criador Trataremos agora de responder à questão fundamental da antropologia: o que é o homem? Antecipando a resposta, definiremos o homem como ator espontâneo-criador. Para articular a nossa resposta utilizaremos os desenvolvimentos teóricos apresentados nos capítulos anteriores. Comecemos voltando à teorização de Wojtyla acerca do conceito de pessoa apresentada em 3.2. Wojtyla toma o conceito de pessoa da metafísica aristotélico-tomista como base para a fundação de uma antropologia filosófica de caráter ontológico. Com o auxílio da fenomenologia, nos mostra a coerência entre o “agir” humano e o “ser” humano, dado que “o homem só pode agir na medida do seu ser e do modo do seu ser”.212 Da compreensão desse fato antropológico fundamental emerge o princípio ontológico de que “a pessoa se revela através da ação”. 213 Ou seja, o ser em ação — existência — é o que revela a pessoa — essência —, e não o contrário. De modo que a estrutura ontológica da pessoa pode ser investigada através da experiência fenomenológica que o indivíduo humano faz da sua existência, tomando a sua ação como ponto de partida. Na sua análise fenomenológica da ação humana, Wojtyla nos mostra que o indivíduo aparece em seu campo de experiência, por um lado, como um objeto entre outros no exterior do mundo, e, por outro, como o sentimento de uma presença interior, de um existir em si. Desse modo, a ação humana possui um duplo caráter: a) um caráter transitivo, ligado aos objetos ou valores intencionalmente visados pela consciência, portanto, mediado por alguma causalidade externa; b) um caráter intransitivo, que só se deixa pressentir como o sentido de uma interioridade, de um existir em si independente de qualquer mediação da consciência, de ser agente autoconsciente da própria ação, portanto, por uma causalidade interna, sem mediação. Encontramos aqui uma perfeita correspondência com a análise de Henry: o caráter transitivo corresponde à dimensão da facticidade do ser-no-mundo, da palavra do mundo; o caráter intransitivo, à dimensão da autorrevelação da vida, da palavra da vida. Como ser autoconsciente, o indivíduo é capaz de reconhecer-se na unidade da ação de seu serno-mundo através da sucessão de atos da sua história de vida, como uma identidade histórico- biográfica. Falamos do processo de autodeterminação do eu, ligado à intencionalidade da consciência. O indivíduo aparece para si mesmo como uma representação de si, ou autorrepresentação. Assim, através da identificação como uma determinada imagem de si, o indivíduo eleva a sua situalidade, ou seja, seu lugar no mundo, à condição de autossitualidade consciente no mundo. Nomeando-se como um eu, transita no universo da linguagem constituído como um complexo de relações entre representações — que Husserl denomina mundo-da-vida. A vontade é a faculdade determinante da ação humana, na medida em que é a sua causa eficiente. A inteligência, implicada pela vontade, responde pela necessidade de apreender a inteligibilidade da realidade para que a ação possa ser adequada à mesma. O sentido de eficácia em relação à própria ação

212 WOJTYLA, K. Teoria-praxis: um tema humano y cristiano. Op cit, p 5. 213 WOJTYLA, K. La subjectividad de la persona. Op cit, p 7.


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está intimamente conectado ao sentido de responsabilidade pela mesma, conferindo caráter axiológico e ético ao ato humano. O sujeito é capaz de escolher o seu modo agir, conferindo aos seus atos a marca de sua livre e espontânea vontade. Compete-lhe assim a autopossessão, autogoverno e autorrealização de si mesmo como pessoa. Fala-se, neste sentido, da liberdade como poder de autodeterminação. O indivíduo encontra-se, assim, teleologicamente orientado em sua ação a atualizar a sua essência-potência, isto é, a autodeterminar-se como pessoa. O processo de autodeterminação do eu através da sua ação corresponde a um progressivo movimento de transcendência das determinações adotadas pelo eu em seu ser-no-mundo. Wojtyla chama de transcendência transitiva o movimento resultante da abertura intencional da consciência de se relacionar para um além dela própria com aquilo que ela não é. A temporalidade é a expressão desta transcendência, pois através dela é visado, para além do presente (o que é), o passado (o que já não é) e o futuro (o que ainda não é). A pessoa se encontra a cada momento em permanente movimento de ultrapassagem do que é, transformando-se através das relações com os objetos e valores por ela visados, assimilando ao seu ser o que lhe aparece no mundo. Trata-se de um movimento horizontal, que não ultrapassa o “horizonte do mundo”, seu limite. Por sua vez, a transcendência intransitiva acontece através da abertura à transcendência divina. A pessoa como ser espiritual encontra-se coextensivamente ligada a Deus através do sentido que lhe é dado na imanência de seu existir. Cabe então ao sujeito abrir-se à palavra da vida que lhe é imanente na afetividade da sua carne, e que acontece independente de qualquer mediação da consciência, de modo pré-reflexivo. Falamos aqui da revelação do valor transcendente do amor que une a pessoa humana à Pessoa Divina, a partir da afetividade de seu existir em si, que experimenta como “matéria prima” da sua ação. A cada ato, concorrem valores de natureza transitiva e de natureza intransitiva: por um lado, valores culturalmente estabelecidos, ligados à contingência histórica, ideológica, política, epistemológica do mundo; por outro, valores relativos ao bem e à verdade divinas, imanentes à vida interior do sujeito através da sua afetividade. A liberdade humana não se reduz, portanto, à eleição entre valores do mundo, isto é, a valores ligados a contingências culturais cujo homem é a única medida. O homem pode ser verdadeiramente livre na medida em que se reporta ao mundo relativizando os valores ligados a contingências culturais que o assediam, tomando como base a afetividade imanente a sua ação. Entendemos assim a verdadeira liberdade como poder de decidir agir pelo bem, quer dizer, orientado pela verdade contida na afetividade imanente à ação; ou, contrariamente, agir pelo mal, ignorando ou negando essa verdade, sob as inúmeras formas de mentira, engano ou ilusão. O ato ético significa, desse modo, agir segundo essa verdade — que podemos chamar de verdade do coração, verdade do amor — e não contrariamente a ela. A liberdade implica, portanto, a busca pelo discernimento do bem e do mal, enquanto valores transcendentes ao mundo, mas imanentes à existência do homem através da sua afetividade. Um outro aspecto a ser considerado a partir da ação é o da relação entre indivíduos. Ao nível do caráter transitivo da ação, acontece a partilha e a troca de objetos e valores culturalmente instituídos. O que permite este tipo de relação é o fato da intencionalidade da consciência ser estruturada intersubjetivamente, como “mundo-da-vida”. Desde aí, a objetividade da comunicação racional pode ser estabelecida através de um ponto de vista transubjetivo, o que é normalmente acontece no plano contextual-cotidiano da linguagem. O sentido não é outra coisa que modos de validade afirmados pela comunidade de indivíduos. Ao nível do caráter intransitivo da ação, a relação entre sujeitos acontece a partir da consciência de que


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o outro é um outro eu, o que permite se aproximar conscientemente do outro desde a experiência vivida do próprio eu. O outro nos aparece não racionalmente, mas, existencialmente, afetivamente, como um próximo. Trata-se da experiência de participação, definida como experiência de interação com o outro, buscando experimentá-lo como possuindo as mesmas potencialidades afetivas e cognitivas que o nosso próprio eu. Agindo desse modo, atualizamos as potencialidades do nosso próprio eu, ao mesmo tempo que proporcionamos que o outro faça o mesmo. O outro se torna assim nosso próximo. Participamos da mesma humanidade enquanto pessoas. Não se trata de uma atividade universal, mas sempre inter-humana, única e irrepetível. Pode tanto ser unidirecional como recíproca. Como pode também simplesmente acontecer de não se atualizar, permanecendo apenas como uma potencialidade. A atualização da participação surge assim, a cada um de nós, como uma tarefa. O mandamento do amor contido no Evangelho pode ser compreendido como expressão desse chamado, desde dentro de nosso eu, para participar efetivamente daquilo que é a nossa verdadeira humanidade. Eis o seu significado ético: não há como amar quem quer que seja a não ser desde o íntimo de nosso “eu”. Sobretudo aquele outro que não elegemos ou optamos de acordo com nossas preferências, mas que nos é dado interagir pelo simples fato de que, por algum motivo circunstancial, se encontra frente a nós. Há um dinamismo intrínseco à ação humana que também pode ser determinado fenomenologicamente. A abordagem da questão do corpo articulada por Henry é a chave para compreendermos esse dinamismo a partir da interioridade de nosso existir. O corpo humano pode ser compreendido a partir de dois princípios distintos de análise fenomenológica: a) quanto à natureza epistemológica, entre um corpo subjetivo e um corpo objetivo; b) quanto à natureza ontológica: entre um corpo absoluto e um corpo orgânico. Quanto à primeira distinção, o corpo que age — corpo subjetivo — não é o corpo representado — corpo objetivo. O corpo subjetivo é o conjunto de nossas potencialidades que são atualizadas no momento da ação como poder, força, forma efetiva e eficaz de energia. Trata-se do “eu posso”; que nos faz, por exemplo, agarrar algo com as mãos, ouvir sons com os nossos ouvidos, ver cores como os nossos olhos. O corpo objetivo, por outro lado, é o que aparece no mundo como uma pluralidade de atos corporais, e desse modo, como representações. Quanto à segunda distinção, o corpo orgânico, enquanto conjunto das estruturas somáticas e dos processos físico-químicos, não deve ser entendido como o lugar de proveniência da força, da potência, da energia que o faz agir. Tal proveniência encontra-se, antes, no que Henry denomina como corpo absoluto. Este não tem mãos, ouvidos ou olhos, pois não se trata de uma estrutura ôntica, com propriedades empíricas, mas de uma estrutura ontológica. Trata-se de um Arqui-Corpo: um corpo originário, subjetivo, portador de uma Arqui-inteligibilidade na qual toda a Potencialidade do Ser encontrase implicada. É o Arqui-Corpo do Primeiro Si Vivente, revelado em sua perfeição na Encarnação de Jesus Cristo — o Logos cristão. É devido a esse corpo absoluto, enquanto essência de toda subjetividade, que a nossa ação nos é revelada em primeira pessoa como pathos da vida; é nele onde reside a sua fundação existencial. O corpo entendido, portanto, como essencialmente subjetivo — como um “eu posso” (potência ou potencialidade) que se atualiza na ação, cuja materialidade e substancialidade não deve ser confundida com a do corpo orgânico — é uma modalidade da vida da subjetividade absoluta. Numa antropologia cristã, o corpo subjetivo recebe o nome de carne. O dinamismo da ação humana acontece a partir da recepção pelo corpo orgânico (sistemas neuronais) de dois tipos de excitação: a) proveniente da objetividade do mundo enquanto sistema de representações, como fonte da ação transitiva; b) proveniente da subjetividade do corpo absoluto enquanto pathos da vida, como fonte da ação intransitiva. A ação efetiva é determinada pela interação entre estes dois pólos, que


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vamos aqui denominar pólo consciente e pólo inconsciente. Henry, em seu estudo sobre a psicanálise, aponta criticamente o fato de Freud ter vinculado o inconsciente à representação. Alega que, com isso, desperdiçou a oportunidade de estabelecer o conceito psicanalítico de inconsciente como dimensão alheia a toda e qualquer determinação operada pela consciência, a bem da verdade, como o seu a priori ontológico: o pathos da vida. Reconhece o mérito de Freud de ter descoberto a relação intrínseca entre pulsão (desejo inconsciente) e afeto (afetividade), porém, adverte contra a sua redução equivocada do afeto a mero representante da pulsão. Da perspectiva fenomenológica proposta por Henry, a afetividade é o fundamento do inconsciente e da pulsão, não seu representante. Se Freud estava certo em propor a análise do desejo (pulsão) reconhecendo a sua proveniência no corpo; errou ao reduzir a pulsão às energias investidas no sistema neuronal, aos processos somáticos reduzidos ao nível físico-químico. Reduziu assim a força, o poder, a energia da vida, ao corpo orgânico, deixando de reconhecer que a força da vida possui outra origem: o pathos da vida experienciado pelo corpo subjetivo, pela carne. O cerne do problema está no fato de que a realização do desejo, limitada ao horizonte da representação, não traz em si o momento da realidade, melhor dizendo, da existência. Trata-se, por isso, de uma pseudorrealização, isto é, de um movimento de reprodução sem fim — retorno do recalcado — de algo passado, no qual o indivíduo permanece fechado à realidade, a um só tempo, de si mesmo, do outro (enquanto um tu) e da vida em seu todo. Nessa pseudorrealização, o eu permanece identificado a representações — imagens idealizadas de si — que o revelam em alguns de seus aspectos ao mesmo tempo em que o mascaram, impedindo-o de se revelar como a pessoa que é em si. Com isso, as potencialidades imanentes à ação que nos são dadas à experiência a partir da interioridade de nosso existir como pathos da vida — e que temos de passivamente sofrer de modo necessário, inalienável, irrecusável —, acabam não se atualizando enquanto tal, mas se manifestando na forma de angústia. Em suma: a ação revela a pessoa — a essência do sujeito humano — através de um dinamismo no qual as potencialidades de seu ser, imanentes em sua vida afetiva, encontram-se confrontadas com as representações que faz de si. O processo de autodeterminação do indivíduo como a pessoa singular que é em si depende da permanente transcendência das representações que faz de si, guiado pela vontade livre aliada à inteligência. Caso isso não ocorra, o indivíduo permanece limitado ao contexto dessas representações — imagens idealizadas que projeta para si em seu ser-no-mundo —, acossado pelo malestar da sua angústia. Caso descubra o caminho da revelação das potencialidades de seu ser em seu pathos, a autodeterminação da pessoa é levada ao seu ápice. Trata-se, enfim, da revelação da palavra da verdade e do amor que o conduz a participar comunal e fraternalmente da vida de outras pessoas. A pessoa singular se revela como espírito filho de Deus. Esta é a base antropológica concernente ao nosso quadro ontológico que utilizaremos agora para responder à pergunta — o que é o homem? —, valendo-nos do conceito de espontaneidade e de outros conceitos morenianos. Como vimos em 2.2, Moreno nos fala da sua experiência subjetiva de agir como Deus, em primeira pessoa, como um Eu, como resultante da possibilidade aberta no curso da história da humanidade por um longo processo de subjetivação da experiência de Deus, que “inconscientemente sempre existiu, mas nunca havia sido convenientemente explicada teoricamente”. A partir dessa experiência, tratou de religar a imagem do homem à imagem de Deus, afirmando a ideia da encarnação — a exemplo de Jesus Cristo


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— no contexto da tradição religiosa judaico-cristã. Para Moreno, a ideia de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus significa que o homem não é apenas criatura, parte da criação, mas, na sua coidentidade com Deus, também criador. É justamente neste sentido que — diferentemente dos demais entes vivos, entre bactérias, vegetais e animais — assemelha-se a Deus: como ser espontâneo-criador. O homem é capaz de participar da subjetividade de Deus atualizando-a em seu ser-no-mundo, isto é, no aqui e agora de seus atos espontâneo-criadores. Segundo N. Abbangano, as definições filosóficas de homem se agrupam em três tipos: a) que se valem do confronto entre o homem e Deus; b) que expressam uma característica ou uma capacidade própria do homem; c) que expressam a capacidade de autoprojetar-se como própria do homem.214 As definições do primeiro grupo baseiam-se na expressão do Gênesis (1,26) “E Deus disse: façamos o homem a nossa imagem e semelhança”. Aparece, por exemplo, no livro “Ética” de Spinoza que a essência do homem é constituída por certas modificações dos atributos de Deus. Para Fichte, o Eu absoluto é o princípio ou a substância do homem. Para Hegel, o homem é essencialmente Espírito e o Espírito é Deus. Por outro lado, Feuerbach inverte os termos ao dizer que aquilo que o homem pensa de Deus é a definição de homem. Enquanto Nietzsche proclama que “Deus morreu” e anuncia o super-homem. Entre as definições do segundo grupo, aparece a de Aristóteles, do homem como animal racional. Também a de Descartes, como alguma coisa que pensa. Cassirer, atualiza a versão definindo o homem como animal simbólico, ou seja, um animal que fala, detentor do logos. Há também quem recorra a natureza político-social do homem, como fizeram Platão e Aristóteles. Entre as do terceiro grupo, que ressaltam a capacidade de autoprojeção do homem, encontramos as de autores do Renascimento como Ficino e Pico della Mirandola, segundo os quais a liberdade do homem permite que ele projete suas próprias leis segundo o seu arbítrio. As de Kant, Heidegger e Sartre se alinham nesta vertente. Evidentemente, a definição de homem de Moreno como ser espontâneo-criador, compreendendo-a dentro do contexto da sua origem, tal como o que acabamos de expor, se encaixa no primeiro grupo. Mas, não se trata aqui de meramente classificar essa definição dentro da história da filosofia. A comparação com as outras nos serve, antes, para apontar a sua originalidade. Até então, ainda não se havia definido o homem pela sua criatividade, mais especificamente, pela sua capacidade de participar cocriadoramente da Criação de Deus. É neste sentido que Moreno nos propõe como tarefa nada menos do que “reencontrar uma posição para o homem no universo”215, na medida em que “ou o homem é responsável por todo o universo, por todas as formas do ser e por todos os valores, ou sua responsabilidade não significa absolutamente nada”216, nos fazendo ver que somos cocriadores da realidade que vivemos. Vimos que a sua proposição de que Deus é pura espontaneidade significa que Deus é o ser subsistente dotado de liberdade para agir por si mesmo, sendo, desse modo, a fonte a priori da ação espontânea de toda e qualquer partícula do universo. A existência de todo ente que como ser vivo é agente da sua ação provém da ação espontânea de Deus, o que quer dizer que a ação de cada ser vivo, na sua concretude e singularidade, só existe por que tem como fonte ou raiz a Existência de Deus. Assim, a espontaneidade de cada ser vivo, entendida como poder de agir autonomamente, é possível graças a Espontaneidade de

214 ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p 512. 215 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Campinas, Editorial Psy, 1993, p 15. 216 Idem, p 15


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Deus. A ação do sujeito humano segue a esse mesmo princípio, todavia, difere da dos demais seres vivos em um quesito fundamental: o grau de autonomia da sua ação, o poder de escolher como agir para além de qualquer determinismo condicionado pela sua estrutura corporal-orgânica, regida por leis naturais. Nas palavras de Moreno:

É um fator que o habilita a superar-se a si mesmo, a entrar em novas situações como se carregasse o organismo, estimulando e excitando todos os seus órgãos para modificar as suas estruturas, a fim de que possam enfrentar as suas novas responsabilidades. A esse fator aplicamos o termo espontaneidade (fator e). [...] No estado atual das pesquisas biogenéticas e sociais, parece ser mais estimulante supor que, no âmbito da expressão individual, existe uma área independente entre a hereditariedade e o meio ambiente, influenciada, mas não determinada pela hereditariedade e as forças sociais. O fator e teria a sua localização topográfica nessa área. É uma área de relativa liberdade e independência das determinações biológicas e sociais, uma área em que são formados novos atos combinatórios e permutações, escolhas e decisões, e da qual surge a inventividade e a criatividade humana.217 Este grau maior de autonomia do indivíduo humano designamos normalmente por liberdade ou livre-arbítrio. Como dissemos em 3.6, o indivíduo situa-se através da sua corporeidade no espaço-tempo do mundo natural. Contudo, a dimensão corporal é insuficiente para explicar a especificidade de seu ser espiritual. Não existe para ele vinculação necessária entre estímulo e resposta, a sua vida não se restringe simplesmente ao imediato. Como a sua ação se realiza no espaço aberto à linguagem, o homem nomeia, conceitua, distingue, sintetiza, o que implica a negação de todo e qualquer limite e exterioridade, levando-o a sempre transcender a facticidade imediata da vida, a sempre ultrapassar a si mesmo. O homem encontrase assim, desde a sua origem, aberto à possibilidade de formular respostas livres dos determinismos que o círculo funcional dos instintos garante às outras espécies de animais na luta pela vida. Encontramo-nos aqui diante da questão da liberdade humana. Como explicá-la? Do ponto de vista puramente biológico, a liberdade é algo negativo, pois, corresponde à falta de ordenação precisa entre estímulo e resposta, característica dos animais, o que implica na ocorrência de muito mais defeitos, erros ou inadequações no comportamento humano em relação a estes. De outro modo, em vez de pensar a liberdade humana como algo negativo, é possível compreendê-la como algo positivo, isto é, como plena emergência do espírito no mundo. Isso significa que não há como reduzir a capacidade espiritual de expressar o Ser à dimensão corporal-orgânica. Em sua constituição ontológica, o indivíduo é ao mesmo tempo limitado à finitude, pela sua dimensão corporal-orgânica, mas aberto à totalidade, à infinitude, ao absoluto, pela sua dimensão espiritual. A natureza humana encontra-se necessariamente vinculada à cultura humana. Há um consenso em se considerar que a origem do homem se deu com o advento da cultura, isto é, com suas formas, produtos e instituições culturais. Diferenciando-se radicalmente dos demais animais na escala evolutiva, o homem deixou de ser apenas natural para se tornar, a um só tempo, natural e cultural. O que equivale dizer que o fator constitutivo do homem se encontra, desde a sua origem, na relação recíproca entre natureza e cultura, num processo dinâmico de implicações mútuas. Por exemplo: se o corpo humano se movimenta, 217 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 101.


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não o faz como o corpo de qualquer outro animal, visto que o movimento do corpo humano não é apenas naturalmente determinado, mas, culturalmente determinado. Isto é evidente quando comparamos a gestualidade de pessoas de diferentes culturas. Encontramos nas pesquisas de Edgar Morin o conceito de neotenia humana como o fator constitutivo do nosso gênero. Em seu livro “O enigma do homem”218, Morin nos mostra que na escala evolutiva dos hominídeos, com a progressiva expansão do córtex cerebral, houve um aumento extraordinário da quantidade de neurônios associativos, configurando uma estrutura neuronal capaz de produzir imagens que evocavam a presença, no seio da consciência, de objetos ausentes deste campo. Tal capacidade é consequência da mediatização neuropsicológica operada pelo advento do terceiro cérebro, o neocórtex ou neoencéfalo, em relação aos primeiros hominídeos. De acordo com o modelo triúnico do cérebro (triunic brain) desenvolvido por MacLean e Laborit, temos: o primeiro cérebro, correspondente ao tronco cerebral ou paleoencéfalo, herança do cérebro reptílico, centro da procriação, da predação, do instinto de território, da gregariedade; o segundo cérebro, ou sistema límbico, correspondente ao rinencéfalo, herança dos primeiros mamíferos, como centro dos fenômenos afetivos; e, o terceiro cérebro, o neoencéfalo, próprio aos mamíferos superiores e aos primatas, como centro das operações associativas, lógicas, cognitivas. Foi assim criada uma disjunção, um hiato, uma brecha entre a percepção imediata dos estímulos provenientes do mundo ao redor, das coisas em si, e um mundo imaginário, subjetivo e individual. As mediatizações produzidas pelo terceiro cérebro, na sua interação com os dois primeiros, tornam a atividade da consciência humana indireta e reflexiva, em outras palavras, imaginativa e subjetiva, diferenciando-se da mera percepção imediata dos estímulos emitidos seja pelo próprio corpo, seja pelo meio ambiente. Associando elementos memorizados, estabelecendo correlações entre imagens, a consciência humana tornou-se reflexiva, possibilitando ao homem perceber-se na sua existência e conferir sentido a ela. Deixando de permanecer limitado, como os demais animais, à ação presente, o homem se tornou capaz, através da aquisição da capacidade de reflexão, de perceber o transcurso do tempo. A partir daí tornou-se capaz de exercer certo controle sobre os acontecimentos, pois, na medida em que conseguiu detectar sinais antecipatórios de determinada ocorrência, e assim, prevê- la, adquiriu poder de alterar o seu curso. É interessante notar a convergência entre a teoria de Morin e a de Moreno. Adiante, falaremos sobre a equivalência da brecha entre fantasia e realidade na matriz de identidade descrita por Moreno e a descrita por Morin. Veremos que este conceito nos ajuda a compreender de que maneira a ontogênese de cada indivíduo humano remonta a filogênese do gênero humano. Desprovido de instintos de sobrevivência estereotipados, como os de outros animais, ou melhor, tendo recalcado estes instintos ao longo do processo de hominização, o cérebro humano tornou-se imaturo e incompleto, como se permanecesse indefinidamente em estado juvenil. Um breve período de incompletude neurológica logo após o nascimento é um fato comum entre os animais superiores, especialmente entre os mamíferos. Enquanto, por exemplo, peixes e répteis nascem perfeitamente aptos a desempenhar todo o seu potencial comportamental, os mamíferos necessitam de cuidados maternais até que atinjam a maturidade cerebral. Um chimpanzé termina o seu crescimento cerebral após doze meses do seu nascimento. Já um homem precisa de muitos anos para o desenvolvimento neurológico do seu cérebro: mais de um ano para pronunciar as primeiras palavras e por-se em pé para andar; seis anos para aprender a ler e fazer operações

218 MORIN, E. O enigma do homem. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1975.


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matemáticas elementares; onze anos para estabelecer plenamente o pensamento racional, e assim por diante. E mesmo com a chegada da vida adulta, o homem pode continuar a aprender ou a desenvolver potencialidades virtuais de seu cérebro, às vezes, para além daquilo que qualquer outro homem tivesse até então manifestado. Este fenômeno, que caracteriza o homem como um ser em permanente contraditorialidade, ambiguidade, incompletude e inacabamento, é chamado de neotenia humana. É o que permite ao adulto continuar a aprender, a descobrir, a inovar. É também o que faz com que um indivíduo separado prematuramente de um grupo social, não consiga sobreviver, não existindo possibilidade de desenvolvimento para o mesmo sem um lento processo de educação cultural, que nunca se completa ou acaba. Além disso, sempre que um determinado padrão cultural é instituído, passa a gerar mudança e indeterminação no meio ambiente, levando a uma perpétua necessidade de readaptação através da criação de novas produções culturais. Podemos assim dizer que a estrutura biológica da neotenia humana é o que possibilita a emergência do espírito humano à imagem e semelhança ao Espírito de Deus como ser-no-mundo, em outras palavras, a imanência da transcendência divina na ação humana. Falamos aqui da liberdade humana como a matriz da capacidade espontâneo-criadora do homem, que se traduz como capacidade de participar cocriadoramente da Criação divina. Todavia, devido justamente à sua liberdade, a ação do indivíduo humano pode ou não estar de acordo com a sua fonte de espontaneidade e criatividade. A espontaneidade encontra-se intrinsecamente ligada a autorrevelação da Vida através da afetividade da sua carne, e dessa maneira está necessariamente ligada à Vontade de Deus. A depender da circunstância de um determinada situação, o sujeito pode, através de seu poder de livre escolha, agir de acordo com a verdade que se revela através da afetividade da sua carne, autodeterminando a sua ação como espontâneo-criadora, ou, dela se apartar. Neste sentido, dizer que o indivíduo está sendo espontâneo significa que está agindo, em face de uma determinada circunstância, de tal modo a atualizar as potencialidades imanentes em sua vida afetiva através do emprego da sua vontade livre e inteligência. Por isso, faz- se necessário um longo processo de maturação para que o homem possa alcançar a autoconsciência da sua potencialidade espontâneo-criadora, e desse modo, assumir a responsabilidade por ela. Descrevemos aqui, em termos morenianos, o que temos dito sobre o processo de autodeterminação do indivíduo como pessoa, que na singularidade da sua vida concreta se revela como espírito filho de Deus.

4.2. O conceito de papel e a constituição da realidade Moreno inova o entendimento da questão da vida humana como ser-no-mundo através do conceito de papel como elemento mediador da relação entre natureza humana e cultura humana. Como dissemos a pouco, há um consenso em se considerar que a origem do homem se deu com o advento da cultura, isto é, com suas representações, produtos e instituições culturais. Podemos dizer que os papéis são as estruturas básicas, primordiais, instituintes da cultura, que emergem subjetivamente da ação espontânea e adquirem objetividade enquanto representações. O indivíduo é socialmente reconhecido como pessoa em seus atos


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pelos papéis que desempenha. Nas suas palavras: O homem é um intérprete de papéis, todo e qualquer indivíduo se caracteriza por um certo repertório de papéis que dominam o seu comportamento e que toda e qualquer cultura é caracterizada por um certo conjunto de papéis que ela impõe, com variável grau de êxito, aos seus membros.219 Os papéis funcionam como suportes da ação do indivíduo, estabelecendo a mediação entre a sua espontaneidade e as instituições culturais, denominadas conservas culturais na terminologia moreniana. Dizíamos em 3.2. que o atributo central do conceito de pessoa é o da relacionalidade. Pois é através de seus papéis que o indivíduo como pessoa se relaciona com os outros, com o mundo e consigo mesmo. Moreno arrogou para si o mérito de ter sido o precursor do uso do conceito de papel nas ciências sociais e na psiquiatria.220 Vincula o conceito de papel à experiência, definindo-o assim como um conceito fenomenológico por excelência. Nas suas palavras, “o papel pode ser definido como uma unidade de experiência sintética em que se fundiram elementos privados, sociais e culturais. [...] um papel é uma experiência interpessoal”. 221 Trata-se de uma unidade sintética na medida em que reúne elementos que emergem de diferentes âmbitos ou dimensões do ser. Uma analogia ilustrativa é a de um nó, que reúne em um único ponto um feixe de barbantes vindos de diferentes direções. Podemos assim dizer que um papel reúne, enquanto unidade de ação, elementos afetivos, cognitivos, biológicos, psicológicos, sociais, sexuais, políticos, morais, estéticos, religiosos, cósmicos, históricos etc. Pensado como estrutura ontológica, pode ser definido como símbolo-palavra-linguagem que conecta a ação do sujeito humano ao universo irrestrito do discurso. Na perspectiva fenomenológica, constitui o nosso ser pessoal na interface das relações euoutro, eu- mundo e eu-eu. De modo que, é através de nossos papéis que experienciamos a nossa ação no mundo, tomamos consciência do que somos e fazemos, a pessoa que somos é revelada para nós mesmos e para os outros. Desde o momento de seu nascimento, o indivíduo interage com os outros dentro do mundo- davida, isto é, dentro de um contexto de compreensibilidade linguisticamente preexistente, pré- determinado, que confere sentido à sua ação através dos papéis que vai gradativamente adotando. De modo que, antes mesmo de termos consciência de nosso eu, somos e agimos intencionalmente para os outros, em um contexto social linguisticamente articulado dentro do qual “os aspectos tangíveis do que é conhecido como — eu — são os papéis nos quais opera”.222 Neste sentido compreende-se a afirmação de Moreno de que “o surgimento do papel é anterior ao surgimento do eu”.223 O que equivale a dizer que o eu, ou a pessoa, se relaciona com os outros e com o mundo através de papéis, e que isso acontece a partir da ação, e não o contrário, em convergência com a proposição de Wojtyla de que “a ação revela a pessoa”. Moreno propõe, em sua teoria da matriz da identidade, que o desenvolvimento da pessoa acontece a partir e através da ação, em etapas que obedecem a formação de determinados papéis e seus desdobramentos. A afirmação de que o surgimento do papel é anterior ao surgimento do eu, o que 219 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, pp 413-414. 220 Idem, p 24. 221 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 238. 222 Idem, p 178. 223 Idem, p 178.


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significa que o surgimento do papel é pré-reflexivo. A formação da consciência do eu, enquanto o objeto intencional da consciência, é desse modo derivada da constituição pré-reflexiva de determinados papéis basais. Estes papéis, denominados psicossomáticos (ou fisiológicos), estabelecem a ligação entre ações instintivamente determinadas como mamar, e o contexto relacional em que é amamentado por outras pessoas. Posteriormente os papéis psicossomáticos se desdobram na formação de outros dois tipos: papéis psicodramáticos (ou imaginários) e papéis sociais (ou da realidade). Outra proposta de Moreno é entender os papéis como formas. Mesmo que ele não tenha feito alusão ao conceito de forma da metafísica aristotélico-tomista, penso que não é contraditório afirmar — dentro do quadro ontológico que aqui temos construído — que os papéis funcionam como princípios de organização do real, no sentido desta metafísica. Nas palavras de Moreno, “o papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos”. 224 “A função do papel é penetrar no inconsciente, desde o mundo social, para lhe dar forma e ordem”. 225 O papel estabelece assim a interface da relação consciente/inconsciente. O que Moreno propriamente designa pelo termo inconsciente? Historicamente, o termo inconsciente era utilizado simplesmente como referência àquilo que não se encontra no campo da consciência. Com Freud, passou a ser utilizado para denominar uma instância psíquica, com funcionamento e características próprias, separada da consciência pela ação de mecanismos que operam o recalcamento de certos conteúdos, mantendo-os inconscientes. Este recalcamento tem como função evitar a angústia gerada por conflitos entre as pulsões sexuais e as exigências morais que recaem sobre o indivíduo. O inconsciente para Freud, portanto, é uma instância que diz respeito apenas à dinâmica intrapsíquica de um indivíduo. Jung, por sua vez, sem deixar de admitir a existência da dimensão do inconsciente freudiano, advoga que há uma outra dimensão, mais abrangente, por ele denominada inconsciente coletivo, que extrapola os conteúdos individuais, por ser constituída por imagens arquetípicas, universais, transculturais, isto é, que se manifestam em diferentes épocas e culturas. Moreno também não se contrapôs à interpretação do inconsciente de Freud. No entanto, considera insatisfatório o enquadramento dado ao inconsciente como inconsciente individual, não atendendo assim à necessidade de uma terapia interpessoal. Segundo Moreno, devemos modificar o significado de inconsciente, procurando por um contraponto, uma espécie de chave musical que seja capaz de relacionar qualquer acontecimento no inconsciente de A a cada evento no inconsciente de B, ou devemos buscar conceitos construídos de tal modo que a indicação objetiva de sua existência não decorra de resistências de uma psique individual mas, sim, de uma realidade ainda mais profunda na qual estejam entretecidos os inconscientes de diversas pessoas, um coinconsciente. 226 Designa assim por inconsciente — ou melhor, por coinconsciente — um nível da realidade, mais profundo, através do qual estamos interligados uns aos outros, passível de ser compartilhado interpessoalmente. Aproxima-se, desse modo, da concepção de Jung. A aparência da realidade oculta algo que a determina, coinconscientemente, desde a sua fundação. Denomina este nível de realidade

224 Idem, p 27. 225 Idem, p 28. 226 MORENO, J. L. Fundamentos do psicodrama. São Paulo, Summus, 1983, pp 61-63


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suplementar, definindo-o como “um outro nível de estruturação que representa as dimensões intangíveis, invisíveis na realidade da vida, não inteiramente experimentadas ou expressas”. 227 Trata-se, neste sentido, de um nível da realidade anterior à sua exteriorização pela consciência, que a excede, abrange, funda. Correlacionamos a dimensão da realidade suplementar com o que Henry denomina como Vida, isto é, com o fundamento da fenomenalidade, do auto-aparecer do aparecer, que acontece como pathos — isto é, como afetividade pura, impressionalidade pura, anterior a qualquer intencionalidade e a qualquer representação. Através do ato do encontro com o outro, da relação eu- tu, a realidade suplementar é integrada à ação, acrescentando espontaneidade — vida — aos seus papéis. Trata-se do momento em que a ação se torna reveladora da verdade do self — do eu, da pessoa — , viabilizando a sua expansão, diferenciação e integração, em uma palavra, a sua autodeterminação como pessoa. Por outro lado, o sujeito pode ter a sua espontaneidade inibida quando determinadas representações (conservas culturais) o levam a se dissociar afetivamente de seu pathos, limitando-o à mera repetição de determinado padrão de comportamento. É o que Freud define como recalcamento. Compreende-se assim o caráter dialético do processo pelo qual ocorre a transformação e evolução das formas de relação e interação entre as pessoas que definem a organização da vida em sociedade. Há uma alternância entre um tipo de ação que de certo modo se limita a reproduzir formas instituídas (conservas culturais), e uma ação espontâneo-criadora, instituinte de novas formas de relação e interação das pessoas entre e si e com o mundo. A realidade social é assim constituída por um conjunto sistêmico de formas de vida instituídas pela interação espontâneo- criadora do homem em seu ser-no-mundo. Moreno descreve três níveis de estruturação da realidade: a realidade presente, a infrarrealidade e a realidade suplementar. 228 Ao assim proceder, procura dar conta do fato de que não é possível apreender a realidade de maneira imediata e unívoca. Neste sentido, não devemos confundir a realidade em seu todo com a realidade aparente da nossa vida cotidiana. Moreno chama o nível da realidade que concerne à vida diária, ao que ocorre objetivamente em nossas relações com as pessoas e coisas que nos afetam dentro do nosso entorno, de realidade presente. Esta pode ser assim definida como aquilo que aparece aos sujeitos na experiência comum, nos fatos da vida, ao que se atualiza na confrontação direta com os outros e o mundo. Todavia, há outros níveis da realidade que não são diretamente aparentes ou manifestos, mas se encontram em relação dinâmica com a realidade presente. Estes outros níveis correspondem ao que Moreno denominou como infrarrealidade e realidade suplementar. A infrarrealidade é uma espécie de “realidade reduzida” que “não constitui uma fase de presentificação e confrontação diretas, mas permanece no nível da imaginação, do pensar, do sentir, do ter medo, e assim por diante”. 229 Trata-se, neste sentido, de conteúdos de uma visão subjetivista, solipsista, idiossincrásica da realidade, que aparecem, por exemplo, nos sintomas psicopatológicos — ideias obsessivas, fóbicas, delirantes, nas alucinações, nos devaneios etc —, e que se demonstram inadequados quando entram em confrontação direta com as outras pessoas, ao nível da realidade presente. A realidade suplementar, por sua vez, é uma espécie de “realidade excedente”. Moreno refere que cunhou o termo realidade suplementar (surplus reality) influenciado pelo termo maisvalia (surplus value), utilizado por Marx para designar o fator que permite que haja um excedente de capital ao final do processo de produção econômica, correspondente ao valor da força de trabalho do trabalhador

227 MORENO, J. L. Psicodrama. Terapia de ação & Princípios da prática. São Paulo, Daimon, 2006, p 25-26. 228 MORENO, J. L. Psicodrama. Teoria da ação & Princípios da prática. Op cit. pp 24-26 229 Idem, p 24.


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que é subtraída do mesmo na forma de capital. Entretanto, o próprio Moreno explica que este é somente um termo analógico para designar as dimensões intangíveis, invisíveis da vida intra e extrapsíquica não experimentadas ou expressas. Cada um desses três níveis da realidade corresponde a uma determinada fenomenalidade. A realidade presente corresponde à fenomenalidade da intencionalidade da consciência dentro do mundoda-vida, enquanto dimensão das representações. A infrarrealidade corresponde à fenomenalidade do inconsciente freudiano, enquanto dimensão das representações recalcadas. Por fim, a realidade suplementar corresponde à fenomenalidade das potências do ser autorreveladas no movimento de imanência da Vida, enquanto o outro da representação. Trata-se assim de uma espécie de realidade abrangente, fundante da realidade presente, que inclui toda gama de possibilidades referentes às relações interpessoais e cósmicas, não inteiramente experimentadas ou manifestas na realidade presente, isto é, em estado potencial, a serem atualizadas. Na ação humana, os três níveis da realidade encontram-se em permanente interação dinâmica. De que maneira isso acontece? Segundo Moreno, no momento da ação espontâneo- criadora “as pessoas se deslocam da coisa em si para a imagem da própria coisa, o que inclui a coisa em potencial”230, isto é, experienciam a realidade suplementar através da atividade imaginativa. O termo imaginação provém do latim imago, que tem a mesma raiz que imitare, imitar. Em sentido etimológico, a imaginação seria então a imitação por imagens. Pode, portanto, parecer enganadora, fazendo-se passar pela própria coisa. Contudo, a imaginação não é a simples imitação do real por imagens, na medida em que se encontra intrinsecamente relacionada à potência de invenção e criação, pressupondo uma atividade do espírito. Neste sentido, como atividade do eu — do self, da pessoa — , a imaginação consiste na faculdade de: a) representar objetos ou seres ausentes (imaginação reprodutora); b) combinar ideias, antecipar acontecimentos, representar o que se encontra em estado potencial ou latente, conceber um mundo imaginário (imaginação criadora). Com o advento da filosofia, foi instituída uma contraposição entre os processos da razão e os da imaginação, que perdura até os dias de hoje. Platão via a imaginação como mimese, isto é, como faculdade de imitar, de copiar, inadequada para se alcançar a verdade das ideias, apenas obtida através da razão. A imagem é o mais baixo grau do real, e a imaginação o mais baixo grau do conhecimento. Tal pensamento acabou por se tornar dominante, propagando-se através do Império Romano durante toda a Antiguidade. O conhecimento verdadeiro foi identificado com o logos, sendo que, para a sua obtenção, tornava-se necessário rejeitar a imaginação, que se confundia com o mito e a religião enquanto conhecimento ilusório, mistificador. Veremos no próximo capitulo que esse processo de repressão e dissociação da imaginação pelo racionalismo se deu em oposição à unicidade do conhecimento e da pluralidade da visão de mundo característicos das sociedades primitivas ou arcaicas, determinadas pelos mitos e práticas rituais. Combatida como grande fornecedora de crenças irracionais e absurdas, a imagem mítica perdeu gradativamente o seu poder primário. Entretanto, com os primeiros cristãos e a filosofia de Agostinho, sob a inspiração dos escritos neotestamentários, houve uma reabilitação da imaginação como fonte da verdade que perdurou por todo o período medieval. Segundo Agostinho, o homem deve procurar a verdade na interioridade da própria 230 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, pp 45-46.


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alma, enquanto princípio de inteligibilidade e participação na transcendência de Deus. A alma teria funções ativas sobre o corpo, isto é, seria capaz de extrair o conhecimento verdadeiro das imagens decorrentes das sensações, na medida em que possibilita que sejam iluminadas pela luz divina. O pensamento moderno ergueu-se contra a visão de mundo cristã, condenando-a como obscurantista. Descartes, com a divisão dualista entre corpo e mente, desferiu um golpe ainda mais contundente sobre a imaginação do que o fizera Platão, modelando uma visão de mundo racionalista que domina os meios culturais até os dias de hoje. Com esta divisão, religião e ciência, fé e razão foram sistematicamente separadas. A imaginação, como função mediadora operada pela alma entre o plano material e o espiritual, ficou negativamente rotulada como obscurantismo, superstição, ou misticismo. Foi assim identificada como fomentadora de erros e falsidades, o que levou ao seu recalque como método para obtenção de conhecimento verdadeiro, o chamado conhecimento científico. O poder de unificação do conhecimento proporcionado pela imaginação foi assim despotencializado, gerando a redução e a fragmentação do conhecimento que hoje assistimos, bem como toda espécie de objeção a construção de uma visão integradora da complexidade da vida. Se a cultura contemporânea, por um lado, valoriza imaginação no campo da arte e do entretenimento como a faculdade humana voltada à criação de ficções; por outro, quando se trata de ingressar no campo da ciência, o seu acesso é barrado. Deparamo-nos, em função desta herança cultural, com uma forte resistência, sobretudo por parte da cultura acadêmica dominante, ao entendimento da imaginação no sentido que aqui propomos, isto é, como fator primordial para o conhecimento da ação espontâneo-criadora e da constituição da realidade. Descobrimos, no entanto, dentro da própria história da filosofia, um caminho que nos conduz a um resgate dessa função da imaginação. No contexto da filosofia moderna, destacamos a teoria dos gêneros do conhecimento de Spinoza. Contrapondo-se à Descartes, que operou a — tantas vezes por nós citada — separação entre o corpo e a mente, Spinoza propôs a compreensão da constituição humana como uma unidade psicofísica, na qual, toda ideia presente no campo mental, corresponde a uma afecção corporal e vice-versa. Uma afecção se dá como uma modificação do estado afetivo de um corpo pela presença de um corpo exterior afetante. As imagens ou ideias — aquilo que imaginamos ou pensamos — são correlatos mentais de estados afetivos — sensações, emoções, sentimentos, paixões — que representam, a um só tempo, a natureza do corpo afetado e a do corpo afetante. Neste sentido, as imagens ou ideias encontram a sua matriz formativa nas afecções corporais, isto é, nos produtos imanentes da interação recíproca entre corpos e mentes, ao nível da existência sensível. O processo gerador de conhecimento se dá assim a partir da capacidade de um corpo ser afetado por outros corpos, deixando, por isso, de ser considerado algo exclusivo do ser humano. Podemos dizer que um animal, ou mesmo uma planta é capaz de, ao seu modo, conhecer, de acordo com a sua capacidade afetar e ser afetado. No entanto, o corpo humano possui uma capacidade surpreendente ampla de ser afetado, se a compararmos com a capacidade de qualquer outro ente vivo. Isso porque, além de formar imagens ou ideias que expressam as condições mais imediatas da sua existência, conforme o encadeamento instintivo das afecções em seu corpo — primeiro gênero de conhecimento —, é capaz também de formar ideias que, para além dos afetos imediatos, conjugam as propriedades comuns entre o modo de ser das coisas e o seu próprio modo de ser — segundo e terceiro gêneros de conhecimento.


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Para Spinoza, o bem e o mal não devem ser considerados como noções absolutas, imutáveis, aplicáveis em todos os casos, para todos os indivíduos; mas entendidos como o bom e o mau para cada indivíduo, de acordo com a singularidade de cada um. Dado que a subjetividade se encontra natural e invariavelmente submetida ao domínio corporal dos afetos, não se trata simplesmente de refreá-los, mas de compreendê-los intelectualmente. Isto se dá quando se aprende a discernir nos encontros como os outros o que é o bom para si, e o que é mau para si, tomando como referência aquilo que compõe com o seu modo próprio de ser. Temos assim as paixões tristes, como aquelas que não compõe com o modo próprio de ser de um sujeito, diminuindo a sua potência de existir; e as paixões alegres, que compondo com o modo próprio de ser de um sujeito, aumentam a sua potência de existir. Enquanto o sujeito se encontra sob o domínio das paixões tristes — o medo, a culpa, o ódio, a mágoa, a inveja, o ressentimento —, resultantes de maus encontros, estas se nutrem do desconhecimento das causas necessárias entre as coisas exteriores e seus próprios afetos, levando-o a permanecer enclausurado sob o mesmo; as paixões alegres — o amor, o contentamento, a gratidão —, resultantes de bons encontros, permitem ao sujeito reconhecer tais causas, desenvolver noções comuns, e assim expandir cada vez mais o seu conhecimento de si, dos outros e do mundo, tornando-se uma pessoa mais potente e ativa. O entendimento racional da afetividade passa a ser a guia das condutas. O primeiro gênero de conhecimento corresponde de modo geral à imaginação. Como pertencente à corrente racionalista da filosofia, Spinoza também lança a sua crítica para este gênero de conhecimento. Identifica-o com a matriz de ideias ilusórias que servem aos homens para organizar sistemas antropocêntricos de intelecção e explicação de todas as coisas, que têm como paradigma os sistemas religiosos. Formados pelo encadeamento sistematizado de elementos imaginários, os sistemas religiosos são irremediavelmente fundados sobre conhecimentos inadequados, uma vez que não esclarecem as causas necessárias das coisas. Para transpor a imaginação rumo à razão, faz-se necessário não rejeitá-la, mas compreender seus limites como gênero de conhecimento. Por exemplo: não tomar literalmente certas passagens bíblicas, mas de maneira simbólica. Assim, a ressurreição continua a designar a nova vida depois da antiga, mas no aqui e agora, nos limites do mundo real e conforme a ordem das razões. O grande salto epistemológico proposto por Spinoza foi o de não rejeitar a afetividade — como prescreve a tradição metafísica de Platão a Descartes —, não opô-la à razão, mas incluí-la no processo do conhecimento. O segundo gênero, correspondente à razão, é definido pelo aclaramento das chamadas noções comuns. Estas são ideias adequadas, uma vez que compreendem as causas necessárias dos fenômenos. Através da continuidade deste processo, é possível de se alcançar o mais alto valor, o conhecimento do terceiro gênero, correspondente ao que se costuma denominar como intuição. Trata-se do conhecimento de cada coisa singular na sua relação com o todo abrangente o conhecimento intelectual da união com Deus — amor intellectualis Dei. Com a inclusão o corpo e suas afecções no processo gerador de conhecimento, Spinoza definiu uma via alternativa para a epistemologia moderna. Destacamos também a teoria da imaginação transcendental de Kant. Como vimos em 3.7, a imaginação, enquanto faculdade que produz imagens, estabelece a mediação entre a receptividade da sensibilidade e a espontaneidade do entendimento, operando a síntese de juízos, isto é, a ligação das diversas representações segundo a forma do tempo. Dito de outro modo, a forma temporal do fenômeno é resultante do efeito do entendimento sobre a sensibilidade, produzido primariamente pela imaginação. Isso significa que a função da imaginação é produzir imagens constituídas por representações ligadas temporalmente — pertencentes a um mesmo momento, falando morenianamente —, contendo um tipo


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de conhecimento pré-racional, dado que capta certas relações realmente existentes entre as coisas, sem contudo determiná-las completamente, tal como acontece no conhecimento racional. Outros autores contemporâneos convergem na busca pela recuperação da imaginação nos processos do conhecimento. É o caso do psicólogo James Hillman, com seu trabalho de reabilitação da noção de alma no campo da psicologia, pensando-a como um tertium, uma terceira perspectiva mediadora entre as perspectivas do corpo e do espírito. Hillman critica Descartes por ter subtraído o locus da alma da antropologia cristã, que estabelecia a tripartição da unidade humana em corpo, alma e espírito.231 Hillman nos explica que a palavra alma perdeu o seu significado original em nossa cultura, passando a ser erroneamente utilizada como sinônimo de espírito ou de mente. Procura então ressignificar a noção de imaginação vinculando-a à de alma. Nas suas palavras: A alma é constituída de imagens, é primariamente uma atividade imaginativa, mais original e paradigmaticamente apresentada pelo sonho. A fonte de imagens — imagens oníricas, imagens de fantasia, imagens poéticas — é a atividade autogeradora da própria alma.232 A imaginação não é meramente uma faculdade humana, mas uma atividade da alma à qual a imaginação humana presta testemunho. Não somos nós quem imagina, mas nós que somos imaginados.233 A perspectiva hillmaniana aprofunda o estudo da fenomenologia da imagem e da imaginação retomando a noção central da obra de C. G. Jung sintetizada na sua máxima: “imagem é psique”234, isto é, a realidade psíquica é constituída por imagens arquetípicas. As imagens arquetípicas são os fundamentos da fantasia, elas são os meios através dos quais o mundo é imaginado, e então elas serão os modos pelos quais todo o conhecimento, toda e qualquer experiência se tornam possíveis, [...] operam como o significado original da ideia, [...] aparecendo na consciência como a fantasia diretriz por meio da qual a consciência é possível.235 Imagens vão e vem (como em sonhos) de acordo com sua própria vontade, com seu próprio ritmo, dentro de seu próprio campo de relações.236 A imagem sempre implica um contexto, disposição e cena com qualidades precisas, [...] convida ao julgamento, para uma maior precisão da imagem, julgamento nascido da própria imagem, como um efeito da necessidade que a imagem tem de obter uma resposta, [...] parece conter um conhecimento anterior e uma direção instintiva a um destino, como se profética, prognóstica.237

231 HILLMAN, J. Psicologia arquetípica. São Paulo, Cultrix, 1992, p 25. 232 Idem, p 27. 233 Idem, p 27. 234 Idem, p 27. 235 Idem, p 35. 236 Idem, p 26. 237 Idem, p 36.


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O filósofo e historiador das religiões Henri Corbin tratou de definir os princípios do que denomina Imaginação Criadora, em chave de convergência com a linha interpretativa que estamos desenvolvendo. Para Corbin, a Imaginação — como uma terceira perspectiva mediadora entre o corpo e o espírito — é criadora. Ele nos alerta para a confusão entre o significado da Imaginação Criadora e o correntemente empregado à imaginação na atualidade. Retomando a teosofia mística de Ibn’ Arabi, desenvolvida no mundo islâmico do século XIII, Corbin nos fala da Imaginação Criadora como o modo através do qual Deus cria, a todo instante, o universo. Esta ideia aparece bem delineada no seguinte texto de Corbin: Em ambos os lados [do esoterismo no Islamismo e no Cristianismo] encontramos a ideia de que Deus possui o poder da Imaginação, e imaginando o universo Deus o criou; de que ele projetou este universo a partir Dele mesmo, a partir das eternas virtualidades e potências do Seu próprio ser; de que existe entre o universo espiritual e o mundo sensível um mundo intermediário, o qual corresponde às “Imagens Ideais” dos Sufis, o mundo da “sensibilidade supersensorial”, do corpo sutil, “o mundo no qual os espíritos se materializam e os corpos se espiritualizam”; de que este é o mundo sobre o qual a Imaginação exerce a sua influência; no qual a Imaginação produz efeitos tão reais que moldam o imaginar subjetivo, em que a Imaginação dirige a forma (o corpo mental) pela qual o homem imagina.238 Assim, “a Criação é essencialmente uma teofania”239, isto é, aparição de Deus ao homem através de imagens. Em outras palavras, a imaginação do homem é dirigida pela Imaginação de Deus. Ou ainda, o homem torna-se criador ao participar subjetivamente — imaginativamente — da Imaginação de Deus. Corbin utiliza o termo Imaginal 240 para denominar este mundo intermediário, no qual a Imaginação se manifesta, e o homem presta testemunho. O Imaginal é o locus ontológico das imagens, localizado entre o corpo e o espírito, o mundo material e o mundo espiritual, onde se estabelece a mediação entre estes pólos, mundo este que tem uma existência real, mas sutil. Com o termo imaginal procura marcar a diferença com o que costuma ser chamado de imaginário, isto é, fictício, fantástico, ilusório, irreal. Segundo Corbin, cabe ao homem a tarefa de experienciar e interpretar o significado real das imagens, ativamente, através do órgão próprio da criatividade no homem, o “coração”.241 Não se trata, é claro, do coração como um órgão corporal, mas como um corpo sutil, psicoespiritual, uma visão mística. O sentido das imagens — como manifestações de Deus — , é dado pela intimidade, amor e fidelidade aos seus conteúdos manifestos. O homem assim devotado às imagens torna-se fedeli d’amore — fiel de amor.242 Neste sentido, a criatividade humana é participação ativa na Imaginação como Criação de Deus, é cocriação com Deus em Sua obra. Trata-se basicamente da mesma perspectiva encontrada na tradição judaico-cristã, para a qual o coração humano é a sede, o princípio do pensamento, e não a razão humana; o que implica a necessidade de autoconhecimento por meio do conhecimento de Deus. No Antigo Testamento encontramos: “O coração

238 CORBIN, H. Alone with the alone. Creative Imagination in the Sufism of Ibn` Arabi. New Jersey, Princenton, 1998, p 182. 239 Idem, p 182. 240 CORBIN, H. Mundus Imaginalis ou L’imaginaire et l’imaginal. In: Face de dieu, Face de l’homme. Paris, Flamarion, 1983, pp 7-40. 241 Idem, pp 221-245. 242 Idem, p 139.


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é mais enganador que qualquer outra coisa, e dificilmente se cura: quem de nós pode entendê-lo? Eu, Javé, penetro o coração e sondo os pensamentos, para pagar a cada um conforme o seu comportamento e segundo o fruto de suas ações” (Jeremias 17.9-10). Podemos interpretar esta passagem da seguinte maneira: a imaginação humana é fonte de engano, mas também de encontro com Deus; através do entendimento do nosso coração-imaginação alcançamos a nossa cura, a nossa salvação. Apesar do sentido ser o mesmo, o tom de ameaça do Antigo Testamento se converte em tom de esperança no Novo Testamento. Vejamos alguns exemplos: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Jesus respondeu: Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todo o seu entendimento” (Mateus 5.36-37). “E a esperança não engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Romanos 5.5). Alcançamos o conhecimento da verdade no encontro com o amor de Deus que habita em nosso coração. Para tanto, devemos buscar ativamente este conhecimento dos caminhos revelados pelo Espírito Santo, que aqui chamamos de Deus-Eu. De modo que podemos distinguir dois tipos de imaginação: a imaginação criadora e a imaginação reprodutora. A esta altura seria desnecessário ressaltar que inscrevemos aqui nossos esforços aos desses autores pela reabilitação da imaginação criadora no mundo cultural contemporâneo, procurando identificar e traspor as resistências que se opõem a mesma. A começar com a que encontramos em nosso sistema educacional, ou seja, na própria matriz da nossa formação cultural. Aprendemos na escola a nos identificar com os processos cognitivos da memória e do raciocínio lógico, negligenciando a imaginação criadora. As aulas de literatura ou de arte, por exemplo, em vez de serem lugares consagrados à educação da sensibilidade estética dos alunos, ao cultivo e desenvolvimento da sua imaginação, tendem a se limitar à transmissão de informações, conceitos ou técnicas, ou seja, à transmissão de conservas culturais, permanecendo ao nível da imaginação reprodutora. Um poema nos fala muito mais à imaginação do que à razão, que se limita a classificá-lo, catalogá-lo, reduzi-lo a algo já estabelecido, conhecido. Penso que precisamos ativamente recuperar o sentido da experiência sensível, do encantamento, da riqueza poética da imaginação criadora que ficou eclipsado desse modo pela forma de experiência reduzida a que nos encontramos culturalmente condicionados. Diante de uma obra de arte, do rosto de outro homem ou mulher, de um pôr do sol, nos deparamos com um mistério irredutível que chamamos de Deus. Através da imaginação criadora, adentramos na dimensão do Seu mistério na busca do Seu sentido. Com a requalificação da imaginação criadora na cultura, Deus deixa de significar uma mera ideia conceitual, desprovida de realidade, que aprendemos intelectualmente, mentalmente, como um princípio filosófico. Passa a ser um modo de experienciar e descobrir imaginativamente a identidade profunda que nos faz ser o que verdadeiramente somos, a identidade com o nosso self. Portanto, é fundamental que possamos aprender os processos da imaginação criadora, tomando ativamente consciência das imagens, sendo fiel a seu conteúdo manifesto, trabalhando com elas no sentido da sua expressão, revelando o potencial criativo que elas contém; em contraposição aos processos da imaginação reprodutora, como imitação estereotipada de conservas culturais. Descobrimos na obra de do filósofo Gaston Bachelard de que maneira a epistemologia se concilia com a imaginação, em outras palavras, como a imaginação se torna um método adequado ao conhecimento da verdade. O método consiste em aprender a reagir à imagem “no momento em que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade”.243

243 BACHELARD, G. A poética do espaço . Op cit, p 184.


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Trata-se de uma fenomenologia da imagem que se ocupa de “trazer à plena luz a tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens” 244 que emergem como “um súbito relevo do psiquismo” 245, isto é, como um impacto emocional que nos comove pela impressão de que algo de importância vital se encontra presente. “A comunicabilidade de uma ‘imagem singular’ é um fato de grande significação ontológica”.246 Esta comunicabilidade é possível graças ao poder de transubjetividade da imagem, isto é, “a adesão que suscita numa alma estranha ao processo de sua criação”.247 Acontece, por exemplo, quando no momento da leitura de um poema nos sentimos tocados por uma imagem poética, na sua singularidade, como algo que nos causa surpresa, que nos faz intuir a sua profundidade como algo afetivamente significativo para o nosso ser, despertando nossa atenção para ela. Nesta tomada de consciência da imagem, é necessário respeitar o próprio ser da sua originalidade, da sua alteridade, acolhendo-a como aparece à consciência, sem explicá-la através de uma relação de causalidade, sem racionalizá-la. A imagem — como um ‘outro’ — nos fala emocionalmente, sensualmente, fantasticamente. Contém um saper vedere, uma estrutura que propõe uma visão em profundidade das coisas. Não devemos, portanto, “tomar uma imagem como objeto, menos ainda como substituto do objeto, mas perceber-lhe a realidade específica”.248 Segundo os detratores da imaginação, a consciência por ela conduzida se distende, se dispersa, se obscurece, é dirigida para fora do real. Então, como conciliar a tendencia da imaginação de evasão do real com as exigências epistemológicas para se alcançar a verdade do real? Em outras palavras, como conciliar imaginação e razão? Bachelard responde a tal objeção defendendo a tese de que “toda tomada de consciência é um crescimento de consciência, um aumento de luz, um reforço da coerência psíquica”.249 Há uma teleologia própria à intencionalidade da imaginação que pode ser averiguada quando a consciência experiencia ativamente a imagem, tomando-a como sua. Neste momento há um crescimento do self no qual os sentidos despertam e se integram harmoniosamente. Por isso, seguindo a implicação prática desta tese, não nos basta apenas recordar nossos sonhos noturnos ou admirar passivamente uma obra de arte. Ao experimentarmos apenas passivamente o maravilhamento em relação à imagem não participamos com suficiente profundidade da imaginação criadora. É preciso interagir ativamente com a imagem procurando descobrir a intencionalidade da imaginação criadora através da intuição e do sentimento. Como podemos constatar, o método da “fenomenologia da imagem” de Bachelard se encontra em chave de convergência com os métodos da “ciência do coração” de Corbin, do ser “fiel à imagem” de Hillman, da “imaginação ativa” de Jung, e do “psicodrama” de Moreno. Em termos morenianos, é preciso que o espírito humano busque ativamente os valores ligados à espontaneidade que a imagem contém, rejeitando, por outro lado, a expressão ideológica da imaginação reprodutora, na forma de conservas culturais que não promovem o crescimento e a integração do self, pois são destituídas de significado real. Retomando o que dissemos a pouco, o indivíduo em estado de espontaneidade se desloca da realidade presente para a realidade suplementar, obtendo acesso à imaginação criadora. Devido ao longo processo de rejeição da imaginação como via para o conhecimento verdadeiro imposto pela cultura ocidental,

244 BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p 1. 245 BACHELARD, G. A poética do espaço . Op cit, p 183. 246 Idem, p 184. 247 Idem, p 184. 248 Idem, p 185. 249 BACHELARD, G. A poética do devaneio. Op cit, p 5.


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habituamo-nos a não buscar ativamente os valores da espontaneidade se encontram em estado potencial na realidade suplementar. Neste sentido, é preciso aprender a separar o joio do trigo, isto é, discernir entre imaginação reprodutora e imaginação criadora. A teleologia manifesta na intencionalidade das imagens, descrita por estes autores, se coaduna perfeitamente com a teleologia da ação espontâneo-criadora como meio de transformação da realidade, expansão e autointegração do self, e religação com o Self. Resumindo as proposições ontológicas apresentadas neste capítulo, podemos dizer que o indivíduo humano em sua ação espontâneo-criadora, entendida como essência ou potência fundamental da sua existência, busca obter a inteligibilidade da própria ação em seu ser-no-mundo através da sua atividade imaginativa. As imagens emergem espontaneamente como a própria matéria-prima da consciência, reunindo os dados da sensibilidade, isto é, da impressibilidade de seus sentidos (visão, tato, audição, olfato, paladar, cenestesia, cinestesia), tendo como fundamento a sua afetividade, isto é, a vida que se autorrevela como pathos na imanência das afecções produzidas nos encontros com outros sujeitos humanos e com as coisas do mundo, na forma de representações ligadas temporalmente, de modo intencional, pelo entendimento. As imagens têm como característica ontológica serem simbólicas. Etimologicamente, o termo símbolo é derivado do grego symbolon, sinal de reconhecimento geralmente constituído por uma das duas metades de um objeto, que podem se sobrepor exatamente ou se encaixar perfeitamente, promovendo assim a mediação entre o conhecido e o desconhecido. Um símbolo, portanto, é aquilo que promove a mediação dialética entre dois pólos complementares, sendo portador de significados desconhecidos. Sendo simbólicas, as imagens estabelecem a mediação entre consciente e inconsciente, natureza e cultura, ação intransitiva e ação transitiva, interno e externo, eu e outro, imanência e transcendência, natureza e espírito, corpo e mente, necessidade e liberdade, palavra da vida e palavra do mundo, realidade presente e realidade suplementar etc. A consciência humana, diferentemente da dos outros animais, devido ao fenômeno da imagem simbólica, não se limita à mera percepção imediata dos estímulos sensíveis emitidos pelo próprio corpo ou pelo meio ambiente. Nas imagens, as representações da realidade presente aparecem temporalmente associadas a outras ausentes — memorizadas, fantasiadas —, tendo como referência central o eu; melhor dizendo, a situação que o eu ocupa dentro da ação representada pela imagem. O eu aparece na imagem tanto intransitivamente, enquanto portador da impressão da imagem, o que o faz se perceber subjetivamente ligado a ela como à sua vida; como transitivamente, através de seus papéis, isto é, atuando em um determinado papel, objetivamente, como uma unidade psicofísica. Desse modo, a imagem é reflexiva, possibilitando ao homem perceber-se na sua existência para além da ação presente, e conferir sentido à mesma. Segundo Moreno, quando os participantes de uma sessão de psicodrama no momento da ação atingem o estado de espontaneidade, há nesse momento um deslocamento para um outro mundo, os papéis sociais ou da realidade cedem o lugar aos papéis psicodramáticos ou da fantasia, através dos quais as imagens dramatizadas, transcendendo a realidade presente, revelam conteúdos ligados à realidade suplementar. Os papéis, entendidos como símbolos, são portadores de forças biopsicológicas, sociais e cósmicas que exprimem, na imanência da ação, as potencialidades do ser presentes na realidade suplementar. A ação psicodramática torna assim possível ressignificar as representações — conservas culturais —, acrescentando mais vida, suplementando de vida, transformando as formas de vida. Neste sentido, é sempre como algo novo, como criação, que o que se encontra inconsciente, melhor dizendo, como potencialidade na realidade suplementar, é representado na ação espontâneo-criadora. Qual o lugar da infrarrealidade — retorno do recalcado — neste contexto? Como


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fator inibitório da espontaneidade e de resistência à realidade suplementar. Estudaremos na quinta parte, de que maneira as técnicas psicodramáticas podem ser utilizadas para transpor estas barreiras, viabilizando a ação espontâneo-criadora. A proposta metodológica de Moreno se presta a facilitar a emergência ação espontâneo-criadora em situação experimental, contribuindo para a transformação da realidade dos seus participantes.

4.3. O processo do Self-Cosmos-Deus A história de vida de um indivíduo humano pode ser definida como um processo pelo qual busca se autodeterminar como pessoa, através dos papéis que desempenha em sua ação no mundo. Moreno nos fala desse processo como do Self-Cosmos-Deus. Também podemos chamá-lo de Drama Cósmico. Há uma estrutura ontológica que determina tanto a história de vida de cada indivíduo, como a história da humanidade. O que equivale a dizer que ambos os processos — de ontogênese e de filogênese — possuem as mesmas etapas de desenvolvimento, dadas essencialmente pela atualização das potencialidades presentes na ação humana, isto é, como ação espontâneo-criadora. Podemos descrever este processo como um movimento dialético que acontece através da interação entre a ação espontâneo-criadora dos indivíduos e as representações ou conservas culturais — linguísticas, artísticas, morais, científicas, religiosas, políticas etc — por eles criadas ao longo da história. Cada indivíduo encontra-se inserido neste Drama Cósmico como participante da ação criadora de Deus. Todavia, é a partir da consciência de seu papel de criador, “entrelaçado com Deus”, e não de alguma iniciativa que partisse de seu próprio eu, de uma pretensiosa ilusão de independência de Deus, que o homem pode efetivamente agir de modo cocriador, em identidade com Deus, sem se confundir com Deus. A história humana possui uma direção, um sentido, uma teleologia: a autodeterminação do indivíduo como pessoa, conquistando o lugar a ele destinado por Deus de criador entre criadores, isto é, da igualdade entre os homens como cocriadores do Cosmos em comunicação direta e identidade com o Criador. Quais são estas etapas? Como estas podem ser empiricamente descritas? Para respondermos a estas questões, vamos utilizar a ontologia da história de Schelling, apresentada no capítulo 3.5. Como vimos, Schelling descreve a primeira etapa da história da humanidade como história da mitologia, e a segunda etapa, como história da revelação. Trata-se de uma história da consciência humana, regida pela atualização das potências divinas A1, A2 e A3. Ao longo da nossa exposição, buscaremos transpôr os termos da ontologia schellinguiana para uma ontologia moreniana, deixando de falar de uma história da consciência, para falar de uma história da ação espontâneo- criadora, reveladora do indivíduo humano como pessoa, nos termos de Moreno, como Deus-Eu.


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4.3.1. Primeira etapa: a criação dos sistemas culturais mítico-religiosos A primeira questão a ser abordada será a da origem empírica e histórica do ser humano. Retomando a hipótese de Schelling, esta se deu com a Queda. A passagem é regida pela atualização da potência A1, que se encontrava em estado potencial, indiferenciada, enquanto poder-ser que conduz à autoconsciência. A consciência humana surge com a separação entre sujeito e objeto, que nada mais é do que o resultado da operação de um voltar a si como sujeito, tornando-se para si um objeto. Com isso, torna-se capaz de se reconhecer como um eu na dimensão da temporalidade e da finitude, isto é, como ser-no-mundo. Mas esta é “apenas” uma especulação metafísica. Como isso teria acontecido empiricamente? De que maneira esta hipótese pode ser comprovada cientificamente, isto é, através de dados empíricos? Valeremo-nos aqui de teorias de grandes expoentes da antropologia contemporânea para corroborar esta hipótese. De acordo com o antropólogo Lévi-Strauss, toda ordem sociocultural é determinada pela linguagem, enquanto lei que rege as relações sociais. Para defender a sua tese, que aparece em “Antropologia estrutural”250, Lévi-Strauss segue a trilha de outro antropólogo, Marcel Mauss, para quem todo gesto, bem como, toda palavra, são símbolos resultantes de acordos, de pactos realizados entre os homens na imanência do real social. Neste sentido, a linguagem, como criação simbólica coletiva, é, ao mesmo tempo: fator estruturante e a própria estrutura da organização social. A linguagem corresponde à própria ordem simbólica. Ernest Cassirer, em seu “Ensaio sobre o homem”251, nos mostra que, antes de ser um animal racional, o homem é um animal simbólico. O permanente processo de criação de símbolos, dado pela sua atividade imaginativa, encontra-se no cerne de toda existência individual, bem como, de toda ordem social. Em seu convívio social, o homem interage através de trocas operacionalizadas pelos símbolos presentes nas suas diversas formas de expressão: no mito, na religião, na arte, na história, na ciência. Para que a nossa articulação seja bem compreendida, faz-se necessário que aclaremos a distinção entre os termos símbolo e signo. Na semiologia de F. Saussure, signo é o termo geral para designar a representação de um objeto.252 A palavra cão, por exemplo, é um signo linguístico utilizado num discurso verbal para representar o mamífero que late. O signo linguístico estabelece assim um elo, um traço de união entre um significante — a palavra cão — e um significado — o mamífero que late. Saussure destaca três características essenciais do signo: a) a arbitrariedade da relação entre o significante e o significado; b) a linearidade do significado determinada pelo significante; c) a univocidade dessa relação. Compreendamos estas características através de outro exemplo. Na sinalização de trânsito, o significante “luz vermelha” quer dizer parar; enquanto o “luz verde”, ir em frente. Tais significados são determinados por convenção, isto é, não encontrarmos na realidade qualquer motivo que os justifiquem. De modo que, também por convenção, poderia ocorrer uma inversão dos significados: a luz vermelha passaria a significar ir em frente, e a verde, parar. Em suma: a) a arbitrariedade se encontra no fato de que a cores das luzes de um sinal de trânsito terem sido determinadas por convenção; b) a linearidade, no fato de uma determinada cor remeter diretamente ao significado parar ou ir em frente; e c) a univocidade, no fato de a cor vermelha significar exclusivamente parar, enquanto a verde, ir em frente.

250 LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. 251 CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. São Paulo, Martins Fontes, 1997. 252 ALLEAU, R. A ciência dos símbolos. Lisboa, Edições 70, 2001, pp 44-45.


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Quando o signo remete a significados abstratos, dificilmente apresentáveis, torna-se mais complexo, perdendo algo do seu caráter arbitrário. É o caso da alegoria, do emblema, da parábola e do apólogo, nos quais figuram concretamente uma parte da realidade que significam. Como exemplo de signo alegórico temos a balança, representando a ideia de justiça. Neste caso, a relação de equilíbrio entre os pratos aludida pelo significante balança não é meramente convencional; verificamos uma analogia entre o significante e o significado. Valendo-nos destes esclarecimentos, estamos capacitados a compreender a diferença entre símbolo e signo. O símbolo diferencia-se do signo por não ser arbitrário, mas intrinsecamente motivado, sendo “a melhor figura” para evocar um determinado significado, levando-se em conta o fato deste significado ser, por sua própria natureza, impossível de ser linearmente apreendido. A relação entre significante e significado, no caso do símbolo, não é estabelecida por convenção, mas, como mostraremos adiante, numa via de mão dupla de interações entre o corpo e o meio ambiente social e cósmico. O símbolo promove uma mediação da tensão dialética entre o mundo manifesto e o devir, entre o visível e o invisível, sendo, assim, portador de significados desconhecidos. Além disso, o símbolo não estabelece relações unívocas. “Dá a ver” mais do que um sentido, sendo, portanto, equívoco e plurívoco. Há necessariamente uma inadequação, que é compensada quando nos aproximamos do significado pela acumulação de elementos redundantes de símbolos justapostos, uns através dos outros, o que é característico do mito. Existe, portanto, uma diferença entre a lógica dos signos convencionais e a dos símbolos. Enquanto a lógica dos símbolos corresponde à linguagem mítica, a lógica dos signos convencionais corresponde à linguagem racional. Na história da humanidade, os primeiros sistemas culturais a serem instituídos foram os sistemas mítico-religiosos. Neste período, o homem compreendia o mundo segundo a lógica dos símbolos. Com o advento da filosofia grega, a lógica dos signos foi se disseminando na cultura ocidental, até tornar-se dominante. Na atualidade, o mundo é compreendido segundo um sistema racional-científico regido pela lógica dos signos. De modo que, neste contexto cultural, os símbolos tendem a ser reduzidos a signos, a convenções unívocas, o que induz as pessoas a não reconhecer significados que transcendem a ordem racional. Levi-Strauss afirma que “os homens sempre pensaram bem”.253 Com isso ele quer dizer que apesar da extraordinária diversidade dos modos de organização sociocultural surgidos ao longo da história, os homens que pertenceram às assim chamadas culturas arcaicas ou primitivas diferem dos contemporâneos apenas pela sua singularidade cultural, e não por qualquer inferioridade biológica constitutiva, como os preconceitos etnocêntricos nos induzem a acreditar. Sabemos que o genoma humano não sofreu alterações desde o seu surgimento, isto é, permanecemos com o mesmo conjunto genético determinante das mesmas capacidades e potencialidades. A extraordinária diversidade sociocultural se explica pela multiplicidade de atualizações das potencialidades humanas, desde o início, as mesmas. Há duas grandes perspectivas metodológicas em sociologia que se distinguem quanto ao princípio que fundamenta a compreensão da origem das diferentes ordens sociais. Na perspectiva do holismo — que tem como expoente Durkheim —, não devemos procurar compreender uma sociedade através da

253 LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem.


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análise dos seus elementos, isto é, dos indivíduos, uma vez que o comportamento individual é determinado pela ordem social. Já, na perspectiva do individualismo — tendo como expoente Max Weber — busca-se primeiramente compreender o indivíduo, o poder que um indivíduo exerce sobre o outro nos agrupamentos humanos, para então compreender as formações sociais.254 A obra de Marcel Mauss teve o grande mérito de ultrapassar as aporias do holismo e do individualismo para a compreensão da gênese das ordens sociais. Pode-se entendê-la como uma terceira perspectiva, que coloca em foco a coextensividade entre o holismo e o individualismo através do conceito de fato social.255 Segundo Mauss, os fatos sociais devem ser considerados como realidades de ordem simbólica. As sociedades seriam formadas pelas associações entre indivíduos instituídas por meio de símbolos, sendo os símbolos produtos da aliança concreta entre os homens. Tal definição nos remete ao sentido etimológico de symbolon, conforme vimos no capítulo anterior. Nesta perspectiva, o símbolo é algo criado na relação entre indivíduos que adquire valor social. O mundo humano é assim um mundo simbolicamente imaginado e construído. Para viver gregariamente, os sentidos precisam ser compartilhados através de um padrão consensual de organização social, isto é, de um sistema cultural. Falamos aqui de um sistema de organização social instituído pelo uso de objetos, técnicas, práticas, conhecimentos, linguagens, códigos e valores que determinam as condições materiais e subjetivas de existência de um grupo populacional. Daí, toda ordem social nascer da criação de símbolos, na imanência das relações sociais entre os indivíduos, que configuram um determinado padrão que acaba por se estabilizar de modo mais ou menos duradouro. Seja através da linguagem, como dos instrumentos que utiliza para trabalhar ou jogar, das regras que balizam o comércio dos bens produzidos, das leis que normatizam o convívio social, os homens se relacionam entre si e com o mundo através de símbolos. Em sua ação, o homem modifica o meio ambiente social e cósmico, sendo que tais mudanças o mobilizam a criar novas transformações. Dá-se assim o processo histórico, através da permanente criação e recriação de seus símbolos. Diríamos, morenianamente, que os infindáveis esforços de recriação das representações simbólicas, desde o seu surgimento pré-histórico até os dias de hoje, refletem o movimento do homem no sentido de um crescente desvelamento e expansão do self. Vejamos agora, seguindo os trabalhos do antropólogo Gilbert Durand, como acontece o processo de criação de símbolos através da relação recíproca entre corpo e mente, natureza e cultura, indivíduo e sociedade. Vimos com Morin que, com a expansão da rede neuronal do córtex cerebral humano ao longo da escala evolutiva dos hominídeos, passou a existir uma disjunção, um hiato, uma brecha entre a percepção imediata dos estímulos provenientes do mundo ao redor, das coisas em si, e um mundo subjetivo e pessoal, que caracteriza o gênero propriamente humano. Esta transformação possibilitou a criação de imagens que transcendem o campo imediato da percepção. Associando sensopercepções a emoções e sentimentos, o cérebro humano começou a formar algo mais do que imagens objetivas dos estímulos imediatamente percebidos. Passou a formar imagens subjetivas que surgem à consciência de modo autônomo, evocando a presença de objetos ausentes do campo imediato da percepção. Em outras palavras, a consciência humana tornou-se reflexiva. Operação que fez com que homem se tornasse capaz de se autoperceber, na sua existência, e atribuir sentido à mesma. Com isto, a consciência do homem passou a não estar mais limitada à fruição do presente imediatamente percebido, como um uno-todo indivisível, passando a estar dividida entre uma dimensão subjetiva, que sente a presença de seu existir em si, e uma dimensão objetiva, dada

254 MOSCOVICI, S. A máquina de fazer deuses. Rio de Janeiro, Imago, 1990. 255 CAILLÉ, A. Antropologia do dom. Petrópolis, Vozes, 2002, p 50.


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por imagens formadas por associações que ligam a sua existência presente ao passado e ao futuro. Ao, por exemplo, recordar algo numa imagem da memória, ao se projetar numa imagem futura, ao imaginar o que acontecerá após a sua morte, ao traçar o desenho da trajetória de sua vida na temporalidade, promovida pela sua atividade imaginativa, o homem toma consciência da sua existência, imersa no transcurso do tempo. Para G. Durand, o processo de formação de imagens acontece ao longo de um percurso existencial que denomina “trajeto antropológico”.256 G. Durand elaborou a sua perspectiva antropológica procurando compreender o homem a partir de seu contexto existencial. Tendo a consciência se tornado reflexiva, o homem se deparou com a condição temporal da sua existência, e consequentemente, com a inexorabilidade da morte. G. Durand defende a tese de que os estímulos sensoriais imediatamente percebidos, juntamente com os afetos, emoções e sentimentos mobilizados pela condição temporal da existência, são processados pelo córtex cerebral formando imagens como reação de enfrentamento da morte e da passagem do tempo frente ao devir. As imagens formadas estão assim investidas afetivamente pelo desejo do homem de aplacar sua angústia diante da passagem do tempo e da inexorabilidade da morte. Em outras palavras, o homem reage imaginativamente ao pathos da vida, isto é, às impressões afetivas mobilizadas em seu ser-no- mundo, o que inclui toda gama de acontecimentos ameaçadores que lhe escapam ao controle, tais como doenças, intempéries da natureza, ataques de animais selvagens, hostilidade de outros homens ou grupos rivais etc. As imagens são formas simbólicas que expressam o seu desejo de durar, de perseverar, sobrepondo-se às ameaças mortíferas que recaem sobre ele. Henri Bergson corrobora esta perspectiva argumentando que, diante do imprevisto, ou melhor, diante daquilo que ameaça a realização de uma iniciativa tomada, o homem, como mecanismo de defesa, de alívio da tensão, de asseguramento existencial, se põe a fabular.257 Trata-se da negação imaginária da finitude temporal pela crença no renascimento ou na sobrevivência transformada após a morte. O homem sente-se ameaçado por tudo aquilo que possa causar a sua morte e busca reagir aos possíveis agentes ameaçadores lutando ou fugindo. Fato que não difere do padrão comum a todas as espécies animais. Todavia, enquanto no animal operam mecanismos instintivos e imediatos, no homem operam mecanismos de defesa que passam a depender da sua capacidade de imaginar. O advento do cuidado com os mortos serve como base arqueológica para a sustentação científica desta perspectiva. Como dissemos, é sabido que os mais antigos vestígios de sepulturas e funerais arcaicos datam do Paleolítico Superior.258 Eles demarcam a aquisição da capacidade de reconhecer o corpo morto de outro homem como sinal de que a morte inevitavelmente sucederá a todos. O que denota a aquisição da capacidade de ver-se no outro, espelhar-se no outro, perceber no outro o reflexo de seu próprio ser. O cuidado com os mortos sinaliza também a emergência de imagens que evocam os mortos, não como meras marcas mnêmicas, mas como presenças que continuam, de um modo ou de outro, a exercer influência no mundo dos vivos. Sinaliza, assim, a emergência do sobrenatural, isto é, da crença na existência de um outro mundo além do mundo concreto e imediato. Trata-se de uma diferença radical na escala evolutiva. Sabemos que os mamíferos reconhecem a iminência da morte quando objetivamente ameaçados por um

256 DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Op cit. 257 BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Almedina, Coimbra, 2005, p 99. 258 LEAKEY, R. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p 148.


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predador, e que sentem afetivamente a morte de um outro animal de seu grupo familiar. A diferença reside no fato do homem ter passado a entendê-la como sujeição irremediável que atinge a todos. E mais: de senti-la como tensão, inquietação, angústia — o pathos humano. O trajeto antropológico, conforme a definição de G. Durand, se trata justamente deste percurso existencial no qual o homem reage àquilo que o angustia, ao seu pathos, formando imagens. Estas refletem o embate dialético entre as pulsões biopsicológicas do corpo, os imperativos do meio ambiente imediato e as demandas da organização política da vida em sociedade em determinada epoca e lugar. As imagens são simbólicas na medida em que são expressões imanentes dessas forças, representando os vínculos que os homens estabelecem entre si e com o transcendente cósmico. Os elementos figurados que aparecem numa imagem não devem ser tomados no sentido literal. Cada coisa concreta, objetiva, numa imagem torna-se um símbolo. A imagem nasce assim da experiência vivida, da intuição do sentido nela presente, de maneira que é sentida — emocional e afetivamente — antes de poder ser compreendida racionalmente. Com G. Durand aprendemos que a estrutura do corpo humano é a matriz criadora dos símbolos. Reagindo corporalmente à sua situação existencial no meio ambiente social e cósmico, o homem produz imagens que apresentam representações simbólicas dessa situação. A formação ou figuração das imagens ocorre, a partir dos gestos inconscientes da sensório-motricidade, havendo como que um inconsciente reflexo do corpo.259 Através do que chamou de aparelho simbólico260 , G. Durand explica a gênese e a formação dos símbolos e, consequentemente, das imagens, no trajeto antropológico. O autor encontrou na reflexologia do neurofisiologista russo Betcherev, portanto, na biologia e na fisiologia, a descrição das dominantes reflexas, entendidas como os mais primitivos conjuntos sensórios motores no ser humano. Surgem, então, a partir destas dominantes reflexas, os esquemas, que, como uma primeira categoria do aparelho simbólico, configuram a estrutura dinâmica da imaginação humana. São descritas três dominantes reflexas e seus respectivos esquemas: a) a dominante postural, dando origem ao esquema ascensional, associado à verticalização do corpo humano; ao esquema espetacular, associado à visão e à audiofonação ampliadas; e ao esquema diairético, associado à liberação da mão; b) a dominante digestiva, com seus adjuvantes cenestésicos, térmicos e os seus derivados táteis, olfativos e gustativos, dando origem ao esquema da inversão, e ao esquema da intimidade; e c) a dominante copulativa, com os seus derivados motores rítmicos e os seus adjuvantes sensoriais, cinéticos, músico-rítmicos, dando origem ao esquema cíclico, e ao esquema rítmico. Assim, dos gestos inconscientes da sensório- motricidade, diferenciados em esquemas, surgem em contato com o ambiente natural e social os grandes arquétipos, mais ou menos como Jung os definiu, e dos arquétipos os símbolos. A teoria de G. Durand, todavia, diferencia-se da de C. G. Jung, que coloca os arquétipos como as matrizes primeiras do símbolo. Para ele, os arquétipos não são formas abstratas e estáticas, mas dinamismos figurativos, ‘concavidades’ ou ‘moldes’ específicos que se realizam e se preenchem pelo meio ambiente imediato, o meio cósmico e o meio sociofamiliar.261 Como segunda categoria do aparelho simbólico, os arquétipos constituem as substantificações dos esquemas, sendo, por sua vez, os pontos gerais de junção com os processos racionais. Enquanto os arquétipos caracterizam-se pela abstração e universalidade, os

259 Idem, p 260 DURAND, G. Campos do imaginário. Lisboa, Instituto Piaget, 1996, p 75. 261 Idem, p 153.


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símbolos, diferenciando-se destes, como uma terceira categoria, particularizam-se ao tomar a forma de um objeto sensível. Como ilustrações concretas dos arquétipos, os símbolos apresentam ambivalência e polivalência, portanto, uma perda da universalidade. Um breve exemplo nos ajudara a ilustrar todas estas categorias. Os símbolos da escada, da torre, do elevador etc, derivam do arquétipo do topo ou cume; este, por sua vez, deriva do esquema ascensional; que deriva da dominante postural, associada à verticalização do corpo humano. O leitor interessado encontrará no livro “As estruturas antropológicas do imaginário” um inventário pormenorizado dos arquétipos e símbolos formados ao longo do trajeto antropológico, desde as estruturas profundas e inconscientes dos reflexos, gestos e esquemas sensório-motores. G. Durand corrige, desse modo, a talvez grande aporia da teoria de Jung, qual seja, a falta de ancoragem da noção de arquétipo na natureza corpórea do homem, abrindo assim a via para a compreensão empírica, material, da abertura do homem à transcendência. O símbolo, assim formado na imanência da vida corporal do homem, remete a significados desconhecidos de um devir que ele imaginativamente exprime, religando o homem a Deus. Sendo fiel aos conteúdos simbólicos manifestos nas imagens, expressando de modo pessoal o significado que elas contém, o homem revela a sua potencialidade como criador. Esta teoria da imaginação simbólica reveste-se de interesse ainda maior para a teoria do psicodrama, com os acréscimos feitos por Yves Durand. Segundo nos mostra este autor, na ação humana, o nível aparente do discurso dos atores em seus papéis ou personagens — tanto nas cenas teatrais como no “espetáculo do cotidiano” — se encontra ligada ao nível profundo, inconsciente, dos reflexos, gestos e esquemas da sensório-motricidade. Entre o nível dos papéis e o dos símbolos, Y. Durand descreve ainda o nível intermediário dos actantes. De modo que os papéis que representamos em nossas vidas encontram-se ligados aos estratos mais profundos da nossa estrutura corporal, através mediação simbólica operada pela imaginação. Em seu livro “Fundamentos do Psicodrama”, ao discutir o problema do acting out, Moreno reivindica a inclusão do corpo e seus eventos motores numa teoria do inconsciente: Apesar de toda a importância que o comportamento verbal possa ter, o ato é anterior a palavra e a ‘inclui’. Os resíduos de ato no Ics [inconsciente] são topograficamente anteriores aos resíduos de palavras. A inclusão do terminal motor do aparato psíquico no sistema do Ics torna-se uma conclusão inevitável. Freud dividiu o inconsciente em dois tipos de processos: o Pcs [préconsciente] e o Ics; talvez seja preciso acrescentar um terceiro, a dimensão do ato ou os eventos motores no inconsciente, Acs.262 Podemos assim dizer que o papel se forma na interface relacional entre o discurso e a sensóriomotricidade, através de uma interação de via dupla em que encontramos, por um lado, as normas, valores e costumes sociais comunicados pela linguagem numa dada sociedade; e, por outro, os reflexos sensóriomotores e gestos espontâneos do corpo físico. Através de seus papéis, o homem integra simbolicamente corpo, mente e espírito como uma unidade psicofísica. Vejamos então como teria surgido empiricamente a primeira etapa da história da humanidade, a etapa dos sistemas culturais mítico-religiosos.

Segundo G. Durand, a consciência humana teve a sua origem com a produção cultural de mitos,

262 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. Op cit, p 117.


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como reação existencial do homem ao seu ser-no-mundo. Os mitos encenam a vitória sobre o pathos humano. De modo que a formação dos símbolos nas imagens é explicada a posteriori pelo mito. Mas, o que vem a ser um mito? Segundo Mircea Eliade, o mito é a narrativa de acontecimentos protagonizados por entes sagrados — entre deuses, deusas, totens e heróis ancestrais — ocorridos em um tempo primordial e atemporal, in illo tempore.263 Nas assim chamadas sociedades primitivas ou arcaicas, os atos humanos apenas adquiriam valor e significado, tornando-se reais, através das referências legitimadoras dos mitos. Serviam como modelos exemplares para todas as atividades consideradas sagradas, regulamentando a interdição da sexualidade nas relações de parentesco, as regras para a caça e a agricultura, a definição das relações hierárquicas dentro do grupo comunitário, entre outras. Os acontecimentos que não seguissem o modelo mítico pertenciam à esfera do profano. Não havia regras, por exemplo, para regulamentar os atos sexuais fora aqueles definidos pelas relações de parentesco. Estes eram simplesmente considerados profanos, isto é, sem significação, e, portanto, sem importância. Presume-se que os mitos tenham se formado como criações coletivas, produzidas intersubjetivamente. De tempos em tempos, eram representados dramaturgicamente para o grupo comunitário nos rituais. O grupo se reunia para tratar dos aspectos fundamentais da sua vida em comum, promovendo a resolução de seus conflitos, através dos rituais. Toda dramaturgia mítica, de modo geral, segue um esquema básico: a partir de uma situação inicial de indiferenciação, na qual é deflagrado um conflito entre entes sagrados antagônicos, dá-se uma sequência de ações que culmina com a resolução do conflito, estabelecendo o domínio de um ente sagrado sobre o outro, ou a conciliação entre eles. Com isso, são traçadas pedagogicamente as condutas que estabelecem a ordem social do grupo, bem como, as que a transgridem. A estrutura dramatúrgica representava assim os valores que emergiam das suas experiências, na relação com o mistério e a angústia frente a passagem do tempo e a morte, organizando imaginativamente a visão de mundo, os significados da realidade. Os mitos podem ser entendidos, portanto, como a conflagração de forças vitais antagônicas personificadas na forma de entes sobrenaturais, a que G. Durand chama “guerra dos deuses”, e que Nietzsche colocou em termos do antagonismo entre as forças apolíneas e as forças dionisíacas.264 Percebidos pelo homem arcaico como transcendentes, estes entes divinos eram, na verdade, criações culturais coletivas, imanentes ao devir social. Os rituais tinham como propósito aliviar a tensão coletiva dos momentos de crise que periodicamente se instalavam no interior do grupo comunitário. As crises eram mobilizadas pela presença de ameaças mortíferas no seio do grupo. Doenças físicas ou mentais, ameaças de destruição de fontes de subsistência ou de impedimento de interesses comuns, promoviam a instabilidade das relações sociais instituídas, sendo fatores desencadeadores comuns destas crises. O dispositivo dos rituais possibilitava afastar as ameaças mortíferas, e assim, a angústia existencialmente compartilhada pelo grupo. Nos rituais, ao evocar seus deuses, deusas e heróis ancestrais, o grupo comunitário reproduzia uma série de ações e comportamentos creditados a eles, restabelecendo a harmonia ameaçada ou perdida, reafirmando a ordem transcendental originária. Repetindo um ato original de seu povo, acreditando participar, desta maneira, da dimensão do sagrado, os homens buscavam ativamente a renovação de suas condutas, a reordenação ética das suas vidas cotidianas. A imagem mítica evocada permitia domar ou adestrar as forças ameaçadoras da ordem instituída. Assim, a vivência dos rituais possibilitava organizar, ao mesmo tempo, estética e eticamente, a

263 ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 1996. 264 NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Lisboa, Guimarães Editora, 1996.


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visão de mundo, os significados da realidade, o sentido das suas vidas. As forças ameaçadoras da ordem comunitária primitiva vinham não só do exterior, como nos casos de intempéries climáticas, de agressão de animais selvagens ou de grupos humanos inimigos. Vinham sobretudo do interior da própria comunidade. Tendo o homem recalcado parcialmente os instintos naturais que circunscrevem o comportamento sexual e agressivo do animal, a regulação do seu comportamento passou a ser operada culturalmente, justamente pelos mitos e rituais que serviam para delimitar os parâmetros entre a medida e a desmedida, a ordem e a transgressão da ordem comunitária. Enquanto um animal só se torna sexualmente ativo para se reproduzir, e agressivo, apenas para obter alimentos ou impor seu domínio territorial, permanecendo atado aos padrões comportamentais determinados pelos seus instintos; um homem, motivado pela sua atividade imaginativa, a qualquer momento pode romper com as condutas culturalmente definidas e transgredir a ordem comunitária. Com a imaginação, a sexualidade se expandiu para além dos fins reprodutivos, permeando afetivamente todas as relações de um indivíduo. De modo análogo, a agressividade se expandiu para outras finalidades que não as de preservação da espécie. Com a sua atividade imaginativa, o homem passou a gerar modos de organização social pautados por um saber culturalmente edificante; por outro, passou a gerar também destruição, desordem e loucura. Condizente com esta dualidade, ambiguidade e contraditorialidade constitutiva da condição humana, Morin sugeriu denominar a nossa espécie como homo sapiens demens.265 Compreende-se aqui o acerto de Freud ao falar da repressão da sexualidade e da agressividade como mecanismo formador da cultura. Na medida em que o homem é lançado pelas suas pulsões biopsicológicas na busca por cada vez mais prazer, saber e poder, faz-se necessário mecanismos reguladores do comportamento humano para viabilizar a vida em sociedade, e a sua progressiva expansão cultural. Neste sentido, os rituais funcionavam como mecanismos reguladores das sociedades primitivas. Neles, os indivíduos davam vazão à descarga violenta das suas pulsões transgressoras — pulsões de morte, na terminologia de Freud — que culminavam na morte sacrificial de um ser humano ou animal. Atos sexuais entre parentes e orgias, eram não apenas permitidos, mas faziam parte do ritual. O efeito produzido era duplo: ao mesmo tempo em que davam continência à violência pulsional, propiciavam a sua exclusão da temporalidade cotidiana. M. Eliade nos fala desta separação nos termos de duas temporalidades distintas: o sagrado e o profano.266 A temporalidade do ritual dava acesso ao sagrado. Nos rituais, eram rememorados e existencialmente vivificados os limites entre a vida e morte, o indivíduo e a coletividade, o certo e o errado, a saúde e a doença, permitindo aos participantes entrar em contato com o conflito entre as suas pulsões sexuais e agressivas e os interesses gregários da comunidade, e refletir sobre suas condutas. Os rituais permitiam assim a catarse da violência pulsional, e o alívio da angústia. O caráter religioso dos mesmos residia em possibilitar, após o alívio da carga pulsional, a integração e harmonização da sociedade como um todo na temporalidade cotidiana ou profana, nos termos de Eliade.

Henri Bergson chama esta modalidade de religião de “religião estática” ou “religião natural”.267

265 MORIN, E. Op cit, 266 ELIADE, M. O sagrado e o profano. Op. cit, 267 BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Op. cit.


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Postula uma função fabuladora que lhe parece “feita para fabricar espíritos e deuses”, como representações necessárias para a coesão social. O sagrado e o perigoso estão associados ao tabu, que é o interdito que afasta o arbitrário individual para preservar o elo social. Opõe-se o medo da morte pela crença na sobrevida após a morte. O processo de personificação, que pode se aplicar às forças cósmicas, permite colocar o medo em segundo plano e reagir utilmente. A mitologia forma em seu conjunto a base ancestral de todo conhecimento, de toda cultura. Origem das religiões, das linguagens, das artes, das ciências, é enfim, segundo G. Durand, origem de toda história, pois, “longe de ser um produto da história, é o mito que vivifica com sua corrente a imaginação histórica e estrutura as próprias concepções da história”268, sendo “o referencial último a partir do qual a história se compreende”.269 Os sistemas mítico-religiosos formaram assim o primeiro patamar na construção da inteligibilidade da existência humana, cuja função consiste em participar da representação dinâmica do espaço-tempo existencialmente apreendido. Toda ação humana se assenta sobre mitos, enquanto modelos dramatúrgicos que ligam o homem ao Cosmos. Os papéis representados, com sua gestualidade particular, são assim compreendidos simbolicamente como portadores de forças biológicas, psicológicas, sociais e cósmicas presentes nos vínculos entre os indivíduos, exprimindo as relações entre os seus selves e o Self. Nesta perspectiva, a experiência vivida — emocional e afetivamente — na ação, entendida através da lógica dos símbolos, possibilita a restauração do primeiro estágio — onto e filogenético — da relação do sujeito humano com o processo Self-Cosmos-Deus. Avancemos um pouco mais na compreensão do processo histórico da origem e evolução da humanidade, procurando responder agora à questão: a especulação schellinguiana sobre a dialética das potências divinas pode ser confirmada empiricamente? Como aconteceram as passagens de A1 para A2, e de A2 para A3? Para Schelling, A1 representa o desejo, o que não é mas pode vir a ser com a determinação da vontade. Um ato é a expressão de um desejo realizado. O desejo como questão filosófica remonta a própria história da filosofia com a abordagem de Platão em “O Banquete”, como o sinal de uma falta cujo objeto desejado nos preenche, sendo, assim, a força que nos impulsiona na direção do saber. O tratamento dado por Schelling se inscreve nesta tradição, da qual se destacam as interpretações propostas por Spinoza e Hegel. Em 3.4, vimos que Schopenhauer, seguido por Nietzsche, podem ser considerados como os precursores diretos da teoria da psicanálise de Freud, e de seu conceito de desejo como pulsão e libido. O antropólogo René Girard desenvolveu uma teoria do desejo que incorpora uma das intuições fundamentais de Freud, mas acaba por redefini-la completamente. Trataremos então de correlacionar a potência A1 ao desejo mimético, tal como definido por Girard, o que nos fornecerá elementos para, em um primeiro momento, confirmar a especulação schellinguiana empiricamente, e a seguir, explicar a relação entre a ação espontâneo-criadora e o desejo humano. A hipótese central da teoria girardiana é a de que o desejo é mimético, isto é, que um sujeito deseja na medida em o objeto só se torna desejável para ele segundo o desejo de um outro. Isso significa que,

268 DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Op. cit, p 390. 269 DURAND, G. Campos do imaginário. Op. cit. p 87.


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via de regra, uma pessoa deseja mimetizando, imitando, se apropriando do desejo de uma outra. Neste sentido, a questão do desejo situa-se aquém ou além da escolha de objetos, pois, o que é primário, é o ato de mimetismo que acontece na relação interpessoal. A ideia do indivíduo como portador autônomo de seu desejo é refutada por Girard. O desejo que porventura sentimos nos pertencer como algo próprio, a bem da verdade, é socialmente mediado por um modelo, um terceiro, que Girard chama de duplo. O mimetismo é o fator mediador das relações interpessoais. Um exemplo, fornecido por J. Alison, nos ajudará a compreender esta questão: Em poucas palavras, Girard descobriu que os seres humanos não desejam linearmente, como nosso pensamento nos faz crer durante a maior parte do tempo, por exemplo, quando cremos que um sujeito deseja um objeto: Tarzan ama Jane. Nem mesmo desejamos exatamente como Hegel pensou, interpretado por Kojève — que desejamos o desejo do outro sobre nós, o que realmente queremos é sermos desejados. Nesse caso, Tarzan quer que a Jane o ame. Mas, segundo Girard, em vez disso, desejamos segundo o desejo do outro (um diretor de Hollywood, a passeio na selva, se encanta por Jane, e Tarzan, subitamente, começa a achar Jane fascinante). Todo desejo é triangular, e é sugerido por um mediador ou modelo.270 Girard prefere o uso do termo mimese ao da palavra imitação para evitar a redução do conceito. No senso comum, a palavra imitação normalmente significa a operação pela qual uma pessoa procura reproduzir consciente e explicitamente os gestos, atitudes ou características de uma outra. Este tipo de imitação corresponde a apenas uma parte do significado de mimese. Isso porque a mimese acontece como uma espécie de reflexo inconsciente, “num imediatismo quase osmótico”271, desde os primeiros dias após o nascimento, portanto, antes da aquisição por parte da criança da capacidade de imitação consciente de gestos, atitudes do outro, ou de qualquer coisa que possa ser apreendida no plano das representações. A moderna pesquisa em neurobiologia descobriu — já há duas décadas — a existência de neurôniosespelho, cujo funcionamento no cérebro humano está implicado em produzir uma ação virtual que mimetiza reflexamente a ação observada num outro, sem que este tenha consciência de imitar o outro, o que serve de base para uma assimilação intersubjetiva não verbal do que se passa entre um e outro. Em vista disto, a mimese pode ser compreendida como um magma intersubjetivo que nos une como seres humanos, na medida em que nos conduz a espelhar reflexamente expressões faciais, gestos ou ações de outros que nos cercam, antes mesmo de termos adquirido a capacidade de conscientemente imitar. Como origem do desejo, a mimese nos faz sentir atraídos uns pelos outros. De modo que o outro nos instiga pelo que sente, pensa, faz, e, assim, no faz reagir a ele — consciente ou inconscientemente — imitando-o. Em suma: a mimese nos leva a sermos à imagem do outro, nosso próximo. No vocabulário girardiano, duplo é o termo utilizado para designar o outro que serve a um sujeito, ao mesmo tempo, como modelo e mediador do desejo. Muitos duplos podem povoar a vida de uma pessoa. Alguns, sendo especialmente importantes; outros, apenas passageiros. A mãe e o pai, geralmente, são especialmente importantes, mas também um tio, um irmão, uma avó, uma professora, um colega de classe, um ator de cinema, um escritor de romances, uma personagem de história em quadrinhos (o Tarzan, por exemplo); enfim, todo aquele que serve de modelo, mediando a ação do sujeito através da sua influência.

270 ALISON, J. O pecado original à luz da ressurreição. São Paulo, Realizações Editora, 2011, p 35. 271 GIRARD, R. A crítica no subsolo. São Paulo, Paz e Terra, 2011, p 251.


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Mesmo considerando a possibilidade de um duplo imaginário, como no caso, por exemplo, de um garoto que faz musculação tendo como modelo Tarzan (em que podemos aludir ao conceito psicanalítico de duplo alucinatório de Otto Rank, como reflexo enfraquecido, imagem no espelho), o duplo par Girard é o duplo real, o outro concreto com quem se interage na realidade. É alguém que se imita, mesmo que de modo não consciente, encontrando-se na origem de todo comportamento. É interessante utilizar esta chave de leitura para explicar a situação descrita por David Le Breton, das crianças acolhidas por animais.272 Segundo Le Breton, há informações precisas a respeito de casos de crianças-lobo na Índia, casos nos quais ao invés de serem apresadas e devoradas por lobos, foram por eles acolhidas. Cita a história de Amala e Kamala, a mais rica em documentação. No ano de 1920, o pastor Singh, em viagem à região de Midnapore, é advertido por indígenas da presença de “homens fantásticos” na floresta. Ele vai até o local e avista três lobos adultos, dois filhotes de lobos e duas crianças de aspecto irreconhecível. Eram duas meninas que, depois de capturadas, foram adotadas pela família do pastor, recebendo os nomes supracitados. Breton apresenta uma detalhada descrição da constituição física e do comportamento das crianças que vamos aqui resumir: maxilares proeminentes; dentes compridos e cortantes; caninos longos e pontiagudos; imitavam a respiração ofegante, o bocejar e o longo grito dos lobos; para pequenas distâncias, se deslocavam usando os joelhos e cotovelos, para correr, apoiavam-se sobre mãos e pés; faziam caretas e mostravam os dentes quando alguém se aproximava. Podemos dizer que os lobos serviram como duplos para estas crianças. Todo o seu desenvolvimento físico e psicológico se deu de modo a refletir a imagem que lhes serviu de modelo: a imagem do lobo. A tese antropológica defendida por Girard é a de que a cultura humana teve início com o advento de um assassinato coletivo fundador, a exemplo do que Freud formulara em “Totem em tabu”, mas com uma série de modificações. Freud postula que a cultura humana teria surgido de um acontecimento primordial no qual os filhos se reúnem para assassinar o pai e chefe da horda primitiva, surgindo, a partir de então, instituída por eles, a lei que proíbe o incesto e o parricídio. Girard reconhece o pioneirismo de Freud na sua suposição de um assassinato coletivo real na gênese da cultura humana. Porém, critica o que Freud diz a esse respeito em alguns pontos fundamentais. Segundo Girard, o fenômeno do duplo encontra-se na raiz do assassinato coletivo fundador da cultura humana. 273 A sua tese, resumidamente, é a de que o desejo mimético conduz a comportamentos de apropriação geradores de rivalidade entre os membros do grupo social. Imaginemos, como exemplo, a seguinte situação: em um grupo de homens primitivos, um deles descobre que pode se utilizar de um osso como instrumento para bater, para golpear. Evidentemente, esse comportamento passa, logo a seguir, a ser imitado pelos outros membros do grupo. Cada indivíduo se torna um duplo do outro, situação que leva à perda das distinções sociais anteriormente estabelecidas entre eles, de hierarquia ou amizade, e assim, à escalada da violência no seio do grupo. Uma violência que é de todos, está em todos. Quando a violência está prestes a alcançar o extremo da guerra de todos contra todos, um fato inusitado os deixa perplexos e os apazígua. Este fato é o assassinato coletivo de uma vítima única que, no auge da tensão, acaba por apaziguar o grupo.

272 Le BRETON, D. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis, Vozes, 2009, pp 19-23. 273 GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo, Paz e Terra, 1998.


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Girard teoriza que tal tensão é decorrente da rivalidade mimética, pois, uma vez desencadeada dentro de um grupo, tende a produzir uma escalada de violência incontrolável. O acontecimento original do assassinato coletivo de um dos membros do grupo teria sido aleatório e inusitado. O apaziguamento do grupo teria levado o homem primitivo a reconhecer neste ato, provavelmente, após uma série de repetições do mesmo, um mecanismo de controle eficaz a fim de se evitar que a escalada da violência atingisse o seu ápice. A escalada da violência era certamente percebida como algo muito assustador e perigoso, uma permanente ameaça à estabilidade social dos primeiros agrupamentos humanos. Daí, o mecanismo de controle desenvolvido ter sido o ritual do sacrifício. Uma única vítima era escolhida para ser sacrificada em um ritual — representando, no contexto de uma narrativa mítica, o indivíduo que inovou em seu comportamento, o primeiro a se tornar um modelo a ser imitado pelos demais, o primeiro duplo —, apaziguando as tensões dentro do grupo de modo controlado. Com o passar tempo, o assassinato coletivo original teria sido reprimido, recalcado, e assim, tornado inconsciente. Este não aparece explícito na narrativa mítica justamente pelo fato dela ocultá-lo, tentando apagar os seus vestígios. Neste sentido, o sacrifício é entendido por Girard como a primeira instituição humana, a instituição fundadora da cultura humana. O ritual sacrificial é acionado quando da iminência de uma crise mimética. Antes que seja desencadeado o paroxismo de violência no interior do grupo, a execução do ritual sacrificial promove o alívio da tensão, e o retorno ao estado de paz. Vimos a pouco que a anterioridade dos achados de escombros de sepulturas e funerais arcaicos em sítios arqueológicos demarcam o início da cultura propriamente humana. O cuidado dos mortos denota o reconhecimento do corpo morto do outro como símbolo que representa a presença e a influência de seu ser — depois de morto — no mundo dos vivos. Encontra-se desse modo sinalizada a emergência do sagrado, isto é, a origem da crença na existência de um outro mundo povoado por entes sobrenaturais, além do mundo concreto e imediato. Esses entes sagrados — entre deuses, deusas, totens e heróis ancestrais — aparecem nos mitos dos povos primitivos como protagonistas de acontecimentos ocorridos em um tempo primordial e atemporal, servindo como modelos exemplares para o comportamento de seus membros, de modo a regulamentar a interdição da sexualidade nas relações de parentesco, as regras para a caça e a agricultura, a definição das relações hierárquicas dentro do grupo comunitário, enfim, todos os aspectos vitais para a coesão e manutenção do grupo. De tempos em tempos, os mitos eram acionados e representados dramaturgicamente na forma de rituais. O dispositivo dos rituais possibilitava afastar as ameaças à ordem social instituída que periodicamente se instalavam no interior do grupo. Como dissemos, as forças ameaçadoras vinham não só do exterior, mas do interior da própria comunidade, fato explicado pela teoria mimética de Girard. Ao evocar seus deuses, deusas e heróis ancestrais, o grupo evocava “inconscientemente” o duplo mimético, isto é, o indivíduo cuja ação espontâneo-criadora fora instituinte das formas culturais que ordenavam a sua vida social. A dramaturgia mítica segue, de modo geral, um esquema básico: a partir de uma situação inicial de indiferenciação, na qual é deflagrado um conflito entre entes sagrados antagônicos, dá-se uma sequência de ações que culmina com a resolução do conflito, estabelecendo o domínio de um ente sagrado sobre o outro, ou a conciliação entre eles. Assim, através dos rituais, reproduzia-se toda uma série de ações e comportamentos creditados a eles, restabelecendo a harmonia ameaçada ou perdida, reafirmando a ordem transcendental originária. Percebidos pelo homem primitivo como transcendentes, os entes divinos eram, na verdade, criações culturais coletivas, imanentes ao devir social a partir do mimetismo de suas ações.

A teoria mimética nos esclarece a respeito do mito que este não deve ser entendido como algo


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puramente da ordem do imaginário, tal como postulado por Bergson. Desse modo, as religiões naturais não teriam surgido como projeção de forças cósmicas personificadas na forma de entes sobrenaturais por uma função fabuladora, “feita para fabricar espíritos e deuses”, que permite ao homem colocar o medo em segundo plano e reagir utilmente. Contra este tipo de interpretação, Girard nos mostra que há, em todos os mitos, indícios que apontam para a existência de um fato real, a violência coletiva, por trás da “guerra dos deuses”, retratada pelos mitos. Um segundo aspecto fundamental acerca do mito é sobre a questão da culpabilidade do deus ou herói mítico que acaba sendo morto ou gravemente punido. Girard nos mostra que em todos os mitos, de diferentes épocas e lugares, o deus ou herói protagonista é identificado — de modo mais ou menos evidente ou escamoteado — como culpado, tal como no enredo da tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles, em que Édipo é culpado por incesto e parricídio. No mito ojibwa dos índios da região americana dos Grandes Lagos, relatado por Levi-Strauss274, a identificação do deus ou herói como culpado não é claramente denunciada, mas é possível constatá-la indiretamente através de indícios apresentados no mito. Neste caso, um dos ancestrais dos índios sofre um acidente fatal após ter sido identificado o terrível poder de seu “mau-olhado” pelos outros personagens da narrativa. Na observação de Girard: Se se presta atenção aos indícios indiretos em vez da própria mensagem, então vê-se aparecer por detrás do linchamento da vítima um mecanismo coletivo de projeção que é preciso compreender não relativamente à vítima, mas relativamente aos problemas, tanto mais inultrapassáveis quanto incompletamente formulados, da coletividade.275 A conclusão a que se chega é a de que no mito a culpa da coletividade é projetada em um único indivíduo. Por trás da projeção imaginária do mito, Girard vê o real da violência coletiva, desencadeada pelo desejo mimético de apropriação, que culmina no assassinato coletivo de um duplo. A teoria mimética confirma, por um lado, a teoria consensualmente aceita em antropologia sobre a função do ritual, qual seja, a de assegurar a vitória da comunidade sobre as ameaças que a cerca, sobre o pathos humano. Porém, dá um passo a frente esclarecendo o fator comum destas ameaças: a escalada da violência mimética dentro da comunidade. Diferentes situações podiam desencadear a violência mimética no interior do grupo primitivo. As disputas entre próximos motivadas por ciúmes ou inveja, como podemos ver refletida no “mau- olhado” do mito ojibwa, por exemplo, tinham o potencial de se alastrar aos membros do grupo por contágio mimético. Para aplacar tais ameaças, recorria-se ao ritual, que culminava na morte de uma vítima sacrificial. A crença mítico-religiosa do homem primitivo era a de que toda e qualquer mazela que pudesse acometer a comunidade vinha do descontentamento de um deus ancestral em relação a ela. Por isso, nos rituais, dedicava-se a esse deus a morte de um único ser humano a fim de contentá-lo, e assim conter a sua violência contra a comunidade. No seguinte texto, Girard sintetiza o significado do ritual: O sacrifício tem aqui uma função real, e o problema da substituição coloca-se ao nível de toda a comunidade. A vítima não substitui tal ou tal indivíduo particularmente ameaçado e não é oferecida a tal ou tal indivíduo particularmente sanguinário. Ela simultaneamente substitui e é oferecida a todos os membros da sociedade. É a comunidade inteira que o sacrifício protege

274 GIRARD, R. A voz desconhecida do real. Lisboa, Instituto Piaget, 2002, p 24. 275 Idem, p 37.


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de sua própria violência, é a comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas exteriores. O sacrifício polariza sobre a vítima os germens de desavença espalhados por toda a parte, dissipando- os ao propor-lhes uma saciação parcial.276 O desejo de violência da comunidade é dirigido assim a um próximo, de modo a canalizar, domesticar, prevenir a explosão de conflitos e a escalada da violência em seu interior. A escolha da vítima era feita de modo arbitrário, entre categorias de indivíduos tidos como “sacrificáveis”: prisioneiros de guerra, escravos, crianças e adolescentes solteiros, indivíduos defeituosos, estrangeiros, e, em certas sociedades, o rei. Os sacrificadores (sacerdotes), assim procedendo, cercavam-se de todo o cuidado para que a vítima pudesse ser abatida sem perigo, de maneira que ninguém fosse reclamar por ela. Evitavam-se, assim, ao máximo, possíveis vinganças. Pois que a vingança constitui um processo em círculo vicioso, interminável. Neste sentido, “o sacrifício impede o desenvolvimento dos germens da violência, auxiliando os homens no controle da vingança”.277 A violência coletiva era contida com uma forma de violência controlada sob os auspícios do sagrado. O incompreensível do sacrifício torna-se desse modo compreensível: a “violência sagrada” era utilizada para impedir a propagação desordenada da violência no interior da sociedade. A teoria mimética se propõe a responder a uma outra questão antropológica fundamental: como teria acontecido o surgimento empírico da linguagem verbal? Como vimos, a linguagem verbal é um sistema de relações entre signos linguísticos que estrutura o campo da experiência humana. A linguagem é composta por significantes que só se tornam inteligíveis quando relacionados uns aos outros. Ligados aos significantes, encontramos os significados. Segundo o estruturalismo de Lévi-Strauss, o caráter relacional da linguagem é dado pelo pensamento simbólico. Para o antropólogo: Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento na escala da vida animal, a linguagem só pôde nascer repentinamente. [...] uma passagem efetuou-se, de um estágio em que nada tinha um sentido a um outro em que tudo o possuía. [...] Dito de outro modo, no momento em que o Universo inteiro, de uma só vez, tornou-se significativo, [...] as duas categorias do significante e do significado se constituíram simultânea e solidariamente como dois blocos complementares.278 Lévi-Strauss argumenta que o pré-requisito formal deste acontecimento originário da linguagem é o surgimento de um significante flutuante [...] a expressão consciente de uma função semântica, cujo papel é permitir ao pensamento simbólico exercer-se apesar da contradição que lhe é própria. [...] Nesse sistema de símbolos que toda cosmologia constitui, ele seria simplesmente um valor simbólico zero, isto é, um signo que marca a necessidade de um conteúdo simbólico suplementar àquele que pesa

276 GIRARD, R. A violência e o sagrado. Op. cit, p 19. 277 Idem, p 31. 278 LÉVI-STRAUSS, C. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p 41.


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já sobre o significado, mas que pode ser um valor qualquer, com a condição de ainda fazer parte da reserva disponível e de já não ser, como dizem os fonólogos, um termo de grupo.279 Em outras palavras, como há no Universo uma integralidade e superabundância de significante em relação aos significados que o homem dispõe para conhecer, isto é, há um excedente de significação que lhe é muito difícil alocar um significado, é preciso que haja um primeiro significante que, ao mesmo tempo, seja suscetível de assumir qualquer conteúdo simbólico, como também não ser nada disso. A linguagem verbal teria surgido com o primeiro símbolo propriamente dito, quando passou a haver uma inadequação entre significante e significado, caracterizada por uma superabundância de significante em relação aos significados disponíveis ao conhecimento, suplementando assim o uso arbitrário, linear e unívoco de signos, fazendo com que o jogo do pensamento simbólico pudesse começar. Desse modo, passou a haver um semprevir-a-conhecer determinado pela permanente inadequação entre o significante disponível e o significado assinalado, definidora da relação de complementaridade entre significante e significado que é a condição mesma do exercício do pensamento simbólico. Diz-se, neste sentido, nos termos do estruturalismo, que a estrutura é diferenciadora. A diferença é sempre produzida na medida em que um significante dá lugar a outro numa cadeia de significantes, devido ao fato de nenhum deles esgotar o montante de significado disponível para ser conhecido. O primeiro símbolo funcionou, portanto, como o marco inicial — o marco zero —, o significante universal que tende a permanecer inconsciente determinando o espaço vazio — isto é, a disjunção, o hiato, a brecha entre a percepção imediata dos estímulos provenientes do mundo ao redor, das coisas em si, e um mundo imaginário subjetivo e individual — que possibilita com que a cadeia de significantes seja estruturada na forma de linguagem. Para Lévi-Strauss, “o momento em que o Universo inteiro, de uma só vez, tornou-se significativo” corresponde ao fato social total, no sentido empregado por Marcel Mauss, momento em que a dimensão propriamente sociológica, com seus múltiplos aspectos sincrônicos — moral, político, religioso —, coincide com a dimensão diacrônica ou histórica, e com a dimensão psicofísica. De modo que a noção de fato social total reúne, a um só tempo, os âmbitos biológico, psicológico, social e cósmico da existência humano, ligando o social e o individual.280 Qual teria sido este primeiro símbolo? Lévi-Strauss associa-o à noção de “mana” — estudada por Mauss em seu “Ensaio sobre a dádiva” —, por ele interpretada como “o reflexo subjetivo da exigência de uma totalidade não percebida”281, algo da “ordem do pensamento”.282 Segundo Mauss, os primitivos consideram a existência de um caráter mágico-espiritual dos objetos, conhecido como “mana”. Em termos práticos, isso significa que um objeto dado a outro carrega consigo algo da pessoa que o deu, parte de sua alma. O que pode acarretar benefícios ou malefícios para quem o recebe, dependendo do “mana” de quem o deu, contido no objeto. Trata-se de algo contraditório, ligado à afetividade nas relações de troca, ao mesmo tempo, abstrato e concreto, onipresente e localizado, substantivo e adjetivo.

Girard critica Lévi-Strauss por ele ter reduzido o fenômeno humano à perspectiva puramente

279 Idem, p 43. 280 Idem, p 24. 281 Idem, p 40. 282 Idem, p 41.


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linguística, negando a anterioridade ontológica do religioso. Nas suas palavras: O nosso poder de distinguir os objetos reais e de forjar símbolos adequados aos seus referentes parece enfraquecer quando, ao nos voltarmos para nós próprios, tentamos compreender as nossas distinções nos domínios social, cultural e religioso. [...] Nunca se resolve o problema só pela aproximação lógica ou filosófica. O que não quer dizer que uma solução seja impossível, mas que só podemos atingi-la descobrindo a origem da verdadeira natureza de todo o simbolismo. O problema só faz um todo com o enigma da religião primitiva e a solução reside numa teoria do mecanismo espontâneo da vítima sacrificial como símbolo original.283 Da perspectiva antropológica girardiana, o primeiro símbolo — o significante com valor simbólico zero, que dá origem à cadeia de significantes —, é a vítima sacrificial, morta e transmutada em deus. O fato social total, instituinte da cultura humana, teria acontecido originariamente em função do laço social estabelecido pelos indivíduos e o grupo social em seu todo, em torno do símbolo — entendido como objeto de união de um pacto associativo intersubjetivo — da vítima sacrificial. A narrativa mítica teria sido a primeira sequência de significantes articulados na forma de um discurso. O mito encontra-se assim na origem da linguagem. Voltando à especulação schellinguiana sobre a dialética das potências divinas, como teriam acontecido empiricamente as passagens de A1 para A2, e de A2 para A3? A potência A1 corresponde ao desejo mimético, tal como definido por Girard. A separação entre sujeito e objeto, descrita como a Queda, teria acontecido com o reconhecimento intersubjetivo do corpo da vítima assassinada como objeto, isto é, como primeiro significante linguístico. Este fato teria possibilitado que cada indivíduo passasse a poder reconhecer o corpo morto diante de si como uma imagem especular: a primeira imagem diferenciada de um indivíduo. Da criação coletiva da narrativa mítica acerca do fato, decorrem duas consequências fundamentais. A primeira, é a ocultação do desejo mimético pelo recalcamento da culpa, o que na especulação schellinguiana corresponde à passagem A1 — B, sendo que B corresponde à natureza inconsciente do desejo mimético. A segunda, é a emergência do sagrado através da sequência de representações antropomórficas de divindades míticas que adquiriram forma ao longo do processo mitológico como imagens de A2. Cada uma dessas divindades representa potencialidades da natureza humana, que, como duplos, servem de modelos ao desenvolvimento dos indivíduos dentro da sociedade. Enquanto A1 é a potência do desejo que tende a permanecer indiferenciada, inconsciente, subjetiva, interna; A2 é a forma diferenciada, consciente, objetiva, externa, em uma palavra, idealizada do desejo. Há um movimento dialético entre A1 e A2, isto é, entre desejo indiferenciado, de uma espontaneidade quase pura, e desejo idealizado segundo um modelo, uma conserva cultural. Vejamos como este movimento dialético nos ajuda a compreender a história das formas de vida em sociedade, desde o início dos tempos até a atualidade. Uma vez que uma sociedade primitiva ou arcaica era instituída em torno de uma determinada divindade A2, a sua ordem social tendia a ser tradicionalmente reproduzida de maneira estável e duradoura. Em contraste com o homem moderno, não havia o menor estímulo à mudança. O que surgisse como inovação, 283 GIRARD, R. A voz desconhecida do real. Op. cit, p 80.


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de modo incipiente, na experiência profana destes povos, a partir de A1, simplesmente não chegava a adquirir valor algum. Neste processo, as comunidades primitivas se diferenciavam e se integravam, cada qual, em um modo próprio de ser, de acordo com a particularidade do mito que regia a sua relação com o sagrado. A diversidade de características particulares entre as formas de vida dos diferentes povos primitivos — que concretamente existiram em diferentes épocas e lugares ao longo da história da humanidade — se esclarece pela diversidade de seus mitos, o que reflete, por sua vez, a diversidade de modos parciais ou relativos de experiência humana. Em conseqüência da dominação rígida da tradição mítico-religiosa, a ordem sociocultural dos povos primitivos retinha assim certa uniformidade, de forma que, de geração em geração, tornava-se cada vez mais individualizada em seu modo próprio de ser.284 Apesar da diversidade, as religiões dos povos primitivos, em comum, deificavam o fluxo perene da vida orgânica que se originava da mãe-terra. Neste sentido se diz que eram religiões da natureza. Suas divindades — como personificações de forças vitais na forma de entes sobrenaturais — lhe ensinavam que a materialidade de seus corpos apenas poderia ser mantida à custa de outros seres vivos, sendo a vida de um a morte do outro, em conformidade com a lei da justiça divina. Eram religiões que tinham o sacrifício de uma vítima humana como o centro de seus rituais. A morte de um único indivíduo era oferecida à divindade visando à conservação da ordem social do grupo, contra as ameaças de dissolução que provinham do interior do próprio grupo ou de outros grupos, como acabamos de mostrar nos valendo dos estudos de Girard. De modo que o poder político era exercido pela sociedade como um todo, tendo apenas um objetivo: conservar a sociedade intacta em sua ordem social. Segundo Pierre Clastres, tratava-se de um poder absoluto e complexo sobre tudo o que compunha a sociedade primitiva, interditando a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituíam, mantendo todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentavam a vida social, nos limites e na direção desejados por uma sociedade não dividida. Portanto, qualquer poder político isolado era impossível.285 Apesar de muitas destas sociedades terem sobrevivido por centenas, ou até milhares de anos, não se encontram entre elas memoriais históricos. Em contraste com o mito, a história pode ser definida como a narrativa de acontecimentos humanos que produzem mudanças nas formas de vida de um grupo social através do tempo. Encerradas em seus mitos, tais sociedades não chegaram a conhecer a noção de história. A “história” delas — por assim dizer — só pode vir a ser contada a partir do ponto de vista científico da antropologia, como a reprodução através dos tempos de suas representações mitológicas, fechada na modalidade autocentrada de uma dada experiência singular de habitar o mundo. Elas puderam, desse modo, “sair de cena” sem deixar nenhum traço na história da humanidade. A consciência histórica, isto é, a história contada a partir de dentro da própria sociedade, surgiu apenas com a abertura da vida cultural das mesmas, na medida em que os rígidos limites do poder da tradição que as conservavam fechadas em si mesmas foi rompido, viabilizando a assimilação de novas ideias advindas do contato entre elas. Isto só se tornou possível com a emergência de novas divindades que legavam aos seus fiéis, como eleitos, o direito de subjugar os incrédulos, transformando-os em escravos. Ligadas ao advento da pólis — das cidades-Estado, das civilizações —, tais divindades possibilitaram o exercício de uma nova forma de poder político através do qual um subconjunto da sociedade passou a se impor sobre outro, gerando a divisão dos homens em dominantes e dominados. As religiões da pólis romperam com a prioridade essencial das

284 DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento. São Paulo, Hagnos, 2010, p 164 285 CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, p 147.


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comunidades arcaicas de preservação da sua ordem social, na qual a subsistência da comunidade em seu autocentramento, sem divisões, era o verdadeiro lugar do poder. A consciência histórica surge assim, no mundo Antigo, com a narrativa das disputas pelo poder político entre grupos humanos — clãs, castas, etnias, povos, cidades —, conjuntamente à instituição do aparelho de Estado.

4.3.2. Segunda etapa: a criação dos sistemas culturais lógico-racionais A criação da primeira civilização que se tem conhecimento se deu por volta de 3.000 a.C.. Trata-se da Civilização Suméria, estabelecida em torno das cidades de Ur, Uruk e Eridu na região entre os rios Tigre e Eufrates, localizada no sul do atual Iraque. Segundo o historiador Arnold Toynbee, ela surgiu ligada ao desenvolvimento da irrigação na agricultura e a produção de excedentes de alimentos, como uma façanha muito mais social do que tecnológica. Acompanhemos o texto desse autor que vai ao encontro do que estamos dizendo: A conquista do aluvião pelo homem deve ter sido planejada por líderes que tiveram a imaginação, previsão e autocontrole de trabalhar por recompensas que seriam lucrativas em última instância, mas não imediatamente. Os planos dos líderes não teriam passado de sonhos irrealizados se eles não houvessem sido capazes de induzir grandes números de seus companheiros a lutar por objetivos que, provavelmente, eram incompreensíveis para estes últimos. As massas devem ter tido fé em seus líderes, e essa fé nos lideres deve ter sido fundada em deuses cuja potência e sabedoria eram realidades, tanto para os líderes humanos como para seus seguidores.286 O excedente era reservado ao uso de uma minoria privilegiada, a classe governante, que se assenhorava deste privilégio por executar serviços para a sociedade como um todo. Além de administrar o serviço de irrigação, os governantes serviam a comunidade como mediadores entre ela e os deuses. Sua autoridade só era tolerada pela maioria desprivilegiada pelo fato de ser apoiada em sanções sobrenaturais. De modo que, para assegurar o controle da ordem social de uma sociedade dividida em subgrupos pelo conflito de interesses divergentes — pela luta de classes, nos valendo do termo de Marx —, o governo das cidades-Estado operava através da centralização e hierarquização do poder político, apoiado numa forma de religião que estabelecia a imposição de sansões divinas na forma de convenções sociais, erigindo leis humanas através de atos sagrados. Compreendemos desse modo a origem da permanente disputa e alternância de grupos privilegiados no comando do poder, característica da história das civilizações. Assim, períodos de estabilidade social — nos quais as relações de dominação-servidão se mantêm não sem tensão — são permeados por períodos de crises e reorganizações, sempre provisórias, deste comando. O advento da civilização se deu, portanto, no seio do holismo “quase absoluto” das sociedades arcaicas, com a sobreposição da vontade individualista de uns sobre outros. Em outras palavras, quando alguns indivíduos dentro do grupo comunitário se diferenciaram, impondo a sua vontade sobre os demais;

286 TOYNBEE, A. A Humanidade e a Mãe-Terra. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, pp 78-79


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quando um subgrupo se individualizou. Talvez possamos considerar que neste ponto do processo evolutivo da humanidade tenha se dado o início do individualismo. Ou melhor, o seu primeiro prenúncio, haja vista estarmos ainda muito distantes da noção moderna de individualismo, a ser por nós abordada a seguir. De qualquer maneira, a tensão recíproca entre o indivíduo e o grupo social como força constitutiva das formas de vida adotadas pelo homem passa a ser evidente, tomando como termo de comparação as formas de vida adotadas pelas sociedades arcaicas predecessoras. Quando falamos de indivíduo, temos de distinguir entre duas noções: a de sujeito empírico — que fala, pensa, quer, nasce, morre — enquanto amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; e a noção de indivíduo como sujeito moral autônomo, portador de valores que o separam da sociedade, tal como a compreendemos no mundo moderno, noção esta que ainda não existia entre os povos arcaicos, nem tampouco nas civilizações antigas. Tendo compreendido esta distinção, podemos dizer que no processo de formação de sociedades arcaicas, os sistemas mítico-religiosos instituídos agiam de modo a reprimir qualquer tipo de individualismo por parte dos indivíduos empíricos. Fazendo uma analogia, o sujeito autônomo era o grupo como um todo: a própria sociedade arcaica. Todos os indivíduos empíricos que compunham uma dada sociedade, partilhavam um único conjunto de valores, definido e circunscrito pelo sistema mítico-religioso da mesma. Como teria então surgido a noção de indivíduo autônomo na história da humanidade? Como as sociedades, deixando de ser regidas pelo princípio do holismo, passaram ao individualismo Seguiremos aqui a antropologia de Louis Dumont, para quem o individualismo, definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais — tais como aparecem na “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” de 1789 —, se trata de uma configuração ideológica moderna. Neste horizonte, a nação emerge como o tipo de sociedade global correspondente ao reino do individualismo como valor.287 Eis como Dumont apresenta a sua tese: Algo do individualismo moderno está presente nos primeiros cristãos e no mundo que os cerca, mas não se trata exatamente do individualismo que nos é familiar. Na realidade a antiga forma e a nova estão separadas por uma transformação tão radical e tão complexa que foram precisos nada menos de dezessete séculos de história cristã para completá-la, e talvez prossiga ainda em nossos dias. A religião foi o fermento essencial, primeiro, na generalização da fórmula e, em seguida, na sua evolução.288 Começaremos estudando a formação das antigas civilizações, em especial a civilização grega. Veremos como a noção de indivíduo surgiu entre os gregos associada ao desenvolvimento do saber racional alcançado pela filosofia, em contraposição ao saber mítico. Veremos também como a noção de indivíduo surgiu — de maneira independente da grega — dentro da tradição religiosa judaico-cristã, através do saber revelado no combate às tradições mítico-religiosas do mundo arcaico. Evidentemente, os dois processos formativos tiveram características muito distintas. A cultura moderna — que é a nossa, ou da qual a nossa é imediatamente derivada, se nos referirmos à cultura atual como pós-moderna — se formou da junção dessas duas grandes tradições que acabaram por se impor na história do mundo ocidental. Após o

287 DUMONT, L. O individualismo. Rio de Janeiro, Rocco, 1985, p 21. 288 Idem, p 36.


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advento do Cristo, estas tradições se entrelaçaram e se matizaram, dialeticamente, produzindo o que hoje se costuma denominar secularização da cultura, isto é, uma cultura dissociada de suas raízes religiosas, pautada pelo poder do Estado, a moral laica, o conhecimento científico e a tecnologia. Falamos aqui do processo de desenvolvimento dos sistemas culturais lógico-científicos. Para que este processo pudesse ser socialmente instituído, foi inicialmente necessário transpor a dominância, na consciência coletiva, do conjunto de representações mítico-religiosas que organizavam a vida social nas sociedades arcaicas. Sob a influência da tradição filosófica grega, posteriormente amalgamada à tradição religiosa judaico-cristã, as representações mítico-religiosas foram se dessacralizando, se tornando cada vez mais lógico-racionais. Como corolário deste processo, passou a haver uma progressiva ampliação dos domínios da experiência humana através da exploração e controle racional da natureza, que perdura até os dias de hoje. De que maneira se deu esta composição entre as duas tradições, culminando na formação da cultura moderna? A chave da resposta é o surgimento da noção de indivíduo autônomo. Veremos, portanto, como esta noção foi independentemente preparada, ou prenunciada, por uma e outra tradição; e como, posteriormente, se deu a composição entre elas. O que seria então a potência A3, senão a potência da autonomia, da liberdade do indivíduo autodeterminando-se como pessoa, do indivíduo autônomo? O que vamos apresentar a seguir pode ser, portanto, compreendida como a passagem de A2 para A3. O processo de formação das cidades-Estado gregas, ocorrido entre os séculos XI e VIII a.C., nos ajudará a aprofundar na compreensão dessa dinâmica. Conforme a descrição de Jean-Pierre Vernant: Toda cidade [grega] tem sua ou suas divindades políades cuja função é cimentar o corpo dos cidadãos para fazer dele uma comunidade autêntica, unir num todo único o conjunto do espaço cívico, com seu centro urbano e sua chôra, sua zona rural, velar, enfim, pela integridade do Estado — homens e território — diante das outras cidades.289 No processo de reunião do espaço cívico grego, a religião da população da zona rural, ligada à natureza, oriunda das antigas comunidades agrícolas que prestavam culto ao deus Dioniso (A1 — B), passou a receber forte oposição das religiões olímpicas das cidades-Estado, representadas em seu conjuto pelo deus da forma, Apolo (A2). O motivo central das religiões olímpicas é o motivo da forma. Cada perspectiva personificada pelos diferentes deuses olímpicos corresponde à deificação da medida, equilíbrio e perfeição de formas culturais da pólis grega. Dioniso, por sua vez, representa as religiões ligadas à natureza que deificam o fluxo perene da vida orgânica que se origina da mãe-terra, o eterno retorno do ciclo da vida e da morte no qual a vida material se faz e refaz. Os deuses olímpicos podem ser assim entendidos como poderes culturais personificados que se afastaram da mãe-terra, com sua corrente perene de vida e sua constante ameaça de morte, adquirindo formas de vida pessoal e imortal, protótipos de um determidado ideal ou essência de beleza e perfeição. Porém, esses deuses não têm poder contra o destino mortal dos homens. Por isso, quando o homem grego era confrontado com a morte, acabava por recorrer às velhas e informes divindades da vida e da morte, que, embora mais rudes e imprevisíveis que as olímpicas, eram, entretanto, mais eficientes em relação às suas necessidades existenciais. De modo que a formação das cidades-Estado gregas foi marcada pela oposição e imposição das divindades olímpicas sobre as da mãeterra. A religião cívica só pode garantir plenamente o seu domínio reservando um lugar para cultos de 289 VERNANT, J-P. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p 41-42.


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mistérios — por exemplo, os mistérios de Elêusis e da Samotrácia, como vimos em 3.5 — cujas aspirações e atitudes eram contrárias as suas, procurando integrá-los a si mesma. 290 A implicação disto foi a constituição de um pensamento totalizador, no qual toda ordem pública estava investida de um caráter sagrado. O religioso estava incluído no social, não consistindo num setor à parte da vida cotidiana. Nas palavras de Vernant: “o sagrado e o profano não formam duas categorias radicalmente contrárias, excludentes uma da outra”. 291 Neste sentido, a vontade de um grego se encontrava à mercê de poderosas e muitas vezes contraditórias influências divinas, a quem deveria honrar, através de sacrifícios, a fim de não sucumbir a elas, mantendo assim a fronteira que o separava, como homem, do mundo dos deuses. Seguindo, ainda uma vez, as palavras de Vernant: “o oráculo de Delfos, ‘Conhece-te a ti mesmo’ significava: fica ciente de que não és deus e não cometas o erro de pretender tornar-te um”. 292 Portanto, a esta altura da história, ainda não havia a noção de indivíduo autônomo entre os gregos. Apenas tardiamente, entre os séculos VII e VI a.C., com o advento da democracia grega, quando se buscava o nivelamento das classes sociais e a conciliação dos diversos cultos, os ritos dedicados a Dioniso, considerados ameaçadores à ordem cosmopolita, ao adotarem a forma da representação trágica, foram enfim reconhecidos nas cidades-Estado. Daí a origem do teatro grego. A máscara representava o modo como o deus Dioniso escolhia para mostrar-se. O homem comum (ánthropos), no espaço e no tempo do ritual sagrado, sob influência do deus, era levado a ‘sair de si’ pelo processo de êxtase (ékstasis) e entusiasmo (enthusiasmós). Perdendo a medida da própria individualidade (métron), atualizava a presença do deus através de seu corpo, como que possuído pelo próprio deus, como se fosse o próprio deus, comungando com a imortalidade. Neste momento, infligia um descomedimento, uma desmesura (hýbris), transformando-se num ator (anér).293 A laicização do rito sagrado com o advento da tragédia, que encontrou a sua forma plenamente diferenciada no século V a.C., fez com que este se transformasse em espetáculo de cunho democrático.294 Como nos mostra Nietzsche em “A origem da tragédia”295, a tragédia passou a dar forma ao embate entre as forças dionisíacas e as forças apolíneas, entre a desmedida da vida instintiva e a medida e o equilíbrio da vida civilizada. Encontramos na peça “As bacantes”, de Eurípedes, talvez o melhor retrato traçado sobre este conflito.296 Com o tempo, o ator deixou de representar a divindade, passando a representar temas do ciclo dos mitos dos heróis. Desse modo, o ator perdeu muito de seu caráter dionisíaco para tornar-se cada vez mais apolínico, representando de modo mais racional e distanciado. A tragédia grega marca assim a transição entre os rituais míticos religiosos e a atividade de representação de temas míticos, de cunho meramente artístico, tal como a conhecemos na atualidade. Aristóteles descreve na sua “Poética”297 o efeito da encenação do drama trágico promovido no espectador como uma purificação. Isto acontece através das sucessivas etapas do desenvolvimento do enredo, que segue uma estrutura definida. O desenrolar das ações é construído de tal modo que o espectador é levado a se identificar com o herói trágico. Após realizar feitos que revelam a grandeza do seu caráter e do seu destino, o herói trágico se vê surpreendentemente diante de uma situação que promove uma reviravolta em seu destino. Numa crise de valores, reconhece o seu erro, a falha em seu comportamento que promoveu a reviravolta,

290 VERNANT, J-P. Mito e religião na Grécia Antiga. Op cit, pp 10-11. 291 Idem, p 59. 292 Idem, p 88. 293 BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega, vol II . Petrópolis, Vozes, 1997, pp 132-133. 294 Idem, pp 129-130. 295 NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Lisboa, Guimarães Editora, 1996. 296 EURÍPEDES. Medéia - As bacantes - As troianas. Rio de Janeiro, Ediouro, 1988. 297 ARISTÓTELES. Poética . In: Aristóteles II - Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1984.


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e sofre as consequências. O espectador sente um crescente aumento da sua tensão emocional, sendo tomado por sentimentos de terror e piedade que finalmente são aliviados com o desfecho do drama. A este alívio emocional que ocorre ao espectador durante a encenação do drama trágico, Aristóteles chamou de katharsis — catarse. Nesta mesma época, a filosofia grega começa a dar seus primeiros passos, inicialmente com os chamados pensadores pré-socráticos, depois com Sócrates, Platão e Aristóteles. Do mesmo modo, com Hipócrates, nascido por volta do ano 460 a.C., surge o conceito de doença como desordem corporal e as práticas de tratamento foram associadas pela primeira vez a causas orgânicas, conduzindo a prática médica a ser fundamentada por pressupostos racionais. Antes dele, as doenças eram atribuídas à influência de entidades espirituais ou demônios. Efeito de ação divina, só podia ser curada por um deus ou por outra ação divina. Daí o tratamento basear-se em ritos sagrados. Assistimos aqui com o advento da filosofia, conjuntamente com os da democracia, do teatro, da medicina, os primórdios da transição do pensamento mítico para o pensamento racional, em outras palavras, dos sistemas mítico-religiosos para os sistemas lógico-científicos, como princípios organizadores da ordem social. Neste contexto, o movimento religioso chamado orfismo é uma chave importantíssima para a compreensão da transição entre a tradição mítico-religiosa e o surgimento da noção de indivíduo autônomo na cultura grega. Essa corrente religiosa pertenceu essencialmente ao helenismo, cultura situada cronologicamente entre a morte do grande conquistador Alexandre em 323 a.C. e o advento do cristianismo. Contudo, encontram-se registros da sua atividade desde VI a.C., e se reconhece sua influência sobre as filosofias de Pitágoras, Parmênides, Empédocles, Sócrates e Platão. Recorrendo mais uma vez aos apontamentos de Vernant, trata-se de uma forma “doutrinária” que se opõe tanto aos mistérios e ao dionisismo quanto ao culto oficial, para aproximar-se da filosofia.298 Entre os órficos, o universo divino organiza-se segundo um processo inverso ao da teogonia de Hesíodo. Composta entre os séculos VIII e VII a.C., a Teogonia hesiódica é um longo poema narrativo, escrito como tentativa de organização sinóptica e globalizadora do conjunto dos mitos gregos. Segundo Jaa Torrano, ao perseguir a totalidade unificada, o Todo-Uno (Pan Hen), “é de fato o primeiro alvor da atividade unificante, totalizante e subordinante do pensamento racional”.299 Nesta narrativa, um estado original de confusão e desordem se organiza progressivamente em um mundo diferenciado e hierarquizado sob o poder imutável de Zeus. Já no século VI a.C. circulavam teogonias órficas que os filósofos podem ter conhecido e se inspirado.300 Nelas, a ordem precede a desordem, implicando o homem na busca pela reconquista da ordem original: Na origem, o Princípio, Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, a plenitude de uma unidade fechada. Mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide e se desmancha para fazerem aparecer formas distintas, indivíduos separados. A esse ciclo de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do Todo. Será, na sexta geração, o advento do Dioniso órfico, cujo reinado representa o retorno ao Um, a reconquista da Plenitude perdida.301

298 Idem, p 82. 299 TORRANO, J. In: HESÍODO. Teogonia – A origem dos deuses. São Paulo, Iluminuras, 1991, p18. 300 VERNANT, J-P. Mito e religião na Grécia Antiga. Op cit, p 82. 301 Idem, pp 82-83.


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Desse modo, o orfismo estabeleceu uma releitura da tradição mítico-religiosa grega que possibilitou a passagem do holismo para o individualismo. Trata-se, como vimos em 3.5, do que Schelling designou como a conclusão do processo da mitologia grega com a compreensão da totalidade do processo, sendo Dioniso órfico uma imagem correspondente à A3 para os gregos.

O orfismo, segundo a compreensão que Herman Dooyeweerd nos propõe: Fez da religião dionisíaca da vida e da morte a infraestrutura de uma religião mais elevada, voltada para a esfera celestial, isto é, o céu estrelado, e interpretou a religião olímpica neste sentido naturalista. Como consequência, o motivo central da forma, medida e harmonia, foi transferido à esfera supraterrena do céu estrelado. Supôs-se que o homem teria uma origem dupla. Sua alma racional, correspondendo à forma perfeita e à harmonia da esfera estrelada, teria nela a sua origem, mas seu corpo material se originaria da esfera escura e imperfeita da mãe-terra, com sua corrente perene de vida, sua anangké, o inescapável destino da morte. Enquanto a alma racional imortal está limitada à esfera terrestre, é obrigada a aceitar um corpo material como sua prisão e túmulo, devendo transmigrar de corpo em corpo no processo sempiterno de vir a ser, entrar em declínio e renascer. Apenas por meio de uma vida ascética, pode a alma racional purificar-se da contaminação do corpo material, de forma que ao fim de um longo período ela possa retornar ao seu lar apropriado, a esfera celestial da forma, medida e harmonia.302

O orfismo apenas veio exercer maior repercussão sobre a mentalidade religiosa dos gregos na época helenística. De acordo com o pensamento político de Platão e Aristóteles a pólis era considerada autossuficiente. Daí a transição para o individualismo ter se dado somente numa ambiência cultural marcada pela desintegração da pólis, a partir da difusão do ideal do sábio — preconizado pelas correntes filosóficas do estoicismo, do epicurismo e do ceticismo — que ativamente, através do exercício da razão, se desprendia da vida social. Tratava-se de uma época marcada pela ruína da pólis grega e do projeto da unificação do mundo sob o poder de Alexandre. Descrente dos cultos cívicos, o homem grego passou a se voltar, de modo individualista, ou para as religiões que lhe prometiam a salvação da sua alma, como os cultos de mistérios órficos; ou para a filosofia, em busca da sabedoria e de um estilo de vida moral, cultivando o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade do homem, que até então se confundia com o exercício dos direitos cívicos, se transmuta em liberdade interior.303 Daí o surgimento de indivíduos que passaram a buscar — autonomamente, subjetivamente — novos valores, que os libertassem daqueles da vida social tradicional, através de uma atitude racional de renúncia do mundo. Veremos a seguir, de modo que a formação de um público pagão instruído nessa mentalidade extramundana foi a base para aceitação do evangelho de Jesus Cristo na civilização helenística. Passemos então ao estudo do surgimento do indivíduo autônomo na história da tradição judaicocristã. Na Antiguidade, a região de Canaã foi habitada por tribos semíticas, umas sedentárias, outras nômades. Entre estas, os hebreus eram nômades que se sedentarizaram. Tornaram-se devotos monoteístas de Javé desde o século XVIII a.C., época em que o clã de Abraão, deixando a cidade de Ur na Babilônia,

302 DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento. Op cit., pp 232-233. 303 CHÂTELET, F. História da filosofia. Vol. 1: A Filosofia Pagã. Op cit, p 168.


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dirigiu-se à Canaã e por lá se sitiou. Todavia, o povo hebreu, formado por doze tribos autônomas, só ocupou definitivamente a região sob a liderança de Moisés, após o êxodo do Egito — seu momento de libertação da escravidão — quando de fato começa a história de Israel, no século XIII a.C. Neste processo, Javé revelou a sua identidade — em hebraico, YHWH, “Eu Sou O Que Sou” — e a Lei — o Decálogo ou Dez Mandamentos — através da qual estabeleceu aliança com o povo. A Bíblia traça o itinerário espiritual e político dos hebreus no decurso das diversas experiências de sua história. Muitos historiadores, todavia, argumentam que as teses nela contidas não podem ser aceitas acriticamente. Há, de qualquer maneira, consenso em se considerar que o reino de Israel foi um efêmero período de apogeu político, ocorrido entre 1010 e 932 a.C., aproximadamente, quando sob a liderança de Davi, e depois, de seu filho Salomão, houve a coalizão de todas as tribos israelitas, e a tomada de Jerusalém. Depois disso, o império se dividiu entre os territórios de Judá e Israel. Após esta divisão, o povo não mais conseguiu subsistir em Estados livres, passando por sucessivos períodos de dominação estrangeira. A crítica dos historiadores incide sobre a evidente mistura entre o mítico-religioso e o histórico no texto bíblico. Até onde vai o mito e começa a história, ou vice-versa? Na tradição bíblica, o mito das ações fundamentais de Deus foi estendido por toda a história até o presente, tornou-se uma narrativa históricosalvífica ligada à vida concreta do povo de Israel, para finalmente se universalizar com o cristianismo. Esta é a diferença fundamental entre a tradição mítico-religiosa judaico-cristã de todas as demais. Como vimos, nas demais tradições mítico-religiosas a ação das divindades acontece em um tempo primordial, muito distante do presente mundo habitado; trata-se de um tempo fora-do-tempo. No texto bíblico, Deus intervém na história concreta do povo através da Sua relação pessoal com ele, no sentido da sua salvação. Segundo Girard, em seu livro “Coisas ocultas desde a fundação do mundo”, a tradição religiosa judaico-cristã é palco de um gradativo processo de desmitologização, sem paralelo na história da humanidade. Este processo foi iniciado no interior da história judaica, culminando no advento do Cristo, e ainda não terminou. No mundo atual, o dinamismo do mito continua a operar, manifestando-se nas múltiplas formas descritas pela psicopatologia, o que é magnificamente expressado na máxima de C. G. Jung: “os deuses viraram doenças!”.304 Girard nos propõe a análise do texto bíblico segundo a teoria mimética no intuito de mostrar as etapas do processo de desmitologização ao longo da história. Tal como nos mitos em geral, em todas as grandes cenas do Gênesis e do Êxodo aparece o tema da expulsão ou do assassinato fundador. A revisão e compilação final destes livros que — acrescidos de Levítico, Números e Deuteronômio — formam o Pentateuco ou Torá, foi estabelecida depois do retorno do exílio na Babilônia, por volta do século V a.C., tendo como base uma primeira narrativa, originalmente redigida na época do Império de Salomão no século X a.C, conhecida como “Livro de J”.305 Trata-se de uma compilação de narrativas transmitidas pela tradição oral do povo de Israel. O que se equipara ao trabalho realizado por Hesíodo sobre a origem dos deuses gregos em sua Teogonia, dois século depois. Nestes aspectos, há de fato semelhança entre os mitos bíblicos e a mitologia mundial. Como todo mito, os mitos bíblicos possuem caráter simbólico. Em outras palavras, representam simbolicamente situações reais, as quais buscamos compreender o verdadeiro significado através do trabalho hermenêutico de interpretação dos símbolos.

304 HILLMAN, J. 305 BLOOM, H. O livro de J. Rio de Janeiro, Imago, 1992, pp 15-20.


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Começando pelo livro do Gênesis, Adão e Eva personificam a humanidade arcaica. Segundo Girard, a expulsão do Éden representa a morte violenta de uma vítima arbitrária, decorrente da escalada de rivalidade mimética dentro de um agrupamento humano. Deus representa a percepção humana da violência que expulsa arbitrariamente. Contudo, segundo a narrativa, Deus não os expulsa antes de alertálos sobre a morte que lhes sucederia caso o desobedecessem, apropriando-se de algo que reservava a Si. Nas palavras de Javé: “Você pode comer de todas as árvores do jardim. Mas não pode comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, com certeza você morrerá” (Gênesis: 2,16-17). De acordo com a interpretação do teólogo católico James Alison: Foi somente quando o objeto [o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal] foi visto como uma maneira de se apropriar daquilo que era próprio a outro que ele se tornou desejável. Logo a tentação foi ‘se tornar como Deus’. A tentação não foi resistida: o objeto foi apropriado, porém, mais importante que o objeto, o desejo, a partir daí, passou a funcionar no modo de apropriação, e a estrutura relacional com o próximo passou a ser formada em rivalidade. O outro (fosse humano ou divino) podia ser percebido apenas como ameaça ou rival. O resultado imediato da apropriação foi que o bem e o mal passaram a ser definidos não de acordo com Deus, mas segundo o modelo de apropriação.306 Neste sentido, o centro da questão é a rivalidade mimética, representada pelo oferecimento da serpente: “no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês irão se abrir, e vocês se tornarão como deuses” (Gênesis: 3,5). A serpente personifica o desejo de apropriação que leva à rivalidade mimética. Pois que a morte — expulsão vitimária — poderia ter sido evitada caso a humanidade, representada por Adão e Eva, tivesse resistido ao desejo de apropriação e à rivalidade mimética. Como manifestação do Seu amor pela humanidade, Deus lhes concedera a oportunidade de usar de seu livre-arbítrio para se manterem a salvo, em vida. Adão e Eva poderiam ter escolhido pelo amor a Deus, o que corresponde — nos termos da teoria mimética — a aceitar a Deus como modelo, sem contrariedade. O princípio de desmitologização, presente já neste primeiro mito bíblico, está no fato de revelar a verdade sobre o mecanismo vitimário que todo mito procura ocultar, qual seja, a responsabilidade do homem sobre a maneira de desejar que o conduz à violência, a matar o seu próximo. Para que possamos compreender como este princípio de desmitologização foi inserido na estrutura arcaica do mito, é preciso remontar ao contexto da sua redação. Como dissemos a pouco, os livros do Gênesis e do Êxodo foram originalmente redigidos na época do Império de Salomão, momento em que o povo de Israel já havia estabelecido a aliança com Deus em torno da Lei. Encontramos em dois dos Dez Mandamentos referência direta a este princípio: no 5° mandamento, não matar; e no 10°, não cobiçar, isto é, não desejar se apropriar do que pertence aos outros. O que nos leva à suposição, muito provável, de que a proibição da ingestão do fruto deve ter sido acrescentada como um remanejamento crítico de um mito arcaico, comum na região do Oriente Médio, como uma projeção da experiência em torno da Lei, adquirida pelo povo de Israel desde o êxodo do Egito. Todavia, a Lei aprisiona o homem na contraditorialidade. Adão e Eva não teriam entrado em rivalidade com Deus se ele mesmo não tivesse proibido a ingestão do fruto. O que implica no paradoxo de um Deus que, ao mesmo tempo em que quer evitar a violência, executa a

306 ALISON, J. O pecado original à luz da ressurreição. São Paulo, É Realizações, 2011, p 384.


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violência. A libertação deste paradoxo — como nos mostra São Paulo — só acontece com a salvação em Cristo, substituindo a Lei de Deus pela Pessoa de Deus. No segundo mito bíblico — dos irmãos Caim e Abel, filhos de Adão e Eva —, a ação de Deus continua sendo paradoxal. Na narrativa, Caim mata Abel após ficar enfurecido pelo fato de Deus ter gostado da oferta dele e não da sua. Vê-se claramente, nesta passagem, a rivalidade mimética como mola propulsora da violência mortífera nos relacionamentos humanos. Como em qualquer mito, Deus é quem introduz a rivalidade, como um terceiro na relação entre os irmãos, funcionando como modelo e mediador do desejo, em uma palavra, como um duplo. Porém, paradoxalmente, é também quem desmascara o agressor em defesa da vítima, revelando e condenando a violência do assassinato: “ouço o sangue do seu irmão, clamando da terra por mim. Por isso você é amaldiçoado por essa terra que abriu a boca para receber de suas mãos o sangue do seu irmão” (Gênesis: 4,10-11). Caim admite então a sua culpa e teme que alguém o mate como represália pelo que fez. Deus responde ao seu clamado colocando um sinal sobre ele, a fim de que não fosse morto por quem o encontrasse. A seguir, Caim se casa e constrói uma cidade. Para explicar esta passagem, Girard a compara ao mito da fundação da cidade de Roma no qual Rômulo mata seu irmão Remo, ato justificado pela transgressão da vítima. A primeira diferença, evidentemente, pelo que estamos a dizer, é que no mito bíblico a culpa recai sobre o agressor, não sobre a vítima. O mais interessante em sua análise, todavia, está no achado de versões mais antigas que indicam que Remo foi executado coletivamente. Por analogia, compreendemos que o nome Caim representa a comunidade caiminita, anterior ao surgimento do povo de Israel, neste sentido, universal, fundada sobre o assassinato coletivo de uma vítima inocente. O fato de Deus proteger o agressor, sob os auspícios da lei, se encontra em conformidade com a sua tese geral, do mito como estrutura fundante da civilização universal. Entretanto, a condenação moral do assassinato pode ser atribuída à iniciativa revisora dos redatores judeus, tal como no caso do mito de Adão e Eva. Trata- se, neste sentido, de mais um passo no processo bíblico de desmitologização. Considerando suficiente o que dissemos até aqui, não vamos nos alongar mais neste ponto. Remetemos o leitor interessado às várias obras de Girard dedicadas a este tema, bem como, à de James Alison, anteriormente citada. Encontra-se nelas a análise detalhada da sequência de mitos bíblicos, passando pela arca de Noé, a torre de Babel, as histórias dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, de José e seus irmãos, do Êxodo, conduzido por Moisés, e de vários profetas. O processo de desmitologização vai gradativamente se ampliando através dessa história. Mas a completa desmitologização, como nos mostram estes autores, só acontece com a paixão de Jesus Cristo. No Novo Testamento, a luz da revelação cristã dissipa definitivamente o paradoxo e a contradição que acabamos de apontar, concluindo o processo iniciado no Antigo Testamento. A narrativa da paixão de Jesus Cristo — da entrada em Jerusalém à ressurreição — é o lugar em que se concentra a revelação evangélica do assassinato fundador. Mas há outras passagens de particular interesse para essa compreensão. Comecemos analisando uma primeira, referente à acusação lançada por Jesus sobre os fariseus de que seus pais mataram os profetas, enquanto eles constroem os túmulos: Ai de vocês especialistas em leis! Porque vocês impõem sobre os homens cargas insuportáveis, e vocês mesmos não tocam essas cargas nem com um só dedo. Ai de vocês, porque constroem túmulos para os profetas; no entanto, foram os pais de vocês que os mataram. Com isso vocês


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são testemunhas e aprovam as obras dos pais de vocês, pois eles mataram os profetas, e vocês constroem os túmulos. É por isso que a sabedoria de Deus disse: ‘Eu lhes enviarei profetas e apóstolos. Eles os matarão e perseguirão, a fim de que lhe peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário’. Sim, eu digo a vocês: pedirão contas disso a esta geração (Lucas: 11,46-51). A reivindicação do sangue de Abel até o de Zacarias significa a reivindicação da série de assassinatos de vítimas inocentes, desde o primeiro que aparece na Bíblia, até o último, mencionado no segundo livro das Crônicas. Ou seja, na Bíblia inteira, tal como era lida por Jesus. Podemos interpretar esta passagem como uma exortação ao arrependimento, ao reconhecimento da mentira e da impostura utilizada pela classe sacerdotal dirigente para esconder sob um aparato de falsa religiosidade a violência assassina contra aqueles que verdadeiramente falam em nome de Deus, e assim manter o controle ideológico sobre o povo. Mas a exortação de Jesus não atingiu o coração da classe sacerdotal, “da geração” que faria dele o próximo “profeta” a ser assassinado. Este texto se equipara a um outro, do evangelho de João, no qual Jesus também se dirige às autoridades dos judeus: Por que vocês não compreendem o que eu falo? É porque não são capazes de ouvir a minha palavra. O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar o desejo do pai de vocês. Desde o começo ele é assassino, e nunca esteve com a verdade, porque nele não existe verdade. Quando ele fala mentira, fala do que é dele, porque ele é mentiroso e pai da mentira. Eu falo a verdade e é por isso que vocês não acreditam em mim (João: 8,43-45). A mensagem de Jesus era, e continua sendo incompreensível para muitos, porque denuncia o agir perverso da sociedade. Como várias passagens dos evangelhos retratam, Jesus teve de se esconder para não ser apedrejado por fariseus e autoridades sacerdotais, após ter-lhes mostrado as contradições e a hipocrisia dos seus julgamentos, ao exaltarem o cumprimento da lei em detrimento do que é essencial: o amor às pessoas. Assim procedendo, Jesus certamente mobilizava mimeticamente a rivalidade e ódio deles contra si. No texto acima, o próprio Jesus nos fornece a explicação para a falta de compreensão da sua mensagem por parte daquelas pessoas, estabelecendo uma reveladora correspondência entre o diabo, o assassinato fundador da sociedade e a mentira. Com a expressão “o pai de vocês é o diabo”, Jesus acusa autoridades sacerdotais de fazerem mau uso da lei para manter a estrutura de poder, através da mentira que acoberta a morte de pessoas que funcionam como bodes expiatórios da sociedade. A lei a que estamos nos referindo é a chamada Lei de Santidade — não se tratando, portanto, dos Dez Mandamentos —, que entre outras sanções, pune o pecado do adultério com a morte (Levítico: 20,10). No episódio narrado por João, da mulher que após ser pega cometendo adultério foi trazida por doutores da lei e fariseus para onde estava Jesus, a fim de colocá-lo à prova e ter um motivo para acusá-lo; ela teria sido apedrejada até a morte caso Jesus não intercedesse com as célebres palavras: “quem de vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra” (João: 8,7). Com esta simples frase, Jesus desativou o mecanismo da violência mimética, evitando que aquela mulher se tornasse mais um bode expiatório. Nenhum dos presentes ousou ser o primeiro a apedrejá-la, o que bastaria para desencadear mimeticamente o assassinato coletivo. Quando todos já haviam saído do recinto, Jesus dirigiuse até ela e lhe falou: “Ninguém condenou você? Ela respondeu: ninguém, Senhor. Então Jesus disse: Eu


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também não a condeno. Pode ir e não peque mais” (João: 8,10-11). Jesus nos mostrou nesta passagem que nenhum homem pode julgar e condenar, porque nenhum homem está isento de pecado. Ele mesmo não veio para julgar, mas para mostrar que Deus não quer a morte do pecador, e sim que ele se converta e viva. A casta sacerdotal havia se tornado uma casta opressora, fazendo com que o povo respeitasse a lei pelo medo, e não pelo amor e o perdão. Mas, para melhor compreender a atitude de Jesus, é preciso contextualizar as circunstâncias históricas do estabelecimento da Lei de Santidade. O livro do Levítico, embora situado logo após o livro Êxodo, e tenha sido atribuído a Moisés, foi escrito, na verdade, após o exílio da Babilônia. A sua formação provém de textos elaborados pelos sacerdotes através dos tempos, a partir do êxodo. Levítico provém do nome Levi, a tribo de Israel escolhida para exercer a função sacerdotal. Em seu conjunto, estes textos descrevem uma série de rituais de sacrifício nos quais se oferecia, dependendo da finalidade específica pela qual eram empregados — consagração, comunhão ou expiação — animais como cordeiros, bodes, pombos, manjares feitos de grãos, pães ou incenso. Depreende-se aqui o aspecto mitológico arcaico presente na religião judaica, desde a época de Moisés até a de Jesus; como também, em contraste com outras religiões, a abolição do sacrifício de vítimas humanas. O nome, Lei da Santidade, faz referência ao fato dela ter sido estabelecida como um meio de levar o povo de Israel a tornar-se santo, à imagem de Deus: “ser santo como o próprio Javé é santo” (Levítico: 19,2), em coerência com a aliança em torno dos Dez Mandamentos. Como compreender então a inscrição da pena de morte nesta Lei? Recorramos a uma passagem do Levítico que nos fala diretamente sobre esta questão.

Javé falou a Moisés: Diga aos filhos de Israel: Todo filho de Israel ou imigrante residente em Israel, que entregar um de seus filhos a Moloc, será réu de morte. O povo da terra o apedrejará, e eu me voltarei contra este homem e o eliminarei do seu povo, pois, entregando um de seus filhos a Moloc, contaminou o meu santuário e profanou o meu santo nome. Se o povo da terra fechar os olhos a respeito de um dos seus filhos a Moloc, e não o matar, eu mesmo me voltarei contra esse homem e contra o seu clã (Levítico: 20,1-5). Moloc era uma divindade arcaica à qual se sacrificavam crianças. A pena de morte a quem praticasse o sacrifício humano, neste contexto histórico, atende ao sentido desmitologizante da religião judaica, como temos apontado. Tratava-se, portanto, de uma punição que funcionava como um meio de afastar o povo de Israel de divindades cujos cultos exigiam a morte de seres humanos, entre outros comportamentos que se opunham ao projeto de sociedade desejado por Deus. A palavra de Jesus, revelando a contradição no uso da violência para combater a violência, completa assim o sentido da desmitologização, desvinculando o projeto de Deus de toda e qualquer forma de violência. Chegamos finalmente à narrativa da paixão de Cristo. De início, é importante que se diga que as palavras e os milagres de Jesus não teriam adquirido o seu pleno sentido sem o acontecimento da crucificação, e depois, da ressurreição. A revelação da cruz foi ter representado verdadeiramente aquilo que até então fora representado falsamente: o mecanismo vitimário, o recurso ao bode expiatório. Intimamente, Jesus sabia que essa seria a sua missão — a cruz e a ressurreição — e trilhou o seu caminho até o fim como doação baseada na confiança indestrutível no amor de Deus pelo ser humano. Havia sido ameaçado de morte em várias circunstâncias da sua trajetória, mas sabia que ainda não havia chegado a sua hora.


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Esta se daria após a sua entrada em Jerusalém, na época da celebração da Páscoa. A decisão de matar Jesus foi tomada pelos chefes dos sacerdotes e fariseus, depois que um deles, chamado Caifás, sumo sacerdote nesse ano, ter dito ao Conselho reunido: “Vocês não percebem que é melhor um só homem morrer pelo povo, do que a nação inteira perecer?” (João: 11,50). Eles se encontravam temerosos quanto a uma possível destruição do Templo e da nação pelos romanos, caso Jesus continuasse levando o povo a acreditar nele. Baixaram então uma ordem: quem soubesse onde Jesus estava, devia denunciá-lo, para que eles o pudessem prender. Daí Judas Iscariotes ter ido até eles para entregar Jesus. Ao término da celebração da Páscoa junto aos discípulos, foi com alguns deles ao monte das Oliveiras. Profetizou que com a sua morte eles iriam se dispersar, mas que depois de ressuscitar eles voltariam a encontrá-lo. Profetizou ainda que Pedro iria negá-lo por três vezes. Então, afligido em sua alma pela tristeza da morte, prostrou-se para rezar: “Meu Pai, se é possível, afasta-se de mim este cálice. Contudo, não seja feito como eu quero, e sim como tu queres” (Mateus: 26,39). Pediu-lhe assim que não caísse em tentação; que conseguisse cumprir o seu sacrifício, realizando a profecia messiânica. A hora estava chegando. Uma grande multidão armada de espadas e paus ia da parte dos chefes dos sacerdotes acompanhando Judas Iscariotes, que, com um beijo, indicou seu mestre para que fosse preso. Jesus foi levado ao palácio do sumo sacerdote, que o interroga sobre a sua identidade messiânica. Ao confirmá-la é acusado de blasfêmia e condenado à morte. Neste ínterim, Pedro o negou por três vezes. Diante do governador Pilatos, a multidão gritou pela sua crucificação no lugar de Barrabás. Morreu sobre a cruz; e depois de três dias, seu túmulo foi aberto e encontrado vazio. A primeira aparição de Jesus foi à Maria Madalena e outras duas mulheres. Estas contaram aos discípulos, que o encontraram, e creram nele, dias depois, na Galileia. Apresentamos este resumo da narrativa da paixão de Cristo para agora podermos mostrar de que maneira o mecanismo vitimário foi completamente desmitologizado. A primeira evidência disto é a intenção declarada dos sacerdotes e fariseus de fazerem de Jesus um bode expiatório: “é melhor um só homem morrer pelo povo, do que a nação inteira perecer”. Desencadeando o mecanismo vitimário para afastar a ameaça de desestabilização da ordem social, conservando assim o status quo, as autoridades — “os filhos do diabo” — não perceberam que faziam exatamente o contrário, cumprindo a vontade de Deus. A segunda evidência é que a unanimidade do mimetismo necessária à eficácia do mecanismo vitimário — que em um primeiro momento pareceu ter sido estabelecida com a dispersão do grupo de discípulos e a negação de seu líder Pedro — foi perdida na narrativa evangélica com a posterior afirmação da crença na ressurreição de Jesus Cristo por parte dos discípulos. Neste sentido, a crença na ressurreição é a chave para a compreensão do processo de desmitologização, como fator impeditivo da formação da unanimidade mítica. Caso houvesse se formado a unanimidade silenciosa, que se cala diante da morte, tal como nos mitos, a crucificação de Jesus teria sido transfigurada em ação justa e legítima, porém, fracassada; nada mais do que isto. Designados por Jesus — no último de seus encontros com ele, após a sua ressurreição — como apóstolos, seus discípulos se incumbiram de propagar o anúncio da revelação cristã pelos quatro cantos do mundo, em um movimento sociocultural — que atravessando gerações, acabou se derivando em inúmeras correntes — conhecido no seu conjunto como cristianismo. A teorização antropológica proposta por Girard nos mostra que a revelação da cruz, consumada pelo sacrifício de Jesus Cristo e sua ressurreição, trouxe à luz a opressão e a injustiça do mecanismo vitimário que desde a fundação do mundo servira como mantenedor da ordem social através de sistemas míticoreligiosos. Como vimos, o processo de desmitologização operado pelo texto bíblico vai de Adão a Jesus. Mas apenas a morte de Jesus na cruz tornou possível esclarecer o verdadeiro sentido desse processo: a


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justiça de Deus, libertando a humanidade de seu pecado, abrindo o caminho para o homem tornar-se verdadeiramente justo. Adão simboliza a origem do estado de pecado do homem; o que equivale a dizer, do estado de desobediência a Deus, que o liga invariavelmente à morte através da sujeição aos ciclos de rivalidade e violência mimética próprios do mecanismo vitimário. A aliança do povo de Israel com Deus em torno da Lei não foi capaz de libertar o homem do pecado. Do 1° ao 10° mandamento, a Lei orienta o homem a não entrar em rivalidade mimética, começando por não rivalizar com Deus adorando falsos ídolos, e terminando por não rivalizar com o próximo cobiçando o que é dele. Porém, como dissemos a pouco, a Lei aprisiona o homem na contraditorialidade. Se a Lei, por um lado, dá consciência do pecado; por outro, induz à sua transgressão, como no caso de Adão, que não teria entrado em rivalidade com Deus se ele mesmo não tivesse proibido a ingestão do fruto. A obediência de Jesus a Deus no momento da cruz, entregando-se à morte pela fé na promessa da ressurreição, isto é, no projeto de Deus de uma nova vida que transcende a morte, não anula a Lei, pelo contrário, a confirma; contudo, vai além dela. O significado antropológico do pecado original assim se esclarece como desobediência não exatamente à Lei de Deus; mas, antes, à Pessoa de Deus, à falta de fé na Sua promessa. A revelação cristã nos mostra que a observância da Lei não deve ser tomada como um fim em si mesma, pois, do contrário, o homem corre o risco de fazer dela um ídolo que, como tantos outros, o impele a fazer julgamentos arbitrários, a vitimizar o próximo como um bode expiatório. Com o seu derradeiro ato, Jesus nos ensina que só a fé na Pessoa de Deus — no Pai — nos torna verdadeiramente justos, impedindo que caiamos nos mecanismos da rivalidade e da violência miméticas. Girard teve o mérito singular de traduzir o significado da mensagem bíblica nos termos atuais de uma ciência antropológica, em um meio cultural intelectualmente hostil ao seu intento. Todavia, é importante salientar que a autoria desta teoria não deve ser atribuída a Girard, como ele próprio repetidamente o tem dito. Encontramos o seu precursor em São Paulo, o primeiro grande teórico da libertação do pecado — na sua inextricável relação com a Lei — operada pela crucificação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Procuramos sintetizar a explicação fornecida por São Paulo acerca desse acontecimento, reunindo alguns versículos da sua Carta aos Romanos: No Evangelho a justiça se revela única e exclusivamente através da fé, conforme diz a Escritura, o justo vive pela fé (1,17). Esta é a nossa tese: o homem se torna justo através da fé, independentemente da observância da Lei (3,28). Pelo batismo fomos sepultados com ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova (6,4). O pecado não os dominará nunca mais, porque vocês já não estão debaixo da Lei, mas sob a graça (6,14). A lei do Espírito, que dá a vida em Jesus Cristo, nos libertou da lei do pecado e da morte. Deus tornou possível o que para a Lei era impossível, porque os instintos egoístas a tornaram


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impotente. Ele enviou o seu próprio Filho numa condição semelhante à do pecado, em vista do pecado, e assim condenou o pecado na sua carne mortal. Deus fez isso para que a justiça exigida pela Lei se realizasse em nós, que vivemos segundo o Espírito e não sob o domínio dos instintos egoístas (8,2- 4). De que vida nova nos fala São Paulo? Da vida espiritual que é ofertada pela graça de Deus àqueles de nós que “condenar o pecado na sua carne mortal”, ou seja, a quem sacrificar — a exemplo de Jesus — os desejos relativos aos seus instintos egoístas, por amor a Deus e ao próximo. Sim, pois o que é pecar senão nos deixar levar por desejos que nos fazem rivalizar mimeticamente com os outros, tornando-nos injustamente violentos? Neste sentido, a vida nova é aquela na qual tomamos Jesus como modelo para a nossa ação no mundo, na sempre reiterada busca de tornar-nos verdadeiramente amorosos, justos, nãoviolentos. Não como produto da observância da Lei, mas da fé na mediação do Espírito Santo nas nossas relações com os outros; fé na esperança da justiça de Deus que está por vir, que nos faz não julgar, mas perdoar, rompendo assim com a lógica vitimária que rege a ordem social desde a fundação do mundo. Para concluir este percurso sobre o surgimento da noção de indivíduo autônomo na tradição religiosa judaico-cristã, voltemos à questão do dinamismo das potências divinas. Javé corresponde à figura de A1 — B. Jesus Cristo corresponde, ao mesmo tempo, a uma figura de A2, e ao prenúncio de A3, representado pelo Espírito Santo. Como A2, é uma figura de divindade que se aproxima das divindades mitológicas, podendo ser considerado como a última divindade surgida na história da humanidade. A diferença fundamental é que a existência de Jesus Cristo foi encarnada, histórica, e não in illo tempore, como as divindades mitológicas. Como A3, perdura simultaneamente como potência e atualidade, é a divindade que habiita o coração do homem pela graça de Deus, a um só tempo, como fonte de esperança e certeza de realização futura. A manifestação de A3 torna o indivíduo livre de qualquer desejo ou rivalidade mimética, e por isso, verdadeiramente autônomo, livre para amar o seu próximo para além de qualquer obrigação moral definida por alguma lei. Cumpre-se lembrar, como Schelling nos aponta na sua filosofia da revelação, que este processo é realizado sobrenaturalmente por Deus, a partir da decisão livre da Sua Pessoa de se revelar para a humanidade na forma de três Pessoas: Javé (A1 — B); Jesus Cristo (A2); Espírito Santo (A3). Mostramos até aqui, seguindo as análises de Dumont, que o individualismo surgiu em oposição à sociedade tradicional, holista. Duas grandes tradições socioculturais originadas na Antiguidade, de um lado, a tradição do saber racional da filosofia grega, e, de outro, a tradição da fé na revelação divina da religião judaico-cristã, ergueram-se a partir de um individualismo ainda incipiente. Enquanto o homem grego buscava se desprender dos valores tradicionais da vida social da época através do exercício da razão, os primeiros cristãos buscavam fazê-lo através do exercício da fé. Fato é que estas duas tradições acabaram por se entrelaçar e se matizar dialeticamente, de modo a se impor como cultura dominante ao longo da história mundial, produzindo o que na atualidade se costuma denominar secularização da cultura. Procuraremos explicar agora como se deu este processo, conduzindo à organização das sociedades sócio-históricas modernas como sistemas lógico-científicos. Em primeiro lugar, foi necessário transpor a dominância na consciência coletiva do conjunto de representações e significações mítico-simbólicas que previamente organizavam a vida social. Neste processo, as representações mítico-simbólicas foram se dessacralizando, se tornando cada vez mais racionais. O indivíduo, que se separava dos valores e modos de


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vida até então vigentes, foi o fio condutor deste processo. Dumont se vale da expressão “indivíduo-fora-domundo”307 para designar a forma inicial pela qual surgiu o indivíduo tal como o conhecemos na atualidade. Desde os primórdios do cristianismo, foram decorridos mais de mil anos, período que corresponde ao final do Império Romano e toda a Idade Média, para que o antigo “indivíduo-fora-do-mundo” se transformasse no “indivíduo-no-mundo” da modernidade. Dumont, seguindo as análises do historiador Ernest Troeltsch, nos mostra como os primeiros cristãos, na medida em que se tornavam “indivíduos-em-relação-com-Deus”, se tornavam também “indivíduosfora-do-mundo”. O progressivo entrelaçamento dialético entre as tradições judaico- cristã e grega foi ocorrendo, em seu início, em meio à evangelização apostólica das primeiras comunidades cristãs, formadas por indivíduos de origem judaica e pagã (entre gregos, romanos, africanos, e outros). Por sua fé e apego a valores e modos de vida distintos de seus contemporâneos, viviam como “indivíduos-fora-do-mundo”. Estes primeiros cristãos foram perseguidos tanto pelas autoridades judaicas, como pelas romanas. Submetidos ao poder do Império Romano, que os puniam pela sua recusa em venerar os deuses comuns a todos, foram alvo de hostilidade popular. Muitos sofreram assassinatos coletivos, sendo apedrejados, crucificados, queimados vivos, jogados às feras em arenas públicas, tornando-se mártires e modelos venerados de uma perfeita identificação com Cristo na busca pela salvação. O reconhecimento da liberdade religiosa para a fé cristã em face do fracasso das perseguições, duríssimas até 311, só aconteceu a partir de 313, com a adesão pessoal do imperador Constantino ao cristianismo. Ele concedeu favores aos cristãos, procurou intervir nos assuntos da Igreja, conseguindo pouco a pouco reprimir os cultos tradicionais, até proibi-los no fim do século IV, fazendo do cristianismo a religião do Estado. Com as invasões bárbaras, durante o século V, tem início o desmembramento do Império Romano, que finda oficialmente em 476 com a deposição de seu último imperador no Ocidente. A esta altura a Igreja havia se consolidado em torno de uma doutrina unificada, passando a desempenhar, daí em diante, um crescente poder político junto a multiplicidade de novos reinos que se formavam. A grande dificuldade para a sua unificação doutrinária foi “conceber e formular corretamente a união de Deus e do homem em Jesus Cristo”.308 Encontramos nos escritos eclesiásticos dos Padres da Igreja dos primeiros séculos — São Clemente, Santo Irineu, São Justino, Orígenes, para citar apenas alguns — abordagens teológicas sobre este tema. No Concílio ecumênico de Niceia em 325, convocado pelo imperador Constantino, os bispos reunidos expressaram a fé da Igreja no credo de que o Filho é da “mesma substância” do Pai, em outras palavras, afirmaram a plena divindade do Filho. O Concílio condenava, portanto, movimentos heréticos, como o dos arianos, que negavam a divindade de Jesus. Em seu tratado sobre “A Encarnação do Verbo”, Santo Atanásio — bispo alexandrino que participou do Concílio de Niceia — nos ensina que “o Logos divino se fez carne tornando-se como nós para a nossa salvação”.309 Aparentemente de cunho apenas teológico, a discussão em torno da dupla natureza divina e terrena de Jesus se encontrava revestida de extraordinária importância política. Nas palavras de Dumont: Ora, é justamente aí que se situa o que, em retrospecto, se nos apresenta como o âmago, o segredo do cristianismo considerado em todo o seu desenvolvimento histórico, ou seja, em termos abstratos, a afirmação de uma transição efetiva entre o além e este mundo, entre o

308 Idem, p 54. 309 BENTO XVI. Os Padres da Igreja. São Paulo, Pensamento, 2010,


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extramundano e o intramundano, a Encarnação do Valor.310 Descobre-se assim, no centro da unificação doutrinária da Igreja, a questão das relações entre Igreja e Estado. Como estávamos a dizer, os primeiros cristãos foram perseguidos devido a sua atitude de oposição e renúncia aos valores e modos de vida do mundo tal como existia. Eles esperavam que a parusia — a irrupção do Reino de Deus na vida terrena — acontecesse a qualquer momento, afirmando as suas vidas num plano transcendente às instituições sociais. Neste sentido, valiam-se da palavra de Jesus Cristo “dá a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” para operar uma separação entre os domínios político e religioso, enquanto o seu entrelaçamento era a norma no mundo antigo. Por isso, submetiam-se aos governantes, até mesmo oravam a Deus pelo imperador e seus representantes — acreditando que todo o poder vem de Deus — , mas se negavam a observância dos ritos dos cultos públicos, o que os levavam a ser perseguidos. O indivíduo cristão encarnava o valor eterno de sua relação filial com Deus numa atitude de franca desvalorização do mundo. Neste sentido, “é postulado um dualismo, estabelece-se uma tensão que é constitutiva do cristianismo e atravessará toda a história”.311 Com a proclamação da liberdade religiosa para a fé cristã, por Constantino, o indivíduo-em-relação-com-Deus tornou-se a referência primária, subordinando o holismo normal da vida social a um plano secundário. A esta altura a Igreja não via com bons olhos a intrusão do imperador nos domínios da sua autoridade eclesial, porém, beneficiava-se do poder político que adquirira. De modo que “não podia continuar a depreciar o Estado tão livremente quanto o fizera até então”.312 Dumont ressalta a importância da teoria apresentada pelo Papa Gelásio I, por volta do ano 500, como balizadora das relações entre a Igreja e o Estado no contexto supracitado. A teoria trata da complementaridade hierárquica entre a autoridade sagrada dos pontífices e o poder imperial. Numa carta ao imperador (Epístola 12), diz o Papa: Os sacerdotes são portadores de uma responsabilidade tanto maior porquanto devem prestar contas ao Senhor até dos atos dos reis, submetendo-os ao julgamento divino [...]. Deveis curvar uma cabeça submissa perante os ministros das coisas divinas, é deles que deveis receber os meios da vossa salvação. [...] Nas coisas respeitantes à disciplina pública, os chefes religiosos entendem que o poder imperial vos foi conferido do alto e eles próprios obedecem às vossas leis, temendo parecer que são contrários a vossa vontade nos negócios do mundo.313 O texto nos indica que, nestes primeiros tempos, o sacerdote tornou-se, por um lado, autoridade dos assuntos extramundanos, a quem o imperador deveria se submeter; e, por outro, está subordinado ao imperador nos assuntos intramundanos, que dizem respeito a ordem pública. Em outras palavras, um dualismo hierárquico veio substituir o antigo monoteísmo político, no qual o imperador acumulava as funções de regente e sumo sacerdote.

Esta lógica iria se modificar a partir de meados do século VIII, quando os Papas reivindicam uma

310 DUMONT, L. O individualismo. Op cit., p 54. 311 Idem, p 43. 312 Idem, p 53. 313 Idem, p 55


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função política junto aos reis francos — Pepino, o Breve, e seu filho Carlos Magno —, apropriando-se de territórios imperiais na Itália, o que seria o futuro Estado papal. Mais tarde, o Papa será concebido como a autoridade que delega o poder temporal ao imperador como seu representante. Nesta nova configuração, a Igreja se torna mais mundana, num sentido em que não era até então, o que terá como reflexo a crescente implicação do indivíduo cristão no mundo e, inversamente, do domínio público nos valores extramundanos. Damo-nos conta assim do movimento que se inicia com a figura do indivíduo-fora-do-mundo, e se aproxima da nossa moderna concepção de indivíduo-no-mundo. Dois pensadores cristãos se destacaram como os principais formuladores dos princípios racionais confirmadores da fé cristã durante os mais de dez séculos — do V ao XV — de duração do período medieval no Ocidente: Santo Agostinho (354-430); e Santo Tomás de Aquino (1225- 1274). Vejamos como a noção de alma individual foi desenvolvida no sentido de responder pela função de relacionar a dupla natureza — celeste e terrena, extramundana e intramundana — do homem, à imagem e semelhança de Deus fornecida pela figura de Jesus Cristo. A primeira obra filosófica de Agostinho, “Confissões”, surgiu após a sua conversão ao cristianismo. Trata-se de um extenso corpus de textos em que fala na 1a pessoa, nitidamente como “indivíduo-em-relaçãocom-Deus”. As principais referências filosóficas de seu pensamento foram os ensinamentos de Platão e de Plotino, representante do neoplatonismo que viveu no início do século III). De Platão, aproveita a ideia da transcendência hierárquica da alma sobre o corpo. De Plotino, a ideia de que o homem não tem necessidade de sair fora-de-si para encontrar a verdade, dispondo apenas da própria interioridade. Para Agostinho o ser, a verdade e Deus são idênticos. O homem deve procurar a verdade na interioridade da própria alma, enquanto princípio de inteligibilidade e participação na transcendência de Deus. A alma teria funções ativas sobre o corpo, isto é, seria capaz de extrair o conhecimento verdadeiro das imagens decorrentes das sensações, na medida em que possibilita que sejam iluminadas pela luz divina. Esta concepção é análoga à teoria da reminiscência de Platão. Foge aos nossos fins aprofundarmos estas correlações. Basta-nos, entretanto, apontar que Agostinho se distingue de Platão ao entender a percepção do inteligível na alma não como a redescoberta de um conteúdo conhecido no passado, mas como irradiação divina no presente. Assim, o conhecimento verdadeiro é o resultado de um processo de iluminação divina que possibilita ao homem contemplar as ideias. Para Agostinho, a alma foi criada por Deus para reger o corpo. O homem, fazendo mal uso do livrearbítrio, inverte esta relação. Subordinando a alma ao corpo, cai no pecado e na ignorância. A busca da razão não tem outra finalidade do que compreender a palavra revelada. Tal como em Platão, o homem é uma alma que se serve de um corpo. Contudo, o corpo é a fonte do pecado e do mal, isto é, do afastamento de Deus; conquanto para os gregos não exista esta conotação. Sem fé não é possível iniciar o exercício ativo da alma na busca da verdade de Deus. O homem deve, portanto, atender o chamado de Deus no interior da sua alma, para alcançar a felicidade e a salvação. O pensamento de Agostinho avançou durante toda a Idade Média, nutrindo a produção da assim chamada filosofia escolástica; filosofia esta que procurou estabelecer uma compreensão racional sistemática dos dogmas cristãos. Dito isto, estamos em condições de avançar ao século XIII, ao auge da filosofia escolástica representada por Tomás de Aquino. Se Agostinho valeu-se do sistema de Platão, Tomás valeu-se do de Aristóteles. Na época, Paris era palco de intensos conflitos intelectuais em que se opunham o conhecimento


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pela fé e o conhecimento pela razão. Estes conflitos se acentuaram depois da divulgação de traduções da obra de Aristóteles, na segunda metade do século XII. A concepção aristotélica de mundo, muito distinta da concepção cristã, colocava-a em xeque. As posições ontológicas de Deus como mero motor de um mundo eterno e incriado, e de que a alma humana seria apenas uma essência formativa que desaparecia juntamente com o corpo após a morte, contradiziam frontalmente os dogmas fundamentais de Deus como criador e da imortalidade da alma da doutrina cristã. Na medida em que as ideias aristotélicas ganhavam adeptos, e que estes se incumbiam de formular interpretações heréticas da Bíblia, a Igreja passou a sancionar decretos proibitivos contra o seu ensino. Em meio a este contexto histórico, Tomás Aquino incorporou o sistema de Aristóteles à filosofia cristã encontrando uma solução para tais conflitos. O procedimento por ele utilizado foi traduzir a diferença entre essência e existência formulada por Aristóteles para uma concepção cristã de mundo. Na concepção aristotélica, a distinção entre essência e existência é puramente conceitual, lógica: a essência designa a qualidade substancial particular de uma coisa, é um substantivo; enquanto a existência designa o ser em ato dessa coisa, é um verbo. Nessa concepção, Deus — como puro ato de existir, como ser enquanto ser, como motor do universo — não é criador, nem autoconsciente, nem providente. A cristianização da mesma operada por Tomás foi definir Deus como o único ser cuja essência é idêntica à existência, de acordo com a Sua autodenominação: Eu Sou O Que Sou (YHWH). Desse modo, a essência de Deus é o seu próprio existir, ao qual nada pode ser acrescentado. Em outras palavras, Deus é o Ser a existir por si mesmo. Tomás de Aquino encontrou assim explicação racional para o dogma cristão de que as criaturas não existem por si mesmas, mas em decorrência da existência de Deus, ressignificando o princípio aristotélico segundo o qual as essências das coisas se formam a partir de um primeiro termo como criação divina. Neste sentido, Deus é criador de todas as criaturas e fundamento de suas existências contingentes. Tal explicação também serviu a Tomás para a reinterpretação da ideia da hierarquia decorrente deste primeiro termo, como a hierarquia das criaturas segundo graus diversos de perfeição e participação na essência e existência de Deus. Em graus superiores ao homem, encontram-se os anjos; criaturas que, embora incorpóreas, são possuidoras de inteligências puras e o mais alto grau de perfeição. Num nível mais baixo, o homem aparece dotado de alma, o que o capacita a conhecer o inteligível, apesar de a mesma estar ligada a um corpo e permanecer limitada por ele. Em graus mais baixos vêm os animais, e assim por diante. Como em Aristóteles, o conhecimento humano parte sempre dos sentidos. Porém, através do ‘intelecto agente’, situado no plano de sua alma, o homem é capaz de abstrair os sentidos e gerar conceitos universais. Outra contribuição de Tomás de Aquino foi explicar racionalmente qual seria a natureza de Cristo. A afirmação da identidade entre essência e existência, tornava forçoso decidir ou pela natureza divina ou pela natureza humana de Cristo, dando margem a heresias. A distinção entre essência e existência permitiu-lhe defender a versão ortodoxa do dogma da Trindade, justificando a crença de que Jesus existiu como pessoa encarnando duas essências: divina e humana. Permitiu-lhe também defender o desdobramento de Deus em três pessoas: o Pai, o Filho, e o Espírito Santo. O filósofo contemporâneo Étienne Gilson ressalta o decisivo progresso metafísico conseguido por Tomás de Aquino, traduzindo os problemas relativos ao ser a partir da linguagem das essências para a das existências. Aponta para o fato de que o espírito grego parou espontaneamente na noção de natureza, ou de essência, como se tratasse de uma explicação última, numa tendência marcada para reduzir a existência de uma coisa à sua essência. Nas suas palavras, “os filósofos não conseguiram alcançar, para além da


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essência, as energias existenciais que são as suas próprias causas, até que a Revelação judaico-cristã lhes ensinou que “ser” era o nome próprio do Ser Supremo”.314 Paralelamente a estas conquistas no plano da racionalidade, o poder político resultante da aliança entre o Estado e a Igreja durante a Idade Média acabou por se tornar, sobretudo no seu último período, terrivelmente opressor da liberdade humana. Apoiada na fé cristã dos indivíduos, a aliança entre o Estado e a Igreja submetia o povo à condição de servidão sob a coação de proibições morais de ordem religiosa. Neste sentido, a intervenção da Inquisição, enquanto dispositivo de controle social, é emblemática. Instaurada no século XIII, ergueu-se como guardiã da fé cristã na luta contra a heresia. A coesão social neste período se formava contra os heréticos, que por terem ofendido a Deus eram levados à fogueira em cerimônias penitenciais e purificadoras. Ao sacerdote, cabia interpretar a palavra-desígnio de Deus e arregimentá-la aos seus fiéis. Um Deus eminentemente moral que exercia o seu poder através da punição dos pecadores. A punição era vista pelos que permaneciam fieis como a salvação de todos, em um claro retrocesso à legitimação do sagrado através do mecanismo vitimário de produção de bodes expiatórios. De maneira que a condenação de modos de pensar e de práticas corporais contrários aos preceitos religiosos vigentes, alimentava o medo e a submissão dos fiéis ao poder instituído. A estrutura hierárquica do poder medieval se sustentava assim pelo controle ideológico do imaginário da população, pela manipulação do seu medo e ignorância. Daí o termo “obscurantismo” para qualificar este período. O passo seguinte dado pelo homem foi voltar a separar a autoridade eclesiástica do poder político. Foram necessários alguns séculos para que este caminho pudesse ser transcorrido. Podemos atribuir a Tomás de Aquino o estabelecimento de seu ponto de partida, no campo da racionalidade, com a separação dos domínios da teologia cristã e da filosofia. Nesta operação, o caráter sobrenatural da teologia cristã é justificado pelo fato de que não é possível ter acesso à verdade revelada através da luz natural da razão; por outro lado, é afirmado que a filosofia deve existir como ciência autônoma, que se reporta apenas à luz natural da razão, contanto que as verdades naturais da filosofia não contradigam a verdade sobrenatural da teologia cristã, e que se prestem a fornecer a ela o caráter de uma ciência.315 De modo que a distinção tomista, avançando em relação à visão agostiniana que identificava a teologia com a filosofia, introduziu na tradição escolástica a ideia de uma esfera autônoma de conhecimento, acessível à luz natural da razão, formulando assim o ponto de inflexão que possibilitou a alvorecer da ciência moderna. Um indício disso é o fato do começo da formulação do conceito de objeto, fundamental para o desenvolvimento da filosofia e da ciência modernas, ter se dado como os escolásticos desta época. Na noção proposta por Tomás, objeto é aquilo que se refere a uma potência ou hábito em questão. Deduz-se, por exemplo, que se a pedra, o cavalo ou a flor se referem à visão por terem cor, o que tem cor é objeto da visão. Tal noção foi retomada por Duns Scot, que definiu o objeto como matéria do saber enquanto apreendida ou conhecida, de modo que o objeto é sempre o termo da operação do conhecimento. Os séculos seguintes, XV e XVI, foram os do assim chamado Renascimento. Nesta época, filósofos como Nicolau de Cusa, Pico della Mirandola, Marcilio Ficino e Giordano Bruno tomaram como questão central o problema da relação entre objeto e sujeito. O grande ímpeto do homem renascentista foi o de se elevar do status de mero “ser”, enquanto objeto, ao de “ser consciente de si”, como sujeito. O homem não

314 GILSON, E. Deus e a filosofia. Op cit, p 56. 315 DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento. Op cit., p 179-181.


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mais aparece como parte do todo, mas como olho e espelho desse todo. Não recebe de fora a imagem das coisas, mas as forma e constitui no interior de si mesmo. Através do conhecimento de si mesmo, enquanto microcosmo, pode conquistar o conhecimento do Cosmo e, no ato da sua vontade, recriá-lo. No imaginário renascentista, o homem é criatura; mas se distingue de todas as outras criaturas pelo fato de ter recebido do Criador o dom da própria criação. Tal é o sentido do humanismo renascentista. Paixão heroica do homem de dominar o próprio destino pela força criativa da vontade; em nenhum outro lugar senão em sua própria história.316 Ainda que se trate de um pensamento impregnado pela alegoria e a analogia, próprias à imaginação, o pensamento renascentista tem a sua importância como passo decisivo à emancipação do pensamento racional na modernidade. Uma grande evolução desse ideal ocorreu no século XVII, com a separação entre objetividade e subjetividade estabelecida por Descartes. Tal separação veio a se constituir como a viga mestra de todo o pensamento moderno. Descartes a determinou em função da sua vontade de obter, tal como o fizeram Parmênides e Platão, um princípio seguro para o conhecimento. Sonhava com a construção de uma nova ciência, de acordo com a inspiração humanista do renascimento. Queria descobrir o mundo natural como este realmente é. Para tanto, se esforçou em ultrapassar o “obscurantismo” medieval ainda em voga na época. Influenciado pela filosofia crítica de Montaigne, Descartes passou a desconfiar de tudo o que aprendera em sua vida acadêmica, ou seja, dos ensinamentos escolásticos. Montaigne, diante do fato empírico da variabilidade das opiniões humanas, tentara demonstrar a irredutível relatividade dos produtos da razão, e a impossibilidade de se alcançar qualquer certeza definitiva, devido a interferência das paixões humanas nos processos do conhecer. A crítica de Montaigne acabou abalando o sistema de conhecimento estabelecido pelos escolásticos, colocando sob o signo da dúvida a pretensão de se obter um conhecimento puramente racional, mas, não mais que isso. Descartes, adotando o ceticismo de Montaigne, constatou que poderia negar a existência de tudo, menos a evidência de que pensava. Conclui então que o pensamento, como algo puro, se concebe por si mesmo, independentemente da matéria do corpo, encontrando aí o princípio seguro para o conhecimento que procurava. Tal é o sentido da expressão cogito ergo sum, penso logo existo. Identificando a própria existência com o pensamento, define um novo tipo de subjetividade: o eu pensante, o cogito. Assim, a realidade objetiva de uma ideia passou a ser definida como seu modo de existência no pensamento, isto é, em estado puramente mental. Por exemplo: a ideia objetiva de sol é o sol tal como existe exclusivamente no pensamento, e não tal como está no céu. Esta foi a sua grande inovação epistemológica. O passo seguinte foi conceber um método compatível com este novo princípio epistemológico. Neste sentido, Descartes apregoa que para se obter uma ideia clara e distinta de um objeto qualquer — o corpo humano, uma estrela, um composto químico — é preciso submetê-lo a experimentações e medições, procurando subtrair os dados decorrentes da subjetividade espontânea, isto é, os elementos sensório-corporais e as analogias da imaginação. Esta foi a maneira por ele encontrada para excluir as opiniões “obscuras” que o sistema de pensamento escolástico era incapaz de fazer. No sistema cartesiano, Deus é o que dá garantia da objetividade absoluta, na medida em que é a própria Razão do eu pensante como subjetividade absoluta. Esta nova noção de subjetividade veio

316 CASSIRER, E. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p 72.


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substituir aquela da tradição escolástica, subtraindo as imagens decorrentes das sensações corporais, isto é, do modus operandi da alma — enquanto princípio de inteligibilidade e participação na transcendência de Deus — transmutando a alma em cogito, isto é, em pensamento puro. Daí podermos compreender a manutenção da ligação da filosofia cartesiana com a tradição religiosa cristã através da identificação do indivíduo com o princípio cogito. Com isso, a filosofia cartesiana “de certa forma” reafirmava o dogma cristão de que a verdadeira existência do homem é a do pensamento, alma ou espírito, e não a do corpo, desprovida de elementos espirituais. Todavia, descaracterizou completamente a concepção de Deus da tradição cristã. Étienne Gilson, em seu livro “Deus e a filosofia”, cita a crítica de Pascal endereçada a Descartes quanto a este ponto: O Deus dos cristãos não é um Deus que seja simplesmente o autor de verdades matemáticas ou da ordem dos elementos; esse é o ponto de vista de pagãos e epicuristas...; mas o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus dos cristãos é um Deus de amor e de conforto, um Deus que enche a alma e o coração daqueles a quem possui.317 Descartes abandonou a concepção de Deus como Ser Supremo — Eu Sou O Que Sou — para identificá-lo com a função filosófica de causa imutável da ordem estabelecida na natureza. Neste sentido, Descartes retomou e reforçou, ao seu modo, a antiga cosmovisão platônica. Mesmo porque a separação por ele estabelecida entre pensamento e matéria, corresponde plenamente à separação platônica entre mundo inteligível e mundo sensível. Com a filosofia de Descartes, houve certamente uma emancipação da limitação escolástica que atravancou durante séculos a busca pelo conhecimento científico. Porém, houve um radical banimento do corpo e da sensibilidade dos processos do conhecimento, e o enfraquecimento da fé em Deus como ser pessoal, com consequências deletérias ao subsequente desenvolvimento do homem. Um importante contraponto ao sistema cartesiano foi formulado por Baruch Spinoza, ainda no século XVII. O pensador luso-holandês ocupou-se do mesmo problema abraçado por Descartes, procurando determinar os princípios ontológicos que garantiriam a certeza do conhecimento da ordem do real. Todavia, divergindo de Descartes, voltou-se diretamente às relações entre ética, religião e política, em seu entender, inseparáveis da questão do conhecimento. Spinoza aponta a principal inadequação da subjetividade cartesiana no fato da sua desconexão com a dimensão corporal. Partindo de outro princípio, qual seja, do paralelismo entre a dimensão do corpo e a dimensão do pensamento, alma ou espírito, vê no que denomina afeto o fator mediador entre as duas dimensões do ser. Um corpo afeta e é afetado por outro corpo. Através de seus corpos, os seres humanos encontram-se concretamente ligados entre si e com o mundo. De maneira que o pensamento, sendo paralelo aos afetos corporais, não ocorre separadamente, mas conjunta e reciprocamente no encontro com outros indivíduos; em uma palavra, intersubjetivamente. Propõe-nos, neste sentido, o encontro com os outros e com Deus como via para o conhecimento da ordem do real. O “erro de Descartes” — nos valendo da expressão de Antonio Damásio — reside, portanto, na crença ilusória de um pensamento puro.

Baseado nesta concepção, Spinoza defende que a liberdade de pensamento é o pré-requisito para

317 PASCAL, B. citado em GILSON, E. Deus e a filosofia. Op cit, p 69-70.


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uma conduta ética de vida, o que deveria ser acessível a qualquer cidadão. A partir disso, e só a partir disso, se torna possível alcançar o conhecimento verdadeiro, e, consequentemente, uma efetiva transformação política da sociedade. Daí ter-se empenhado em denunciar, numa época em que as condutas eram pautadas em noções de bem e mal definidas pelos preceitos morais apregoados pela Igreja, o cerceamento da liberdade de pensamento pela “superstição” religiosa como causa da servidão humana. Para Spinoza, o bem e o mal não devem ser considerados como noções absolutas, imutáveis, aplicáveis em todos os casos, para todos os indivíduos; mas entendidos como o bom e o mau para cada indivíduo, de acordo com a singularidade de cada um. O problema por ele apontado é que a obediência aos preceitos morais apregoados pela Igreja, sendo estes externos à experiência subjetiva, mantém os indivíduos alienados de si próprios. Dado que a subjetividade se encontra natural e invariavelmente submetida ao domínio corporal dos afetos, não se trata simplesmente de refreá-los, mas de compreendê-los intelectualmente. Isto se dá quando se aprende a discernir nos encontros como os outros o que é o bom para si, e o que é mau para si, tomando como referência aquilo que compõe com o seu modo próprio de ser. O entendimento racional de si próprio passa a ser a guia das condutas, destituindo a submissão e a obediência a preceitos morais exteriores a experiência subjetiva. A conduta ética é resultante da capacidade do indivíduo de distinguir racionalmente o que é um bom encontro do que é um mau encontro para si. Em uma palavra, a ética spinoziana é uma ética pautada por valores aprendidos intersubjetivamente. Spinoza não se opõe à ideia de que o refreamento dos afetos imposto pela moral religiosa é em certa medida necessário, pois entende que do sem ele a sociedade entraria no caos. Todavia, pensa que este refreamento deve ser superado como um estágio inferior do homem e da humanidade. Por isso, o indivíduo deve se tornar capaz de aprender o verdadeiro conhecimento nos seus encontros, para agir não por coação, mas livremente, de modo realmente ético. Com Descartes, foi operada uma radical exclusão do ser sensível dos processos de produção do conhecimento dito verdadeiro. O corpo e a afetividade — as sensações, emoções, sentimentos e paixões — foram banidos como fontes de ilusão e erro. O esforço de Spinoza contra essa tendência, pela inclusão do corpo, da afetividade e da consciência política nestes processos descortina uma nova via epistemológica para a evolução do homem. Via alternativa à da dissociação que ainda prevalece no mundo atual entre uma racionalidade desenvolvida, no que se refere à objetividade ligada ao modelo ciências naturais, e uma subjetividade alienada pela coerção de valores morais apregoados não mais pela Igreja, mas pelas estruturas econômicas de poder que controlam o devir social através do espetáculo cotidiano das mídias. O exercício da ética spinoziana, integrando afetividade e racionalidade, singularidade e universalidade, conduz à construção de uma comunidade de homens livres, cuja união se dá por vínculos de amor e alegria, num horizonte de liberdade. Mal compreendido e combatido pelos seus contemporâneos e pelas gerações seguintes como herege ou ateu, e tendo seu sistema menosprezado como panteísta, apenas recentemente Spinoza passou a ser meritoriamente estudado e reconhecido. Outro filósofo de grande importância neste contexto de formação da modernidade foi G. W. Leibniz. Em seu sistema, afirma que Deus é um ser absolutamente perfeito, o que se exprime necessariamente na sua Criação. Cada homem é uma mônada, isto é, uma substância individual que, como um espelho, concentra e exprime do seu ponto de vista o universo como um todo. O mundo é um conjunto harmonioso, no qual cada mônada — isto é, cada ser vivo, seja um protozoário, seja um homem — se esforça no sentido de exprimir o melhor possível o mundo. Este, porém, não é perfeito. O mal existe no mundo,


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embora Deus não seja responsável por isso. O mal resulta da limitação original de qualquer criação, que cada mônada se esforça para ultrapassar. Leibniz procurou assim enfrentar a questão do mal, usada pelos seus contemporâneos para detratar a religião cristã. O que se sobressai no seu sistema é a concepção de indivíduo autônomo, capaz de ativamente exprimir o seu ponto de vista do mundo através da racionalidade, e de assumir a sua responsabilidade ética perante o mal. Segundo o filósofo contemporâneo Antonio Negri, há um dispositivo político implícito no sistema cartesiano que justifica a sua eficácia histórica sobre os sistemas filosóficos concorrentes na época, como os de Spinoza e Leibniz.318 O sistema cartesiano pode ser entendido como uma “razoável ideologia” — utilizando o termo de Negri — que permitiu à burguesia emergente desenvolver a ideia de progresso e ampliar pouco a pouco a sua hegemonia dentro das novas estruturas do Estado Absoluto. Pois, na medida em que desvendava o conhecimento das causalidades materiais, propiciando um aumento surpreendente da produção de bens materiais, e deste modo, o apoderamento da burguesia, que controlava essa produção, possibilitava também ao Estado Absoluto permanecer se beneficiando do medo e da ignorância da grande massa de pessoas, na medida em que o cartesianismo não se opunha ao imaginário teológico que na época dava sustentação a estrutura de poder. Pois que, nessa época, obediência religiosa era o mesmo que submissão política. A respeito deste apoderamento da burguesia, sigamos as análises de Max Weber sobre a relação entre o desenvolvimento do espírito do capitalismo e o advento da ética religiosa protestante. Lutero combateu o mesmo autoritarismo eclesiástico a que se opunham os filósofos modernos no interior da própria Igreja, dando origem, no século XV, à Reforma protestante, movimento religioso que desde então dividiu o cristianismo. Segundo Lutero, a observância dos preceitos morais apregoados pelo clero não salva o homem, apenas produz a falsa segurança das obras, da ilusão do mérito e do orgulho. Só a fé no perdão gratuito de Deus — na graça de Deus — leva à salvação, não as obras, nem os méritos. A exemplo de São Paulo, ensina que a fé liberta da lei, não contra a lei, mas para realizá-la de outro modo, não mais por interesse, mas por reconhecimento da sua verdade. Sobre essa base, ataca as práticas da Igreja como a venda de indulgências, forma de garantia de ingresso ao céu após a morte. Além disso, traduz a primeira versão do texto bíblico em latim para a língua alemã, possibilitando a qualquer indivíduo letrado o acesso à palavra de Deus, emancipando assim o crente da mediação exclusiva do clero. A partir de então, surgem no seio do movimento protestante inúmeras correntes. A doutrina de Calvino foi a que teve maior repercussão social. Trata, em especial, da questão da predestinação divina, articulando eleição e vocação. De certa maneira, radicaliza a doutrina da salvação pela “graça somente”. Segundo Calvino, Deus escolhe seus eleitos conforme a decisão insondável de Sua própria vontade. O indivíduo só pode entender que foi escolhido ouvindo a palavra da graça de Deus em seu próprio coração. Nenhum padre, nenhum sacramento, nem nenhuma obra podem ajudá-lo neste propósito. Neste sentido, houve com o calvinismo a completa eliminação da salvação por intermédio da Igreja. A relação dos calvinistas com seu Deus era dada em total isolamento espiritual. Deus requer realizações sociais dos cristãos, porque Ele quer que a vida social seja organizada conforme Seus mandamentos. O amor fraternal é expresso em primeiro lugar pelo cumprimento das tarefas diárias, pelo trabalho dentro da vocação, a serviço da organização racional da vida na comunidade. Essa atividade social se presta para servir a glorificação de Deus, e só para esse propósito, assumindo um caráter peculiarmente objetivo e impessoal. A fim de permanecer no estado de 318 NEGRI, A. Descartes político. Ediciones Akal, Madri, 2008, p 9.


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graça, o indivíduo exige de si mesmo a supervisão metódica de sua conduta, uma conduta ascética, voltada à excelência no trabalho dentro da vocação, e contrária ao desfrute da vida e o que ela tem a oferecer. Este ascetismo secular protestante, por um lado, agiu contra o desfrute irracional das riquezas, restringindo o consumo, em especial o do supérfluo; por outro, teve o efeito psicológico de liberar a aquisição de bens das inibições da ética tradicional. Nas palavras de Weber: Surgiu uma ética protestante especificamente burguesa. Com a consciência de estar na plenitude da graça de Deus, e visivelmente por Ele abençoado, o empreendedor burguês, desde que permanecesse dentro dos limites da correção formal, que sua conduta moral estivesse intacta e que não fosse questionável o uso que fazia da riqueza, poderia perseguir seus interesses pecuniários o quanto quisesse, e com isso sentir que estava cumprindo um dever. Ademais, o poder do ascetismo religioso punha-lhe a disposição trabalhadores sóbrios conscienciosos e extraordinariamente ativos, que se agarravam ao seu trabalho como a um propósito de vida desejado por Deus.319 Retomemos neste ponto o nosso fio condutor. Dizíamos inicialmente que o antigo “indivíduo-forado-mundo” se transformaria no moderno “indivíduo-no-mundo”, coextensivamente à organização das sociedades sócio-históricas modernas como sistemas lógico-científicos. O que liga um ao outro é o fato de serem “indivíduos-em-relação-com-Deus”. No processo histórico que estamos descrevendo, o mundo para os primeiros indivíduos era um “outro” antagônico, que ele não podia aceitar senão como algo irredutível, que não podia mudar de acordo como a sua vontade, pois toda possível mudança dependia exclusivamente da vontade e providência de Deus. Estando o verdadeiro valor “fora-do-mundo”, ansiava por se desvencilhar das imperfeições deste mundo na pós-morte, procurando, enquanto permanecia neste mundo, refúgio espiritual na mística e na oração. Paradigmático deste modo de vida é o ascetismo dos monges que se isolavam nos mosteiros. O movimento do Renascimento, por um lado, e o da Reforma protestante, por outro, conduziram o indivíduo a acreditar que podia exercer a sua vontade para intervir no mundo com a sua ação, participando da criação de Deus. O valor extramundano está agora concentrado na vontade individual. O ascetismo foi transfigurado, com a recessão dos aspectos místicos e sacros, ao modo de vida característico do espírito do capitalismo pautado pela conduta metódica da vida, iconoclastia, racionalidade prática, burocratização da vida social, articulação entre a técnica e a política, processo que Weber chamou de “desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt).320 A racionalidade, seja pela via da nascente ciência moderna de Descartes, Spinoza, Leibniz, entre outros, seja pela via da religião protestante que embasava o comportamento da burguesia ascendente, a qual tornar-se-ia a classe dominante nos próximos séculos, foi, desse modo, instituída na vida social do Ocidente. O “indivíduo-fora-do-mundo” tornou-se “indivíduo-no-mundo” através da identificação da sua vontade com a vontade de Deus. Neste sentido, podemos dizer que, a partir de então, teve início a organização das sociedades sócio-históricas modernas como sistemas lógico- científicos. Vejamos agora como este processo se aprofundou nos séculos seguintes. O movimento filosófico conhecido como “Iluminismo” ou “Idade das Luzes”, iniciado no século XVIII, caracteriza-se pelo seu forte empenho de dissociar o conhecimento racional da realidade da ideia de Deus. Opondo-se às trevas da

319 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Martin Claret, 2002, p 132. 320 Idem, p 91.


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superstição, do fanatismo e do obscurantismo ligados à religião, os pensadores deste período, entre estes Voltaire, Rousseau, Diderot e D’Alambert, se voltavam à experiência, esclarecida apenas pela “luz natural”, daí o nome dado ao movimento. Neste intuito, combateram não só os teólogos, mas também os metafísicos sucessores de Descartes, que continuavam a depositar a garantia da certeza do conhecimento verdadeiro na ideia de Deus. Kant surge neste cenário contestando a pretensão da razão metafísica de obter o conhecimento absoluto das coisas. Em seu livro “Crítica da razão pura”, procura esclarecer porque o campo do conhecimento científico não pode ultrapassar o âmbito da experiência possível. Kant denomina a ciência filosófica por ele projetada de filosofia transcendental, designando por transcendental aquilo que, independentemente de qualquer experiência, torna possível o conhecimento. Daí ter querido desvendar as condições prévias da experiência, procurando os elementos apriorísticos que constituem a subjetividade teórica. Assim, em função dos limites da sua subjetividade, é vedado ao homem o acesso puramente teórico ao infinito, eterno, absoluto, suprassensível. Em outras palavras, o homem não pode pensar como Deus, pois é finito e limitado. Só se podem construir enunciados verdadeiros em função da experiência relativa à estrutura do homem. Neste sentido, não é possível conhecer o caráter do que existe em si, na sua pura objetividade. O conhecimento é sempre relativo à subjetividade humana. Este é o significado da conhecida “revolução copernicana” de Kant: ter feito do sujeito o centro do conhecimento. No entanto, se Kant afastou a ideia de Deus do campo do conhecimento racional, não a renegou por completo em seu sistema. Restringiu o que seria a verdadeira relação entre o homem e Deus propondo um deslocamento: da ordem do saber para a ordem da conduta moral, para aquilo que chamou de prática. Sendo assim, a moral deve valer para todos os homens e em todos os casos, deve ser uma lei universal. Apesar de o homem almejar a explicação definitiva, o saber absoluto, não pode deixar se enganar quanto à limitação da sua capacidade de conhecer. Pode, entretanto, elevar infinitamente o valor de sua personalidade pela sua liberdade de escolha, superando as determinações de seus impulsos animais numa vida independente do mundo sensível. Daí afirmar que é somente no ato moral que o homem atinge o absoluto. Tal foi a contribuição kantiana para a ampliação processo de separação entre ciência e religião. Com Hegel, no século XIX, Deus é o Espírito Absoluto que se realiza no processo histórico do homem. Hegel parte do princípio que o Espírito Absoluto se objetiva através das diferentes formas do saber que vão sendo descobertas, dialeticamente, com o devir da humanidade. Logo, o tecido da objetivação do saber é a história. O filósofo é aquele que compreende e formaliza em discurso as contribuições ao saber de cada período histórico. Não se pode refutar nenhuma filosofia. É o embate entre as filosofias que emergem ao longo da história, isto é, a dialética inerente ao movimento da própria realidade social, o que leva os homens a progredirem acumulando saberes. Do fundo da história da humanidade, uma razão imanente se desenvolve rumo ao saber absoluto. Deus ou o Espírito Absoluto é o sujeito que surge por fim como resultado da história, enquanto as formas históricas da realidade social consistem na sucessão das suas objetivações. A novidade pensada por Hegel é que o processo de aquisição do saber só pode realizarse historicamente na e pela coletividade. O fim da história ocorrerá quando as lutas entre os homens pela verdade ou saber absoluto cessarem, em função do surgimento de uma organização social — o advento de um Estado mundial — que garantirá o pleno exercício da razão e da liberdade. Contudo, todo este processo é pensado de modo meramente lógico, deixando de fora a existência e a subjetividade, sendo por isso criticado por Schelling e Kierkegaard.


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Schelling, como vimos, coloca como fundamento ontológico de seu sistema o Deus vivo, como o primeiro existente, eternamente transcendente à consciência humana. Do mesmo modo, procura estudar a evolução da humanidade através da história da consciência humana. Porém, deixa o campo estrito da especulação metafísica para incluir o campo do empírico, da experiência que o homem faz de si mesmo, segundo a perspectiva das filosofias da mitologia e da revelação. Kierkegaard, por sua vez, não propõe um sistema filosófico. Pelo contrário, se opõe ao espírito do sistema argumentando ser este incapaz de produzir qualquer coisa diferente de um pensamento abstrato condenado a passar ao lado da existência singular do indivíduo. Neste sentido, esforça-se para estabelecer a preeminência da singularidade da existência, negligenciada pelo hegelianismo da época. É considerado o grande precursor do existencialismo do século XX, tratando de temas como a angústia e o desespero de uma consciência confrontada por paradoxos, como, por exemplo, a condição humana entre a finitude do corpo físico e o apelo do absoluto, da transcendência, do divino. Na mesma linha que vai de Descartes a Kant e Hegel, encontramos o movimento do positivismo, idealizado na segunda metade do século XIX por Augusto Comte. Radicalizando a ideia da imanência de Deus na história da humanidade pensada por Hegel, Comte afirma que Deus é a própria humanidade, o “grande Ser”, aquilo que corresponde ao grau de evolução real da humanidade, resultante do processo de apropriação científica do verdadeiro. A lei fundamental dessa evolução é a “lei dos três estados”. Segundo esta lei, o espírito humano é teológico em seu primeiro estado, metafísico no segundo, e positivo no terceiro. O estado positivo é a idade da ciência, que renuncia ao conhecimento do absoluto, contentandose com o relativo, isto é, com o estabelecimento, pela observação e a experiência, das relações constantes dos fenômenos. Positivo significa também: real, certo e, sobretudo, útil. Procuramos resumir em poucas linhas a separação entre religião e ciência operada pela filosofia moderna. Com Descartes, Deus passa a ocupar o lugar de princípio metafísico que fundamenta o saber racional. Com Kant, Deus perde este estatuto no campo do saber racional, mas permanece como soberano no campo do saber moral. Com Hegel, Deus é a instância transcendente do saber que se revela coletivamente na imanência do processo histórico do homem. Em comum, estes pensadores permaneceram ligados à metafísica cristã afirmando a ideia de Deus em seus sistemas, apesar das deturpações por eles impingidas ao seu sentido original. Procedamos agora a uma avaliação crítica deste período da história da filosofia e da humanidade que acabamos de apresentar. Vimos com Agostinho e Tomás de Aquino o papel fundamental da noção de alma. É certo que esta noção já existia em Platão e Aristóteles, mas com os pensadores cristãos ela adquire uma nova conotação: a de princípio interior do indivíduo-em- relação-com-Deus. Todo e qualquer indivíduo, a partir da sua fé em Deus, e através da sua alma, pode contemplar na sua interioridade a verdade que Deus lhe revela. Em outras palavras, o verdadeiro conhecimento só é possível pela iluminação divina que acontece no interior do indivíduo através da sua alma. Encontramos assim, ligada à noção de alma, a noção de interioridade, de vida interior, que se transmuta na noção de subjetividade na modernidade. Outro aspecto importante da noção de alma cristã é a de função mediadora entre a realidade material do corpo — dos sentidos e impulsos corporais — e a realidade transcendente de Deus. A partir do Renascimento, o indivíduo aspira não só contemplar as ideias de Deus, mas criar, participar ativamente da criação divina. Guiado por este ideal, Descartes foi o autor da grande revolução


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epistemológica que deu origem ao advento da ciência moderna, e com esta, ao crescente avanço tecnológico, antes inimaginável, que conduziu a humanidade — para o bem, e para o mal — ao atual estágio de desenvolvimento e capacidade de criação de novos conhecimentos e tecnologias. Mas esta não foi a única implicação do sistema cartesiano. Faz-se importante compreender que a radical separação entre subjetividade e objetividade operada por Descartes promoveu uma profunda cisão cultural. Por um lado, deu origem a uma cultura da objetividade definida por sujeitos que submetem objetos — o que inclui o corpo humano, a sociedade, o universo — a observações, experimentações e manipulações, procurando anular a própria subjetividade: um mundo da ciência, das planificações técnicas, dos processos burocráticos. Por outro, a uma cultura da subjetividade definida por sujeitos que se veem diante de questões existenciais e de escolhas pessoais: um mundo dos sentimentos, dos gostos, das questões morais, da religiosidade. Resultado: visões de mundo e práticas que se excluem mutuamente fazendo com que o indivíduo viva saltando, de modo esquizofrênico, de um mundo a outro. Tal cisão cultural se alargou ao longo dos séculos, sobretudo com Kant, e depois, com o positivismo de Comte. De modo que, herdeiros dessa visão de mundo, os indivíduos na atualidade — na sua grande maioria — se comportam de acordo com esta cisão. Por exemplo, um indivíduo em seu ambiente de trabalho procura se abster de qualquer tipo de sensação, emoção ou sentimento; a palavra de ordem é foco, concentração na objetividade das planificações técnicas que executa. Horas depois, esse mesmo indivíduo sentado diante de uma tela de cinema se entrega acriticamente aos afetos mobilizados pelo filme que assiste, acabando por se identificar ideologicamente com a moral apregoada pelo mesmo. De volta ao lar, se demonstra incapaz de transmitir seus sentimentos a um filho com problemas de comportamento, limitando-se a dar-lhe ordens objetivas para deixar de agir de modo errado com anda fazendo. Todavia, não podemos atribuir apenas a Descartes e aos filósofos que o sucederam a autoria desta visão de indivíduo e de mundo. Mesmo porque esta não teria se constituído caso não houvesse uma base social — a um só tempo, religiosa e política — propícia à sua repercussão. Neste sentido, compreendemos que o trabalho filosófico destes pensadores reflete antes o movimento promovido pela evolução secular do papel de indivíduo na sociedade. A concepção do sistema cartesiano, àquela altura da história, se prestou a atender à necessidade do indivíduo de expandir o alcance de seu pensamento e da sua ação criadora à luz da razão, o que por vezes era cerceado pelo poder eclesiástico sob a alegação de heresia. O processo inquisitório sofrido por Galileu é emblemático desta situação. Tal necessidade já aparece, séculos antes, na separação entre a teologia e a filosofia estabelecida por Tomás de Aquino. Mas a ressalva deixada por Tomás, de que as verdades naturais não contradissessem a verdade sobrenatural da teologia cristã, dava margem ao autoritarismo eclesiástico. Contra este autoritarismo se ergueu o movimento que a partir do iluminismo se opôs a ideia de Deus. Deus passou a ser entendido como antagonista do homem, cerceador da sua liberdade. A compreensão deste contexto histórico-cultural nos permite entrever o sentido profundo das obras de Nietzsche, Marx e Freud, originadas dentro do mesmo. Os seus sistemas filosóficos se firmaram ao longo do século XX como as três grandes referências instituintes da cultura contemporânea. Em comum, negando a existência de Deus, alargaram ainda mais a separação entre religião e ciência. Todos os três partem do princípio de que toda determinação do ser é imanente à interação das forças materiais que, a partir do corpo, determinam o comportamento do homem e suas relações socioculturais.


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Um dos motivos pelo qual o nome de Nietzsche se tornou popular foi o de ter enunciado a máxima “Deus está morto”. O que quis dizer com isto? Segundo Nietzsche, a identificação do eu com a consciência tem suas origens na crença religiosa da alma ou do espírito como um sujeito eterno, independente do corpo e capaz de ativamente controlá-lo. Para ele, tal concepção é da ordem de uma inversão de valores, sendo a ideia de Deus a matriz desta inversão. No princípio, o homem utilizou a ideia de Deus para controlar as forças em jogo em seu devir. A vontade de potência foi transferida para Deus. Daí a ideia de Deus como Criador e a do homem como criatura, à sua imagem e semelhança: uma imagem invertida. A morte de Deus é uma metáfora para representar a reversão desta inversão. A grande tese nietzscheana é a de que tal inversão dos valores foi determinada pelo mecanismo formador da nossa cultura: o niilismo. Chama de niilismo a conduta de vida baseada na convicção da inconsistência da existência corporal e sensível, na negação do valor da vida instintiva, dos desejos, das paixões. Na hipótese nietzschiana, o niilismo teria começado com a figura do sacerdote, insurgido como líder de uma reação dos fracos — os dominados — contra os fortes — os dominadores. No seio das sociedades arcaicas, os valores afirmadores da vida teriam sido original e historicamente criados pelos indivíduos fortes — conquistadores, guerreiros, artistas — a partir da manifestação espontânea das suas vontades de potência. Assim, as primeiras formas de vida social teriam se organizado segundo a imposição destes valores. Imposição de normas, de interdições, de leis que regulavam sistemas de trocas, hierarquias de direitos e privilégios, definindo senhores e escravos, credores e devedores. Leis que deviam ser obedecidas, obviamente, não sem violência. Sendo um animal gregário, o homem se viu obrigado a coibir os impulsos da sua individualidade para obedecer às leis e conviver socialmente. Neste cenário, os sacerdotes teriam sido aqueles que criaram outro tipo de valores: os valores morais. Reprimindo a vida instintiva, os valores morais levaram à interiorização do homem. A força ativa, agressiva, naturalmente dirigida para fora, para a satisfação instintiva, passou a se dirigir para o interior, para a consciência reflexiva. Os dominados, impotentes para se impor frente aos dominadores, tendo de pagar as dívidas contraídas junto a estes, encontravam com os valores morais uma outra via para a sua agressividade: contra si próprios. Nada mais do que um envenenamento da vida. Para Nietzsche, a sociedade moderna é niilista na medida em que é dominada pelos valores morais herdados pela religião judaico-cristã, secularizados pela história cultural do ocidente. O projeto nietzscheano é o da reversão desta inversão dos valores, isto é, a transvaloração de todos os valores: liberar a vontade de potência do jugo do niilismo. No mito criado por Nietzsche, a morte de Deus representa o advento da descrença nos valores transcendentais, e a abertura no seio da cultura à criação de novos valores, afirmadores da vida. A transvaloração dos valores se dará culturalmente através de uma interpretação valorizadora do corpo, dos afetos, dos impulsos da sensibilidade, para que estes possam ser devidamente aproveitados na sua potência criadora. Passemos então ao sistema de Marx. Segundo o grande idealizador do comunismo, o direcionamento da evolução do homem é dado pelos fins determinados pelo seu trabalho. Como teórico deste devir, Marx “descobre que os homens se criaram a si mesmos como homens através do trabalho”.321 A história não é, como para Hegel, a objetivação de um Espírito Absoluto. Nas palavras do próprio Marx: “os homens fazem sua própria história, [...] mas não a fazem como querem, sob circunstâncias da sua escolha”.322 A história é feita pela subjetividade humana como resposta às novas necessidades, que vão surgindo na medida em que

321 MARX, K. citado por LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Op cit, p 240. 322 Idem, p 240.


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a sua atividade laborativa vai se desenvolvendo, em meio à impossibilidade de conhecer todas as variáveis envolvidas, e todas as consequências da mesma. O homem precisa decidir entre alternativas, e este é justamente o momento em que aprende a ser livre, em que encontra o “reino da liberdade”. Neste sentido, compreendemos a sua ideia de que “o reino da liberdade” floresce com base no “reino da necessidade”. A religião e a ideia de Deus recebem de Marx um tratamento crítico. Sendo produto da atividade do homem, surgida a certa altura de seu processo histórico, a religião é uma forma fenomênica de uma consciência falsa, de uma ilusão, na qual se reflete o caráter invertido de sua base social. A condição social que gera a religião é a opressão de uns sobre outros. A religião se presta a reunir ideologicamente dominantes e dominados, justificando a hierarquização no seio da sociedade. “A classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante”.323 Os indivíduos que constituem a classe dominante enunciam a doutrina da divisão de poderes como uma lei eterna. Os dominados aceitam a opressão social e o sofrimento dela resultante, na medida em que acreditam nos valores enunciados pelos dominantes como verdades absolutas. Segundo Marx, a religiosidade cristã se universalizou precisamente por ter atendido a necessidade de desenvolvimento do capitalismo. Mediante o dinheiro como potência do mundo, o individualismo inerente à religiosidade cristã serviu como sustentáculo para o egoísmo que funda a sociedade burguesa. Por isso, o desmascaramento científico da religião é uma condição necessária para a superação revolucionária por parte das massas oprimidas, impelindo-as a se emanciparem. A recusa do individualismo é o que pode fazer com que as pessoas se unam coletiva e democraticamente em torno de interesses comuns, construindo a sociedade comunista. Completando a trilogia, chegamos à Freud. Para o pai da psicanálise, o recalcamento da natureza pulsional do homem é o mecanismo instituinte da cultura. O cerceamento das pulsões — isto é, do desejo humano —, impondo limites à sua satisfação imediata, faz com que o homem produza cultura e viva em sociedade. O que seria se todos se pusessem a satisfazer os seus desejos sem restrições? Para Freud não haveria ordem, mas o caos. O homem precisa aceitar a frustração da sua natureza pulsional para conviver socialmente. O recalcamento é o mecanismo primordial desse processo, e o complexo de Édipo a estrutura regente do mesmo. O complexo de Édipo corresponde ao conjunto de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais; geralmente, o desejo sexual pelo progenitor do sexo oposto e o ódio ciumento pelo progenitor do mesmo sexo. O recalcamento desses afetos cerceia a concretização do incesto, base da organização familiar e social. Tais afetos são mantidos no inconsciente, permitindo o desenvolvimento da personalidade e a socialização da criança até a fase adulta. Em seu livro “Totem e tabu”, Freud nos oferece uma hipótese que dá sustentação antropológica à sua teoria. É a hipótese do assassinato coletivo do pai na horda primitiva. Falamos já desse mito criado por Freud, relacionando-o à teoria mimética de Girard, quando abordamos a gênese dos sistemas míticoreligiosos. Procuremos agora complementar o que foi dito, no que se refere à compreensão do conceito de complexo de Édipo pela psicanálise. Os filhos, submissos ao domínio do pai sobre todas as mulheres da horda, se reúnem para matá-lo, compelidos por sentimentos contraditórios de amor e ódio pelo pai: amor, por se identificarem com ele, com o seu poder, domínio, controle; ódio, por servir de obstáculo aos seus desejos sexuais. Após o assassinato, tomados por sentimentos de culpa, teriam se reunido novamente para instituir os dois tabus com que a moralidade humana teve o seu começo: a proibição do incesto

323 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo, Martins Fontes, 2007, p 48.


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e do parricídio; regulando assim os intercâmbios sexuais dentro da horda. Como consequência desta hipótese, Freud argumenta que Deus é a representação do pai morto que se tornou mais forte do que o fora vivo. Tornou-se um deus, adquirindo inicialmente a forma de um animal totêmico, e depois, caracteres antropomórficos, na forma das inumeráveis divindades de que temos conhecimento. Daí a ambivalência identificação/rivalidade ser a característica central da relação de filho para pai, desde os tempos arcaicos até hoje. Já, em “O futuro de uma ilusão”, defende a ideia de que a religião é uma ilusão motivada pela nostalgia do pai, que revela a demanda por proteção, justiça, orientação em face ao sentimento da pequenez e da impotência humanas diante do todo do mundo. A crença religiosa do adulto corresponde a uma indiferenciação do estado infantil e primitivo do homem. A religião, nesse sentido, é considerada como uma neurose obsessiva coletiva. O homem precisa abdicar da sua crença religiosa num Deus pai todo poderoso que detém o poder sobre o seu destino a favor de uma visão realista do mundo, admitindo sua pequenez e impotência naquilo que não pode efetivamente dominar ou controlar. Nietzsche, Marx e Freud contribuíram assim, decisivamente, para que o processo de dessacralização da cultura chegasse aos termos atuais da assim chamada cultura pós-moderna. Cada um dos três pensadores arrogou se autoafirmar como descobridor do fundamento originário do gênero humano prescindindo da ideia de Deus. Michel Foucault nos mostra que cada um deles nos situa ante um determinado sistema de interpretação ou hermenêutico.324 Na particularidade da perspectiva interpretativa de cada um desses sistemas, os símbolos são encadeados numa rede inesgotável de significantes, num perpétuo jogo de espelhos. Foucault argumenta que os significados por eles desvendados nos fazem enxergar as feridas que formam o nosso narcisismo atual. Mirar-se neles nos rende insights libertadores. Marx nos faz ver a nossa alienação em meio à luta de classes; Freud, os impulsos da nossa sexualidade inconsciente; Nietzsche, o niilismo de nossos valores morais. O fato é que, como nos demonstra Foucault, vivemos no mundo contemporâneo numa rede de interpretações — de interpretações de interpretações — fundada por eles. De acordo com o paradigma da pós-modernidade, podemos hoje dispensar de um centro, de um fundamento único e universal do qual todo o conhecimento é derivado. O que faz com que as suas perspectivas interpretativas não sejam tomadas como absolutas, nem sejam excludentes. Pelo contrário, encontram-se interconectadas pela afirmação do corpo e da imaginação como forças imanentes à vida, o que possibilita que dialoguem e se matizem mutuamente.

4.4. A emergência do Deus-Eu na cultura contemporânea Voltemos, pois, após todo este percurso pela história do homem na sua relação com Deus, passando pela evolução de seu pensamento religioso e filosófico, ao contexto sociocultural em que Moreno, no primeiro quarto do século XX, criou o Teatro da espontaneidade. Em meio ao que Le Rider denominou como a crise de identidade do homem na modernidade, Moreno propôs, como psiquiatra, um diagnóstico e uma terapêutica ao que considerou ser um descaminho da humanidade, que fazia adoecer o indivíduo da época: a perda da sua espontaneidade diante do domínio das conservas culturais. O nosso estudo, até aqui, teve como objetivo aclarar o fundamento ontológico dos conceitos centrais da proposta de Moreno: a

324 FOUCAULT, M. Um diálogo sobre os prazeres do sexo; Nietzsche, Freud e Marx; Theatrum Philosoficum. São Paulo, Landy, 2005.


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espontaneidade, enquanto princípio da ação dos seres vivos; e o Deus-Eu, enquanto essência-potência do indivíduo humano. Estamos agora providos dos dados necessários para compreendermos em profundidade o imenso legado da sua proposta: a religação do homem com Deus, a reintegração de ciência e religião, uma nova orientação para a busca da liberdade, da verdade, da ética, da saúde, do amor; em uma palavra: da encarnação desses valores. O indivíduo autônomo precisou de um longo percurso histórico para emergir no real social. O que possibilitou que esse processo avançasse foi a essência-potência de autodeterminação de si, revelada pela sua ação como ser-no-mundo. Estudamos as várias etapas desse processo através das análises de diferentes autores, entre filósofos e antropólogos. Contudo, o indivíduo humano chega à contemporaneidade de Moreno — que é também a nossa — assolado por uma profusão de imagens de si, produzidas pelo jogo de espelhos de que nos fala Foucault, que o condiciona a um irremediável relativismo. É demasiadamente forçado reconhecê-lo como indivíduo autônomo, isto é, como pessoa verdadeiramente realizada na sua liberdade. A crise de identidade pela qual ainda nos encontramos como humanidade — passados quase cem anos dos escritos em que Moreno diagnosticou a perda da espontaneidade como a sua causa —, podemos afirmar com certeza, se deve à desarticulação entre ciência e religião operada pela filosofia moderna de Descartes, Kant e Hegel, desdobrada por Nietzsche, Marx e Freud. Neste sentido, nos aliamos a Moreno, Schelling, Wojtyla, Henry, Puntel, Jung, Girard, Durand, entre outros que mencionamos de passagem, ou ainda não mencionamos, tais como Kierkegaard, Pareyson, Lavelle, Zubiri, Voegelin, Frankl, na tarefa de reunir ciência e religião, numa convergência de intenções, o que permitirá ao homem religar-se à fonte de seu ser, da sua existência, da sua verdadeira identidade: Deus. Pois é só através da recuperação da nossa espontaneidade e criatividade que poderemos nos situar em nosso verdadeiro lugar no mundo. Procedamos então à nossa tentativa de articular uma grande síntese entre o discurso de Moreno, e tudo o que estudamos até aqui. Moreno afirma que a dimensão do Deus-Eu inconscientemente sempre existiu. Por que teria então permanecido inconsciente por tanto tempo? Responder a esta questão nos servirá como mote para articular a nossa síntese. Em primeiro lugar, penso ter ficado claro que a dimensão do Deus-Eu corresponde à experiência originária de identidade com Deus, de não-separação da consciência pela divisão sujeito-objeto, tal como postulada por Schelling. Trata-se, em termos morenianos, da experiência original de plena espontaneidade do homem. A Queda representa o momento da perda dessa pura espontaneidade. As representações antropomórficas de Deus, as divindades narradas pelos mitos, correspondem às primeiras conservas culturais. Deu-se, desde aí, a inversão de valores de que nos fala Moreno, isto é, a sobrevalorização dos valores da conserva cultural em relação aos da espontaneidade. A via de comunicação com Deus vinda do próprio Eu, neste sentido, é a da busca pela religação com esta experiência original de pura espontaneidade, tornada inconsciente após a Queda. história da humanidade é pensada por Moreno como um processo de realização do Self pelo Self e através dele, a partir de um primeiro plano, que podemos associar ao A1 — B descrito por Schelling. Nas palavras de Moreno, trata-se do movimento de um plano inferior para outro superior, sendo que o tempo de cada movimento


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igualar-se-á ao de uma época histórica.325 A hipótese do self em expansão, apareceu, na história do Homem, primeiramente no plano espiritual, na forma da elação religiosa; posteriormente, verificou-se no plano estético, a elação dos poetas e filósofos; mais tarde no plano político, a elação dos governantes, estadistas e generais, a elação do poder oriunda da manipulação das pessoas; no plano científico, a elação do poder oriundo da manipulação de ideias; no plano tecnológico, a elação do poder oriundo da manipulação de objetos físicos.326 Não há dúvidas de que o Homem deva retroceder em seu caminho, partindo do plano existencial secular até reencontrar o plano sagrado, partindo do tecnológico e voltando até o plano espiritual, a fim de que a crescente expansão do self possa recuperar um equilíbrio interno.327 Moreno coloca o plano espiritual como o primeiro plano, a partir do qual os demais vão se sobrepondo. Nisso, está de acordo com Schelling, Girard, e toda a explicação teórica que elaboramos aqui. Evidentemente, não podemos concordar com o esquematismo simplista com que descreve a sobreposição dos demais planos, pois este nos fornece uma perspectiva equivocada da história. Contudo, a linearidade com que descreve a sucessão dos planos alude, mesmo que vagamente, à evolução dos sistemas culturais mítico-religiosos para os lógico-científicos, tal como apresentamos. Por fim, a sua proposta de retroceder ao primeiro plano, ao plano espiritual, não é outra coisa senão a proposta, enunciada em outras palavras, da religação entre ciência e religião, o homem e Deus. Podemos dizer que a passagem de planos inferiores para superiores corresponde a uma historicidade dialética caracterizada pela relação entre, por um lado, a ação espontâneo-criadora do homem, orientada teleologicamente pelo impulso religioso de recuperação da sua identidade original com Deus, e por outro, as formas culturais por ele criadas, tornadas conservas culturais. Neste jogo dialético, há períodos em que a espontaneidade conduz à produção de formas culturais instituintes, isto é, a novos modos de relação com o ambiente e com os outros; seguidos por períodos de reprodução das formas instituídas, quando as formas instituintes se tornam conservas culturais; e por períodos de crise, quando as formas instituídas passam a ser rechaçadas e a espontaneidade volta a ser requerida, promovendo a criação de novas formas instituintes e uma nova expansão do self.

Busquemos então caracterizar estes planos, que correspondem à evolução das formas de experiência da espontaneidade, relacionadas às respectivas formas de representação de Deus ao longo da história da humanidade. O primeiro plano corresponde ao Deus-Ele descrito por Moreno, à A1 — B nos termos de Schelling. Como vimos, este plano foi constituído por sistemas culturais mítico-religiosos que operavam como estruturas afetivo-cognitivas das sociedades primitivas ou arcaicas. A forma de vida nessas sociedades era definida por dois modos distintos de experiência da temporalidade: o tempo sagrado e o tempo profano.

325 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 23. 326 Idem, p 22. 327 Idem, p 23.


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O tempo sagrado, experimentado nos rituais, definia o significado e o valor dos atos humanos considerados reais, eternos, posto que derivados das divindades, e assim, a estrutura normativa da ordem social do tempo da vida profana. O homem primitivo era temente de representações antropomórficas da Divindade — entre deuses, deusas ou heróis ancestrais —, na medida em que pressentia que estas exerciam seu poder sobre ele de modo autônomo, à sua revelia, e por isso obedecia rigidamente os interditos, as leis, os papéis dentro da hierarquia social, as técnicas de caça, agricultura etc. Além disso, devia reverenciá-las, cultuá-las, para que não se voltassem contra ele. Ele acreditava que cada coisa de seu mundo, desde os instrumentos de caça, os gestos de dança nos rituais, até o modelo de hierarquia social por ele seguido, havia sido originariamente criada por um deus ancestral, conforme a descrição de seus mitos. No momento dos rituais, a representação dramática de gestos ou ações dos deuses, deusas ou heróis narradas em seus mitos, da qual participavam unanimemente todos os indivíduos da comunidade, servia ao homem primitivo como locus para o reestabelecimento do sentimento de segurança, confiança e integração social diante das ameaças do que poderia lhe ocorrer em seu devir. De modo que o homem primitivo acreditava que só estaria a salvo de toda sorte de ameaças, por exemplo, a falta de chuva ou a infestação de insetos que prejudicariam a fertilidade do plantio e a fartura da colheita, se cumprisse às prescrições míticas transmitidas em seus rituais. Tal era a forma de vencer o seu pathos, isto é, a sua doença, o seu mal, a sua fonte de fracasso, desequilíbrio ou perdição que lhe sobrevinha à sua revelia, e que não possuia outros meios para evitar ou controlar. Evocava assim seus deuses a fim de se de salvar, de se libertar de seu pathos.

A forma de organização das sociedades primitivas era, desse modo, altamente hierarquizada e fixa. O que se justificava por estar de acordo a com vontade das divindades, e não propriamente por iniciativa e responsabilidade por parte dos indivíduos que as constituíam. Este era um valor da sociedade como um todo, isto é, um valor compartilhado pela unanimidade dos indivíduos, de modo que não cabia (não era possível) a um indivíduo ou subgrupo, isoladamente, contestar as formas sociais instituídas. Mesmo porque não havia ainda a noção de indivíduo autônomo, a qual era plenamente reprimida pelo coletivismo estático da estrutura social. A noção de individualidade era dada pela distribuição dos papéis sociais dentro da estrutura social. Como não era possível a alguém se colocar como indivíduo autônomo, isto é, “de fora” da estrutura, não havia como contestá-la a fim de promover mudanças na distribuição de papéis sociais. Neste sentido imperava o coletivismo, que legava aos grupos permanecerem praticamente inalterados em sua estrutura por períodos de longa duração. Podemos dizer que neste plano a experiência subjetiva de Deus acontecia como Deus-Ele. Determinados aspectos da essência de Deus eram tomados sob a forma de representações antropomórficas, digamos assim, “inventadas” pelos homens e investidas de valores sagrados, portanto, sob a forma de conservas culturais. No tempo profano, Deus era experienciado como um Ele, como um absolutamente outro a quem deveria temer para não ser por Ele castigado. A espontaneidade encontrava-se cerceada devido à rígida normatividade dos papéis sociais da estrutura social, não havendo, portanto, lugar para a inventividade e a criação. No momento dos rituais, rompendo com a temporalidade profana, instaurava-se uma outra temporalidade, na qual a espontaneidade era experimentada ao modo da “communitas”, descrito pelo antropólogo Victor Turner.328 A communitas corresponde a uma modalidade de vida social dentro da comunidade, resultante de um movimento de transição da estrutura social, que acontece com a perda 328 TURNER, V. W. O processo ritual. Petrópolis, Vozes, 1974.


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de algumas das condições culturais prévias como a suspensão dos direitos e obrigações de parentesco, a ausência da propriedade, subestimação das distinções sexuais, nudez ou uniformidade de vestuário, fazendo com que as características do indivíduo ou do grupo se tornem indeterminadas e ambíguas. Tratase de um movimento através do qual a vinculação social é transposta a uma forma não estruturada, a um “momento situado dentro e fora do tempo”: o momento do ritual.329 Desse modo, é produzido um estado de espontaneidade e comunhão intersubjetiva entre os participantes — de encontro, no sentido moreniano —, propiciador da assimilação existencial da sabedoria sagrada da comunidade, transmitida através de símbolos que representam aspectos do ciclo de morte e renascimento gerador da vida, numa espécie de regressão simbólica ao “caos” da indiferenciação social. Com o retorno à estrutura social, ao tempo profano, os valores da communitas são conservados, possibilitando uma purificação e revitalização das relações interpessoais. Entretanto, a tendência é de que a espontaneidade acionada após algum tempo se esgote, fazendo-se necessário retornar, ciclicamente, ao momento do ritual. O estágio do Deus-Tu, originado pelo advento histórico de Jesus Cristo, é caracterizado por uma progressiva emancipação da individualidade no seio das sociedades. O ser cristão possibilitou o surgimento do indivíduo autônomo, enquanto indivíduo capaz de se posicionar eticamente contra a sua alienação dentro da coletividade. Rejeitando as figuras divinas da tradição mitológica, com suas prescrições ritualísticas, opondo-se assim à dominação da ordem política romana, os primeiros cristãos abriram o caminho para a emancipação da experiência de Deus como experiência individual, no entanto, sem negar o caráter coletivo, intersubjetivo, compartilhável da experiência, que acontecia em comunidade. Deu-se assim o início do processo de dessacralização e secularização da cultura ocidental, até a formação dos sistemas culturais tecnocientíficos das sociedades modernas. A racionalidade tecnocientífica em voga na atualidade é herdeira do entrelaçamento entre a tradição religiosa judaico-cristãos e a tradição filosofia grega de Platão e Aristóteles estabelecido no período medieval pela filosofia escolástica de Agostinho e Tomás de Aquino; passando pela criação da filosofia moderna, iniciada por Descartes, Espinosa e Leibniz; e levada a termo por Kant e Hegel. A despeito da radical diferença entre as duas tradições, qual seja, da primeira se tratar de um saber revelado, objeto de fé; enquanto a segunda, de um saber especulativo, objeto de conhecimento racional; tal entrelaçamento possibilitou a fertilização recíproca e a subsistência de ambas ao longo da história. Apesar da unidade discursiva dos filósofos escolásticos ter sido desfeita pelos modernos, a ideia de Deus permaneceu — direta ou indiretamente, seja através da sua afirmação como da sua negação — subjacente a todo discurso filosófico ou científico no mundo atual. Como sujeitos desta cultura, encontramonos invariavelmente ligados às duas tradições. É fundamental que compreendamos aqui o significado da Encarnação de Jesus Cristo dentro do contexto do nosso estudo. De um ponto de vista exotérico, isto é, “de fora”, objetivo, Jesus Cristo é a mais perfeita figura de A2, de modo a se poder dizer que representa melhor do que todas as divindades mitológicas a Divindade. De um ponto de vista esotérico, isto é, “de dentro”, subjetivo, Jesus é a própria Encarnação do Espírito de Deus, na sua perfeita vontade livre e inteligência, na sua pura espontaneidade e criatividade, é A3. Falamos, desse modo, nos termos de uma interpretação schellinguia-moreniana do dogma da Trindade. Jesus, nos atos de seu ser-no- mundo, encontrava-se em permanente abertura à transcendência intransitiva, nos termos de Wojtyla, e à autorrevelação do pathos da Vida, nos termos de Henry. De modo que a temporalidade vivida por Jesus em sua passagem pelo mundo foi, simultaneamente, 329 Idem, p 118.


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sagrada e profana, divina e mundana, espiritual e carnal. Não existiu dualidade na sua ação, mas unidade em Deus, com Deus, por Deus. O que equivale a dizer, em termos ontológicos, que viveu como identidade absoluta, sem separação sujeito-objeto; e, em termos teológicos, sem pecado, como Adão antes da Queda. Assim, como um Deus-Tu, passou a nos servir como modelo de uma identidade unificada, integrada e, ao mesmo tempo, plenamente diferenciada. Tornou assim viável a possibilidade de unificação, integração e diferenciação dos nossos eus, à sua imagem e semelhança. Passamos a ter como imagem a ser imitada, melhor dizendo, encarnada, como forma de pura espontaneidade criadora, o Espírito Santo, A3 — Deus-Eu Os primeiros cristãos experienciaram a espontaneidade do Deus vivo — do amor, da liberdade, do encontro fraterno —, conforme esta lhes foram transmitidas pelos apóstolos. De lá para cá, em um e processo que podemos chamar de secularização da vida religiosa, a experiência de vida espontânea foi se perdendo, na justa medida em que a religião foi se institucionalizando. O Deus vivo foi gradativamente se tornando objeto de uso da vontade de poder, de dominação de uns sobre outros. A aliança de poder, surgida posteriormente, entre a Igreja e o Estado conduziu a uma espécie de “paganização” de Deus, tornando-O um “ídolo”, uma mera imagem antropomórfica — “o homem velho de barba” — manipulada com o propósito de manter a submissão da massa à ordem política. Enquanto isso, no plano filosófico, a ideia de Deus passou a ocupar o lugar de princípio metafísico da racionalidade tecnocientífica. O assim chamado “Deus dos filósofos”, fundamento de uma objetividade pura, absoluta, passou a definir uma racionalidade altamente impessoal e abstrata, uma racionalidade sem espontaneidade. Deus foi reduzido desse modo à condição de mais um “ídolo”, como todos os outros criados pela imaginação humana. No século XIX, a crença em Deus já se encontrava em franco declínio. Os pensamentos de Feuerbach, Nietzsche, Marx e Freud, surgiram neste contexto. Com eles, Deus passou a ser entendido como mera projeção da imagem do próprio homem, como ilusão, invertendo a visão judaico-cristã: o homem, de criatura à imagem de Deus, passou para o lugar de criador de Deus à sua imagem. Colocaram assim em cheque os valores judaico-cristãos que davam sustentação aos padrões de conduta moral do mundo ocidental. A proclamação da morte de Deus feita por Nietzsche representa emblematicamente a decadência destes valores. Neste sentido, diríamos que Deus se tornou uma conserva cultural, uma ideia reduzida pelo racionalismo filosófico a algo da ordem da ilusão. Sob tal influência, o homem moderno passou a ser culturalmente cerceado a não acreditar em Deus. Observamos, no entanto, um fenômeno cultural típico das modernas sociedades tecnocientíficas que nos mostra o quanto o homem “não superou” a religiosidade que fundamenta ontologicamente o seu ser-no-mundo. Mesmo indivíduos declaradamente não religiosos, ou confessamente ateus, apresentam manifestações de pensamento mítico-religioso sob formas secularizadas e racionais. É o caso, não raro, de indivíduos que acreditam em prescrições científicas de maneira muito semelhante à “crença mágica” que envolviam as prescrições míticas nas sociedades primitivas. Por exemplo, o sujeito que segue “religiosamente” uma prescrição médica, acreditando “fervorosamente” que aquela medicação irá curá-lo. Evidentemente, há uma racionalidade tecnocientífica que justifica o uso de uma determinada medicação em determinado caso de doença, baseada na existência de um efeito real da medicação sobre o organismo, cientificamente validado. Mas isso não significa que “aquela” medicação é “o que” irá curá-lo. Há outros fatores concorrentes, e muitas vezes, imponderáveis, numa cura, que em medicina se convencionou chamar de efeito placebo. De modo que há algo mais na prescrição médica, que não o efeito específico que uma determinada medicação promove no organismo. Falamos, entre outros fatores, da relação entre o doente e o médico, bem como, da relação entre o doente e as circunstâncias de sua vida, seu estado afetivo-


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emocional, suas crenças pessoais, seus relacionamentos interpessoais, que influenciam o modo como o doente interpretra o seu adoecimento, e são decisivos no seu processo de cura. Vê-se, neste exemplo, que o pensamento mítico-religioso não foi simplesmente suprimido ou excluído pelo tecnocientífico, na medida em que foi e continuará sendo a base ontológica, como também, epistemológica do ser-no-mundo de todo e qualquer indivíduo. Em outras palavras, em primeiro lugar o indivíduo imagina a sua situação no mundo, e isso significa que o pensamento mítico-religioso é inalienável. Podemos dizer que o homem é religioso quando pensa a existência de algo — não necessariamente Deus — com o poder de lhe garantir a salvação diante de seu pathos.

De fato, há ainda uma forte tendência do pensamento racional se misturar com o pensamento mítico, e da subjetividade ser confundida com a objetividade. Neste sentido compreende-se a sobrevivência na atualidade da ideologia fomentada pelo iluminismo e o positivismo dos séculos XVIII e XIX, de que, com o avanço da ciência, o homem do futuro se tornará competente para erradicar todas as mazelas que assolam a sua vida. Livre de doenças, da fome, e economicamente próspera, a humanidade alcançará, graças à ciência, o seu estágio civilizatório de bem-aventurança, em suma, a sua salvação. Nada mais do que um mito moderno. Prova de que este mito ainda se faz presente na cultura contemporânea é o livro de Yuval Harari, “Sapiens – Uma breve história da humanidade” publicado em língua inglesa em 2012, que rapidamente se tornou um best-seller internacional. O autor, um historiador, defende neste livro a ideia de que o verdadeiro potencial das tecnologias futuras é transformar o próprio Homo sapiens em seres completamente diferentes, com mundos afetivo-cognitivos muito diferentes, baseado no Aperfeiçoamento Humano, o que inclui a descoberta da imortalidade, o que tornará sem sentido o debate atual entre as religiões, ideologias, nações e classes. Denomina esta busca com Projeto Gilgamesh, declarando-o como o mais importante da ciência.330 Harari toma como fundamento ontológico de seu discurso um fisicalismo reducionista que não se dá ao trabalho de questionar, adotando-o simplesmente como algo óbvio. Evidentemente que a conclusão a que chega alcança as raias do absurdo! Mas foge aqui ao nosso escopo contestá-lo através de uma argumentação mais detalhada. O motivo para utilizá-lo como exemplo é mostrar que a sua tese pode ser claramente classificada como um mito de salvação da humanidade, assemelhandose incrivelmente aos dos povos primitivos ou arcaicos. No seu caso, trata-se da adoração da deusa Ciência. É imprescindível que se compreenda que o conhecimento científico, diferentemente do mito, encontrar-se sempre em um inacabado processo de construção, não podendo, em hipótese alguma, ser tomado como uma verdade absoluta, para não dizer sagrada. De modo que homem contemporâneo precisa corrigir a sua tendência de tomar o conhecimento científico, equivocadamente, como um mito. Independentemente dos fracassos ou êxitos dos procedimentos ditados pelo conhecimento científico, ou do fato de que seus êxitos certamente aumentarão o bem-estar social, estamos apenas procurando ressaltar o papel que a Ciência ocupa no imaginário do homem moderno: o papel de uma deusa, propiciadora de alívio de seu pathos, e assim, de uma maneira confiante de estar no mundo. Podemos admitir, portanto, que a atual crença no poder da ciência não difere muito da primitiva crença no poder do mito. Em ambos os casos o homem toma como verdade algo que são conservas culturais. No caso dos antigos sistemas culturais mítico-religiosos, entes divinos; no dos modernos tecnocientíficos, ideias racionais. A implicação deletéria disso é que a espontaneidade, tanto em um caso como no outro, permanece submetida ao domínio das conservas culturais, se bem que de maneira diversa.

330 HARARI, Y. N. Sapiens – Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2017, pp 422-425.


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A resposta para a questão acerca dos possíveis motivos que teriam mantido a dimensão do Deus-Eu inconsciente, assim se esclarece. Ao menos no que diz respeito à imanência da ação humana, um motivo foi e continua a ser decisivo: o político. Trata-se de uma mesma estrutura de poder através da qual a essênciapotência espontâneo-criadora do homem, comum a todos os indivíduos, é cerceada a fim de garantir a organização e o controle das sociedades dentro de limites culturais estabelecidos. Pensamos aqui na hipótese de que a estrutura de poder baseada na dominação de uns sobre outros, desde as sociedades primitivas ou arcaicas até as modernas, tem se mantido em função da repressão política da expressão espontânea do Deus-Eu. Transcorridos dois milênios desde que Jesus Cristo marcou definitivamente a história como história da salvação universal, isto é, da humanidade como um todo, a verdade da Sua mensagem vem sendo reiteradamente distorcida, de modo redutor. A nossa tese é de que essa distorção redutora é feita por motivos políticos, impedindo a evolução histórica rumo ao estágio do Deus-Eu. Podemos dizer que o Deus-Eu corresponde à encarnação de Deus – plenamente realizada em Jesus Cristo – como coletividade formada por uma multiplicidade de indivíduos autônomos, livres, ativos, sujeitos de suas ações, e por isso, capazes de interagir de modo amoroso e responsável através de relações de solidariedade e cooperação. O que implica numa efetiva democratização das sociedades. O poder constituinte de democratização do coletivo, na sua espontaneidade criadora, tem sido cerceado, sobretudo pela manipulação política da imagem de Deus, seja por parte daqueles que afirmam a existência de Deus, como daqueles que negam a Sua existência. De um modo ou de outro tem ocorrido ao longo da história, e continua a ocorrer, que determinados sacerdotes, líderes políticos, agentes controladores do que aparece nas grandes redes midiáticas (televisão, imprensa escrita, rádio, cinema etc) ou do que se é ensinado nas instituições acadêmicas, controlam o comportamento de uma maioria de indivíduos através da manipulação ideológica de seus desejos e medos. Arregimentam assim rebanhos religiosos e massas de consumidores e eleitores fazer determinadas “escolhas”, ou a exercer determinadas “liberdades” que não são verdadeiras escolhas ou liberdades, na medida em que não são verdadeiramente espontâneocriadoras, mas, comportamentos estereotipados, condicionados por conservas culturais, servindo antes aos interesses de determinados grupos de pessoas do que à vontade de Deus. Tal mecanismo tem servido como pretexto a todo tipo de violência, desrespeito e loucura ao longo da história da humanidade, mantendo a dominação de uns sobre outros. Em nome de uma “suposta” vontade de Deus, ou contra ela, o homem nada mais faz do que abdicar da sua autonomia e liberdade, outorgando a outros o direito de empregar a violência e manter a dominação. Quantas guerras foram feitas, continuam a ser feitas, e ainda serão feitas em nome de Deus? Afinal, política e religião sempre andaram juntas através da prescrição de valores morais que despotencializam a verdadeira experiência de liberdade, sob o manto de um dogmatismo estéril que afasta o homem do lugar de sujeito de suas ações. Desse modo, a imagem de Deus foi e continua sendo manipulada a fim de legitimar as diversas formas de hierarquia – estatal, eclesial, imperial, acadêmica etc – no seio das sociedades e, dessa maneira, a dominação e a servidão. Talvez tenhamos enfim chegado ao momento do homem se abrir à verdadeira essência da experiência de Deus, superando as mediações que se interpõe a esta experiência na forma de conservas culturais, de modo que a sua espontaneidade possa ser plenamente integrada em suas elações com os outros e o mundo. Através da ação espontânea nos abrimos à presença do espírito em nosso corpo: corporificamos o espírito na medida em que espiritualizamos o corpo, ou vice- versa. O que equivale dizer que o perceber, o sentir, o pensar e o fazer são integrados no ato espontâneo. Deixa de haver divisão, separação, dissociação, dualidade entre a expressão corporal e a espiritual, passando a haver conexão, integração, unidade.


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Moreno nos propôs uma nova visão de Deus numa época de crise do homem moderno, condutora de um efetivo processo de autodeterminação dos indivíduos como pessoas e de integração social: o momento do Deus-Eu. A busca religiosa de Moreno pode ser compreendida como a busca de um novo caminho, capaz de viabilizar a salvação do homem no sentido da reorientação da sua ação em face ao descaminho sociocultural da modernidade. O homem encontra-se inserido em um Drama Cósmico através do qual é capaz de religar-se a Deus, passando a ocupar uma nova posição: a de cocriador do Cosmos. Talvez o maior desafio no nosso mundo atual seja vencer a descrença, não exatamente em Deus, mas no próprio homem.


PARTE 5

A SISTEMATICIDADE DA TEORIA DO PSICODRAMA

FILOSOFIA DO PSICODRAMA R O B E R TO M A ND E TTA


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5.1. A concepção epistemológica da sociometria Apresentamos a teoria do psicodrama como uma ontologia, tendo o conceito de espontaneidade como conceito central. Procuraremos agora articular o conjunto dos conceitos elaborados por Moreno buscando aclarar a sistematicidade da sua teoria. Com o termo sistematicidade estamos nos referindo à coerência e interconexão entre os conceitos, teorias e técnicas morenianas, o que permite abranger compreensivamente a variedade de aspectos relacionais da pessoa com a realidade em seu todo, manifestos na sua ação. Neste sentido, a teoria do psicodrama possibilita recuperar o antigo ideal filosófico de uma compreensão unitária e sistemática da realidade, praticamente abandonado no século XX. Vimos, nos capítulos anteriores, como a grande aporia da epistemologia moderna, o dualismo sujeito-objeto, pode ser superada teoricamente. Neste capítulo, veremos como a teoria da sociometria de Moreno possibilita tal superação empiricamente. A nossa tese é que a sociometria sobrepassa a separação metodológica entre subjetividade e objetividade da ciência moderna com a introdução do conceito pessoa da metafísica clássica no campo experimental das ciências humanas (sociologia, antropologia, história, psicologia, ciência política etc). Como faz isso? Com um método revolucionário, na expressão de Moreno: conferindo status de pesquisador a cada membro do grupo (que está sendo experimentalmente investigado). Em vez de “indivíduos” ou “organismos” objetivamente observados em seu comportamento, temos “atores” interagindo interpessoalmente, coproduzindo o conhecimento na situação experimental, cada qual a partir da sua perspectiva pessoal, isto é, como uma subjetividade concreta, historicamente encarnada, em 1a pessoa. Vejamos algumas passagens de “Quem sobreviverá?” em que Moreno apresenta esta proposta: O passo preliminar ao desenvolvimento de toda ciência é a compreensão das condições nas quais os fatos significativos emergem. Para cada ciência há modo diferente de dar este passo. Como produzir condições nos quais fatos físicos e biológicos ocorrem é, comparativamente fácil. O problema de produzir condições nas quais fatos significativos de relações humanas ocorrem requer nada menos que um método revolucionário. 331 A estrutura material interna do grupo só raramente é vista na superfície da interação social, e, mesmo assim, ninguém sabe ao certo se esta estrutura de superfície é cópia exata da estrutura interna. Portanto, para produzir condições por meio das quais a estrutura interna possa tornarse visível — operacionalmente — os “organismos” do grupo devem tornar-se “atores”; tem de emergir na situação como representantes de objetivo comum, ponto de referência (critério); e o “meio ambiente” ou “campo” tem de se transformar em situações ativas específicas, carregadas de provocações estimuladoras. [...] O organismo no campo torna-se o ator in situ.332 No processo de aquecimento do grupo é melhor observar todos os participantes in situ e observá- los na direção da sua produtividade. Para tanto, é preciso mover-se com eles. Como fazer isto, porém, a menos que você, o pesquisador, faça parte do movimento, seja coator? A

331 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol.1. Op cit, p 164. 332 Idem, p 165.


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maneira mais segura de fazer parte do processo de aquecimento é tornar-se membro do grupo. (Regra de coação do pesquisador para com o grupo). Porém, ao tornar-se membro do grupo, você está sendo roubado de seu papel de pesquisador que deve ficar de fora, projetando, criando, e manipulando o experimento. Não é possível ser membro verdadeiro e, ao mesmo tempo, agente secreto do método experimental. A saída é dar a cada membro do grupo status de pesquisador, fazendo de todos, pesquisadores. 333 O papel de pesquisador deixa de pertencer exclusivamente a alguém artificialmente situado fora do experimento, procurando eliminar todo e qualquer vestígio da sua subjetividade pessoal, guiado pelo ideal de uma subjetividade abstrata e de uma objetividade pura. Moreno propõe que o papel de pesquisador esteja situado dentro do próprio experimento, e que este não seja o privilégio de um ou poucos, mas de todos os membros do grupo que está sendo experimentalmente investigado. Qual a razão dessa mudança de método? Não seria porque há uma primariedade ou anterioridade ontológica da condição de pessoa, comum a todos indivíduos humanos, que não pode ser subtraída da produção experimental do conhecimento no campo das ciências humanas? Porque não há como não falsificar esse conhecimento, a não ser operacionalizando a inclusão da subjetividade pessoal de todos os membros do grupo, isto é, conferindo igualitariamente o status de pesquisador a todos? Enfim, porque não há como separar a coletividade do indivíduo, e reciprocamente, o indivíduo da coletividade? Na teoria do psicodrama, como Moreno reiteradamente salienta, o sujeito humano não é compreendido como organismo com comportamentos observáveis em seu meio ambiente; mas, como ator que estabelece encontros com outros atores nas situações concretas da vida. A primeira concepção corresponde à da epistemologia moderna; enquanto a segunda, corresponde à da metafísica clássica, propriamente falando, ao conceito ontológico de pessoa. Podemos desse modo afirmar que, apesar de Moreno não utilizar o termo pessoa como conceito filosófico, utiliza o termo ator com o sentido filosófico de pessoa da metafísica clássica. A concepção moreniana de ator converge, em particular, com o novo conceito de pessoa elaborado por Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, estudado no capítulo 3.2. Penso que tal conceito é capaz de iluminar e fertilizar a noção psicodramática de ator, sendo a recíproca também verdadeira. O plano da ação psicodramática, reconhecendo o ser humano como ator/pessoa, reproduz epistemologicamente o plano ontológico, real, existencial da ação humana, no qual o indivíduo é observador de si, ao mesmo momento em que agente ativo (ator) na relação com os outros, coatuando com os outros. Encontra-se simultaneamente em ação, como sujeito de si (papel de ator); e na ação, como objeto de si (papel de observador). Nas palavras de Moreno, na situação da produção experimental “o grau de suas subjetividades e objetividades recíprocas está em processo de contínua mistura, [...] baseado em consenso que existe somente dentro de uma comunidade de atores”.334 O Deus pessoal da tradição judaico-cristã serve de modelo para essa primariedade ou anterioridade ontológica da condição de pessoa do ser humano, que tem como corolário a inseparabilidade entre a

333 Idem, p 166. 334 Idem, p 177.


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coletividade e o indivíduo humano. Falamos da Trindade Divina, do Deus uno e trino que reúne três pessoas em uma: o Pai, o Filho e o Espírito Santo; nos termos de Moreno: o Deus-Ele, o Deus-Tu e o Deus-Eu. Os seres humanos, como pessoas, encontram-se naturalmente interconectados, tendo esta tríade como modelo. Deus é o elo comum que faz com que todos os seres humanos encontrem-se interconectados, enquanto seres à sua imagem e semelhança. Por isso um indivíduo humano não pode jamais ser tomado como ser isolado, sem que a sua natureza seja falsificada. O homem encontra-se sempre interpessoalmente relacionado. Não existe compreensão possível do homem a não ser enquanto situado — a partir de seu locus, matriz e status nascendi — como pessoa numa comunidade ou sociedade. A ‘lei’ sociométrica que rege os processos relacionais interpessoais nos grupos humanos encontra aqui o seu fundamento: a teometria. Moreno deriva do modelo de Deus o princípio da proximidade ou distanciamento — metrum (medida) — entre as pessoas em um grupo ou comunidade — socius (companheiro). A constituição de grupos humanos decorre da maior ou menor capacidade dos indivíduos que os constituem de dar um ao outro e receber um do outro a sua atenção imediata e aceitação. Neste sentido, podemos considerar a capacidade de espontaneidade e criatividade de cada ser humano de estabelecer encontros interpessoais, pautados por relações ora de concordância, ora de oposição, como a matriz ontológica dos grupos humanos. Nas palavras de Moreno: 1) A hipótese da ‘proximidade espacial’ postula que quanto mais próximos no espaço dois indivíduos estiverem entre si, mais devem um ao outro a sua atenção imediata e aceitação, seu primeiro amor. Não dê atenção às pessoas que estão longe de você, a menos que já tenha se desobrigado da sua responsabilidade para com seus próximos e que a recíproca também seja verdadeira. Por ‘mais próximo’ quero dizer aquele que mora perto de você, que senta ao seu lado ou que lhe é apresentado primeiro. A sequência de ‘proximidade no espaço’ estabelece a ordem precisa dos laços e aceitação social e a sequência de dar amor e atenção está, portanto, estritamente pré-ordenada e pré-arranjada, de acordo com o ‘imperativo espacial’. 2) A hipótese da ‘proximidade temporal’ postula que a sequência da proximidade no tempo estabelece ordem precisa de atenção e veneração de acordo com o ‘imperativo temporal’. O aqui e agora demanda ajuda em primeiro lugar; o que está anterior ou posterior em tempo ao aqui e agora requer ajuda em seguida. 335 Parece-me clara a alusão dos termos “imperativo espacial” e imperativo temporal” — utilizados para designar as “leis” sociométricas — à consagrada expressão da terminologia kantiana, “imperativo categórico”. Como vimos em 3.7, Kant denominou como imperativo categórico a obrigação moral tendo a forma de um mandamento, de um “tu deves”. São proposições deduzidas através do exercício da luz natural da razão — princípio iluminista. O termo categórico indica o seu caráter incondicional, ou seja, que a lei tem valor em si mesma, não estando subordinada a nenhuma finalidade empírica. Neste sentido, ordena absolutamente, independentemente da situação concreta em questão, da afetividade presente na ação como pathos da vida, dos valores da espontaneidade. Os homens devem simplesmente se autoimpor e auto- obedecer tais leis em seu comportamento social, independentemente das consequências que as suas ações possam vir a ocasionar. Daí a crítica de Moreno a tal racionalidade, dominante no contexto 335 Idem, pp 27-28.


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sociocultural da sua época, como uma racionalidade desencarnada, sem espontaneidade. A diferença entre os dois tipos de leis morais fica assim evidente. A “lei kantiana” é forjada de modo idealístico, abstrato, desencarnado, apoiada no puro exercício da razão, bastante duvidoso pela sua arbitrariedade. A “lei moreniana”, por sua vez, de modo nenhum é forjada de modo meramente racional, mas afetivamente, emergindo espontaneamente no coração do homem a partir da interconexão natural dos seres humanos em suas existências — concretas, históricas, encarnadas —, situadas no espaço e no tempo reais. Em síntese, trata-se da lei do ser humano como pessoa. A proposta de voltar a incluir Deus na ciência pode ser assim compreendida como a busca pela inclusão da espontaneidade nos processos do conhecimento, através da abordagem do indivíduo humano como pessoa, isto é, da sua subjetividade concreta, histórica, encarnada, manifesta em seus encontros interpessoais, enquanto caminho de superação das conservas culturais que esse tipo de racionalidade sustenta. A religação entre ciência e religião proposta por Moreno possibilita, desse modo, um novo modo produção de conhecimento nas ciências humanas. Como autor dessa iniciativa, Moreno deveria ser reconhecido como um dos precursores de uma nova epistemologia emergente no século XX, que busca restituir o lugar do homem como pessoa na produção do conhecimento científico. Moreno introduz no campo das ciências humanas a medição experimental do que denomina como “socius”. O “socius” é o produto do encontro entre pessoas, que acontece através da abertura ontológica para experienciar o outro como um outro eu. Trata-se de um evento concreto, único, irrepetível, em que duas pessoas estabelecem relação recíproca, bilateral, “para viverem e experimentarem um ao outro”.336 O “metrum”, o que é objetivamente medido, quantificado, através dos métodos sociométricos, é a reciprocidade ou bilateralidade das relações entre as pessoas que participam de um grupo ou coletividade, e desse modo, a posição afetiva delas dentro do mesmo, descrevendo como este se encontra qualitativamente organizado. A obtenção desses dados torna possível avaliar como esse grupo funciona dinamicamente. A dicotomia entre o quantitativo e o qualitativo encontra assim uma nova resolução: O aspecto qualitativo da estrutura social não é nem destruído nem esquecido; é integrado nas operações quantitativas, age de dentro para fora. Os dois aspectos da estrutura são tratados juntos, como unidade. Parece-me que ambos os princípios tinham sido negligenciados, sendo que o aspecto “socius” fora omitido da análise mais profunda com muito mais frequência do que o aspecto “metrum”. O “companheiro”, mesmo como problema, não era reconhecido. 337 Segundo Moreno, faltava às ciências humanas uma metodologia que contemplasse a experiência do “socius”, “o fato vivo do encontro” 338, que caracteriza a relação interpessoal. Nas suas palavras: O fator limitante nas psicologias centradas nos indivíduos e nas sociologias centradas nas multidões é a ausência do “outro ator”. Ao “socius”, exceto como abstração, não se permite contato direto, combate ativo e comunicação.339

336 Idem, p 169. 337 Idem, p 157. 339 Idem, p 168.


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Para Moreno, “somente pessoas que se encontram podem formar grupo natural e começar verdadeira sociedade de seres humanos”340, sendo o encontro, portanto, o fator que promove a constituição dos grupos ou comunidades humanas. Retomando o que dissemos a respeito da pessoa em 3.2, há uma ligação ontológica — originária, essencial, estrutural — entre os sujeitos humanos. Estamos ligados uns com os outros, de modo interpessoal. Falamos aqui da interpessoalidade ontológica do sujeito humano, que reside na capacidade, comum a todos, de experimentar o outro como um outro eu, e desse modo, perceber, sentir e conhecer as situações reais dos outros. Moreno designa por tele — do grego, distante, agindo à distância — essa interpessoalidade entre os sujeitos humanos. Os grupos humanos são assim formados a partir da reciprocidade das relações interpessoais “como uma função da estrutura da tele”.341 Um grau de coesão maior ou menor se deve a um maior ou menor número de relações recíprocas, isto é, de escolhas ou aversões recíprocas. A reciprocidade nas relações interpessoais reflete a saúde dessas relações, o fato delas se basearem em percepções, sentimentos e conhecimentos adequados da situação real entre pessoas que se relacionam, isto é, a um bom uso da tele. Grupos saudáveis apresentam um número relativamente alto de reciprocidade entre os seus membros, refletindo a maturidade emocional e a capacidade de escolhas adequadas dos mesmos; grupos patológicos, por sua vez, apresentam um baixo grau de escolhas recíprocas. O que isso significa? Que as escolhas estão sendo feitas não por percepções, sentimentos e conhecimentos adequados à situação real, mas equivocados, distorcidos, ilusórios, patológicos. Compreende-se essa diferença a partir da estrutura ontológica da tele, que define duas manifestações básicas: a “empatia”, como manifestação psicológica normal; e a “transferência”, como manifestação psicopatológica.342 Podemos dizer, assim, que estamos todos ligados interpessoalmente, seja normal ou psicopatologicamente. Estas não são categorias estanques, que se compreendam como polos exclusivos — ou/ou. Não há na realidade relação interpessoal que seja 100% normal ou empática, ou 100% psicopatológica ou transferencial, mas diferentes graus de hibridização dos dois polos, com um grau maior ou menor de normalidade ou psicopatologia. Enquanto a função normal da tele opera a partir da espontaneidade, as distorções psicopatológico- transferenciais ocorrem devido a inibição da espontaneidade e da tele, ligada à influência de conservas culturais. Moreno fala, neste sentido, de um “complexo tele-empatia-transferência”. 343 Esta é uma temática importante que voltaremos a abordar detalhadamente no capítulo a seguir. A contemplação metodológica do “socius” estabelece uma linha divisória entre a metodologia sociométrica e a não-sociométrica. Nas metodologias não-sociométricas, os sujeitos são tratados como unidades orgânicas isoladas, separadas das respostas verdadeiras ou possíveis dos outros. As relações entre os sujeitos são estudadas unilateralmente. Nas metodologias sociométricas — como o teste sociométrico, o sociodrama, a pesquisa do átomo social, o role-playing —, a adoção de um dado critério definidor de relações de escolha ou aversão entre os participantes de um grupo permite a observação do grau de coesão do grupo, e a avaliação quantitativa e qualitativamente o conjunto das relações interpessoais dos participantes, aclarando a estrutura e o dinamismo do grupo, bem entendido, no que se refere a um dado

339 Idem, p 168. 340 Idem, p 169. 341 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Campinas, Editorial Psy, 1993, p 46. 342 Idem, p 47. 343 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Vol.1. Op cit, p 189.


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critério definidor. Tomemos um exemplo ilustrativo. Em uma pesquisa de opinião pública a respeito das intenções de voto para a eleição de um candidato a governante realizada através de metodologia nãosociométrico, como a entrevista ou o questionário, mede-se apenas a intenção de voto de sujeitos isolados de seu contexto social. Nada é avaliado a respeito da posição que os sujeitos ocupam, uns em relação aos outros, em seus grupos sociais. Por outro lado, a utilização de metodologia sociométrica para pesquisar a intenção de votos de jovens universitários no contexto grupal de uma sala de aula, ou de um grupo de funcionários de uma empresa comercial, possibilita avaliar além da pura e simples intenção de voto dos participantes, as influências — in situ — que uns exercem sobre os outros nas suas escolhas, o que reflete, de certo modo, indiretamente, o dinamismo da realidade social em seu todo. Uma das definições de sociometria cunhada por Moreno é a de “sociologia dos eventos dinâmicos microscópicos”. 344 A metodologia sociométrica nos permite aclarar eventos dinâmicos microscópicos da sociedade, como o exemplo anterior nos ajuda a compreender. A relação da sociometria com as demais ciências humanas — sociologia, psicologia, antropologia, economia, ciência política, história — pode ser delimitada através da demarcação entre a estrutura microscópica e a estrutura macroscópica da sociedade. Enquanto a sociologia estuda a sociedade humana como sistemas macroscópicos, a sociometria estuda a microscopia social, “a microdinâmica que sublinha todas as ciências sociais”. 345 A sociometria confere a cada uma das ciências humanas o seu aspecto vertical, possibilitando “tratar dos fenômenos sociais em seus níveis mais profundos, onde eles se fundem ou, mais precisamente, antes de emergirem como fenômenos psicológicos, sociológicos, antropológicos ou econômicos”.346 De modo que, “para cada disciplina social macroscópica pode-se prever a existência de disciplina social microscópica”.347

5.2. A fenomenologia do psicodrama 5.2.1. Análise fenomenológica da ação psicodramática O psicodrama abrange numerosos métodos como o sociodrama, o axiodrama, o role-playing, o teatro da espontaneidade, o psicodrama stricto sensu (centrado na expressão de um protagonista), entre outros. Abordaremos, a título introdutório, o método do psicodrama lato sensu, entendido como a estrutura metodológica geral da qual todos os métodos acima mencionados são particularizações, recordando os principais elementos dessa estrutura geral. Os indivíduos participantes de um grupo se tornam atores de um drama — isto é, uma história, uma narrativa representada na ação psicodramática — improvisado no palco, ajudados por egos-auxiliares. As técnicas utilizadas pelo diretor — que desempenha as funções de produtor, terapeuta e analista — se

344 Idem, p 154. 345 Idem, p 155. 346 Idem, p 160. 347 Idem, p 155.


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prestam a incentivá-los para que ajam de acordo com o que sentem, de modo mais profundo e explícito do que normalmente o fazem na realidade da sua vida social. Neste sentido, os atores devem encenar a sua verdade. Há ainda a possibilidade de um outro tipo de participação, como plateia ou espectador, ou seja, sem participar como ator do drama encenado. Uma sessão é normalmente dividida em três etapas: aquecimento, ação psicodramática e compartilhamento. No aquecimento os participantes são preparados para a ação psicodramática, sendo pesquisado e decidido em linhas gerais o que vai ser representado. Na etapa seguinte, a da ação psicodramática propriamente dita, busca-se explorar os aspectos latentes do drama, de acordo com o movimento espontâneo do grupo. Ressalte-se aqui que a ação se passa sempre no presente, no aqui-e-agora. No compartilhamento, os participantes partilham depoimentos pessoais da experiência vivida durante a ação psicodramática. Dentre as definições do método do psicodrama fornecidas por Moreno, uma em particular se destaca: Drama é uma transliteração do grego δράμα, que significa ação, ou uma coisa feita. Portanto, o psicodrama pode ser definido como a ciência que explora a verdade por métodos dramáticos. 348

Podemos assim dizer que o objetivo geral do método do psicodrama é a exploração da verdade. Como vimos, um dos aspectos fundamentais do método é dar a cada membro do grupo status de pesquisador, fazendo de todos, pesquisadores. Chegamos assim à compreensão de que cada participante de um evento psicodramático encontra-se implicado — seja no papel de ator, ego- auxiliar, diretor ou espectador — na busca da verdade. Mas, de que verdade se trata? Independentemente do conteúdo ou tema do que esteja sendo dramatizado, cada participante é orientado a expressar a si mesmo através da ação. Então, a verdade explorada e revelada através do psicodrama não é outra do que a verdade do self (eu, pessoa), acrescente-se, no encontro com os outros através da ação. O participante de um evento psicodramático encontra-se assim intencionalmente direcionado a fazer da sua ação uma experiência de revelação de seu self. E neste ponto, cumpre-se sublinhar, damo-nos conta da convergência entre o método do psicodrama e a perspectiva teórica articulada por Wojtyla de que “a ação revela a pessoa”. O método psicodramático se presta à atualização experimental dessa perspectiva teórica. Defendemos a tese de que o método do psicodrama é fenomenológico. O fenômeno produzido experimentalmente é a ação psicodramática. O indivíduo que participa da ação psicodramática aparece nela ao mesmo tempo como sujeito (em si) e objeto (para si), fazendo dela uma experiência fenomenológica, na medida em que a experiência que o indivíduo faz de si mesmo é fenomenologicamente investigada através do emprego do conjunto de teorias, conceitos e técnicas que compõem o método do psicodrama. Em outras palavras, há uma fenomenologia da ação psicodramática passível de ser metodologicamente explorada no momento mesmo da sua produção. O que aparece ao indivíduo no momento da ação psicodramática — da sua própria ação, da ação do outro, da cocriação da ação no encontro com os outros — é a revelação de aspectos de seu self. Trata-se, portanto, de uma experiência de ampliação, aprofundamento, aclaramento de seu ser como pessoa.

348 MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo, Cultrix, 1987, p 17.


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Quais seriam as estruturas fenomenológicas da ação psicodramática? A primeira a ser destacada, por ser a mais básica ou fundamental, é a de que a ação psicodramática ao mesmo tempo em que se assemelha à ação na vida real, se diferencia dela. A diferença reside justamente em seu caráter experimental, experiencial, de se tratar de uma simulação da vida real. De modo que é sempre uma ficção, um “como se”. Opera-se um tipo de epoché do mundo real, isto é, a realidade presente da vida social é colocada entre parênteses, dando lugar à livre expressão de conteúdos da imaginação que normalmente não são explicitados na ação do indivíduo nesse nível da realidade. Além disso, a ação encontra-se aberta a intervenções através de técnicas específicas, utilizadas para explorar determinados fenômenos que nela aparecem no momento da sua produção. No momento da ação, a pessoa se encontra presente para si mesma em seus diferentes aspectos relacionais: com o próprio corpo, com a sua história de vida, com o seu pathos, com os outros, com a linguagem, com a cultura, com o mundo, com Deus, com a realidade em seu todo. Neste sentido, a verdade do self encontra-se necessariamente presente no momento da ação psicodramática, mesmo que em grande parte latente ou inconsciente ao nível da realidade suplementar. O método do psicodrama se presta a propiciar uma experiência de revelação da verdade do self dos seus participantes através da investigação da ação psicodramática, a partir de diferentes perspectivas fenomenológicas: a) do corpo; b) da imagem; c) dos papéis; d) dos níveis da realidade; e) das técnicas psicodramáticas; f) da catarse; g) das etapas do desenvolvimento da espontaneidade; h) da normatividade da ação. Como a etapa fundamental do método psicodramática é a ação propriamente dita, vamos ater a nossa análise a ela, deixando à parte a análise das etapas de aquecimento e compartilhamento. Apesar destas etapas serem importantíssimas, para não nos estendermos excessivamente neste tópico, vamos deixar para abordá-las com o grau de detalhamento que se faz necessário em uma outra oportunidade.

5.2.2. Papéis e métodos O corpo será o ponto de partida da nossa análise fenomenológica da ação psicodramática. Antes de mais nada, faz-se necessário sublinhar que vamos circunscrever a nossa análise à situação de uma ação que acontece concretamente em um espaço físico (palco), com a presença corporal dos atores. Excluímos, por exemplo, o que se costuma denominar por psicodrama interno, quando a ação acontece no espaço da imaginação do sujeito, com o seu corpo imóvel e de olhos fechados. O corpo do ator na ação psicodramática é um corpo que sente, que se expressa gestualmente, que ri, que chora, que abraça, que se encolhe, que anda, senta, deita, levanta. É um corpo que é afetado pelo corpo do outro, como também é capaz de afetar o corpo do outro em seus encontros. De acordo com o nosso quadro ontológico, compreendemos o indivíduo humano na sua unidade psicofísica e espiritual, como um agente capaz de se autossituar como ser-no-mundo, aberto afetivamente através das suas impressões à autorrevelação da Vida, coextensivo intencionalmente ao Espírito, ao Self- Cosmos-Deus. Na ação psicodramática, a exemplo das ações cotidianas, tal unidade é expressada através de papéis. Como vimos, Moreno define papel como uma “unidade de experiência sintética em que se fundiram elementos privados, sociais e culturais [...] uma experiência interpessoal”349. Desse modo, o papel se constitui como interface relacional entre o corpo, a imagem psíquica e as faculdades espirituais da vontade e da inteligência, enquanto expressão simbólica do 349 MORENO, J. L. Psicodrama . São Paulo, Cultrix, 1987, p 238.


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self (eu, pessoa) em seu ser-no-mundo com outros selves. Fenomenologicamente falando, o self aparece na ação psicodramática situado em um drama, que o indivíduo experiência através de papéis, ao mesmo tempo em que o produz no encontro com os outros. Como o método psicodramático possibilita a revelação da verdade do self (eu, pessoa) através da experiência de papéis na ação psicodramática? Uma vez que o que aparece na imanência da ação psicodramática é compreendido como imagem simbólica, e os papéis como símbolos portadores de forças biopsicológicas, sociais e cósmicas que exprimem as potencialidades do self presentes na realidade suplementar, o método consiste em conduzir a ação de modo a investigar fenomenologicamente tais potencialidades, e criar formas de expressão para as mesmas através da própria ação. Isso é feito através do emprego de técnicas psicodramáticas no intuito de transpor as barreiras que as conservas culturais impõe à ação espontâneo-criadora, viabilizando a sua expressão. No momento em que os participantes atingem o estado de espontaneidade, os papéis sociais, ligados às conservas culturais, cedem lugar aos papéis psicodramáticos ou da fantasia, através dos quais a ação psicodramática, transcendendo a realidade presente, revela conteúdos ligados à realidade suplementar. A ação psicodramática torna assim possível ressignificar as representações da realidade, acrescentando mais vida, suplementando de vida, transformando as formas de vida. Neste sentido, é sempre como algo novo, como criação, que o que se encontra inconsciente, melhor dizendo, coinconsciente, como potencialidades do self na realidade suplementar, é representado através da ação espontâneo-criadora. O método do psicodrama se presta, portanto, a facilitar a expressão da ação espontâneo-criadora em situação experimental, contribuindo para a revelação da verdade do self dos seus participantes e a ressignificarão da realidade. Vejamos agora de que maneira o método do psicodrama lato sensu se particulariza de acordo com os diferentes tipos de interfaces relacionais dos papéis atualizados no momento da ação. A distinção básica estabelecida por Moreno a este respeito foi entre o psicodrama stricto sensu e o sociodrama. O psicodrama stricto sensu é definido como método de ação que lida com relações interpessoais e ideologias particulares.350 Em uma sessão de psicodrama, as atenções se voltam para o drama de um indivíduo em particular, eleito como protagonista do grupo. Os demais participam da ação psicodramática, como atores (egos-auxiliares) ou espectadores, na proporção das afinidades existentes entre os seus próprios contextos de papéis e o contexto de papel do sujeito central (protagonista). O método aqui se presta à investigação e possível resolução de conflitos interpessoais. Por exemplo, quando a cena dramatizada trata dos conflitos particulares entre o protagonista e membros da sua família, pai, mãe e um irmão, representados por outros participantes do grupo, que lhe servem como egos-auxiliares. Sendo assim, “mesmo a chamada abordagem grupal no psicodrama é, num sentido mais profundo, centrada no indivíduo”.351 O sociodrama, por sua vez, é definido como método de ação que lida com relações intergrupais e ideologias coletivas.352 Trata-se, neste sentido, de uma forma especial de psicodrama que projeta o seu foco sobre os fatores coletivos. Nas palavras de Moreno, “o verdadeiro sujeito de um sociodrama é o grupo. [...] Mas como o grupo é apenas uma metáfora e não existe per se, o seu conteúdo real são as pessoas inter-relacionadas que o compõe, não como indivíduos privados, mas como representantes de uma mesma cultura”.353 Isso quer dizer que em

350 Idem, p 411. 351 Idem, p 412. 352 Idem, p 411. 353 Idem, p 413.


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um sociodrama os atores não representam papéis como indivíduos privados, com seus conflitos pessoais, a partir da sua história de vida particular; mas, ocupados em expressar características representativas de uma dada cultura. A cena dramatizada em um sociodrama se presta assim a investigar e resolver conflitos coletivos. Por exemplo, quando a cena dramatizada trata do conflito coletivo entre a diretoria e o grupo de operários de uma empresa. Neste caso, um ator representando o papel de um operário não está expressando propriamente o seu drama privado, mas o drama coletivo vivido pelo grupo de operários. Esclarece-se, neste sentido, a distinção feita por Moreno entre papéis psicodramáticos e sociodramáticos. Os papéis privados apresentam-se como um revestimento que confere aos papéis coletivos uma coloração individual, algo diferente em cada caso. É o pai, a mãe, o amante, o cavalheiro, o soldado, versus um pai, uma mãe, um amante, um cavalheiro, um soldado. [...] Os papéis que representam ideias e experiências coletivas denominam-se papéis sociodramáticos; os que representam e ideias individuais chamam-se papéis psicodramáticos.354 Moreno nos mostra aqui os limites da abordagem psicodramática, centrada no drama privado, individual, de um indivíduo, e a necessidade prática de diferenciá-la, com o intuito de adequar o método para um outro objetivo, o de abordar o drama coletivo de um grupo. Tratam-se, portanto, de diferentes tipos de interfaces relacionais dos papéis atualizados no momento da ação: a dos papéis psicodramáticos, relativa à interface interpessoal; e a dos papéis sociodramáticos, relativa à interface intergrupal ou coletiva. Em nosso entendimento, há um outro limite que pode ser metodologicamente transposto. Apesar de Moreno não ter se pronunciado explicitamente a este respeito, encontramos inúmeras passagens em seus escritos que se orientam nesta direção, qual seja, a do método do cosmodrama. Para Moreno, “o homem é um homem cósmico; não apenas um homem social ou um homem individual”.355 O homem é um ser cósmico dado a sua capacidade de estabelecer relações com a multiplicidade de partes constitutivas do universo, na medida da expansão do seu self. Realiza este movimento de expansão através da sua capacidade de retrojeção 356, denominação proposta por Moreno à capacidade de receber e absorver não só de pessoas, mas também de animais, de coisas inanimadas como uma pedra ou uma flor, de entidades mitológicas, de personagens literários, seus modos de ser. Segundo Moreno, o mecanismo da retrojeção difere do da projeção, pelo qual se atribui ao outro — projeta-se no outro — modos de ser que dizem respeito a sua própria pessoa e não realmente ao outro. De maneira que, enquanto na projeção se presume como objetivo algo subjetivo, na retrojeção se reconhece subjetivamente, ou melhor, intimamente, pessoalmente, algo objetivo. Fazendo parte da rede multidimensional de relações do Self, o self de cada indivíduo humano pode se retrair ou se expandir conforme as suas relações com os outros e o meio ambiente. O indivíduo humano tem a capacidade quase infinita de retrojetar o universo objetivo, integrando o Self em seu próprio self; em suma, expandindo existencialmente seu próprio self no sentido do Self. Proponho que falemos do método do cosmodrama e de papéis cosmodramáticos para definir a criação do drama a partir do poder de retrojeção do self, possibilitando ao participante expressar as suas relações e conflitos com o universo como um todo, com o Self. Trata-se, neste sentido, da abordagem do drama cósmico, em que todos nós nos encontramos transpessoal, arquetípica e universalmente inseridos.

354 Idem, pp 410-411. 355 MORENO, J. L. Psicodrama. Teoria da ação & Princípios da prática. Op cit. p 31. 356 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, pp 21-22.


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O termo cosmodrama é pouco usual, para não dizer inexistente, entre os psicodramatistas. A bem da verdade, o mesmo foi cunhado Gaston Bachelard, cujos estudos sobre a imaginação abordamos no capítulo 4.2. Em seu livro “A terra e os devaneios da repouso”, estuda o que denomina como instâncias poéticas, sendo estas instâncias relativas à “psicologia do sujeito que imagina a sua expressão”.357 Haveriam três instâncias de expressão imaginativa relacionadas às três categorias existenciais da Daseinanálise descritas por L. Binswanger: Eigenwelt — mundo pessoal, Mitwelt — mundo inter-humano, e Umwelt — mundo ambiente em seu todo, o mundo real; que dariam origem a três modos distintos de poesia. Correspondentemente, Bachelard propõe que o psicodrama seria a instância de expressão imaginativa relacionada ao Eigenwelt, na qual o sujeito imagina a sua expressão no sentido de libertar-se de seus fantasmas pessoais, relacionados a situações traumáticas ocorridas em sua história pessoal, geralmente na infância, aos recalcamentos, à estase desta libido no inconsciente, como nos ensina a psicanálise de Freud. O sociodrama seria a instância relacionada ao Mitwelt, na qual o sujeito imagina libertar-se das opressões em que se encontra submetido relativamente às ideologias coletivas de seu meio social imediato. Para nos libertarmos dos imperativos do mundo dito real, Bachelard sugere que “seria preciso então trabalhar o Umwelt, [...] fundaríamos uma instância psíquica particular a que poderíamos muito bem chamar a instância do cosmodrama”.358 Segundo Moreno, o homem é um ser cósmico na medida em que se volta para o sentido da vida, que em primeira e última instância é atribuído pelo Cosmos, e não pelo homem. Relembremos as suas palavras, já por nós citadas:

A existência do universo é importante, é realmente a única existência significativa; é mais importante que a vida e a morte do homem como indivíduo, como tipo de civilização, como espécie. Depois da ‘vontade de viver’ de Schopenhauer, da ‘vontade de poder’ de Nietzsche, e da ‘vontade de valer’ de Weininger, eu partilho a ‘vontade do valor supremo’ que todos os seres pressentem e que os une a todos. Daí coloquei a hipótese de que o Cosmos em devir é a primeira e a última existência e o valor supremo. Apenas ele pode atribuir sentido à vida de qualquer partícula do universo, seja o homem ou um protozoário. A ciência e os métodos experimentais, se têm a pretensão a serem verdadeiros, precisam ser aplicáveis à teoria do Cosmos.359 Tendo em vista a importância fundamental da existência do Cosmos, Moreno se coloca a procura de métodos experimentais aplicáveis à obtenção de uma forma cósmica de compreensão. É neste sentido que Moreno nos deixou indicações precisas, ainda que apenas esboçadas, sobre os métodos cosmodramáticos: O grupo terapêutico é, pois, não apenas um ramo da medicina e uma forma de sociedade, mas, também, um primeiro passo no cosmos. A questão que surge é: haverá uma forma cósmica de compreensão? 360 No âmbito do psicodrama, através de seus numerosos métodos, os fenômenos cósmicos podem ser integrados dentro do processo terapêutico. [...] Assim como nossos antepassados atingiram 357 BACHELARD, G. A terra e os devaneios da repouso. São Paulo, Martins Fontes, 1990, p 58. 358 Idem, p 59. 359 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e psicodrama. Op cit. p 15. 360 Idem, p 15.


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essas mudanças por meio de fábulas e mitos, nós tentamos encontrá-los em nossa época com novos expedientes. É a essa altura que as técnicas da realidade suplementar na cosmodinâmica tomam a dianteira.361 Era, portanto, necessário, um método para refazer uma síntese dessas experiências do magma, desse todo, da realidade suplementar do mundo supra-verbal e pré-verbal do qual como parte se constitui o mundo verbal.362 Em sua busca, Moreno se dá conta de que há um âmbito da experiência condizente às primeiras etapas do desenvolvimento humano, que remontam às formas de vida das assim chamadas culturas primitivas ou arcaicas e da vida pré-verbal da criança, e que pode ser acessível ao homem moderno através dos mitos, sonhos, fantasias e devaneios, como vimos, as formas mais primárias de conhecimento. Estas formas da comunicação, que pela sua gestualidade, sensualidade, musicalidade etc extrapolam os limites da linguagem verbal, decorrem das experiências originárias de identidade com o mundo real. Segundo a teoria da matriza de identidade de Moreno, antecipando o que veremos em detalhes no próximo capítulo, a primeira etapa do desenvolvimento humano, chamada de primeiro universo ou identidade total, corresponde a este âmbito de experiência. Trata-se de um momento em que ainda não há divisão, mas unidade, isto é, identidade entre o sujeito e o objeto na ação. São formados aqui os papéis psicossomáticos, na experiência de comunicação interpessoal, ao mesmo tempo, supra-verbal e pré-verbal, com a mãe, ou outras pessoas que representem o papel materno. Apenas em uma segunda etapa da matriz de identidade, passa a haver a divisão do universo emocionalmente percebido em fenômenos reais e fictícios, surgindo gradualmente um mundo social e um mundo da fantasia, ou imaginário. De maneira que Moreno reivindica, em uma palavra, a abordagem do mundo da fantasia ou imaginário como meio de abarcar a totalidade do afetivo e existencialmente vivido. Daí concluir sobre a derradeira importância do trabalho psicodramático com tais formas de expressão que remontam as etapas primárias do desenvolvimento humano, acessíveis à experiência através da realidade suplementar, dirigindo assim os seus participantes a uma forma cósmica de compreensão. Delineado o objetivo do cosmodrama, podemos dizer que o método do cosmodrama nasce com o direcionamento da ação para a abordagem de aspectos universais, arquetípicos, transpessoais, que transcendem as particularidades culturais e ideológicas de uma determinada coletividade, representadas em um sociodrama, ou de um determinado indivíduo, representadas em um psicodrama. A diferença entre os métodos se faz acompanhar pela diferença entre modalidades de papéis. Se falamos de papel psicodramático como a modalidade que representa ideias e experiências pessoais privadas, e de papel sociodramático como a que representa ideias e experiências coletivas, podemos então falar de papel cosmodramático como a modalidade que representa ideias e experiências universais, arquetípicas e transpessoais. Encontramos em Moreno dois significados distintos para a noção de papel psicodramático. Um é justamente o que acabamos de apresentar. O outro significado é o que se contrapõe a noção de papel social. Voltemos então à teoria da matriz de identidade para melhor compreendermos a origem da distinção entre

361 MORENO, J. L. Psicodrama. Teoria da ação & Princípios da prática. Op cit. p 32. 362 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e psicodrama. Op cit. p 16.


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papel psicodramático e papel social. Segundo Moreno, a primeira experiência que o indivíduo humano tem como bebê, após o seu nascimento, é de unicidade com o real, isto é, de identidade entre o sujeito e o objeto na ação. De modo que, no primeiro universo, momento da experiência original de identidade com o self, a preparação da ação da criança ainda não foi dividida, havendo um só conjunto de papéis em que os componentes reais e imaginados encontram-se fundidos: os papéis psicossomáticos. A passagem para o segundo universo acontece com a aquisição da linguagem verbal e o surgimento da brecha entre a fantasia e a realidade, quando a experiência original de identidade com o self é perdida, dando origem à separação diferenciadora entre sujeito e objeto. Formam-se assim dois conjuntos de processos de aquecimento preparatório de atos — um para atos de realidade, e outro para atos de fantasia —, surgindo dois novos conjuntos de papéis: os papéis sociais e os papéis psicodramáticos. Enquanto os papéis sociais são desempenhados nos atos de realidade da criança — papel de filho, irmão, amigo, aluno —; os papéis psicodramáticos são desempenhados como “personificações de coisas imaginadas, tanto reais como irreais”363 nos atos de fantasia — papel de médico, mãe, super-herói — das brincadeiras da criança. De maneira que a outra definição de papel psicodramático é a do seu significado genérico, como todo e qualquer papel desempenhado no “como se”. Daí falarmos de três conjuntos de papéis psicodramáticos: papéis psicodramáticos propriamente ditos, em seu significado específico, quando o sujeito imagina a sua expressão dentro do contexto da sua vida pessoal privada; papéis sociodramáticos, quando da sua expressão dentro do contexto coletivo, histórico e ideológico em que se situa; e papéis cosmodramáticos, quando da sua expressão universal e atemporal. Apesar desta divisão, permanece existindo para sempre uma base psicossomática, ao mesmo tempo pré-verbal e supra-verbal, que mantém preservada a experiência original de unicidade com o real, em outras palavras, de ligação entre o self humano e o Self, Cosmos ou Deus. Esta ligação entre o self e o Self — a parte e o todo, o manifesto e o latente, o aparente e o profundo, o visível e o invisível, o explícito e o implícito, o consciente e o inconsciente — é realizada através do fenômeno da imagem. As formas de expressão através das imagens correspondem às experiências de identificação com os outros e o mundo. Nas imagens, os papéis surgem como unidades de mediação entre os esquemas sensório-motores e os gestos espontâneos do corpo físico, e as normas, valores e costumes sociais comunicados pela linguagem numa dada sociedade. Em suma, a imaginação é o fator de religação do self com a totalidade do real, após a perda da experiência original de unicidade com o mesmo. Ainda sobre a classificação de papéis na teoria moreniana. Alfredo Naffah Neto, em seu livro “Psicodrama – Descolonizando o imaginário”, formula a noção de papel imaginário. Trata-se de um tipo de papel que tende a permanecer circunscrito a um mundo imaginário, quando a imaginação se encontra comprimida e colonizada em um espaço restrito e isolado, solipsista, pela normalização dos papéis sociais.364 De modo que um papel imaginário é experienciado, em um primeiro momento, apenas no campo da imaginação do sujeito. Quando, em um segundo momento, passa a ser desempenhado na ação psicodramática, emergindo como uma nova síntese, só então pode ser chamado de papel psicodramático. Esta clivagem da noção de papel psicodramático em dois momentos, proposta por Naffah, faz sentido na medida em que compreendemos a sua motivação. Presta-se a diferenciar dois diferentes status nascendii da gênese de papéis destinados a atos da fantasia, ao “como se”. Enquanto a gênese do papel imaginário é dada pelos processos da imaginação colonizada ou imaginação reprodutora (de acordo com a terminologia por nós utilizada), condicionada pelas conservas culturais; a gênese do papel psicodramático propriamente

363 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 129. 364 NAFFAH NETO, A. Psicodrama - Descolonizando o imaginário. São Paulo, Brasiliense, 1979, p 213.


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dito é dada pelos processos da imaginação criadora, na abertura à realidade suplementar, possibilitada pela ação psicodramática.

5.2.3. Os níveis de realidade Penso que esta diferenciação é de grande importância ainda em outro aspecto da teoria. Ela nos auxilia a compreender a gênese dos três conjuntos de papéis em relação aos três níveis da realidade descritos por Moreno: o conjunto de papéis imaginários se encontra ao nível da infrarrealidade; o de papéis sociais, ao nível da realidade presente; e, cunhando um novo termo, o de papéis imaginais, ao nível da realidade suplementar. A denominação papel imaginal é inspirada no termo Imaginal adotado por Henri Corbin para designar o locus da Imaginação criadora, cuja função é a de religação com o Self; diferenciando-o do termo Imaginário, como locus da imaginação reprodutora, quando a imaginação se encontra colonizada pela normalização ideológica dos papéis sociais, de acordo com Naffah. Sendo assim, penso que podemos reservar o uso do termo papel imaginário àqueles condicionados pelas conservas culturais, em suas formas reduzidas a estereótipos ideológicos; e o uso do termo papel imaginal àqueles que viabilizam a expressão e revelação do self através da abertura à realidade suplementar. Na ação psicodramática, independentemente da sua aplicação como psicodrama, sociodrama ou cosmodrama, os papéis apresentam uma mistura de elementos referentes aos diferentes nível da realidade, bem como, um misto de elementos da imaginação reprodutora e da imaginação criadora, imaginários e imaginais, transferenciais e télicos, imanentes e transcendentes. Por exemplo, quando da representação de um papel cosmodramático, apenas idealmente este corresponderá a um papel imaginal, digamos “puro”. Poderá sempre haver elementos psicodramáticos e/ou sociodramáticos misturados. O mesmo raciocínio vale para os outros tipos de papéis. O importante é que a interpretação do seu significado não seja conduzida apenas na linha dos processos imanentes, causais, transferenciais, imaginários; mas que se possa também ser conduzida na linha dos processos transcendentes, teleológicos, télicos, imaginais. Em todos os casos, a direção da ação dramática deve sempre seguir o curso da espontaneidade através da expressão/revelação das imagens espontâneo-criadoras. A infrarrealidade é o nível que tende a aparecer no consultório psicanalítico, no relato do paciente sobre o que está acontecendo consigo. Permanece no nível da imaginação, do pensar, do sentir, do ter medo, e assim por diante, não chegando a se presentificar num diálogo genuíno, isto é, numa confrontação interpessoal direta como normalmente acontece ao nível da realidade presente, como nível concernente à vida diária, às nossas relações mútuas com as pessoas e coisas que nos afetam. Já a realidade suplementar, representa as dimensões intangíveis, invisíveis na realidade da vida, não inteiramente experimentadas ou expressas. Corresponde ao excedente de significado que tende a ficar oculto sob formas ideológicas fixas de interpretação, dependendo da ambiência sociocultural em que o indivíduo se encontre inserido. A obra de arte, o acontecimento histórico, o relacionamento amoroso, a experiência religiosa, são exemplos típicos de fatos nos quais o indivíduo se vê diante de um excedente de significado que resiste a toda tentativa de redução, sem que se traia a sua verdade. Diante, por exemplo, de uma obra de arte, é preciso interpretá-la num trabalho de interpretação infinito, uma vez que a verdade que ela expressa e, ao mesmo tempo, revela, resiste a se exaurir. A abertura à realidade suplementar nos permite, neste sentido,


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transcender as conservas culturais que nos limitam a reduzir o que nos é dado a sentir e pensar. Cumpre-se lembrar que muitos autores de psicodrama se referem à realidade suplementar apenas como técnica psicodramática, desconsiderando que se trata de um nível da realidade. Como técnica, é empregada para a criação de uma cena que não aconteceu de fato na vida real, mas que surge como uma alternativa possível para uma dada situação da vida real. Todavia, o uso da “técnica” desprovido da compreensão de seu fundamento ontológico pode reduzir a ação psicodramática à mera demonstração de uma “pseudoverdade” de caráter ideológico. Acaba por não se alcançar a expressão espontâneo-criadora, portadora da verdade, permanecendo sob o domínio das conservas culturais. Nada melhor do que um exemplo para compreender o âmago desta questão. Vamos imaginar a seguinte situação. Estamos em uma sessão de psicodrama diante de um protagonista que lamenta não ter chegado a tempo de se despedir do pai no hospital, antes da sua morte. O diretor propõe a ele criar uma cena utilizando a técnica da realidade suplementar, neste caso, a cena em que o sujeito consegue chegar a tempo de encontrar o pai com vida. Na montagem da cena, o sujeito diz ao pai, representado por um ego-auxiliar, que o ama. O diretor pede então que o sujeito tome o papel do pai, e responda a ele. Este o faz dizendo: — Eu também te amo, agora posso morrer. Trata-se da chamada cena de reparação. Diretor e protagonista se dão por satisfeitos, e a cena termina por aí. Ao final da sessão, o sujeito agradece ao diretor pelo sucesso da sua condução. O exemplo pode parecer por demais caricatural, mas ilustra o modo tendencioso se utilizar a realidade suplementar em psicodrama. Neste caso, uma questão deve ser levantada: trabalhou-se de fato ao nível da realidade suplementar? Ou, na intenção de promover uma cena reparadora, apenas instrumentalizouse um happy end, satisfazendo a demanda de alívio da culpa da pessoa pela sua falta moral? Colocando em outros termos, a cena serviu como abertura para a expressão reveladora da verdade da situação? Suponhamos que a verdade da situação fosse o medo dessa pessoa de não ser amado pelo pai em seu momento derradeiro, sendo este o real motivo de não ter se empenhado em chegar a tempo. Sendo assim, a cena acima descrita teria servido para obstruir o acesso à verdade, prestando-se a uma falsificação, a uma mistificação. Resultado: a ação psicodramática fora utilizada a serviço da conserva cultural, permanecendo ao nível da infrarrealidade, com o aval técnico do profissional de psicodrama. Justamente o que Moreno tanto combateu. Conclui-se que outras propostas cênicas poderiam ter sido criadas de acordo com a compressão do conceito de realidade suplementar como nível ontológico da realidade e locus da experiência da verdade. É preciso, portanto, ter-se em mente que a realidade suplementar é a forma de manifestação primária do Self. Como seres cósmicos, os indivíduos humanos encontram-se interligados de modo transpessoal à realidade em seu todo através de uma rede multidimensional de relações tendo como fundamento ontológico este excedente de significação. Este se manifesta através de imagens na ação espontâneocriadora como algo que precede e contém toda possibilidade de ser, viver e criar. A diversidade de interações produzidas no próprio acontecer da ação em nossa existência pessoal e histórica aparece, em suma, na forma de imagens que emergem da realidade suplementar com um excedente de significação que nos é dado a perceber, sentir, intuir, pensar, conhecer. A realidade suplementar seria este próprio excedente de significação. O sentido teleológico do Self é revelado na medida em que as imagens da realidade suplementar, viabilizando o restabelecimento do vínculo originário entre pessoa e verdade, possibilitam um novo patamar de compreensão da verdade, que por sua vez se torna abertura para compreensões ulteriores da verdade, mais profundas e ampliadoras. Os processos de expansão e autointegração dos nossos selves individuais ocorrem, dessa maneira, através da revelação do sentido do Self que se encontra


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como potencialidade na realidade suplementar como um excedente de significação. E aqui voltamos a falar do fenômeno da retrojeção, o que nos ajudará a definir mais precisamente a diferença entre realidade suplementar e infrarrealidade. Moreno, como vimos, cunhou o termo retrojeção para denominar o mecanismo pelo qual pessoa é capaz de assimilar sensorial e intuitivamente características ou atributos de si mesma, do outro e do mundo, em seus reais modos de ser. Acrescentemos agora que a pessoa assimila através da retrojeção a verdade contida nas imagens que emergem da realidade suplementar. Lembremos também que o fenômeno da retrojeção contrasta com o fenômeno da projeção, descrito pela psicanálise. Enquanto na projeção se presume como real algo meramente subjetivo, na retrojeção se reconhece subjetivamente algo real. É que numa projeção se atribui ao outro, transferem-se ao outro, em função de demandas inconscientes, características ou atributos que dizem respeito à própria pessoa e não realmente ao outro. De modo que a pessoa acede à realidade suplementar através do mecanismo da retrojeção, ou se enclausura ao nível da infrarrealidade condicionada pelas suas projeções transferenciais. Neste sentido, a infrarrealidade é o contraponto da realidade suplementar como fator determinante da realidade presente. Assim como para Freud, também para Moreno a aparência da realidade oculta algo que na verdade a determina. Freud denominou este algo como o inconsciente. A noção de inconsciente, anteriormente a Freud, fazia simplesmente referência àquilo que não se encontrava no campo da consciência. Com vimos em capítulo anterior, Freud definiu o inconsciente como uma instância psíquica, com funcionamento e características próprias, separada da consciência pela ação de mecanismos que operam o recalcamento de certos conteúdos. Este recalcamento tem com função evitar a angústia gerada por conflitos entre as pulsões sexuais e as exigências morais em um indivíduo. Reativamente, os conteúdos inconscientes aparecem deslocados, na forma de sintomas, entre estes, o da transferência. De modo que o inconsciente para Freud é uma instância pessoal, que diz respeito apenas à dinâmica intrapsíquica de um indivíduo. Moreno não se opôs à interpretação do inconsciente de Freud. Pelo contrário, reconheceu a sua validade heurística. Contudo, interessado na dimensão interpessoal do encontro, buscou definir um conceito que contemplasse a ideia de estarmos interligados uns aos outros. Neste sentido, cunhou o termo coinconsciente supondo a existência de uma realidade suplementar, comum às pessoas implicadas numa situação relacional, num grupo, numa comunidade. O nível da realidade presente, o nível de estruturação das nossas vidas diárias, na sua temporalidade histórica, resulta da dialética entre a realidade suplementar, o nível ontológico de estruturação da realidade que se abre à experiência através da espontaneidade, e a infrarrealidade, o nível derivado, ideológico, de estruturação da realidade, concernente ao domínio das conservas culturais. A ação psicodramática, concebida como abertura à realidade suplementar, viabiliza a expressão reveladora da verdade. Contudo, por outro lado, pode também se limitar à reprodução da infrarrealidade, não passando de expressão falsificadora, mistificadora, ideológica. Qual o lugar da infrarrealidade, entendida como inconsciente freudiano — retorno do recalcado na forma de projeções falsificadoras da realidade — no contexto da ação psicodramática? O lugar de fator inibitório da espontaneidade e de resistência à realidade suplementar, a ser trabalhado através de técnicas psicodramáticas a fim de que o indivíduo possa transcendê-la através da criação de novas formas de expressão de seu self.


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5.2.4. Tele e Trasnferência Os conceitos morenianos de tele e transferência são de importância central na compreensão desta questão. Continuemos então a nossa abordagem do conceito de tele, iniciada no capítulo anterior. Moreno define tele como um fenômeno interpessoal, no qual os parceiros envolvidos em uma dada situação, no momento em que a experimentam, fazem conjuntamente uma avaliação intuitiva adequada dos atributos reais desta situação. Em outras palavras, compartilham a aquisição de determinada visão sobre a situação experimentada que se demonstra adequada, verdadeira. Podemos dizer que uma percepção adquirida através do processo tele é portadora da verdade. Esta verdade não se encontrava dentro dos sujeitos, como algo do qual eram portadores inconscientes, mas na realidade suplementar. Neste sentido, a realidade suplementar não se adéqua ao conceito de inconsciente da psicanálise de Freud, que limita o seu campo ao indivíduo, enquanto instância intrapsíquica. O locus da realidade suplementar se encontra no “entre” das relações que estabelecemos com os objetos, os outros e o mundo. Para representar a interpessoalidade do estado de inconsciência de uma dada realidade suplementar, Moreno cunhou um novo conceito, mais adequado: o de coinconsciente. Um conceito que contempla a ideia de estarmos interligados uns aos outros no contexto de uma determinada situação relacional, em um grupo ou comunidade, interligação esta dada pelo self. Desse modo, podemos dizer que, enquanto a percepção da realidade presente é compartilhada conscientemente, a realidade suplementar se encontra coinconsciente. Moreno não chegou a explicitar tal ideia, mas podemos reconhecê-la implícita na seguinte passagem: Devemos buscar conceitos construídos de tal modo que a indicação objetiva da sua existência não decorra das resistências de uma psique individual, mas, sim, de uma realidade ainda mais profunda na qual estejam entretecidos os inconscientes de diversas pessoas, um coinconsciente.365 Ao compartilhar uma dada situação, cada indivíduo que dela participa, em estado de espontaneidade, pode lançar seu olhar pessoal, e expressar, de modo pessoal, a realidade suplementar. A realidade presente é, assim, originariamente por nós constituída, no momento de nossas “relações télicas”, através de atos criadores, ou melhor, cocriadores. Tudo faz parte de um mesmo processo: quando se é espontâneo, a realidade suplementar nos é revelada através da nossa expressão pessoal da verdade nela presente. De maneira que é no aqui e agora da ação compartilhada que cocriamos a realidade presente. Em contrapartida, sob o domínio das conservas culturais, a espontaneidade é inibida havendo um rompimento do vínculo originário entre pessoa e verdade. Neste caso, a expressão pessoal mascara a verdade, o self. Deixa de existir identidade entre a expressão pessoal e a verdade, dando lugar a identificação com as mais diversas conservas culturais: formas fixas, superficiais, estereotipadas, de sentir, pensar e agir, condicionadas pela situação histórico-ideológica. A expressão é reduzida a uma racionalidade abstrata, idealizada e vazia de sentido, correspondente à infrarrealidade. Segundo Freud, os conteúdos recalcados tendem a retornar à consciência deslocados, mascarados. Um das formas pelas quais isto acontece é descrita por ele como transferência. Através do mecanismo da transferência, uma pessoa projeta na outra, transfere a outra, certos conteúdos — sentimentos, fantasias — que não se originaram na situação presente, mas no passado, na tentativa de satisfazer indiretamente seus desejos recalcados. De maneira que a realidade é sempre derivada de algo que se transfere do passado

365 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. Op cit, pp 61-63.


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para o presente, do inconsciente para a consciência. A tarefa que então se impõe é a do desmascaramento: deslocar-se ao passado para decifrar o que jaz oculto. A crítica de Moreno nos faz compreender que o que Freud descreveu foi a percepção irreal que uma pessoa tem da outra, que distorce e confunde a percepção real dada pelo encontro télico. Pode inclusive acontecer da relação entre duas pessoas ficar bilateralmente aprisionada na infrarrealidade da transferência. Aliás, é o que habitualmente acontece na vida cotidiana. O próprio Moreno nos mostra que o fenômeno da transferência é interpessoal. No entanto, subjacente a todo e qualquer vínculo transferencial há também complexas relações télicas.366 De fato, a grande maioria das relações interpessoais encontradas na vida cotidiana é formada por um misto de tele e transferência. Isso porque, ontologicamente, a relação télica é originária, enquanto a transferencial, derivada. Neste sentido, o método do psicodrama, em vez de se ocupar em desmascarar a transferência, procura reestabelecer a espontaneidade da relação télica. Como então pensar a questão do desejo no quadro da teoria do psicodrama? Para responder a esta questão, comecemos com uma breve digressão, ainda sobre a psicanálise, antecipando o que mostraremos com mais detalhes no próximo capítulo. Na psicanálise, a formação do inconsciente é produzida por uma falta, mais especificamente, a falta sentida por um sujeito de um objeto perdido. Na nostalgia de recuperá-lo, o sujeito fantasia a retomada da sua posse projetando-a, transferindo-a a um outro. Tende assim a vagar de transferência em transferência, nas suas relações com as coisas e as pessoas pelo mundo, sempre deslocado em relação a si mesmo. Isso porque o desejo nunca poderá ser realizado totalmente, pois a falta é constitutiva, originária. Neste sentido se diz que a psicanálise tem como fundamento uma ontologia negativa. O sujeito encontra-se condenado a se deixar iludir em vão pela esperança de dar fim a sua busca interminável. O que é expresso — a transferência — mascara algo mais profundo — a falta — a ser desocultada. De modo que em psicanálise, desconsiderando-se o vínculo ontológico entre pessoa e verdade, não se consegue escapar da estrutura ideológica do pensamento, à confrontação sem fim das relações entre as representações. Na teoria do psicodrama, alternativamente, o coinconsciente nos é dado não como o produto de uma falta, mas pelo excedente de significação da realidade suplementar. O coinconsciente é o que nos é dado a perceber intuitivamente como o que se apresenta originariamente no momento da relação interpessoal. Assim, o que é expresso revela a verdade presente no momento da relação interpessoal como autorrevelação da vida, nos termos de Henry, anterior a qualquer representação. Nos termos de Moreno, o desejo é a “vontade do valor supremo” que todos os indivíduos humanos pressentem e que os une a todos. O Self — a Vida, o Cosmos, Deus — é o que se manifesta como um excedente de significação que nos é dado a perceber, sentir, pensar, conhecer. O desejo, na teoria do psicodrama, é desejo do Self. Neste sentido, diferentemente do que apregoa a psicanálise, o desejo nunca poderá ser realizado totalmente, não exatamente pela falta originária do significante a ser incessantemente preenchida, mas, porque o excedente de significação, constitutivo, originário, que nos é dado através da realidade suplementar, implica o homem na liberdade de se aprofundar mais e mais na busca pessoal da verdade e da singularização da sua identidade. Este é o sentido da expansão do self. Há, na grande maioria das relações interpessoais encontradas na vida cotidiana, um misto de tele e transferência. De fato, apesar de a tele ser originária, os processos transferenciais podem começar a acontecer logo nos primeiros contatos entre a mãe e o bebê. Uma mãe ansiosa, por exemplo, pode começar a superalimentar o seu bebê, o que acaba sendo complementado pelo mesmo, não só aceitando 366 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 289.


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o que lhe é oferecido, mas solicitando ainda mais. Forma-se então um círculo vicioso, de fundo afetivo, que leva o bebê a se tornar obeso. Neste caso, faz-se necessária uma reestruturação do vínculo. A mãe precisa aprender a perceber, telicamente, a real necessidade alimentar do seu bebê. Precisa aprender a se relacionar com ele a partir das necessidades dele, e não da sua própria patologia. Penso que este exemplo ilustra bem o que acontece nas relações interpessoais de modo geral. As pessoas são marcadas “negativamente” por transferências, desde o início de suas vidas, e ao se relacionar com os outros, passam, por sua vez, a transferir a estes o que lhes foi uma vez transferido, numa série que tende a não ter fim. Moreno chama a relação télica de encontro. O verso de seu poema — “então verei você com seus olhos, e você me verá com meus olhos” — sintetiza maravilhosamente bem o significado de encontro na sua teoria. Dentro da lógica da psicanálise, o encontro, conforme formulado por Moreno, é impossível. Diria um psicanalista: o indivíduo não é transparente nem para si próprio, quanto mais para um outro! Nesta perspectiva, só é possível interpretar a transferência conduzindo o sujeito a reconhecer a sua falta originária. O que, para um psicanalista, já se trata de um trabalho e tanto! O homem está condenado, de modo determinista, a incessantemente transferir. A ontologia moreniana rompe com este determinismo. Torna possível a transcendência do mesmo. Como? Na medida em que a relação transferencial se transforma em encontro. Em outras palavras, na medida em que o “amor narcisista”, em que um indivíduo vê no outro nada além da própria imagem projetada (transferida) no outro, se transforma em “amor ao próximo”. Este tipo de transformação acontece naturalmente na vida cotidiana quando se diz, por exemplo, que, num relacionamento de casal, a paixão se tornou amor. No estado de paixão, o “amado” adquire uma imagem idealizada, projetada pelo “amante”, que em parte corresponde a seus atributos reais, mas, em outra, não. É irreal. O “amado”, por sua vez, pode aceitar tal projeção, acreditando que seja real, passando a corresponder afetivamente ao “amante”, da mesma forma, de modo mais ou menos idealizado. Com o tempo, a idealização vai sendo percebida pelo “amante”, e retirada do “amado”, que, por sua vez, procede da mesma maneira. Passam a se reconhecer como são, a partir e através de seus atributos reais, com liberdade, e respeito pelas diferenças encontradas entre si, em outras palavras, pela singularidade existencial da identidade de cada um. Em termos morenianos, falamos de um caso de transferência interpessoal que, através do desenvolvimento de uma mútua percepção télica, evoluiu para a forma do encontro. O que não significa perda de envolvimento afetivo ou erótico. Pelo contrário, desfeita a transferência, o afeto, baseado na verdade do real, tende a se tornar ainda mais profundo e intenso. Com os conceitos de tele e encontro, Moreno abriu espaço para o amor, ou melhor, para o conceito de transcendência através do amor em psicologia. Considerado pela psicanálise mera projeção (transferência) de atributos humanos numa imagem, Deus foi banido da ciência psicológica como algo de ordem ilusória, irreal. Lembremos que, na tradição cristã, Deus é amor. Compreendemos então o motivo pelo qual em psicanálise não há saída do plano das transferências: não há abertura para a transcendência através do amor. Sem a abertura para a transcendência, o homem permanece aprisionado na imanência do determinismo de suas pulsões sexuais e impulsos agressivos, sempre deslocados, mascarados, ou atuados na realidade presente (acting-out) de maneira irracional. O imperativo religioso cristão do amor ao próximo revela a possibilidade de ir além deste determinismo. Contudo, a maior contribuição de Moreno certamente não foi ter teorizado sobre a transcendência através do amor na vida psicológica, mas ter elaborado técnicas de realidade suplementar que abrem a experiência da ação psicodramática à transcendência através do amor. Encontramos a confirmação disto nas seguintes palavras de Moreno: Bem recentemente, eu falei para um grupo de teólogos que me perguntaram: — Qual é a


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diferença entre a antiga proposta cristã de ‘amar o próximo’ e a sua proposta? Eu respondi: — Bem, nós não melhoramos muito o ‘amar ao próximo’, exceto pelo fato de termos acrescentado ‘por meio da inversão de papéis’.367 Através da inversão de papéis, as pessoas aprendem a deixar de lado os seus desejos e razões para melhor compreender telicamente as outras. Isto é possível justamente pela abertura que a realidade suplementar proporciona. Entendido morenianamente, o ato de amor é a própria expressão espontâneocriadora no momento do encontro. Todo ato de amor é um ato cocriador por excelência, instituinte de um novo patamar de realidade presente, a partir da percepção de elementos do outro na abertura para a realidade suplementar. No mais, não poderia haver manutenção da união entre as pessoas se houvesse apenas transferência sem um mínimo de tele, isto é, sem relação com o Self enquanto fundamento de toda coesão interpessoal. Como nos ensina Moreno, o princípio fundamental de todas as formas de relação interpessoal é o encontro e não a transferência.368 A compreensão da anterioridade ontológica do encontro nos permite, ao utilizarmos o método do psicodrama, não nos ocupar primeiramente com o desmascaramento da transferência, mas em reestabelecer a tele entre as pessoas, viabilizando a busca amorosa da verdade nas relações interpessoais; o que, consequentemente, acaba por revelar a mentira da transferência. Dito de outra maneira, em vez de permanecermos nos limites da infrarrealidade, segundo a proposta da psicanálise, servimo-nos da inversão de papéis — e demais técnicas psicodramáticas — para a luz da realidade suplementar clarear os meandros da infrarrealidade. Precisamos, portanto, deixar muito clara a diferença entre a filosofia da psicanálise, uma ontologia negativa, pautada por uma causalidade fechada ao plano da imanência dos determinismos biopsicossociais, isto é, sem abertura para a transcendência do Self ou Deus; da filosofia do psicodrama, uma ontologia que, sem negar os determinismos do plano da imanência, se abre para a transcendência do Self ou Deus através da expressão espontâneo-criadora, ou, dito de outro modo, para a expressão da verdade do amor.

5.2.5. As técnicas psicodramáticas Como princípio geral, as técnicas psicodramáticas se prestam a operacionalizar a passagem da realidade presente do contexto cotidiano à realidade suplementar através da ação psicodramática. O surgimento de elementos da infrarrealidade nesta situação deve ser reconhecido como fator de inibição da espontaneidade, e o uso das técnicas vem como auxílio à sua superação. No momento da ação psicodramática está-se abordando fenomenologicamente uma imagem, e é fundamental que se permaneça fiel à mesma. Retomamos aqui o que dissemos em 4.2. sobre este princípio fenomenológico comum aos métodos de Bachelard, Corbin, Hillman e Jung. Coerentemente com tudo o que dissemos sobre a imagem espontâneo-criadora, trata-se de interpretá-la sem descaracterizá-la, evitando reduzi-la a formas ideológicas de expressão regidas pelas conservas culturais, viabilizando assim a expressão reveladora da verdade do self da qual é portadora. Em suma, trata-se de permanecer no curso da ação psicodramática

367 MORENO, J. L. Psicodrama. Teoria da ação & Princípios da prática. Op cit. p 27. 368 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. Op cit, p 249.


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fenomenologicamente fiel à imagem. Segundo o psicodramatista brasileiro Wilson Castello de Almeida, isto é perfeitamente atendido pelo método moreniano. Nos dizeres de Almeida, este “permite a concretização do espaço subjetivo, fenomenológico. Com isso, substitui-se a descrição verbal pela reconstrução objetiva de imagens”369, sendo, por isso, um método fenomenológico por excelência. Ainda segundo Almeida, a expressão do ator espontâneo “não se trata da simples relação física, e sim da relação intencional, que busca um significado e um sentido” 370, de modo que este interpreta o significado da imagem no próprio momento em que a expressa. O curso da ação psicodramática se encaminha, portanto, no sentido da exploração dos significados que a imagem carrega em seus símbolos, sem que precisemos abandoná-la a procura de outra imagem, digamos, recalcada, como o faria uma direção de orientação psicanalítica. Penso que podemos decididamente evitar a influência da psicanálise e sua busca pela reductio ad primam figuram, pelas fixações da sexualidade a uma primeira figura situada na história pregressa do indivíduo, que no meio do psicodrama contemporâneo costuma ser chamado percurso transferencial. O que não significa ignorar ou negar os aspectos transferenciais que se apresentam na expressão do indivíduo, mas compreendê-la como uma tentativa de seu self de se libertar destes aspectos, de transcendê-los. A exploração dos símbolos expressos na ação dramática, corresponde, neste sentido, ao que o filósofo L. Pareyson define como o trabalho da interpretação: “aprofundar o explícito para nele colher aquela infinidade do implícito que ele próprio anuncia e contém”.371 O que torna possível ao próprio indivíduo reconhecer na sua expressão tanto os aspectos imaginários se encontram ao nível da infrarrealidade, que ressoam como “ecos do passado”, como os aspectos imaginais que se encontram ao nível da realidade suplementar, que ressoam como “possíveis devires”. Moreno descreve inúmeras técnicas ao longo de seus livros. Em “Psicodrama – Terapia de ação & Princípios da prática”, encontramos uma boa resenha delas, mas há outras ainda. Não vamos nos ocupar em apresentar todas elas aqui, mas as que julgamos essenciais: as técnicas do duplo, do espelho e da inversão de papéis; com especial atenção ao princípio fenomenológico de cada uma. Na técnica do duplo, enquanto o protagonista representa a si mesmo na ação psicodramática, um ego-auxiliar é solicitado a representá-lo para estabelecer uma identidade com ele, a agir, a moverse, a conduzir-se, a falar como o protagonista. O ego-auxiliar se torna um duplo do protagonista. Por exemplo, numa cena em que o protagonista está sentado diante de uma mesa no escritório em que trabalha, constrangido pela presença do chefe autoritário que parece gostar de chamar a sua atenção em público, um ego-auxiliar entra na cena, e ao seu lado, começa a se comportar como ele, adotando a mesma postura corporal, os mesmos gestos, a mesma expressão facial. Nisso, o ego-auxiliar como um duplo do protagonista diz: — Minha vontade e fugir desse lugar (dando fala ao que seria um pensamento dele). Tal fala o estimula então a completar o raciocínio: — É mesmo, mas não posso fazer isso, pois seria despedido. O diálogo entre o protagonista e seu duplo poderia continuar a partir daí explorando aspectos captados telicamente na abertura à realidade suplementar. É importante que se ressalte que o princípio de se manter fiel à imagem está sendo cumprido na medida em que se mantém fiel a subjetividade do protagonista. O que está sendo introduzido como “novidades” pode ser entendido como potencialidades atualizadas pela

369 ALMEIDA, W. C. Formas do encontro - psicoterapia aberta. São Paulo, Ágora, 1988, p 50. 370 Idem, p 60. 371 PAREYSON, L. Verdade e Interpretação. São Paulo, Martins Fontes, 2005, p 17.


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ação, não é algo feito de “fora para dentro”, mas de “dentro para fora”, possibilitado pela liberação da espontaneidade e a expansão do self. A técnica de inversão de papéis pode ser utilizada em duas situações distintas: a) quando duas pessoas X e Y presentes na ação psicodramática experimentam inverter os papéis; neste caso, X representa Y, enquanto Y representa X; b) quando uma das pessoas não está presente, mas é representada por um egoauxiliar a partir das descrições sobre a sua pessoa fornecidas pelo protagonista; neste caso, o protagonista X interage com o ego-auxiliar que representa Y, para então, em um segundo momento, inverter-se os papéis, o protagonista X representa Y enquanto o ego- auxiliar passa a representar X. Enquanto no primeiro caso a tele acontece sem mediação; no segundo, esta se dá através da mediação de uma terceira pessoa. É muito interessante observar o fenômeno da tele acontecendo in situ, na medida em que desafia a lógica cartesiana com a qual acabamos nos acostumando a interpretar os fenômenos da vida. O uso das técnicas psicodramáticas permite que tal fenômeno apareça aos nossos olhos maravilhados, como se fosse um “número de mágica”, uma “farsa”, como se já estivesse tudo combinado e ensaiado. O que impressiona, na verdade, é a capacidade de retrojeção sendo explicitada no aqui-e-agora da ação psicodramática. No último capítulo, apresentaremos um caso clínico mostrando em detalhes estes processos.

5.2.6. A catarse de integração Passemos ainda a um outro aspecto da fenomenologia do psicodrama, a questão da catarse. Seguindo a sugestão de Moreno, procuraremos “esclarecer que espécie de processo é a catarse, que forças a provocam — suas causas e que resultados tem — seus efeitos”372. Dissemos no capítulo 1.8. que em contraste com a abordagem de Aristóteles, Moreno não se ocupou com o “efeito trágico” descrito pelo filósofo grego como a catarse do espectador, mas com a do ator, mais propriamente, com a catarse do ator do Teatro da espontaneidade, isto é, do participante de um psicodrama. Nas suas palavras: Aristóteles esperava que a catarse tivesse lugar no espectador. O ponto de vista moderno, por mim explorado, contrasta com o de Aristóteles. A catarse mental que esperamos terá lugar no ator, na mente da pessoa que está sofrendo a tragédia. O local da catarse transferiu-se dos espectadores para o palco. Os atores são os pacientes; eles necessitam de catarse, a libertação dos conflitos trágicos, das emoções em que estão presos. Mas se os atores são os sujeitos da catarse, então todo o processo que se desenrola no palco tem que ser reconsiderado. [...] Deve ser criado pelos próprios atores-pacientes, a partir de sua substância psíquica, e não por um autor teatral. [...] Tal como na tragédia, os participantes do psicodrama podem ser numerosos. A catarse de uma pessoa depende da catarse de outra pessoa. A catarse tem de ser interpessoal.373 A ação psicodramática possibilita o fenômeno da catarse do ator, isto é, de todos que dela participam como agentes de seus dramas. Uma definição para a catarse do ator seria a de uma experiência

372 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 423. 373 Idem, p 234.


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de libertação do pathos ligado a conflitos trágicos através da criação espontânea de novas formas de expressão desses conflitos, a partir das interações entre os participantes da ação psicodramática, como um fenômeno interpessoal. Mas qual o mecanismo psicológico pelo qual acontece da catarse do ator? De que maneira ocorre subjetivamente a experiência de libertação do pathos na ação psicodramática? No texto a seguir, Moreno rejeita a explicação dada por Freud. O mecanismo da identificação inconsciente descrito pela psicanálise pode até explicar a catarse do espectador, mas não a catarse do ator. Aristóteles sustentou que a catarse purifica a mente dos espectadores, colocando um espelho diante deles, como Édipo foi infeliz, como Cassandra foi desditosa, como Electra foi digna de compaixão e desgraçada. Gera neles temor e piedade, libertando-os da tentação de cair no abismo da loucura e da perversão. Mas deixou de indicar por que força o processo de purificação é causado. Freud atribuiria este efeito a um mecanismo psicológico a que chamou identificação inconsciente, coisa que está intimamente aparentada com a interpretação aristotélica: o espectador, ao viver os eventos dramáticos, ao identificar-se com os personagens, encontra, pelo menos, um alívio temporário para seus mais profundos conflitos inconscientes. Mas a identificação é, em si mesma, mais um sintoma e não uma causa. Não constitui o processo primário. [...] Não retornou, passo a passo, ao seu status nascendi, às formas sociais e culturais donde a forma dramática emergiu. O sociodrama retorna ao status nascendi dessas realidades sociais profundas, as quais ainda não foram adornadas pela arte nem diluídas pela intelectualização. [...] Numa sessão sociodramática, centenas de indivíduos trazem seus conflitos em status nascendi. 374

Moreno nos mostra que é a identificação é secundária, é antes um sintoma do que uma causa, “não constitui o processo primário”, não se encontra na origem nem dos conflitos, nem da sua efetiva libertação, uma vez que o status nascendi dos conflitos que os indivíduos trazem consigo e os fazem sofrer encontrase em realidades sociais profundas, não adornadas pela arte ou diluídas pela intelectualização. Mas, a quais realidades sociais profundas Moreno está se referindo exatamente? Acompanhemos o texto onde ele explicita esta questão: As leis da legítima dramaturgia — a unidade de enredo, a unidade de personagem, a unidade de pensamento e ação, a naturalidade e clareza de dicção — enunciadas por Aristóteles na “Poética”, foram inspiradas pela tragédia grega, uma conserva dramática, e pelo teatro grego, um veículo para a sua reprodução. As leis do psicodrama tiveram de ser investigadas sem um modelo histórico, partindo da estaca zero e dentro de um diferente quadro de referência. Para um verdadeiro precedente, devemos buscá-lo nas civilizações do período pré-histórico. Nos ritos dramáticos primitivos, o executante aborígine não era um ator mas um sacerdote. Era como um psiquiatra empenhado em redimir a tribo, persuadindo o sol para que brilhasse ou a chuva para que caísse. A fim de obter dos deuses ou da forças naturais uma resposta apropriada, podem ter sido empregados abundantemente métodos de simulação, persuasão e provocação aparentados com os do psicodrama primitivo. Muito antes da medicina científica, em nossa acepção da palavra, praticou-se a purificação de enfermidades mentais e físicas, mediante um choque quase psicodramático.375 374 Idem, p 423 375 Idem, p 62..


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Para Moreno, devemos buscar o status nascendi dos conflitos trágicos “nas civilizações do período pré-histórico, nos ritos dramáticos primitivos”. Compara o método destes rituais primitivos ao do psicodrama. O modo como esta comparação é articulada por Moreno, e nosso autor não avança mais do o fez nestas escassas linhas, devemos reconhecer, é um tanto quanto simplista. Mas não deixamos de considerá-la uma indicação precisa. De fato, trata-se de uma hipótese que converge perfeitamente com o quadro ontológico por nós articulado neste livro. Neste sentido, propomos esclarecer que espécie de processo é a catarse, qual o seu mecanismo, diríamos, biopsicossociocósmico. Entendemos que um método apropriado para esta tarefa é analisar comparativamente a catarse da tragédia à do ritual sagrado. A partir do que apresentamos em 4.3, podemos dizer que tanto a representação da tragédia no teatro grego como as primitivas dramatizações do ritual sagrado tinham como finalidade a katharsis, isto é, uma purificação, de acordo com o significado do termo grego. Melhor dizendo, ambas as situações se destinavam a produzir o efeito de purificação dos afetos ligados ao pathos da comunidade, isto é, às situações de desgraça, fracasso, doença, loucura, quando o homem era tomado por sentimentos de medo, culpa, fraqueza, debilidade, impotência. Tal efeito, gerado ao término de ambas as formas de representação dramática, conduziam ao reasseguramento do ethos social, isto é, à plena aceitação dos costumes morais ou éticos do convívio social. Onde se encontra então a diferença entre elas? Ambas as formas de representação procediam através da mimesis de mythos, ou seja, como imitação de ações realizadas por entes divinos ou heróis ancestrais narradas nos mitos. Como nos mostra Aristóteles, a tragédia passou a se valer dos antigos mitos para forjar os temas de seus espetáculos. Além disso, com a origem da representação trágica no espetáculo teatral, passou a haver a separação entre atores e espectadores. Em seus rituais, o homem primitivo estabelecia um outro modo de vinculação social caracterizado pela perda das distinções sociais prévias, que os igualavam a uma mesma condição, a communitas, conforme a designação de V. Turner. Neste sentido, podemos dizer que nas representações dramáticas primitivas ainda não havia separação entre atores e espectadores. Todos participavam ativamente da representação dramática em condição de igualdade e comunhão. Isto fica claro no caso específico dos cultos dionisíacos que entoavam liturgicamente o ditirambo, dos quais, segundo Aristóteles, a tragédia se originou.376 O ditirambo consistia na entoação de uma canção, improvisada pelo condutor da cerimônia, cujas palavras eram imediatamente repetidas pelo coro, um grupo de seguidores vestidos como Sátiros — companheiros de Dioniso. A entoação do ditirambo tinha como objetivo gerar o êxtase coletivo com o auxílio de movimentos rítmicos, aclamações e vociferações rituais, culminando no sacrifício de um bode. Após a dança vertiginosa, todos caíam semidesfalecidos. Neste estado de êxtase, acreditavam “sair de si”, momento em que atualizavam a presença do deus através de seu corpo, como que possuídos pelo próprio Dioniso, como se fossem o próprio deus, comungando com a imortalidade. Adquiriam assim percepções do mundo sagrado, poderes oraculares e mágicos. É interessante atentarmos aqui para a etimologia da palavra tragédia: do grego tragós — bode, oidé — canto, e o sufixo ía; portanto, tragoidía — canto do bode. Quando, a partir do século VI a.C., se desenvolveu na pólis grega o lirismo coral, o ditirambo tornou-se um gênero literário acompanhado por música, uma espécie de versificação das antigas representações dramáticas primitivas. A origem da tragédia teria acontecido com a transformação dos solistas do ditirambo em atores. Supõe-se que em determinado momento, o coro foi se dividindo em semicoros, surgindo o início de diálogo entre estes através dos seus solistas, que em êxtase, transpondo os limites da própria individualidade, respondiam uns aos outros com as palavras do próprio Dioniso. O surgimento do ator se deu assim através de uma diferenciação ocorrida dentro do grupo 376 ARISTÓTELES. Poética. In. Aristóteles II - Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1984, p 245.


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de participantes do ritual sagrado, isto é, do coro. Neste processo, gradativamente, o ritual sagrado foi se transformando em espetáculo teatral, separando os atores — aqueles “inspirados” que representavam o deus Dioniso — dos espectadores — aqueles que apenas contemplavam “de fora” a representação. Compreende-se assim que, enquanto no primitivo ritual sagrado o ato de imitação das figuras míticas era realizado no momento em que a abolição dos limites da individualidade e o “sair de si” dos participantes acontecia de modo igualitário, através da participação ativa e da comunhão de todos na produção do mesmo; com o advento da tragédia, o ato de imitação passou a acontecer mediante a uma divisão no interior do momento do espetáculo: um momento próprio do ator e um momento próprio do espectador, no qual o sair de si do ator se destinava a promover o sair de si do espectador através da contemplação, por parte do segundo, do sofrimento do herói trágico representado pelo primeiro. Chegamos então à derradeira diferença entre as duas formas dramáticas, justamente no que se refere à finalidade comum a ambas: a katharsis do pathos da comunidade. Em ambas, a catarse é obtida através da representação do sofrimento de divindades ou heróis ancestrais. O que muda é o modo da experiência subjetiva da relação com a Divindade. No caso do ritual sagrado, a produção da subjetividade acontecia em um momento sem divisão interna, em que todos os participantes compartilhavam de modo igualitário a experiência de relação com a Divindade, através de um sair de si caracterizado por um estar corporal e afetivamente envolvido na produção da ação mimética. No caso da encenação da tragédia, a experiência subjetiva da relação com a Divindade passou a ser dividida em duas modalidades: a do ator e a do espectador. Enquanto a experiência do espectador ficou limitada à contemplação, ao ato de ver, a experiência do ator se voltou à produção do espetáculo, com todos os seus aparatos técnicos — técnica vocal, do uso de máscaras, gestual — tal como acontece ainda hoje. Até onde eu saiba, não há descrições sobre a experiência subjetiva do ator, referentes a época grega. Podemos assim dizer, retrospectivamente, que nesta separação houve uma sobrevalorização da catarse do espectador e, com isso, da produção do espetáculo como fenômeno estético, e não propriamente ético. A catarse passou a ocorrer a indivíduos que contemplam de modo solipsista o espetáculo, sem experimentar a comunhão própria do ritual sagrado que acontecia ao se tomar papel ativo e interativo na sua produção. Entendemos que a comunhão entre os participantes e a catarse do ator não são fenômenos restritos ao universo dos antigos rituais sagrados, mas fenômenos ontológicos da experiência humana que possibilitam a união com o ser primordial, o uno-todo originário. Com o método do psicodrama, Moreno recuperou o sentido ontológico da catarse do ator e da comunhão entre os participantes na experiência do fazer teatral, sentido este perdido com o advento da espetacularização e estetização da representação dramática decorrente do advento da tragédia. É interessante observar que Moreno foi criticado, no início das suas atividades, pela falta de cuidado estético nas apresentações de seu Teatro da Espontaneidade. Permaneceu, no entanto, em seu propósito original, ciente de que a sua finalidade não era proporcionar a catarse estética dos espectadores, mas sim, a catarse de todos os participantes como atores. Em nosso entendimento, a concepção de Moreno estabelece uma clara interlocução com a filosofia do trágico surgida no seio do idealismo alemão no final do século XVIII, tendo como principais autores Schiller, Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche. A interconexão entre a teoria do psicodrama e este projeto filosófico em torno do trágico é a ideia da religação do homem à sua essência através do drama. Encontramos o delineamento geral da filosofia do trágico na seguinte passagem de Roberto Machado em “O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche”:


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Construção eminentemente moderna, a originalidade dessa reflexão filosófica, com relação ao que foi pensado até então, se encontra justamente no fato de o trágico aparecer como uma categoria capaz de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição humana, a dimensão fundamental da existência.377 Nossa tarefa será a de mostrar que maneira a teoria do psicodrama pode ser compreendida na continuidade desta tradição, como também, de que maneira a transforma criativamente através da noção de catarse do ator. Comecemos apresentando as principais concepções do trágico elaboradas pelo idealismo alemão. Segundo Peter Szondi, em seu “Ensaio sobre o Trágico”, Schelling inaugura “a história da teoria do trágico, que volta a sua atenção não mais para o efeito da tragédia e sim para o próprio fenômeno trágico”.378 Schelling nos mostra que, antes de meramente promover o efeito da catarse, a tragédia apresenta um sentido ontológico passível de ser apreendido através da intuição intelectual, qual seja, a identidade entre o subjetivo e o objetivo, a liberdade e a necessidade. Este sentido aparece no seguinte trecho da “Carta X” de suas “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo” de 1795. Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando ele mesmo contra a fatalidade, e contudo terrivelmente castigado pelo crime que era obra do destino! O fundamento desta contradição, aquilo que a tornava suportável, estava em um nível mais profundo do que onde o procuravam, estava no conflito da liberdade humana com a potência do mundo objetivo, no qual o mortal, se aquela potência é uma potência superior (um fatum), tinha necessariamente de ser derrotado, e, contudo, porque não foi derrotado sem luta, tinha de ser punido pela sua própria derrota. [...] A tragédia grega honrava a liberdade humana, fazendo que seu herói lutasse contra a potência superior do destino: para não passar além dos limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, para reparar também esta humilhação imposta pela arte à liberdade humana, tinha de fazê-lo expiar — mesmo pelo crime cometido pelo destino. [...].— Era um grande pensamento suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, para, desse modo, pela própria perda de sua liberdade, provar essa mesma liberdade e sucumbir fazendo ainda uma declaração de vontade livre.379

Não é difícil reconhecer nesta passagem o fundo temático da tragédia “Édipo rei” de Sófocles, o qual Schelling utiliza para refletir de modo geral sobre a tragédia grega. Diferentemente de Aristóteles, que, como vimos, limitou-se a descrever a estrutura poética da tragédia e o efeito que a encenação da mesma promove sobre os espectadores, a catarse, Schelling deu início à especulação ontológica da tragédia, procurando entender o que estava em jogo nela, alcançando a reveladora intuição de que se tratava da luta entre a liberdade humana e o destino. Para Schelling, o grande pensamento que a tragédia grega expõe é a glorificação da luta do homem pela afirmação da sua liberdade — que constitui a essência do eu, da

377 MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Op cit, pp 42-43. 378 SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2004, p 29. 379 SCHELLING, F. W. J. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. Op cit, p 34.


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subjetividade, da pessoa — contra a potência do mundo objetivo, das forças imanentes ao mundo que determinam necessariamente a sua derrota ou aniquilação. Ao suportar voluntariamente a expiação por um “crime cometido pelo destino”, pelo qual é acusado de ser culpado sabendo-se inocente, e que pelo qual, de qualquer modo, teria de pagar, o herói trágico soluciona “o enigma do mundo”, a contradição entre o subjetivo e o objetivo, a liberdade e a necessidade, revelando a identidade original entre os opostos: o homem é livre na sua afirmação de si contra o mundo objetivo, ainda que o combate esteja perdido de antemão. Afirma a sua liberdade através da perda da mesma, e assim, a um só tempo perde e ganha a sua liberdade. Este ato de se sacrificar pela liberdade, ao menos, nos limites da arte, remete o homem à experiência de identidade de seu Eu absoluto.380 Quanto a relação da filosofia do trágico de Schelling com a poética da tragédia de Aristóteles, nos diz Philippe Lacoue-Labarthe que “a dita filosofia do trágico é ainda na realidade, embora de maneira subjacente, uma teoria do efeito trágico” 381, “tornando-se o eco da poética da tragédia”.382 Jean-François Courtine, por sua vez, defende que “o que tornava suportável aos olhos dos gregos as contradições que compõem a trama de suas tragédias, [...] a katharsis que se opera no espectador, remete a essa conciliação [dos opostos] que está em ação na própria tragédia”.383 Neste sentido, Schelling aprofunda ontologicamente a compreensão da catarse aristotélica, acrescentando à noção a fundamentação da sua filosofia da identidade. Vejamos então como este “eco” produzido pela filosofia schellinguiana ressoa a partir de um fundo ainda mais remoto, o do sacrifício ritual. Recapitulemos a hipótese central da antropologia de René Girard, que nos esclarece a este respeito. Como vimos, para Girard, de modo convergente a Schelling, a origem da humanidade se deu com o advento da representação mítica. A sua hipótese inova por esclarecer a forma como aconteceu esta origem: a uma crise de violência recíproca dentro de um agrupamento humano levando o assassinato coletivo de um membro deste agrupamento. A primeira comunidade humana teria sido assim formada em torno desse assassinato, ao interpretar tal evento como produzido por intervenção divina. Girard postula assim a existência de um fato real, de um evento concreto originário da cultura humana, que a posteriori teria sido transfigurado na forma do mito, sublinhando a inextricável relação entre “A violência e o sagrado” 384 na ontogênese do ser humano. Na narrativa mítica, a vítima arbitrária e inocente do evento original aparece transmutada sob o status de divindade ou herói ancestral no papel de pharmakós. O termo grego pharmakós é a origem etimológica da palavra moderna fármaco, que significa remédio, droga, medicamento; enquanto algo que possui, de modo ambivalente, o princípio maléfico, do que pode fazer adoecer, e o princípio benéfico, do que pode fazer curar. Na narrativa mítica, o termo pharmakós é utilizado para designar a personagem do drama que possui, de modo ambivalente, dois atributos essenciais: a de causador do pathos da comunidade e de seu salvador. Nessa transmutação operada pelo mito, a vítima, originalmente inocente, passa à condição de causadora do pathos, portanto, de culpada. A tese girardiana explica, desse modo, o motivo pelo qual os antigos rituais sagrados aconteciam mediante o sacrifício de uma vítima expiatória. A prática do sacrifício possibilitava dissimular a culpa coletiva sob a justificativa de que o sacrifício servia para agradar a divindade, que o exigia. Em termos psicanalíticos, possibilitava 380 COURTINE, J-F. A tragédia e o tempo da história. Op cit, p 189. 381 LACOUE-LABARTHE, P. A imitação dos modernos: ensaios sobre arte e filosofia. São Paulo, Paz e Terra, 2000, p 188. 382 Idem, p 192. 383 COURTINE, J-F. A tragédia e o tempo da história. Op cit, p 191. 384 GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo, Paz e Terra, 1998.


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projetar a culpa do sujeito coletivo em um único indivíduo. A hipótese girardiana permite assim desvendar o significado profundo de todo e qualquer mito: tratar-se de uma versão imaginária do fato original do assassinato coletivo na qual é atribuída a uma divindade essa autoria, dissimulando a responsabilidade ou a culpa do coletivo agressor. O tempo sagrado, acionado pelo ritual, servia para afastar a ameaça do pathos que lhe sobrevinha no tempo profano, pressentida como a iminência de uma crise paroxística de violência coletiva, tal como acontecera originalmente no momento da sua fundação. Daí a criação de interditos e proibições contra o tipo de comportamento que pudesse desencadear uma crise violência mimética. Contudo, o contágio da rivalidade mimética, iniciado incidentalmente no tempo profano, acabava de tempos em tempos desencadeando a propagação desta rivalidade no seio do grupo, numa escalada da violência e do caos. A cada vez que a comunidade se percebia assim ameaçada pela iminência de uma crise, o sacrifício ritual servia para afastá-la, restituindo a saúde e a paz no interior do grupo. A reencenação ritual dessa violência, sacrificando uma vítima arbitrária, era desse modo utilizada para prevenir possíveis transgressões e o recrudescimento da mesma. O aspecto central da constituição da comunidade em torno da reencenação ritual do mito é a unanimidade da crença na culpa da vítima, ou seja, o fundamento da efetividade do ritual reside na premissa de que todos os membros da comunidade, inclusive as vítimas sacrificadas, compartilhassem a crença da sua culpa. A ordem comunitária ressurgia no momento em que vítima sacrificada era identificada como pharmakós da comunidade. Uma única vítima era escolhida para ser sacrificada, apaziguando as tensões dentro do grupo de modo controlado, sob os auspícios de uma divindade. Atribuindo a morte de uma vítima à vontade de uma divindade, a narrativa mítica apaga os seus vestígios. Nos rituais mais primitivos se sacrificavam seres humanos. Posteriormente, estes passaram a ser substituídos por animais. No momento do ritual, a comunidade vivenciava uma espécie de experiência pedagógica que a purificava: a catarse do grupo. Com o passar das gerações, a consciência coletiva do assassinato original teria sido reprimida, tornando-se inconsciente. Isto se explica pelo fato de o mito ocultá-la. Neste sentido, a instituição do sacrifício responde pelo processo de sacralização que deu origem a cultura propriamente humana. No que se refere particularmente aos rituais dionisíacos, estes aconteciam mediante o sacrifício de um bode, representando a expulsão violenta de um pharmakós. Na tragédia, a sacralidade da violência ritual foi mantida, porém, adquirindo uma outra feição. A expulsão do pharmakós continuou sendo encenada de acordo com a tradição dos mitos, que serviam como matéria-prima ao poeta trágico para a composição do enredo. Todavia, não mais mediante o sacrifício de um animal, que representava a divindade; mas através do ato praticado pelo herói trágico de sacrificar-se — segundo Schelling, e como veremos a seguir, segundo outros autores do idealismo alemão — pela afirmação da sua liberdade, de seu eu. Devido à sua hybris — à desmedida da sua ação causada pela força do destino — o herói é identificado como o causador do pathos da comunidade, sendo por isso expulso. Exemplos disso: Édipo é condenado ao ostracismo, Antígona, a ser enterrada viva; o que é honrosamente aceito, nos dois casos, pelo herói ou a heroína. Numa interpretação girardiana, Édipo é acusado por incesto e parricídio pela comunidade da pólis porque esta precisa identificar um culpado a fim de evitar a ameaça da peste — o pathos da comunidade — enviada pelo deus Apolo. Diferindo da explicação dada por Freud, Girard argumenta que não é o desejo sexual, mas o desejo mimético, através do fenômeno do duplo, que se encontra na gênese deste mito, como de todos os outros. No caso do mito de Édipo, este é identificado como o duplo da comunidade, que acaba por assumir individualmente a culpa pelo mimetismo no interior da mesma, isto é, o papel de pharmakós — bode expiatório — para salvá-la. A interpretação girardiana se diferencia da freudiana ao compreender o


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caráter ontológico da pessoa humana, a sua relacionalidade e contraditorialidade, enfatizando a polaridade indivíduo/coletivo. A interpretação que Nietzsche nos apresenta da tragédia grega nos ajuda a aprofundar a compreensão da contraditorialidade humana, manifesta na tensão recíproca entre o indivíduo e o grupo social. Em seu livro “A origem da tragédia” de 1871,385 Nietzsche defende a tese de que o trágico humano se manifesta pelo embate entre o dionisíaco e o apolíneo. Nesta sua primeira formulação do trágico, é influenciado pela concepção de mundo de Schopenhauer, na qual a vontade é a coisa em si, a fonte de todo o fenômeno, impulso cego, incontrolável, que apenas adquire conhecimento do seu querer ao ascender às suas formas de objetivação, por meio do mundo da representação. De acordo com Szondi, “nos conflitos que constituem a ação da tragédia, Schopenhauer enxerga a luta das diversas manifestações da vontade umas com as outras, portanto a luta da vontade contra si mesma”.386 Nietzsche equipara o dionisíaco ao mundo da vontade e o apolíneo ao da representação. O impulso apolíneo leva à individuação, isto é, à luta — ágon — do homem pela afirmação de si como indivíduo, para Nietzsche, uma forma de ilusão dominada pela ideia de permanência, de ser lembrado após a sua morte, daí lutar para provar sua virtude, a excelência de seus valores. A forma apolínea aparece nos deuses do panteão olímpico. Com seus traços humanos perfeitos, os deuses são como espelhos nos quais os homens se olham para se verem transfigurados, numa aparência individual de beleza, equilíbrio, sapiência, tranquilidade, justa medida, de acordo com o conhecido lema de Apolo: “conhece-te a ti mesmo”. Trata-se de uma ilusão protetora contra o horror do acaso, da imprevisibilidade do destino, do caos, da desmedida, do sofrimento, do lado sombrio, da crueldade, da transitoriedade de todas as coisas. Porém, se o apolíneo permite certo sentimento de estabilidade frente a impermanência da vida; restringe, por outro lado, a liberdade, na medida em que impede a expansão da vida para além dos limites estabelecidos por uma dada forma fixa de experiência de vida. O dionisíaco, por seu turno, levando à desmedida — hybris — com a sua música extática, a embriaguez do vinho, o frenesi sexual, o entusiasmo místico, produz uma desintegração do eu, um abandono ao êxtase divino. Destrói a tendência de tomar as aparências apolíneas como verdades absolutas, desvelando a possibilidade de viver com alegria o sofrimento dos eternos ciclos de construção e destruição da vida para além de qualquer noção estabelecida. No trágico nietzschiano, Dioniso e Apolo são como a cara e a coroa de uma mesma moeda, os dois lados de um mesmo movimento de afirmação integral da vida, em que o indivíduo humano se separa do uno-todo como uma luz que, no momento de maior brilho, se apaga, se aniquila, para outra vez se reunir a ele, num ciclo de vida e morte, de eterno retorno do mesmo. Para Hölderlin, o poema trágico consiste numa metáfora que expõe, que faz sentir a intuição intelectual da unidade original, “essa unidade com tudo o que vive”.387 Se tal formulação, por um lado, se aproxima da de Schelling, por outro, se afasta da mesma, pois para Hölderlin essa unidade é a das partes separadas unificadas, isto é, reconciliadas pela intuição intelectual, sendo, portanto, sempre mediada. De modo que só é dado ao Eu reconhecer-se em sua distinção e oposição a si, nunca de modo imediato como propõe Schelling. Nesta perspectiva, a unidade com tudo o que vive só se deixa perceber através da diferenciação do todo através das suas partes. É no auge da diferenciação das partes que paradoxalmente a unidade do todo se revela. Isto acontece no “devir em declínio” — segundo a expressão de Hölderlin — como obra do

385 NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Lisboa, Guimarães Editora, 1996. 386 SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Op cit, p 53. 387 COURTINE, J-F. A tragédia e o tempo da história. Op cit, p 148.


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tempo, de acordo com a lei da justiça. Tentando traduzir este enunciado um tanto enigmático, podemos dizer que o ser se diferencia temporalmente através da partição das suas partes, isto é, da individuação das mesmas, processo no qual estas se desligam até o seu isolamento, solidão, desamparo. Hölderlin nos propõe assim pensar o drama trágico como um paradoxo. Nas suas palavras: A significação das tragédias é mais bem concebida a partir do paradoxo. Pois tudo o que é original, pelo fato de todo poder ser justa e igualmente repartido [lei da justiça], por certo não aparece em sua força original, mas propriamente em sua fraqueza.388 Na tragédia, o herói é o signo deste declínio da força divina em fraqueza, quando esta se apropria do ser humano. O divino — o originalmente unido — se apresenta “em sua pessoa”, apropriando-se de um signo destinado a representá-lo tornando-o insignificante. O pathos trágico do herói se dá assim, de modo sensível e doloroso, culminando em seu aniquilamento. Hölderlin interpreta a tragédia como sacrifício. Neste sentido, a metáfora trágica representa o momento em que a apropriação pelo indivíduo humano de modo parcial de seu ser ligado a divindade — por exemplo, uma posição, uma determinação, um direito, um ideal —, ao atingir a sua máxima expressão, acaba paradoxalmente perdendo a sua força, sucumbindo diante do todo. A lógica apresentada pela tragédia, assim entrevista por Hölderlin, é a de que o espírito do homem ao se desligar do todo através do sair de si mesmo — momento de proximidade com o divino —, acaba por padecer em função deste movimento. Atingir o auge deste movimento conduz ao seu aniquilamento. Com a sua morte, volta a se fundir, paradoxalmente, com o todo, com a sua unidade originária, com tudo o que vive. Com a apresentação da interpretação de Hegel, completamos a nossa abordagem do trágico no idealismo alemão. Para Hegel, o divino se manifesta eticamente na tragédia, aparecendo no mundo através da ação individual. Em outras palavras, as forças éticas universais representadas pelos deuses gregos se manifestam como um determinado pathos ético de um indivíduo. A tragédia representa a passagem da idealidade abstrata para a realidade concreta, quando as forças éticas universais se particularizam na ação dos seus personagens, que lutam entre si defendendo direitos igualmente legítimos. Sendo assim, o herói trágico em sua ação ao mesmo tempo em que impõe o conteúdo de um determinado aspecto da substância ética, do uno-todo, nega e viola o conteúdo de um outro aspecto, representado pelo seu opositor. Assim, mesmo que defendendo legitimamente seu direito, a sua parcialidade o leva a atos culpáveis. A morte ou aniquilamento do herói significa a superação de seu pathos unilateral, e a unificação de sua vontade individual com o princípio absoluto da substância ética. O resultado é a reconciliação trágica: a superação das contradições, das oposições, na qual a justiça eterna se realiza pela vitória sobre a justiça relativa. O conflito trágico representa assim o movimento dialético da história rumo à sua síntese final: momento de repouso ou acabamento final do processo de contradição ética do ser humano, manifesto na plena reconciliação entre os indivíduos.389 Para concluir, abordemos ainda uma última questão. Tanto Schelling como Hölderlin, como também Nietzsche, se opuseram à interpretação dialética de Hegel. Apesar de todos eles falarem do “efeito trágico” produzido pela tragédia nos termos de uma reunião da parte com o todo, Schelling, Hölderlin e Nietzsche,

388 Idem, p 164. 389 MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Op cit, pp 128-133.


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cada qual a sua maneira, ao contrário de Hegel, entenderam que este processo perdurará sempre, não havendo síntese, repouso ou acabamento possível, mas o inexaurível desvelamento da verdade do ser. Não vamos aqui aprofundar neste ponto, pois foge ao nosso escopo. Todavia, é importante que esta diferença seja ressaltada, uma vez que na nossa concepção, compreendemos o processo evolutivo do Self-CosmosDeus, do qual o homem participa como cocriador, como não-dialético, no sentido hegeliano do termo. A invenção da arte trágica inova em relação ao mito colocando em questão, através do espetáculo, “o enigma do mundo”: o ser do homem dividido entre o indivíduo e o coletivo, a liberdade e a necessidade, a vontade e a representação, o dionisíaco e o apolíneo, o subjetivo e o objetivo; enfim, a contraditorialidade da existência humana. Apresentando, por um lado, modelos exemplares de indivíduos divididos em meio a suas contradições, na posição de ter de tomar a decisão crucial de suas vidas, e, por outro, de processos comunitários de reinstauração da ordem social, de acordo com a lei e a justiça dos deuses, a cena trágica propicia ao espectador a experiência pedagógica de intuir a sua contraditorialidade ontológica. Os limites estabelecidos pela arte trágica — o espaço cênico compreendido como tal, a consciência da ficção, do imaginário — inaugura a possibilidade do indivíduo contemplar no espelho fornecido pelo drama encenado, através do aniquilamento do herói, o fundo real de seu ser — o Cosmos, o Self, Deus —, e desse modo intuir a sua contraditorialidade constitutiva. A catarse do espectador, neste sentido, remete a um possível grau sempre momentâneo, provisório, de intuição dos opostos constitutivos do ser na sua unidade ontológica. Tendo em vista esta análise preparatória, é chegado o momento de tentar responder à questão levantada anteriormente. Em que sentido a teoria de Moreno se inscreve na tradição da filosofia do trágico e a transforma criativamente com a noção de catarse do ator? Em primeiro lugar, cumpre-se ressaltar que o fato de estarmos chamando a atenção para a similaridade entre a catarse do ator, delineada por Moreno, e o processo catártico dos antigos rituais, não significa que seja nossa intenção o resgate nostálgico de uma ritualidade e sacralidade primitivas. Neste sentido, a busca pela religiosidade de que falamos não tem absolutamente a ver com práticas rituais tais como encontramos hoje em terreiros de umbanda, ou mesmo em rituais de cura ligados a igrejas cristãs, católicas ou evangélicas. Evidentemente, esta não era a intenção de Moreno. O momento da ação psicodramática se afasta deste tipo de experiência por conservar o carácter especulativo da representação teatral propriamente dita, isto é, a consciência da ficção, do como se, da imaginação, paralelamente ao sentimento de realidade, de que algo real está sendo presentificado na ação dos participantes como atores. Passemos então à reposta da questão levantada. Apesar de Moreno não ter se pronunciado explicitamente sobre a filosofia do trágico, sabemos da influência que o ideal da religião da arte, que encontra sua raiz justamente na filosofia do trágico do idealismo alemão, exerceu sobre ele na criação do Teatro da espontaneidade. Lembremos ainda, como vimos em 1.2., que segundo o historiador Carl Schorske, coexistiam duas culturas na Viena do começo do século XX: a cultura da palavra, como feixe de valores morais, políticos e científicos; e a cultura da graça, como feixe de valores religiosos e estéticos. Tal contraste cultural nos ajuda a compreender a diferença de significados empregados por Freud e Moreno à noção de catarse em voga na época. Enquanto Freud, alinhando-se à cultura da palavra, se apropriou da noção aristotélica da catarse como alívio de tensões afetivas, empregando o uso da palavra dentro do consultório médico como meio para obtê-la; Moreno, alinhando-se à cultura da graça, promoveu uma transformação da representação dramática na qual o ator, e não mais o espectador, seria o beneficiado do


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efeito catártico.

A ligação com a filosofia do trágico se torna ainda mais evidente com o novo conceito de catarse que aparece em escritos posteriores de Moreno, conceito este que amplia o original de catarse do ator: a catarse de integração. Em “Psicoterapia de grupo e Psicodrama” encontramos a seguinte definição: Que valor terapêutico tem o método psicodramático? Satisfazemo-nos até aqui com a descrição de um único fenômeno: a catarse de integração. Também começamos com o drama, cujo efeito Aristóteles viu na ‘catarse’ (purificação, clarificação), mas nós o invertemos. Em vez de nos satisfazermos com a catarse dos espectadores, começamos com a catarse do ator principal, do protagonista. [...] Por isso, foi minha intenção definir a catarse de tal forma que uma influência qualquer, exercendo visivelmente um efeito purificador, pudesse ser vista como um elemento de um princípio único. Descobri como sendo esse princípio comum que provoca a catarse a espontaneidade criadora; em função da sua universalidade e de sua natureza original, ela engloba todas as outras formas de expressão (psíquica, somática, inconsciente, consciente etc). Nessa corrente geral de atuação se incluem todas as formas mais elementares e particulares de catarse.390 Em “Quem sobreviverá?”, encontramos uma outra definição em meio a um texto no qual Moreno descreve o método do psicodrama: Seu próprio eu tem a oportunidade de encontrar-se, reorganizar-se e juntar os elementos que podem ter ficado separados por forças insidiosas, de modo a integrá-los e conseguir uma sensação de poder e de alívio, uma catarse de integração. 391 Destas definições, retenhamos para os nossos propósitos três aspectos essenciais: primeiro, que o princípio comum que promove todas as formas de catarse é a espontaneidade criadora, em função da sua universalidade e de sua natureza originária; segundo, que o ator em sua ação dramática tem a oportunidade de juntar elementos dissociados de seu eu, de modo a integrá-los numa nova organização; terceiro, que este novo grau de integração do eu promovido pela espontaneidade é a causa da catarse do ator. A proposta teatral de Moreno viabiliza, portanto, a experiência de um efeito catártico que transcende os limites estabelecidos pela definição aristotélica, isto é, do mero alívio de tensões afetivas. O efeito catártico da experiência do ator, entendido como resultante de um novo grau de integração do eu promovido pela sua expressão espontânea, corresponde à intuição intelectual da unidade ou identidade originária dos opostos — Eu absoluto — de que nos fala a tradição da filosofia do trágico. É justamente neste sentido que o conceito moreniano de catarse se liga a ela. Na formulação dada por Schelling, o ato do herói de se sacrificar pela sua liberdade revela a identidade entre liberdade e necessidade e a intuição de um Eu absoluto. Na de Hölderlin, o significado desse sacrifício ganha outra interpretação. Divergindo de Schelling, para quem a intuição da unidade do Eu é imediata, para Hölderlin esta é sempre mediada. O herói trágico é o signo desta mediação. Representa o

390 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Op cit, pp 104-105. 391 MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Op cit, p 186.


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declínio da força divina em fraqueza que acontece de modo sensível e doloroso através de seu isolamento, solidão, desamparo. Neste sentido, o espírito do homem é conduzido tragicamente pelo seu pathos através do movimento de desligamento da sociedade-mundo, que o destina inevitavelmente ao aniquilamento, à morte. O herói representa a parte separada e posteriormente reunificada, reconciliada com a sociedademundo. A intuição possibilitada pela representação trágica é, portanto, a do reconhecimento do indivíduo em seu movimento de distinção e oposição à sociedade-mundo, do qual se desliga para, paradoxalmente, voltar a se ligar. Na formulação dada por Schelling, o ato do herói de se sacrificar pela sua liberdade revela a identidade entre liberdade e necessidade e a intuição de um Eu absoluto. Na de Hölderlin, o significado desse sacrifício ganha outra interpretação. Divergindo de Schelling, para quem a intuição da unidade do Eu é imediata, para Hölderlin esta é sempre mediada. O herói trágico é o signo desta mediação. Representa o declínio da força divina em fraqueza que acontece de modo sensível e doloroso através de seu isolamento, solidão, desamparo. Neste sentido, o espírito do homem é conduzido tragicamente pelo seu pathos através do movimento de desligamento da sociedade-mundo, que o destina inevitavelmente ao aniquilamento, à morte. O herói representa a parte separada e posteriormente reunificada, reconciliada com a sociedademundo. A intuição possibilitada pela representação trágica é, portanto, a do reconhecimento do indivíduo em seu movimento de distinção e oposição à sociedade-mundo, do qual se desliga para, paradoxalmente, voltar a se ligar. Transpondo os elementos da filosofia do trágico aqui apresentados à teoria do psicodrama, podemos dizer que o indivíduo na ação psicodramática, ao representar o seu próprio drama, deixando-se conduzir pelo seu pathos, tem a oportunidade de reconhecer a imagem de si — conserva cultural — com a qual se encontra identificado, como se a estivesse mirando em um espelho, no momento exato em que recupera e se apropria da espontaneidade que vinha sendo inibida pela mesma. Este ato de reconhecimento lhe permite desligar-se de tal imagem de si, de tal identificação, e desse modo experimentar um novo grau de expansão, diferenciação e integração de seu eu, associado ao sentimento de uma nova noção de identidade. Em analogia com a tragédia, o ator no psicodrama é o herói que se sacrifica para se reunir com o todo. Dito de outro modo, o indivíduo se diferencia subjetivamente de uma imagem de si com a qual estava identificado, compreendendo que esta não era a sua verdadeira identidade. Desfeito o mecanismo da identificação, que fazia com que confundisse uma construção cultural com o todo de seu self, para então se reconhecer como um novo eu, pleno de espontaneidade. Sobrevém ao indivíduo neste momento, não só uma sensação de alívio dos afetos que o faziam sofrer, mas o entendimento intelectual do motivo pelo qual estes afetos o faziam sofrer, bem como, um novo sopro de liberdade. A catarse de integração é assim o efeito da criação de uma nova noção de identidade, ligada à intuição da experiência unificada de si, da unidade essencial com o Self, do Deus-Eu. O método do psicodrama, conduzindo o indivíduo à experiência da realidade suplementar, promove a sua expressão espontâneo-criadora como expressão da verdade, como presença afetiva de seu self no momento da ação. A realidade presente é assim ressignificada ao nível da realidade suplementar, sendo este o único critério pelo qual podemos nos assegurar da eficácia do nosso método. Esta experiência proporciona um novo patamar de estruturação da realidade promovido pela verdade do self, qual seja, de um sentir, pensar e agir integrados. Podemos aqui compreender o sentido do que Moreno denominou como catarse de integração: a experiência pessoal, ao mesmo tempo afetiva e cognitiva, de transcendência


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do estado de condicionamento pelas conservas culturais que mascaram o vínculo originário entre pessoa e verdade, numa dada situação.

5.3. A teoria da matriz de identidade 5.3.1. O desejo de self Temos afirmado que a manifestação da espontaneidade no homem é um fenômeno ontológico. Moreno demonstra mais uma vez a coerência dessa tese através da sua teoria da matriz de identidade. Entendemos aqui por identidade o sentido de existir como self, intrinsecamente ligado à espontaneidade. A matriz de identidade é não só a matriz, mas também o locus e o status nascendi, através da qual se organiza e diferencia o self de cada indivíduo. Moreno descreve a matriz de identidade como o universo relacional no qual vive o bebê, antes e imediatamente após o seu nascimento.392 É a placenta social da criança, analogia que aponta para a função de suprimento das necessidades da criança em seu processo de desenvolvimento a um só tempo corporal, psicológico e social. Todos os elementos interatuantes deste processo encontram nela o seu lugar: os fatores genéticos, os fatores sociais e a interação entre estes mediada pela espontaneidade. Além do próprio bebê, fazem parte da matriz de identidade: a sua mãe e demais pessoas que cuidam dele, ou se relacionam de uma maneira ou outra com ele, bem como as coisas ou objetos que o rodeiam. Encontramos na matriz de identidade o indivíduo humano em seu conjunto primordial de relações. Antes de mais nada, voltemos a sublinhar que a ação é uma categoria ontológica central na teoria do psicodrama. Isto se torna claro através da compreensão de que a espontaneidade qualifica a ação como expressão do self. Parafraseando o texto bíblico — “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gênesis 1,1) —, afirma nosso autor: “no princípio era o ato”393, isto é, o ato espontâneo- criador. Todo o processo formativo operado na matriz de identidade acontece na ação, cujo sentido é dado pelo self através da espontaneidade. Mais especificamente, através da sucessão de atos que a criança realiza na relação com as pessoas com quem interage e com o mundo, na sua busca de assimilação do real ao seu self. A situação do nascimento é o protótipo de todo ato espontâneo-criador. Moreno argumenta que o nascituro se prepara se aquecendo para agir espontaneamente de acordo com a instigação das circunstâncias do momento de seu nascimento. Trata-se de uma situação nova na qual ele muda de um compartimento fechado, o útero, para um espaço aberto, o mundo, onde terá de respirar pela primeira vez e se ajustar rapidamente às novas condições. Para tanto, além de uma programação biológica pautada pelas suas disposições instintivas, dispõe da espontaneidade. Retomando a tese de Moreno de que a espontaneidade é o locus do self, compreendemos que o ato de nascer, como ato espontâneo-criador, é a primeira expressão humana do que denominamos desejo de self — regida pela potência A1, nos termos de Schelling. 392 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, pp 100-106. 393 Idem, p 23.


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Moreno não abordou particularmente a questão do desejo em sua obra, o que acabou gerando uma enorme lacuna teórica a ser preenchida. Isto passou a ser feito pelos seus seguidores, na maior parte das vezes, de modo mais ou menos explícito, sob influência da psicanálise. O grande inconveniente disto é que, nestas tentativas, a noção de desejo da psicanálise tem sido “enxertada” na teoria da matriz de identidade de maneira “incompatível” com a perspectiva ontológica adotada por Moreno. Pois difere grandemente do conceito de desejo de self, que tratamos de definir como o modo de desejo diretamente relacionado à expressão espontâneo-criadora. Desejo ontológico, e neste sentido, de uma anterioridade abrangente na qual o desejo sexual, estudado pela psicanálise, encontra-se inserido. Voltemos a citar as passagens de Moreno que corroboram esta ideia: O self é o cadinho de experiência oriunda de muitas direções. Uma destas dimensões do self é a social; outra, a sexual; outra, a biológica; outra, a cósmica; mas, o self é mais do que qualquer uma destas dimensões.394 A espontaneidade é o mais antigo dos fatores filogenéticos a compor o comportamento humano, certamente mais antigo que a memória, a inteligência ou a sexualidade.395 Veremos na sequência da nossa abordagem de que maneira o desejo, conforme estudado pela psicanálise, pode ser compreendido no quadro da ontologia moreniana como um modo particular do desejo de self, possibilitando assim esclarecer em que aspectos as teorias do psicodrama e da psicanálise são compatíveis ou incompatíveis, em outras palavras, de que maneira elas podem dialogar criativamente. Por ora, nos ateremos em mostrar como o conceito de desejo de self nos possibilita compreender morenianamente o complexo processo de desenvolvimento no qual se dá a formação da identidade. Cumpre-se destacar, inicialmente, que o processo de formação da identidade ocorre, desde o seu primeiro ato, relacionalmente. O nascituro, evidentemente, não teria êxito em seu nascimento caso não recebesse ajuda de parteiros e da mãe. Depende da ação conjunta de pessoas para que possa sobreviver a este momento. Depende do desejo destas pessoas. E continua, por um longo período, a depender do seu cuidado, de modo a auxiliá-lo no suprimento de suas necessidades, materiais e afetivas. No entanto, entendamos, dependência não é o mesmo que passividade. Na medida da sua expressão espontâneocriadora, ele não se encontra passivo, mas, interage, ativamente, desde o início da sua vida, na relação com seus auxiliares cuidadores. Podemos dizer, neste sentido, que o indivíduo humano é, desde então, um ator espontâneo-criador. Certamente, poder-se-ia aqui objetar que o recém-nascido ainda não possui consciência de si, e, consequentemente, capacidade de representação de papéis, o que caracterizaria ou definiria o ser de um ator. Contudo, contra-argumentamos que o recém-nascido não possui consciência de si apenas se estivermos nos referindo especificamente à consciência ligada ao ego, com a qual normalmente nos identificamos depois de adultos. De fato, há consenso em compreender o ego como a instância necessária para toda e qualquer representação. Mas não falamos de ator no sentido estrito daquele que representa um papel, mas, antes, de agente, daquele que se encontra ativo no ato que realiza, sendo a espontaneidade, enquanto

394 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 2o. 395 Idem, p 20.


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locus do self, a fonte da atividade. A habilidade para representar um papel, adquirida posteriormente, é um atributo secundário do ator. O self espontâneo-criador é o atributo primário. Após o nascimento, o desejo de self se encontra naturalmente ativado na relação do bebê com seus cuidadores. É conhecida a pronta responsividade da mãe que acorda de madrugada ao leve choramingar de seu bebê para amamentá-lo. Neste caso, o desejo de self se manifesta bipessoalmente: no choramingo do bebê como também no pronto despertar da mãe. Este é um bom exemplo de encontro, no sentido moreniano do termo. Sinal da espontaneidade operando na relação como tele. A recente descoberta (1996) dos neurônios-espelho no campo da neurobiologia, pelos pesquisadores italianos Gallese, Fadiga, Fogassi e Rizzolatti 396, nos fornece o substrato fisiológico para a explicação científica deste modo de experiência interindividual que Moreno chamou de tele. A revelação da função dos neurônios-espelho veio corroborar o que podemos facilmente observar no cotidiano com nossos bebês, desde a mais tenra idade. Os gestos da mãe ou de seus cuidadores conferem ao bebê os modelos para os seus próprios gestos, no momento da ação, antes que tenha consciência de imitar, isto é, antes de adquirir a capacidade de representação, como dissemos a pouco, ligada ao ego. Através dos neurônios-espelho o cérebro do bebê produz uma ação virtual que mimetiza naturalmente a ação observada em seu cuidador, e vice-versa, que serve de base para o compartilhamento intersubjetivo automático entre os dois. Por exemplo, em um sorriso trocado entre a mãe e o bebê. O desejo de self se expressa, portanto, nesta etapa, através da ação, pelo mimetismo recíproco que acontece na interação bipessoal. Neste sentido, dizemos que há um encontro télico regido pelo desejo de self, comum a ambos. A espontaneidade é requerida a cada momento, a cada nova situação em que o bebê se depara no fluxo contínuo de seus atos. Isto se dá através do que Moreno denomina como “processos de aquecimento preparatório para estados espontâneos”. Significa que o bebê se prepara, se aquece para todos os seus atos. Nestes processos ocorrem dispositivos de arranque físicos e mentais. Em suas observações, Moreno supõe que, no ato de nascer, o bebê carece de dispositivos de arranque mental, porém, se vale de arranques físicos. Neste momento, os arranques mentais ficam sob incumbência de seus auxiliares, os parteiros e mãe. Na medida em que o bebê cresce, vão surgindo, paralelamente aos seus arranques físicos, arranques mentais. Neste ponto, discordo de Moreno. Dispomos de indícios bastante consistentes que há processos mentais já na vida intrauterina. Mas não precisamos nos deter numa discussão sobre esta questão, dado que ela foge ao nosso escopo neste momento. O importante desta ideia é que podemos observar a cada ação realizada pelo bebê o seu processo de aquecimento, ao mesmo tempo físico e mental. Moreno acrescenta ainda que se não houver sinal de aquecimento, conclui-se pela ausência ou perda de espontaneidade. Pensamos, neste caso, na patologia da relação com os cuidadores, dada pela repressão da ação espontânea da criança por parte do cuidador. Encontramos nessas situações de inibição da espontaneidade da criança o mecanismo de formação e reprodução de padrões patológicos dentro do âmbito familiar. Voltaremos adiante a este ponto, procurando caracterizar os aspectos psicossociodinâmicos envolvidos na formação destes padrões na matriz de identidade. Cada processo de aquecimento tende a estar localizado em uma zona. Trata-se do locus nascendi da ação. A zona é uma área, o espaço físico, na qual os vários elementos da matriz de identidade participantes em um dado ato se encontram em foco. Faz-se aqui oportuno frisar a diferença do significado dado por 396 FLEURY, H. J., KHOURI, G. S. e HUG, E. (orgs). Psicodrama e neurociência. São Paulo, Ágora, 2008, p 37.


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Moreno para o termo zona, daquele dado por Freud como zona erógena. Enquanto para Moreno zona diz respeito ao locus da espontaneidade na ação, para Freud, zona se refere à área de concentração da libido, isto é, da energia sexual ou erótica. De modo que, ao falarmos de zona, estamos falamos especificamente da noção de espaço do bebê. Quanto a sua noção de tempo, é restrita ao presente: tudo acontece no aqui e agora da ação. Isso porque o bebê, na sua primeira fase de desenvolvimento, ainda não adquiriu a noção subjetiva do tempo, nas suas três dimensões: passado, presente e futuro. Por isso, efetua seu aquecimento preparatório apenas para situações imediatas, para o espaço-tempo imediato. Neste contexto, situa-se o conceito de Moreno de “fome de atos”. Estando o tempo todo no aqui e agora, “a criança se comporta como se sofresse de uma síndrome de fome de atos”.397 A criança se aquece para agir de modo espontâneocriador, na relação com seus cuidadores, em cada ato — mamar, olhar, sorrir, defecar, urinar, pegar, segurar, sentar, engatinhar, tomar banho etc — , no fluxo contínuo de seus atos. Estas noções introdutórias são fundamentais para compreendermos de que maneira o processo de formação da identidade, isto é, da noção do eu, que se dá como organização, diferenciação e integração do self através do desempenho de papéis, durante todo o percurso da matriz de identidade. Atualizando o que já dissemos sobre o conceito de papel na teoria do psicodrama, acrescentamos agora que estes são formados como unidades de experiência interpessoal através da relação da criança com os seus cuidadores na matriz de identidade. Nas palavras de Moreno: O desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não emergem do eu; é o eu quem, todavia, emerge dos papéis. [...] Os papéis são os embriões, os precursores do eu, e se esforçam por se agrupar e unificar.398 Vejamos então como a matriz de identidade pode ser entendida como o locus de onde surgem os papéis e com eles o sentido do self.

5.3.2. Os universos existenciais Moreno distingue dois grandes períodos da matriz de identidade: o primeiro e o segundo universo. Em linhas gerais, o primeiro universo é caracterizado pela unicidade da ação no aqui e agora, e a comunicação não verbal de sentimentos através de gestos, olhares e sons vocais. O surgimento da brecha entre a realidade e a fantasia — que se dá com a aquisição da capacidade de representação através de significantes, portanto, da linguagem verbal —, marca o término do primeiro e o início do segundo universo. Este último é caracterizado pela divisão da personalidade entre atos da realidade e atos da fantasia, a aquisição da capacidade de adoção e jogo de papéis (role playing) e o progressivo predomínio da comunicação verbal. Enquanto no primeiro universo existem apenas papéis psicossomáticos, no segundo universo passam a existir dois tipos de papéis: os papéis sociais (ligados aos atos da realidade), e os papéis psicodramáticos (ligados aos atos da fantasia).

397 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 118. 398 Idem, p 25.


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Comecemos, logicamente, com o estudo do primeiro universo. O papel de comedor ou ingeridor, que se estrutura com o ato de amar, é protótipo dos papéis do bebê na primeira fase do seu desenvolvimento. Tais papéis são denominados por Moreno como papéis psicossomáticos. Podemos dizer que na zona do ato de mamar se encontram em foco: a boca do bebê, o mamilo do peito da mãe, o leite. O resultado da interação nessa zona é que se estabelece uma mútua expectativa de papéis entre os parceiros: mãe e bebê. O choro do bebê é um dispositivo de arranque físico no seu aquecimento preparatório para o ato de mamar. A interpretação adequada, télica, amorosa desse choro, por parte mãe, funciona como um arranque mental para que ela se aqueça para o ato de dar seu peito a ele. Em suas primeiras mamadas, a única parte do corpo do bebê envolvida no foco da ação, chamada zona oral, é a boca. Com o passar das semanas, o bebê vem a utilizar também suas mãos para tatear o peito da mãe, seus olhos para mirar o rosto dela, seus olhos, seu sorriso, de modo que outras partes de seu corpo vão entrando em foco, e assim, integradas na ação. A criança se aquece para o ato de comer não só através de arranques físicos, seguindo o seu instintivo impulso de fome, mas também através de arranques mentais, associados a motivos afetivos. Moreno argumenta que, no nível físico, uma zona nunca está inteiramente separada de cada uma das outras zonas, o que faz com que as várias zonas desenvolvam, gradualmente, diversas relações ao nível da realidade experiencial. De modo que os vários papéis psicossomáticos vão se desenvolvendo na medida em que o nível da realidade experiencial vai se tornando mais complexo. Há, portanto, toda uma teoria da ação espontâneo-criadora subjacente à teria da matriz de identidade de Moreno. Para além de todo tipo de determinismo que nos induza a pensar a existência humana de maneira puramente imanente, limitada causalmente pelas forças biológicas e estruturas sociais que se impõem sobre ela, a teoria moreniana abre espaço para a transcendência, o novo, e a liberdade no ato criador. O bebê nas suas ações não se encontra meramente a mercê dos imperativos que seus impulsos biológicos ou as demandas que o meio social lhe impõe — perspectiva ontológica fisicalista e mecanicista ligada à filosofia moderna —, mas, como acabamos de ver, se envolve em processos de aquecimentos para estados espontâneos na relação com as pessoas que participam da sua matriz de identidade, processos estes de cocriação. Moreno elabora uma hipótese explicativa para tal fenômeno, na qual a espontaneidade não é, estritamente, um fator hereditário nem, estritamente, um fator ambiental: Esse fator e [espontaneidade] é diferente e algo mais do que a energia dada que se conservou no corpo do recém-nascido. É um fator que o habilita a superar a si mesmo, a entrar em novas situações como se carregasse o organismo, estimulando e excitando todos os seus órgãos para modificar as suas estruturas, a fim de que possam enfrentar as suas novas responsabilidades.399 No estado atual das pesquisas biogenéticas e sociais, parece ser mais estimulante supor que, no âmbito da expressão individual, existe uma área independente entre a hereditariedade e o meio ambiente, influenciada mas não determinada pela hereditariedade e as forças sociais. O fator e teria a sua localização topográfica nessa área. É uma área de relativa liberdade e independência das determinações biológicas e sociais, uma área em que são formados novos atos combinatórios e permutações, escolhas e decisões, e da qual surge a inventividade e a criatividade humana. 400

399 Idem, p 101. 400 Idem, p 101.


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O fator e encoraja novas combinações mais além do que os genes realmente determinam. O número dessas combinações é praticamente ilimitado. O fator tele opera em toda estrutura social, mas recebe a influência do fator e para aumentar ou diminuir seu alcance, acima ou abaixo de certo nível. Quer dizer, o processo de escolha de um indivíduo pode se expandir ou decrescer segundo o fator e. De acordo com a nossa hipótese, a maioria das características físicas e mentais é determinada geneticamente, mas são possíveis combinações entre elas e as forças sociais cujo aparecimento é atribuído ao fator e.401 Podemos entender esta relativa liberdade e independência das determinações biológicas e sociais proporcionada pela espontaneidade, de que nos fala Moreno, como a expressão do desejo de self. Liberdade esta que, vale a pena frisar, se manifesta desde o início da vida como possibilidade de escolhas e decisões, em outras palavras, de criação, no encontro télico do bebê com seus cuidadores. O primeiro universo é subdividido em duas fases. A fase inicial, chamada de “matriz de identidade total”, começa logo após o nascimento. Recebe este nome devido ao fato de o bebê experimentar as partes do seu corpo, bem como, outras pessoas e objetos, como coexistentes com ele, pertencentes a ele, numa identidade total. Há experiência de uma só coisa: o ato presente. Na situação do ato de mamar, o bebê experimenta o seio materno, sua boca e o leite de modo indissociável. Já na segunda fase, também chamada de “matriz de identidade total diferenciada ou realidade total”, as pessoas, objetos e partes do corpo do bebê passam a ser diferenciados como unidades que atuam separadamente. Isto se dá em torno do sexto mês. Começa a aprender, na própria experiência de seus atos, a distinguir os limites entre o seu corpo e o dos objetos e pessoas ao seu redor, ora concentrando a atenção no outro e se esquecendo de si mesmo; ora, o inverso, prestando atenção em si mesmo e esquecendo-se do outro. Nesta fase, o bebê ganha certa autonomia, passando a realizar atos sem que alguém o auxilie, como pegar um objeto que se encontra ao seu alcance. Podemos dizer que no primeiro universo não existe separação entre sujeito e objeto na unicidade da ação, mas apenas “o acontecimento e a vivência de identidade”.402 Em função dessa unicidade da ação, os componentes físicos e mentais se encontram ligados nos processos de aquecimento preparatório para os diferentes papéis psicossomáticos. Em outras palavras: o perceber, o sentir, o pensar e o fazer se encontram indissociáveis no aqui e agora da ação. O que a criança subjetivamente experimenta é o afeto imediato ligado ao que é objetivamente corporal, sensório-motor — valendo-nos do termo de Jean Piaget que abordaremos adiante —, no ato que realiza. Tudo o que acontece a ela, no fluxo contínuo de seus atos, se dá afetivamente na unicidade de cada ato. Assim, vai sendo formado um complexo de registros afetivos que serve de base para suas ações subsequentes. A compreensão desta unicidade da ação permitiu a Moreno defender a posição de que no primeiro universo ainda não existe para a criança o inconsciente nos moldes propostos pela psicanálise, de onde promanariam os fenômenos mentais.403 Para Moreno, os fenômenos mentais da criança no primeiro

401 Idem, p 102. 402 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Campinas, Editorial Psy, 1993, p 112. 403 Idem, p 119.


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universo promanam exclusivamente da própria ação, espontaneamente criada no aqui e agora das relações interpessoais, e não de um inconsciente que subjaz à ação, como postula a psicanálise. Não há ainda no primeiro universo o fenômeno da imagem interior, substrato do inconsciente psicanalítico, pois não há maturidade neurofisiológica para tanto. É o que nos confirma os trabalhos psicogenéticos de Piaget, como veremos logo adiante. Todavia, o mérito da psicanálise de procurar explicar como se dão os fenômenos mentais nos termos de uma psicologia do desejo não foi incorporado por Moreno, intento que procuraremos fazer aqui. Nossa hipótese é a de que as ações no primeiro universo são regidas pelo desejo de self que se manifesta na relação diádica bipessoal bebê/cuidador. Quanto aos processos ligados à triangularização do desejo, que a psicanálise se incumbe de descrever sob a ótica do complexo de Édipo, veremos que encontram seu lugar apenas a partir do segundo universo da matriz de identidade. Este é um aspecto crucial acerca da diferença entre a concepção moreniana do desenvolvimento infantil e a da psicanálise, a ser por nós retomado. A entrada no segundo universo acontece com o aparecimento da brecha entre a fantasia e a realidade, e o desfazimento da unicidade da ação. O mundo da identidade total, no qual tudo é real, dá lugar a um outro, no qual coisas reais se diferenciam de coisas imaginadas. A personalidade da criança passa a estar normalmente dividida em dois caminhos emocionais distintos, nos quais a espontaneidade flui através de dois diferentes conjuntos de processos de aquecimento preparatório: um de atos da realidade e outro de atos da fantasia. Isso acontece por volta do décimo oitavo mês após o nascimento. O que determina esta divisão é a aquisição da capacidade de representação através de significantes. Falamos já de significantes no capítulo sobre sistemas culturais, e voltaremos a eles, mais detalhadamente, nos próximos capítulos. Por ora, o importante é que se diga que esta aquisição é o que permite o aprendizado da linguagem verbal na interação com as pessoas que pertencem a matriz de identidade. Na medida em que a experiência da criança se torna conectada às palavras numa narrativa, ela perde a sua plenitude original de identidade total. A criança adentra desse modo em um novo universo existencial no qual deixa de viver o fluxo de experiência imediata que caracteriza o primeiro universo, passando a ter de representar a si mesma através das palavras. Dito de outro modo, a experiência deixa de ser imediata para ser mediada discursivamente pela linguagem verbal. É certo que levará ainda algum tempo, desde que comece efetivamente a falar e a se auto-nomear como “eu”. Este ato corresponde a capacidade de se reconhecer como que “de fora”, a partir do exterior, como objeto. Trata-se da já aludida separação sujeitoobjeto. Com esta operação, torna-se capaz de representar tanto a si mesma como ao outro. Podemos assim dizer que a aquisição da linguagem é coextensiva a aquisição da capacidade de jogar papéis (role playing), como interfaces do mesmo fenômeno: o fenômeno da representação. Faz-se oportuno a esta altura mencionar os trabalhos de Jean Piaget. Em seu livro “A formação do símbolo na criança”, Piaget nos mostra que a representação figurada surge como imitação interiorizada. Esta difere da imitação direta, na qual a criança reproduz exatamente o que tem diante dos olhos, característica do período precedente chamado sensório-motor. Para Piaget, o desenvolvimento se inicia e tem para sempre como base os esquemas sensório-motores, organizados num período que se estende do nascimento até o décimo oitavo mês. Isto se dá através da procura da criança de conservar e reencontrar, na relação com os outros e seu meio ambiente, totalidades simultaneamente motoras e perceptivas que acompanham o funcionamento de seus órgãos, num esforço de repetição que acaba por constituir tais esquemas. Os primeiros esquemas são adquiridos inicialmente a partir das impressões que assaltam o recém-nascido de


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maneira reflexa. Depois passa a existir uma circularidade que promove uma diversificação progressiva dos esquemas por assimilação e acomodação combinadas. Neste período, a atividade da criança é bipolar: por um lado, voltada à assimilação de objetos exteriores aos esquemas sensório-motores anteriormente formados; e, por outro, à acomodação destes esquemas aos objetos exteriores. Daí surge a imitação como tendência a reproduzir os modelos assimiláveis à atividade própria, acomodando-a a estes. A imitação, a princípio esporádica, vai a partir do oitavo mês se tornando sistemática e direta. Um exemplo disto é o de uma criança de um ano e dois meses que vê seu pai calçar um de seus pés de sapato e o imita calçando o outro. A afetividade tem um papel fundamental em todo este processo. As retornos afetivos positivos por parte dos cuidadores motivam a atividade, a ação das crianças; enquanto os negativos a inibem. De modo que, para Piaget, “a imitação vem assim se inserir, e é esta a nossa conclusão essencial, no quadro geral das adaptações sensório- motoras que caracterizam a construção da própria inteligência”.404 Desta passagem textual podemos inferir a grande importância dada a imitação na teoria piagetiana. Segundo Piaget, a inteligência se encontra em sua base ligada à capacidade imitativa, a qual, por sua vez, encontra-se originalmente ligada aos processos sensório-motores e afetivos. Esta noção contrasta com a tradicionalmente consagrada, que liga a inteligência apenas aos processos cognitivos. Contudo, a derradeira importância da imitação reside no fato de que, a partir de um dado momento, a imitação se interioriza, torna-se imagem interior do modelo que precede a sua imitação. Mais uma vez, nas palavras de Piaget: Doravante, a imagem adquire a sua vida própria e antecede de tal modo a imitação que, ao imitar, o sujeito ignora muitas vezes que copia, como se a sua réplica parecesse emanar de si próprio, ou seja, prolongar precisamente as suas imagens interiores, em vez de determiná-las.405 A gênese da imagem não se encontra, portanto, na percepção pura, mas na imitação, ligada aos esquemas sensório-motores. A constituição da noção de objeto se dá com esta gênese, na medida em que “o corpo de outrem torna-se uma realidade comparável, sem ser idêntica, ao próprio corpo”.406 Além disso, “a imagem é imediatamente integrada na inteligência conceitual a título de significante”.407 Fica claro agora a conexão dos processos cognitivos com os sensório-motores, visto que não existe uma oposição radical entre o espaço representativo e o espaço sensório-motor, mas uma continuidade diferenciada. Em suma, a atividade representacional tem como base os esquemas sensório-motores. É interessante observar os muitos aspectos de correspondência da teoria piagetiana do desenvolvimento infantil com a moreniana. A começar pela nítida correspondência entre o período sensório-motor e o primeiro universo da matriz de identidade; e, a seguir, o segundo período piagetiano, denominado representativo, e o segundo universo da matriz de identidade. Outro aspecto fundamental é o paralelismo entre o esforço de assimilação do universo de que nos fala Piaget e a fome de atos de Moreno. Podemos ainda ressaltar a importância dada à ação, ou melhor, aos atos da criança, na sua relação com os outros e o meio ambiente, como locus do processo de organização e diferenciação do ser da criança, nos dois autores. É certo que Piaget não utiliza o conceito de papel, como Moreno, mas o de esquemas. 404 PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro, LTC, 1990, p 111. 405 Idem, p 97. 406 Idem, p 113. 407 Idem, p 101.


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Porém, lembrando a teoria antropológica de G. Durand sobre a formação das imagens, apresentada em capítulo anterior, podemos facilmente apreender que os papéis são prolongamentos de esquemas corporais operando ao nível da interação interpessoal. Neste sentido, podemos dizer que todos os papéis tem como base os esquemas sensório-motores. No caso dos papéis psicossomáticos, estes são formados justamente no período de organização e diferenciação dos esquemas sensório-motores. No caso dos papéis sociais e dos papéis psicodramáticos, estes são formados no período em que surge a imagem e a atividade representativa, apresentando por isso caráter representativo e simbólico. Uma última observação é quanto a importância dada a função da imitação nas duas teorias. Mostra o acerto da intuição de ambos os autores na compreensão dos mecanismos subjacentes ao comportamento humano, numa época em que os neurônios-espelhos — que confirmam esta intuição — ainda não havia sido descobertos. A entrada no segundo universo é sentida como uma perda: a perda pelo bebê da plenitude da sua experiência original. A harmonia anterior é quebrada. Isso por que apenas parte da sua experiência é passível de ser representada. Para se adaptar ao mundo da realidade social, a criança vai gradativamente adotando determinados padrões de conduta através dos chamados papéis sociais. Aprende a se adequar às noções socialmente instituídas de espaço: dentro e fora, perto e longe, aqui e lá, encima e embaixo; e de tempo: passado, presente e futuro. Como também às regras morais de seu grupo social: isto pode, aquilo não pode; isto é bom, aquilo é mau; etc. De maneira que passa a se aquecer para os atos em que estas noções são exigidas: os atos da realidade. Grande parte do que percebe e sente se torna um mistério. O que não pode ser expresso através dos papéis sociais, nos atos da realidade, encontra uma outra via: a dos papéis psicodramáticos, nos atos da fantasia. Estes, tanto podem ser vivificados introspectivamente, no plano mental; como também no plano da ação concreta, no ato de brincar. O ato de brincar é o momento propício no qual a criança experimenta concretamente a sua fantasia. Para que o ato de brincar possa de fato se dar, faz-se necessário que as regras do espaço- tempo socialmente instituído da realidade sejam temporariamente abandonadas, ou melhor, substituídas por outras regras: as regras do “como se”. O que só pode ser feito de modo compartilhado. Em seu livro “O brincar e a realidade”, Winnicott nos mostra que é fundamental que os pais legitimem o ato de brincar da criança, essencialmente, através de seu olhar, da sua observação, para que esta atividade se torne um “espaço potencial” para os “fenômenos transicionais” através dos quais emerge a criatividade da criança. E nos adverte que, caso este espaço não seja adequadamente constituído, a criança tenderá a apresentar problemas em seu desenvolvimento. Nas palavras de Winnicott, o ato de brincar se faz necessário para se “alcançar um status unitário, ou um estado de integração espaço-temporal onde existe um eu (self), que contém tudo, em vez de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e abandonados”.408 De modo que se não for dada a oportunidade de brincar à criança, permanecerá nela a insatisfação em função daquilo que fica oculto e dissociado da sua identidade, em outras palavras, do sentimento de perda de seu self. Isso porque o ato de brincar possibilita o locus para os fenômenos transicionais, isto é, uma área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos, para um entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva da criança. Piaget nos auxilia também neste ponto com a sua argumentação de que o ato de brincar é um jogo simbólico no qual a imitação não diz respeito ao objeto presente, mas sim ao objeto ausente, evocado 408 WINNICOTT, W. D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975, p 98.


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ludicamente, numa busca de assimilação do universo existencial da criança. Já, nos atos da realidade, o que ocorre é uma representação adaptada, isto é, quando a imitação se encontra acomodada ao objeto presente. O pensamento de Moreno é plenamente consoante a estas ideias Winnicott e Piaget. Voltaremos a este ponto a seguir, quando apresentaremos o seu conceito de “fome cósmica”, utilizado para designar o movimento teleológico de autointegração do self no segundo universo. Por ora, no que ainda diz respeito a este ponto, Moreno nos mostra que mesmo com o adequado encaminhamento dos dois conjuntos de processos — de atos da realidade e atos da fantasia —, sempre haverá no íntimo da criança uma luta entre os mesmos, que se estenderá por toda a vida adulta. A pessoa, na busca da diferenciação da sua identidade, normalmente procura manter um equilíbrio entre os dois caminhos, sem abolir um em função do outro, sendo capaz de se transferir de um para outro sem confundi-los. Durante o percurso do segundo universo — também denominado por Moreno de experiência de inversão da identidade — vai se dando o aprendizado das noções de eu, outro e mundo através do duplo movimento de sair de si e voltar para si. Numa primeira etapa, o role playing funciona como a operação fundamental para a aprendizagem deste duplo movimento, ao possibilitar a adoção de novos papéis. Tal operação surge espontaneamente à criança quando ela começa, por exemplo, a imitar o cachorro de casa, ou quando brinca de dar de comer a uma boneca, representando sua mãe. Esta é também uma maneira de reconhecer o outro, explorando o seu universo interacional, o que pode ser compreendido como parte de seu processo de diferenciação. Todavia, o pleno reconhecimento do outro só se torna possível com a etapa seguinte: de inversão de papéis. Esta acontece quando a criança passa a aceitar a troca simultânea de papéis. Por exemplo, quando a criança toma o papel da mãe e a mãe o da criança. A inversão de papéis é a operação que conduz à compreensão profunda do que se passa com o outro no contexto da ação recíproca. Moreno defende que a inversão de papéis é um método mais sofisticado do que o role playing, na medida em que favorece a tele, a retrojeção, o encontro, possibilitando atingir um melhor grau de compreensão do outro. “A inversão de papéis é como um role playing bilateral”.409 É a operação que conduz à plena socialização e integração da identidade. Todo este processo de diferenciação se esclarece ainda mais com a correlação entre as etapas da matriz de identidade e as técnicas psicodramáticas criadas por Moreno. Retomemos aqui o que já dissemos sobre as três técnicas psicodramáticas básicas: o duplo, o espelho e a inversão de papéis. A “técnica do duplo” corresponde à vivência do primeiro universo, momento no qual a criança depende em grande parte do auxilio de seus cuidadores para realizar seus atos. Na prática, a técnica do duplo consiste no trabalho de um ego-auxiliar que procura representar o papel do protagonista, buscando estabelecer uma identidade com ele, agindo como ele. Presta-se a ajudar o protagonista a reconhecer aspectos de seu ser — emoções, sentimentos, imagens — que não consegue expressar sozinho. A “técnica do espelho” corresponde à primeira etapa do segundo universo, momento em que a criança começa a se reconhecer de fora, a partir do exterior. A técnica consiste em colocar o protagonista fora do espaço dramático para assistir a um ego-auxiliar representar o seu papel. Presta-se a ajudar o protagonista a reconhecer aspectos 409 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. São Paulo, Summus, 1983, p 158.


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de seu ser a partir da sua imagem objetiva, daquilo que aparenta ser. A “técnica da inversão de papéis” corresponde à segunda etapa do segundo universo. Pode ser aplicada no espaço dramático a duas pessoas reais, que se relacionam representando uma a outra; ou, a um protagonista que representa uma outra pessoa enquanto um ego-auxiliar o representa. Presta-se a ajudar a reconhecer aspectos “invisíveis” da relação interpessoal. A aplicação destas técnicas viabiliza novas possibilidades de formação da identidade na medida em que o indivíduo retorna ao processo da sua matriz de identidade para a cocriação de novas formas de reconhecimento do eu, do outro e do mundo. Utilizando estas noções concernentes ao segundo universo, procuremos agora formular o que acontece nesta etapa nos termos de uma psicologia do desejo. Com a exclusão do fluxo da experiência imediata que caracteriza o primeiro universo e o desfazimento da unidade da ação, a criança passa por uma profunda mudança no modo de experimentar o desejo de self. No primeiro universo, as ações são regidas pelo desejo de self que se manifesta na relação diádica bipessoal bebê-mãe ou cuidador. Com a entrada no segundo universo, desfaz-se esse padrão diádico bipessoal. O desejo de self passa a ser mediado por uma terceira pessoa. Entendamos o que isto significa. O outro passa a servir não mais como duplo, mas como espelho para a ação da criança. Em outras palavras, o outro deixa de servir como modelo para uma imitação direta na reciprocidade da relação bipessoal, para servir como modelo para representação, isto é, para uma imitação interior que serve de matéria-prima, melhor dizendo, de significante, para o desempenho tanto de seus papéis sociais, como de seus papéis psicodramáticos. Assim, com a passagem do primeiro ao segundo universo, o movimento promovido pelo desejo de self vai dos processos de identidade aos de identificação. Desenvolveremos este aspecto da teoria nos próximos capítulos. Por ora, diremos apenas que os processos de identificação no segundo universo conduzem à formação do ego, aqui entendido como a estrutura representacional do self. Veremos inclusive de que modo podemos nos valer das descrições dos processos de identificação oriundas da psicanálise, para melhor compreender a formação dos papéis sociais e psicodramáticos e, consequentemente, do ego. Para concluir. Com a passagem por estas etapas da matriz de identidade é formada a base psicológica para todos os processos de desempenho de papéis. Os papéis psicossomáticos são formados durante o primeiro universo através da interação da criança com seus cuidadores. Estes, ao perceber e atender as necessidades da criança, funcionam como seus duplos, auxiliando-a a estruturar seus papéis servindo de modelos para a sua imitação direta, numa experiência de identidade com eles. Os papéis psicossomáticos se desenvolvem em diferentes loci, correspondentes às suas zonas de ação. Estas vão sendo agrupadas e integradas na medida em que o nível da realidade experiencial vai se tornando mais complexo. De modo que, ao término do primeiro universo, a criança alcança um primeiro nível de organização, diferenciação e integração da sua identidade dado pelo conjunto das relações entre seus papéis psicossomáticos. Com o surgimento da brecha entre a realidade e a fantasia, e a entrada no segundo universo, a criança passa a representar papéis. As pessoas de seu ambiente sociocultural passam então a servir como modelos de identificação para a sua ação, o que acontece geralmente de modo inconsciente, ou melhor, sem que a criança tenha a intenção consciente de imitá-los. Falamos de identificação no sentido de que o outro é percebido como alteridade, não mais como identidade. Os papéis sociais são socialmente constituídos na medida em que a criança toma parte na estrutura da realidade social, por exemplo, no papel de filho, irmão, amigo, aluno. Os papéis psicodramáticos, por sua vez, são desempenhados como “personificações


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de coisas imaginadas, tanto reais como irreais”410 — papel de médico, mãe, super-herói, monstro — nos atos de fantasia das brincadeiras da criança, no “como se”. O desejo de seus cuidadores é determinante neste processo na medida em que pode tanto permitir a expressão espontâneo-criadora da criança e um adequado desenvolvimento de seus papéis de acordo com o sentido de seu self, como prejudicar seu desenvolvimento, na medida em que o inibe. A teoria da matriz de identidade de Moreno descreve assim o percurso existencial de construção da identidade pessoal de cada um de nós. Processo que se dá na ação, enquanto experiência relacional com os outros e o mundo, tendo os papéis como unidades de interação. A espontaneidade é o fator que proporciona a criança entrar a cada nova situação com relativa liberdade e independência das determinações biológicas e sociais, possibilitando escolhas e decisões; em outras palavras, a inventividade e a criatividade humana, desde as primeiras etapas da vida. Operando em toda estrutura da matriz de identidade, a espontaneidade habilita a criança a participar ativamente de seu processo formativo na relação com seus cuidadores através da tele, do encontro e da cocriação.

5.3.3. Duas noções de eu: identidade x identificação É importante frisar, como bem o fez Moreno, que “identidade não deve ser confundida com identificação”.411 Entendemos por identidade a vivência originária, dada, de não separação, de unidade com o outro e o mundo, enquanto “a identificação não é dada, mas o resultado de um esforço para ir mais além ou fora do que a pessoa é”.412 Como vimos no capítulo anterior, é fundamental para os nossos propósitos discriminar a diferença entre as duas noções pelas quais podemos nos reconhecer como eu: a de identidade, ligada ao self; e a de identificação, ligada ao ego. Recapitulando brevemente o que já falamos sobre o conceito de self. Em primeiro lugar, o self possui inúmeras dimensões — biológica, social, psicológica, sexual etc —, não podendo ser reduzido a nenhuma delas. Em segundo, o self é distinto do organismo individual, apesar de haver uma organização do self em cada organismo individual, tratando-se de um fenômeno universal. Em terceiro, existe a possibilidade de expansão — aumento de força — ou retração — diminuição de força — do self em cada organismo individual, diretamente proporcional à expressão da espontaneidade. Em quarto, o self é o denominador comum entre o homem e o Cosmos; em outras palavras, a ligação entre a expressão do self humano e o Self universal, ou Deus. Estes apontamentos são fundamentais para que possamos compreender como se dá, agora de modo mais detalhado, a organização, diferenciação e integração do self na matriz de identidade. Podemos apreender da abordagem de Moreno que, se por um lado, o self transcende o organismo individual, por outro, a sua organização acontece na imanência da ação de cada organismo individual. De modo que o self emerge e se organiza na matriz de identidade na medida em que o organismo individual se

410 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 129. 411 Idem, p 112. 412 Idem, p 114.


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diferencia na experiência de existir sendo si mesmo, em outras palavras, de ser o que é. Definido em termos existenciais, o self corresponde a um sentido de identidade — poderíamos também dizer, um sentimento de identidade — com o que se é, ou seja, com o que é originalmente dado; com o que, sendo transcendente, se expressa na imanência de seu existir. Ao longo do primeiro universo é formado um primeiro nível de organização, diferenciação e integração do self que vou aqui denominar de self psicossomático, denominação que faz referência ao modo como se dá este processo, através dos papéis psicossomáticos. Com a entrada no segundo universo, dá-se a aquisição da capacidade de representação e de linguagem verbal, de modo que a criança aprende a representar verbalmente a si mesma. Observamos isto claramente quando a criança diante do espelho exclama: — Olha o Felipe! O psicanalista de crianças Daniel Stern chama de self verbal ao sentido do self correspondente a esta etapa413, denominação que vamos tomar de empréstimo. De modo que falamos de um self verbal como desdobramento do self psicossomático, na passagem do primeiro para o segundo universo. A esta altura, a criança possui um sentido emergente do self como um sentimento de existir como indivíduo, apesar de não apresentar ainda consciência de si como um eu, isto é, consciência egoica. É a partir deste primeiro núcleo de organização do self que então se direciona o processo de formação do ego. Por ego, entendemos: a) a imagem de si com a qual cada pessoa tende a unilateralmente se identificar. Por exemplo, quando, referindo-se a si mesma, admite determinadas características como suas em detrimento de outras: “eu sou assim”; “eu não sou assim”; b) a estrutura ligada ao self cuja função é representar, isto é, identificar a si mesmo, aos outros e a tudo mais que há no universo com determinadas representações (imagens ou conceitos), de modo a discriminar uma coisa da outra. Dizemos, neste sentido, que o ego é um agente de identificação. Compreendemos que o processo de formação do ego é um processo dialético entre a afetividade do self e as demandas requeridas pela necessidade de adaptação à realidade social. Este processo se dá ao sabor de afinidades eletivas, de escolhas afetivas mais ou menos conscientes ou inconscientes, que acontecem nas relações da criança com os outros e o mundo. No começo de seu desenvolvimento verbal, as crianças falam de si mesmas exatamente do mesmo modo como elas são faladas por seus cuidadores. Elas tendem a se identificar com as avaliações e julgamentos que ouvem deles, espelhando-os. O ego vai se formando de acordo com a serie de identificações que vão se consolidando a seu respeito. Neste sentido, entendemos que o ego, como uma imagem de si com a qual a criança se identifica, produto da interface de seu self com o meio social, não deve ser confundido com a identidade, que, ligada intimamente ao self, transcende esta imagem. Estabeleçamos aqui uma breve correlação com as abordagens fenomenológicas de M. Henry e K. Wojtyla. Podemos dizer que a afetividade do self corresponde à autorrevelação do pathos da vida, enquanto a série de identificações ligadas ao ego, corresponde ao universo das representações ligadas à intencionalidade do ser-no-mundo, descritas por Henry. Do mesmo modo, podemos correlacionar a afetividade do self à ação intransitiva, e as identificações ligadas ao ego à ação transitiva, descritas por Wojtyla.

413 JACOBY, M. Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças. São Paulo. Paulus, 2010, p 93.


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5.3.4. Contrastes entre as perspectivas ontológicas de Moreno e Freud Estas noções nos permitem compreender a diferença radical entre as teorias do desenvolvimento infantil de orientação psicanalítica e a moreniana: a identidade do homem não como ego, mas como self, na sua ligação espontânea com o Self, Cosmos ou Deus. Esta diferença se esclarece ainda mais quando nos perguntamos pela ontogênese, isto é, pela origem da evolução da vida como um todo. Como temos reiterado ao longo deste livro, Moreno parte do pressuposto que “o Cosmos em devir é a primeira e última existência e o valor supremo. Apenas ele pode atribuir sentido à vida de qualquer partícula do universo, seja o homem ou um protozoário”.414 Haveria uma motivação inata que, de modo universal, determina os processos vitais: a vontade de valor supremo, que estamos aqui denominando desejo de Self. Vimos que esta pode ser correlacionada com a potencialidade de autorrevelação da Vida de Henry, e com as potências divinas de Schelling. Nossa tarefa agora será diferenciá-la da concepção de Freud. E isso, pelo seguinte motivo. Vários psicodramatistas têm feito contribuições à teoria da matriz de identidade de Moreno, com acréscimos ou modificações que agregam elementos de psicanálise. José Fonseca, um dos autores mais eminentes nesta linha, tem procurado desenvolver uma psicossociodinâmica baseada na matriz de identidade influenciada pela assim conhecida “psicanálise relacional”, corrente representada por autores como Spitz, Bowlby, Kohut e Winnicott.415 Fonseca insiste na importância da compreensão das relações entre a consciência e os fatores que inconscientemente determinam a conduta humana, procurando integrar elementos da psicodinâmica psicanalítica sem a descaracterização teórica do psicodrama. Concordo plenamente com Fonseca neste ponto. Mesmo porque falta na teoria de Moreno uma abordagem psicodinâmica dos processos de identificação. Em meu entender, penso ser possível desenvolver uma abordagem psicodinâmica no âmbito da teoria do psicodrama, sem descaracterizá-la, desde que tal abordagem esteja em conformidade com a perspectiva ontológica de Moreno. Para tanto, entendo que os possíveis acréscimos de elementos da psicanálise devem ser devidamente aferidos, tomando como critério a sua compatibilidade ou incompatibilidade com a perspectiva ontológica traçada por Moreno. Neste sentido, faz-se necessário apontar criticamente a contradição ontológica entre os pressupostos da psicanálise e os da teoria de Moreno. O aspecto ontológico crucial que deve ser devidamente assinalado é que encontramos em Moreno uma teleologia, isto é, uma finalidade que orienta tanto o processo de evolução da Vida como um todo, como o processo de desenvolvimento infantil: a autointegração do Self, Cosmos ou Deus. Em Freud, todavia, encontramos a negação de toda e qualquer teleologia. A libido sexual ocupa na teoria freudiana o lugar daquilo que impulsiona a vida humana ao acaso, sem nenhuma finalidade. Para compreender a hipótese de Freud, diria introdutoriamente que se trata um processo que opera a partir de uma relação de forças biopsicológicas e sociais — dimensão dinâmica — que se regula ou resolve economicamente com o balanço ou equilíbrio destas forças. Freud postula que a energia sexual acumulada no intercurso da vida do indivíduo humano precisa ser de alguma maneira descarregada, o que proporciona prazer. E isso, desde as fases mais prematuras da vida do bebê. Neste sentido, entende-se

414 MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. Op cit, p 15. 415 FONSECA, J. Psicoterapia da relação. São Paulo, Ágora, 2000, p 116.


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que a vida humana é regida pelo princípio do prazer. Porém, a busca pelo prazer não pode ser feita de modo desenfreado. Para conviver em sociedade o homem deve aprender a frear seus impulsos sexuais, obedecendo ao princípio da realidade. O que acontece em grande parte inconscientemente através do recalcamento da livre manifestação da sua libido, e assim, do seu desejo. Desse modo, o inconsciente é definido como a instância psíquica de conteúdos recalcados em função dos imperativos morais da vida social, regida pelo complexo de Édipo e a lei do incesto. Toda a produção da vida gira, portanto, em torno da questão da sexualidade e a sua repressão. Consideramos que esta teoria de Freud tem como pressuposto uma ontologia fisicalista reducionista, segundo a qual não há qualquer sentido dado na gênese da vida, mas apenas um dinamismo de forças materiais, sem finalidade, que ocorre ao sabor do acaso. Determinado por tal dinamismo, no qual concorrem forças biológicas, psicológicas e sociais, o homem procura autônoma e arbitrariamente conferir sentido ao mesmo. Assim, a cultura é erguida como reação aos sentimentos do homem diante do nada, do vazio, da falta. As diversas formas culturais — a linguagem, o mito, a arte, a ciência, a ética, a religião — correspondem ao esforço do homem em recalcar impulsos libidinais que não podem ser diretamente realizados, por serem incompatíveis com os imperativos morais da vida social. Isso se dá através dos mecanismos de defesa do ego, em especial, da sublimação, enquanto mecanismo que permite utilizar a energia barrada no inconsciente para a criação de formas culturais. Dessa maneira, o ego procura se defender dos impulsos antissociais inconscientes, projetando-os em formas culturalmente aceitáveis. O ego pode ser assim definido como a estrutura psíquica que tem como função produzir representações da realidade com o propósito de assegurar ao indivíduo o controle da sua libido. Freud formulou em seu livro “Totem e tabu”416, de 1912, uma hipótese que dá sustentação antropológica a sua teoria. É a hipótese do assassinato coletivo do pai na horda primitiva. Os filhos, submissos ao domínio do pai sobre todas as mulheres da horda, se reúnem para matá-lo, compelidos por sentimentos contraditórios de amor e ódio pelo pai. Após o assassinato, tomados por sentimentos de culpa, teriam se reunido novamente para instituir os dois tabus com que a moralidade humana teve o seu começo, a proibição do incesto e do parricídio, regulando assim os intercâmbios sexuais dentro da horda. Como consequência desta hipótese, Freud argumenta que Deus é a representação do pai morto que se tornou mais forte do que o fora vivo. Tornou-se um deus, adquirindo inicialmente a forma de um animal totêmico, e depois, caracteres antropomórficos, na forma das inumeráveis divindades de que temos conhecimento. Em “O futuro de uma ilusão”417, defende a ideia de que a religião é uma ilusão motivada pela nostalgia do pai, que revela a demanda do homem por proteção, justiça, orientação em face ao sentimento da sua pequenez e impotência diante do devir. Daí, a ideia de Deus como projeção da imagem do próprio homem, como mera ilusão. A religião decorre de uma indiferenciação do estado primitivo e infantil do homem, sendo, neste sentido, considerada uma neurose obsessiva coletiva. Como tratamento desta neurose, Freud recomenda que o homem abdique de sua crença em um Deus que detém o poder sobre o seu destino, a favor de uma visão realista do mundo, admitindo sua pequenez e impotência diante daquilo que não pode efetivamente dominar ou controlar. Concluímos que enquanto para Freud o sentido da vida é autônoma e arbitrariamente criado pelo

416 FREUD, S. Totem e tabu. Edição Standard Brasileira. vol.. Rio de Janeiro, Imago, 1996. 417 FREUD, S. O futuro de uma ilusão. Edição Standard Brasileira. vol.. Rio de Janeiro, Imago, 1996.


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ego, em resposta ao jogo aleatório do confronto de forças biopsicológicas e sociais no qual o homem se encontra inserido; para Moreno, é originalmente dado pelo Self, no seu movimento de autointegração, cabendo ao eu participar do mesmo como cocriador. Moreno promove, portanto, uma abertura para a transcendência no horizonte da imanência mapeado por Freud.

5.3.5. A constituição do self psicossomático Estudaremos agora de que modo é formada a primeira organização do self, nos valendo das descobertas da pesquisa com crianças — especialmente os trabalhos de J. Lichtenberg e D. Stern, autores norte-americanos contemporâneos inseridos no campo da “psicanálise relacional” —, reunidas e discutidas por Mario Jacoby.418 Apresentaremos introdutoriamente algumas dessas descobertas, ao nosso entender, decisivas, não só para confirmar, como para ampliar a compreensão das ideias de Moreno acerca do desenvolvimento infantil. Pois elas nos ajudam a rebater certas noções dogmáticas da psicanálise clássica que colocam em descrédito estas ideias. As pesquisas, tanto J. Lichtenberg como D. Stern, resultam de observações de experimentos com crianças puerperais. Eles procuram estabelecer hipóteses acerca das primeiras experiências da infância. Um primeiro ponto crucial das observações de ambos autores é que elas contradizem a visão psicanalítica de que a criança recém-nascida é passiva. Mostram que ela é ativa na medida em que responsiva à mãe, ajustando-se e centralizando-se em torno de percepções afetivas e do diálogo real com ela.419 Daniel Stern propôs um modelo no qual a emergência de um senso de self se dá por meio de estágios de desenvolvimento desde o nascimento até os primeiros dezoito meses.420 Para ele, as crianças já são capazes de distinguir entre elas mesmas e outras pessoas no nascimento. Há sempre um senso de “self com o outro”. Reagem seletivamente a frequências de sons na faixa da voz humana, e conseguem focar seu olhar a uma distância de aproximadamente vinte centímetros, o que corresponde à distância dos olhos da mãe durante a amamentação. Além disso, funções autônomas orientadoras e, até mesmo, controladoras, já estão operando no bebê. Por volta dos 12 aos 21 dias de idade, eles podem copiar gestos de adultos com os seus rostos e mãos. Como dissemos anteriormente, encontramos a explicação neurofisiológica para este fenômeno no sistema dos neurônios-espelho do cérebro. Neste sentido, pode-se dizer que o recém-nascido é dotado de uma considerável competência cognitiva. A mãe e a criança formam uma díade, na qual elas se relacionam reciprocamente, acionando o comportamento uma da outra e reforçando-o. Neste estágio preliminar, até o segundo mês, eventos particulares são experimentados como suas próprias entidades, contudo, são percebidos como momentos separados, sem relações cumulativas uns com os outros. Stern chama de “self emergente” quando um processo criativo interno começa a organizar estes momentos distintos em estruturas sucessivamente mais amplas e compreensíveis. É a base que permite à criança experienciar, por volta do segundo mês, a sua intenção e motivação como, de fato, sendo dela própria. Nesta fase, chamada por Stern de “self nuclear”, o senso do bebê das suas fronteiras corporais desperta.

418 JACOBY, M. Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças. Op cit. 419 Idem, pp 64-69. 420 Idem, pp 86-95.


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Suas vivências consistem essencialmente de sensações corporais e de trocas de intimidade física, de estar junto, na presença de um outro: o cuidador. Contrapondo-se as descrições da psicanálise clássica, estas experiências podem ser mais bem compreendidas em termos de relação com um outro autorregulador, em vez de fusão ou simbiose. Uma nova fase se dá com o surgimento do que Stern chama de “self subjetivo”. Se, até então, a experiência subjetiva da criança era determinada pela regulação da mãe, entre o sétimo e o décimo quinto mês de vida, a criança passa a apresentar a necessidade de experiência comum. Stern descreve três tipos de estados internos, relativos à dimensão interpessoal, que a criança pode compartilhar sem ainda ser capaz de falar: ela se comunica gestualmente, buscando ativamente a atenção dos outros, bem como, compartilhar intenções e estados afetivos dos outros. O fator decisivo neste estágio é o que Stern denomina como “sintonia afetiva”, isto é, a capacidade que mãe (ou cuidador) e filho têm de entrar em sintonia com os afetos um do outro. Por meio de experiências de confirmação de suas percepções pela mãe (ou cuidador), vai sendo organizada a base para confiança da criança, tanto nela mesma quanto nos outros. Estas observações confirmam amplamente as ideias de Moreno sobre a manifestação da espontaneidade, e a capacidade de relação, tele e encontro nas interações do bebê com seus cuidadores, enfim, sobre a sua atividade, desde o ato de nascer e por toda a matriz de identidade. Lichtenberg, por sua vez, elaborou a teoria dos sistemas motivacionais inatos.421 Rejeitando a concepção da psicanálise clássica segundo a qual os seres humanos são regidos por apenas duas pulsões — a da sexualidade (pulsão de vida) e a da agressão (pulsão de morte) —, Lichtenberg diferenciou cinco mecanismos inatos básicos de sobrevivência, já ativos no recém-nascido, a partir dos quais surgem as motivações humanas. São eles: a) de regulação psíquica das necessidades fisiológicas; b) de apego e afiliação; c) de exploração e afirmação; d) de reagir aversivamente por meio de antagonismo ou afastamento; e) de prazer sensual e excitação sexual. Além disso, esta abordagem possui um enfoque relacional interpessoal, atentando para a relação do bebê com seus cuidadores. Uma mãe suficientemente boa, nos termos de Winnicott, seria a que interage adequadamente na relação com o bebê no que concerne a cada um destes sistemas motivacionais. Para Lichtenberg, os sistemas são independentes entre si. O que não impede que, dependendo da situação, duas ou mais motivações estejam envolvidas e relacionadas. Por exemplo, no caso da amamentação há evidentemente a necessidade fisiológica de nutrição; mas, o choro anunciando o desconforto ou a fome do bebê pertence à motivação aversiva, e assim por diante. Um outro aspecto da pesquisa de D. Stern é de especial importância para os nossos fins, qual seja, a que mostra de que maneira as experiências do bebê com os seus cuidadores são retidas na memória. Stern se vale do termo “RIG” — “Representações de Interações que foram Generalizadas” — para denominar os registros das experiências vividas nos diversos tipos de ação do bebê junto aos seus cuidadores que geralmente se repetem, e que ficam gravados na memória de forma genérica. Por exemplo: a amamentação, a troca de fraldas, o ninar para dormir, o banho. Tais memórias não são exatamente representações figurativas, visto que nesta fase ainda não há maturação neuronal para este tipo de memória; mas, registros afetivos — isto é, ligados a emoções ou sentimentos (satisfação, medo, dor) — que representam um tipo de experiência média ou protótipo. A cada situação que se repete — a cada novo ato de mamar, por exemplo —, a sua

421 Idem, pp 71-77.


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RIG correspondente é evocada, lançando expectativas acerca das interações do bebê com seus auxiliares. O processo é aberto, o que quer dizer que uma RIG acaba sendo modificada, ou melhor, modulada, de acordo com o afeto mobilizado a cada nova experiência. Voltemos então a nossa teoria da matriz de identidade procurando ampliar a compreensão do modo como acontece o desenvolvimento da capacidade de agir dos bebês através dos papéis psicossomáticos, à luz das abordagens de Lichtenberg e Stern. Em particular, elas nos ajudam a compreender melhor o mecanismo dos dispositivos de arranque físicos e mentais nos processos de aquecimento preparatório para estados espontâneos. Podemos claramente relacionar os arranques físicos aos cinco sistemas motivacionais inatos descritos por Lichtenberg; bem como os arranques mentais, às RIGs de Stern. Tomemos como exemplo, mais uma vez, o ato de mamar e o correspondente papel psicossomático de comedor. Suponhamos um bebê de seis meses na sua interação com uma mãe suficientemente boa, a fim de traçar um possível esquema acerca do que acontece com ele no momento em que começa a sentir fome. A sensação de fome aciona o sistema motivacional de regulação psíquica de necessidades fisiológicas, sendo também evocada a RIG da sua interação com a mãe no ato de mamar. Se a mãe se encontra por perto, e capta a movimentação do bebê que sinaliza seu processo de aquecimento para mamar, servindo prontamente seu peito para amamentá-lo, além da satisfação da sua necessidade de nutrição, o bebê se sente confirmado nas suas motivações de apego e afirmação, através do encontro dos olhares; de prazer sensual, no contato da sua pele com a da mãe; e de exploração, se neste ato experimentar diferentes maneiras de sugar o peito. Caso a mãe não se encontre por perto, ele grita ou chora, reagindo aversivamente à demora em ter o seu desconforto aliviado. Mas não perderá sua espontaneidade se o tempo de demora da mãe já tiver sido assimilado de modo, digamos, positivo, na RIG que serve de base para a sua interação, conforme um padrão de confiança. Além disso, a cada nova experiência de mamar, o bebê, valendo-se da sua espontaneidade, atualiza a sua RIG com suas novas descobertas e criações. Assim, o papel psicossomático de comedor deste bebê vai se desenvolvendo de modo bastante satisfatório, através da interação espontâneo-criadora com sua mãe. Nos casos de desenvolvimento insatisfatório, podemos presumir a existência de problemas na interação da díade criança-mãe. Pensamos em termos de deficiências nos processos de aquecimento em função da perda ou ausência de espontaneidade. Se a mãe se encontra em um estado depressivo, por exemplo, seu contato emocional com o bebê é prejudicado. Mesmo que o bebê sacie sua fome, suas motivações de apego, prazer sensual, ou exploração, não encontrando satisfação, podem acarretar na inibição da sua espontaneidade, no que se refere ao desenvolvimento desse papel psicossomático. Como consequência, a organização do self psicossomático ao término do primeiro universo pode se tornar bastante problemática, gerando diferentes graus de comprometimento patológico no prosseguimento da formação da identidade no segundo universo. As teorias de Lichtenberg e Stern aplicadas à compreensão dos processos da matriz de identidade, os esclarece de maneira muito mais adequada do que os pressupostos da psicanálise clássica, visto que, para esta, a única motivação do bebê é eliminar as tensões desconfortáveis relacionadas à frustração das suas pulsões libidinais. No exemplo do bebê com fome, a interpretação psicanalítica nos fala que a espera do bebê por ser amamentado é sentida como angústia. Ele passa a fantasiar — alucina o peito — a fim de aliviar a tensão, satisfazendo-se imaginariamente. Os trabalhos de Melaine Klein e sua escola defendem que a expressão mental dos instintos libidinais e destrutivos são como os primórdios das fantasias, “como


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um meio de defesa contra as ansiedades, um meio de inibir e controlar os impulsos instintivos, assim como a expressão dos desejos reparadores”.422 Para Lichtenberg, não é possível verificar um mundo de imagens durante o primeiro ano de vida, nem qualquer atividade fantasiosa.423 Como dissemos, ainda não há maturidade neurofisiológica para tanto. O trabalho desses autores — como o já citado de Piaget — confirma a hipótese de Moreno, segundo a qual a atividade da fantasia se inicia apenas com o surgimento da brecha entre a realidade e a fantasia e a entrada no segundo universo. Ademais, o modelo da psicanálise clássica se detém ao mundo interno, ou intrapsíquico, em detrimento do interpessoal. Os trabalhos de Lichtenberg e Stern, acima apresentados, ratificam a posição de Moreno quanto à centralidade da dimensão interpessoal no desenvolvimento infantil. Para concluir nossa explanação sobre a formação do self psicossomático, diremos — seguindo a diretriz de Moreno de que “os papéis são os embriões, os precursores do eu, e se esforçam por se agrupar e unificar”424, que ao término do primeiro universo se conclui o processo de organização e integração das diversas zonas de ação da criança, dado pelo agrupamento e unificação do conjunto dos papéis psicossomáticos. O psicodramatista Rojas-Bermudez defende a hipótese de que a formação de um “núcleo do eu”425 ocorre em torno de uma tríade de papéis psicossomáticos que emergem a partir das funções fisiológicas de ingerir, defecar e urinar. O desenvolvimento dos papéis de ingeridor, defecador e urinador é dado nesta ordem com a progressiva maturação do sistema neurológico da criança. Ligados às sensações cenestésicas, isto é, à sensibilidade corporal, estes papéis estabelecem relações entre: o mundo interno e o externo; o somático, o psíquico e o social; a regulação das necessidades fisiológicas e os climas afetivos (facilitadores ou inibidores); o pensar, o sentir e o perceber. Rojas-Bermudez nos fala de marcas mnêmicas — à semelhança das RIGs de Stern —, como os registros de vivências afetivas no psiquismo que ocorrem a partir das experiências em torno destes papéis psicossomáticos, na origem dos padrões de conduta. Assim, todas as ações e tomadas de decisão futuras partirão destes registros, que constituem a organização primordial do eu. Pensamos que o grande valor da teoria do núcleo do eu reside em vincular a primeira fase do desenvolvimento infantil aos processos formativos da vida somática, na sua ligação com a experiência emocional e afetiva da criança, com o meio ambiente social e cósmico. Consideramos, contudo, que o uso do termo self psicossomático é preferível ao de núcleo do eu por refletir a íntima conexão entre o corpo, a mente e o ambiente na organização original do self.

5.3.6. A divisão da experiência de self Comecemos retomando algo do que já dissemos. A passagem do primeiro para o segundo universo se dá pelo surgimento de uma estrutura que Moreno chamou de brecha entre a realidade e a fantasia. Conforme vimos em 4.1., esta estrutura corresponde àquela descrita por Morin surgida na escala filogenética devido à progressiva expansão do córtex cerebral humano, que possibilitou ao homem produzir imagens que evocavam a presença subjetiva, no seio da consciência, de objetos ausentes deste campo. Dessa

422 KLEIN, M. et al. Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, p 96. 423 JACOBY, M. Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporânea com crianças. Op cit, p 100. 424 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, p 25. 425 ROJAS-BERMÚDEZ, J. G. Núcleo do eu. São Paulo, Editora Natura, 1978.


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maneira, o homem tornou-se capaz de se reconhecer na sua existência, isto é, de perceber-se como um objeto entre outros. Este momento acaba por sobrevir a todo indivíduo com a maturação neurofisiológica processada nos primeiros dezoito meses de vida, de modo que a ontogênese de cada novo indivíduo humano remonta a filogênese da espécie. A aludida brecha é a estrutura que viabiliza o acesso à ordem simbólica da linguagem e da lei que rege as relações de trocas dentro das sociedades, de acordo com LéviStrauss. Vimos com Piaget que no momento em que imitação se interioriza surge a imagem metal que passa a operar como significante para toda espécie de representação simbólica, tal como a linguagem verbal. Ligando a existência corporal às palavras, a linguagem verbal é uma rede de significação que confere significados compartilhados aos acontecimentos. Sendo assim a base da organização social, atua como fator estruturante do desenvolvimento individual. Quando a criança começa a falar, o que coincide com o momento em que passa a ser capaz de tomar a si mesma como objeto de sua reflexão, ela é inserida na ordem sociocultural determinada pela linguagem, no mundo dos símbolos. Na matriz de identidade, a linguagem chega à criança através da fala de seus cuidadores. A aquisição da linguagem promove uma mudança radical na sua experiência de vida. Se por um lado, esta aquisição, evidentemente, enriquece o campo da experiência; por outro, todavia, o limita. Isso porque apenas uma parte do todo da experiência pode ser expressa em palavras, ou seja, simbolicamente representada. Neste sentido, Moreno nos fala da perda da “subjetividade espontânea” do bebê na qual sua existência e a do universo são uma e mesma coisa, não existindo partes fora dele. A criança ganha sua entrada na cultura ao custo da perda da plenitude de sua experiência de unicidade com o todo. Passa a experienciar o self como dividido, e a sentir esta divisão como tensão, angústia, ansiedade. Nas palavras de Moreno: A ansiedade é cósmica; o medo é situacional. A ansiedade é provocada pela fome cósmica de manter a identidade com o universo inteiro.426 Ele [o bebê] está tentando conquistar pedaço por pedaço, todas as partes adoráveis e amedrontadoras do universo que originalmente lhe pertencia, no esforço de recuperar a sua identidade e equilíbrio com elas, numa espécie de ‘cosmostase’.427 Compreendemos aqui de que maneira a teleologia do self se inscreve na teoria da matriz de identidade. Na passagem supracitada, Moreno descreve o movimento de busca pelo restabelecimento do senso original de identidade total do primeiro universo — o próprio senso de self — que acontece durante o segundo universo. Vimos que a criança desenvolve a capacidade de role playing e de inversão de papéis como operações fundamentais para a aprendizagem e adoção de novos papéis, e assim, da capacidade de representar as mais variadas formas de existência. Podemos então acrescentar que, para Moreno, tanto a prática do role playing, como a da inversão de papéis, fazem parte de uma estratégia teleológica do self, de um esforço para recuperar sua identidade original, trazendo de volta o cosmos para dentro de si, reconquistando o “paraíso perdido”.428 Esta alusão ao mito bíblico da criação, além de servir como uma mera metáfora, confirma o fundamento religioso do pensamento de Moreno. O desejo do homem é o

426 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. Op cit, p 170. 427 Idem, p 157. 428 Idem, p 158.


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desejo de ser na sua identidade com o Cosmos, Self ou Deus: o desejo de self. Moreno usou termos análogos para designar o movimento teleológico do primeiro e do segundo universos: “fome de atos” para o primeiro; “fome cósmica” para o segundo. Estudamos com algum detalhe o movimento no primeiro universo. Falta-nos estudar o movimento no segundo, mais especificamente, de que maneira as pessoas que participam do mundo da criança, funcionam como espelhos para que esta, através dos fenômenos da imitação, identificação, projeção e transferência, desenvolva a estrutura representacional de seu ser, que chamamos de ego. Trata-se de um jogo de espelhamentos no qual a criança vai estruturando seus papéis relacionalmente, no momento da ação, ao se mirar nessas pessoas, se identificando com elas, introjetando ou projetando em sua personalidade determinados caracteres das mesmas, transferindo imaginativamente aquilo que lhe falta, ou não reconhece como próprio. Como vimos, a divisão da experiência do self no segundo universo e caracterizada pela dualidade de dois tipos de atos, correspondente a dois tipos de papéis: os papéis sociais, relacionados aos atos da realidade; e os papéis psicodramáticos, relacionados aos atos da fantasia. O ego, uma vez estruturado, movido pela fome cósmica, através de um jogo dialético entre seus papéis sociais e psicodramáticos buscará eternamente religar-se ao self.

5.3.7. O fenômeno da identificação Há uma questão fundamental que temos de responder para compreendermos como se dá o processo de formação do ego na matriz de identidade. O que faz com que uma criança se identifique com uma determinada pessoa e não com outra? Moreno não se ocupou com esta questão, apenas deixando entrever que as identificações ocorrem motivados pela fome cósmica. Diferentemente, encontramos nas teorias de Freud e seus seguidores descrições pormenorizadas de hipóteses acerca dos mecanismos que determinam os fenômenos de identificação. De modo que precisamos primeiramente nos deter na explicação de tais fenômenos elaborada pela psicanálise, para aí então, dialogando com ela, formular uma hipótese moreniana coerente com o pressuposto ontológico da espontaneidade. Nesse propósito, recorremos à teoria da identificação de Jacques Lacan, que foi construída a partir da sua teoria do estádio do espelho. É sobejamente conhecida a proposta de retorno a Freud que caracteriza a sua obra. Através deste princípio metodológico, Lacan estabelece a relação entre a psicanálise de Freud e o sistema linguístico que estrutura o campo da experiência do sujeito, por ele denominado registro do Simbólico. Procurando manter todo o seu arcabouço conceitual da psicanálise, sobretudo o primado da sexualidade, Lacan descreve na sua teoria do estádio do espelho o processo de formação do ego acontecendo, em seu momento inaugural, pela identificação imaginária da criança com sua imagem especular. O que servirá, posteriormente, a toda série de identificações com as imagens dos outros. Esta teoria nos é de grande valia na medida em que nos fornece elementos para formular a nossa hipótese acerca do mecanismo que subjaz à experiência de jogo de espelhamentos condutora da formação do ego no segundo universo da matriz de identidade. Além disso, nos possibilitará demarcar a diferença entre a concepção psicanalítica baseada no desejo sexual; e a concepção moreniana, baseada no desejo de self. Neste intuito, apresentaremos inicialmente um breve resumo da teoria do espelho, para depois, tomando a liberdade de modificá- la, adaptá-la à teoria moreniana.


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Lacan nos fala da existência de um fenômeno do desenvolvimento infantil no qual a criança, a partir de um dado instante, diante da sua imagem refletida pelo espelho, fica cativada, fascinada por ela. Tal experiência de fascinação é explicada por Lacan como sendo decorrente da percepção, por parte da criança, da discrepância entre a visão da forma total de seu corpo e o estado de impotência motora e dependência em que se encontra na realidade. Através dessa experiência, a criança se identifica com uma imagem ideal dela mesma, com uma Gestalt que antecipa a maturação da sua potência. Embora esta imagem se situe do lado de fora, seja externa a ela, a criança se toma pela imagem e conclui: “a imagem sou eu”.429 Identifica-se assim com a imagem externa de seu corpo refletida pelo espelho. Trata-se, por isso, de uma identificação imaginária, ou seja, pertinente ao mundo das imagens. Tal imagem, denominada por Lacan como “eu ideal”, dá origem ao processo de formação do ego como uma espécie de marca, de referência que confere contorno à autoimagem da criança. Inicialmente como um arcabouço vazio, o eu ideal vai se constituindo até se consolidar na medida em que outras experiências imaginárias, não globais, mas parciais, de identificações com imagens de outros, vão se sobrepondo e se matizando umas às outras. Em outras palavras, o eu ideal se forma “como uma estratificação incessante de imagens continuamente inscritas em nosso inconsciente”.430 Mas esta é apenas uma primeira etapa do processo. Lacan nos fala ainda de duas outras categorias de identificação, complementares. Além da identificação imaginária, descreve também a identificação simbólica e a identificação fantasística. Vejamos com podemos compreendê-las. A identificação simbólica ocorre com o surgimento de um significante primeiro, ao nível do inconsciente, denominado “sujeito do inconsciente”. Lacan confere ao termo significante uma definição que se diferencia da usual, derivada da linguística de Saussure. Vimos em 4.3., que para este autor, todo signo comporta um aspecto significante, manifesto, e o significado implícito ou oculto que este implica. Lembremos rapidamente do exemplo utilizado no capítulo anterior: a luz vermelha, como elemento significante no sistema de trânsito das cidades, remete ao significado parar, enquanto o significante luz verde remete ao significado ir em frente. Lacan particulariza a noção de significante para situá-lo como conceito psicanalítico: um significante passa a ser uma categoria formal, e não descritiva (como no exemplo acima). Com isso, Lacan quis explicar o tipo de fenômeno revela o desejo inconsciente do sujeito, por exemplo, quando uma palavra, um gesto, um sintoma físico irrompe inesperadamente nas mais triviais situações da vida cotidiana. De modo que algo é considerado como significante quando obedece a três critérios: a) seja involuntário, imprevisto, executado de modo não consciente; b) seja desprovido de sentido, não significando nada; c) remeta a outros acontecimentos significantes já passados, que provavelmente serão repetidos no futuro, sejam quais forem suas diferentes realidades materiais, ao longo da história de um sujeito. Em outras palavras, algo é qualificado como significante quando remete a algo observável como um fato repetitivo, involuntário, que expressa e, ao mesmo tempo, revela o desejo inconsciente do sujeito. Lacan chama de traço unário este algo que se repete em cada um dos acontecimentos significantes da vida de um indivíduo. Trata-se, enfim, do elemento unificador que relaciona e representa o sujeito numa série de acontecimentos significantes. A identificação simbólica consiste precisamente na produção desse traço unário, desse significante primeiro denominado sujeito do inconsciente.

429 NASIO, J. D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Zahar, Rio de Janeiro, 1989, p 57 430 Idem, p 116.


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Abramos agora um importante adendo para falar sobre a tópica lacaniana, isto é, dos registros RSI: Real, Simbólico e Imaginário. Estes três registros podem ser entendidos como diferentes perspectivas para se compreender o psiquismo humano. Os três registros se interseccionam, formando um nó — que Lacan chama de nó borromeano —, de modo que não podemos nos referir a um deles sem fazer referência aos outros dois. Enquanto o Imaginário está para o mundo das imagens; o Simbólico está para o mundo dos significantes; e o Real, para aquilo que é em si, infinitamente cheio de possibilidades, mas resiste à figuração ou à enunciação, sendo assim indizível, inominável. O Real aparece transfigurado nas imagens do Imaginário, na medida em que este, ao mesmo tempo em que se mantém ligado ao Real, se evade do Real. O Simbólico é o registro que estrutura o Imaginário, possibilitando a comunicação intersubjetiva do conhecimento acerca do Real; porém não se confunde com o mesmo. Assim, para falar do que é Real, precisamos nos valer do Imaginário, o qual é estruturado pelo Simbólico. De maneira que não devemos tomar o Real como sinônimo da realidade cotidiana. Do mesmo modo, não devemos confundir o Simbólico como sinônimo de alegórico ou metafórico. Trata-se antes do mundo da linguagem, da lei, das trocas, da intersubjetividade. Também não devemos confundir o Imaginário como sinônimo de fantástico ou irreal. O Imaginário é o campo das nossas imagens — isto é, das nossas identificações, projeções e transferências —, no qual as coisas nos remetem a nós mesmos, caso tenhamos um eu habilitado a reconhecer isto. Estes esclarecimentos nos permitem compreender as seguintes relações: o eu ideal está para o registro do Imaginário, assim como o sujeito do inconsciente está para o Simbólico. Por outro lado, o sujeito do inconsciente também pode ser entendido tomando-se em conta o Real. Valendo- nos das palavras de Nasio: “para que um ser surja do Real, é preciso que se cave um buraco no Real, que haja no Real alguma coisa a menos, ou, se vocês preferirem, que o Real seja privado de algo”.431 Lacan pensa o Real como algo do qual se retira um elemento, formando um buraco, que corresponde à brecha de que nos falam Morin e Moreno. O sujeito do inconsciente é o ser positivo que emerge do Real no lugar deste buraco formado pela ordem simbólica, como significante da falta.432 Por faltar, necessita ser preenchido. O que é feito, justamente, pela incessante estratificação de imagens dos outros. Neste sentido, o sujeito do inconsciente é o referencial constante que regula as sucessivas identificações imaginárias, nas relações com os outros. De modo que a identificação imaginária se forma no interior do quadro da identificação simbólica na abertura para o Real. A identificação imaginária é pautada pelo narcisismo. No campo da psicanálise o conceito de narcisismo representa um modo particular da relação com a sexualidade. Para Freud, o primeiro modo de satisfação da libido seria o autoerotismo, que caracteriza o que denominou narcisismo primário. Representa uma espécie de sentimento de onipotência do bebê, que se cria no encontro entre este e seus pais numa primeira etapa do desenvolvimento infantil, momento em que o eu como tal ainda não se constituiu. Nesta etapa, os objetos investidos pelas pulsões são as próprias partes do seu corpo. A certa altura, a criança passa para uma outra etapa: do narcisismo secundário. Isso acontece quando ela se vê confrontada com um ideal com o qual tem de se comparar; que lhe é imposto de fora, induzindo-a a se submeter às exigências do mundo que a cerca, que se traduzem simbolicamente através da linguagem. Esta passagem se dá em dois movimentos: primeiramente a libido se volta para o objeto, no investimento de um objeto; posteriormente, este investimento retorna para o eu. A ferida infligida ao narcisismo primário da criança

431 NASIO, J. D. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Zahar, Rio de Janeiro, 1993, p 82. 432 Idem, p 82.


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é a da separação do objeto amado e perdido, experimentado inicialmente como si mesmo. “O que fica perdido é o imediatismo do amor. Enquanto, com o narcisismo primário, o outro era o si mesmo, a partir daí só é possível se experimentar através do outro”.433 O eu se constitui como um reflexo do objeto, sendo assim uma imagem sexualmente investida. Entenda-se aqui que na teoria da psicanálise o eu e o objeto são considerados apenas na sua condição estrita de instâncias inconscientes. Neste sentido, compreende-se a frase de Freud: “a libido que aflui para o ego pelas identificações constitui o seu narcisismo secundário”.434 De modo que o narcisismo limita a criança a perceber na imagem do outro, com a qual se identifica, nada mais que seu eu ideal. Por exemplo, quando a criança vê o irmãozinho mamando no peito da mãe, está vendo seu desejo realizado pelo irmãozinho. A imagem do irmãozinho funciona como seu espelho. De modo que se configura aí o cenário de uma tensão paradoxal. Pois tal imagem especular leva a criança a prontamente querer estar no lugar do irmãozinho. Seria preciso, para tanto, desalojar esse outro que é paradoxalmente “ela mesma”. Há uma confusão conseqüente a uma indiferenciação, “sem saída”, neste quadro característico da relação entre o eu insipiente da criança e seu eu ideal. Por isso se diz que, ao nível do Imaginário, o eu se encontra situado em um locus de desconhecimento, ilusão, alienação. Permanece limitado a estabelecer relações duais com os outros. Neste tipo de relação, vendo seu desejo realizado pelo outro, o eu acaba invariavelmente rivalizando invejosamente com esse outro, de modo ambivalente, tomado por amor e ódio, admiração e agressividade. É onde entra o “ideal do eu” como um terceiro mediador e regulador das relações duais. Também formado no quadro da identificação simbólica, o ideal do eu vem a ser o conjunto introjetado de traços simbólicos implicados pela ordem familiar; posição onde o sujeito encontra um lugar para si onde se vê passível de ser amado, na medida em que satisfaça a certas exigências sociais. Representa, neste sentido, o eu que aceita o que em psicanálise é chamado de castração. Retomando o exemplo acima, a criança através do ideal do eu percebe-se aceita pelos pais quando deixa de rivalizar com o irmãozinho. É operado o recalcamento de suas pulsões em prol do lugar da intersubjetividade, do acesso à ordem simbólica em meio à ordem imaginária. O ideal do eu, neste sentido, rege o narcisismo secundário. Ainda resta mais uma categoria de identificação a ser abordada: a identificação fantasística. Encontramo-nos aqui com a teoria lacaniana sobre a origem e significado da fantasia. Para Lacan, a fantasia se origina de um excesso inextinguível de libido ligada a uma fonte corporal erógena. A função da fantasia é barrar o acesso a um gozo intolerável capaz de descarregar totalmente a libido. Neste sentido, a fantasia é entendida como uma defesa contra o medo do aniquilamento representado pela descarga total das pulsões. Uma fantasia invariavelmente comporta: uma cena, personagens, uma ação, um afeto (emoção) predominante, e uma parte definida do corpo. Seja como protagonista ou como espectador da ação, o sujeito se encontra não só presente, mas emocionalmente comprometido, num roteiro que considera enigmático, surpreendente e perverso. Algo vergonhoso que convém manter em segredo. A ação está carregada de tensão, relativamente à parte do corpo envolvida na mesma. Procuremos elucidar estes apontamentos sobre a fantasia na teoria de Lacan com um desdobramento do exemplo anterior. Suponhamos que a criança se depara com a porta do quarto da mãe fechada. Nesta

433 NASIO, J. D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Op cit, p 51. 434 Idem, p 55.


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situação, imagina que ao abrir a porta verá o irmãozinho mamando o peito da mãe. Continua a imaginar que se aproxima dele sem que ele o veja, quando, subitamente, arranca-o dos braços da mãe, joga-o no chão, pisa nele, depois ocupa seu lugar mamando o peito da mãe. Abre então a porta, e se dá conta que a cena que imaginou está realmente acontecendo, vai até o irmãozinho e beija a sua cabeça. A mãe, feliz, acaricia o rosto da criança, e lhe faz um elogio. Neste exemplo, a boca da criança é a parte erógena de seu corpo carregada de libido. O peito é o objeto do desejo. A criança ao fantasiar se defende de suas pulsões. Na sequência, em vez de passar ao acting- out, age em conformidade com o seu ideal do eu. Em teoria, o objeto que aparece na fantasia é o objeto sentido como perdido, e por isso, objeto do desejo. A identificação na fantasia ocorre entre o sujeito do inconsciente e este objeto, denominado por Lacan como objeto a. Tal objeto, ao mesmo tempo em que corresponde ao excesso de libido não conversível em fantasia, é também a causa de fantasias futuras. De modo que o sujeito do inconsciente aparece na fantasia identificado ao objeto a. A tendência é que uma mesma fantasia se repita indefinidamente na vida de alguém, geralmente, com alguma pequena variação que não altera a estrutura do seu roteiro. A menos que ela seja devidamente interpretada. A letra “a” representa a palavra “outro” (autre em francês). Nasio explica que Lacan formulou o conceito de objeto a procurando responder à pergunta: “quem é o outro?”. O que possibilitou que tivesse o insight deste conceito foi o artigo de Freud “Luto e melancolia”.435 Neste artigo, Freud recorre à palavra “objeto” para se referir à pessoa amada e perdida de quem se faz o luto. O uso da palavra objeto atende justamente à demanda conceitual diante da dificuldade de nomear quem é o outro real. Um corpo? Uma imagem? Uma representação simbólica? Nasio nos esclarece que: a palavra objeto não designa a pessoa exterior do outro, ou aquilo que em sua pessoa me é dado perceber conscientemente, mas a representação psíquica inconsciente desse outro, [...] o vestígio de sua presença viva inscrito em meu inconsciente, [...] à espera de um outro externo que venha se ajustar a ela.436 Ainda segundo Nasio, “o objeto a é um artifício do pensamento analítico para contornar a rocha do impossível: transpomos o Real ao representá-lo por uma letra”.437 De modo que o objeto a é um símbolo que expressa uma ausência real: o outro amado e perdido de quem se faz o luto. Como se forma o objeto a? Há um “corte significante”, simbólico, realizado por intermédio da fala, que estabelece uma operação de separação. Formado no “entre-dois” fusional, anterior à separação, o peito que se separa do corpo da mãe e da boca da criança transforma-se numa imagem mental: o peito fantasiado. A rigor, o objeto a não é o peito fantasiado, mas o “em si” que o semblante do peito encobre. Tal separação se inscreve no cerne da problemática do complexo de Édipo. Isso porque o objeto, neste caso o peito, remete tanto ao desejo erótico da criança de mamar, para além da sua necessidade nutricional; como ao da mãe, de desejar eroticamente seu filho ao lhe dar o peito. Como nos dizia Freud, o desejo incestuoso não é só da criança, mas também da mãe. De modo que os objetos a são imagens simbólicas carregadas de significação corporal que vem encobrir esta separação entre a mãe e a criança, mantendo o desejo aquém da suposta satisfação absoluta que seria a posse incestuosa do corpo total da mãe por parte da criança. Neste sentido, a criança jamais possuirá o corpo inteiro da mãe, mas apenas uma parte, enquanto imagem mental.

435 NASIO, J. D. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Op cit, p 92. 436 NASIO, J. D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Op cit, pp 102-103. 437 NASIO, J. D. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Op cit, p 93.


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Resta-nos falar ainda do conceito de falo. Para Lacan, toda evolução sexual infantil e adulta se ordena conforme esse pênis imaginário chamado falo, atributo que a criança percebe como possuído por alguns e ausente em outros. A experiência da castração, ligada ao complexo de Édipo, inconscientemente vivida pela criança por volta dos cinco anos de idade, é decisiva para a definição da sua futura identidade sexual, por lhe possibilitar admitir os limites de seu corpo: a diferença sexual. O falo é o objeto em torno do qual se organiza a castração. O menino vive com angústia a visão do corpo nu da mulher, por imaginar a possibilidade de ser castrado como ela. A menina, sabendo que sempre foi castrada, experimenta a inveja do pênis. O falo adquire a forma simbólica como objeto destacável do corpo, permutável com outros objetos. Dentro dessa perspectiva, os objetos perdidos — o seio que a criança perde ou as fezes que se desprendem — assumem o valor de falo. Estes objetos se tornam sexualmente equivalentes, todos eles referidos à castração. Nas palavras de Nasio: Afirmar com Lacan que o falo é o significante do desejo é lembrar que todas as experiências erógenas da vida infantil e adulta, todos os desejos humanos (desejo oral, anal, visual etc), permanecerão marcados pela experiência crucial de se ter tido que renunciar ao gozo com a mãe e aceitar a insatisfação do desejo.438 Em seu livro “A criança no espelho”, o psicanalista Émile Jalley se pergunta “se o triângulo da rivalidade fraterna não se assemelha à forma antecipada da relação edipiana, em que o eu se institui através da dupla relação com o objeto libidinal e com o rival parental”.439 Este questionamento nos ajuda a esclarecer a relação supracitada da equivalência entre o objeto a e o falo. Voltando uma vez mais ao nosso exemplo da criança que rivaliza com o irmãozinho, o peito pode ser entendido como objeto pré-genital da concorrência fraterna que antecipa o objeto propriamente dito da rivalidade edipiana, o falo. Na concepção lacaniana, o falo é o significante da lei. Define, fundamentalmente, a separação entre a criança e a mãe. O desejo da mãe, como de toda mulher, é ter o falo. Assim, a criança se identifica como sendo, ela mesma, esse falo. A palavra do pai incidindo sobre o vínculo mãe- criança, opera o “corte significante” que instaura a lei simbólica: castrar a mãe de ter o falo e a criança de ser o falo, rompendo a ilusão de cada ser humano de se acreditar possuidor ou identificado com uma onipotência imaginária.

Assim, todo o processo de identificação acontece de modo impessoal ao nível do inconsciente. O mundo simbólico é preexistente ao sujeito. O agente da identificação é o Outro — a ordem simbólica, a estrutura da linguagem —, não o eu. O que equivale dizer que o eu é singularizado desde o exterior. Ainda nos valendo do nosso exemplo, o peito da mãe que a criança vê o irmãozinho mamando — como objeto a — é a causa simbólica do desejo; e, desse modo, o agente da identificação, no momento em que o sujeito do inconsciente — como significante da falta — se identifica com o objeto a. Em outras palavras, a criança vê narcisicamente sua própria imagem espelhada no peito da mãe. Neste sentido, podemos dizer que a abertura realizada pelo simbólico ao real se dá corporalmente através de imagens. O eu ou ego é uma posição imaginária, efeito de uma experiência inconsciente.

Nasio defende que a teoria de Lacan nada mais fez do que ratificar e retificar ainda mais a posição

438 NASIO, J. D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Op cit, p 36. 439 JALLEY, É. Freud Wallon Lacan – A criança no espelho. Cia. de Freud, Rio de Janeiro, 2011, p 346.


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original de Freud. Pois a identificação concebida pelo pai da psicanálise é um processo que se efetua no seio do que ele denominou como aparelho psíquico, portanto, fora de nosso campo de escolhas conscientes. Citando a máxima freudiana de “A interpretação dos sonhos”, afirma Nasio: “substituímos as relações intersubjetivas por relações intrapsíquicas”.440 O indivíduo, na sua constituição psíquica, se encontra à mercê da ordem ou estrutura social que o precede. No seio da família, a criança se encontra particularmente à mercê do desejo de seus pais. Pois que ela se identifica com determinados objetos a partir e através do desejo dos outros; ou, em primeira e última instância, do Outro. Nasio enfatiza o ensinamento de Freud de que a identificação não é uma simples imitação, mas, expressão de um vínculo afetivo, de uma comunhão que persiste no inconsciente, o que — diferentemente daquilo que podemos facilmente reconhecer como imitação — só é indiretamente perceptível. Vejamos o exemplo clínico por ele oferecido a este respeito: Que um filho, por exemplo, reproduza o comportamento do pai falecido não é um bom exemplo de identificação tal como a entendemos; em contrapartida, que esse mesmo filho fique sujeito a um desfalecimento repentino de caráter histérico parece-nos, ao contrário, uma prova indiscutível da ocorrência de uma identificação inconsciente. Diante desse rapaz, o psicanalista reconhecerá a manifestação de uma identificação inconsciente entre o eu do rapaz e o pai morto, ou, mais exatamente, entre o eu e a representação inconsciente do pai morto.441 Freud procurou construir o edifício conceitual da psicanálise através da busca por explicações causais dos sintomas apresentados pelas pessoas adoecidas que o procuravam. Neste exemplo, a causa do sintoma desfalecimento é explicada como decorrente de uma identificação. Segundo Nasio, o conceito de identificação foi formulado para “dar nome ao processo inconsciente realizado pelo eu quando este se transforma num aspecto do objeto”.442 Fica claro neste exemplo que a interpretação se dá ao nível intrapsíquico: o da identificação entre o sujeito do inconsciente (eu) e o objeto a (representação do pai morto). Exprime assim um “como se” sem ser uma propriamente uma imitação, ou melhor, sem haver intenção consciente de imitar. Em suma: a formação do ego (moi) é se dá através de três mecanismos de identificação: a) a identificação imaginária, formando o eu ideal, imagem totalizante que serve à criança de matriz para toda a série de identificações com os outros; b) a identificação simbólica, formando, por um lado, o sujeito do inconsciente (je), traço unário de todos os eventos significantes da vida de uma pessoa; e, por outro, o ideal do eu, conjunto de traços simbólicos introjetados que estabelece a mediação entre o sujeito do inconsciente e a imagem do eu ideal, na aceitação da castração e adaptação à vida social; c) a identificação fantasística, formando a fantasia, expressão defensiva diante do medo do transbordamento da tensão inconsciente e do aniquilamento, que liga o sujeito do inconsciente ao objeto a. Estes mecanismos são complementares e estão relacionados aos registros do Imaginário, Simbólico e Real. O fator regente deste processo é o significante do falo, ligado ao complexo de Édipo, enquanto regulador das vicissitudes da libido e organizador da vida psíquica e social. A importância decisiva do estádio do espelho de Lacan à teoria da psicanálise é o de conferir ao conceito de identificação formulado por Freud a articulação

441 Idem, p 100. 442 Idem, p 101. 442 Idem, p 101.


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inovadora das noções de imaginário, simbólico e real.443

5.3.8. Correlações entre Moreno e Lacan Tanto a teoria de Lacan como a de Moreno falam de uma mesma estrutura, cujo surgimento, na ontogênese de cada criança, reproduz a de seu surgimento na filogênese da espécie humana, descrita por Morin. Como vimos, tal estrutura é determinante da dualidade constitutiva do ser humano: sujeitoobjeto, eu-outro, eu-tu, dentro-fora, consciente-inconsciente, bem-mal etc. Lacan chamou-a de buraco, furo, hiância ou significante da falta; Moreno, de brecha entre a fantasia e a realidade. Os dois autores reconhecem que essa estrutura se encontra relacionada a uma perda original: para Lacan, a perda do objeto a; para Moreno, a perda da unicidade da ação. Além disso, para ambos, a formação do ego se dá através de processos de identificação derivados desta estrutura. Enquanto Lacan nos fala de processos relacionados a quatro instâncias de identificação: eu ideal, sujeito do inconsciente, ideal do eu e objeto a; Moreno nos fala de processos de formação de dois tipos de papéis com os quais o ego se identifica: papéis sociais e psicodramáticos. As diferenças acima relacionadas refletem, insistimos, o mesmo fenômeno, apreendido através de perspectivas diferentes. Lacan — e de modo geral, a exemplo de Freud, todos os psicanalistas — coloca em foco a relação intrapsíquica sujeito-objeto, que acontece no plano do inconsciente; Moreno, por sua vez, a relação interpessoal eu-tu, que acontece no plano existencial da ação. Como então nos posicionar diante das duas perspectivas? Em primeiro lugar, reconhecendo que elas não são autoexcludentes, mas, complementares. Todavia, a perspectiva moreniana tem a primazia ontológica. Neste sentido, citemos a máxima de Moreno: “o ato é anterior a palavra e a ‘inclui’”.444 O ato de existir, na unicidade da ação, é ontologicamente anterior à dualidade que passa a acontecer como efeito coextensivo ao surgimento da imagem e à aquisição da linguagem verbal. Compreendemos a unicidade da ação humana como interpessoalmente recíproca. Isto é, mesmo quando a pessoa se encontra sozinha, sua ação é imaginariamente permeada por algum grau, maior ou menor, de reciprocidade com uma ou mais pessoas. De modo que as pessoas não agem autônoma e isoladamente, mas, sempre em interação, espelhando umas as outras. Cada uma promove afetos na outra, através da sua ação, o que as fazem reagir reciprocamente, anteriormente a qualquer dualidade, a qualquer separação. De maneira que o sentido da unicidade do existir estabelecido no primeiro universo da matriz de identidade não é desfeito com o padrão de consciência que surge no segundo universo, estruturado de modo dualista. Este se mantém como o sentido básico do existir. A consciência dualista, com a qual normalmente nos identificamos na vida adulta, se sobrepõe a este sentido básico do existir, sem, contudo, extingui-lo. Pelo contrário, este é a sua fonte.

443 JALLEY, É. Freud Wallon Lacan – A criança no espelho. Op cit, p 34. 444 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. Op cit, p 117.


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5.3.9. Freud e a questão das relações interpessoais Freud posicionou-se a respeito das relações interpessoais em psicanálise em seu artigo “Psicologia de grupo e a análise do ego”, de 1921. Na introdução do artigo, ele apresenta o problema nos seguintes termos: É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social.445 Ao longo do artigo, Freud procura demonstrar que nas relações entre os indivíduos de um grupo são formados laços emocionais decorrentes de identificações que deixam de fora qualquer relação de objeto com a pessoa que está sendo “imitada”. Expliquemos melhor. Alternativamente àquele tipo de identificação que o estudo psicanalítico das neuroses costuma se ocupar, isto é, daquele decorrente de impulsos que perseguem objetivos diretamente sexuais; Freud nos fala de um tipo de identificação que o ego estabelece através de impulsos sexuais inibidos em seus objetivos. Vejamos um exemplo de seu próprio cunho desse tipo de identificação: Suponha-se, por exemplo, que uma das moças de um internato receba de alguém de quem está secretamente enamorada uma carta que lhe desperta ciúmes e que a ela reaja por uma crise de histeria. Então, algumas de suas amigas que são conhecedoras do assunto pegarão a crise, por assim dizer, através de uma infecção mental. O mecanismo é o da identificação baseada na possibilidade ou desejo de se colocar na mesma situação. As outras moças também gostariam de ter um caso amoroso secreto e, sob influência do sentimento de culpa, aceitam também o sofrimento envolvido nele.446 Este exemplo relata a capacidade do indivíduo de experimentar, por uma espécie de contágio psíquico, uma situação dramática ocorrida em um grupo. Freud explica que a identificação dos outros egos com o primeiro, que apresentou o sintoma, se deu sobre um ponto de coincidência, no caso, uma emoção semelhante que tinha de ser mantida reprimida. Não é difícil antever aonde Freud nos induz a chegar: à hipótese de que o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação deste tipo. Partindo deste ponto, Freud desenvolve a teoria de que nos grupos constituídos transitoriamente em torno de um líder, e que não adquiriram secundariamente as características de uma organização, o indivíduo

445 FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego. Edição Standard Brasileira. vol. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, 1996, p 81. 446 Idem, p 117.


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abandona o seu ideal do ego447 e o substitui pelo ideal do grupo, tal como é corporificado pelo líder. O líder geralmente emerge por possuir qualidades visadas por uma parte dos membros do grupo. Os demais, cujo ideal do ego não teria se corporificado em sua pessoa, salvo correções, acabam sendo arrastados por sugestão, isto é, por meio da identificação entre si. Freud admite que a influência da sugestão tornase um grande enigma quando ela não é exercida apenas pelo líder, mas por cada indivíduo sobre outro indivíduo. Trata-se de uma sugestão mútua. A explicação psicodinâmica fornecida pelo pai da psicanálise é a da colocação do objeto no lugar do ideal do ego: “um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego”.448 Para tanto, faz-se necessário que os vínculos dentro de um grupo tenham o caráter de pulsões sexuais inibidas em seus objetivos, de modo que seus membros possam substituir a identificação com o objeto de seus impulsos diretamente sexuais pelo ideal do ego corporificado pelo líder. Nesse ponto, Freud retoma a teoria da horda primitiva apresentada em “Totem e tabu”, da qual fizemos uma exposição sumária em capítulo anterior. Argumenta que desde o princípio dos tempos houve dois tipos de psicologia: a dos membros individuais do grupo e a do pai, chefe ou líder. Enquanto os membros do grupo estavam sujeitos a vínculos entre si; o pai era independente, autoconfiante, dominador, narcisista. Sua vontade não necessitava do reforço de outros, não amava ninguém a não ser a si próprio, ou a outras pessoas que atendessem as suas necessidades. Por seu turno, os membros do grupo permaneciam na ilusão de serem igualmente amados de modo justo por seu líder. O pai da horda primitiva impedia os seus membros de satisfazer seus impulsos diretamente sexuais, levando-os a desenvolver laços emocionais com ele e uns com os outros através de impulsos inibidos em seu objetivo sexual. “Ele os forçara, por assim dizer, à psicologia de grupo”.449 Coerente à sua linha de raciocínio, Freud chega à seguinte conclusão: Temos de concluir que a psicologia dos grupos é a mais antiga psicologia humana: o que isolamos como psicologia individual, desprezando todos os traços do grupo, só depois veio a ser notório a partir da velha psicologia de grupo, através de um processo gradual, que talvez possa, ainda, ser descrito como incompleto.450 No “Pós-escrito” deste artigo, acrescentado em 1923, Freud retoma esta questão inconclusa, na tentativa de especificar o ponto do desenvolvimento mental da humanidade em que a passagem da psicologia de grupo para a psicologia individual foi alcançada também pelos membros do grupo. Lembremos que no mito científico de “Totem e tabu” formulado por Freud, após o assassinato coletivo do pai da horda primitiva, a comunidade totêmica de irmãos surgira com a reunião dos membros do grupo, anteriormente oprimidos pelo pai, todos com direitos iguais, e unidos pelas proibições instituídas de modo a preservar e expiar a lembrança do assassinato. A novidade introduzida por Freud neste “pós-escrito” é a de que a insatisfação ainda permanecia na comunidade totêmica de irmãos após o assassinato do pai, tornando-se a fonte de novos desfechos. Segundo o autor, este tipo de organização social primitiva —

447 Observação: optamos por manter o termo ideal do ego utilizado na edição que nos serve de referência, porém, cumpre-se sublinhar, este termo corresponde ao de ideal do eu, conforme temos empregado neste livro. 448 Idem, p 126. 449 Idem, p 135. 450 Idem, p 134.


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em que não havia pai, ou melhor, em que havia um grande número de pais, mas cada um deles sendo limitado pelo direito dos outros, não existindo a dominação de um sobre os outros — corresponderia àquelas sociedades descritas em antropologia segundo as prerrogativas da ginecocracia e das divindades maternas: as chamadas sociedades matriarcais. Neste momento da evolução da humanidade, caracterizado por este modo de indiferenciação do indivíduo no grupo, teria surgido um novo tipo de diferenciação. Vale a pena ler na sua extensão o texto no qual Freud relata a sequência do mito da horda primitiva que explicaria a passagem da psicologia de grupo para a psicologia individual: Foi então que talvez algum indivíduo, na urgência de seu anseio, tenha sido levado a libertar-se do grupo e assumir o papel do pai. Quem conseguiu isso foi o primeiro poeta épico e o progresso foi obtido em sua imaginação. Esse poeta disfarçou a verdade com mentiras consoantes com seu anseio: inventou o mito heroico. O herói era um homem que, sozinho, havia matado o pai — o pai que ainda aparecia no mito como um monstro totêmico. [...] O herói reivindica haver agido sozinho na realização da sua façanha, à qual só a horda como um todo ter-se-ia aventurado. [...] Assim, o mito é o passo com o qual o indivíduo emerge da psicologia de grupo. [...] O poeta que dera esse passo, com isso se libertando do grupo em sua imaginação, é, não obstante (como Rank observa ainda), capaz de encontrar seu caminho de volta ao grupo na realidade — porque ele vai e relata ao grupo as façanhas do herói, as quais inventou. No fundo, esse herói não é outro senão ele próprio. Assim, desce ao nível da realidade e eleva seus ouvintes ao nível da imaginação. Seus ouvintes porém, entendem o poeta e, em virtude de terem a mesma relação de anseio pelo pai primevo, podem identificar-se com o herói.451 Compreende-se assim que a figura do herói que emerge no mito do poeta é o protótipo do ideal do ego, representando a soma de aspirações e limitações sociais a que o ego deve aquiescer. Neste sentido, “há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da tensão entre o ego e o ideal do ego”.452 É admirável o pioneirismo de Freud também no que se refere à psicologia de grupo. Parece-nos que ainda não foi dado o devido valor a este aspecto teórico, mesmo entre os psicanalistas. De fato, a ênfase dada pela psicanálise à psicologia individual não a torna incompatível com a psicologia social. O próprio Freud nos revela o modo pelo qual a sua interface se torna possível: o modo de identificação denominado ideal do ego. Mesmo tendo observado, conforme suas palavras, “que isolamos como psicologia individual, desprezando todos os traços do grupo”, Freud permaneceu, contudo, atendendo seus pacientes apenas individualmente. Coube a Moreno a iniciativa de investigar e tratar aquilo que acontece na relação concreta entre as pessoas, isto é, na ação recíproca das pessoas. Penso que se quisermos de fato compreender o homem na sua amplitude e complexidade, não podemos deixar de explorar o que se passa concretamente ao nível interpessoal. Em outras palavras, não podemos nos contentar em explorar o que de fato pertence ao mundo interpessoal, como aquilo que se encontra refletido, no mundo intrapsíquico de um indivíduo. Há todo um conteúdo passível de ser apreendido no “entre-dois” (ou no “entre-diversos” indivíduos) das relações interpessoais, distinto daquele apreendido quando se investiga um indivíduo em separado.

451 Idem, pp 146-147. 452 Idem, p 141.


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Moreno denominou este tipo de conteúdo como coinconsciente, um inconsciente comum às pessoas em situação de relação interpessoal. Como temos dito, defendemos a hipótese de que o coinconsciente (interpessoal) tem primazia ontológica sobre o inconsciente (intrapsíquico) da psicanálise. O conceito de identificação, em particular o de ideal do ego, nos permite defender esta hipótese, e assim, tornar compatíveis a abordagem interpessoal de Moreno e a abordagem intrapsíquica da psicanálise. Construímos, desta maneira, uma articulação conceitual a antropologia e a psicologia. No entanto, para que possamos efetivamente construir esta articulação precisamos recorrer à teoria do desejo mimético de René Girard, teoria que nos esclarece de que maneira o desejo opera no plano das relações interpessoais.

5.3.10. A teoria mimética de Girard aplicada à matriz de identidade Vimos que desde os primeiros dias após o nascimento, portanto, antes da aquisição por parte da criança da capacidade de imitação consciente de gestos, atitudes do outro, ou de qualquer coisa que possa ser apreendida no plano das representações, a criança mimetiza a ação de seus primeiros duplos, os seus cuidadores. Vejamos agora de que maneira o conceito de duplo de R. Girard converge com o conceito de duplo de Moreno, e o ressignifica, à luz da teoria do desejo mimético. A hipótese é a de que o desejo do cuidador serve como modulador da ação da criança, seja positivamente, motivando-a para uma determinada ação, como negativamente, inibindo-a. No primeiro universo isto acontece na construção dos esquemas sensório-motores através da formação e desenvolvimento dos papéis psicossomáticos. No segundo universo, na inserção da criança no universo simbólico da cultura através da formação e desenvolvimento dos papéis sociais e psicodramáticos. As implicações de uma origem mimética do desejo são extraordinárias. No que diz respeito ao tema que aqui tratamos, nos permite uma releitura do processo formativo da cultura humana, prescindindo da hipótese fundamental da psicanálise, o complexo de Édipo. Na teoria de Girard, o desejo é sempre triangular. Em outras palavras, a relação sujeito-objeto é sempre mediada por um terceiro. Na clássica descrição de Freud do triângulo edipiano, o filho deseja a mãe e é impedido pelo pai de tê-la só para si. Para que a psicanálise possa dar conta de explicá-lo, precisa postular a existência de uma fantasia originária do desejo incestuoso da criança pela mãe de caráter universal, o que é, para Girard, além de pouco plausível, absolutamente dispensável. Em primeiro lugar, porque ele critica a própria possibilidade de um desejo linear de um sujeito por um objeto, um desejo não mediado por um terceiro, como no caso da fantasia originária do desejo incestuoso. Argumenta que se chegamos a cogitar a veracidade da hipótese freudiana é porque nosso pensamento foi culturalmente “educado” a nos fazer crer na autonomia do nosso desejo. Em segundo lugar, porque critica a ideia de que “todo desejo é uma expressão do desejo incestuoso”453 e, consequentemente, de que todo conflito interpessoal atual é derivado, transferencialmente, do conflito

453 NASIO, J-D. Édipo. Rio de Janeiro, Zahar, 2007, p 27.


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infantil com nossas figuras parentais. Sem negar o fato de que muitos dos conflitos relacionados a sexualidade se originam na infância, Girard contra-argumenta que estes são causados, tal como os da vida adulta, pelo mimetismo do desejo. A explicação para a acepção clássica do triângulo edipiano, segundo a teoria mimética, seria a seguinte: o filho deseja a mãe tendo o pai como modelo e mediador desse desejo. Em outras palavras: o pai — como um duplo — é imitado pelo filho em seu desejo pela mãe. Para bem compreendermos essa explicação, precisamos complementar o que dissemos sobre o duplo. Girard nos fala de dois tipos de mediação exercida pelo duplo. Há um tipo que se caracteriza por uma mediação externa, quando o duplo é imaginário, como no caso de uma figura lendária ou mitológica, ou mesmo real, quando este se mantém afastado do campo de relações interpessoais, como no caso de um ator de cinema para o seu fã ou de um famoso cientista para um estudante que ingressa na universidade. Nesta situação, o modelo exerce a sua mediação “externamente” à relação de desejo do sujeito com seus objetos. No outro tipo, chamado mediação interna, o duplo, fazendo parte do campo de relações interpessoais do sujeito, pode passar a mediar “internamente” a relação de desejo do sujeito com seus objetos. É importante frisar que, fazendo parte do campo de relações interpessoais do sujeito, o duplo pode passar à mediação interna, mas não necessariamente. Isso acontece quando o duplo passa à disputar o objeto com o sujeito na realidade da relação interpessoal. Esta diferenciação é essencial, pois, enquanto na mediação externa o duplo tende a permanecer na posição de modelo; na mediação interna, tende a se transformar, a certa altura, de modelo em obstáculo, em rival. Deixa de inspirar, como modelo, admiração e amor, passando a inspirar, como rival, inveja e ódio. É o que Girard chama de rivalidade mimética, isto é, a rivalidade recíproca que acontece na relação interpessoal entre duas pessoas, uma servindo a outra como modelo-obstáculo. Esta situação recebe o nome de mediação dupla. Passa a existir uma simetria na relação que faz desaparecer a diferença entre os parceiros. E com essa indiferenciação, a perda da amabilidade, caindo-se na violência mútua. Quando a rivalidade chega a dominar totalmente o contexto das relações em um triângulo, as ações de ambos rivais passam a ser regidas por sentimentos contraditórios de amor e ódio, enquanto o objeto tende a ficar em segundo plano. Voltemos então à explicação mimética do triângulo parental. Pelo que acabamos de dizer, o pai como duplo do filho, serve a ele como modelo e mediador de seu desejo pela mãe. Devido ao desnível estrutural dos papéis da relação pai e filho, o pai pode permanecer idealmente como mediador externo, caso se mantenha diferenciado no papel de pai, cuidando para não se tornar um obstáculo na relação do filho com a mãe, para não passar a mediador interno, se nivelando a ele, se igualando a ele como rival numa disputa amorosa pela mãe. De fato, o pai pode se tornar um obstáculo ao filho ao impedi-lo de ter acesso irrestrito a mãe, por exemplo, quando proíbe o filho de entrar no quarto, ficando a sós com ela na hora de dormir. Em função da proibição, o filho pode passar a ver no pai um rival, e a nutrir sentimentos contraditórios de amor e ódio por ele. Neste caso, o desempenho do papel de pai pelo pai na realidade da relação com o filho — e do mesmo modo, o desempenho do papel de mãe pela mãe — será determinante de percursos mais ou menos problemáticos, a depender do grau de rivalidade mimética a que se possa chegar. A importância da mudança de perspectiva proporcionada pela explicação mimética em relação à psicanalítica é significativa. Para Freud, o desejo pela mãe por parte do filho é intrínseco e não se


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funda em outro desejo, sendo o pai nada mais que um modelo de identificação, jamais um modelo de desejo. Em função desta concepção, o processo do triângulo parental é explicado pela psicanálise como algo que se passa no mundo intrapsíquico do sujeito, a despeito do que acontece na realidade das relações interpessoais. A perspectiva mimética tem o mérito de colocar em foco o aspecto objetivo, real, das relações interpessoais; enquanto a psicanálise tem como foco o aspecto subjetivo, imaginário, das mesmas. De modo que não se faz necessário pressupor a existência de um universal desejo incestuoso inconsciente do filho pela mãe, recorrendo ao mito de Édipo para explicar a situação. O que não quer dizer que um filho não possa vir a ter fantasias sexuais com a mãe. Neste caso, todavia, deve-se perguntar pelo que ocorre na realidade da relação triangular. Se não há, por exemplo, uma indevida sexualização da mesma, ou então, uma rivalidade real promovida por um ou ambos os pais. Por outro lado, não se trata de culpabilizar os pais, colocando o filho no papel de vítima. Trata-se tão somente de buscar o real das relações interpessoais, busca que fica descontextualizada na perspectiva psicanalítica. Em seu livro “Coisas ocultas desde a fundação do mundo”, Girard define o que denomina “psicologia interdividual”, toda uma teoria psicológica baseada no desejo mimético. Nas suas palavras: Toda a psicologia dita normal, tudo o que nos constitui como seres humanos no plano dito psíquico deve resultar do trabalho infinitamente lento, mas definitivamente gigantesco das desorganizações e reorganizações miméticas, essas últimas se realizando num crescente nível de complexidade. Pertence à lógica da nossa hipótese pensar que a rigorosa simetria dos parceiros miméticos [...] deva gerar pouco a pouco nos homens tanto a capacidade de olhar o outro como um alter ego, quanto a faculdade correlativa de desdobramento interno, de reflexão, de consciência etc.454 Na psicologia interdividual, portanto, a rigorosa simetria dos parceiros miméticos — isto é, o fenômeno do duplo — é responsável por todo o devir humano, seja considerando a filogênese da espécie como a ontogênese de cada indivíduo. Procurando dar conta de explicar os fenômenos clínicos como o narcisismo, a homossexualidade, o masoquismo, o sadismo, a psicose, Girard constata que o desejo sexual é derivado do mimetismo: “é o mimetismo que provoca a sexualidade não o inverso”.455 Reconhece em Freud o precursor do conhecimento do papel decisivo do desejo no devir humano. Contudo, nos mostra de que maneira Freud não pode seguir até o fim na sua descoberta, isto é, até a verdadeira raiz da questão do desejo, devido a sua insistência em manter o mito de Édipo como o grande centro para o qual toda a interpretação é remetida. De que maneira podemos então compreender os processos de identificação que se encontram na formação dos papéis sociais e psicodramáticos no segundo universo da matriz de identidade à luz da teoria mimética? Formulamos aqui uma hipótese psicodinâmica acerca da passagem do primeiro ao segundo universo da matriz de identidade. Seguindo a teoria mimética de Girard, pensamos que há nessa passagem um sacrifício, de modo que a ontogênese de todo e qualquer indivíduo reproduz a filogênese da espécie

454 GIRARD, R. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo, Paz e Terra, 2009, p 334. 455 Idem, p 386.


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humana. Vimos que para Girard a filogênese está ligada à violência e ao sagrado pela morte por assassinato coletivo de um membro do grupo, que passa a ser identificado como um deus, a exemplo do que Freud formulara em “Totem em tabu”, mas com uma série de modificações. No mito criado por Freud, os filhos se reúnem para assassinar o pai e chefe da horda primitiva, surgindo, a partir de então, instituída por eles, a lei que proíbe o incesto e o parricídio. Girard reconhece o pioneirismo de Freud na sua suposição de um assassinato coletivo real na gênese da cultura humana. Porém, critica o que Freud diz a esse respeito em alguns pontos fundamentais. Segundo Girard, o fenômeno do duplo se encontra na raiz do assassinato coletivo fundador da cultura humana. O deus a quem se oferta, de tempos em tempos, uma vítima sacrificial, como forma de agradá-lo, o que garante a manutenção da ordem social. Para Freud, esse deus é o pai totêmico. Para Lacan é o “Nomes-do-Pai”, símbolo da “hiância que separa desejo e gozo”.456 Falamos já da correspondência entre a vítima sacrificial e o significante de grau zero da cultura, conforme definido por Lévi-Strauss. Do mesmo modo, como entre este significante e o sujeito do inconsciente (je), para Lacan. Na nossa hipótese, o que morre, na passagem do primeiro para o segundo universo, o que é sacrificado, é a experiência imediata do self. Esta morte da identidade total é o que promove o surgimento da hiância, em termos lacanianos, ou da brecha entre a realidade e a fantasia, em termos morenianos. Com a aquisição da linguagem, apenas uma parte do todo da experiência pode ser expressa em palavras, isto é, simbolicamente representada. O que equivale a dizer que a experiência originária de identidade total é excluída do campo da consciência, dando origem a uma nova experiência: de negação do self, de não ser. Neste sentido, o self psicossomático corresponde ao sujeito do inconsciente (je), como significante de valor zero, excluído simbolicamente do campo linguístico, tornado assim inconsciente. E, acrescentamos aqui, completando a nossa rede de convergências, a fundamental referência à ontologia positiva de Schelling, à sua teorização acerca da Queda como momento da perda da unidade-totalidade da consciência levando à separação da relação sujeito-objeto. A criança vai assim da experiência de unicidade — do primeiro universo — à de dualidade — do segundo universo —, isto é, de divisão da experiência do self. Passa a existir ao nível da consciência um vazio, vivido como estado de tensão, de angústia. É como se a criança, diante da experiência de não ser, se pusesse a se perguntar: quem sou eu? E, a partir de então, passasse a buscar no outro a imagem perdida de si mesma, na tentativa de responder a esta pergunta. Como vimos com Durand, Bachelard, Jung, Hillman, Corbin, entre outros, compreendemos o fenômeno da imagem como locus da busca pela transposição da angústia da dualidade e reencontro com a unicidade do self. A imagem como “o outro em mim” passa no segundo universo a ocupar o campo da consciência, estabelecendo a mediação entre o self psicossomático, tornado inconsciente, e o mundo simbólico — que Lacan chamou de o Outro — da realidade presente, nos termos de Moreno. Diríamos então que, com a perda da experiência de identidade total, diante da angústia do não ser, a criança se identifica com o outro, seu duplo, através do fenômeno da imagem. Morre a identidade total — à semelhança da vítima sacrificada nos rituais primitivos — para reaparecer — à semelhança de um deus — como imagem de si em que o eu aparece identificado. Encontramos aqui a origem do eterno movimento de busca pelo restabelecimento do senso original de identidade total do primeiro universo. Em outras palavras, de religação com o Self, Cosmos ou Deus. A imagem — como o outro/Outro em mim — surge como matrix, locus e status nascendi da formação dos papéis sociais e psicodramáticos. O role playing e a inversão de papéis, como operações fundamentais deste movimento, possibilitam a assimilação dos outros e do mundo ao eu através da aprendizagem e adoção dos inúmeros

456 LACAN, J. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro, Zahar, 2005, p 85.


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papéis sociais e psicodramáticos existentes em uma cultura. O momento em que acontece o surgimento da hiância e a separação entre as polaridades é sinalizado pelo jogo do fort-da, descrito por Freud em “Além do princípio do prazer”.457 Trata-se da brincadeira de um menino de um ano e meio, observada por Freud, na qual o menino arremessa um carretel preso por um cordão de modo que este sumia atrás das cortinas, para depois puxá-lo de volta para si. O que chamou a sua atenção é que no primeiro ato desta brincadeira, repetida inúmeras vezes seguidas pelo menino, este emitia um prolongado e expressivo “o-o-ó” que parecia representar a palavra alemã fort (ir embora); enquanto no segundo ato, demonstrando maior prazer, emitia um alegre da (ali). A importância atribuída por Freud a este jogo infantil, bastante comum, de esconder e achar é a seguinte: A interpretação do jogo tornou-se então óbvia. Ele se relacionava a grande realização cultural da criança, a renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam ao seu alcance.458 Diríamos que a interpretação dada a este jogo — a tentativa de dominar psicologicamente a situação de desprazer causada pela perda do objeto sexual — tornou-se óbvia a Freud devido ao fato de ser consequente ao sistema de interpretação da psicanálise, de modo a confirmá-lo. Trata-se, portanto, de uma tautologia. Tautologia por tautologia, propomos aqui uma interpretação diferente desse mesmo jogo infantil, coerente com o quadro ontológico por nós adotado. Pensamos que o que a criança faz desaparecer e reaparecer através da representação do jogo é a sua experiência de identidade total perdida. A criança procura desse modo assimilar o sentimento de angústia ligado a nova experiência caracterizada pela negação do self, a experiência de não ser. O processo de identificações — da série de identificações — do qual se origina o ego tem início com o surgimento da imagem de si correspondente ao “eu ideal” como identificação primária. Em meio à angústia de não ser, a criança se identifica com a imagem totalizante de si que o outro lhe confere como reflexo de seu self. Imagem de si diretamente ligada à experiência do corpo, às sensações e emoções, e, portanto, ao self psicossomático tornado inconsciente. Resultante da busca no outro do reflexo de seu ser, como autoafirmação de seu ser. Neste sentido dizemos que o eu ideal serve de matriz para toda a série de identificações com os outros. Este outro, certamente, não se trata de um outro qualquer, mas daquele visto pela criança como portador do objeto a. Compreendemos o objeto a como a imagem do “outro em mim” ligada a experiência de identidade total. A criança se identifica com o outro enquanto imagem do eu ideal, na medida em que o outro é por ela percebido como objeto a, isto é, como imagem de algo que lhe falta, e que a faz recuperar o sentido da sua experiência original de si mesma, de seu self. A outra forma de identificação é a do “ideal do eu”. Trata-se de uma identificação secundária, ligada aos padrões de idealização social, portanto, aos valores ideológicos do grupo social. Desta feita, a criança se identifica com o outro não a partir daquilo que corporal e emocionalmente sente, mas com os ideais abstratos que o outro encarna ou representa, ideais que lhe são demandados para ser socialmente aceita

457 FREUD, S. Além do princípio do prazer. Edição Standard Brasileira. vol. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, 1996, pp 25-27. 458 Idem, p 26.


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ou amada. Em “O ego e o id”, Freud equipara o ideal do eu (ou do ego) ao superego, definindo-o como substituto de um anseio pelo pai.459 Anseio — diríamos tensão, angústia — por adaptação à ordem social. Mas precisamos caracterizar melhor a diferença entre as imagens de si correspondente ao eu ideal e ao ideal do eu, para melhor compreender o movimento dialético de constituição da identidade. Recordemos que para Lacan o eu ideal se encontra ligado ao registro do Imaginário, enquanto o ideal do eu ao Simbólico. Diz-se, lacaneanamente, que ao nível do Imaginário o eu se encontra situado em um locus de desconhecimento, ilusão e alienação. De acordo com a nossa interpretação ontológica, essa alienação se explica pelo fato de o eu se encontrar, no locus do Imaginário, limitado a agir como reflexo de um outro, sem o perceber. Por isso, as relações interpessoais que ocorrem ao nível da identificação imaginária, isto é, da imagem de si ligada ao eu ideal, são caracterizadas por um equilíbrio instável. A criança oscila ambivalentemente de um pólo afetivo a outro: do amor ao ódio, da admiração à agressividade. Caso o outro, por exemplo, a mãe, responda à sua demanda, ela corresponde com amor; caso a frustre, ela reage com agressividade. É onde entra a identificação simbólica, isto é, a imagem de si ligada ao ideal do eu, como terceiro mediador e regulador das relações interpessoais. O locus do ideal do eu é o das convenções, regras, valores, conceitos, acordos que servem para mediar de modo abstrato e impessoal as relações sociais, que, de modo geral, são pautadas primariamente pelo eu ideal. Na medida em que o eu se identifica com estes ideais, passa a se situar no locus do ideal do eu. No exemplo dado, se o ideal do eu da criança apregoar o respeito incondicional pela mãe, ela de modo algum reagiria com agressividade pelo fato de ser frustrada por ela, inibindo o seu impulso agressivo. A teoria do desejo mimético de Girard se aplica perfeitamente para explicar esta dialética das relações interpessoais, em conformidade com o quadro ontológico por nós adotado. No primeiro universo, a mãe e os cuidadores imediatos da criança servem como modelos e mediadores do seu desejo de self, isto é, como duplos, tanto na acepção girardiana como moreniana do termo. No segundo universo, ocorre um desdobramento desta situação inicial. A criança, possuindo imagens de si ligadas ao eu ideal e ao ideal do eu, passa a se identificar com os outros que lhe servem como modelos e mediadores do seu desejo de self, isto é, como duplos, na acepção girardiana, mas como espelhos na acepção moreniana.

No segundo universo, quando a imagem de si encontra-se ligada ao eu ideal, a experiência interpessoal se assemelha àquela do primeiro universo. Evidentemente, não se trata mais da experiência de identidade total, mas de uma forma de identificação. Em termos ontológicos, diríamos que o eu, mobilizado pela angústia do não ser, se identifica com a imagem literal que lhe sobrevêm do outro, em seu imediatismo, conforme o princípio de reciprocidade mimética descrito por Girard. Vê a si mesmo conforme a imagem do outro, segundo parâmetros que desconhece — que poderíamos chamar de inconscientes —, dado que se encontra a mercê do desejo do outro. Tal confusão não é reconhecida pelo eu, posto que acredita ilusoriamente na autonomia de seu desejo, desconhecendo todavia que imita o desejo do outro, e consequentemente, age como reflexo do outro. Não se restringindo ao comportamento das crianças, este permanece sendo, como nível estrutural primário, o modo básico de se relacionar comum a toda interação humana. Neste sentido, compreendemos a afirmação de Girard de que “uma dupla imitação estrutura todas

459 FREUD, S. O ego e o id. Edição Standard Brasileira. vol. XIX. Rio de Janeiro, Imago, 1996, p 49.


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as relações humanas”.460 Para ilustrar esta afirmação, aproveitemos o exemplo dado pelo próprio Girard da simples situação de um aperto de mão.461 Numa interação entre dois sujeitos A e B, A estende a mão a B para cumprimentá-lo. Em contrapartida, B estende a sua a A, cumprindo o ritual do aperto de mão. Todavia, se B se recusa a imitar A, não lhe estendendo a mão, A retirará imediatamente a sua, imitando, desse modo, B. Dado este exemplo, podemos inferir que existe em toda relação interpessoal uma tendência do outro ser convertido em modelo e mediador do desejo do sujeito, pois há sempre, num primeiro plano, o imediatismo especular da ação e reação mimética, isto é, reciprocidade mimética. Isso explica a tendência para a escalada da rivalidade e o desencadeamento da violência nas relações interpessoais. O outro tende a passar imperceptivelmente de modelo a rival. Se, em função de uma determinada ação sua, o outro o agrada, o sujeito reage retribuindo ao agrado; se o outro o hostiliza, reage, do mesmo modo, o hostilizando. Por isso, ao nível do Imaginário, a adaptação à ordem social é precária e instável. A imagem de si ligada ao ideal do eu surge, neste contexto, como modo de se relacionar com mais liberdade e autonomia. Para tanto, o sujeito precisa se contrapor à imagem de si ligada ao seu eu ideal. Neste caso, mobilizado pela angústia do não ser, o eu se apazígua acreditando nos ideais simbólicos encarnados por figuras exemplares de pais, professores, mestres, artistas, líderes políticos ou religiosos etc, que servem como espelhos para o eu na ação. Com isso, aprende a sacrificar os impulsos do seu eu ideal, protegendo-se assim das oscilações emocionais causadas pelo imediatismo especular da reciprocidade mimética. Encontra na imagem do ideal do eu um modo de aceitar a frustração de seus desejos mais imediatos, adotando comportamentos pautados por ideais éticos. Em psicanálise, isso é chamado de castração. O sujeito acede, desse modo, ao nível do Simbólico.

5.3.11. Psicossociodinâmica da constituição da identidade Moreno chamou de sociodinâmica a ciência da estrutura dos grupos sociais. A análise sociodinâmica das relações interpessoais em um grupo nos permite constatar que todo grupo se estrutura através de interações, basicamente de três tipos: atração, repulsão ou indiferença. De maneira que nos é possível analisar a sociometria de um grupo, isto é, a proximidade ou distanciamento das relações entre as pessoas que o compõem, em função da sua estrutura sociodinâmica, constituída por forças de atração, repulsão ou indiferença. Todavia, a análise sociodinâmica, conforme proposta por Moreno, é apenas descritiva. Não procura esclarecer as motivações psicológicas subjacentes a estas forças estruturantes, não se constituiu como psicodinâmica, como o fez Freud. Na teoria da psicanálise, a dinâmica da vida psíquica e social é estruturada pelo complexo de Édipo, enquanto regulador da libido — desejo sexual — e suas vicissitudes. De modo que as forças de atração, repulsão ou indiferença que acontecem em grupo são entendidas pela psicanálise como derivadas da psicodinâmica do triângulo parental, classicamente, de atração do sujeito pela mãe como objeto do desejo, e de ambivalência em relação ao pai, na forma de atração como modelo de identificação, e na forma de repulsão como rival. As identificações são assim entendidas como projeções transferenciais da organização original da libido.

460 GIRARD, R. Aquele por quem o escândalo vem. São Paulo, É Realizações, 2011, p 41. 461 Idem, pp 40-42.


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Acreditamos que deva estar suficientemente claro ao leitor que tratamos aqui de relativizar a leitura edipiana das relações interpessoais, evitando o seu caráter universalizante. Mas, como proceder para relativizá-la no âmbito da sociodinâmica moreniana? Em meu entender, o caráter apenas descritivo da análise sociodinâmica proposta por Moreno deixa uma lacuna à leitura psicanalítica, devido ao fato de não ter elaborado objetivamente a questão do desejo em sua teorização. Neste sentido, queremos ampliar a análise sociodinâmica proposta por Moreno nos termos de uma análise psicossociodinâmica, com a introdução do conceito de desejo de self. Este pode ser definido como modo de desejo ontológico, diretamente relacionado ao estado de espontaneidade e ao ato criador, em uma palavra, à expressão espontâneo-criadora do self. O conceito de desejo de self preenche a lacuna deixada por Moreno no âmbito da sociodinâmica ao explicar a motivação psicológica que confere direção às relações interpessoais. Propomos aqui, neste sentido, um método de análise psicossociodinâmica das relações interpessoais tendo como fundamento o desejo de self. Neste intuito, estudaremos a organização da noção de identidade no contexto das relações interpessoais da criança em seu grupo familiar. O nosso método consistirá em descrever o seu processo, que se inicia no período gestacional, passando pelo primeiro universo da matriz de identidade, quando se dá o desenvolvimento, agrupamento e unificação dos papéis psicossomáticos, conduzindo à organização do self psicossomático, até chegar ao segundo universo, quando se dá o desenvolvimento, agrupamento e unificação dos papéis sociais e psicodramáticos, conduzindo à organização do ego. Introduzimos aqui a noção da existência de um outro nível de organização da identidade relativo ao que denominamos terceiro universo da matriz de identidade, quando se dá a integração do self psicossomático e do ego em um nível mais elevado de organização que denominamos self integrado. Todo este processo acontece a partir e através das relações interpessoais da criança com seus cuidadores, propiciando a inserção do indivíduo na rede de significantes da ordem social em que vive. Falamos assim de três níveis de organização psicossociodinâmica da identidade cuja análise nos indica o grau de potência para agir de modo espontâneo-criador — ou, ao invés, a sua inibição — a depender da situação relacional na qual o indivíduo se encontra.

Nas palavras de Moreno, “toda e qualquer cultura é caracterizada por certo conjunto de papéis que ela impõe, com variável grau de êxito, aos seus membros”.462 Dito de outro modo, a inserção do indivíduo humano na ordem social ocorre com o aprendizado do conjunto de papéis que a sociedade a que pertence culturalmente lhe impõe. Essa inserção acontece, na maior parte dos casos, no seio da família, primeiro grupo social a que a criança pertence. Todo grupo é constituído por um conjunto de relações interpessoais mediadas por papéis. No caso do grupo familiar, os diferentes graus de parentesco determinam culturalmente a existência de diferentes papéis sociais: mãe, pai, filho, filha, irmão, avó, tio, prima etc. Com a aquisição da linguagem verbal, a criança vai assimilando e se adequando aos papéis sociais que normalmente lhe são atribuídos pelo simples pertencimento à família: filho, irmã, neto, sobrinha etc. Tais papéis servem como suporte para as suas primeiras representações simbólicas, propiciando a sua inserção na rede de significantes da ordem social. Toda diversidade de papéis sociais que vem a se desenvolver posteriormente é derivada destas primeiras experiências através do chamado efeito cachode-papéis, termo também conhecido, através dos trabalhos de Dalmiro Bustos, como cluster.463 De fato,

462 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, pp 413, 414 463 BUSTOS, D. M. Perigo... amor a vista! São Paulo, Aleph, 1990, pp 115-166.


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a criança ocupa um lugar nesta rede, desde o seu nascimento, durante o primeiro universo, porém, é apenas com a entrada no segundo universo que inicia o seu aprendizado de como agir de acordo com a representação social conferida por estes papéis. Vimos que, de modo geral, todo papel se constitui na interface relacional entre as polaridades eu e outro, interno e externo, subjetivo e objetivo, corpo e cultura, corpo e espírito, indivíduo e sociedade, indivíduo e mundo. No primeiro universo, tais polaridades se encontram presentes nos papéis psicossomáticos, mas indiferenciadas. No segundo universo, com os papéis sociais e psicodramáticos, tem início um outro modo de experiência caracterizada pela diferenciação dessas polaridades. O que promove essa diferenciação é a entrada de um terceiro elemento que se interpõe entre as polaridades promovendo a sua mediação: a imagem. Utilizamos intercambiavelmente para designá-la os termos imagem interna, imagem simbólica ou significante. Em síntese, a imagem — como terceiro — é o outro em mim. É o outro que se imita, consciente ou inconscientemente, e que opera psicodinamicamente como elemento diferenciador das polaridades. Os papéis sociais e psicodramáticos surgem coextensivamente ao advento das imagens de si como unidades de mediação. Servem como elos entre, por um lado, os esquemas sensório-motores e os gestos espontâneos do corpo físico, e, por outro, as normas, valores e costumes sociais comunicados pela linguagem numa dada sociedade. Assim, a noção de eu vai se formando em oposição à noção de outro, a de interno à de externo, a de subjetivo à de objetivo, etc. As relações interpessoais estabelecidas pelo bebê no primeiro universo são duais. Comumente se fala, sob influência da psicanálise, da existência de fusão ou simbiose na díade filho- mãe. Penso que estes termos devem ser entendidos como metáforas, pois não há, literalmente falando, fusão ou simbiose do bebê com sua mãe, mas, identidade do self do bebê com a mãe e os outros cuidadores em função da indiferenciação das polaridades referidas acima. Diz-se que a relação interpessoal é dual no sentido em que não há ainda a mediação entre as duas pessoas, do bebê e do cuidador, dada por uma terceira (o “outro em mim” da imagem). Quando falamos da fundamental importância de uma mãe suficientemente boa — utilizando o termo de Winnicott — para uma adequada constituição da organização do self psicossomático, cumpre-se portanto ressaltar que compreendemos o termo mãe como metáfora para o conjunto de pessoas que cuidam da criança no primeiro universo, acrescido das circunstâncias ambientais relacionadas à sua matriz de identidade. O desenvolvimento e integração dos papéis psicossomáticos organizam os processos formativos da vida somática em íntima conexão com a experiência emocional e afetiva da criança nas suas relações interpessoais, nos atos que realiza. Uma mãe suficientemente boa corresponde àquele (a) (s) cuidador (a)(s) capaz (es) de, no papel de duplo do bebê, numa identidade com ele, propiciar o seu adequado desenvolvimento, na medida em que age como facilitador da sua expressão espontâneocriadora. Neste sentido, falamos de mãe como uma metáfora para o papel de duplo, que vai sendo tomado por cada pessoa que cuida da criança neste período, que pode ser a própria mãe, como pode ser também o pai, a avó, a babá, a irmã mais velha, etc. Um tópico muito importante, no que se refere a esta etapa, é o da questão do vínculo do bebê com a mãe. Como entender, em vista do que aqui estamos a dizer, a formação desse vínculo? Tendo em vista as configurações familiares na contemporaneidade, dificilmente a mãe é a única a tomar o papel de duplo da criança. De modo que ela tenderá a estabelecer vínculos com todos aqueles que preponderantemente tomem este papel. Poderá estabelecer vínculo com a mãe, se esta desempenhá- lo de modo preponderante; como também com o pai, ou com outras pessoas que assim o procederem. De modo que pode haver um, dois ou mais vínculos interpessoais importantes neste período do desenvolvimento. Outro aspecto a ser considerado é o da qualidade afetiva destes vínculos. Mas foge


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ao nosso escopo nos estender nesse tópico aqui. As relações no segundo universo passam a ser triádicas com a entrada de um terceiro que se interpõe à díade filho-mãe: o pai. Do mesmo modo como acabamos de discutir em relação ao papel de mãe, pensamos que atribuir literalmente ao pai este papel, isto é, reduzir o papel desse terceiro a sua pessoa, é um equívoco. Esta noção se torna, porém, apropriada, se entendermos o termo pai, metaforicamente, como nome aplicável a toda pessoa que encarna os ideais da ordem social aos quais a criança precisa se adaptar. O pai pode ser assim entendido como a imagem do outro que serve de espelho para o self da criança em seu processo de adaptação a ordem social. Poderíamos dizer simplesmente que a criança ao nível da instância do eu ideal se identifica com a mãe, que com ela interage no papel de duplo, como auxiliar da sua expressão espontânea; e que ao nível da instância do ideal do eu se identifica com o pai, representando para ela o papel de espelho, na medida em que encarna os ideais da ordem social aos quais precisa se adaptar. Todavia, é plausível que, de modo “invertido”, a mãe represente para a criança o papel de ideal do eu, enquanto o pai, a de eu ideal. Como também é plausível que outras pessoas, que não a mãe e o pai reais, representem estes papéis para a criança. Em suma, a constituição da identidade se trata de um processo dialético entre ser e não ser, que se desdobra numa dialética entre as imagens de si ligadas ao eu ideal e ao ideal do eu, teleologicamente orientado pela busca da restauração da experiência original do self como identidade total, que permanece viva no inconsciente. O permanente processo de constituição da identidade se dá assim como a busca dialética da criação de sempre novas sínteses identitárias.

5.3.11.1. No primeiro universo Desde a gestação, os pais e familiares manifestam expectativas em relação ao futuro nascituro, de modo que, ao nascer, este ocupará um lugar na família em um contexto psicossociodinâmico previamente desenhado. Os pais e familiares possuem desejos que determinam todo um clima afetivo de atração, repulsão ou indiferença em relação a sua pessoa de modo geral, ou a determinadas características físicas ou de temperamento em particular, podendo, desde então, ser aceito e amado, como também, rejeitado ou tratado com indiferença. Um típico exemplo é o dos pais desejarem um menino e nascer uma menina, ou vice-versa. Evidentemente, este contexto é um fator decisivo no processo de desenvolvimento do nascituro, podendo ser favorável ou desfavorável a sua expressão espontâneo-criadora. Vimos que é de fundamental importância no primeiro universo, para uma adequada constituição da organização do self psicossomático, uma mãe suficientemente boa. Cumpre-se mais uma vez ressaltar que compreendemos aqui o termo mãe como metáfora para o conjunto de pessoas que cuidam da criança, acrescido das circunstâncias ambientais relacionadas a sua matriz de identidade. Nesta etapa, a criança experimenta o afeto ligado ao que é corporal, sensório-motor, no ato que realiza. Desse modo, o desenvolvimento e integração dos papéis psicossomáticos organizam os processos formativos da vida somática em íntima conexão com a experiência emocional e afetiva da criança nas suas relações interpessoais. Uma mãe suficientemente boa é aquela capaz de, no papel de duplo do bebê, numa identidade com ele,


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propiciar o seu adequado desenvolvimento, na medida em que age como facilitadora da sua expressão espontâneo-criadora. É aquela que se sente, na maior parte do tempo, desejosamente atraída pela criança, diríamos, numa atração télica. Neste caso, pode até acontecer de, ocasionalmente, a mãe não corresponder ao desejo ou necessidade da criança, numa atitude de repulsão ou indiferença. Voltando ao exemplo da mãe que prontamente acorda de madrugada e se levanta da cama para amamentar a criança no momento em que ela começa a choramingar de fome, pode acontecer numa noite em que a mãe está muito cansada, dela se demorar a amamentá-la. Sendo apenas ocasional, este tipo de evento não será determinante do desenvolvimento da criança. Por outro lado, se se tornar frequente, poderá, aí sim, afetá-lo. Na vida cotidiana, observamos situações muito mais complexas do que a deste exemplo. Não nos cabe neste estudo de ordem geral procurar listá-las ou classificá-las pormenorizadamente. Todavia, considerando toda a gama possível de situações conhecidas em psicologia, podemos caracterizá-las em dois grandes tipos: como mãe suficientemente boa, ou como mãe insuficientemente boa. Diríamos que no primeiro tipo há o predomínio de relações télicas. No segundo tipo, o predomínio de relações transferenciais ou transferências. Assim chamadas por Moreno, diferem do conceito psicanalítico em seu sentido original. Dizemos que a relação mãe- bebê é transferencial quando a mãe reage aos atos da criança de modo distorcido, não conseguindo desempenhar adequadamente o papel de duplo, inibindo desse modo a espontaneidade da criança. O que acaba por prejudicar o desenvolvimento de seus papéis psicossomáticos, e a equilibrada organização de seu self. Falamos aqui de psicopatologias no âmbito do primeiro universo. Um exemplo deste tipo de situação é o de uma mãe que tira um objeto das mãos de uma criança de um ano, com o qual ela estava entretida. Diante disto, a criança manifesta uma reação aversiva. Na tentativa de reaver o objeto, bate no rosto da mãe. Esta, por sua vez, se irrita com a criança. Interpreta seu ato como desrespeito, e grita com ela. A criança passa então a chorar copiosamente, o que faz com que a mãe se sinta ainda mais provocada. A mãe continua a gesticular e gritar com a criança, até que ela, enfim, para de chorar, extenuada pelo cansaço. Vamos, a seguir, explicar esta situação como uma patologia do desejo de self. Para tanto, precisamos retomar mais uma vez a teoria mimética de Girard. Argumentamos anteriormente que na relação da criança com seus cuidadores no primeiro universo, estes lhe servem como duplos, isto é, como modelos e mediadores de seu desejo de self. Falamos também da tendência de ocorrer, em toda relação interpessoal, ação e reação mimética, isto é, reciprocidade mimética. Segundo Girard, tal reciprocidade pode ser boa ou má.464 É boa, quando o duplo serve como modelo pacífico à imitação. O que equivale à relação télica, ao encontro moreniano. Torna-se má, quando o duplo deixa de servir a imitação pacífica, quando é convertido de modelo a rival, passando a ser imitado, desse modo, como rival. A relação interpessoal adquire então a forma de duelo. Assim, caso o desejo de self do cuidador se encontre telicamente ativado na relação com a criança, este desempenha o papel de duplo dela numa reciprocidade boa, espontânea e adequada. Porém, no caso de o cuidador, em reação a um determinado comportamento da criança, agir de maneira que iniba o seu desejo de self, diremos que se trata de uma reciprocidade má, ou ainda, de uma transferência, no sentido moreniano do termo. Neste caso, o cuidador transfere para a relação com a criança algo que não diz respeito ao self dela, mas à patologia de seu próprio desejo.

464 GIRARD, R. Aquele por quem o escândalo vem. Op cit, p 43.


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Para melhor analisar a situação do exemplo supracitado, lembremos da teoria das motivações inatas de Lichtenberg por nós estudada em capítulo anterior. Podemos ver na reação da criança à retirada do objeto das suas mãos pela mãe um ato espontâneo cuja motivação pode ser explicada por alguns dos mecanismos inatos descritos por Lichtenberg: de exploração e afirmação, de prazer sensual, de reação aversiva por meio de antagonismo ou afastamento. Quanto à mãe, tendo se sentido desrespeitada pela criança, acabou por se impôr violentamente, na “melhor intenção” de educá-la. Por que esta mãe se sentiu desrespeitada? Por que não percebeu, ou melhor, não compreende que a criança não teve a intenção de desrespeitá-la, mas, simplesmente, agiu de acordo com uma reação espontânea que faz parte de seu desenvolvimento normal? Muito provavelmente, a mãe reproduziu uma conserva cultural — o mito do respeito incondicional pela mãe — a qual, ela mesma foi submetida em sua infância, seguindo o seu ideal do eu. Podemos claramente identificar aqui a má reciprocidade de que nos fala Girard. A mãe, no papel de duplo, serviu à criança como modelo de descontrole emocional e rivalidade hostil. Neste sentido, o ato, do modo como se deu, foi contrário a sua intenção de educar. Ela nada mais fez do que transferir para a criança a forma como ela mesma foi “educada”. Agindo como agiu, desconfirmou a criança em sua espontaneidade, introduzindo um padrão de conserva cultural inadequado. Poderíamos nos perguntar: qual seria, neste caso, uma maneira mais adequada, télica, de interagir com a criança? Brincar, explorando com ela o objeto? Seria uma boa opção. Mas talvez a mãe tivesse um bom motivo para tirá-lo dela. Suponhamos que o objeto lhe oferecesse perigo. Nesta situação, trata-se de um dever do cuidador tirar o objeto dela. Compreender que a espontânea reação de aversão da criança é necessária à constituição normal de seu desenvolvimento nos ajuda a ver que o problema não reside no fato de tirar o objeto dela, mas na repressão de seu desejo de self. Neste sentido, a reação de aversão é uma legítima manifestação de afirmação existencial de seu self. Cabe ao cuidador usar de sua espontaneidade para cocriar com a criança uma maneira de não reprimir estas motivações, mas ajudá-la a integrá-las em sua ação de modo adequado. O primeiro universo da matriz de identidade é o período em que é organizado o self psicossomático. Sendo tal organização pré-verbal, é caracterizada por registros afetivos ligados a uma noção de identidade desvinculada de qualquer imagem de si, mas, antes, vinculada ao sentimento de poder de agir corporalmente de modo espontâneo através dos diversos papéis psicossomáticos desenvolvidos no período. Trata-se do sentimento de “eu posso”, no sentido da autoconfiança de ser capaz de agir. Uma boa organização do self psicossomático é obtida quando há um predomínio de relações télicas na matriz de identidade. Por outro lado, a organização do self psicossomático pode resultar patológica quando há um predomínio de relações transferenciais. Neste caso, a pessoa fica marcada desde o início de seu processo de formação da identidade por um sentimento de falta de confiança ou até mesmo de impotência relativamente à sua capacidade de agir. Em suma, a psicossociodinâmica do primeiro universo é caracterizada por registros afetivos, ainda não vinculados a uma determinada imagem de si, que conferem ao eu o sentimento de confiança na sua capacidade de agir, quando o desenvolvimento acontece de modo normal ou saudável, ou, no caso de um desenvolvimento patológico, o sentimento de falta de confiança ou impotência em seu agir.


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5.3.11.2. No segundo universo Acabamos de ver de que maneira as pessoas que cuidam da criança servem como duplos para o seu self. Estudaremos agora como as pessoas servem como espelhos. Lembremos que esta passagem do outro como duplo — no primeiro universo — para o outro como espelho — no segundo universo — ocorre devido ao surgimento da imagem interna. A criança passa reproduzir o comportamento dos outros não mais diretamente, no aqui e agora da ação, mas a partir de suas imitações interiorizadas, isto é, de suas imagens. Os primeiros a ser espelhados são naturalmente as pessoas mais próximas de seu grupo social: mãe, pai, irmãos, babá, avós, tios. Dada a nossa abordagem interpessoal, colocamos ênfase nas pessoas; no entanto, animais e mesmo entes inanimados ou imaginários também podem servir como modelos especulares. O surgimento da imagem faz com que as relações interpessoais da criança se modifiquem na medida em que possibilita a aquisição da linguagem. Façamos, como introdução, um breve resumo do que dissemos sobre a linguagem, partindo do ponto central: a linguagem é simbólica. Com isso queremos dizer que ela é estruturada como uma rede de significantes, sendo que um significante somente faz sentido na relação com todos os outros significantes. Um significante se manifesta como um signo — uma palavra, uma figura, um sinal —, que pode ser apreendido literalmente, situação em que apresenta apenas um único significado; como pode ser também apreendido simbolicamente, apresentando uma pluralidade de significados, por vezes contraditórios. Neste segundo caso, remete à dimensão do não conhecido, do oculto, do mistério, a que costumamos chamar genericamente de inconsciente. A articulação dos significantes como estrutura se deu originalmente em tempos primitivos na forma de mitos, conservando-se assim até hoje. A mitologia forma em seu conjunto a base ancestral de toda linguagem e de toda cultura. A linguagem racional, tornada dominante com a secularização da cultura, veio a se sobrepor à linguagem mítica, sem, contudo, deixar de tê-la como base, como matriz. Em comum, a narrativa de todos os mitos é construída a partir de um primeiro significante que, permanecendo oculto, inconsciente, serve de origem a toda sequência de significantes. Seguindo a descoberta de Girard, entendemos que este primeiro significante corresponde à vítima sacrificial, utilizada para expiar a violência coletiva — do grupo social — derivada da rivalidade mimética. A vítima, após a morte, é convertida em deus ou herói. Desde a sua origem, a existência humana se encontra ligada à violência e ao sagrado através da linguagem nas narrativas de mitos. De modo que o sentido conferido à ação humana — sentido este, religioso — decorre da representação de papéis de vítimas, heróis e deuses. Mesmo rejeitando a universalidade da teoria psicanalítica fundada no complexo de Édipo, fazse mister reconhecer o mérito do pioneirismo de Freud na demonstração empírica de que os processos psíquicos se assentam na mitologia. De fato, tendo a nossa cultura sido formada do encontro da cultura judaico-cristã com a cultura grega, o mito de Édipo — como os demais mitos gregos — foi e continua a ser instituinte dessa cultura. Além disso, não podemos evidentemente deixar de considerar as relações do triângulo parental — filho(a)-mãe-pai — como padrão cultural dominante na nossa sociedade. Os papéis de filho, mãe e pai são os papéis sociais básicos da nossa cultura, dos quais são derivados todos os demais papéis através do efeito cacho-de-papéis ou cluster. Neste contexto, D. Bustos classifica os clusters em


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três tipos: a) cluster 1 ou materno, referente as relações filho(a)-mãe; b) cluster 2 ou paterno, referente às relações filho(a)-pai; e, c) cluster 3 ou fraterno, referente as relações entre irmãos.465 Todavia, com Freud, a psicodinâmica ficou encerrada a um único mito, ao Édipo, e assim, ao tema do incesto, às fixações da sexualidade na dinâmica parental, deixando de considerar outras possibilidades significativas de outros tantos mitos. Foi com C. G. Jung que passamos a reconhecer a influência da ampla e complexa gama de mitos da nossa tradição cultural, não só grega, mas das mais variadas origens, através do seu conceito de arquétipo. E aqui nos aproximamos do pensamento de Jung, reconhecendo nos diversos mitos da humanidade padrões arquetípicos do inconsciente coletivo466, que, como metáforas vivas 467, no sentido proposto por Paul Ricoeur, isto é, como figuras de linguagem com potência de inovação do discurso, nos servem de modelos na construção de nossos papéis no mundo. Do mesmo modo que na Antiguidade os arquétipos deram forma a imagens nos mitos de heróis, deuses e deusas, dão forma, no presente, a imagens análogas em nossos sonhos, fantasias, sintomas psicopatológicos, e mesmo em nossos construtos conceituais. Por exemplo, podemos ver através do sofrimento da deusa grega Deméter pelo rapto da filha, os sintomas de depressão numa mulher que perdeu, com a emancipação dos filhos, seu papel de mãe nutridora. Ou, através de um ato de Zeus, que utilizou a sua coxa como ventre para o término da gestação de Dioniso após a morte de sua mãe Sêmele, aspectos femininos da paternidade. Neste sentido, podemos continuar reconhecendo aspectos do mito de Édipo nas nossas expressões culturais, bem como em nossos sintomas psicopatológicos. Longe de um passado morto, as imagens dos mitos nos servem como um pano de fundo a nos orientar na tomada de consciência de visões de mundo instauradoras de novos sentidos. Assim, por mais que tenhamos desenvolvido o discurso racional, nossas vidas continuam sendo pautadas por narrativas míticas. Daí firmarmos como pressupostos: a) que o contexto psicossociodinâmico das relações interpessoais dentro de uma família, como célula cultural da sociedade, corresponde a uma mitologia; b) que é a esta mitologia familiar que a criança acede com a aquisição da linguagem; c) que os papéis sociais e psicodramáticos são construídos em torno da estrutura representacional vítima/herói. Vejamos então como podemos entender a psicossociodinâmica dos processos de identificação e construção dos papéis no segundo universo tendo como guia a mitologia. Vamos aqui focar nosso estudo na formação da imagem de si com a qual a criança se identifica, que chamamos de ego. Com a perda da experiência de identidade total, o self psicossomático torna-se inconsciente. O desejo de self, sentido ao nível da consciência como a angústia ligada ao não ser diante do outro/Outro, passa a dirigir os processos de identificação e, desse modo, a formação dos papéis sociais e psicodramáticos. Regidos pelo desejo self, através da permanente atividade espontânea de criação de imagens, os papéis se encontram ligados, por um lado, aos estratos mais profundos e inconscientes da estrutura sensório-corporal, e, por outro, à vida sociocultural. A produção simbólica operada pela imaginação, ligando assim as polaridades eu/outro, interno/externo, subjetivo/objetivo, corpo/cultura, corpo/espírito, indivíduo/sociedade, indivíduo/mundo, vítima/herói etc, a um só tempo revela e oculta o significado da vida de um indivíduo como um todo. Através de seus papéis, o indivíduo humano expressa simbolicamente suas imagens, integrando corpo, mente e espírito, no eterno movimento de busca pela religação de seu self com o Self, Cosmos ou Deus.

465 BUSTOS, D. M. Perigo... amor a vista! São Paulo, Aleph, 1990, pp 115-166. 466 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro, Vozes, 2000. 467 RICOEUR, P. A metáfora viva. São Paulo, Edições Loyola, 2000.


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Com a aquisição da linguagem verbal, a criança descobre que a sua ação é narrada pelos outros. Descobre-se assim representada em narrativas: identificada com um nome, participante de ações no tempo e no espaço, portadora de atributos etc. O que é primário neste processo é o surgimento espontâneo de imagens no momento da ação. Analisemos então o seguinte exemplo. Uma criança de dois anos ouve de sua mãe: — o Felipe é inteligente. Tratam-se de duas identificações, numa relação de equivalência: a primeira, com o significante Felipe; a segunda, com o significante inteligente. No ato em que a criança ouve a fala da mãe há formação da imagem “o Felipe é inteligente” em sua mente. Há todo um universo de significados que se abre à criança com essa simples imagem, pois, sendo simbólica, sua compreensão não é de pronto totalmente assimilada, mas apenas gradativamente. Quantos significados esta criança há de descobrir acerca dessa imagem ao longo de sua vida? Aos poucos, ela vai descobrindo que Felipe é um nome próprio, do gênero masculino, que lhe foi dado porque é um homem. Nome escolhido em homenagem a um tio falecido. Nome também de um rei da França, de um apóstolo de Cristo e de um goleiro de futebol famoso na época em que nasceu. E o que significa inteligente em seu caso? Que fala direitinho? Que sabe brincar bem? Neste sentido, ser inteligente diz respeito ao seu papel de falante ou de brincante? Fato é que nesse processo a criança vai simbólica e interpessoalmente tomando papéis na rede de significantes da ordem social em que se encontra inserida. Além disso, vai aprendendo a ordená-los em seu discurso, de acordo com a sua experiência imaginativa, na forma de narrativas a respeito de si, dos outros e do mundo. Como estudamos anteriormente, as três instâncias regentes do processo de organização do ego são o eu ideal, o ideal do eu e o objeto a. A imagem de si ligada ao eu ideal, como identificação primária, confere à criança, em meio à angústia de não ser, um reflexo de seu self, na medida em que o outro lhe restitui a percepção do sentido da sua experiência original de si mesma. Em outras palavras, vê no outro a imagem de algo, ligado ao objeto a, que lhe falta e lhe completa, fazendo-a se sentir como si mesma. Poderíamos dizer que, ao nível do eu ideal, “eu sou” o objeto a. A imagem de si ligada, por sua vez, ao ideal do eu, como identificação secundária, é a imagem relativa aos valores ideológicos e normas sociais demandados pela família e a sociedade, que criança adota a fim de ser socialmente aceita ou amada. Neste caso, a imagem do objeto a passa ser a de algo que se tem em seu poder, que está sob seu controle. Poderíamos dizer que, ao nível do ideal do eu, “eu tenho” o objeto a. Metafórica e esquematicamente, ao nível do eu ideal a criança se identifica com a mãe, e ao nível do ideal do eu, com o pai. Na realidade, qualquer pessoa que participa da matriz de identidade da criança pode servir como modelo para essas imagens regentes dos processos de identificação. Na contemporaneidade, as configurações familiares vêm cada vez mais se diferenciando do padrão tradicional. De modo que podemos, cada vez menos, conceber as relações do triângulo filho(a)- mãe-pai de modo literal. O papel de pai, no caso de casais separados, nem sempre é desempenhado pelo pai biológico, mas pelo padrasto. E as metamorfoses não param por aí. Haja vista a formação de casais homossexuais que adotam filhos. O que queremos enfim ressaltar é a importância de se compreender que o conceito de papel nos fornece uma via coerente com a dimensão simbólica da existência humana. Um papel é um símbolo. Falamos, neste sentido, sobre o simbolismo do vínculo interpessoal possibilitado pelo jogo de papéis. A criança aprenderá a atuar no papel social de filho nas relações com sua mãe e com seu pai reais, ou com quem desempenhar para ela simbolicamente estes papéis. Por exemplo, se na ausência do pai, um outro — avô, tio, padrasto, ou mesmo a mãe — representar para a criança o papel de pai, tal como este é concebido no imaginário, isto é, como aquele que protege, orienta, impõe limites, será estabelecido para ela este tipo de vínculo interpessoal.


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Assim, quando esta criança alcançar o estágio de pensamento abstrato poderá dizer que minha mãe — ou meu avô, tio, padrasto — foi como um pai para mim. Pode acontecer também que outras pessoas, reais ou imaginárias, sirvam como modelos para estes papéis, sem que se forme um vínculo concreto. É o caso, por exemplo, da menina que vê na mãe de uma amiga sua, ou na imagem da Virgem Maria, a mãe que gostaria que a sua fosse. Há, enfim, uma enorme complexidade na gênese dos processos de identificação, que depende, em primeira e última instância, do conjunto das relações interpessoais que a criança estabelece em sua matriz de identidade. Tentemos então explicar a psicossociodinâmica destas relações. Tal como dissemos quando abordamos a psicossociodinâmica no primeiro universo, os pais e familiares possuem desejos que determinam, também no segundo universo, todo um clima afetivo de atração, repulsão ou indiferença em relação a criança, estando ela sujeita a ser aceita e amada, como rejeitada ou tratada com indiferença. Eles tanto podem se relacionar telicamente com a criança, indo ao encontro de seu self, como podem transferir a ela seus desejos, levando-a a introjetar sentimentos, ideais, valores, que por vezes desconfirmam seu self. Recorremos aqui ao conceito de introjeção da psicanálise, que, ligado ao processo de identificação, denomina a passagem de “fora” para “dentro” de objetos ou qualidades inerentes a estes objetos.468 Falamos neste caso de transferências do desejo do outro — de objetos desejados pelo outro — que a criança acaba por assimilar e se adequar, a depender do grau de identificação com este outro, em proporções variáveis de contradição com seu self. Tomamos como pressuposto que o desejo de self da criança no segundo universo a orienta teleologicamente, através da sua espontaneidade, para uma adequação à realidade social sem que haja contraposição ao seu self. O conceito de retrojeção de Moreno, do qual já falamos, nos permite explicar de que maneira isso é possível. Apenas para relembrar o que já dissemos, “retrojeção é absorver e receber de outras pessoas suas ideias e sentimentos, tanto para descobrir uma identidade entre estas e as ideias e os sentimentos próprios (confirmação), quanto para aumentar a força do self (expansão)”.469 Neste sentido a assimilação do desejo do outro pode se dar de modo a confirmar e expandir o self da criança. De modo que pode haver dois modos de adequação da criança à realidade social: um primeiro, quando a relação interpessoal que ela estabelece com o outro é regida pela espontaneidade e pela tele, viabilizando a assimilação de sentimentos, ideais, valores que confirmam e expandem o seu self; e, um segundo, no qual o outro transfere sentimentos, ideais, valores que a criança acaba introjetando, apesar da desconfirmação e retração de seu self. Pensamos que na realidade sempre ocorre algum grau de intersecção entre os dois modos. Nunca há só transferência, pois isso seria totalmente contrário ao desejo de self. Por outro lado, apenas raramente há tele pura, pois o outro, de maneira geral, se encontra sujeito ao inconsciente de seu desejo, o que o leva a projetá-los e transferi-los. Como afirma Moreno, nas relações interpessoais “tanto tele como transferência estão ligadas uma à outra e, em geral, presentes em proporções variáveis”.470 Consideramos que a criança forma o seu conjunto de papéis a partir da adequação ao papel social de filho nos atos da realidade, quando a representação acontece na presença objetiva de um outro no papel de mãe, ou no papel de pai. Nos atos da fantasia, esta tríade de papéis é explorada através do roleplaying e da inversão de papéis. Aqui, a criança toma como referência as imagens que tem dessas figuras, veiculadas pelas narrativas nas quais as mesmas se encontram representadas. Piaget nos auxilia neste ponto

468 LAPLANCHE, J. Vocabulário de psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 2001 p 248. 469 MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade. Op cit, p 21. 470 MORENO, J. L. Fundamentos do Psicodrama. Op cit, p 102.


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com a sua teoria sobre o jogo simbólico infantil.471 A sua argumentação é a de que nos atos da realidade ocorre uma representação adaptada quando a imitação se encontra acomodada ao objeto presente. Já no ato de brincar, isto é, nos atos da fantasia, há um jogo simbólico no qual a imitação não diz respeito ao objeto presente, mas sim, ao objeto ausente, evocado ludicamente, numa busca de assimilação por parte da criança de seu universo existencial. Neste sentido, podemos falar de processos de adequação do ego, ligados aos objetos presentes na realidade, através dos papéis sociais; e de assimilação do self, ligados aos objetos ausentes na realidade, mas presentes na fantasia, através dos papéis psicodramáticos. Neste processo, os vínculos interpessoais a que a criança se encontra submetida são fundamentais. Falamos da importância de uma mãe suficientemente boa no primeiro universo. No segundo, essa figura continua sendo importante, mas de modo diferenciado. Procuremos compreender de que maneira se processa esta diferenciação. Para tanto, voltemos às nossas imagens regentes dos mecanismos de identificação. Dissemos a pouco que ao nível do eu ideal a criança se identifica com a mãe. Então, uma mãe suficientemente boa no segundo universo seria aquela que possibilita à criança, em meio a sua angústia do não ser, identificar-se com ela de modo a lhe restituir a percepção do sentido da sua experiência original de identidade total como um reflexo de seu self. Neste tipo de vínculo a criança se sente amada sendo o que é, de acordo com o que julga ser o seu próprio desejo, digamos, segundo a autonomia de seu desejo. A criança se encontra em um mundo que é só seu, confirmado pelo reflexo do outro/mãe. Neste sentido, ao nível do eu ideal — do “eu sou” o objeto a —, a sua angústia é imaginariamente aplacada de modo onipotente numa ilusão de autonomia de seu desejo. Uma mãe suficientemente boa, no contexto do segundo universo, possibilita a confirmação e expansão do self da criança em seus atos, tanto nos da realidade como nos da fantasia. É no ato de brincar que a criança experimenta concretamente a sua fantasia; e para que este ato possa efetivamente existir, isto é, que se torne, nos termos de Winnicott, um “espaço potencial” para os “fenômenos transicionais” através dos quais emerge a criatividade da criança, é fundamental que seja legitimado pelo olhar de uma mãe suficientemente boa. Antes de abordarmos a identificação com a figura do pai, ligada ao ideal do eu, diria ainda que uma função importantíssima de uma mãe suficientemente boa é a de frustrar, no momento oportuno, e de modo amoroso, a ilusão de onipotência da criança. Tal função costuma ser atribuída ao pai. Contudo, se não houver a participação da mãe nesta operação, a criança tenderá a permanecer indiscriminadamente ligada a imagem do eu ideal. Não conseguirá enfrentar a angústia do não ser para aceder à imagem do ideal do eu. Dito isto, passemos então ao vínculo com a(s) pessoa(s) que desempenha(m) o papel de pai no desenvolvimento infantil. Dissemos que a imagem do ideal do eu, como identificação secundária, é a imagem ligada aos valores ideológicos e normas sociais demandados pela família e a sociedade que a criança adota a fim de ser socialmente aceita ou amada. Para tanto, a criança tem que abdicar da imagem ilusória do eu ideal com a qual se habituou a aplacar sua angústia do não ser. Precisa sacrificar esta imagem em prol da construção de uma outra, o ideal do eu. Diríamos que faz isto em “Nome-do-Pai”, nos valendo do termo de Lacan. Terá de fazer este sacrifício inúmeras vezes, não só durante a infância, mas, por muito tempo, talvez,

471 PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro, LTC, 1990, pp 256-276.


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ao longo de toda a sua vida. Neste sentido, há uma dialética entre as imagens de su ligadas ao eu ideal e ao ideal do eu constitutiva do ego. Reiterando o que dissemos, esta dialética ocorre teleologicamente. Ora identificado com o eu ideal, ora com o ideal do eu, o ego procura responder à demanda do self. Precisa, desse modo, abrir mão do ideal de amor de seu mundo imaginário, da ilusão onipotente de ser, para, aceitando as regras e limites impostos pelo grupo social a que pertence, passar a ser amada na medida em que se adéqua a estas regras e limites. Em outras palavras, precisa sacrificar a onipotência imaginária de ser para aceder ao mundo simbólico do ter (conhecimento, posição social, poder de compra, poder de comando, crença religiosa etc). Neste caso, a imagem do objeto a passa a ser a de algo que se tem em seu poder, ou que se luta em obter, para aplacar a angústia do não ser. O pai seria aquele que, no grupo social, ocupa o papel de modelo e mediador do desejo daquilo que é considerado por este grupo como objeto a. Neste sentido, o pai é aquele reconhecido dentro da família, a depender da ideologia que a organiza, como modelo a ser imitado. Toda e qualquer ideologia que rege o comportamento dos grupos sociais no mundo moderno é configurada em torno de determinados objetos do desejo, pelos quais se deve lutar para obter e manter. As pessoas devem adotar comportamentos heroicos para conseguir a obtenção destes objetos a custa de sacrifícios. Sacrifícios em nome de causas de todos os tipos: a popularidade entre os colegas da escola, um lugar no mercado de trabalho, a manutenção da família, o ideal político, a bem- aventurança de um caso de amor, a obediência a princípios religiosos, a descoberta científica. Para tanto, devem abdicar a uma série de outros objetos, talvez mais adequados ao desenvolvimento do seu self. Como no caso típico do jovem que abdica da sua prática esportiva ou de namorar para dedicar a quase totalidade de suas horas aos estudos na época do vestibular. Sacrifícios feitos em “Nome-do-Pai”. Daí compreendermos tais ideologias como mitologias. O ideal do eu se trata de uma estrutura bipolar. Em um dos pólos se encontra o herói, no outro, o bode expiatório. E aqui retomamos a referência aos trabalhos de Girard sobre o lugar do bode expiatório no centro da formação da cultura. Vimos que entre os povos primitivos, escolhia-se uma vítima humana para ser sacrificada a fim de aliviar a tensão social causada pela rivalidade mimética. Há muito este tipo de ritual deixou de ser normalmente praticado no mundo ocidental, porém, persistindo atualmente, de modo similar, em certas práticas de magia negra. O fato é que o mecanismo do bode expiatório, com sua escolha arbitrária de vítimas, permaneceu operante nas sociedades através dos tempos. Ainda hoje se manifesta, por exemplo, de modo ostensivo, no denominado fenômeno do bullying. Uma pessoa torna-se vítima de assédios de agressividade dentro um grupo pelo simples fato de não corresponder, ou representar a antítese de um determinado modelo idealizado pela sociedade. Se alguém está obeso ou não usa roupas de certa grife, pode estar sujeito a perseguições do tipo bullying. Mas há ainda o outro lado do mecanismo: o fato da vítima se sentir culpada, formando assim um círculo-vicioso. Pois para existir o perseguidor que julga o outro culpado é necessário que o perseguido, do mesmo modo, também se julgue culpado. É o que de fato podemos observar na realidade cotidiana, bastando, por exemplo, conversar com uma pessoa obesa que sofre bullying para constatarmos que ela se sente culpada pela sua obesidade. Na sociedade contemporânea, a magreza é um atributo ligado ao ideal do eu coletivo. A pessoa que consegue a custa de sacrifícios ficar magra é considerada uma heroína, passando a servir de modelo para todos. Assim, a estrutura bipolar do ideal do eu determina que uma pessoa obesa seja colocada no lugar do bode expiatório, uma vez que a magreza é um atributo do ideal do eu. Compreendemos também que essa é justamente a estrutura que subjaz ao mecanismo de inclusão/exclusão social.


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Vimos a pouco que Freud equiparou o ideal do eu ao superego. Como instância de julgamento autocrítico da personalidade, o superego promove a oscilação de um lado ao outro da estrutura bipolar do ideal do eu. Por um lado, conduz à sensação de triunfo, quando a imagem egoica de si coincide com o ideal do eu; por outro, ao sentimento de culpa, bem como ao de inferioridade, quando o indivíduo fracassa em igualar a sua imagem de si ao ideal do eu. Como ego, se tenho o objeto a que me faz sentir socialmente reconhecido no lugar de ideal do eu — a magreza, no exemplo acima — triunfo, sou herói; se não o tenho, fracasso, sou culpado. A estrutura mítica herói/vítima das relações interpessoais no grupo social tem assim a sua correspondência ao nível do dinamismo intrapsíquico do indivíduo, dando origem a sintomas psicopatológicos como o medo obsessivo de perder ou deixar de ter, o sentimento de baixa autoestima por não ter, etc. Neste sentido, podemos compreender as mais variadas configurações psicossociodinâmicas do grupo familiar como reproduções de uma mesma estrutura mítica, pois em todas elas podemos identificar o binômio herói/vítima. Como dissemos, os desejos e expectativas dos pais e familiares determinam movimentos de atração, repulsão ou indiferença em relação a criança, estando ela, desse modo, tanto sujeita a ser aceita e amada, como rejeitada ou tratada com indiferença. A tensão emocional entre ser incluída ou excluída dentro da família, soma-se e mistura-se assim à angústia mais básica de não ser. Para não cair no lugar do bode expiatório, a criança luta heroicamente para cumprir às demandas da adaptação aos ideais do grupo familiar, ideais que se congregam em torno do que podemos chamar de desejo do pai. Em outras palavras, a criança procura se identificar com o ideal do eu do grupo. Insistimos mais uma vez que nos valemos do termo pai metaforicamente. Por certo, pode acontecer de o pai real ocupar concretamente o lugar de ideal do eu do grupo familiar. Mas também pode ocorrer deste ser rejeitado neste lugar, situação em que um outro — um avô, um médico, um padre, um patrão — é aí colocado pelo grupo, o que aparece nas narrativas das histórias do grupo, em seu mito. Dessa forma se dá a constituição do ego na matriz de identidade. Precisamos falar ainda de um outro papel fundamental nessa psicossociodinâmica: o papel de irmão. No meio do Psicodrama, Bustos atribui a devida importância ao mesmo na sua classificação como cluster C. As relações interpessoais relacionadas ao papel de irmão são caracterizadas pela paridade, igualdade, competitividade, fraternidade, rivalidade. Sendo assim, dentro do grupo familiar, a criança encontra no irmão uma imagem especular com a qual inevitavelmente se compara, tendo em vista as perguntas relativas ao ideal do eu do grupo familiar. Qual dos irmãos é o mais inteligente? E o mais bonito? E o mais bonzinho? Resta-nos ainda abordar a formação do drama pessoal, isto é, do mito que subjaz cada existência individual. Trata-se da narrativa através da qual cada indivíduo humano constrói a sua identidade, composta no jogo dialético entre os papéis sociais e os papéis psicodramáticos no contexto psicossociodinâmico do grupo familiar. Falamos de atos da realidade e papéis sociais quando a representação acontece na presença objetiva de um outro; e de atos da fantasia e papéis psicodramáticos quando a representação acontece em um jogo simbólico — no sentido empregado por Piaget — no qual a representação não diz respeito a um outro presente, mas sim, ausente, evocado ludicamente, numa busca de assimilação por parte da criança de seu universo existencial, que Moreno denominou como fome cósmica. Nos atos da fantasia, o universo dos papéis a que a criança tem acesso na sua matriz de identidade é explorado através do role-playing e da inversão de papéis, na tentativa de religar-se ao self. Podemos assim dizer que através de seus papéis psicodramáticos a criança — mas não só a criança, pois os atos da fantasia continuam ocorrendo voluntária


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ou involuntariamente durante toda a vida de todo indivíduos — procura resignificar os seus papéis sociais de modo a permanecer fiel a seu self. Se, por ventura, a imagem do eu ideal a estiver mantendo em uma onipotência alienante, ou, talvez, a imagem do ideal do eu a afastar de seu self, uma possível religação ao mesmo será espontaneamente expressada através de um papel psicodramático. Entendemos ser esta a derradeira função dos atos da fantasia, enquanto locus da realidade suplementar. Tentemos por fim sintetizar tudo o que dissemos até aqui no intuito de captar descritivamente o momento de formação da imagem egoica de si na matriz de identidade. Com a perda da experiência de identidade total a criança passa a experimentar um novo modo de ser caracterizado pela divisão de seu self. A memória dessa experiência original, em torno do desenvolvimento, organização e integração de seus papéis psicossomáticos, passa a ser inconsciente, enquanto ao nível da consciência se identifica com a imagem do outro numa tentativa de aplacar a angústia do não ser. Primariamente, se identifica com o outro que lhe confere a sensação de recuperar a experiência original do self. Chamamos esta imagem de eu ideal. Esta imagem de si não é estável, mas fugaz, posto que imaginária. A angústia ressurge a cada vez que seu desejo é frustrado, reagindo no sentido de construir um mundo próprio, um mundo imaginário em que adquire a ilusão de autonomia e onipotência. Tratase, em uma palavra, de uma mitologia solipsista. Contudo, em seu aspecto positivo, é uma imagem que, ancorada no corpo e nos estratos mais profundos da psique, carrega o sentido de self. Secundariamente, se identifica com o outro que lhe confere o sentimento de pertencimento ao grupo social, que a faz ser socialmente reconhecida pelos seus atributos. Trata-se da imagem de si ligada ao ideal do eu. Esta imagem é mais estável, pois corresponde às expectativas do grupo social. Daí se dizer que se encontra a este nível no mundo do simbólico. Trata-se do mesmo modo de uma imagem mítica, mas pautada agora pela estrutura herói/vítima. A instabilidade neste nível é decorrente da possível passagem de um pólo a outro, isto é, de herói a bode expiatório. Aparecem então os sentimentos de medo e culpa, relacionados aqui à possibilidade de exclusão social. Além disso, se, por um lado, a imagem de si ligada ao ideal do eu confere a criança um lugar de aceitação no grupo social, por outro, pode afastá-la demasiadamente do seu sentido de self. De modo que esta é ainda uma outra tensão a que se encontra submetida: a tensão dialética entre as imagens de si ligadas ao eu ideal e ao ideal do eu. Tal afastamento é uma forma de ilusão, de alienação, como também o é a permanência na estrutura herói/vítima. De modo que, tanto ao nível do eu ideal como do ideal do eu o ser humano permanece dividido, alienado de seu self. Chamamos de drama pessoal à narrativa que cada indivíduo constrói para si, motivado pelo desejo de self, através do jogo dialético entre os papéis sociais e os papéis psicodramáticos, balizado pelas imagens de si ligadas ao eu ideal e a ao ideal do eu. A resolução desse processo dialético constitutivo do ser humano se dá com a passagem para o que denominamos terceiro universo, e a formação da imagem do Deus-Eu: a transposição do locus das identificações para o locus da identidade diferenciada e integrada do self, e da religação com o Self, Cosmo ou Deus.


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5.3.11.3. No terceiro universo O termo terceiro universo não foi formulado por Moreno. Estou o propondo aqui a fim de responder a uma questão em aberto na teoria do psicodrama: qual seria o locus do Deus-Eu na matriz de identidade? Haveria uma psicossociodinâmica do terceiro universo factível de ser concebida como nível de organização da identidade ligado ao Deus-Eu? Jesus nos evangelhos nos fala: “Quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele” (Lucas:18,17). Encontramos nesta mensagem de Jesus a síntese da teleologia do psicodrama. Evidentemente, não é possível compreender a mensagem de Jesus de modo literal. Afinal, como voltar a ser criança se não metaforicamente? Neste sentido, propomos aqui uma interpretação psicodramática da mensagem evangélica: o Reino de Deus é o universo da identidade total. A jornada humana se inicia com a experiência do Reino de Deus no primeiro universo da matriz de identidade, a experiência do self na unicidade da ação. A passagem do primeiro para o segundo universo, para o estado de divisão do self e a experiência da angústia do não ser, tem a sua correspondência na Queda, narrada pelo texto bíblico do Gênesis, na expulsão de Adão do paraíso, isto é, na sua exclusão do Reino de Deus. O self é excluído do campo da consciência tornando-se inconsciente. Diríamos então que o homem procura, como Adão, voltar ao paraíso, isto é, recuperar a sua experiência de identidade total, o estado de religação com o self. Enquanto no primeiro universo tal estado é de identidade indiferenciada, denominamos a experiência do self no terceiro universo como identidade diferenciada. Para alcançar o estado de integração de seu ser, na forma de identidade diferenciada, o homem precisa recuperar a experiência do self vivenciada na primeira etapa de seu desenvolvimento, que fora perdida em função da necessidade de se adaptar às leis do mundo. No processo da passagem para o terceiro universo, o indivíduo se torna a pessoa que verdadeiramente é. Sua identidade se diferencia, se singulariza, se integra culturalmente. Torna-se assim capaz de assumir a responsabilidade ética e amorosa por si mesmo, os outros e o mundo, no lugar de cocriador do Cosmos. A jornada do segundo universo, iniciada por volta do décimo oitavo mês com a aquisição da capacidade de representação e da linguagem, tende a perdurar por toda a vida devido ao forte impedimento cultural à passagem para o terceiro universo. De modo que o homem tende a permanecer enclausurado no segundo universo. Como dissemos no capítulo anterior, situamo-nos no segundo universo no âmbito da mitologia, sob a égide da estrutura bipolar herói/vítima. R. Girard e colaboradores, como os teólogos James Alison e Carlos Mendoza-Álvarez, mostram-nos de que maneira a vida, morte e ressurreição de Jesus nos oferecem o caminho para a transposição da mitologia — da sua mentira e alienação — e a passagem ao Reino de Deus em “espírito e verdade”. Eles nos explicam o motivo pelo qual, passados dois mil anos, a mensagem de Jesus Cristo ainda não foi assimilada pela grande maioria do homens: a vontade de apropriação associada ao desejo mimético. Em outras palavras, a vontade de ter sobreposta à vontade de ser. Cada um de nós precisa descobrir de que modo o mecanismo do desejo mimético opera em nossa vida, de que maneira este nos enclausura em dramas míticos nos quais ora aparecemos como heróis, ora como bodes expiatórios, para que possamos transpô-lo, e assim recuperar a plenitude do nosso sentido de self, de nosso ser em Deus, na unidade com Deus. Retomemos então a dialética entre a imagem egoica de si ligada ao eu ideal — vontade de ser — e o ideal do eu — vontade de ter — que caracteriza o drama pessoal, a mitologia do indivíduo no segundo universo, para tentarmos compreender de que maneira este pode encontrar a passagem para o


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terceiro universo e o Deus-Eu. Não há como negar a dimensão do mundo, afinal vivemos nela. Com isso quero dizer que não há como negar o regime do Simbólico, do ideal do eu, a sua estrutura que implica leis, conhecimento, poder, ordem, conceitos; como também não há como negar o regime do Imaginário, do eu ideal, a sua estrutura que implica afetividade, sensibilidade, poesia, beleza, profundidade, mas, por outro lado, mera aparência, ilusão, impulsividade, loucura, violência. Nossos dramas são resultantes da contradição dialética entre estes dois regimes, do movimento de oscilação do ego entre os mesmos. Entretanto, não devemos acreditar que nossas vidas se encerram nos limites desta dialética. Nossa tese aqui é da existência de um terceiro termo que, uma vez determinado e diferenciado pelo ego, possibilita, não a simples extinção dos dois outros termos, mas, a comunhão, isto é, a integração complementar dos mesmos através dele. Terceiro termo que, tendo seu locus no regime do Real — correspondente ao Self, Cosmos ou Deus —, os interliga sem contradição. Para nós, o Deus-Eu é este terceiro termo, a imagem — não de identificação, mas de identidade — que unifica as imagens do ideal do eu e do eu ideal, sem contradição. Nesta passagem, sobrevêm a verdade que evidência e excluí a mentira encobridora da violência associada à mitologia e sua estrutura herói/vítima. É o que vamos procurar mostrar a seguir. O que é a verdade? Esta talvez seja a pergunta filosófica por excelência, no sentido em que a filosofia, desde seus primórdios, sempre gravitou em torno dela. Platão, no século IV a.C., procurou estabelecer as bases do conhecimento verdadeiro, rejeitando toda argumentação baseada em meras opiniões. Buscava esclarecer as essências das coisas, as ideias puras cujas aparências nos são dadas pelos sentidos. Partia do pressuposto que as ideias existem em si, isto é, independem do homem. São em si mesmas verdadeiras, puras, eternas, absolutas. Encontram-se em uma outra instância, em um outro locus, transcendente, ao qual o homem pode ter acesso apenas pelo exercício da razão. Saltando ao século XVII, mas permanecendo na mesma linha de pensamento, Descartes defendeu a noção de que o pensamento se concebe por si mesmo, independentemente da matéria do corpo. Daí ter definido um tipo de subjetividade — o eu pensante, o cogito — que abstrai o corpo, isto é, as sensações, os afetos, a imaginação, a analogia, dos processos do conhecimento. Esta subjetividade se ergueu em oposição à da tradição medieval que atribuía à alma a missão de extrair a verdade da matéria através dos dados sensoriais, conquanto tal procedimento não contrariasse os dogmas religiosos. A busca pela adequação entre o que é subjetivamente pensado e a objetividade da matéria, foi a maneira encontrada por Descartes para tentar se despojar das “opiniões obscuras” causadas pelos sentidos e a imaginação. Em outras palavras, uma subjetividade subtraída da sua capacidade de imaginar. De modo que de Platão a Descartes foi operada uma radical exclusão do ser sensível dos processos de produção do conhecimento dito verdadeiro. O corpo e a afetividade — as sensações, emoções, sentimentos e paixões — foram banidos como fontes de ilusão e erro. No sistema cartesiano, Deus é o que dá garantia da objetividade absoluta na medida em que Deus é a própria Razão do eu pensante, isto é, da subjetividade absoluta. Kant insurge neste debate criticando a razão metafísica para a qual o conhecimento é, à imagem de Deus, infinito, ilimitado, eterno, absoluto. Na sua conhecida “revolução copernicana”, definiu o campo do conhecimento como sendo relativo à estrutura do homem. Este não pode pensar como Deus, pois é finito e limitado. Daí não ter nenhum acesso puramente teórico ao suprassensível, só podendo construir enunciados verdadeiros em função da experiência, reforçando ainda mais a separação entre ciência e religião que vinha se processando desde Descartes. Porém, se Kant se afastou a ideia de Deus do campo do conhecimento racional, não a renegou, mas restringiu a verdadeira relação entre o homem e Deus propondo um deslocamento: da ordem do saber para a ordem da conduta moral, para aquilo que ele chamou de prática. Sendo assim, a moral deve


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valer para todos os homens e em todos os casos, deve ser uma lei universal. Com Hegel, Deus é o Espírito Absoluto que se realiza no processo histórico do homem. Logo, o tecido da objetivação do conhecimento da verdade é a imanência da história. O positivismo de Augusto Comte radicalizou a ideia da imanência de Deus no homem pensada por Hegel. Deus é a própria humanidade, o “grande Ser”, o resultado do processo de apropriação científica do Verdadeiro. A evolução da ideia de verdade na história da filosofia, dos gregos à filosofia moderna, que procuramos resumir em poucas linhas, diz respeito a existência de uma verdade única e objetiva somente acessível através da razão. Assistimos no desenrolar dessa história a gradativa emancipação do homem em relação a Deus na sua busca pela verdade. Este processo se aprofundou com Nietzsche, Marx e Freud, mas em outra direção. Como vimos, estes autores se contrapuseram a ideia de Deus como fundamento da ordem racional. Opondo-se a tentativa de separação radical entre a objetividade e a subjetividade predecessora, reafirmaram o saber que provém das forças imanentes à vida, isto é, do corpo e da imaginação, o que os levou a descobrir novas perspectivas interpretativas sobre o homem. Tais perspectivas nos mostram nossos modos de alienação: a de Marx, o mascaramento ideológico da luta de classes; a de Freud, a inconsciência das pulsões sexuais; a de Nietzsche, o niilismo derivado dos valores morais. Como nos demonstra Foucault, vivemos na atualidade numa rede de interpretações — de interpretações de interpretações — fundada por eles. Neste sentido, suas perspectivas dialogam e se matizam mutuamente. Em comum, elas negam a existência de Deus. Com isso, a verdade é hoje pensada pela filosofia — dita pós-moderna — dispensando-se a existência de um centro, de um fundamento único e universal do qual todo o entendimento é derivado. A ideia de Deus perdeu seu lugar como princípio ontológico que fundamenta o saber racional, como sustentou Descartes, ou o saber moral, como sustentou Kant. Fala-se, neste sentido, da desconstrução da estrutura epistemológica que sustentava a busca metafísica da verdade. O que implica na impossibilidade de sustentar qualquer tipo de certeza, absolutismo ou fundamentalismo — seja de ideias, poder, ou preceitos religiosos —, inviabilizando a pretensão de dominar o discurso através da autoridade — o mesmo que dizer, da violência — de alguém que se coloca no lugar de detentor da verdade. Aprendemos assim a suspeitar de quem se coloca no lugar de detentor da verdade. Até aqui falamos da verdade dos filósofos e da ciência, isto é, de um conhecimento produzido pelo exercício da razão, ao qual se atribui a função de determinar o que pode ser considerado como verdadeiro, a depender dos critérios estabelecidos por um paradigma epistemológico. Trata-se, assim, de um modo de conhecer que exclui a verdade revelada pela religião. Exclui, portanto, a verdade do Deus-Eu, que aqui tratamos de apresentar. Verdade que não pode ser obtida apenas através da razão, uma vez que a transcende, posto que é um saber revelado através do ato de amor. Amor que transcende a razão. Que é, essencialmente, encontro: ato espontâneo-criador que ocorre entre duas ou mais pessoas, propiciado pelo exercício da inversão de papéis. Portanto, um saber interpessoal. Aqui, o critério balizador da verdade não é estabelecido por qualquer paradigma epistemológico, mas pela crença pessoal, pela fé na verdade do encontro a qual se dá testemunho. Perguntando-nos sobre a verdade, voltamos assim à questão da busca proposta por Moreno de aliar ciência e religião. Como dissemos, ele nos propôs a integração de uma “nova dimensão da divindade” à tradição religiosa judaico-cristã, como uma nova etapa histórica da relação do homem com Deus. O Deus-


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Eu, como uma nova forma de experiência subjetiva de Deus que se diferencia do Deus-Ele da tradição mosaica e do Deus-Tu do Novo Testamento, sem, contudo, negá-los. Na tradição judaico-cristã, a relação do homem com Deus acontece de modo pessoal, isto é, no encontro com a pessoa de Deus. Jesus Cristo encarnou a verdade do amor no seu encontro, a um só tempo, com a pessoa do próximo e com a pessoa de Deus. Como o Deus-Tu desta tradição, Jesus nos serve de modelo para o aprendizado da transcendência do amor como caminho do conhecimento da verdade. Verdade do amor que não exclui a razão, pelo contrário, a abarca ao transcendê-la, que a transforma de razão abstrata em razão encarnada. Encontramos ressonâncias do que estamos dizendo nas palavras de Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI: Deus é ‘ipsa summa et prima veritas — a própria verdade suma e primeira’. Com esta fórmula, estamos perto daquilo que Jesus pretende dizer quando fala da verdade e que veio ao mundo para dar testemunho dela. No mundo, verdade e opinião errada, verdade e mentira estão continuamente misturadas e de modo quase inseparável. A verdade em toda a sua grandeza e pureza não aparece. O mundo é ‘verdadeiro’ na medida em que reflete Deus, o sentido da criação, a Razão eterna donde brotou. E torna-se tanto mais verdadeiro quanto mais se aproxima de Deus. O homem torna-se verdadeiro, torna-se ele mesmo quando se conforma a Deus. Então alcança a sua verdadeira natureza. Deus é a realidade que dá o ser e o sentido.472 Encontramos no livro “Verdade e interpretação”473 do filósofo contemporâneo Luigi Pareyson um questionamento sobre a verdade convergente com o nosso quadro ontológico, que nos auxiliará na nossa tarefa de articulação da relação entre o Deus-Eu e a verdade. Pareyson parte do princípio de que há um vínculo originário entre pessoa e verdade, verdade esta única e atemporal. O pensamento pode ou não exprimir a verdade, havendo em decorrência deste fato uma distinção entre pensamento revelativo e pensamento expressivo. O que caracteriza o pensamento revelativo é o vínculo originário entre pessoa e verdade, levando a pessoa, no mesmo ato em que se exprime, conforme as circunstâncias históricas na qual vive, revelar a verdade, sendo assim um ato, ao mesmo tempo, ontológico e pessoal, expressivo e revelativo. Aqui, a palavra dita é portadora da verdade. Por outro lado, o pensamento expressivo é caracterizado pelo rompimento do vínculo originário entre pessoa e verdade, levando a uma desarmonia entre o dizer, o revelar e o exprimir. Daí, as relações entre estes termos se tornarem tumultuadas e profundamente alteradas. A palavra é reduzida a uma racionalidade vazia, fixada à mera expressão temporal, na medida em que passa a haver uma identificação do pensamento com a situação histórica. Desfeito o vínculo entre a revelação da verdade e a expressão da pessoa, se produz uma defasagem entre o discurso explícito e a expressão profunda. A palavra diz uma coisa, mas significa outra. A verdade desaparece. Remetemos o leitor ao capítulo 3.7. onde procuramos mostrar através das análises de M. Henry, as relações entre o logos grego — limitado pela intencionalidade do ser-no-mundo, sujeito ao mascaramento e à falsificação da verdade —, e o logos cristão — aberto à autorrevelação da Vida, como palavra incapaz de mentir, palavra oculta que “reside no ‘segredo’ em que Deus nos vê”.474 Fica clara a correlação entre as terminologias de Pareyson e Henry: o pensamento expressivo corresponde ao logos grego, enquanto o pensamento revelativo ao logos cristão.

472 RATZINGER, J. Jesus de Nazaré – Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo, Ed. Planeta, 2011, p 176. 473 PAREYSON, L. Verdade e Interpretação. São Paulo, Martins Fontes, 2005. HENRY, M. Palavras de Cristo. Op cit, p 101. 474 HENRY, M. Palavras de Cristo. Op cit, p 101.


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É certo que em todo e qualquer discurso, a palavra evoca alguma coisa de não explícito. No caso do pensamento expressivo, o explícito é pouco significativo, devendo-se buscar a expressão profunda mascarada pelo discurso. No pensamento revelativo, o explícito tem o próprio significado em si, e é de tal modo significativo que revela muito mais do que diz. Compreender, no primeiro caso, quer dizer desocultar o não explícito; no segundo, quer dizer interpretar, isto é, “aprofundar o explícito para nele colher aquela infinidade do implícito que ele próprio anuncia e contém”.475 Isso porque a verdade, segundo Pareyson, tem dois atributos fundamentais: ela é inexaurível e não objetivável. Inexaurível como uma fonte, um manancial, sempre emergente, que nunca se esgota em algum tipo de enunciação acabada, absoluta. Não objetivável na medida em que é inseparável da interpretação pessoal, subjetiva, que lhe damos. De modo que é sempre abertura para ulteriores interpretações, em um permanente processo de aprofundamento e ampliação da verdade. Sendo assim, o dizer a verdade do pensamento revelativo é um ato de formulação pessoal daquilo que é originariamente único e atemporal. Um ato no qual é preciso se empenhar na responsabilidade pelo seu testemunho, no qual se exige a coragem diante do risco do fracasso. Um ato de liberdade. Justamente o que o pensamento expressivo evita ou nega. Renunciando à verdade, busca a eficiência da razão técnica e instrumental, aplicando-se em “ter sucesso” ao exercer um domínio pragmático sobre um determinado objeto de conhecimento. Pareyson denuncia este tipo de pensamento como pensamento ideológico. No mundo contemporâneo, este tipo de pensamento domina a ciência, a política, a religião, a arte, a linguagem. Ao ponto de fazer com que a revelação da verdade cristã seja reduzida à mera ideologia entre outras. E não para por aí, empenha-se em combater o pensamento revelativo, acusando-o de ser pretensioso e impositivo, além de falsificador, mistificador e irracional, pois, partindo do princípio de que não há verdade, não pode haver revelação da mesma, apenas produção humana de conhecimento destinada a determinadas finalidades instrumentais. No entanto, diríamos que o pensamento relativista e ideológico, dominante no mundo contemporâneo, é o que inverte mimeticamente os termos da questão, projetando a sua própria deficiência na revelação da verdade cristã, fazendo dela bode expiatório para ocultar a sua própria violência, vontade de onipotência, ilusão, falsidade, irracionalidade, mistificação. Girard nos esclarece o fundo mitológico do pensamento ideológico explicado por Pareyson. Nas suas palavras: Gostaria de escrever uma interpretação inteiramente cristã da história da religião que se confundiria, na verdade, com a história do sacrifício. Nessa interpretação, as religiões arcaicas são as verdadeiras responsáveis por educar a humanidade, levando-a a abandonar a violência arcaica. Então Deus torna-se vítima, a fim de libertar o homem da ilusão de um Deus violento, ilusão esta que precisava ser desfeita, em favor da compreensão que Jesus tem do Pai. As religiões arcaicas podem ser vistas como um estágio anterior numa progressiva revelação que culmina em Cristo.476

Na interpretação de Girard, a ideologia dominante no mundo contemporâneo prega uma espécie

475 PAREYSON, L. Verdade e Interpretação. Op cit, p 17. 476 GIRARD, R. Um longo argumento do princípio ao fim. Rio de Janeiro, Topbooks Editora, pp 198-199.


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de arcaísmo, não tendo ainda compreendido a mensagem antissacrificial de Jesus Cristo, a radicalidade da sua não-violência. Na história das religiões, a religião judaico-cristã se distingue das religiões arcaicas pela defesa das vítimas. Ao acompanhar a narrativa bíblica, constatamos o progressivo abandono dos ritos sacrificiais. A começar pela substituição do holocausto de seres humanos por de animais — como na história de Abraão e Isaac —, culminando com o derradeiro sacrifício de Cristo, que redime e põe fim a toda série antecessora. De modo que com Cristo é operada uma radical desmistificação da relação entre o sagrado mítico e a violência. Contrariamente a interpretação pós-moderna da Bíblia como mera mitologia, Girard nos mostra a diferença entre as religiões arcaicas e a judaico-cristã: “o mito fica contra a vítima, já a Bíblia fica a favor dela”.477 De modo que a estrutura bipolar herói/vítima do mito, sua mentira e ilusão, é desmistificada pela verdade do amor revelada pela tradição judaico-cristã. Com ela, surge a figura do Espírito Santo, o Paráclito — parákletos em grego significa advogado de defesa — que defende contra o acusador, contra Satã — satân em grego significa acusador, inimigo, adversário —, isto é, contra o mecanismo que produz heróis e bodes expiatórios e que continua dominando ideologicamente as ações humanas no mundo contemporâneo. Neste sentido, Satã é o antigo deus — ou os antigos deuses —, que pode ser definido como “o sujeito da estrutura instável das relações humanas num mundo ainda regido pela violência e pela escolha de bodes expiatórios”.478 A chamada filosofia pós-moderna, com o seu “relativismo absoluto”, com a sua negação da verdade única e atemporal de Deus, é o grande avatar da falsificação ideológica que domina os meios culturais no mundo contemporâneo. Todavia, não queremos aqui, num exercício de reciprocidade mimética, demonizála, colocando-a no lugar do bode expiatório a ser excluído do pensamento. Reconhecemos que a sua crítica do fundamentalismo denuncia as mediações culturais com pretensão de absoluto na história do Ocidente, quando o dizer sobre o fundamento — seja no discurso religioso, político, econômico, estético, científico etc — se converte em projeto de dominação cultural. Tal crítica certamente é bem-vinda como desmascaramento da vontade de onipotência e da violência de todo discurso que se julga em condição de estabelecer e impor a norma das várias atividades humanas. Trata-se afinal da crítica a todo o tipo de idolatria, algo que só se tornou possível graça a mensagem cristã e a evolução histórico-dialética do cristianismo. Todavia, se prescindirmos do fundamento ontológico da verdade, perdemos a dimensão daquilo que nos é comum, que nos une e constitui. Nas palavras de Pareyson:

Só na abertura ontológica do homem, universalidade e historicidade se apresentam, portanto, inseparavelmente unidas, porque então a situação é perspectivada como única via de acesso à verdade; a verdade é vista como energia operante na própria formulação que dela se propõe, e ambas se encontram na constitutiva pluralidade da interpretação, a qual desse modo, manifesta a sua riqueza, que é riqueza conjuntamente nossa e da verdade, sendo ela multíplice somente porque contém, ao mesmo tempo, a pluralidade das pessoas que sabem configurá-la e a infinidade da verdade que aí se manifesta.479 Neste sentido, o filósofo Giani Vattimo defende que a mensagem de Cristo, como anúncio da salvação revelado por Deus, ressurge na nossa época pós-moderna como mensagem histórica que se

477 Idem, p 202. 478 Idem, p 209. 479 PAREYSON, L. Verdade e Interpretação. Op cit, 0 265.


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trata de escutar e responder pela comunidade de crentes. Em sua defesa do relativismo, Vattimo toma “a referência à comunidade como critério de validade da interpretação”480 da verdade cristã, abrindo caminho para a fé no retorno apocalíptico de Cristo através da confiança subjetiva no amor e na escuta de Deus. Em outras palavras, a realidade objetiva de Deus passa a ter como foco a abertura ao devir histórico do anúncio da salvação. Como nos ensina São Paulo, sem a medida da lei, ou melhor, sem outro imperativo a não ser o amor, que supera toda lei. Pois, renunciando a pretensão de deter o monopólio da verdade, de tudo querer determinar e dominar através da razão, podemos assumir a nossa incompletude e inacabamento constitutivo, a nossa neotenia, bem como a nossa incapacidade para apreender o todo, e assim nos abrirmos à compreensão amorosa e religiosa da nossa existência. É na pluralidade das interpretações, na colaboração dialógica, na complementaridade das visões que cada pessoa na sua historicidade e singularidade constitutiva possibilita, que podemos aprofundar na compreensão da verdade. Ouvimos aqui mais uma vez o eco das palavras de Moreno, da sua proposta do Deus-Eu como “uma nova via de comunicação com o Deus que vem do próprio Eu, através de mim, através de você, através de milhões de “Eus”.”481 Contudo, não podemos nos iludir, permanecendo limitados ao horizonte da imanência histórica da escuta de Deus pela sociedade dos homens, em outras palavras, à intersubjetividade do mundo-da- vida. Cairíamos no mesmo erro de hipostasiar o homem em detrimento de Deus. Precisamos reconhecer o papel do Deus vivo, da sua livre decisão de intervir nas nossas realidades pessoais, sem a qual de nada adiantaria nos colocar à sua escuta. Dissemos a pouco que há um forte impedimento à passagem do segundo para o terceiro universo, e assim ao Deus-Eu, de maneira a enclausurar o homem na dialética entre o eu ideal e o ideal do eu. Penso que o motivo deste impedimento foi um tanto mais esclarecido depois do que acabamos de dizer. Valendonos da classificação de Pareyson, a dialética entre o eu ideal e o ideal do eu corresponde ao pensamento ideológico; enquanto a expressão do Deus-Eu corresponde ao pensamento revelativo. Voltemos então a o nosso estudo da psicossociodinâmica da matriz de identidade nos perguntando: como é possível transcender a dialética entre o eu ideal e o ideal do eu rumo ao Deus-Eu nas relações interpessoais? Em outras palavras, de que maneira podemos deixar de nos enganar, de nos iludir com a mentira da dialética entre o eu ideal e do ideal do eu, revelando a verdade em nossas relações interpessoais, o nosso Deus-Eu? Já conhecemos a resposta de Moreno: através da tele e do encontro. Resta-nos aprofundar o que dissemos falando sobre o conceito de inversão de papéis, operação descrita por Moreno como aquela que, na matriz de identidade, possibilita o mais completo reconhecimento do outro e do eu. A grande maioria das relações interpessoais encontradas na vida cotidiana é formada por um misto de tele e transferência. De fato, apesar da possibilidade de tele e encontro ser, como vimos, inata, os processos transferenciais começam acontecer logo no primeiro universo, estendendo-se para o segundo. As pessoas são marcadas “negativamente” por transferências, desde o início de suas vidas, nas relações com os outros, passando, por sua vez, a transferir a outros tantos o que lhes foi uma vez transferido, numa série que tende a não ter fim. Contudo, enquanto na lógica da psicanálise o encontro é impossível, condicionando o trabalho psicoterapêutico a se limitar à interpretação da transferência e ao reconhecimento por parte do indivíduo da sua falta originária que o determina a incessante e irremediavelmente transferir, a lógica do psicodrama

480 VATTIMO, G. Despues de la cristandad. Barcelona, Paidós, 2003, p 87. 481 MORENO, J. L. As palavras do pai. Op cit, p 12.


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rompe com este determinismo, tornando possível a transcendência do mesmo. Como? Na medida em que a relação transferencial se transforma em encontro, em que o “amor narcisista” — de quem vê no outro nada além da sua própria imagem projetada — se transforma em “amor ao próximo”. Repetindo o que dissemos em capítulo anterior, este tipo de transformação acontece naturalmente na vida cotidiana quando se diz, por exemplo, que, num relacionamento de casal, a paixão se tornou amor. No estado de paixão, o “amado” adquire uma imagem idealizada, projetada pelo “amante”, que em parte corresponde a seus atributos reais, mas, em outra, não. É irreal, ilusória. O “amado”, por sua vez, pode aceitar tal projeção, acreditando que seja real, passando a corresponder afetivamente ao “amante”, da mesma forma, de modo mais ou menos idealizado. Com o tempo, a idealização vai sendo percebida pelo “amante”, e retirada do “amado”, que, por sua vez, procede da mesma maneira. Passam a se reconhecer como são, a partir e através de seus atributos reais, com liberdade, e respeito pelas diferenças encontradas entre si, em outras palavras, pela singularidade existencial da identidade de cada um. O que era inicialmente um caso de transferência interpessoal, através do desenvolvimento de uma mútua percepção télica, evoluiu para a forma do encontro. O que não significa perda de envolvimento afetivo ou erótico. Pelo contrário, desfeita a transferência, o afeto, baseado na verdade do real, tende a se tornar ainda mais profundo e intenso. Podemos dizer que com os conceitos de tele e encontro, Moreno abriu espaço para o amor, ou melhor, para o conceito de transcendência do amor em psicologia. Considerado pela psicanálise mera projeção transferencial de atributos humanos numa imagem, Deus foi banido da ciência psicológica como algo de ordem ilusória, irreal; e com Ele, o amor. Desse modo, toda expressão humana se apresenta sob a falsa aparência da ocultação, da ausência, da obscuridade, pautada por uma causalidade fechada no plano da imanência dos determinismos biopsicossociais. Compreendemos então o motivo pelo qual em psicanálise não há saída do plano das transferências: não há abertura para a transcendência do amor. Sem a abertura para a transcendência, o homem permanece aprisionado na imanência do determinismo de seu desejo mimético, de sua inveja, de sua vontade de apropriação, de suas pulsões sexuais e impulsos agressivos, sempre deslocados, mascarados, ou atuados na realidade presente (acting-out) de maneira irracional. O imperativo religioso cristão do amor ao próximo revela a possibilidade de ir além deste determinismo. O psicodrama, sem negar os determinismos do plano da imanência, se abre para a transcendência do Self ou Deus na busca da sua verdadeira origem — não o nada, mas o ser — que é riqueza, plenitude, superabundância, através da expressão espontâneo-criadora, ou, dito de outro modo, da verdade do amor. Neste sentido, a maior contribuição de Moreno no que diz respeito à transcendência do amor na vida psicológica foi ter elaborado a técnica de inversão de papéis. O ato de amor corresponde assim à própria expressão espontâneo-criadora no momento do encontro na relação interpessoal. Ato cocriador por excelência, instituinte de um novo patamar de realidade presente, a partir da percepção de elementos do outro. Através da inversão de papéis, a pessoa procura, no papel da outra, telicamente imaginar como ela sente, pensa e age. Como vimos, isto é possível justamente pela abertura ao transcendente proporcionada pela realidade suplementar. Para concluirmos, podemos falar de uma psicossociodinâmica do terceiro universo relativa ao desprender-se de si mesmo e do mundo — isto é, de seu amor narcisista e individualista, do culto idolátrico às imagens idealizadas dos outros e de si —, e à abertura ao mistério do Cosmos e de Deus. No contexto sociocultural contemporâneo, os discursos ideológicos nas suas diversas formas — materialismo, comunismo, feminismo, fundamentalismo religioso, nacionalismo, liberalismo, niilismo, hedonismo etc — enclausuram o ser humano em si mesmo, em um horizonte em que “o homem é a medida de todas as coisa” (Protágoras),


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isto é, sem qualquer referência a Deus ou ao transcendente. De que maneira é passada à criança, em sua matriz de identidade, a noção desse ato de desprender-se de si mesmo e do mundo para abrir-se ao mistério do Cosmos e de Deus? Falamos aqui da educação ética e religiosa recebida pela criança de seus duplos e espelhos na matriz de identidade, que principia precocemente com o aprendizado do amor ao próximo através da inversão de papéis na idade de três ou quatro anos. Chegada à idade adulta, esta é a via que torna possível ao indivíduo alcançar um nível de organização da identidade em que passa a haver integração entre o self psicossomático e o ego, por nós denominado self integrado.

5.3.11.4. Psicossociodinâmica e integração da identidade Falamos já da estrutura ontológica que possibilita o processo de expansão do self no sentido da sua crescente integração, o mesmo que dizer, o processo de autodeterminação do indivíduo como pessoa, nos termos de Wojtyla; e o processo de encarnação do indivíduo como filho de Deus, nos termos de Henry. Essa estrutura ontológica é descrita por Schelling através da sua teoria das potências divinas A1, A2 e A3. Em termos psicodramáticos, podemos dizer que cada uma das potências divinas rege um nível de organização psicossociodinâmica da identidade: A1 rege a psicossociodinâmica do primeiro universo; A2, a do segundo; e A3, a do terceiro. A1 corresponde à espontaneidade diretamente ligada ao desejo de self , à corporeidade e aos papéis psicossomáticos, anterior à aquisição da linguagem verbal e da imagem de si ou autoimagem; A2 corresponde à espontaneidade ligada à consciência dos próprios atos, à atuação em determinados papéis ― sociais e psicodramáticos ― interconectados em torno de uma imagem de si, isto é, de uma identificação dentro de um contexto sociolinguístico; e A3 corresponde à espontaneidade ligada às potencialidades do self ainda não atualizadas, que podem vir a existir no futuro. O processo, iniciado a partir de A1, progride na medida em que o indivíduo, regido por A2, atualiza as potencialidades de seu self. Contudo, na medida em que se fixa a uma determinada forma de representação de si, e que se identifica a esta forma de modo a confundir a sua identidade com a mesma, isto é, que confunde o todo com a parte, passa a, regido por A3, entrar em conflito com tal forma de autoimagem. De modo que A3 conduz à des-identificação com uma determinada autoimagem ligada à A2, e a criação de uma nova autoimagem que possibilita a integração de potencialidades ainda não atualizadas de seu self ligadas à A1. Neste novo patamar de espontaneidade, a tendência é de se formar uma nova identificação regida por A2. Com isso, a tensão dialética é restabelecida, e todo o ciclo tende a se repetir. Que fique claro, não se trata de um ciclo vicioso, pautado por um insuperável mal-estar, cujo destino é o de retornar permanentemente ao estado de insatisfação, todavia, aliviada por momentos transitórios de satisfação, como apregoa a psicanálise de Freud. Trata-se de um ciclo virtuoso, cujo símbolo da espiral nos ajuda a compreender que a cada volta do processo, digamos, de identificação-desidentificação, haja um acréscimo, uma expansão do self, um maior grau de re-ligação com o Self-Cosmos-Deus, uma crescente espiritualização e integração da identidade. A filosofia do trágico vem ao auxílio da teoria do psicodrama neste ponto, mostrando-nos como os três padrões psicossociodinâmicos podem ser fenomenologicamente investigados na ação psicodramática. O protagonista que representa o seu drama na ação psicodramática corresponde ao herói trágico. Ele representa o declínio da força divina com o qual está identificado, regido por A2, em fraqueza, o que acontece de modo sensível e doloroso através do seu isolamento, solidão, desamparo. Ele é conduzido tragicamente pelo seu pathos através do movimento de desligamento da realidade social, marcado pelas


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conservas culturais que cerceam a sua espontaneidade, ao aniquilamento, à morte da imagem de si a que se encontra identificado. Neste sentido, a ação psicodramática é o locus onde é propiciada ao protagonista a experiência dramática deste aniquilamento, desta morte. A ação psicodramática deve, portanto, ser conduzida de modo a investigar o movimento trágico na história de vida do seu protagonista, propiciando a sua representação simbólica. Para tanto, não é necessário nada mais do que seguir o método de permanecer fiel à imagem. Esta operação torna possível ao indivíduo reconhecer-se em seu movimento de distinção e oposição ao Self-Cosmos-Deus, do qual se desliga para, paradoxalmente, voltar a se ligar. Com isso, o indivíduo em seu processo de expansão e integração de seu self amplia o seu grau espontaneidade. Em vez de permanecer fixado a uma determinada forma de ser-no- mundo, torna-se cada vez mais livre, mais autônomo, mais capaz de fazer escolhas baseadas na sua vontade, de agir como realmente quer, e não padecer por agir como não quer, posto que determinado involuntariamente por algum determinismo biopsicológico ou social. A teoria do psicodrama nos faz compreender que a liberdade e a autonomia alcançadas por um indivíduo não podem ser concebidas a partir de uma suposta realidade solipsista como indivíduo, fora de uma necessária referência à sociedade e à transcendência de Deus.

5.4. Psicopatologia e Psicodrama Com o giro do Teatro da Espontaneidade para o Psicodrama, o foco da abordagem de Moreno recaiu sobre a terapêutica dos conflitos psicossociodinâmicos subjacentes às queixas e sintomas clínicos apresentados por aqueles que buscavam a sua pessoa e seu método para tratamento. Moreno foi um psiquiatra, e como tal passou a tratar de pacientes portadores de transtornos mentais através do método do psicodrama. Encontramos relatos interessantíssimos da aplicação do método psicodramático como psicoterapia de pacientes realizada em grupos dirigida por ele em vários de seus livros. Em “Fundamentos do Psicodrama”, Moreno nos apresenta o caso intitulado “Psicodrama de Adolf Hitler” acerca de um sujeito chamado Karl que, em estado psicótico, acreditava ser Adolf Hitler. Ao longo de sessões de psicodrama em grupo, Karl evoluiu saindo do estado psicótico através da consciência crítica desenvolvida ali. Na descrição de Moreno: Quanto mais o próprio Karl participava daquele drama, mais aprendia a ver o seu próprio mundo paranoico particular, segundo a perspectiva do mundo maior que, inconscientemente, ele mesmo provocara. Ele nos apontou diversas pistas, sugerindo as forças dinâmicas que atuavam no desenvolvimento da sua síndrome mental. Por que foi que ele quis se tornar Hitler? Certa vez ele disse: “Desde menininho tenho um sonho: conquistar o mundo ou destruí-lo e imitei Hitler porque ele tentou fazer o mesmo”. O que o ajudou a recuperar-se de sua obsessão? Respondeu: “Surpreendi-me de ver no grupo tantas outras pessoas que, além de mim, tinham o sonho de tornar- se Hitler. Isso me ajudou”.482

Este pequeno relato nos permite entrever os aspectos fundamentais da compreensão de Moreno da

482 MORENO, J. L. Fundamentos do psicodrama. Op cit., p 216-217.


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psicopatologia. O primeiro aspecto a ser destacado é que o processo psicopatológico está relacionado à perspectiva de mundo do sujeito, que por sua vez está relacionada às forças psicossociodinâmicas que atuam inconscientemente no mesmo. O segundo aspecto é que estas forças estão associadas ao desejo mimético, o que torna a sua síndrome mental compreensível às outras pessoas na medida em que elas compartilham, ou são capazes de compartilhar tal desejo. O terceiro aspecto é que a cura é proporcionada pelo encontro interpessoal, e pela compreensão de que todos nós participamos de um mesmo drama cósmico. Moreno não se dedicou em estabelecer uma “psicopatologia psicodramática”. Utilizou em seus relatos termos do jargão da psicopatologia sem se preocupar com a precisão científica quanto à classificação diagnóstica ou descrição da sintomatologia relativas aos transtornos mentais dos pacientes que tratou com o seu método. De modo que utilizou termos como delírios, alucinações, obsessões etc, sem qualquer preocupação em referenciar esse uso com a psicopatologia, o que não significa que como psiquiatra a desconhecesse, ou que a empregasse sem mencioná-la. Também não se ateve em relacionar os transtornos mentais às forças psicossociodinâmicas associadas aos mesmos. Em suma, Moreno foi avesso à sistematização teórica no que se refere à esta questão, atendo-se em seus relatos à descrição da ação psicodramática e das técnicas empregadas. A nossa proposta neste capítulo é a de estudar as relações entre a chamada psicopatologia descritiva, empregada correntemente em psiquiatria e psicologia para a descrição de sinais e sintomas que compõem as síndromes ou transtornos mentais, permitindo a sua classificação diagnóstica, e as diferentes estruturas psicossociodinâmicos por nós estudadas dentro do quadro teórico do psicodrama, conforme apresentado no capítulo referente à teoria da matriz de identidade. Começaremos apresentando o que é a psicopatologia descritiva, a partir de uma breve história da sua origem, até a abordagem fenomenológica de K. Jaspers. A seguir, procuraremos mostrar a compatibilidade fenomenológica entre a psicopatologia de Jaspers e a psicossociodinâmica psicodramática. Por fim, procuraremos relacionar de que maneira conflitos psicossociodinâmicos funcionam como fatores desencadeantes de síndromes psicopatológicas. Considerando uma definição bastante ampla e geral de psicopatologia como o conhecimento racional da doença psíquica, doença mental ou loucura, encontramos os primeiros registros de descrições de síndromes psicopatológicas com Hipócrates, por volta do século IV a.C., na Grécia Antiga. Com Hipócrates, a loucura passou a ser concebida como doença, causada por alguma desordem corporal, e muitos de seus sintomas e síndromes foram descritos e classificados já nesta época. A concepção hipocrática foi transmitida pela Idade Média com poucas inovações, contudo, o que predominou nesta época foi um significativo retrocesso associado à ideologia religiosa, com a insanidade mental sendo explicada segundo o conceito metafísico de possessão diabólica. Apenas com Philippe Pinel, no início do século XIX, foi formulada, pela primeira vez na história, de maneira precisa, a demarcação entre a loucura, enquanto conceito social e cultural, e a alienação mental, termo propriamente médico. Segundo Lantéri-Laura, que dedicou um livro ao estudo da evolução dos paradigmas da psiquiatria moderna483, circunstâncias históricas, sobretudo de ordem social, política e epistemológica, possibilitaram que se formasse um consenso dentro da comunidade médica em torno da definição de Pinel, constituindo o primeiro paradigma da psiquiatria moderna. A psiquiatria

483 LANTÉRI-LAURA, G. Ensayo sobre los paradigmas de la psiquiatría moderna. Madrid, Editorial Triacastela, 2000.


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demorou ainda algumas décadas até que fosse considerada propriamente científica, com a adesão ao modelo positivista das ciências médicas no final do século XIX, e a adoção do conceito de doença mental, constituindo assim o seu segundo paradigma. Durante a primeira metade do século XX, recebeu o aporte de teorias que buscavam o conhecimento da experiência da loucura não mais pela descoberta das suas causas orgânicas, mas pela compreensão das estruturas da subjetividade ou psiquismo a ela relacionadas. Falamos aqui da psicanálise, da fenomenologia, da teoria da gestalt, do existencialismo, entre as principais; e, desse modo, da constituição de um terceiro paradigma da psiquiatria. A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento de medicamentos que efetivamente modificavam as formas de manifestação e o curso evolutivo da experiência da loucura, e de tecnologias que ampliavam as possibilidades de investigação da sua causalidade neurobiológica, a comunidade psiquiátrica retomou a vertente organicista de outrora, dispensando o conhecimento da subjetividade. Voltava assim a acreditar que encontraria a explicação completa dos quadros clínicos apenas com o avanço das pesquisas neurobiológicas. Encontramos neste contexto, a ascensão do DSM — Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders — a partir da sua terceira edição, o DSM-III, publicada pela APA — American Psychiatric Association — em 1980. Os diagnósticos psiquiátricos feitos na atualidade utilizando-se os critérios do DSM-V — edição em vigor —, podem ser remetidos a esta origem histórica. Tornou-se de uso corrente e leigo os termos, depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno obsessivo- compulsivo, e seus respectivos quadros clínicos. É fundamental para a prática do psicodrama que se tenha um entendimento adequado do significado destes termos e quadros clínicos, para que se possa compreendê-los de acordo com a concepção ontológica, antropológica e psicossociológica da teoria do psicodrama. Vejamos então, com algum detalhe, esta história. A assim chamada psicopatologia descritiva tem como marco a publicação em 1883 do livro de Emil Kraepelin considerado sua obra fundadora “Compêndio de Psiquiatria: Para o uso de estudantes e médicos”. Neste livro, Kraepelin situa a psiquiatria como um ramo da ciência médica cuja investigação deve ser baseada na observação e na experimentação, como nas outras ciências naturais. Propõe como método a investigação sistemática das formas de manifestação dos sinais e sintomas mentais, isto é, a descrição destas formas de manifestação encontrados na experiência clínica através da observação de doentes mentais. Defende a causalidade física da doença mental, de modo que os sintomas não tem significado, como também não exercem qualquer função. Dentro deste quadro teórico, a anamnese médica não se presta a analisar os conteúdos subjetivos da doença, mas apenas o início dos sintomas e seu decurso. Através do estudo clínico da história dos casos, levando em consideração as diferenças individuais da personalidade e a idade de início dos sintomas, é possível diagnosticar as doenças mentais conforme os seus padrões sindrômicos, isto é, conforme determinados conjuntos de sinais e sintomas que caracterizam as diferentes doenças mentais, seus modos de evolução e conclusão, bem como predizer a progressão da doença mental. Kraepelin estabeleceu assim os princípios fundamentais do moderno sistema de classificação das doenças mentais, em conformidade com o modelo positivista das ciências médicas, defendendo a hipótese fundamental de que as doenças mentais seriam causadas por alterações patológicas da estrutura física do corpo humano, melhor dizendo, da estrutura neurobiológica do cérebro humano. Em outras palavras, as doenças mentais seriam entidades físicas, cujas formas eternas ou essências se encontravam incrustadas no corpo humano, e se manifestavam independentemente da consciência, mente ou subjetividade de seus portadores. Apesar de a investigação direta dos processos cerebrais ser praticamente impossível, devido as limitações técnicas da época, esperava-se que no futuro, com a ampliação do conhecimento em neurobiologia, as relações causais entre sintomas e lesões ou disfunções


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orgânicas específicas seriam gradativamente esclarecidas, explicando plenamente as doenças mentais. Com isso, a ciência psiquiátrica passou a negar que fatores subjetivos, originados na consciência ou psiquê dos indivíduos humanos, enquanto seres culturais e históricos, pudessem ser causalmente determinantes na gênese da doença mental. Em outras palavras, passou a rejeitar sistematicamente o papel causal da experiência do sujeito na produção da doença mental. Despojada de suas relações com o contexto social e a história de vida dos doentes, a psicopatologia foi reduzida às formas vazias do pensamento positivista: a descrição formal, objetiva dos sintomas, e das suas relações em quadros sindrômicos, pouco importando o conteúdo subjetivo dos mesmos. Entretanto, apesar de que à época certo número de enfermidades mentais terem sido bem identificadas e distintas entre si, não se havia conseguido alcançar o pretendido: a sistematização total do campo psicopatológico, uma classificação completa e não uma mera justaposição das enfermidades mentais. No mais, com a busca pelas diferenciações das espécies mórbidas, houve uma rápida multiplicação dos nomes de enfermidades e síndromes, perdendo-se, por vezes, a noção de que se poderia considerar como afecções diferentes duas ou mais formas clínicas da mesma enfermidade. Além disso, começaram a surgir críticas relativas à real possibilidade de se descobrir a localização anatômica das disfunções cerebrais causadoras das enfermidades mentais, segundo a inspiração proporcionada pela neurologia localizacionista da época. O contraponto desta hipótese é o de que não haveria uma localização específica, mas um comprometimento difuso, de diferentes áreas do cérebro na etiopatogenia das doenças mentais, tornando vãs as investigações localizadoras. Paralelamente a estes problemas, intrínsecos ao próprio paradigma, o desenvolvimento da psicanálise passou a desempenhar um grande papel na reflexão psiquiátrica, acrescentando novos problemas, tais como o da possível compreensibilidade psicológica das enfermidades mentais. De acordo com a análise de Lantéri-Laura, este conjunto de problemas determinaram a crise do segundo paradigma da psiquiatria e o surgimento do terceiro, o paradigma das grandes estruturas psicopatológicas. Em 1913 surge a obra “Psicopatologia Geral” do psiquiatra e filósofo Karl Jaspers. Reconhecese hoje que esta obra foi o marco inicial de um novo rumo na história da psiquiatria. Aparece nela, pela primeira vez formulada, a defesa de um pluralismo metodológico para a abordagem psiquiátrica. O que pode ser interpretado como uma reação ao reducionismo dos sintomas psicopatológicos ao seu substrato neurobiológico postulado pelo paradigma das doenças mentais, dominante na época da sua publicação. Talvez possamos considerá-la como a obra capital do que Lantéri-Laura caracteriza como o terceiro paradigma da psiquiatria, das “grandes estruturas psicopatológicas”. A intenção principal de Jaspers nesta obra foi estruturar o conjunto do saber psicopatológico de modo que não fosse apenas uma reunião de todos os dados na forma de uma classificação didática de caráter prático, mas um quadro geral do modo de pensar a conjunção de todos os métodos particulares, o modo pelo qual estes encontram seu sentido e seus limites. Jaspers procura explicar o saber psicopatológico segundo os tipos básicos de fatos e variedade de métodos, partindo da premissa de que “é metodologicamente que todo fato realmente se estabelece como fato”, e que, neste sentido, “fato e método dependem intimamente um do outro”.484 A articulação metodológica introduz uma estrutura que corresponde ao modo em que os próprios fatos encontram-se articulados. Propõe, desse modo, a ordem metodológica como princípio de estruturação.

484 JASPERS, K. Psicopatologia geral. Vol 1. Rio de Janeiro, Livraria Atheneu, 1987, p 59.


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Justifica filosoficamente a sua posição criticando a ideia de um sistema psicopatológico construído com base em uma teoria dogmática do ser, uma vez que um tal sistema, antepondo-se a toda nova experiência, acaba inevitavelmente obstacularizando a evolução infinita do saber. Nas suas palavras, “ao invés de uma ordem teórica, só podemos ter uma ordem metodológica”.485 A concepção do pluralismo metodológico de Jaspers carrega a influência das perspectivas filosóficas de Husserl e Dilthey. Da referência à fenomenologia de Husserl, Jaspers utiliza o termo fenomenologia de modo restrito, como procedimento empírico para delimitar de forma precisa os estados psíquicos que os pacientes realmente vivenciam. Limita-se, portanto, ao primeiro uso que Husserl faz da palavra fenomenologia como “psicologia descritiva” dos fenômenos da consciência, ressaltando que não emprega o sentido desenvolvido posteriormente por Husserl da fenomenologia como busca da revelação das essências das coisas.486 A fenomenologia é assim entendida na psicopatologia de Jaspers como metodologia para a descrição dos fenômenos da consciência, enquanto vivência psíquica individual ou experiência subjetiva em primeira pessoa. Neste sentido, é um método privilegiado de investigação em psicopatologia, mas, um entre outros. Dos trabalhos de Dilthey, Jaspers reconhece a distinção estabelecida pelo autor entre psicologia descritiva e analítica em oposição à psicologia explicativa como a raiz epistemológica da sua célebre distinção metodológica entre compreensão e explicação.487 Através dos métodos das ciências naturais procura-se apreender as conexões causais entre os eventos observados, na buscas de regularidades, regras ou mesmo leis. Diz-se, por exemplo, que, se aparecem doentes do grupo do transtorno afetivo bipolar numa família é raro aparecer, na mesma, doentes do grupo da esquizofrenia. Trata-se de uma regra, sabendo-se que para toda regra há exceções. Por outro lado, trata-se de uma lei quando se diz que não há paralisia geral sem sífilis. Já, no que se refere aos métodos empregados em psicologia, trata-se da apreensão de conexões totalmente diversas: conexões de compreensibilidade. Nas palavras de Jaspers, “o psíquico resulta do psíquico de maneira que é para nós compreensível”.488 Trata-se da produção do evento psíquico por outro evento psíquico, de modo que podemos compreender tal conexão intuitivamente, empaticamente. E isso, no que se refere tanto à possibilidade de compreensão de uma outra pessoa, quanto de uma autocompreensão. Valendo-nos de exemplos empregados pelo próprio Jaspers em seu livro, é compreensível que quem é atacado se zanga e pratica atos defensivos, ou que quem é enganado torna-se desconfiado. Em suma, Jaspers inova em relação aos trabalhos de seus antecessores ao propôr como objeto da psicopatologia o fenômeno psíquico consciente, tratando de descrevê-lo tal como este se manifesta na realidade das vivências de seus sujeitos, em contraste com a experiência normal, através da abordagem experimental do sujeito em primeira pessoa. O sentido da investigação psicopatológica, todavia, não deve se restringir à descrição das vivências humanas em si, isto é, a uma fenomenologia dos fenômenos conscientes, mas, estender-se à explicitação do conjunto de interconexões biológicas e psicossociais envolvidas na formação dos mesmos, sejam normais ou psicopatológicos. Neste sentido, propôs um pluralismo metodológico que permite a abordagem do fenômeno psicopatológico como fenômeno híbrido, isto é, resultante da interação de fatores neurobiológicos e psicossociais, congregando métodos

485 Idem, p 59. 486 Idem, p 71. 487 Idem, p 362. 488 Idem, p 363.


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das ciências naturais utilizados pela psiquiatria orgânica, que investigam relações de causalidade (física, química, biológica etc); e métodos das ciências humanas e da filosofia, que investigam relações de compreensibilidade (psicológica, histórica, sociológica etc) no âmbito da experiência da subjetividade. Desde Kraepelin e Jaspers, e até o momento atual, com a edição do DSM-V, a psiquiatria se manteve fazendo uso da psicopatologia descritiva como a sua linguagem fundamental, a partir e através da qual os conhecimentos relativos às explicações causais, aos modelos de compreensão e aos modos de tratamento da doença mental são teoricamente articulados, exercendo uma espécie de primazia sobre as demais abordagens metodológicas em psiquiatria. Voltemos então à teoria do psicodrama para estudarmos de que maneira a psicossociodinâmica psicodramática é compatível com a psicopatologia de Jaspers tanto ontológica como fenomenologicamente. Comecemos pela questão da ontologia adotada por Jaspers. No livro supracitado, o autor não aborda diretamente tal questão. Porém, posiciona a sua perspectiva como antidogmática. Isso fica claro na seguinte afirmação: Ou se pensa já se ter, no que se sabe objetivamente, a própria realidade, o ser em si e na sua totalidade ou se reconhece o caráter perspectivista, a natureza, metodologicamente fundamentada e, ao mesmo tempo, limitada de todo conhecimento. [...] Ou se tem o centro de gravidade numa teoria do ser, que se acredita conhecer, ou na sistematização de métodos conscientes, com os quais se ilumina a escuridão infinita.489 Jaspers evitou desse modo a defesa ontológica seja de um fisicalismo reducionista, segundo o qual o fenômeno psicopatológico deva ser plenamente explicado por causas orgânicas, seja de um idealismo ou espiritualismo igualmente reducionista, segundo o qual o fenômeno psicopatológico deva ser plenamente explicado por causas psicossociais. Trata-se aqui de uma advertência ao risco de adoção de uma posição tautológica que, por pretender-se interpretativa de toda realidade, não pode, por isso mesmo, provar-se nem se refutar. O caráter perspectivista por ele adotado na sua proposta de um pluralismo metodológico é claramente de inspiração kantiana, na medida em que se deve reconhecer a limitação de todo o conhecimento ao método empregado na sua obtenção. Com isso, pretende validar em psicopatologia tanto a pesquisa através de métodos das ciências naturais como através de métodos das ciências humanas, caminhando em planos científicos diversos.490 “Qualquer fixação da abordagem científica em determinado tipo de demonstratibilidade restringiria a psicopatologia”.491

O quadro ontológico por nós articulado e empregado para fundamentar filosófica e cientificamente a teoria do psicodrama, originalmente concebida por Moreno, é compatível com o pluralismo metodológico da psicopatologia de Jaspers pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, a concepção ontológica do indivíduo humano como pessoa, isto é, como uma unidade-totalidade físico-psíquica e espiritual, permite reconhecer tanto as conexões causais-explicativas, como as conexões compreensivas dos fenômenos psicopatológicos;

489 Idem, p 58. 490 Idem, p 919. 491 Idem, p 920.


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bem como, a abordagem experimental do sujeito em primeira pessoa. Em segundo lugar, a teoria da matriz de identidade contempla tanto a causalidade orgânica na formação dos papéis psicossomáticos, como a compreensibilidade psicológica na formação dos papéis sociais e psicodramáticos. Neste ponto, é importante ressaltar que a teoria do psicodrama possibilita através da noção de papel uma via para o esclarecimento acerca das interconexões entre os diversos planos científicos de que nos fala Jaspers. No que se refere à compatibilidade entre as abordagens fenomenológicas do psicodrama e da psicopatologia de Jaspers, podemos traçar as seguintes considerações. O fenômeno, produzido experimentalmente pelo método do psicodrama, é a ação psicodramática. O sujeito que dela participa — isto é, cada um dos participantes de um evento psicodramático — se manifesta nela ao mesmo tempo como sujeito (em si) e objeto (para si). Através do método do psicodrama, o emprego do conjunto de teorias, conceitos e técnicas proposto por Moreno propicia aos sujeitos participantes uma experiência fenomenológica da sua ação, na medida em que a experiência que o sujeito faz de si mesmo através da ação — da sua própria ação, da ação do outro, da cocriação da ação no encontro com outro — é fenomenologicamente investigada. Em outras palavras, há uma fenomenologia da ação psicodramática passível de ser explorada através de teorias, conceitos e técnicas psicodramáticas no momento mesmo da sua produção. Desse modo, o que aparece ao sujeito no momento da ação psicodramática é a descrição de aspectos de si mesmo em primeira pessoa, tal como Jaspers propôs como método de investigação dos fenômenos psicopatológicos. De modo que, sendo as duas abordagens plenamente compatíveis, o método psicodramático pode ser empregado tanto para o diagnóstico psicopatológico, ao viabilizar a investigação fenomenológica de vivências psicopatológicas no momento da ação psicodramática, como também para a investigação do que Jaspers denomina como compreensibilidade genética, isto é, de que modo um evento psíquico é produzido por outro. Faz-se imprescindível, portanto, esclarecer o que Jaspers denomina como compreensibilidade genética. Trata-se da conexão compreensível entre eventos psíquicos apoiada na evidência imediata que se faz indutivamente provada “por causa” da experiência relativa às pessoas humanas, de modo que sua força de convicção está em si mesma.492 Podemos assim dizer, em outras palavras, que há compreensibilidade na conexão entre eventos psíquicos quando esta conexão é imediatamente evidente, apoiada na experiência comum a toda pessoa, ou seja, que se trata de uma verdade interpessoalmente compartilhável. Este é o princípio fundamental do que Jaspers denomina como psicologia compreensiva, que nos permite compreender as reações vivenciaisnvolvimento das paixões, a formação do erro, o conteúdo do sonho e do delírio, os efeitos da sugestão, uma personalidade anormal em sua conexão essencial própria, a maneira por que o doente compreende a si mesmo.493 No caso particular da avaliação de um indivíduo “empírico”, nas palavras do autor: O juízo da realidade de uma conexão compreensível repousa não só na evidência respectiva, mas, sobretudo, no material objetivo de pontos de apoio tangíveis (conteúdos verbais, criações mentais, atos, modos de vida, movimentos expressivos), nos quais a conexão vem a ser compreendida; estas objetividades permanecem sempre, contudo, incompletas. Toda compreensão de processos reais particulares subsiste, por isso, mais ou menos, como

492 Idem, pp 363-264. 493 Idem, p 363.


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interpretação, a qual só em casos raros consegue alcançar graus relativamente altos de perfeição do material objetivo convincente.494 Isso significa que é preciso “caminhar” com o indivíduo procurando identificar os pontos de apoio objetivos que confirmam, ampliam, aprofundam a compreensibilidade da conexão psíquica em questão. Ou seja, não se deve dar por esclarecida uma conexão entre eventos psíquicos a menos que a mesma possa estar apoiada por pontos de apoio objetivos, sendo que, tal esclarecimento nunca poderá ser perfeitamente exaurido. O caráter de interpretação deve ser mantido ao longo do trabalho de investigação da realidade particular do indivíduo até que um alto grau de compreensibilidade possa ser alcançado, sendo que a confirmação de que a conexão é verdadeira é alcançada subjetivamente pelo próprio indivíduo, isto é, em primeira pessoa. De modo que será sempre precipitado afirmar a compreensibilidade de uma conexão entre eventos psíquicos apenas baseada em uma compreensão psicológica geral, padrão, típico-ideal. Voltando aos exemplos empregados por Jaspers, é compreensível que quem é atacado se zanga e pratica atos defensivos, ou que quem é enganado torna-se desconfiado. O que não quer dizer que quem é atacado necessariamente se zanga e pratica atos defensivos, isto é, que isso deva acontecer em todos os casos particulares. Pode acontecer exatamente o contrário em uma situação vivida por algum indivíduo, na qual este pratique atos de amor ao próximo, e que isso seja, do mesmo modo, plenamente compreensível. Assim, toda compreensão empírica é interpretação que se realiza dentro de um círculo hermenêutico, isto é, da parte para o todo, e do todo para a parte, movendo-se através da justaposição de significados contrastantes, sendo que aquilo que se contrapõe é igualmente compreensível. Daí a inconclusividade da compreensão, a infinita interpretabilidade e reinterpretabilidade no trabalho de aclaramento das conexões entre os eventos psíquicos na busca da verdade existencial.

Outro aspecto fundamental da compreensão genética é o de que a mesma pode ser desmembrada em diferentes modos de compreensão. Uma distinção básica a ser feita é entre compreensão racional e empática. Na compreensão racional, os conteúdos do pensamento resultam perceptivelmente uns dos outros de acordo com regras lógicas. Já na compreensão empática, compreendemos os conteúdos do pensamento como originados de estados de ânimo, desejos e temores daquele que pensa. Sendo assim, “a compreensão empática nos leva à própria conexão psíquica, [...] à própria psicologia”.495 Jaspers avança ainda mais na diferenciação dos tipos de compreensão, falando-nos sobre a compreensão intelectual, existencial, metafísica, como também sobre a pseudocompreensão e os limites entre compreensibilidade e incompreensibilidade. O esclarecimento da questão da compreensão no método jaspersiano é de grande valor para a abordagem fenomenológica da ação psicodramática. Podemos claramente relacionar o que Jaspers chama de compreensão empática com a tele de Moreno. Neste sentido, diríamos que a direção da ação psicodramática caminha na direção da evidenciação das conexões psíquicas do protagonista, validadas telicamente pelos demais membros do grupo, ampliando e aprofundando a compreensão das suas vivências psicopatológicas. Esta condução pode levá-lo à catarse de integração, e assim, a uma imagem de si portadora de um grau mais elevado de autocompreensibilidade. Não há uma interpretação última, ou resolutiva, do mesmo modo que não há uma catarse de integração última ou resolutiva, mas a permanente

494 Idem, p 364. 495 Idem, p 365.


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inconclusividade do processo de expansão do self acompanhado de uma potencialidade cada vez maior para agir espontaneamente. Vejamos agora de que maneira os três níveis de organização psicossociodinâmica, relativos ao primeiro, segundo e terceiro universos da matriz de identidade, estudados no capítulo anterior, podem ser correlacionados a três tipos de compreensão genética. Ao nível de organização psicossociodinâmica da identidade ligada ao primeiro universo, isto é, do self psicossomático, a espontaneidade encontra-se diretamente ligada ao desejo de self , à corporeidade, aos papéis psicossomáticos, à fome de atos, a registros afetivos anteriores à aquisição da linguagem verbal e a qualquer tipo de imagem de si ou autoimagem. É o nível básico determinante do grau de autoestima e autoconfiança com que o indivíduo se relacionará interpessoalmente e com o seu pathos ao longo da sua história de vida. Uma organização normal ou saudável a este nível é caracterizada por uma boa autoestima e autoconfiança, capacidade de agir espontaneamente, vontade de interagir com os outros e o ambiente, estabilidade de humor, baixo grau de ansiedade. Uma organização patológica é caracterizada por uma baixa autoestima e autoconfiança, baixa capacidade de agir espontaneamente, baixa vontade de interagir, instabilidade de humor, alto grau de ansiedade. Enquanto uma organização normal ou saudável a este nível é determinada por relações interpessoais télicas entre os cuidadores e a criança, uma organização patológica é determinada por uma predominância de relações interpessoais transferenciais. Os cuidadores como duplos das crianças podem contribuir por uma organização saudável da identidade a este nível, ou condicionar uma organização patológica. Diríamos assim que o entendimento deste padrão de organização psicossociodinâmica nos permite compreender geneticamente que um indivíduo portador de uma organização patológica da sua identidade a este nível tenda, por exemplo, como disposição geral, a reagir com desconfiança quando um outro quer se aproximar dele para ajudá-lo. Ao nível de organização psicossociodinâmica da identidade ligada ao segundo universo, isto é, do ego, a espontaneidade encontra-se ligada à consciência dos próprios atos, à interação interpessoal através de papéis — sociais e psicodramáticos — interconectados em torno de uma imagem de si, isto é, de uma identificação, inserida dentro de uma rede de representações socioculturalmente determinada. É o nível no qual indivíduo se descobre situado no mundo através da imagem de si que tem para si e para os outros, e através da qual procura conscientemente se autossituar no mundo. Imagem de si pela qual deve se responsabilizar, isto é, responder por ela em primeira pessoa. A organização psicossociodinâmica neste nível é caracterizada pela experiência da polarização herói/vítima dentro de um drama pessoal, isto é, de uma história de vida que se desenrola na realidade de seu cotidiano, na qual contracena, como ator, com outros atores. A depender de seu grau de instrução, torna-se habilitado para reconhecer que seu drama pessoal encontra-se inserido em um drama cósmico, isto é, em uma história do mundo. Como vimos, a polarização herói/vítima é característica da estrutura básica da organização social tendo o mito como fundamento. Neste sentido, o indivíduo vive a este nível psicossociodinâmico dentro da estrutura linguístico-cultural do mito. Na medida em que vai se descobrindo em meio ao drama por ele vivenciado, o indivíduo procura se autodeterminar através dos papéis que vai experienciando e escolhendo para si, no exercício da sua vontade, inteligência e liberdade, isto é, de suas faculdades espirituais. Como se tratam de escolhas envolvendo valores morais, passam a ser imputadas aos seus atos as categorias de bom ou mau; e à sua pessoa, as de inocência ou culpa. Daí tornar-se depositário de toda uma série de juízos segundo à opinião dos outros: vitorioso ou fracassado, verdadeiro ou mentiroso, inteligente ou idiota,


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e assim por diante. Esta é uma condição que todos nós experienciamos, queiramos ou não, pelo fato de nos encontrarmos inseridos na estrutura psicossociodinâmica da sociedade. A autodeterminação da nossa identidade pessoal é assim efetivada pela escolha dos papéis que passamos a desempenhar na sociedade. Tais escolhas são baseadas, em grande parte inconscientemente, por dois fatores estruturais: a) pelo nível de organização psicossociodinâmico alcançado ao término do primeiro universo, no qual a espontaneidade encontra-se diretamente ligada ao desejo de self, e que no segundo universo passa a ser representado por uma imagem de si correspondente ao eu ideal; b) pelo mecanismo de identificação com os outros que servem de espelhos para si, segundo uma imagem de si correspondente ao ideal do eu. A este nível, o ego — entendido como aquilo que identificamos como o nosso eu, seguindo a terminologia da tradição psicanalítica — é, ao mesmo tempo, constituído pela e constituinte da relação dialética entre as imagens de si correspondentes ao eu ideal — mais diretamente ligado ao self através do pathos da vida, da afetividade — e ao ideal do eu — ligado à necessidade de pertencimento e adaptação social. O ego tem assim a incumbência de mediar através da consciência — e das faculdades espirituais a ela associadas: inteligência, vontade e liberdade — o seu desejo de self, isto é, de autodeterminação de seu ser como pessoa; a sua afetividade, isto é, suas emoções, seu humor, seus sentimentos; e os juízos que os outros fazem a respeito da sua pessoa, isto é, o significado que imputam aos seus atos. O indivíduo percorre assim, ao longo da sua história de vida, a partir do segundo universo da matriz de identidade, um processo continuado e permanente de adaptação social realizado interpessoalmente, que oscila entre momentos de aceitação, rejeição ou indiferença. Este percurso é marcado pela angústia entre o que significa para si “ser ou não ser” — valendo-nos aqui da expressão do dilema de Hamlet, descrito por Shakespeare. Tratase da angústia relativa ao significado ligado à imagem de si em seus atos. Daí tornar-se geneticamente compreensível o medo diante do julgamento dos outros; a depressão do humor seguindo ao sentimento de fracasso por uma rejeição real ou imaginária; à euforia maníaca ligada a crença de ser superior aos outros; e até o delírio persecutório por ter descoberto o segredo de uma “suposta” organização criminosa (que o indivíduo delirante tem a certeza de ser real). Entendemos que há aqui um espectro de reações psíquicas a esta angústia que vai da normalidade ao mais alto grau estado psicopatológico. Ao nível de organização psicossociodinâmica da identidade ligada ao terceiro universo, isto é, do self integrado, a espontaneidade encontra-se ligada ao processo de integração entre o desejo de self, a adaptação social e a dimensão transcendente do Self-Cosmos-Deus. Trata-se, em outras palavras, do processo continuado e permanente de atualização das potencialidades do self ainda não atualizadas, conduzindo à expansão ilimitada do self e à crescente espiritualização da pessoa. A este nível a liberdade pode ser entendida como a experiência da estrutura ontológica comum entre autonomia, socionomia e teonomia ou cosmonomia. Descobre-se o terceiro termo que unifica a dualidade entre as imagens do eu ideal e do ideal do eu: a imagem do Deus-Eu. De modo que há, neste nível de organização da identidade, a tendência de se extinguir as contradições na medida em que ser herói ou vítima, ter sucesso ou fracasso, estar certo ou errado se encontra para além do juízo dos outros em um mundo no qual o homem é a medida de todas as coisas, pois, o verdadeiro significado dos nossos atos só pode ser julgado por Deus, e para Deus o sucesso e a verdade podem se encontrar justamente naquilo que para todos os outros se considera como fracasso ou errado. Compreende-se então que a este nível o medo e a culpa estejam extintos, ou tendam a se extinguir na medida em que os conflitos relacionados à psicossociodinâmica do segundo universo forem sendo enfrentados e superados. Compreende-se também a tendência a uma maior estabilidade do humor e a graus cada vez menores de ansiedade ou paranoia. Pode-se dizer, neste sentido, que com a progressão da integração da identidade a este nível passa a haver um continuado e


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permanente estado de normalidade ou saúde psíquica. Todavia, não podemos excluir a possibilidade de recorrências de manifestações psicopatológicas relacionadas a contradições ainda não integradas, as quais podem ser consideradas como oportunidades para a obtenção de um novo grau de expansão, integração e diferenciação do self. A noção de Deus-Eu no ajuda ainda na compreensão da psicopatologia ligada ao segundo universo da seguinte maneira. O Deus-Eu encontra-se como potência de integração do self ao nível da psicossociodinâmica do segundo universo, sendo, contudo, atualizada apenas com a passagem para o terceiro universo. O ego, ao constituir para si uma imagem correspondente ao ideal do eu, a partir das imagens de outros como espelhos para as suas identificações, pode se identificar com a imagem do grande Outro, tomando a imagem de Deus como espelho, o que é necessariamente patológico, pois, confunde o homem com Deus. A manutenção deste tipo de identificação, seja pela ideologia do ateísmo, seja por outra forma ideológica, acaba por obliterar a passagem para o terceiro universo. O indivíduo identificado com a imagem de Deus, acredita ilusoriamente ser um Homem-Deus, tornando-se um rival de Deus. Desse modo, fica-lhe vedada a possibilidade de experienciar o seu ser em identidade com Deus, como participante da cocriação de Deus. Compreende-se assim a perversidade de tal crença, que pode ir da obsessão ao delírio maníaco- paranóide. Compreende-se também que a abertura para o terceiro universo pode ocorrer com a aceitação do destino trágico, do aniquilamento, da morte simbólica da imagem de si como Homem- Deus. Torna-se assim possível o reconhecimento do nosso drama pessoal como reflexo do drama cósmico, da nossa história de vida como reflexo da história da humanidade, da revelação da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo como modelo-espelho para alcançarmos a experiência da nossa identidade como filhos de Deus, libertando-nos das identificações míticas a que somos ideologicamente condicionados. Para concluir, acreditamos ter ficado suficientemente clara a relação entre psicopatologia e os três níveis de organização psicossociodinâmica da identidade descritos pela teoria do psicodrama. Tal relação nos ajuda a interpretar e compreender tanto os fenômenos normais do psiquismo como os patológicos. Diante de uma síndrome mental apresentada por um doente, independentemente de qualquer classificação diagnóstica, podemos compreender geneticamente muitos de seus sintomas. Não reunimos ainda elementos suficientes para estabelecer com rigor correlações entre determinadas entidades diagnósticas como, por exemplo, o transtorno de pânico, o transtorno bipolar do humor ou a esquizofrenia e a psicossociodinâmica psicodramática, nem sequer para afirmar a existência de tais correlações. Talvez seja apenas possível correlacionar fenômenos psicopatológicos isolados aos diferentes níveis de organização psicossociodinâmica tal como acabamos de mostrar.


PARTE 6

A REVOLUÇÃO CRIADORA

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6.1. A plausibilidade da revolução criadora na atualidade Constatamos hoje, passados quase cem anos da criação do Teatro da Espontaneidade, que o padrão hegemônico da vida contemporânea corresponde exatamente à progressão daquilo que Moreno à época nos alertara: a tendência das conservas culturais ocuparem cada vez mais espaço na vida das pessoas em detrimento do espaço de relação interpessoal, subtraindo assim o locus da espontaneidade. A crítica de Moreno se aprofundou após a 2a Grande Guerra Mundial com a publicação de “Quem sobreviverá?” em 1953. O título desse grande livro soa aos nossos ouvidos de hoje de modo instigante e pertinente. A ameaça de extinção da vida sobre o planeta, que àquela altura já causava preocupação, vem se tornando cada vez mais premente. Não se trata de mera especulação pois vivemos hoje sob o impacto real de um alarmante processo de degradação global do meio ambiente. Sentimos na pele os efeitos nocivos do desmatamento predatório das florestas, do crescente aumento da taxa de poluentes na atmosfera, do aumento no buraco da camada de ozônio, do aquecimento global, da redução da disponibilidade de água potável, do uso antiético da biotecnologia, do armazenamento inadequado do lixo atômico. É notório que a causa deste processo seja a própria forma de produção econômica vigente, regida por interesses oligárquicos. O trágico da situação reside justamente no fato de que a simples manutenção do ritmo da produção econômica nestes moldes faz avançar o processo de degradação global do meio ambiente. A cada dia, danos irreversíveis são infligidos aos ecossistemas, inviabilizando as condições de sobrevida não só de inúmeras espécies vegetais e animais, como já vem acontecendo, mas também da nossa própria espécie. Porém, além da ameaça ecológica, contamos com outras ameaças, tão ou ainda mais graves. Falamos aqui da degradação humana com o aumento da miséria e da violência em muitas regiões do mundo, e das guerras utilizadas para conter esta violência. Hoje, a deflagração de uma nova guerra de proporções mundiais com o uso de armas nucleares tem o potencial de destruir completamente a vida sobre o planeta. Por mais irracional que isto possa parecer, tal ocorrência não deve ser desconsiderada, tendo em vista os exemplos atuais de não obediência aos acordos diplomáticos internacionais por parte de vários países. Mesmo supondo que a diplomacia prevaleça impedindo o uso do arsenal nuclear, a tendência é a de que inúmeros novos focos de guerra continuem a ser deflagrados. Isso porque a guerra, restrita a certas regiões e sob chancela internacional, é um dos dispositivos privilegiados da ordem política global para a manutenção do modo de produção econômica em vigor. Certamente, não se trata do ônus da promoção da paz mundial como querem nos fazer acreditar certos líderes políticos. Além disso, como se já não bastasse, o modo de produção vigente tem conduzido a uma crescente desproporção na distribuição da riqueza gerando fome, miséria e doença a um contingente cada vez maior de pessoas espalhadas por todos os países, inclusive nos mais ricos, e não apenas nos assim chamados países do 3o mundo. O crescimento do desemprego é justificado como mal necessário para sustentar o desenvolvimento deste modo de produção. Trata-se de um círculo vicioso em que os focos de guerra tendem a se multiplicar sobre toda a extensão do território mundial como mecanismo de controle dos conflitos gerados pelo próprio modo de produção a ser garantido. A geração de pobreza e de guerra é, assim, estabelecida numa relação complementar. Níveis alarmantes de tráfico de drogas e de violência armada no cotidiano dos centros urbanos, eclosões bélicas em função do recrudescimento de antigos conflitos étnicos e religiosos, ações terroristas são corolários deste estado de coisas. Assistimos atônitos aos noticiários e nada fazemos além de cruzar os braços, entristecidos, sabendo, no entanto, que algo precisa ser feito com urgência para reverter o rumo desta realidade. Afinal, quem sobreviverá?


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Para Moreno, sobreviverão aqueles que forem capazes de agir espontânea e cocriadoramente em seus encontros com os outros. Para que isto de fato aconteça, precisamos compreender o acerto do diagnóstico e da terapêutica de Moreno. Observando retrospectivamente, constatamos facilmente que o rumo tomado pelo homem no século XX não foi o da revolução criadora. Deixando-se conduzir pela produção e o consumo desenfreado de conservas culturais, o homem vem caminhando na direção da maximização da inversão de valores por ele apontada. De modo irresponsável, fechou os olhos para os sinais que há muito denunciam o seu descaminho. Há muitas décadas que cientistas denunciaram a ameaça de degradação irreversível do ecossistema do planeta. As decisões políticas necessárias para a correção de toda esta distorção só serão de fato tomadas na medida em que nós enquanto membros da sociedade civil passarmos a nos responsabilizar ativamente por elas. Pois, para que as ações daqueles que participam diretamente das instâncias decisórias do poder político sejam propiciadoras de um verdadeiro bem-estar social, é preciso que a nossa atitude como indivíduos se constitua coletivamente como matriz destas ações. A matriz das sociedades não são as ideologias, nem o poderio bélico, nem o poderio financeiro, mas as relações humanas, as relações entre os homens entre si e com o mundo. Neste sentido, o caminho de transformação do padrão de produção da vida é o da ética do encontro, através da qual descobrimos como agir espontânea e criadoramente no encontro com os outros. É justamente aqui que se insere a proposta sociátrica da revolução criadora através do Psicodrama, como locus para uma tomada de atitude crítica capaz de romper com o círculo vicioso do atual modo de produção da vida, recuperando a potência espontâneo-criadora do ser humano. Mas, como promover a revolução criadora no mundo atual? De que maneira podemos agir a favor de uma efetiva transformação social no sentido do projeto idealizado por Moreno? Como colocá-lo em prática? Nos capítulos precedentes, procuramos articular uma teoria do psicodrama que pudesse nos servir de fundamentação filosófica e científica dessa prática. Em primeiro lugar, procuramos demonstrar que a transformação individual e coletiva do ser humano neste sentido é ontologicamente possível. Isto é, que não se trata de mera utopia, de uma ilusão embelezadora da condição humana para satisfazer o nosso narcisismo ou aplacar o nosso desamparo, muito menos um estratagema perverso para se alcançar o poder político. Falamos da essência-potência do ser humano que vem sendo ocultada desde a fundação do mundo. Falamos da sua natureza biopsicoespiritual a ser devidamente reconhecida e desenvolvida. Falamos da capacidade de amar e agir de modo verdadeiramente livre, tão negligenciada, combatida, negada, reprimida, marginalizada, desacreditada ao longo dos tempos. Falamos do momento do Deus-Eu como dimensão humana a ser atualizada através da abertura à realidade suplementar. Em segundo lugar, procuramos reunir ciência e religião numa perspectiva abrangente e integradora do conhecimento sobre o ser humano, transpondo teoricamente a fragmentação desse conhecimento imposto pela separação entre elas defendida pela filosofia moderna. Entendemos que essa articulação teórica nos fornece os argumentos indispensáveis para o desenvolvimento de uma atitude crítica capaz de responder às objeções que se colocam contrariamente ao projeto da revolução criadora. Um importante foco de resistência ao projeto de Moreno provém do meio acadêmico. É notório nos meios científicos universitários a defesa obstinada de um materialismo fisicalista e historicista e da rejeição à religião, sobretudo ao cristianismo. Neste sentido, é necessário interpolar tal resistência através de argumentos fundamentados filosófica e cientificamente. Esta é uma tarefa diante da qual tomamos posição através das teses defendidas neste livro. O nosso desejo é que elas sirvam de estímulo e instrumento para que outros filósofos, cientistas e estudantes do mesmo modo se engajem neste enfrentamento. Acreditamos na possibilidade de que tal resistência seja com o tempo dialeticamente transposta. Outro


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foco de resistência é a ideologia do ateísmo propagada por outros meios culturais como o artístico, o jornalístico e o político. Obras literárias, filmes, peças de teatro, novelas de televisão, canções populares, talk-shows, programas de partidos políticos veiculam a ideologia do ateísmo, se não explicitamente, mas subliminarmente. Apela-se nestas obras ao direito de liberdade de expressão, acusando a Igreja e Deus de serem instituições repressoras de tal direito, e reduzindo seus sacerdotes a meros embusteiros voltados à satisfação de interesses mesquinhos. Com isso, perturbam a escuta da mensagem judaico-cristã em meio à tradição cultural do ocidente, sem, contudo, conseguir calá-la. Constatamos na atualidade um fenômeno sociocultural da maior importância que vem sendo denominado “retorno das religiões”. Ao invés do esquecimento das religiões, estas vem readquirindo cada vez mais adesões de fiéis nas últimas décadas. Contudo, este reavivamento das religiões não corresponde precisamente a um movimento no sentido da revolução criadora, como vamos discutir adiante. Em face de todo este contexto sociocultural, faz-se necessária uma interpretação ontológica da história da tradição cultural do ocidente que nos permita escutar a mensagem judaico-cristã compreendendo a oportunidade que nos é dada no mundo atual a concretamente realizar a essência-potência espontâneo-criadora do homem em seu ser-no-mundo. O processo histórico do mundo ocidental acabou conduzindo à secularização da vida religiosa, isto é, à transformação do religioso em laico através da institucionalização dos valores originalmente religiosos em valores leigos, como os direitos humanos da igualdade, fraternidade e liberdade proclamados pela Revolução Francesa de 1789. É interessante observar, neste sentido, que a experiência de vida espontânea encarnada pelos primeiros cristãos foi se perdendo na justa medida em que a religião foi se institucionalizando. O Deus vivo dos primeiros cristãos — do amor, da liberdade, do encontro fraterno — foi gradativamente se tornando objeto de uso da vontade de poder, da dominação de uns sobre outros. A aliança de poder surgida entre a Igreja e o Estado conduziu a uma espécie de “paganização” de Deus, tornando-O um “ídolo”, uma mera imagem antropomórfica — “o homem velho de barba” — manipulada com o propósito de manter a submissão das massas à ordem política. Enquanto isso, no plano filosófico, a ideia de Deus veio a ocupar o lugar de princípio metafísico da racionalidade técnico-científica. O assim chamado “Deus dos filósofos” foi identificado como o fundamento de uma subjetividade pura, absoluta, delimitando uma racionalidade altamente impessoal e abstrata, uma racionalidade sem espontaneidade. Deus foi reduzido desse modo à condição de mais um “ídolo”, como todos os outros criados pela imaginação humana. Tal mecanismo tem servido como pretexto a todo tipo de violência, desrespeito e loucura ao longo da história da humanidade, mantendo a dominação de uns sobre outros. Em nome de uma “suposta” vontade de Deus, o homem nada mais faz do que abdicar da sua autonomia e liberdade, outorgando a outros o direito de empregar a violência e manter a dominação. Quantas guerras foram feitas, continuam a ser feitas, e ainda serão feitas em nome de Deus? Afinal, política e religião sempre andaram juntas através da prescrição de valores morais que despotencializam a verdadeira experiência de liberdade, sob o manto de um dogmatismo estéril que afasta o homem do lugar de sujeito de suas ações. No século XIX, a crença em Deus já se encontrava em franco declínio. Os pensamentos de Feuerbach, Nietzsche, Marx e Freud surgiram neste contexto. Com eles, Deus passou a ser entendido como mera projeção da imagem do próprio homem, como ilusão, invertendo a visão judaico-cristã do homem como imagem de Deus. Colocaram assim em cheque os valores judaico-cristãos que davam sustentação aos padrões de conduta moral do mundo ocidental. A proclamação da morte de Deus feita por Nietzsche representa emblematicamente a decadência destes valores. Diríamos que Deus se tornou uma conserva cultural, uma ideia reduzida pelo racionalismo filosófico a algo da ordem da ilusão. Sob tal influência, o homem moderno passou a ser culturalmente cerceado a não acreditar em Deus.


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Talvez tenhamos enfim chegado ao momento — e esta é a nossa aposta — do homem se abrir à essência da experiência de Deus, superando as mediações ideológicas (conservas culturais) que se interpõe a esta experiência, de modo que a sua espontaneidade possa ser plenamente apropriada como fonte criadora de suas relações com os outros e o mundo, levando a um efetivo processo, a um só tempo, de singularização dos indivíduos e integração social: o momento do Deus- Eu. Moreno nos propôs uma nova visão de Deus numa época de crise do homem moderno. A busca religiosa de Moreno pode ser compreendida, neste sentido, como a busca de uma nova visão de Deus que viabilizaria a salvação do homem no sentido da reorientação da sua ação em face ao seu descaminho sociocultural, conduzindo-o a religar-se ao processo histórico do Self-Cosmos-Deus ocupando uma nova posição, a de cocriador deste processo. Talvez o maior desafio no nosso mundo atual seja vencer a descrença, não exatamente em Deus, mas no próprio homem. Como dissemos a pouco, tem-se falado na atualidade de um fenômeno sociocultural denominado “retorno das religiões”. De fato, assistimos ao fenômeno de um aumento da vitalidade das igrejas, da busca de doutrinas ou práticas místicas alternativas, da “moda” das religiões orientais, como também de um alarmante e temerário recrudescimento de fundamentalismos religiosos. Como interpretar este fenômeno? Não só teólogos ou historiadores da religião tem se dedicado a esta tarefa, como também filósofos e psicanalistas. Muitos o tem considerado um retrocesso, como no caso de Lacan. Em seu ensaio “O triunfo da religião” de 1974, Lacan argumenta que em função da crescente angústia diante do real, causada inclusive pela ciência, “a religião terá então muito mais razões ainda para apaziguar os corações. [...] Por ora, basta ver como ela fervilha. É absolutamente fabuloso”.496 Frente ao poder da religião de dar sentido à vida humana, a psicanálise, enquanto discurso antirreligioso voltado a mostrar o sem sentido do real que invade a vida tornando-a incompreensível, leva uma enorme desvantagem, reconhece Lacan. Diferentemente de Freud, para quem a religião tenderia a desaparecer com o avanço da ciência — contudo, sem deixar de compartilhar a posição antirreligiosa de Freud — Lacan admite que a religião, em vez de ser esquecida, triunfaria no futuro. A psicanálise é quem está na posição de resistir para não desaparecer. Neste sentido, é compreensível que as pessoas continuem recorrendo à religião como fornecedora de sentido em um mundo de crescentes ameaças e instabilidades. Para a grande maioria dos indivíduos humanos o sem sentido do real é insuportável, e a religião permanece atual na sua função de confortadora do desamparo humano. Mas há pensadores que tem se posicionado a este respeito na direção oposta à negação da legitimidade da religião defendida, entre outros, por Lacan. Na reflexão do filósofo Gianni Vattimo, um dos representantes mais eminentes da pós-modernidade, o fenômeno do retorno das religiões é pensado nos seguintes termos: Talvez não devido a uma natureza essencial qualquer; mas, de fato, em nossas condições de existência (Ocidente cristão, modernidade secularizada, estado de ânimo de final de século tenso devido aos prementes e inéditos riscos apocalípticos), a religião é experimentada como um retorno. É o restabelecimento presente de algo que acreditávamos ter esquecido definitivamente.497

496 LACAN, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro, Zahar, 2005, p 65. 497 VATTIMO, G. in: VATTIMO, G. e DERRIDA, J. (org.). A religião: O seminário de Capri. São Paulo, Estação


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O esquecimento a que se refere Vattimo se trata, evidentemente, do efeito da ascensão do materialismo filosófico de Nietzsche, Marx e Freud na modernidade, cujas raízes encontram-se no racionalismo iluminista. Enquanto seria esperado um gradual e progressivo esquecimento da religião por parte da sociedade como um todo, até a sua transformação em mero vestígio cultural — nos termos de Vattimo —, assistimos a um aparentemente paradoxal retorno da mesma. Em um artigo do livro “A religião”, publicado em 1996 reunindo o ponto de vista de vários autores a esse respeito, Vattimo avalia que o fenômeno em questão é antes de mais nada motivado pelo temor diante de circunstâncias sem precedentes na história mundial, em tudo semelhante ao que apontamos acima, denominando-as ameaças apocalípticas que pesam sobre a sobrevivência planetária — o desequilíbrio ecológico, os riscos da manipulação genética, o uso de armamentos nucleares, os ataques terroristas etc. Mas, para Vattimo, isto não explica tudo. Segundo ele, o retorno do religioso está associado à dissolução dos grandes sistemas metafísicos objetivistas e essencialistas que acompanharam o desenvolvimento da ciência, da técnica e da organização social modernas. Apoiandose na perspectiva filosófica de Heidegger — da chegada da metafísica ao seu final como resultado da ciência-técnica moderna —, Vattimo defende a tese de que há uma positividade no retorno do religioso no mundo atual que se explica pelo caráter destinal da experiência religiosa na história ocidental na forma da secularização da tradição religiosa judaico- cristã. Nas palavras de Vattimo, “a filosofia que se coloca diante do problema da superação da metafísica é a mesma que descobre a positividade na experiência religiosa”.498 O seu posicionamento filosófico é marcadamente antimetafísico, isto é, contrário a qualquer forma de fundação do discurso filosófico a partir de um fundamento primeiro e último da realidade, como uma estrutura objetiva fora-do-tempo, e desse modo, a favor do relativismo. Nas suas palavras: O mundo efetivamente pluralista em que vivemos não se deixa interpretar já por um pensamento que a todo custo quer unificá-lo em nome de uma verdade última. Um pensamento assim, que, entre outras coisas, chocaria com qualquer ideal democrático, deveria afirmar — como temos ouvido dizer a muitos políticos católicos, ao menos na Itália — que uma lei querida pela maioria porém sem verdade (ou seja, confrontada aos ensinamentos da Igreja) não tem legitimidade e, portanto, há que inferir, não merece obediência dos cidadãos.499 Vemos neste texto que o que está em jogo na oposição ou, porque não dizer, na rejeição da religião, não se refere ao questionamento da fé, mas ao questionamento do fundamento da verdade. Na medida em que a religião cristã passou a ser fundamentada metafisicamente, o conhecimento da verdade passou a estar necessariamente vinculado a um fundamento primeiro e último da realidade, o Ser ou Deus, e com isso, ao controle dogmático e autoritário da doutrina da Igreja. Neste sentido, a rejeição da religião — com Spinoza e Nietzsche, entre outros — adquiriu a feição da luta pela liberdade: cabe ao homem a liberdade de afirmar o que seja a verdade. Como o texto supracitado deixa entrever, para Vattimo, o que se entende por verdade deve ser estabelecido intersubjetivamente através da pluralidade de perspectivas em um processo democrático. Vattimo fundamenta a sua posição valendo-se do conceito heideggeriano de acontecimentoapropriação (Ereignis), já por nós apresentado nos capítulos 3.3 e 3.6. Recapitulando, a tese de Heidegger é a de que ser e tempo estão intimamente interligados em seu “se dar”, dito de outro modo, em seu

498 Idem, p 103. 499 VATTIMO, G. Despues de la cristandad. Barcelona, Paidós, 2003, p 13.


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“acontecer”. A analítica existencial do dasein descobre uma outra noção de temporalidade que permanecera oculta durante toda a história da filosofia: o ser-aí da existência humana não é simples presença, mas, projeto, isto é, não se encontra limitado à necessidade do tempo presente, mas, aberto à possibilidade. Por isso, a revelação da verdade encontra-se necessariamente vinculada à temporalidade. Temos sempre, enquanto indivíduos humanos, uma pré-compreensão do mundo e dos significados das coisas da qual não podemos nos desfazer, e assim, encontramo-nos sempre lançados em um projeto dentro do qual o mundo nos aparece dotado de sentido. A nossa compreensão do sentido do ser encontra-se submetida ao autodesvelamento do próprio ser, na medida em que este se dá a conhecer com o tempo, isto é, epocalmente, na história. Nesta perspectiva, as doutrinas do ser de cada época — desde Parmênides e Platão — são entendidas como respostas “a um apelo que fala no destinar que a si mesmo oculta, que fala no ‘Se dá ser’”.500 De modo que a “história do ser significa destino do ser”.501 O modo próprio do acontecer do ser se dá como um destinar, cabendo ao homem pensar, para além do esquecimento do ser, o sentido daquilo que permanece velado no ente manifesto, ou seja, daquilo que se encontra destinado e ainda por vir. Dizer sobre o ser é uma tarefa sempre provisória, preparatória, para um sentido mais profundo a ser descoberto que, em cada caso, se antecipa como um dizer precursor. Vejamos então de que maneira Vattimo defende a superação da metafísica na pós- modernidade como viabilizadora do retorno destinal da religião. Para além do que teria sido a intenção consciente do próprio Heidegger, o conceito de Ereignis é interpretado por Vattimo como enfraquecimento do ser, ou seja, como despotencialização do dogmatismo, autoritarismo e violência ligados ao conceito de ser da metafísica clássica. Opondo-se à identificação do ser com o ente, Heidegger inviabilizou a pretensão de se dominar o discurso de modo absoluto através da autoridade baseada em uma suposta descrição objetiva, não-histórica, dos entes. Vale dizer o mesmo para a pretensão de se dominar o discurso através de moralismos legalistas, pautados em dogmas ou preceitos religiosos tomados como verdades absolutas. Com a demonstração da ilusão filosófico- teológica da afirmação de uma verdade objetiva, toda e qualquer forma de totalitarismo ou fundamentalismo se torna racionalmente indefensável. Tal compreensão permite desmascarar o caráter ideológico de muitas —, assim consideradas —, verdades filosóficas, científicas ou religiosas, como instrumentos a serviço de determinadas classes de sujeitos que as utilizam para justificar o poder de uns sobre outros e a disciplina social. Do mesmo modo, permite derrubar os interditos filosóficos que impedem a abertura à experiência religiosa na pós-modernidade. Na interpretação de Vattimo, o anúncio da morte de Deus feito por Nietzsche corresponde mais propriamente à inviabilidade de um fundamento metafísico último, e não à rejeição da mensagem judaicocristã. O caráter destinal da morte de Deus corresponde ao que os Evangelhos denominam como a kenosis de Deus, termo grego empregado por São Paulo na seguinte passagem:

Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz! (Filipenses: 2, 6-8).

500 HEIDEGGER, M. Tempo e Ser. in: Heidegger – Os pensadores. Op cit, p 262. 501 Idem, p 261.


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A kenosis, como o “esvaziar-se de si mesmo” por parte de Deus, foi exprimida de modo pleno e definitivo na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Trata-se da mensagem de Deus em seu significado profundo: a escolha por despojar-se de um modo de afirmação de si mesmo que se faz à custa do outro, através da violência sobre o outro. Neste caso, a afirmação de si mesmo se faz, antes, servindo ao outro através da caridade, do amor ao próximo. Apoiado na história da metafísica traçada por Wilhelm Dilthey em “Introdução às ciências do espírito”, Vattimo nos mostra que com a chegada do cristianismo houve um deslocamento do centro do interesse filosófico do mundo natural para a interioridade humana, o que distingue a metafísica dos antigos para a dos modernos.502 Neste deslocamento, o conceito de ser da antiguidade grega “como um dado exterior situado ante os olhos do espírito como uma forma objetiva”503 foi se tornando, a cada época, mais subjetivo. Em Agostinho, já aparece delineado o conflito entre o “vinho novo” da interioridade cristã, da certeza interior dada pela relação da alma com Deus, e a “superioridade” do objetivismo visual ou estético dos gregos. Este mesmo conflito volta a aparecer a cada época ao longo da história subsequente, sob diferentes formas e graus, refletindo o jogo dialético entre as duas visões de mundo. Segundo Vattimo:

O acento no sujeito e fundamentação do saber sobre a base da interioridade segura de si mesma são os princípios que inspiraram a Descartes e a Kant e dominaram a filosofia moderna, que segue sendo durante muito tempo ainda uma metafísica dominada por uma visão objetivista da interioridade mesma, pelo fato de que o novo princípio da subjetividade introduzido pelo cristianismo não conseguiu se fazer valer imediatamente.504 É crucial, para que possamos prosseguir a partir deste ponto, que façamos uma avaliação crítica da posição de Vattimo desde o nosso quadro ontológico. Em primeiro lugar, concordamos com o autor quanto ao papel fundamental do novo princípio da subjetividade introduzido pelo cristianismo no processo histórico do desenvolvimento da filosofia. Basta lembrar o que dissemos no capítulo 5.3. acerca do surgimento do indivíduo autônomo na época das primeiras comunidades cristãs, e de que maneira este foi decisivo para o desenvolvimento da cultura ocidental. A visão de mundo dos antigos simplesmente desconhecia a subjetividade interiorizada, concreta e individualizada que emergiu a partir da revelação cristã. Foi necessário um longo processo de desconstrução da resistência oferecida pela antiga visão de mundo para que tal experiência da subjetividade pudesse ser filosoficamente reconhecida, compreendida e validada. O lento processo de queda do Império Romano, a grande instituição de poder do mundo antigo, é apenas um exemplo disso. Passada a época das primeiras comunidades cristãs, a Igreja passou a desempenhar o papel político de organizar a ordem social emergente. Com isso, herdou as estruturas histórico-culturais do mundo antigo, tendo de alguma maneira que assimilá-las. O que acabou sendo feito através da manutenção de toda a hierarquia de valores morais associada às estruturas de poder tradicionais através do nexo entre metafísica e violência. De modo que a estrutura da antiga ordem social foi como que “transplantada” para a emergente. Entretanto, é preciso que se compreenda que as estruturas de poder tradicionais são

502 VATTIMO, G. Despues de la cristandad. Op cit, pp 134-142. 503 Idem, p 135. 504 Idem, pp 135-136.


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as ligadas ao sagrado primitivo, ao sistemas mítico-religiosos, e não à mensagem judaico-cristã, que, como demonstra Girard, ergueu-se contra a violência mimética ligada ao mito e ao sagrado primitivo. A encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo representa justamente a vitória completa sobre a violência mimética. Isso nos ajuda a compreender os motivos da resistência que ainda hoje se manifesta em nosso meio cultural, impedindo a completa dissolução da violência mimética e, com isso, a plena emancipação da liberdade humana. Em segundo lugar, discordamos de Vattimo quanto a negação do princípio fundamental da verdade única, atemporal, absoluta. Seguindo as análises fenomenológicas de M. Henry, podemos dizer que o logos grego, limitado pela intencionalidade do ser-no-mundo, encontra-se sujeito ao mascaramento e à falsificação ideológica da verdade, o mesmo que dizer, à violência mimética ligada ao mito. É a falta de reconhecimento da diferença entre logos grego e logos cristão — como vimos, o logos cristão fundamenta ontológica e fenomenologicamente o logos grego — o que explica o longo processo de depuração do conceito de subjetividade ao longo da história da filosofia, desde a subjetividade abstrata e impessoal postulada por Descartes e Kant, até o pleno reconhecimento da subjetividade interiorizada, concreta e individualizada postulada por Schelling e Kierkegaard, até Wojtyla, Henry e Pareyson. Em terceiro lugar, voltamos a concordar com Vattimo com a sua defesa da referência à comunidade como critério de validade da interpretação da verdade na experiência da historicidade, todavia, sob a condição do princípio de que há um vínculo originário entre pessoa e verdade, verdade esta única e atemporal, sustentado por Pareyson. Neste sentido, é renunciando a pretensão de deter o monopólio da verdade, de tudo querer determinar e dominar através da razão, abrindo-nos à pluralidade das interpretações, à colaboração dialógica, à complementaridade das visões que cada pessoa na sua historicidade e singularidade constitutiva possibilita, que podemos aprofundar na compreensão da verdade contida na mensagem cristã. Entendemos que o caminho da revolução criadora idealizado por Moreno é o da radicalização do princípio da subjetividade introduzido pelo cristianismo, completando a kenosis de Deus na história da humanidade como história da salvação. O enfraquecimento do ser, de que nos fala Vattimo, precisa ser existencialmente assimilado por cada um de nós. Desse modo, emancipamo-nos da ideia — ou ídolo — do Deus dos filósofos para nos abrirmos ao Deus vivo da tradição judaico-cristã, que ressurge em nossa época pós-moderna como comunicação de Deus que se trata de escutar e responder pela comunidade de crentes, através da confiança subjetiva no amor de Deus pela humanidade. Este é o sentido que podemos atribuir à figura do Deus-Eu, profeticamente proposta por Moreno.

6.2. Por uma necessária crítica à sociedade do espetáculo Pode-se dizer que a ordem social no mundo atual é em grande parte determinada pelo poder coercitivo das conservas culturais sobre os indivíduos através do efeito das imagens produzidas pelas mídias. Neste sentido compreendemos a tese de Guy Debord de que vivemos numa “sociedade do espetáculo”. Acompanhemos os principais argumentos utilizados por Debord para defender a sua tese. Nas suas palavras: Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa produção de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma


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representação.505 As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento do autônomo não-vivo.506 O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo o olhar e toda consciência. Pelo fato de esse setor estar separado; a unificação que realiza é tão-somente a linguagem oficial da separação generalizada.507 O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.508 O espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular a qual adere de forma positiva. A realidade objetiva está dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente.50 Debord nos remete à existência na sociedade contemporânea de toda uma pedagogia de adaptação a um determinado padrão cultural hegemônico, operada pela veiculação das imagens midiáticas como uma espécie de instrumento de unificação da sociedade. De que maneira se dá este mecanismo pedagógico? Para responder a esta questão, comecemos introduzindo o conceito de produção da vida. Com este termo queremos dizer que a vida humana é produzida no sentido de que ela é necessariamente moldada, fabricada, tomando formas determinadas pela ação humana, formas estas sempre mutantes. O ser humano produz e é produzido de acordo com o que produz. Tudo é produzido, inclusive o seu corpo, seu modo de ser no mundo, de sentir, de perceber, de se relacionar, de interpretar as situações vividas. As imagens transmitidas pelas diferentes mídias, em especial, pela televisão, definem a cena de visibilidade de uma determinada ordem do mundo, isto é, de uma hierarquia global das ocupações sociais e políticas, das maneiras de falar e dos modos politicamente corretos de se adaptar às mais variadas situações da vida pública e privada. Servindo de modelo a todas as instâncias de produção da vida da família à escola, das empresas aos sindicatos, das delegacias e prisões aos consultórios médicos e psicológicos, as imagens midiáticas funcionam como um campo representacional hierárquico no qual cada coisa e cada papel social tem seu valor relativo, circunscrevendo o imaginário coletivo dentro de limites convenientemente determinados. Aprende-se assim a acreditar que o mundo é da forma como é mostrado pelas imagens midiáticas, e que se deve se adaptar a ele desta ou daquela maneira monstrada por estas imagens. Desse 505 DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p 13. 506 Idem, p 13. 507 Idem, p 14. 508 Idem, p 14. 509 Idem, p 15.


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modo, arregimentando o modo de participação da grande massa populacional na engrenagem social, se opera o controle dos fluxos de produção da vida na sociedade contemporânea. As mídias controlam o modo de organização social através de um poder “quase mágico”. Pelo simples fato de algo aparecer na televisão — a notícia de um evento, a entrevista de uma pessoa, a divulgação de um conhecimento científico etc —, este algo muda de status: passa a existir no imaginário das pessoas. Numa cultura de massa isto equivale a passar “magicamente” a existir na realidade. As mídias promovem esta “quase identidade” entre imaginário e realidade, de modo que enquanto algo não existe no imaginário das pessoas através da mídia é como se simplesmente não existisse na realidade. Por mais importante que seja, se este algo não aparecer na mídia, simplesmente não adquire relevância, permanecendo ao nível da banalidade cotidiana como qualquer coisa entre outras coisas. Quando aparece, subitamente lhe é agregado o valor de realidade. Um exemplo disto é o fato de o aquecimento global só ter adquirido o peso da realidade — apesar de já ter sido detectado há muito mais tempo por cientistas — quando ganhou os noticiários da televisão. As categorias do sagrado e do profano definidas pela antropologia vem aqui em nosso auxílio para explicar este fenômeno. De modo análogo à imagem mítica das representações rituais nas sociedades primitivas, a imagem midiática tende a tornar sagrado na sociedade atual tudo aquilo que nela é apresentado, tal como acontecia nos rituais daqueles povos. Ao adquirir visibilidade midiática, uma dada coisa passa a ser de domínio público, mas não só isso, passa a ser compartilhada pela sociedade como um todo como significativa. E esta é a única maneira de existir para uma sociedade de massa. Tal como acontecia nas sociedades primitivas, esta espécie de sacralização do que aparece nas mídias oculta uma mistificação, devido ao recorte feito na realidade. O “fato” que, por exemplo, ganha o noticiário de televisão, não é exatamente o “fato real”. Separado de seu locus de produção, o que chega até nós é apenas uma representação deste fato. Dá-se uma versão do fato em detrimento de outras versões, ou mesmo, excluindo outras versões, de modo que apenas a que aparece é a real, a verdadeira. Tal é a característica essencial da representação mítica: o imaginário compartilhado é tomado como a realidade. No que se refere às mídias, estas se utilizam de técnicas de edição para que o espectador se identifique com as imagens, levando-o a acreditar acriticamente no que elas mostram como sendo a realidade. Este procedimento, comum à produção dramatúrgica (peças teatrais, filmes, novelas), se estende dos anúncios publicitários, talk-shows e reality-shows, aos programas jornalísticos. O espectador perde a noção de que há alguém que as edita com o devido cuidado de transmitir subliminarmente mensagens favoráveis à manutenção dos interesses do grupo restrito que as controlam, subtraindo tudo aquilo que os denunciariam. Por aí nos damos conta de que as imagens midiáticas — onipresentes, onipotentes e oniscientes — ocupam nas sociedades contemporâneas papel análogo às antigas imagens rituais nas sociedades primitivas ou arcaicas. Evidentemente, o modo de organização social das nossas sociedades contemporâneas é muito diferente das sociedades arcaicas. A crença na “realidade transcendente” das imagens midiáticas veio a ocupar o lugar da crença nas antigas imagens de deuses e heróis. As mídias operam, desse modo, a planificação do pragmatismo técnico-racional que rege a organização da sociedade contemporânea. Nas imagens midiáticas, a “lei do mercado” e o “conhecimento técnico-científico” surgem como os dois grandes princípios — diríamos, os dois grandes ídolos — da sua “realidade transcendente”. No fluxo das suas imagens, uma mesma mensagem é subliminarmente reiterada: deve-se temer a lei do mercado e acatar inconteste o conhecimento científico a fim de se adaptar à hierarquia global dos papéis sociais. Diante de tal “realidade transcendente”, as pessoas não se dão conta


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da indução subliminar operada pelas imagens midiáticas acabando por tomá-las como verdades absolutas, deixando de perceber o contexto do jogo de interesses políticos atuantes na produção das mesmas, no recorte da realidade concreta onde elas se originam. Consequentemente, elas tendem a se identificar de modo indiscriminado com as representações dos papéis que compõem e sustentam o funcionamento da rede de significados assim instituída. O efeito final deste mecanismo é a planificação de todos os níveis de atividade social segundo os princípios de uma determinada racionalidade técnico- científica e de uma determinada lei do mercado, que não são, de modo algum, transcendentes, mas ideológicos. Obtém-se assim o controle geral da organização social. O mercado de trabalho é hoje uma estrutura social de extensão planetária, altamente estratificada, hierarquizada e competitiva. O que se paga a um trabalhador no mais remoto lugarejo de um país asiático, ou africano, ou sul-americano, encontra-se atrelado ao que se paga por um produto nas grandes metrópoles mundiais. Para ocupar uma vaga neste mercado a pessoa deve atingir o nível de qualificação exigido e ceder a maior parte de seu tempo no exercício da sua função, sob a permanente ameaça de desemprego e, portanto, de pobreza e exclusão social. Por outro lado, é incessantemente assediada a obter bens de consumo, ascensão social e assim gozar de supostas felicidade e liberdade. Para serem incluídas nesta engrenagem, as pessoas lutam para sobreviver em face às suas leis, e se satisfazer, dentro das suas possibilidades econômicas, com o gozo hedonista proporcionado pelo consumo. Não seria exagero explicar o fenômeno da globalização no mundo atual como a equalização de um mesmo padrão de organização social em esfera global resultante da planificação técnico-racional do conjunto de atividades humanas operada pelas mídias. Com isso queremos dizer que tal fenômeno só se tornou possível e só se sustenta em função do controle dos fluxos de informação e significação operacionalizados pelas mídias. Não é de se admirar que as pessoas em todo o mundo se comportem de modo individualista segundo os mesmos princípios? De que outro modo poderia se explicar tal hegemonia de comportamento, a não ser pelo controle do imaginário coletivo exercido pelas mídias? Por que praticamente não há resistência a esta visão de mundo senão porque as pessoas se encontram “capturadas” desde o seu imaginário, desde as suas identificações inconscientes, desde o seu narcisismo? Como nos mostra Foucault, a coerção que mantém a coletividade subordinada à estrutura do trabalho formal não é mais operacionalizada pelo jugo da escravidão ou por dispositivos disciplinares, como em épocas precedentes na história da humanidade, mas pela manipulação do desejo das pessoas. É o que o filósofo francês chama de controle do biopoder.510 A grande maioria das pessoas aprendem a não se reconhecer além de uma determinada imagem que narcisicamente fazem de si mesmas, conforme as representações dos papéis sociais que forjam para si, espelhadas nas imagens midiáticas. Uma vez identificadas com uma determinada imagem de si, tornam-se incapazes de tomar como seu, ou de responder por algo, que não corresponda a esta imagem. Acreditam, desse modo, possuir uma autonomia e uma liberdade que são, a bem da verdade, ilusórias. Pois permanecem incapazes de transpor os limites definidos por tais representações, às quais se mantém narcisicamente apegadas, e que as fazem lutar de modo individualista por direitos ou interesses que apenas parcial ou relativamente são seus, indiferentes a tudo o que não corrobore com os mesmos. Em suma, o que mantém as pessoas enredadas ao padrão de produção da vida definido pela ordem política dominante é o seu individualismo narcisista, sob efeito do controle do imaginário coletivo exercido

510 FOUCAULT, M.


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pelas imagens veiculadas pelas mídias. Esta é a forma atual pela qual a espontaneidade criadora do homem é inibida pelas conservas culturais.

6.3. Por uma nova produção da subjetividade A fim de melhor compreender o projeto da revolução criadora, introduzimos aqui o conceito de paradigma. Baseando-nos na definição de Thomas Kuhn, podemos dizer que paradigma é um conjunto de princípios que organizam um determinado modo de obter o conhecimento científico, princípios estes que tendem a ficar ocultos à atividade dos cientistas após a sua plena instituição numa forma definida de fazer ciência.511 Extrapolando o que Kuhn descreveu especificamente sobre o campo da atividade científica, podemos dizer que toda ação humana é pautada por um determinado paradigma, mesmo que as pessoas não tenham consciência disso. Ao menos, é o que acontece na realidade cotidiana com a grande maioria das pessoas. As mudanças de ordem cultural ocorrem epocalmente, justamente quando o paradigma de uma determinada cultura entra em crise por não mais se prestar a resolver certos problemas imanentes à realidade social. Nestas circunstâncias, os seus princípios tornam-se conscientes e, dessa maneira, passíveis de crítica, o que possibilita a sua transposição através da criação de um novo paradigma, mais adequado à resolução desses problemas. As transformações culturais correspondem assim à transposição de paradigmas. Abandona-se um paradigma, tornado obsoleto, na medida em que é criado um novo paradigma, mais adequado à época em que se vive. Muitos autores contemporâneos como J-F. Lyotard, R. Rorty, J. Derrida e, como vimos, G. Vattimo, referem-se a nossa época sob a denominação pós-modernidade. Não se trata, evidentemente, apenas de um nome. O prefixo “pós” indica uma mudança de paradigma em relação à época moderna. De acordo com os autores supracitados, começamos a viver na atualidade sob um novo paradigma: o paradigma pós-moderno. Para Vattimo, este novo paradigma transpõe a concepção moderna de um conhecimento baseado em descrições objetivas, não-históricas, dos diversos objetos de estudo, para um novo tipo de conhecimento, hermenêutico, isto é, que se estabelece através de processos de interpretação, de modo histórico e intersubjetivo. Desse modo, o novo paradigma pós-moderno possibilita que interpretemos os conhecimentos legados pela nossa herança cultural relativamente à historicidade em que foram produzidos, e que também relativizemos estes conhecimentos, como interpretações entre outras, dentro de um jogo democrático de interpretações. Este novo paradigma, na sua insipiência, ainda está para ser assimilado pela grande maioria das pessoas. Na realidade, esta permanece submetida ao que Edgar Morin chamou de “o grande paradigma do Ocidente”.512 É o paradigma moderno da separação, disjunção, dissociação, ou simplesmente, do ou/ou, isto é, do ou transcendente ou imanente, ou bom ou mau, ou verdadeiro ou falso, ou objetivo ou subjetivo, ou sensível ou racional etc. O paradigma pós-moderno nos capacita a compreender que, dependendo de como interpretamos, não há nada absolutamente bom ou mau, mas o bom no mau e o mau no bom, e assim por diante, aproximando-nos da lógica contraditorial do ser. É verdade que, ao assim proceder, corremos 511 KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1988. 512 MORIN, E. O método 4, As ideias – habitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre, Ed. Sulina, 2005, p 270.


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o risco de cair em um relativismo enfadonho, dentro qual não conseguimos enxergar um palmo adiante do nariz. Mas conhecemos o antídoto à possível insensatez do relativismo interpretativo: a potência da intersubjetividade do ser humano, em termos morenianos, da cocriação nos encontros interpessoais. O paradigma moderno foi instituído pela operação de separação radical entre subjetividade e objetividade iniciada por Descartes e aprofundada por Kant. Tal separação deu origem a uma cisão no seio da cultura ocidental. Por um lado, fez surgir uma cultura da objetividade, construída por sujeitos que submetem objetos a observações, experimentações, manipulações: um mundo da ciência, das planificações técnicas, dos processos burocráticos. Por outro, fez surgir uma cultura da subjetividade, construída por sujeitos que se veem diante de questões existenciais e escolhas pessoais: um mundo dos gostos, dos sentimentos, da moral, da espiritualidade. Resultado: visões de mundo e práticas que se excluem mutuamente, levando as pessoas a saltar de modo esquizofrênico de um mundo a outro nas suas vidas cotidianas. Um exemplo para ilustrar esta cisão é o de uma pessoa capaz de agir “friamente” — isto é, objetivamente, tecnicamente, burocraticamente — em seu ambiente de trabalho, colocando de lado a sua sensibilidade, e no momento seguinte debulhar- se em lágrimas numa sessão de cinema, ou explodir de emoção diante de uma partida de futebol, colocando de lado a sua racionalidade. A força propulsora da disseminação planetária deste “grande paradigma do Ocidente” foi certamente o avanço da ciência e da aplicação racional do conhecimento científico e tecnológico como caminho de realização do ideal de bem-estar e justiça social da humanidade, da atividade médica à administração de empresas, do ensino nas escolas à industria de alimentos. Realização sempre reavivada pelas promessas daqueles que ocupam as posições dominantes no espaço social, e sempre projetada prometeicamente no futuro. De modo que a visão de mundo instituída por este paradigma determina toda uma organização política, na qual o domínio do conhecimento científico e tecnológico define a distribuição dos papéis de comando e os níveis hierárquicos nas sociedades. Compreende-se assim que o sistema pedagógico escolar, ao permanecer atrelado a este paradigma, garante a formação dos “recursos humanos” para a sustentação da ordem econômico- política. A formação da subjetividade operada pelo sistema pedagógico em vigor menospreza a percepção sensível e a expressão da sensibilidade dos aprendizes para privilegiar o seu eu pensante, a sua capacidade cognitiva de aquisição e reprodução de conhecimentos. Quem se coloca no papel de ensinar apresenta juízos, categorizações, escalas de valores sobre os objetos que mobilizam impressões subjetivas, como conhecimentos a serem objetivamente aprendidos, assimilados e acumulados. De modo que a formação dos estudantes é orientada exclusivamente para a acumulação de conhecimentos objetivos, o que os torna capacitados a desempenhar papéis sociais compatíveis com a reprodução do sistema. Estes aprendem a se tornar cada vez mais competitivos, de modo a se adaptar a um mundo regido pela objetividade técnica e pelos processos burocráticos dela decorrentes. Desde muito cedo se impõe às crianças o dever moral de se esforçar para se adaptar a estes processos. O estudante aprende — ou, dito de modo um tanto cruel, é coagido — ao longo de sua formação escolar a perceber e se expressar segundo determinadas categorias. Aprende a separar o verdadeiro do falso, o certo do errado, o real do imaginário, o bem do mal, o mental do corporal, de acordo com os conhecimentos objetivamente estabelecidos, e a reproduzi-los. Aprende que a realidade é esta e que não há outra, a não ser na loucura. Costumam constar dos currículos escolares algumas poucas aulas de artes, literatura ou filosofia que se restringem a descarregar sobre os alunos conhecimentos nestes moldes, como conteúdos a serem cobrados em avaliações que medem apenas a sua capacidade de reprodução


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dos mesmos. Raramente os alunos são estimulados a se expressar sensivelmente em relação aos objetos de estudo. Assim, as opiniões subjetivas — gostar de algo, sentir de determinado modo, acreditar em determinada ideia, estar de acordo com determinado valor — são formadas dentro de um universo cultural milimetricamente objetivado. O acesso e a capacidade de fruição dos objetos de consumo cultural como o vestuário da moda, a obra de arte, o espetáculo esportivo, o gênero musical, a norma de etiqueta, o paladar gastronômico, como nos mostra Pierre Bourdieu, são regularmente mediados pela escala de valores concernente à posição social que uma pessoa ocupa.513 Gostar ou não de algo, sentir de um determinado modo ou de outro, são disposições adquiridas por alguém em função das suas oportunidades de aprendizado, de acordo com a sua posição na escala social. Por exemplo, uma pessoa pode estar predisposta a gostar de um determinado gênero musical como o rock, e não de outro, como o samba, de acordo com a capacidade de reconhecer e apreciar o significado das representações sociais desses gêneros musicais adquirida em sua formação cultural. Neste sentido podemos dizer que a subjetividade das pessoas é formada de maneira predominantemente cognitiva, de acordo com as suas oportunidades de aquisição das estruturas de conhecimento as quais é condicionada a se identificar e reproduzir. Em outras palavras, a pessoa se adapta cognitivamente à objetividade do mundo e, desta maneira, reproduz subjetivamente o mesmo padrão. É a chamada cultura de massa. Tudo no espaço social do mundo contemporâneo se encontra objetivamente definido, catalogado e hierarquizado sob a forma de estruturas de conhecimentos, dentro de seus respectivos campos específicos como a física, a economia, as artes, a medicina, o jornalismo, o direito, a religião etc. As opiniões subjetivas adquirem valor, sendo mais ou menos ingênuas ou selvagens, sólidas ou consistentes, relativamente ao objetivamente estruturado dentro destes campos. Em suma, a subjetividade de uma pessoa corresponde a esquemas de percepção e de pensamento mais ou menos adequados às estruturas do conhecimento objetivo vigentes em seu espaço social. Aquilo que surge como novidade, como inovação, surge ou como desdobramentos dos esquemas de percepção e de pensamento vigentes, ou como ruptura em relação a estes esquemas, o que raramente acontece. Quando, rompendo com o estabelecido, acontecem tais inovações, ou estas são simplesmente ignoradas ou excluídas, ou rapidamente definidas, catalogadas e hierarquizadas, e assim, integradas à estrutura dominante. O jazz, o rock, o rap, o funk, por exemplo, são gêneros musicais que surgiram ao longo do século XX como inovações, que promoveram o devir de movimentos culturais singulares no espaço social como novos modos de vestir, de se comportar, de sentir, mas que hoje se encontram integrados à cultura de massa, devidamente catalogados e hierarquizados dentro do universo de valores vigente como objetos de consumo. Esse padrão de produção da vida atual é perpetuado na justa medida em que a cisão cultural que acabamos de descrever continua a prevalecer, atuando de modo oculto. A bem da verdade, há interesse da parte dos detentores oligárquicos do poder que permaneça oculta. As imagens midiáticas, servindo como modelos transcendentes, levam as pessoas a desejarem de acordo com o universo de representações e valores determinado pelos atuais detentores do poder, aprisionando-as a uma noção de identidade narcísica, dissociada de seu ser mais autêntico, da sua espontaneidade criadora, do Deus-Eu. O novo paradigma

513 BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento.São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008, p 240.


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pós-moderno traz consigo a possibilidade de uma efetiva transposição dessa cisão cultural, conduzindo à realização do Deus-Eu, enquanto produção de uma nova subjetividade resultante da intersubjetividade de encontros cocriadores. Não precisamos negar as forças imanentes que determinam historicamente a nossa existência para reconhecer a transcendência de Deus na imanência da história. O projeto de religação entre a ciência e a religião da revolução criadora se inscreve na emergência deste novo paradigma.

6.4. O momento do Deus-Eu Busquemos compreender agora como a expressão do Deus-Eu é capaz de romper com a cisão cultural que nos leva à dissociação de nosso ser espontâneo e criador. Como fonte de subjetividade, o DeusEu opera a inversão dos valores sustentada por esta cisão cultural que nos mantém atrelados a meramente reproduzir as conservas culturais que chegam até nós. Sigamos, neste intuito, os apontamentos deixados por Moreno: A Divindade tem, além dos sinais objetivos de sua existência no Universo, uma existência subjetiva que Lhe é própria, [...] em um nível diferente da subjetividade do homem.514 Agora, há um novo Deus, uma nova voz da experiência, uma nova via de comunicação com o Deus que vem do próprio Eu, através de mim, através de você, através de milhões de “Eus”.515 Devemos ver a Divindade como coexistente com todos os atos criativos dos homens e, na verdade, Ela é a verdadeira essência deles.516 Deus aninha-se no coração do homem e o homem se entrelaça com Deus, o passado infinito atualiza-se e Deus torna-se uma realidade no aqui e agora.517

Moreno nos fala de um Deus pessoal, portador de subjetividade, cuja presença viva e criativa encontra-se acessível à experiência humana. Esta subjetividade própria a Deus encontra-se situada em um nível diferente da do homem, mas chega até nós como uma comunicação acessível ao nosso Eu através do coração, podendo se atualizar, tornar-se realidade, em nossos atos criativos. A questão que então se coloca é: estando situada em um nível diferente da humana, como ter acesso à subjetividade de Deus? Moreno denomina ‘categoria do momento’ a temporalidade singular que dá acesso à subjetividade de Deus, ao encontro subjetivo entre o homem e Deus. Na abertura ao momento, acontece a transposição de nível através da qual o homem torna-se capaz de apreender subjetivamente a atuação de Deus em nossa vida como fonte de toda espontaneidade. Todavia, é difícil transpor este nível porque existem barreiras à

514 MORENO, J. L. As palavras do pai. Op cit, p 162. 515 Idem, p 12. 516 Idem, p 158. 517 Idem, p 25.


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comunicação de Deus que devem ser eliminadas a fim de que o homem possa perceber a atuação de Deus em nossas vidas. Uma destas barreiras é a filosófica. A este respeito, acompanhemos a seguinte passagem de Moreno:

A relação da Divindade para com o momento foi sempre um quebra-cabeças para os filósofos. A tendência tem sido a de desnaturalizar o significado do momento, estendendo a presença da Divindade e projetando-a para um futuro distante e para trás, até se perder no passado. Chegar a dizer que Deus “É”, equivale a um modo enganoso de remover a Divindade do momento no sentido atual ou de torná-La atemporal e eterna e, depois, substituir estas categorias totalmente diferentes pelo próprio momento, equivale a fugir do esforço de demonstrar como a Divindade pode ser entendida como operante no momento — o momento considerado como um foco centrado num ato ou num acontecimento, como uma medida de duração limitada. O problema consiste, portanto, em reconciliar a universalidade da Divindade com o caráter de ser algo único a cada momento.518 Moreno reconhece que “Bergson aproximou-se deste problema mais do que nenhum outro filósofo moderno”519, sendo sensível à dinâmica da criatividade com o seu conceito de “duração” (durée). Opõese à noção de tempo abstrato da metafísica clássica como justaposição ou sucessão de instantes imóveis, à noção de duração como tempo real, concreto, sempre em mudança, imprevisível, sendo cada momento função da totalidade do passado, como adventos da existência de um “impulso vital” (élan vital), fonte de toda diferenciação. Neste sentido, os fenômenos da vida no universo testemunham uma “evolução criadora”. Contudo, a crítica de Moreno ao esquema bergsoniano recaí sobre o fato de que neste, o tempo, em si mesmo, é postulado como uma mudança eterna, como um ser totalmente criativo, em que cada partícula do tempo é criativa em cada um dos seus instantes, em qualquer caso. Nas suas palavras: “Em tal esquema não há lugar para o momento como categoria revolucionária”.520 Faltaria ao esquema bergsoniano espaço para o papel do homem como criador, uma vez que Bergson não teria estabelecido “nenhuma ponte ente o criativo absoluto e o tempo e espaço em que vivemos, que foi construído pelo homem”.521 Pois, vivendo em um tempo e espaço no qual a conserva cultural funciona como uma barreira à criação espontânea, o homem se fecha ao momento, entendido como temporalidade da criação espontânea. Todavia, Moreno não faz jus à totalidade do pensamento de Bergson, organizado em sua obra da maturidade “As duas fontes da moral e da religião” de 1932. Neste livro, a ideia de criação para Bergson é pensada como a natureza de Deus que se manifesta em todos os níveis da evolução do universo; mas também, no que se refere particularmente ao homem. Esta sua concepção final da criação é muito semelhante à de Moreno, como atestam as seguintes passagem do livro supracitado: É difícil concebermos um amor atuante que não se dirija a ninguém. De fato os místicos são unânimes quando testemunham que Deus tem necessidade de nós, como nós temos necessidade de Deus. Por que teria Ele necessidade de nós, se não fosse para nos amar? Tal será, com efeito, 518 Idem, p 163. 519 Idem, p 143. 520 Idem, p 145. 521 Idem, p 144.


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a conclusão do filósofo que se consagra à experiência mística. A Criação aparecer-lhe-á como um empreendimento de Deus visando criar criadores, acompanhar-se de seres dignos do seu amor.522 Vamos assim para além, sem dúvida, das conclusões de “A Evolução Criadora”. [...] Quanto à corrente vital que atravessa a matéria, e que é sem dúvida a sua razão de ser, tomávamo-la por simplesmente dada. Da humanidade, que está no extremo da direção principal, perguntávamonos se teria outra razão de ser além de si mesma. Trata-se de uma dupla questão que a intuição mística põe ao responder-lhe. Foram chamados à existência seres que estavam destinados a amar e ser amados, uma vez que a energia criadora deve definir-se pelo amor. Distintos de Deus, que é essa energia ela mesma, só podiam surgir num universo, e foi por isso que o universo surgiu. [...] Em todo caso, a espécie que é a razão de ser de todas as outras só parcialmente é ela mesma. Não pensaria sequer em vir a sê-lo por completo se alguns de seus representantes não tivessem conseguido, através de um esforço individual que se acrescentou ao trabalho geral da vida, quebrar a resistência que o instrumento opunha, triunfar sobre a materialidade, redescobrir, enfim, Deus. Tais homens são os místicos. Abriram um caminho por onde outros homens poderão andar. Indicaram, por isso mesmo, ao filósofo de onde vinha e para onde ia a vida.523 O que Moreno criticamente reclamava faltar na filosofia de Bergson quando escreveu “As palavras do pai” em 1922, baseado em “A Evolução Criadora” de 1907, descobrimos que o próprio Bergson tratou de corrigir ao abordar a questão do sentido da evolução humana dentro da evolução do universo fornecido pela intuição mística. A propósito desta questão, Bergson distingue duas formas de religião: uma religião estática e uma religião dinâmica. A primeira corresponde a um sistema fechado, contido em regras rígidas, tal com ocorre através da pura manutenção de rituais religiosos; enquanto a segunda, é expressão de uma abertura à relação pessoal e dinâmica com Deus. Em seu esforço individual, o místico — protótipo do instaurador de religiões dinâmicas — se abre à experiência subjetiva de Deus no ato criador que é de Deus. Desse modo, toma parte ativamente na criação de Deus, tornando-se também ele criador. Por ter chegado a tal concepção ao final da sua obra, não queremos dizer que Bergson foi influenciado por Moreno. Ele provavelmente desconhecia a obra de Moreno. O que também não vem ao caso. O que importa é que ambos os autores chegaram, por diferentes caminhos, a concepções muito semelhantes da relação do homem com Deus. Recuperam, assim, como filósofos, a concepção religiosa judaico-cristão de Deus como Criador do universo, e do homem como criatura a sua imagem e semelhança, como ser capaz de amar e criar. A filosofia de Moreno também se aproxima à de Heidegger no que diz respeito à questão da temporalidade. O conceito de momento, ligando ser e tempo, é convergente com o de acontecimento apropriativo (Ereignis). De modo análogo ao chamado “esquecimento do ser”, a onipresença de Deus, segundo Moreno, tende a se ocultar na experiência humana, acabando por ser percebida como ausência. Nas suas palavras:

522 BERGSON, H. As duas fontes da moral e da religião. Almedina, Coimbra, 2005, p 214. 523 Idem, pp 215-216.


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O relacionamento da Divindade, com uma situação particular no Universo, deve ser totalmente diferente daquela na qual qualquer indivíduo, em particular, experimenta em relação à situação mencionada acima. Para um indivíduo, em particular, em sua subjetividade, ninguém mais trabalha na situação senão ele próprio. Ele pode, também, diferentemente de outros indivíduos, estabelecer uma relação limitada para com esta situação, sem se dar conta da presença subjetiva de Deus nesta mesma situação. Se Deus está presente, o está numa atividade misteriosa. Porém a inatividade de Deus é somente uma conclusão lógica, se cada indivíduo identificar a sua própria relação para com uma situação, como inteiramente separada da relação que outro indivíduo mantém para com esta mesma situação. Não obstante, Deus não é capaz de ser ativo em uma situação do mesmo modo que um indivíduo, em particular, o é. Se Deus tiver que particularizar a si mesmo, ainda que por um momento, perderia a total inclusividade da Divindade e da essência de Seu ser.524

O ponto a ser analisado aqui é o de que esta ausência ou inatividade de Deus “é somente uma conclusão lógica, se cada indivíduo identificar a sua própria relação para com uma situação, como inteiramente separada da relação que outro indivíduo mantém para com esta mesma situação”, quer dizer, se não for considerada a possibilidade de uma intersubjetividade concreta, real, dada pela onipresença subjetiva de Deus em cada momento particular de diferentes indivíduos, na abertura ao momento. Lembremos que, segundo Heidegger, a redução do âmbito do conhecimento ao domínio de um sujeito transcendental operada por Kant é correlata à posição de isolamento (abstrata) ocupada por este sujeito, definida por uma concepção linear do tempo como sucessão de instantes presentes, na qual o ser confere aos entes o caráter de objetividade, de realidade objetiva. Com isso, a subjetividade kantiana subtrai a pessoalidade e a historicidade do homem de seu ser-no-mundo. Ultrapassando esta aporia, a subjetividade para Heidegger se dá pelo “comum-pertencer” de ser e homem no interior do acontecimento apropriativo (Ereignis), pelo estar disponível do ser a uma possível apropriação por parte do homem. Ao invés da posição de isolamento do sujeito em Kant, encontramos em Heidegger o caráter relacional de ser e homem, o qual, guardada a ressalva supracitada, se assemelha surpreendentemente ao de Moreno. Compreendemos assim como é possível, através da abertura ao momento, uma nova subjetividade que rompe com a cisão cultural atrelada à posição solipsista ocupada pelo sujeito da filosofia moderna de Kant e Descartes, em outras palavras, com o encerramento de uma racionalidade abstrata que nos impossibilita reconhecer a interligação concreta, real, da nossa subjetividade pessoal com a subjetividade de outra(s) pessoa(s), dada pela abertura ao momento. É preciso que o homem se abra para uma dimensão temporal em que a subjetividade de Deus se faz presente, que não é normalmente percebida por ele, pois se encontra condicionado pela cisão cultural em que vive a pensar de modo solipsista, renegando a ligação intersubjetiva que tem com os outros. A busca do sentido do ser no interior do acontecimento apropriativo (Ereignis) corresponde, assim, ao encontro cocriador no momento de que nos fala Moreno.

Além deste ponto, temos ainda um outro igualmente importante a ser analisado, o que Heidegger

524 MORENO, J. L. As palavras do pai. Op cit, p 164


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denomina como o caráter destinal do ser, de que falamos a pouco. A história ocorre não como uma sucessão objetiva de instantes presentes, mas como acontecimentos que se interligam, desde o seu interior, subjetivamente, determinados pelo sentido do ser. De modo semelhante, para Moreno o processo histórico decorre de um movimento de realização do self pelo self e através dele, que não pode ser dimensionado dentro do horizonte estrito da individualidade, e nem tampouco da interpessoalidade, uma vez que abrange o universo como um todo. Trata-se, como já apresentado anteriormente, do processo de autointegração do próprio self denominado Eu-Self-Deus. As seguintes passagens nos esclarecem como Moreno compreende este processo a partir do conceito de momento. O momento para a Divindade difere essencialmente do momento tal como é experimentado pelo homem. É um momento do qual um grande número de momentos ‘humanos’ faz parte. Para entender como acontece a onipresença de Deus, devemos vê-la não como um fato, mas como um processo vivencial. Como um primeiro passo para um entendimento da onipresença de Deus, devemos considerar também Sua multipresença, Sua presença em um número limitado de momentos e situações independentes.525 Existem, consequentemente, milhões de momentos ou presentes que se acumulam e aglomeramse naquele que chamamos de ‘presente’ de Deus em qualquer momento da existência do Universo.526 Por meio da presença dinâmica da Divindade, esses diferentes pensamentos, atos e fatos ganham um sentido de direcionamento histórico no mundo.527 De acordo com a ontologia moreniana, todos os momentos da história encontram-se interligados e direcionados, possuem um caráter destinal — utilizando a terminologia heideggeriana — que pode ser apreendido pessoal e historicamente por todo indivíduo humano. Deus é a fonte desta interligação subjetiva de todos os indivíduos com todas as partes do universo, e com o universo como um todo, através de todos os momentos, passados, presentes e futuros. Faz-se importante ressaltar que se trata de interligação subjetiva, que acontece subjetivamente. Deixamos de reconhecer esta interligação subjetiva devido ao fato de sermos culturalmente condicionados a pensar, sob a égide da separação sujeito-objeto operada pela filosofia moderna, dentro dos limites de uma concepção de tempo linear, ligada a uma noção de causalidade também linear, que define o que chamamos de realidade objetiva. Por isso nos espantamos quando duas pessoas se encontram ao acaso e descobrem que estavam pensando uma na outra no dia anterior. O espanto provém do fato de não conseguirmos identificar nenhuma causalidade que justificaria uma ter pensado na outra no dia anterior. Todavia, considerando o conceito de momento, podemos falar que aconteceu nesta situação uma interligação subjetiva entre elas, em seus diferentes momentos particulares, que precedeu o momento de encontro objetivo entre as duas. Retomando o que dissemos, trata-se, em outras palavras, de um fenômeno coinconsciente dado na abertura à realidade suplementar.

A nova experiência de Deus de que nos fala Moreno — o Deus-Eu — implica assim na produção de

525 Idem, p 165. 526 Idem, p 163. 527 Idem, pp 164-165.


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uma nova subjetividade, que se dá através da abertura ao momento como afirmação da unidade-totalidade do ser, transpondo a separação ou dissociação do ser ocasionada pela aludida cisão cultural, possibilitando assim a religação das pessoas consigo mesmas, com as outras e com o universo como um todo. Esta nova produção de subjetividade acontece na medida em que, sendo-se espontâneo, as categorias sujeito e objeto não se encontram separadas de fato. Unificam-se vivencialmente como os dois lados de uma mesma moeda. A verdade una e indivisível de Deus, torna-se assim passível de ser assimilada através de uma experiência subjetiva do real, que acontece interpessoalmente no ato de encontros cocriadores.

6.5. A integração do sentido trágico pelo ator espontâneo-criador Consideremos agora a existência de uma teatralidade do cotidiano correspondente ao fato de que as pessoas interatuam no cotidiano de suas vidas representando papéis. Como vimos, o primeiro nível da ação humana é formado por imagens simbólicas cuja estrutura é determinada pelo mito. Há assim um dinamismo elementar da ação humana que subjaz o que estamos aqui chamando de teatralidade do cotidiano determinado pelo mito. Para estudar o dinamismo mítico da teatralidade do cotidiano no contexto sociocultural contemporâneo vamos recorrer ao que o antropólogo G. Durand denominou como mitanálise. Durand nos mostra que há uma alternância dos valores dominantes de uma sociedade ao longo da história correspondente a alternância de mitos reitores subjacentes ao real social. Essa alternância acontece após períodos de longa duração, geralmente por dois séculos. Isso significa que, de tempos em tempos, um determinado mito se sobrepõe no confronto com outros mitos determinando os valores dominantes da ambiência cultural de uma época. Conforme a mitanálise de G. Durand, a sociedade contemporânea é caracterizada pelo confronto de três mitos: Prometeu, Dioniso e Hermes. Cada qual representa uma determinada ordem de valores. Vejamos então como a sociedade contemporânea se organiza em função desses mitos subjacentes ao real social, o que nos possibilita interpretar o significado mítico-simbólico das suas representações sociais. Segundo Durand, toda organização social apresenta uma teatralidade formada pelos diversos atores do jogo social, que pode ser estratificada em três níveis metafóricos de profundidade interligados pelo mítico. Esquematizando esta noção através de um modelo topológico528 inspirado na psicanálise, haveria o nível actancial dos papéis sociais, chamado “ego social”, que resulta do embate entre dois mitos reitores que atuam a partir de pólos opostos: o nível fundador arquetípico, chamado “id psicóide”, e o nível dos empreendimentos racionais instituídos, chamado “superego institucional”. Estes três níveis se encontram em confronto, havendo uma tensão dinâmica entre os mesmos. Um determinado mito, atuando como superego institucional, tende a recalcar um outro mito, emergente, como id psicóide. Ao nível do ego social opera-se um duplo movimento: por um lado, uma racionalização progressiva do mito emergente, dado pelos representantes da ideologia no poder, do superego institucional; e, por outro, uma desqualificação

528 DURAND, G. A renovação do encantamento. São Paulo, R.Fac.Educ., 15(1): 49-60, jan/jun. 1989.


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progressiva das conceitualizações, dada pelos marginalizados ou dissidentes, representantes do id psicóide, numa abertura ao mito emergente. Desse modo, a representação social, através do pluralismo dos papéis sociais, das dramatis personae do consciente coletivo, simboliza o dinamismo mítico que a impregna, equilibrando os sonhos e fantasia de seus atores na relação com a lei e os códigos institucionais, na criação do cotidiano. O imaginário mítico, portanto, é a matéria-prima que os atores utilizam na constituição da realidade social. Em termos morenianos, podemos dizer que o superego constitucional corresponde ao conjunto das conservas culturais de uma sociedade, enquanto o id psicóide, à abertura à realidade suplementar através da espontaneidade dos atores sociais. O dinamismo mítico que subjaz à teatralidade do cotidiano determina todo um ciclo de papéis sociais ao longo da história. Certos papéis, impregnados pelo mito emergente, tendem a ser marginalizados. Contudo, com o tempo, os valores que carregam em seus símbolos vão sendo racionalizados e, desse modo, integrados na sociedade; enquanto outros papéis, representantes da ideologia que vai se tornando obsoleta, anteriormente prestigiados, vão se tornando marginalizados, obrigados à dissidência, passando a carregar ressentimentos, frustrações, e desejos inconscientes, e assim,“enchendo-se novamente com a água-viva das imagens”529. Retomando o que dissemos a pouco, a mitanálise de Durand identifica a coexistência de três mitos reitores na nossa história recente — Prometeu, Dioniso e Hermes — correspondente a três estratificações pedagógicas 530 que estabelecem, cada qual, a sua visão de mundo distinta, bem como, o seu conjunto de papéis sociais privilegiados ou marginalizados531, definindo uma socialidade e uma teatralidade do cotidiano característica a cada uma delas. O padrão sociocultural instituído como cultura patente desde o final do século XIX, definido por Max Weber como desencantamento do mundo (Entzauberung), tem como fundo mítico Prometeu. Prometeu é considerado “o pai dos homens” por ter-lhes dado o fogo, roubado de Zeus. O simbolismo desse fogo corresponde ao poder da razão, da ciência, da tecnologia utilizado pelo homem para vencer a natureza, na sua imprevisibilidade e obscuridade. É um mito patriarcal e heroico carregado da ideia da superioridade dos valores masculinos. Nas palavras de Durand, representa “a fé no homem contra a fé em Deus [...], define uma ideologia racionalista, humanista, progressista, cientista e, por vezes, socialista”532, que se traduz pela ideia de sociedade voltada para o futuro e a busca de uma sociedade perfeita. Assim, toda a vida social é pensada em função do progresso a ser alcançado, do desenvolvimento centrado no trabalho, no produtivismo e na circulação do dinheiro. Tudo deve ser quantificado, medido, pesado, classificado. Tudo deve ser experimental e estatisticamente verificável para ter validade, para que se possa acreditar. O tempo é rigorosamente medido (tempo é dinheiro), e aproveitado em função dos negócios (negação do ócio), o que se expressa na conduta metódica e na burocratização da vida. É o triunfo da objetividade sobre a subjetividade. Todavia, Prometeu é punido por Zeus por tê-lo traído, sendo acorrentado a um rochedo e obrigado a sofrer devido a seu fígado ser comido por uma águia diária e eternamente. Podemos

529 Idem, p 59. 530 DURAND, G. Mito, símbolo, e mitodologia. Op cit, p 32-35. 531 DURAND, G. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa, A Regra do Jogo Edições, 1983, pp 12-24. 532 DURAND, G. Campos do imaginário. Op cit, p 101.


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correlacionar este segundo aspecto do mito ao desgaste da cultura prometeica por nós experimentado na sociedade contemporânea. De fato, vem se tornando insustentável a expectativa de equacionamento e resolução dos graves problemas da humanidade tais como a fome, a doença, a guerra, o desequilíbrio ecológico apenas ou exclusivamente em termos de possíveis avanços da ciência e da tecnologia. Como temos dito, chegamos ao século XXI com uma grande insegurança sobre o futuro da humanidade. Enfim começamos a nos dar conta de que quanto mais persistirmos acreditando na resolução de nossos problemas através desta via, tanto mais os problemas se complicam, e mais nos distanciamos da sua resolução. Com isto, o panorama social vem mudando drasticamente desde meados do século XX. Embora o padrão prometeico continue a dominar, podemos sentir na ambiência contemporânea uma saturação da fé no futuro, na sociedade para o amanhã, transformando a concepção de tempo. O trabalho não é mais objetivo de vida. Há uma busca pelo prazer aqui e agora, pelo corpo, pelo tempo livre, pelo estar-com e pelo fazer-junto. O momento com o outro passa para o primeiro plano, o que se traduz pelo número crescente de manifestações coletivas: passeatas públicas, festas, celebrações esportivas, tribos urbanas. As novas gerações vivem, nos termos de Michel Maffesoli, um “presenteísmo”533, sendo as imagens midiáticas as grandes propulsoras desta nova visão do mundo. O que vale é o momento presente, sem ontem ou amanhã. O contraponto mítico a Prometeu é Dioniso. Dioniso, de modo contrário a Prometeu, não é heroico, não é sobredeterminado pelos valores masculinos, embora seja masculino e fálico. Dioniso representa uma consciência andrógina, onde o masculino e o feminino estão primordialmente unidos. Sua natureza é contraditória, reunindo valores suprahumanos (celestes, espirituais) e infra-humanos (ctônicos, animalescos). É o deus do vinho e da embriaguez, do corpo e das emoções. O surgimento do culto a Dioniso, complementando o que vimos em capítulos anteriores, remonta as primeiras civilizações agrícolas, há mais de cinco mil anos. É uma religião ligada à natureza, na qual, em seus ritos, buscava-se a harmonização com a criação, o erotismo, a fertilidade, a fecundidade, a comunhão e a cooperação com a natureza e os deuses, a libertação da alma dos limites terrenos, a dissolução da individualidade, o acesso à imortalidade. Consideravam o corpo como instrumento de todas as ealizações humanas, e a criação, em sua totalidade, como o corpo do divino, na sua crueldade e benevolência. Somente quem podia compreender o mundo natural podia aproximar-se dos espíritos e dos deuses, pressentir a alegria do divino534. A origem do teatro decorreu do processo político de integração dos rituais dedicados a Dioniso à vida cotidiana da pólis, quando o “sair de si”, a dissolução da individualidade, inspirada pelo deus no rito sagrado, democratizou-se e profanizou-se, pelo caráter estético dos espetáculos, passando a servir aos interesses das classes dominantes, ao controle ideológico e à adaptação social, como instrumento de conservação do ethos (caráter, hábito) social. 535 Maffesoli enfatiza em seu livros o surgimento de uma nova ambiência social que encontra seu fundamento em Dioniso, uma ambiência pós-moderna, em contraposição à ambiência da época moderna, dada por uma mitologia do progresso e do fazer, relacionada à Prometeu. Maffesoli defende a noção de ambiência tornou-se fundamental para a compreensão da sociedade: “a ambiência é de fato matricial” 536,

533 MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 1984. 534 DANIÉLOU, A. Shiva e Dioniso - A religião da natureza e do Eros. São Paulo, Martins Fontes, 1989, pp 24-28. 535 Idem, pp 125-133. 536 MAFFESOLI, M. A transfiguração do político. Op cit, p 138.


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no sentido de que ela tem uma eficácia, a de “gerar um corpo coletivo, engendrar um ethos” 537. Com o desgaste das certezas e das convicções fornecidas pelo racionalismo, “em lugar de dominar o mundo, de querer transformá-lo ou mudá-lo, atitudes prometeicas, opta-se por unir-se a ele pela contemplação”538. Trata-se de um movimento de voltar-se para o ethos, “de uma valorização do próximo, repousando sobre o evidente” 539. Assim, deixa-se de querer controlar o ambiente para interagir com ele. Deixa-se de querer separar, classificar, distinguir, e desse modo, por oposição, ser diferente (característica do individualismo), para contagiar-se afetivamente pelo outro, como um “sair de si”, ao imitar o outro, ao partilhar ideias e sentimentos comuns (característica do coletivismo). A importância do fenômeno, isto é, do que é dado, da aparência, da teatralidade do cotidiano, passa a balizar toda a organização da sociedade. Nas suas palavras, “a imagem está onipresente no social”. 540 “Nesta perspectiva, as diversas modulações da aparência (moda, espetáculo político, teatralidade, publicidade, televisões) formam um conjunto significativo, um conjunto que, enquanto tal, exprime bem uma dada sociedade”.541 Desse modo, há “uma estreita conexão entre o conteúdo e o continente, entre a forma exterior e a força interior”542 , uma profundidade da aparência. O corpo, neste sentido, tornou-se um elemento de mediação e interação entre o eu, o mundo natural e o social. Daí a importância da estética, do conhecimento sensível, afetivo, emocional, imanente ao corpo em interação com os outros e o ambiente. Assim, a vida pós-moderna organiza-se em torno de imagens a partilhar, com toda a sua carga simbólica, no aqui e agora, na teatralidade do cotidiano. Esboça-se uma nova forma de existência com esta ressurgência das imagens que “depois de terem sido afastadas pelo início da ciência e da técnica, retornam com força, difundem-se no conjunto do corpo social; e isso com a ajuda do desenvolvimento tecnológico”. 543 Compreendemos, neste contexto teórico, a grande ascensão das redes sociais através do facebook, instagram, whatsapp etc. Entretanto, ao lado da positividade da ressurgência das imagens e do mítico sob a égide de Dioniso, há um potencial de negatividade que pode tornar o seu processo histórico perigoso. Dioniso também é o deus dos excessos, dos paroxismos, dos desregramentos, da loucura, da violação dos limites. Há uma tendência monopolizante, totalitária, em Dioniso. Neste sentido, Dioniso não é democrático, não há lugar para a diferença. Não foram à toa os esforços, ao longo dos tempos, de circunscrever-lhe limites, de algum modo cerceá-lo. Pensemos nas manifestações coletivas que podem chegar, paroxisticamente, à barbárie, quando manipuladas por líderes políticos ou religiosos insanos. Além disso, Dioniso mistifica, idolatra, investe de pompa, deifica, com a mesma facilidade que derruba, que denigre, na sua tendência ao “tudo ou nada”, conduzindo a uma “lavagem cerebral”, a um consumismo grosseiro, a uma efemeridade das coisas. Isso nos ajuda a compreender como os mass media promovem tanto o culto a personalidades do mundo político, artístico ou esportivo, como a sua derrocada em um breve período, os “quinze minutos de fama” (máxima de Andy Warol), a circulação banal de informações, de modismos, de crenças que se tornam indispensáveis e descartáveis com a mesma facilidade. O processo dionisíaco, em sua negatividade, produz banalização e alienação.

537 Idem, p 139. 538 Idem, p 136. 539 Idem, p 137. 540 MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis, Vozes, 1999, p 125. 541 Idem, pp 126 e 127. 542 Idem, p 127. 543 Idem, p 133.


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O terceiro mito reitor da ambiência contemporânea, Hermes, é o deus do lugar entre as diferenças, da mediação entre o próximo e o distante, das bordas, dos limites, das encruzilhadas, da coincidência dos opostos, dos acordos entre os deuses, e entre estes e os homens. Do mesmo modo que Dioniso, Hermes é andrógino-hermafrodita, e de forma alguma é heroico. Seu principal atributo é o “caduceu”, que simboliza, com suas duas serpentes, a natureza dual da ordem cósmica: o diurno e o noturno, o céu e a terra, o divino e o humano, o superior e o inferior, o masculino e o feminino. Presta-se a servir como um intermediário entre as polaridades, na função de “psicopompo” (guia das almas), como mensageiro dos deuses e como seu interprete (hermeneuta). 544 Representa, assim, a sabedoria no seu poder de harmonização, de trazer unicidade à diversidade. Tem como seus principais porta-vozes C. G. Jung, com seus estudos alquímicos, e seus seguidores, bem como, G. Durand, M. Maffesoli, H. Corbin, R. Girard, J. Campbell, entre outros. Podemos falar de uma “razão outra”, ratio hermetica, que conduz a uma “desmistificação às avessas”, isto é, uma compreensão do mítico que subjaz à realidade social que permite atualizar as potencialidades presentes nas imagens, contudo, sem tomá-las como absolutas, relativizando o seu significado, evitando assim o seu poder de mistificação e indiscriminação decorrente da identificação acrítica com as mesmas. A ambiência contemporânea é formada assim por um conjunto heterogêneo de valores, propagados por pedagogias contraditórias. Temos uma primeira estratificação da socialidade, que atua como fator de resistência da cultura patente, do superego institucional, que permanece atrelada aos ideais prometeicos do século XIX. Falamos aqui das nossas pedagogias institucionalizadas. Nas palavras de Durand, “as crianças entram nas escolas para terem uma profissão incluída na tecnologia da nossa sociedade [...] E é isso, a grosso modo, a boa velha pedagogia positivista [...] o que significa um método quantitativista, agnóstico, etc, etc...”545. Uma segunda estratificação da socialidade é dada pelas mídias. “Os mass media são antagonistas desta primeira camada, não são feitos por professores ou pedagogos de profissão [...] mas acabam por ser pedagogos dos mass media”546. Construindo ídolos populares, divulgando aspectos da sua intimidade, ou mostrando situações em que os limites sociais são transgredidos, seja nos noticiários, seja nas novelas, seriados e filmes, a televisão e o cinema permitem um certo erotismo, uma marginalidade, uma liberação, funcionando como uma espécie de estupefaciente, ou de sonho vicário, que ajudam os trabalhadores a viverem neste mundo tecnológico monótono e burocrático. Na terceira camada, dos “sábios”, buscase construir “uma nova mitologia ou, pelo menos, uma visão do mundo novo que, singularmente, se assemelha as muito antigas visões do mundo”547, como por exemplo ao hermetismo do Renascimento e do fim da Antiguidade Clássica. Por darem-se conta da realidade mitológica, procuram estabelecer meios para melhor manipular o desenvolvimento das virtudes do homem. Esta camada, que tem Hermes como regente, encontra-se, no momento, na sombra, quase imperceptível, sendo formada por dissidentes culturais, que buscam desenvolver meios para a recuperação da função de mediação simbólica da imagem, para uma ressurgência equilibrada do mítico, sabendo, entretanto, que se trata de um ‘equilíbrio precário’, em meio à tensão de um ‘pluralismo de valores’ coexistindo num todo heterogêneo, numa espécie de tolerância geral a toda alteridade. É aqui que nos alinhamos. Vejamos agora a questão da evolução dos papéis culturais ao longo da nossa história recente em função do dinamismo mítico subjacente à realidade social. Na ambiência prometeica dos meados do

544 GUÉNON, R. Formes traditionnelles et cycles cosmiques. France, Gallimard, 1970, pp 130-131. 545 DURAND, G. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Op cit, p 32. 546 Idem, p 33. 547 Idem, p 33.


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século XIX e início do século XX, certos papéis passaram a ser muito valorizados: o inventor, que cria inovações e avanços para o bem-estar da sociedade, como nos casos da lâmpada, da máquina fotográfica, da máquina de filmar, do carro, do avião, da vacina; o professor primário, que ensina os princípios desta ideologia às crianças; o colono, que difunde estes princípios para lugares “atrasados”, “subdesenvolvidos”; o trabalhador, que produz os bens em grande escala, para que toda a sociedade possa ser beneficiada; o defensor da pátria, que defende os ideais, a produção e o bem-estar social conquistados. Por outro lado, havia os descontentes que, desempenhando papéis marginalizados, carregavam símbolos dionisíacos, compensadores da polarização sociocultural dominante: o artista “decadente”, visto como desregrado, subversivo e maldito, por denunciar o “mal-estar na sociedade” (valendo-nos da expressão de Freud); o anarquista, que se rebela contra a rigidez das regras e dos códigos sociais representados pelo Estado; o aristocrata, deslocado em meio ao crescente poder da burguesia; o místico, que não encontra eco para as suas crenças numa sociedade racionalista e materialista; a mulher emancipada, que serve como motivo de riso, por querer fazer coisas “contrárias à sua natureza”; o artesão e o pequeno comerciante, que não conseguem concorrer com os objetos produzidos em ritmo industrial e vendidos pelos grandes armazéns. Em meados do século XX, com o descontentamento frente as instituições, o desejo de uma vida mais autêntica e prazerosa, anseios representados pelos artistas, outsiders e undergraunds, pelos homossexuais de ambos os sexos, estes papéis, antes desvalorizados, passaram a ser “glamourizados” pelos mass media. Neste processo, o dionisíaco contestatório do período anterior, antes à sombra, tornou-se institucionalizado, burocrático e bem-comportado. Houve, portanto, uma mutação dos papéis prestigiados neste período, que corresponde ao nosso próprio tempo atual. Falamos aqui dos grandes detentores do poder nesta cultura de massa: o jornalista, que determina o acesso as media, e portanto, o que vai ser e o que não vai ser do conhecimento da massa; o publicitário, que enaltece a imagem do produto, da marca, ou até de uma pessoa, tornando-a desejável para consumo pela massa; o político e o sindicalista, que representam a massa, a qual depende deles para obter algum benefício; o empreendedor, os diversos ídolos dos esportes e das artes, que glorificados pelas media, são vistos como modelo de sucesso pela massa, que neles se espelham. Por outro lado, como papéis desvalorizados, temos uma gama de descontentes que “perderam o trem da história”, herdeiros do mito antecessor, de Prometeu. Estes deixaram de ter acesso a ordem social, encontrando-se excluídos da nova ordem: o trabalhador desempregado, substituído na frente de trabalho pela robótica e pela informática; o homem do campo e o interiorano, privados do alto nível de consumo dos grandes centros urbanos, dos shopping centers de 1o mundo; o imigrante, visto como um invasor, querendo apropriar-se de algo que não lhe pertence; a dona de casa, que por ‘não ter’ profissão, é vista como sem discurso e sem qualidade; o estudante, sem perspectiva para todo o seu investimento ao confrontar-se com a saturação do mercado de profissionais; os sem-teto e os sem-terra, desprovidos de qualquer valor compatível com a nova ordem, o que não significa que não carreguem valores e símbolos. Um outro papel desvalorizado é o do “sábio”, por estar “fechado num gueto epistemológico e que não se comunica com esta civilização das media, essa civilização da vulgarização, essa civilização da difusão brutal da informação”548. A sofisticação do seu conhecimento não pode ser compartilhada devido ao imediatismo, à banalização, à superficialização do ‘consumo’ do conhecimento na sociedade massificada. Desse modo, ele vai se tornando cada vez mais solitário. Neste âmbito estão: o artista erudito, por exemplo, o músico excepcional que tem um público diminuto capaz de apreciá-lo; o cientista de ponta, por exemplo, o físico que não pode compartilhar a sua por demais abstrata noção de espaço-tempo); o psicólogo das profundezas, que vê seu consultório esvaziar-se devido a explosão de outras ‘ofertas’ de cura mais rápidas e fáceis. Desse 548 DURAND, G. Mito e sociedade: a mitanálise ... Op cit, p 18.


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modo, determinados papéis sociais são prestigiados ou marginalizados, ou seja, são valorizados positiva ou negativamente, num jogo dinâmico de alternâncias de valores. Compreender este jogo de forças nos permite interpretar a organização de uma determinada sociedade de modo profundo, identificando ‘hiperrealisticamente’ a dinâmica dos conflitos entre os papéis sociais no cotidiano, dada pelos limites irredutíveis dos mitos subjacentes em conflito. Em suma, Prometeu representa os ideais de afirmação da diferença individual, que se traduz por uma imagem de si bem definida que perdura ao longo do tempo, de controle da natureza através da ciência e da tecnologia, da organização e burocratização das formas de vida. Contrapondo-se ao modelo prometeico, Dioniso representa os valores hedonistas ligados à corporeidade, ao contagio afetivo, ao partilhamento de ideias e sentimentos comuns, enquanto atitude própria do coletivismo. Com a ascensão de Dioniso na cultura, a teatralidade cotidiana passou à primazia das atenções, sendo que o importante para o indivíduo é parecer, mais do que o ser ou o ter, próprios dos ideais prometeicos. O corpo tornouse objeto de interação e mediação entre o eu e o mundo social. Mediação que se estabelece pelo que se aparenta ser, pelas imagens de si construídas tomando-se como modelos as personalidades do mundo artístico, político ou esportivo que aparecem cultuadas nas revistas de moda, cinema, novelas de televisão e publicidade. De modo a vermos por aí Guevaras, Lennons, Whinehouses, Stalones, Barbies etc. Com isto, a ambiência social vem mudando drasticamente desde meados do século XX. Embora a ordem positivista continue a dominar, passou a existir uma descrença geral no ideal prometeico de uma sociedade para o amanhã, o que acabou por transformar a concepção de tempo. As novas gerações passaram a cultivar o “presenteísmo”, na expressão de Maffesoli. O trabalho deixou de ser o grande caminho de realização pessoal. Trabalha-se para se manter na estrutura social, enquanto o objetivo maior é a busca pelo prazer no aqui e agora, o cultivo do corpo e do tempo livre, o estar-com e o fazer-junto, o que se traduz pelo número crescente de reuniões coletivas: passeatas públicas, festas, celebrações esportivas, redes sociais da internet. A forma de vida assim chamada pós-moderna se organiza, desse modo, em torno da partilha de imagens na teatralidade do cotidiano. Há nisto uma formidável positividade dada pelo potencial simbólico das imagens, que voltaram a ser culturalmente valorizadas após séculos de repressão das mesmas pelo racionalismo. Há nelas, dada a sua ligação com o self e a espontaneidade, o potencial de transposição do individualismo através da experiência imanente ao corpo, como conhecimento sensível, afetivo, emocional, para além do racionalismo prometeico. Contudo, não devemos nos enganar. O que vem acontecendo é o desperdício, o não aproveitamento desse potencial devido à banalização das imagens. A “oferta” de ídolos populares prontos para o consumo nas telas do cinema ou da televisão, nas transmissões esportivas, nos comícios políticos, nos talk-shows ou reportagens que divulgam circunstâncias de suas intimidades, possibilitam às assim chamadas “pessoas comuns” a experiência inacessível de modo geral a elas de “glamour”, erotismo, marginalidade, liberação dos costumes, funcionando como uma espécie de sonho vicário — lembremos do apolínico “mundo dos deuses olímpicos” retratado por Nietzsche — composto por imagens ideais em que se espelham para desempenhar seus papéis cotidianos num mundo tecnológico monótono e burocrático. Esvazia-se, desse modo, a potência da partilha estética da vida. Constatamos, infelizmente, um padrão cultural pautado por um dionisismo banalizado, na forma de um individualismo consumista e hedonista que se cega ao real. Retomando a tese de Guy Debord, o espetáculo midiático é um setor da sociedade que concentra todo o olhar e toda consciência de seus membros funcionando como instrumento de unificação da mesma. Não hesitamos em afirmar que tal unificação se dá em função do poder coercitivo da catarse em massa


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do público espectador, entenda-se aqui, do alívio de tensões afetivas — conforme a descrição aristotélica — promovida pelo espetáculo midiático. Contudo, tal unificação da sociedade é na verdade uma “pseudounificação”, a um só tempo, causa e efeito da separação generalizada dos indivíduos na sociedade. Na expressão de Debord, trata-se de uma “inversão concreta da vida, o movimento do autônomo nãovivo”.549 O antídoto desta inversão encontra-se no próprio movimento de emergência das imagens e da imaginação na cultura com a ascensão de Dioniso. Para tanto, é preciso recuperar o significado da arte trágica enquanto desdobramento do significado dos antigos rituais sagrados. Schelling, Hölderlin e Nietzsche, como vimos no capítulo 5.2.6., empenharam-se nesta tarefa. A invenção da arte trágica inova em relação ao mito colocando em questão, através do espetáculo teatral, “o enigma do mundo”. Trata-se da questão da contraditorialidade ontológica, constitutiva do ser humano, isto é, da sua divisão entre o indivíduo e o coletivo, a liberdade e a necessidade, a vontade e a representação, o dionisíaco e o apolíneo, o subjetivo e o objetivo etc. A tragédia grega, através de seus protagonistas, representa o indivíduo na posição de ter de tomar a decisão crucial de sua vida frente ao seu destino em meio às suas contradições, pressionado por uma coletividade ameaçada pelo caos eminente, clamante pela reinstauração da ordem social de acordo com a lei e a justiça dos deuses. A cena trágica propicia ao espectador a experiência pedagógica de intuir através do aniquilamento do herói o fundo real de seu ser, qual seja, o pathos da vida. A luta do herói pela afirmação de seu pathos, mesmo que fadada ao seu aniquilamento, representa a conquista da sua liberdade. Para Nietzsche, trata-se da “grande saúde” de viver afirmativamente a imanência da vida, apesar — ou para além — da dor e do sofrimento inerente a ela. O sacrifício do touro— que representava nos antigos rituais o próprio Dioniso — tinha este significado. Este sentido do trágico tornou-se praticamente impossível de ser compreendido pelo espectador “médio” no mundo contemporâneo devido à banalização da experiência cultural do que significa o “trágico”. No discurso midiático dos noticiários da televisão ou da internet, por exemplo, o uso do termo trágico encontra-se geralmente associado a eventos ligados à morte violenta, seja por cataclismos da natureza, acidentes de meios de transportes, crimes passionais, violência urbana, mortes coletivas por fome ou doença. O espectador assiste diariamente a espetáculos deste gênero, que acontecem nos lugares mais remotos do mundo, mas também na sua vizinhança. Dentre os assim denominados acontecimentos trágicos, as imagens cuja violência é inédita, original, de tal modo que fascinem o olhar, conquistando a disputada atenção da audiência televisiva, são retransmitidas a quase exaustão. Diante de tal espetáculo, o sujeito sente-se tocado por sentimentos de terror e piedade que o levam a voltar o olhar para si e confirmar narcisicamente a sua distância, a sua separação do outro sofredor. Em seu íntimo, secretamente, tende a culpabilizar as próprias vítimas pelos seus infortúnios, transformando-as em objetos de seu moralismo, da sua pena, do seu escárnio etc. Desse modo, o sentido do trágico é projetado no outro — que por destino foi atingido pelo infortúnio — e excluído do eu. A grande maioria da obras de ficção da industria cultural, entre filmes, novelas, seriados, com seu típico maniqueísmo que reserva a desgraça aos “bandidos” e a recompensa às “pessoas do bem”, nada mais faz do que retroalimentar este mecanismo. Apesar do sujeito, na comodidade de seu lar, sentir-se ameaçado, dá graças a Deus por não ter acontecido consigo, e prossegue a sua vida tentando de algum modo se proteger. Alivia assim, parcialmente, a sua tensão de viver em um mundo violento. 549 DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Op cit, p 13.


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A proposta teatral de Moreno inverte tal inversão. Considerando que o status nascendi dos conflitos trágicos encontra-se na realidade social profunda que os indivíduos trazem consigo em suas imagens internas, ao representá-las no palco psicodramático os atores se expressam a partir do locus onde os conflitos realmente se originam, qual seja, nas interações interpessoais concretas de suas vidas. A realidade social profunda de que nos fala Moreno corresponde aos processos da imaginação ligados aos mitos que, como acabamos de mostrar, continuam sendo instituintes da cultura na imanência das relações interpessoais. Apesar dos antigos rituais terem sido há muito tempo abandonados, longe de um passado morto, o mito não deixou de ser a estrutura que organiza inconscientemente a vida do homem. Temos falado de uma nova produção de subjetividade que se contrapõe ao padrão cultural dominante no mundo contemporâneo sustentado pela sociedade do espetáculo. Moreno procurou transpor tal cisão através da recondução da experiência teatral à experiência originária da relação com a Divindade vivenciada nos antigos rituais, anterior ao surgimento da divisão entre atores e espectadores com a tragédia grega e o espetáculo teatral. Estudemos agora como é possível a transposição da cisão cultural que perdura no mundo contemporâneo com a reintegração do sentido trágico pelo ator espontâneo-criador. Lembremos que a criação do Teatro da Espontaneidade se deu a partir da crítica de Moreno à divisão entre atores e espectadores a fim de restituir ao locus da representação dramática o status nascendi dos grandes conflitos coletivos presentes nas realidades sociais profundas, arquetípicas, que os indivíduos manifestam em suas imagens. O palco psicodramático foi assim concebido justamente para a abordagem do status nascendi dessas realidades sociais através do drama criado pelo grupo de atores a partir das suas imagens, retratando diretamente os seus conflitos. Vimos também que tanto o espetáculo teatral como a ação psicodramática têm como finalidade comum a katharsis do pathos da comunidade. Em ambos os casos, a catarse é obtida através da representação simbólica do pathos humano: no caso do espetáculo teatral, na forma de divindades e heróis míticos, ou de personagens da dramaturgia moderna; no caso da ação psicodramática, na forma de papéis criados pelo próprio ator a partir das suas imagens. O que muda é o modo da experiência subjetiva da relação do indivíduo com o Self-Cosmos-Deus enquanto matriz ontológica de seu self. O espetáculo teatral possibilita ao espectador através do drama encenado algum grau de identificação inconsciente com o pathos da personagem, e com isso obter o efeito catártico, isto é, o alívio momentâneo e provisório do seu pathos. Contudo, o significado do pathos lhe permanece externo, pois, a condição de espectador não lhe permite uma tomada de posição ativa diante do seu drama pessoal. Tudo acontece apenas ao nível solipsista do imaginário. Evita-se o confronto com a realidade, o que é muito problemático, pois o indivíduo fica vulnerável à manipulação de quem produz e veicula a espetacularização (da dramaturgia artística do teatro, do cinema ou das novelas, dos noticiários da televisão, das postagens na internet, das propagandas comerciais, dos comícios políticos). Com isso, o espectador tende a se identificar — para o bem ou para o mal — com as mais variadas ideologias em voga — do comunismo ao liberalismo, do anarquismo ao conservadorismo, do feminismo ao nacionalismo, do ambientalismo ao fundamentalismo — veiculadas pelas mídias. Daí o controle social do qual falamos nos capítulos anteriores. Na ação psicodramática, ao representar o seu próprio drama, deixando-se conduzir pelo seu pathos, o ator tem a oportunidade de desfazer ativamente o mecanismo da identificação que opera em sua pessoa, isto é, da imagem de si com a qual se encontra identificado, na medida em que reconhece a diferença entre tal imagem de si e o todo de seu self, recuperando a espontaneidade que vinha sendo inibida pela


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mesma. Em outras palavras, este ato de reconhecimento lhe permite desligar-se de tal imagem de si, de tal identificação. Em analogia com a tragédia, na qual o herói que se sacrifica para se reunir com o todo, no psicodrama o ator sacrifica a imagem de si com a qual encontrava-se imaginariamente identificado experimentando um novo grau de expansão, diferenciação e integração de seu self, associado ao sentimento de uma nova noção de identidade. Sobrevém ao ator neste momento, não só uma sensação de alívio dos afetos que o faziam sofrer, mas o entendimento intelectual do motivo pelo qual estes afetos o faziam sofrer, bem como, um novo sopro de liberdade. Trata-se, nos termos de Moreno, da catarse de integração possibilitada pela ação psicodramática, cujo efeito é a criação de uma nova noção de identidade, ligada à intuição da experiência unificada de si, da unidade essencial com o Self, do Deus-Eu. Enquanto o sentido do trágico na sociedade do espetáculo encontra-se transfigurado, banalizado, destituído da sua potência ontológica de transformação da vida, a serviço da manutenção do domínio das conservas culturais que garantem o exercício do poder de uns sobre outros, a nova subjetividade instituinte da revolução criadora corresponde justamente à compreensão do sentido do trágico como condição ontológica da existência, como possibilidade do homem ser de modo próprio, autêntico, livre, espontâneocriador, num movimento de permanente desvelamento da identidade como Deus-Eu. Portanto, em vez de reproduzirmos a exclusão do trágico no psicodrama, tratamos de integrá-lo em seu verdadeiro sentido. A diferença entre identidade e identificação nos auxilia a contrapor-nos à produção da subjetividade da sociedade do espetáculo, viabilizando assim a nova produção de subjetividade instituinte da revolução criadora. Para Moreno, como vimos, “identidade não deve ser confundida com identificação”550, pois enquanto a identidade encontra-se associada à vivência dada, originária, de não separação, de unidade com o outro e o mundo ligada ao self, “a identificação não é dada, mas o resultado de um esforço para ir mais além ou fora do que a pessoa é”551, ligada ao ego. Freud foi quem primeiro descreveu o processo de formação do ego através dos mecanismos de identificação que acontecem ao nível do inconsciente associados ao narcisismo. Na primeira etapa do desenvolvimento infantil, chamada de narcisismo primário, é formada a imagem do eu ideal; na segunda, de narcisismo secundário, é formada a imagem do ideal do eu.552 Ambas são imagens idealizadas de si, constituídas nos primeiros de vida, que regem o comportamento do indivíduo guiando suas escolhas ao longo de toda a sua vida. Segundo Moreno, os papéis sociais e os papéis da fantasia ou psicodramáticos são criados nas relações interpessoais, basicamente através do fenômeno da identificação. Esta diferença entre identidade e identificação reveste-se de importância fundamental na medida em que nos esclarece sobre o mecanismo pelo qual as pessoas tendem a culturalmente confundir a sua verdadeira identidade — ligada ao self, ao seu Eu em relação com Deus, ao Deus-Eu — com identificações — entendidas como representações sociais idealizadas pertencentes ao seu universo cultural ligadas narcisicamente ao ego, que espelham imagens antropomórficas da Divindade — correspondentes às imagens do eu ideal e do ideal do eu. Falamos assim da produção da nova subjetividade instituinte da revolução criadora através da reconstrução da identidade das pessoas através da afirmação da diferença constitutiva de seu self, da sua singularidade existencial, enquanto a sua possibilidade de ser mais própria, autêntica e espontânea. Trata-

550 MORENO, J. L. Psicodrama. Op cit, 112. 551 Idem, p 114. 552 FREUD, S. Sobre o narcisismo – Uma introdução. Edição Standard Brasileira. vol. XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1996.


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se de um processo, ao mesmo tempo, de desconstrução crítica da autoimagem narcísica que as pessoas tendem a culturalmente tomar para si como identidade, confundindo identificação com identidade, e de construção ativa da autoimagem através do permanente movimento de expansão, integração e diferenciação de seu self. De outro modo, falamos dessa nova subjetividade como a subjetividade do ator espontâneocriador, empregando o termo ator em seu significado teatral, como aquele que joga (play) um determinado papel, no drama encenado, sem se confundir com o mesmo. Neste sentido, definimos ator espontâneocriador como aquele que constrói ativamente a sua autoimagem — seja na cena psicodramática, como na teatralidade do cotidiano — através do permanente exercício de jogar seus papéis sem se identificar com as representações através das quais se expressa, ao ponto de confundir a sua verdadeira identidade com as mesmas.

6.6. O Deus-Eu e o drama cósmico De acordo com a concepção de Moreno do homem como ser cósmico, uma outra definição de DeusEu seria a de estrutura relacional que interliga a identidade singular de cada ser humano à multiplicidade de representações míticas que compõem o drama cósmico. Compreendemos assim que nos é dado participar como atores do drama cósmico que vem sendo encenado pelo homem desde a sua origem, tenhamos ou não tomado consciência deste fato. Cabe, pois, a cada um de nós, como atores, perguntar-nos: como estou atuando no drama cósmico? Encontro-me inconscientemente identificado — o mesmo que dizer, confundido — com esta ou aquela representação da Divindade? Ou, então, investido na busca pelo sentido da minha verdadeira identidade, da minha singularidade existencial, do meu Deus-Eu, através do duplo movimento de assimilação e diferenciação destas representações? Evidentemente, construiremos as nossas identidades como atores espontâneo-criadores no momento em que autonomamente nos guiarmos pela segunda alternativa. A esta altura, tentemos aprofundar um pouco mais a análise daquilo que na modernidade funciona como obstáculo cultural à construção da identidade como ator espontâneo-criador, restringindo a nossa atuação no drama cósmico à mera representação, inconsciente, de imagens míticas epocalmente determinadas. Reconhecemos este obstáculo naquilo que Moreno denomina como “disfarce do homem como Deus”. O que corresponde ao rompimento do homem moderno com a religiosidade do mundo antigo. Vimos que o homem grego temia a desmedida — a hybris — , isto é, a “ser tomado” por uma divindade ao ponto de “se tomar” por ela. Este é justamente o significado do lema “conhece-te a ti mesmo”: não se confunda com nenhuma divindade. Este temor foi praticamente dizimado pelo homem moderno. O que o leva a se confundir com as representações da divindade. Contrariamente a esta visão de mundo, começou-se a pensar, à época do iluminismo, que a divindade seria atributo do próprio homem. Mas tal ideia só ganhou forma acabada mais recentemente, em meados do século XIX, com a tese de Feuerbach. Negando a existência de Deus, Feuerbach propõe uma inversão da relação criador-criatura: ao invés do homem ter sido criado à semelhança da imagem de Deus, Deus passou a ser pensado como projeção da imagem humana. Dito de outro modo, a Divindade, como atributo próprio do homem, é projetada na forma de imagens antropomórficas, num processo que se dá exclusivamente na imanência do real social humano, uma vez que a transcendência da Divindade é negada. Assim, no contexto cultural da


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modernidade, tentando se desvencilhar da ideia de um Deus que do alto da sua posição de transcendência interfere arbitrariamente em seu destino, cerceando a sua liberdade, o homem passou a arrogar-se como um Homem-Deus, regente absoluto da vida, dessacralizando as suas ações, numa atitude, em grande parte, irresponsável. Tentando romper definitivamente com os sistemas mítico-religiosos, o homem na modernidade passou a negar a existência de Deus, reduzindo a Divindade à condição de atributo próprio do homem, confundindo-se assim com Deus. Compreendemos aqui que esta é a matriz do narcisismo individualista que molda a noção de identidade do homem atual. Sob o mecanismo da aludida cisão cultural, as pessoas tendem a se fixar narcisicamente a uma determinada noção parcial da sua identidade, tomando como modelos as personalidades cultuadas na sociedade do espetáculo que fulguram nas imagens midiáticas como representações da Divindade. Confundem o seu verdadeiro Eu em relação com Deus, o seu Deus- Eu, com as representações sociais com as quais se identificam, perdendo com isto a relação originária com a totalidade de seu ser, a ligação espontâneo-criadora com as outras pessoas e com o mundo a partir da qual são constituídas. Devido a isto, o homem se encontra em estado de alienação da sua potência espontâneocriadora, dissociado de modo narcísico-individualista dos outros e do mundo, sob o efeito das conservas culturais que produziu. Moreno nos mostra, alternativamente, que no momento em que o homem é espontâneo, não representa Deus, é Deus. Expliquemos melhor. O conceito de Deus-Eu possibilita reconhecer a identidade entre as pessoas, o mundo e Deus como um comum-pertencer na abertura ao momento. Dizer, neste sentido, sobre a possibilidade de se reconhecer como sendo Deus, não nega a alteridade de Deus, a diferença ontológica entre o homem e Deus. Pelo contrário, afirma a identidade da pessoa como a diferença constitutiva de seu self particular, a sua singularidade existencial, concreta, real, a sua possibilidade de ser mais autêntica e espontânea. Valendo-nos da terminologia do filósofo Paul Ricoeur, falamos aqui da diferença entre identidade-idem, uma noção de identidade talhada pela ideia de um manter-se idêntico a si mesmo através do tempo; e identidade-ipse, uma noção de identidade singular talhada pela reflexão e alteridade.553 Sendo espontâneo, o homem é Deus no sentido de uma identidade-ipse, isto é, que reflete a presença de Deus ao mesmo tempo em que conserva a Sua alteridade como o Outro da relação. Neste sentido, a identidade como Deus-Eu é o permanente processo de tornar-se o que não é Deus refletindo Deus, cocriando com Deus — enquanto o Outro da relação — uma identidade relacional. Para tanto, faz-se necessário recusar a identificação com toda e qualquer representação culturalmente atribuída a sua pessoa na cotidianidade de seu ser no mundo. Dito de outro modo, é preciso evitar toda e qualquer identidadeidem, mantendo-se aberto à reflexão e à alteridade. Só assim é possível se diferenciar sendo si mesmo, em um processo de construção da identidade como desvelamento da sua singularidade existencial, isto é, da sua possibilidade de ser mais própria, autêntica, livre, espontâneo-criadora. O homem é Deus na medida em que afirma a sua identidade reflexiva com Deus, sem se identificar narcisicamente com Deus, sem destituir a alteridade de Deus, o que lhe possibilita ser na sua singularidade existencial como pessoa. De modo que o conceito de Deus-Eu possibilita transpor o abismo filosófico da separação entre o homem e Deus, religando o homem a Deus. Realiza esta operação sem destituir a objetividade do Deus-Ele, ou negar a subjetividade do Deus-Tu encarnada em Jesus Cristo. Pelo contrário, inscreve-se destinalmente na continuidade da tradição judaico-cristã, na medida em que esta é a matriz do processo de secularização da cultura ocidental, com vimos em capítulo anterior, seguindo a argumentação de Giani Vattimo. Vejamos 553 RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. São Paulo, Papirus Editora, 1991.


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agora como podemos compreender o Deus-Eu, neste sentido, como destino do processo de evolução do homem ao longo da história. Vattimo nos fala que o processo de secularização da cultura ocidental, como uma “história da revelação judaico-cristã”, é caracterizado pela gradativa dissolução da violência ligada à metafísica clássica. Proponho repensarmos agora esse mesmo processo em termos de dessacralização da cultura, colocando em foco a separação do mito da sua ligação com o sagrado operada pela tragédia grega. Cabe ressaltar que o nosso uso do termo dessacralização coincide exatamente com o significado do termo secularização (aliás, o que ocorre de praxe na literatura filosófica). Neste sentido, dizemos que a tragédia foi um agente dessacralizador da cultura ocidental. Sabemos que esta foi formada pela confluência de duas grandes tradições culturais, a grega e a judaico-cristã, através do entrelaçamento de diferentes princípios de dessacralização. Da tradição grega herdamos o princípio da razão filosófica e o princípio da arte trágica. Da judaico- cristã, o princípio da revelação de Deus. Pode parecer a primeira vista contraditório afirmar que a revelação de Deus opera como princípio de dessacralização da cultura. Mas, como trataremos de mostrar adiante, esta é uma outra tese central do pensamento de Girard de que nos valemos como auxiliar da nossa argumentação. De Schelling aproveitamos a tese de que “os deuses do politeísmo sucessivo, quando aparecem, são momentos, faces do Deus”554, e neste sentido, “o paganismo é tão prototípico do cristianismo quanto o judaísmo”.555 Compreendemos assim a história do ser do homem no mundo, de modo amplo, como o processo da revelação de Deus, como o drama cósmico que principia com a sacralização da cultura e se desenvolve através da sua dessacralização. O esclarecimento do sentido deste processo nos aponta para a possibilidade de vivermos hoje a religiosidade do Deus-Eu como uma religiosidade dessacralizada, isto é, que transcende a violência do sagrado primitivo. No que diz respeito a tradição cultural grega, o advento da filosofia foi uma das vertentes deste processo. Buscando explicações da ordem cósmica utilizando a razão, os primeiros filósofos deixavam de recorrer aos mitos que desde os tempos primordiais ligavam a ordem cósmica à dimensão do sagrado. Podemos dizer que neste processo os mitos foram “racionalizados” e, dessa maneira, “dessacralizados” pela filosofia. Neste sentido, os deuses olímpicos, como formas ideais de beleza e perfeição, serviram como protótipos à noção platônica de ideia metafísica. A outra vertente dessacralizadora da tradição grega foi a tragédia. Se, por um lado, a sua poética conservou o destino do indivíduo humano vinculado a sanções divinas e, desse modo, ao sagrado; por outro, a espetacularização e estetização da representação dramática desvinculou-a do modo de proceder do ritual sagrado, viabilizando a abertura para a sua futura desvinculação completa com a “racionalização” da noção de destino humano. O que aconteceu efetivamente apenas na época do Renascimento com o teatro de Shakespeare. Cumpre-se ressaltar que antes disso, durante o longo período medieval no qual a tragédia foi renegada, as práticas representacionais foram convertidas, e ficaram restritas a um padrão definido pela presença do corpo de Cristo em cena. Por exemplo, quando a Hóstia era oferecida aos olhos do público em um cortejo como símbolo sustentador da autoridade da Igreja.556 No teatro de Shakespeare, como nos mostra 554 COURTINE, J-F. A tragédia e o tempo da história. Op cit, p 232. 555 Idem, p 240. 556 KOBIALKA, M. Práticas representacionais na Idade Média. In: CARVALHO, S. (Org.). O teatro e a cidade. São Paulo, SMC, 2004, pp 45-60.


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Gerd Bornheim, tomando como referência as antigas peças gregas, “existe uma realeza, mas não existem deuses por detrás. O poder não tem fundamento divino. A única personagem que acredita na justiça divina é Ricardo II e ele morre no exílio exatamente por isso”.557 A desvinculação da noção de destino humano da ideia de justiça divina, operada por Shakespeare na arte teatral, de fato não foi criação sua, mas reflexo do espírito do Renascimento, em oposição à religiosidade medieval. Todavia, apesar desta desvinculação ter se perpetuado daí em diante, a dramaturgia moderna não deixou de retratar — essencialmente — situações cuja temática nuclear é o destino humano e a sua justiça (ou injustiça). Isto se explica pelo fato de que a matéria-prima da dramaturgia continuou, e vai continuar sendo o mito. Trata-se sempre de um retorno ou repetição da origem da representação dramática, como temos sustentado, o assassinato coletivo de uma vítima arbitrária, e por isso mesmo, inocente, identificada como culpada — como um bode expiatório na função de pharmakós —, e que deve ser expulsa da comunidade para a salvação da mesma. Esta é a justiça divina que se encontra intrinsecamente ligada a toda e qualquer representação dramática, não só no ritual primitivo e na tragédia grega, mas também na dramaturgia moderna. Édipo, o mais conhecido herói trágico, culpabilizado pela Justiça — Diké — do deus Apolo, representa o protótipo desta função de pharmakós desempenhada pelo indivíduo humano no drama cósmico. O Teatro — o espetáculo de modo geral — é assim o lugar arquetípico no qual é encenada a Justiça. E isto, a despeito da sua dessacralização, isto é, mesmo que a noção de justiça presente na dramaturgia moderna não seja atribuída à vontade de uma divindade, mas a outros fatores como “o inconsciente”, “o jogo do determinismo social”, ou “o acaso”. Neste sentido, a nossa sociedade atual, do mesmo modo como sempre aconteceu em todas as sociedades desde a origem da humanidade, permanece sendo regida pelo mito, precisando identificar heróis e vítimas, salvadores e culpados. Permanece, em outras palavras, a serviço da ação mistificadora do mito, encobridora da violência coletiva que se exerce arbitrariamente contra um sujeito isolado a serviço da homeostase do grupo ou da sociedade. E isso, não só nas cenas ficcionais dos espetáculos teatrais, do cinema ou da televisão, mas nas cenas reais do nosso cotidiano, na teatralidade das nossas vidas. De que outra maneira explicaríamos a arbitrariedade do que ocorreu em Auschwitz? É aqui que se revela a importância essencial da mensagem que vem da outra tradição cultural do Ocidente, a tradição judaico-cristã. Em seu livro “Coisas ocultas desde a fundação do mundo”, Girard demonstra que foi iniciado no interior da história do povo judaico, um gradativo processo de desmitologização que alcançou a sua completa realização na figura de Jesus Cristo, e que vem se universalizando desde então com a história da cristandade. A essência deste processo pode ser enunciada em uma palavra: a kenosis de Deus, o “esvaziar-se de si mesmo” por parte de Deus, que se exprime ao longo de várias passagens do texto bíblico, e de modo pleno e definitivo na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Trata-se da mensagem de Deus em seu significado essencial: a livre escolha pelo ato de despojar-se de todo e qualquer modo de afirmação de si mesmo que se faz à custa do outro, através da violência sobre o outro. A afirmação de si mesmo como ato livre se faz, antes, servindo ao outro: o ato de amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Vejamos então de que maneira o judaísmo é prototípico do cristianismo. A teoria de Girard nos possibilita compreender — não teológica, mas antropologicamente — de que maneira o sacrifício de Jesus 557 BORNHEIM, G. A teatralidade da origem. In: CARVALHO, S. (Org.). O teatro e a cidade. Op cit, p 19.


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Cristo esclarece o verdadeiro sentido da revelação de Deus: o acabamento do processo de desmitologização do mecanismo vitimário. Deus revela a Sua justiça, o caminho para o homem tornar-se verdadeiramente justo, denunciando a opressão e a injustiça do mecanismo vitimário que desde a fundação do mundo garantiu a manutenção da ordem social através da crença no mito. A revelação cristã nos mostra que a observância da Lei não deve ser tomada de modo legalista como um fim em si mesma, pois, do contrário, o homem corre o risco de fazer dela um ídolo que, como tantos outros, o impele a fazer julgamentos arbitrários e a vitimizar o próximo como um bode expiatório. Com a decisão que o levou ao seu derradeiro ato, Jesus nos ensina que só a fé na Pessoa de Deus, no Pai, nos torna verdadeiramente justos, impedindo que caiamos nos mecanismos do mimetismo, da rivalidade e da violência. Compreendemos assim o sacrifício de Jesus Cristo como o sacrifício derradeiro, que põe término à longa série de assassinatos coletivos iniciada no tempo primordial. Derradeiro pelo fato de desvendar a “ilusão” da lógica vitimária ligada à unanimidade mimética em torno da culpabilidade da vítima, ao desconhecimento da arbitrariedade da justiça assim estabelecida. Neste sentido, o sacrifício de Cristo assimila e transcende o sacrifício de todas as divindades e heróis mitológicos. Os deuses do politeísmo, como vimos, cada qual em seu lugar e época de origem, são momentos, faces do verdadeiro Deus, modos parciais ou relativos do Absoluto. Não nos esqueçamos que por trás de cada divindade há homens e mulheres reais que originalmente expressaram, em seus modos de ser, esta ou aquela potência de Deus, como “encarnações” parciais do processo de revelação Deus. Encarnando a pessoa do Filho, Jesus não expressou esta ou aquela potência de Deus mas o revelou em absoluto como a pessoa do Pai. Concordamos, pois, com a tese de Schelling de que “o paganismo é tão prototípico do cristianismo quanto o judaísmo”. O processo de revelação de Deus como um todo — que se encontra, ressaltemos mais uma vez, ainda em andamento nos dias de hoje —, corresponde à kenosis de Deus, ao “esvaziar-se de si mesmo” por parte de Deus na passagem ao ato de torna-se homem, pessoa, subjetividade. A encarnação de Jesus Cristo revelou a kenosis de Deus em sua magnitude, de modo pleno e definitivo, assimilando e transcendendo os momentos parciais relativos aos deuses do politeísmo. Tornou-se assim o protótipo da expressão de Deus em seu significado essencial, qual seja, da livre decisão por um modo de afirmação de si que se despoja de toda e qualquer forma de violência sobre o outro, inclusive daquelas mais sutis e politizadas sob a fachada das boas intenções, que se faz assim à custa do outro, do prejuízo do outro. Com o modelo de Jesus Cristo, passa-se a optar por servir ao outro através da solidariedade e da cooperação, em uma palavra, através do amor. Em nossa especulação acerca dos possíveis motivos que teriam mantido a dimensão do DeusEu inconsciente chegamos à hipótese de que a estrutura de poder baseada na dominação de uns sobre outros tem prevalecido, desde as sociedades primitivas até a nossa modernas sociedade tecnológica, justamente devido ao processo de repressão política da expressão espontânea do Deus- Eu. Na atualidade, a forma principal de opressão política é o aprisionamento da subjetividade no âmbito do mimetismo de representações sociais estereotipadas pautadas pelas mídias, características da cultura de massa, que mantém as pessoas atreladas narcisicamente a falsas noções de identidade. Moreno não compreendia o homem como necessariamente fechado em seu narcisismo, sem poder transcendê-lo, contrariamente ao que se postulava na época em Viena, sobretudo pelo círculo freudiano da psicanálise. Para ele, o ato espontâneo-criador não acontece como mero exercício narcísico de um indivíduo limitado a imitar a aparência daquilo que vê, mas, como algo que se dá no momento do encontro entre pessoas, sendo, necessariamente, ato de cocriação. Só pode ocorrer por intermédio do amor, da participação íntima, da interação afetiva e sensível entre indivíduos unidos pela responsabilidade que têm em comum, um para


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com o outro e para com o universo. Neste sentido, Moreno opôs-se ao sentimento de onipotência ligado ao culto do ego, ao individualismo narcisista que, como vimos no primeiro capítulo, vinha se intensificando cada vez mais nos meios sociais da sua época em Viena, associados à ideia de Homem-Deus. Podemos assim dizer, em termos morenianos, que a kenosis de Deus se completa na história da humanidade através da encarnação de Deus na forma de grupo, de comunidade. Para que isto se torne realidade, faz-se necessário que as pessoas sacrifiquem o individualismo narcisista que as aprisionam. A cena psicodramática, compreendida como expressão epocal do drama cósmico, torna- se um locus privilegiado para kenosis de Deus na medida em que possibilita aos atores uma percepção ampliada da realidade através da abertura à realidade suplementar, o que lhes permite, a um só tempo, desconstruir as falsas autoimagens individualistas e narcísicas que tendem a adotar, e reconstruir suas relações de modo mais livre, verdadeiro e justo. Neste sentido, trata-se de um processo, a um só tempo, de singularização dos indivíduos e integração social. Falamos de singularização como o processo através do qual um indivíduo se apropria da diferença constitutiva de seu self, através da busca pelo seu projeto de vida mais autêntico, tornandose a pessoa que verdadeiramente é. Com o termo integração social falamos do processo de formação de uma coletividade amorosa, composta por uma multiplicidade de indivíduos singularizados — autônomos, livres, ativos, sujeitos de suas ações —, e por isso, capacitados a interagir de modo responsável através de relações de solidariedade e cooperação. O que implica numa efetiva democratização das sociedades. O modo de expressão do Deus-Eu, sem perder de vista o desenvolvimento do homem como indivíduo através da expansão, diferenciação e integração de seu self, volta-se assim para a dimensão do coletivo, para os encontros na vida em comunidade. Não é possível ser espontâneo- criador sozinho. Só é possível sê-lo na interação cocriadora com o outro. A impossibilidade do encontro entre as pessoas denuncia seus aprisionamentos narcísicos. Podemos dizer assim que o Deus-Eu corresponde à encarnação de Deus como coletividade amorosa composta por indivíduos singularizados, organizados em redes de relações de solidariedade e cooperação. Acreditamos que é chegado o momento da espontaneidade ser plenamente apropriada como uma categoria revolucionária que estabelece a igualdade dos homens como atores espontâneo- criadores e a liberdade do encontro como cocriadores, e não uma categoria reacionária, simplesmente por afirmar a existência de Deus, como é de praxe nos dias de hoje taxar toda e qualquer filosofia que ouse fazê-lo. O Deus-Eu representa a ideia da igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens. A busca pelo DeusEu significa a busca de uma identidade profunda, diferenciada, singularizada, na abertura ao encontro com Deus através da interação com cada coisa do mundo e com cada pessoa. Significa a disposição, a vontade de uma ação pautada pelo amor e pela ética nas relações, pela busca da verdade ao mesmo tempo subjetiva e objetiva como denominador comum que nos congrega e nos une. Para concluir, falamos de uma nova produção de subjetividade através da construção de uma nova relação da coletividade com o mito — enquanto arquétipo de todas as conservas culturais —, invertendo a inversão de valores da sociedade contemporânea, que tem a sua origem mais remota na própria gênese da cultura humana. Para tanto, é preciso desconstruir o mecanismo pelo qual o mito encobre a violência do coletivo contra o indivíduo, e a cena do Psicodrama pode se prestar justamente a esta tarefa. Só é possível a um indivíduo ser espontâneo sendo autônomo e livre. Neste sentido, o mito como instrumento de coação através da imputação de culpabilidade sobre o indivíduo, quando este é na verdade inocente, precisa


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ser desconstruído para que a expressão da espontaneidade possa fluir plenamente. É preciso proceder a uma desmitização, isto é, a uma despotencialização do poder de coação do mito sobre as pessoas. É preciso desconstruir a violência das ações humanas que o mito trata de encobrir. Só assim poderemos religar o homem — não a representações antropomórficas da divindade, de tal ou qual mitologia, nem à noção de Homem- Deus, a uma suposta onipotência do homem como senhor de seu destino — mas à verdadeira experiência subjetiva de Deus através da diferenciação de seu self como pessoa autônoma, livre, espontânea e criadora. Trata-se, enfim, de uma desmitização da atitude egoica do homem moderno que completa o processo de dessacralização da cultura. Neste sentido, pensamos o locus do Psicodrama como espaço aberto para o reconhecimento de possibilidades que nos permitam transpor as representações imaginárias de tudo aquilo que entre medos, culpas, apegos, incertezas, inseguranças, impede a nossa espontânea autointegração como humanidade; como espaço de produção de representações simbólicas que, se contrapondo aos processos de massificação cultural, ao regime de massificação das imagens estabelecido pelas mídias, sirvam como alternativa e antídoto à ideologia hedonista e niilista que domina o discurso na sociedade contemporânea; como espaço propiciador de experiências de abertura ao outro, aprendizado recíproco e criação conjunta, gerador de uma multiplicidade de modos éticos de vida engajada na afirmação da grande vida neste pequeno planeta chamado Terra; como espaço de construção de uma nova organização social não mais fundada na disputa pelo poder e na dominação de uns sobre outros; como espaço da nova religiosidade que nos permitirá “reencontrar uma posição para o homem no universo” como coletividade, princípio e o fim da revolução criadora.

6.7. A ética do encontro como projeto político Compreende-se pelo que acabamos de apresentar que a crítica de Moreno da sociedade contemporânea possui valor ontológico. A inversão de valores de que falamos corresponde à sobreposição do valor ideológico das conservas culturais sobre o valor ontológico da espontaneidade. A reversão deste quadro é possível na medida em que os processos espontâneo- criadores adquiram o mais alto valor, sobrepondo-se às conservas culturais. Estas deixam de funcionar como fatores de inibição da espontaneidade, passando a servir como apoios à expressão espontânea do homem no ato criador, melhor dizendo, cocriador. No plano individual, ao invés da pessoa permanecer identificada a uma noção fixa, estereotipada, de si mesma, ela se torna capaz de assumir o processo de uma permanente diferenciação e singularização da sua identidade, na medida da expansão do seu self. Assume a posição de ator espontâneo-criador no drama cósmico. No plano social, as relações interpessoais passam a ocorrer numa socialidade pautada pela ética do encontro e pelos processos de cocriação. Nesta perspectiva, a revolução criadora resiste a ser reduzida a projeto utópico, a mera ilusão, inviável na concretude da vida real. Muito pelo contrário. Conforme nos empenhamos em demonstrar, é ontologicamente possível. É de importância fundamental que isto seja dito, estudado e compreendido, para que este projeto não seja imediatamente desqualificado pelos discursos pseudocientíficos ou ideológicos a serviço do establishment. A revolução criadora pode de fato acontecer concretamente se forem produzidas as circunstâncias propiciadoras para que as pessoas possam descobrir e se apropriar,


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individual e coletivamente, da sua potência espontâneo-criadora. Sim, é possível o mundo mudar na medida em que uma parcela cada vez maior de pessoas tornar-se capaz, através de encontros espontâneocriadores, de se contrapor à ordem dominante. Mudando a nós mesmos, no aqui e agora dos nossos encontros com o aprendizado da espontaneidade. Tomando, cada um para si, a responsabilidade não só pela própria sobrevivência individual, mas pela vida em comum, plena de sentido. Quem dera possamos agir, como nos ensina São Paulo, sem a medida da lei, ou melhor, sem outro imperativo a não ser o amor, que supera toda lei. Quem dera possamos renunciar a pretensão de determinar a verdade, de dominá-la através da razão, para nos abrir a compreensão amorosa, religiosa da nossa existência, criando modos de ação éticos engendrados pelo prazer do encontro e pela alegria recíproca. Então, o que hoje parece se tratar de mera utopia poderá efetivamente se realizar. O homem assumirá coletivamente a responsabilidade pelo movimento perpétuo de recriação do mundo no sentido da afirmação da vida através do amor em seus encontros. Cabe a cada um de nós tomar a decisão de tornar este sonho realidade. Em seu livro “Psicoterapia de grupo e Psicodrama”, Moreno introduz o conceito de socionomia, definindo-o como a ciência das leis sociais.558 Utiliza o termo para designar o conceito mais geral do que denomina sistema sociométrico, que inclui três ramos: a sociodinâmica, a sociometria e a sociatria. Não estamos, contudo, neste ponto da nossa articulação, interessados pelo significado do termo socionomia enquanto termo geral empregado para nomear o sistema teórico de Moreno, mas sim, de mostrar de que maneira este termo nos auxilia no esclarecimento da questão da ética na teoria do psicodrama. Etimologicamente, o sufixo grego nomos da palavra socionomia significa norma, lei. Então, por socionomia, podemos entender a normatividade das relações entre os indivíduos em uma coletividade ou sociedade. Neste sentido, a ética do psicodrama nos mostra que a liberdade ou autonomia de um indivíduo, isto é, a normatividade que um indivíduo autodetermina para si nas suas ações, não pode ser separada da noção de socionomia. E ainda, não pode também ser separada da noção de teonomia ou cosmonomia. Podemos dizer, portanto, que autonomia, socionomia e teonomia ou cosmonomia são noções intrinsecamente relacionadas entre si. Assim, a expansão do self e o aumento do grau de espontaneidade e liberdade de um indivíduo acontecem na medida em que o mesmo se diferencia em seu modo de agir no sentido de uma cada vez maior adequação às leis sociais, da natureza do Cosmos, e de Deus. Falamos aqui de uma ética do encontro, na qual o indivíduo só é verdadeiramente livre no momento do encontro com o seu próximo, abraçando livremente a vontade de Deus. Todavia, antes que pareçamos por demais ingênuos, resta-nos ainda responder a uma questão crucial. Poderá a revolução criadora de fato acontecer a despeito do poder político exercido pelas instâncias governamentais? Parece existir um consenso da parte dos governantes de todos os países de um mundo globalizado, para além das diferenças partidárias, que é preciso promover o bem estar social e a democracia saneando as graves problemas sociais que ainda subsistem, tais como a fome e a extrema pobreza. Basta acompanhar qualquer campanha eleitoral pelas mídias para constatar que os candidatos a governantes se empenham em apresentar propostas neste intuito. A ideia dominante é a de que podemos alcançar o estado de bem-estar social através da correta administração dos recursos financeiros e tecnológicos necessários para tanto. Convém aqui nos perguntar: isto não seria confundir o tratamento dos sintomas com o tratamento das causas? Pensamos ser incontestável a urgência de acabar com a fome no mundo, entre tantas outras coisas igualmente urgentes como garantir educação e saúde de qualidade a todos. Mas, nada mudará enquanto não houver o rompimento do círculo vicioso de degradação do ser humano inerente ao modo de produção vigente. A tendência é a de que os governantes permaneçam aliados da oligarquia que


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detém o poder econômico, interessada em manter este modo de produção tendo em vista a pura e simples manutenção de seu próprio poder. Isto é, não interessada em dispor dos recursos necessários para eliminar as enormes desigualdades sociais, a devastação do meio ambiente e as guerras. Pelo que tudo indica, continuaremos assistindo ao crescente agravamento deste mesmo espetáculo, coerentemente com a lógica dominante: a eterna disputa por interesses particulares de corporações, classes e indivíduos — camuflados pelas promessas de mudança de sempre — reciclada a cada nova eleição. Que fique claro. A nossa crítica ao modo de produção vigente não deve recair sobre o capitalismo. Estamos longe de querer reeditar os ideais marxistas. Diferentemente de Marx, compreendemos que a causa do nosso descaminho está na inibição da potência espontâneo-criadora do homem pelas conservas culturais, e não no controle do capital exercido pela burguesia que acaba por subjugar o proletariado. Mesmo porque, entendemos que aquilo que Marx denomina como luta de classes não possui fundamento ontológico. Da nossa perspectiva ontológica, a efetiva reversão deste panorama só acontecerá quando a própria sociedade civil como um todo, sem divisões de classes, constituir-se politicamente como agente transformador, rompendo com o circulo vicioso que mantém este estado de coisas. A revolução criadora acontecerá como uma ação conjunta constituída como uma rede de relações sociais engendrada espontaneamente pela ética dos encontros. Uma ação verdadeiramente democrática na sociedade como um todo. A grave degradação das condições da vida no mundo atual serve como alerta para nos darmos conta da urgência dessa tarefa. Não se trata, porém, como se fosse pouco, apenas de uma questão de sobrevivência. Trata-se de uma questão de afirmação da vida na plenitude da sua potência. Reverter este processo não nos servirá para simplesmente continuar sobrevivendo, mas para viver cada vez melhor, com a alegria de tudo o que significa vida. Com este estudo procuramos reunir argumentos a fim de transpor a resistência ao caráter religioso do projeto de Moreno. No que diz respeito à objeção quanto ao anacronismo da religião na atualidade, entendemos que esta se dissipa com o que acabamos de expor, pelo menos no que se refere aos obstáculos racionais erguidos contra a sua aceitação. Há também de se considerar que argumentos racionais não são o suficiente para se crer na religião. É preciso algo mais: ter fé. Contudo, por vezes, a fé é impossibilitada justamente pelos obstáculos racionais que expomos. Neste caso, acredito contribuir para viabilizar a abertura à fé daqueles que se encontram confusos em função desses obstáculos. A revolução criadora começa com a ação pessoal de cada um de nós, e se expande através de nossos encontros. Tenhamos fé que em algum tempo prevalecerá!


PARTE 7

A TEORIA NA PRÁTICA

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7.1. A aplicabilidade da teoria do psicodrama Nesta última parte, procuramos exemplificar como colocar em prática a teoria do psicodrama que acabamos de expor. Ela pode ser aplicada em grupos formados em diferentes âmbitos sociais, com diferentes objetivos. Exemplos: um grupo formado por alunos de uma mesma escola para tratar da questão do bullying entre eles, um grupo formado por funcionários de uma empresa para tratar da questão da cooperação no ambiente de trabalho, um grupo terapêutico com pacientes de um hospital-dia, ou um grupo aberto em uma praça pública para tratar de um tema emergente, como o desemprego ou a violência urbana. Além disso, a ação psicodramática pode ser conduzida a partir de diferentes perspectivas: educacional, terapêutica, ética, política, lúdica etc. Entendemos que seja qual for o grupo e o objetivo a ser tratado, haverá sempre uma gama de perspectivas pelas quais se é possível compreender e interpretar a ação psicodramática, cabendo não só ao diretor, mas ao grupo, escolher a ênfase a ser dada na condução da ação, a partir de uma ou mais perspectivas, dependendo da situação. Escolhemos abordar aqui uma situação no âmbito da clínica psicoterapêutica. Trata-se do acompanhamento conjuntamente psiquiátrico e psicoterapêutico de um paciente diagnosticado com transtorno bipolar do humor. A abordagem deste caso clínico permitirá aprofundarmos na questão da possibilidade de transformação do indivíduo no sentido do seu desenvolvimento existencial como ator espontâneo-criador, da ampliação da sua capacidade de se relacionar interpessoalmente através da ética do encontro, da integração da sua identidade. Permitirá também abordar duas importantes questões: do tratamento psicoterápico através do psicodrama bipessoal; e da relação e possíveis interações entre o tratamento psiquiátrico e psicoterápico. Assistimos na atualidade um aumento significativo de pessoas acometidas por transtornos mentais, principalmente por ansiedade e por depressão, considerada a doença do século. Este aumento pode ser interpretado como um sintoma da crise de identidade do homem na modernidade, diagnosticada por Moreno como perda ou desligamento da sua espontaneidade. A perspectiva é que esse aumento se acentue cada vez mais com o agravamento do individualismo promovido pelo padrão cultural hegemônico no mundo contemporâneo, pautado pelo consumismo, o hedonismo e o niilismo, entre outros avatares ideológicos. O atual paradigma dominante na psiquiatria não “toma partido” diante deste estado de coisas. Posiciona-se como ateórico e operacional; e, com isso, o tratamento psiquiátrico se restringe ao alívio ou controle dos sintomas, sem que se proponha a possibilidade da compreensão das “causas” psicossociais subjacentes ao adoecimento mental, e a partir dessa compreensão o desenvolvimento de uma nova atitude diante do pathos da vida. É preciso que a psiquiatria reveja a questão do seu paradigma, recuperando o posicionamento proposto por Jaspers, no início do século XX, de um pluralismo metodológico que habilite o profissional de saúde mental — entre psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e assistentes sociais — integrar transdisciplinarmente as suas abordagens. Como procuramos mostrar no capítulo 5.4., a psicossociodinâmica psicodramática viabiliza tanto a compreensão psicossocial dos sintomas mentais, como o direcionamento do tratamento no sentido da recuperação da potência espontâneocriadora e da integração da identidade dos pacientes acometidos por transtornos mentais.

A apresentação do caso clínico, que faremos a seguir, será acompanhada do relato descritivo


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de uma ação psicodramática realizada ao longo do tratamento, que pelo seu poder integrador da identidade acabou se tornando uma referência simbólica para a série de mudanças de atitude por parte do paciente que veio a se seguir. Este relato nos permitirá discutir, posteriormente, o leque de questões acima levantadas.

7.2. Apresentação de caso clínico P.H. é um homem de 34 anos que veio ao meu consultório pela primeira vez com a queixa de estar extremamente irritado, discutindo como todos que com ele se indispusessem por qualquer motivo, por exemplo, por uma situação banal de trânsito, por alguém que “furasse a fila” do cinema etc. Estava passando por uma crise conjugal iniciada há uns dez dias. Refere que a esposa é muito ciumenta, e implica quando chega tarde depois do trabalho. Explica que ele não lhe dá motivo, pois é fiel a ela. O problema é que tem que trabalhar muito para conseguir a promoção que tanto sonha. Trabalha em uma grande empresa multinacional, tendo iniciado sua carreira na empresa logo depois de formado, e galgado já muitos degraus lá dentro. Conta que há um diretor que estava lhe ajudando a conseguir uma tão sonhada promoção, chegando a um nível gerencial maior, mas que passou a lhe sabotar. Estava decidido a provar isso, e conseguir a sua promoção. Devido ao seu “nervosismo”, aumentou exageradamente o consumo de cigarros, fumando cerca de quatro maços por dia. Diz amar a mulher e os dois filhos, um menino de 8 anos e uma menina de 5 anos de idade. Justifica que todo o seu esforço no trabalho é para manter o padrão de vida da sua família. Alimentando-se e dormindo menos do que o costume. A contragosto saiu de casa, porque a relação com a esposa está péssima devido a tantas brigas, indo morar com os pais e um irmão provisoriamente. No contato comigo, durante a entrevista, é educado, cordial. Apresenta o discurso algo acelerado, e o tom de voz algo aumentado. Muitíssimo ansioso. É a primeira vez que apresenta uma “crise” como esta, negando diagnósticos psiquiátricos pregressos. Do ponto de vista psiquiátrico, fiquei em dúvida entre duas hipóteses: síndrome de burnout ou transtorno bipolar do humor, tipo II, fase hipomaníaca. Fala a favor da primeira hipótese a situação de estresse no trabalho, a preocupação em ser o melhor e demonstrar alto grau de desempenho, o que leva o sujeito a desvalorizar o lazer, a vida em casa, os amigos, dificuldade de aceitar certas brincadeiras com bom senso e bom humor, aumento da ansiedade e da agressividade, como estágio que precede a exaustão física e a depressão. A segunda hipótese é corroborada pela aceleração, o aumento da irritabilidade e da agressividade, a persecutoriedade em relação ao diretor da empresa. Não vou entrar no mérito do tratamento medicamentoso, pois não é este o nosso escopo. Propus acompanhamento semanal. Nas consultas seguintes ele se demonstrou incapacitado para continuar trabalhando, por isso solicitei licença médica por duas semanas, e posteriormente, por mais dois meses. Sem trabalhar, o paciente foi gradativamente melhorando, até voltar ao seu estado normal de humor. Reconciliou-se com a esposa e voltou a trabalhar, finda a licença médica. Propus-lhe a continuidade do acompanhamento, o que foi por ele aceito, porém, tendo voltado a vida normal, passou a estar pouco motivado para falar de si e de suas questões pessoais, até que interrompeu o tratamento. Passados seis meses, voltou a me procurar, apresentando um quadro clínico em tudo semelhante ao primeiro, mas ainda mais intenso. Estava muito acelerado, eufórico, dizendo que sabia de informações


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importantíssimas que depunham contra outro diretor, e que pelo bem da empresa era sua obrigação denunciá-lo. Dado à boa vinculação estabelecida comigo, veio pedir a minha ajuda para lidar com o que estava acontecendo. Convenci-lhe de que precisava descansar, e que não voltasse a trabalhar por alguns dias, até que a medicação, que reintroduzia naquele momento, pois havia deixado de tomá-la, fizesse o efeito esperado. Dois dias depois da consulta, recebi a ligação da esposa, que estava sem saber o que fazer com ele, e que achava que era o caso de interná-lo. Relatou que ele estava totalmente fora-de-si. Havia comprado uma motocicleta nova, caríssima, e saído sem paradeiro durante o fim de semana. Voltou para casa falando coisas estranhas que ela não conseguia entender. Pediu-me que fosse vê-lo em sua casa. P.H. encontrava-se em estado de franca mania, inquieto, andando de um lado para o outro. Vindo em minha direção assim que me viu, perguntou-me: —“Você é abutre?”. Fiquei sem responder. Voltou a me indagar: —“Você está no controle?”. Continuei sem falar. Ele disse então, em tom conclusivo: —“Negativo, ele não está no controle”, como se estivesse se dirigindo a outra pessoa (não presente ali, pelo menos para mim). Nisso, saiu para o meio rua (estávamos na garagem para carros na frente da casa) comportando-se como um guarda de trânsito, assobiando forte com os dedos na boca, tentando impedir a passagem de quem viesse dirigindo seu carro pela rua, mandando-lhes que parassem. Pedi que voltasse a entrar em casa para conversarmos. Ele não atendeu ao meu pedido, deixando claro que continuaria ali até quando bem entendesse. Do mesmo modo, nem a esposa, nem sua mãe, pai e irmão conseguiram dissuadi-lo. Para mim estava claro que o único recurso seria a internação compulsória em uma clínica psiquiátrica. Acionei a equipe de resgate, que, em pouco tempo, e felizmente, sem violência, levaram-no para lá. Não foram necessários mais do que dez dias de internação para que eu lhe desse alta hospitalar, em estado bastante melhorado, colaborativo, e com boa crítica do que havia acontecido. Aceitou continuar o tratamento em meu consultório, com frequência de sessões semanais. Ficara sensibilizado da importância de não voltar a abandonar o tratamento para não ter outras recaídas. Expliquei a ele que seria o caso de tentar compreender os motivos inconscientes que o levaram a novamente adoecer. O seu drama, naquele momento, passou a ser o medo de não conseguir se readaptar na empresa, de não conseguir ter um bom desempenho no trabalho e ser demitido, de deixar a sua família em más condições. Entrou em um quadro de depressão, o que costuma acontecer com pacientes com diagnóstico de bipolaridade do humor seguindo a um quadro de mania. A custa de muito esforço, conseguiu continuar trabalhando, passando a se isolar em seu quarto quando voltava para casa. Foi um período rico em termos de aprendizado psicológico, conseguindo ter alguns insights bastante relevantes. Sua vida parecia voltar aos eixos, e até melhorar. Passou a reconhecer a importância da sua presença na vida familiar, brincando mais com os filhos, levando-os para a escola etc. Tudo parecia bem quando voltou a se preocupar com o seu lugar na empresa. Seu diretor requisitou-lhe que voltasse a assumir uma função que ocupara anteriormente. Invés de ir para frente, parecia voltar para trás. Estaria a empresa com a intenção de despedi-lo, sendo esta uma estratégia neste sentido? Estaria ele em seu trabalho aquém do esperado pela empresa? Estas eram as suas dúvidas. Propus que dramatizássemos esta situação.


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7.3. Relato de ação psicodramática em contexto bipessoal P.H. já estava habituado ao trabalho com a ação psicodramática em contexto bipessoal, e costumava aceitá-la sempre que eu a propunha. Desta vez não foi diferente. Ao propô-la, costumo sugerir a cena a ser dramatizada. Neste caso, propus que dramatizássemos um diálogo entre ele e o diretor para que a situação pudesse ser esclarecida. O que poderia servir como aquecimento para uma futura conversa com o mesmo, ou, talvez não, o que de qualquer maneira poderia ser-lhe proveitoso no intuito compreender melhor o que estava ocorrendo. Ficaria ao seu critério uma possível conversa futura. Em contexto bipessoal, como o que estávamos, também costumo pedir ao paciente que escolha o papel em que gostaria de atuar inicialmente na ação psicodramática, se no seu próprio, ou se no do outro. Se o paciente escolhe começar atuando como ele próprio, eu contraceno atuando no papel do outro, ou vice-versa. Outra coisa que costumo fazer é de nos mantermos sentados frente a frente, como de hábito. Se houver necessidade podemos levantar, propor cenário, utilizar almofadas para representar outros papéis etc, como de praxe. Tais variações se prestam a otimizar o aquecimento para a ação psicodramática. Entretanto, a posição sentada possibilita uma excelente qualidade dramática no contexto bipessoal, pela agilidade da inversão de papéis que a mesma proporciona. Não se perde tempo com deslocamentos corporais desnecessários, que acabam mais desaquecendo do que aquecendo para a ação. O procedimento é muito simples: trata-se do uso da técnica de inversão de papéis, direcionada pelo terapeuta. Sempre que considero o momento adequado, digo simplesmente: — Inverte. Eu, então na função de ego-auxiliar, retomo o que foi dito imediatamente antes da interrupção, e o paciente retoma a ação. Fica claro que o terapeuta atua em duas funções no contexto bipessoal, como diretor e como ego-auxiliar. Tendo esclarecido o funcionamento do método, passemos ao relato dessa ação psicodramática de P.H.. • Papéis jogados no aqui-e-agora da ação psicodramática: P.H. ele mesmo; P.H. como seu diretor: Eu como seu diretor: Eu como P.H.: Eu terapeuta: • Ação psicodramática: P.H. ele mesmo: Paulo, você poderia me dar alguns minutos? Eu gostaria de falar sobre a mudança de função aqui no setor. Antes de mais nada eu quero dizer que vou dar o melhor de mim, como eu sempre fiz. Eu terapeuta: Inverte. Repito a sua fala. P.H. como seu diretor: Precisamos de você nesta função porque você tem muita experiência nela. Há um grande desafio para atingir a meta estipulada para este ano, e ninguém melhor do que você para conseguir isso. Eu terapeuta: Inverte. Repito a sua fala como seu diretor.


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P.H. ele mesmo: Como eu disse, Paulo, vou fazer o que puder para atingir a meta. Realmente, eu conheço bem esta área do negócio. Eu como seu diretor: Então é isso. Você quer dizer mais alguma coisa? Podemos voltar ao trabalho? P.H. ele mesmo: Não, tudo certo, é só isso mesmo! Eu só queria entender melhor o motivo da mudança. Eu terapeuta: Bem, agora eu vou entrar no seu papel, e você fica no de diretor, o.k.? P.H ele mesmo: O.k. Eu como P.H.: Paulo, na verdade eu fiquei um pouco preocupado. Eu estou desempenhando bem o meu trabalho? Você poderia me dar um feedback? P.H. ele mesmo: Eu não diria assim. Soa estranho... Eu terapeuta: Como assim? P.H. ele mesmo: Parece que estou fragilizado e não quero demonstrar isso. Eu terapeuta: Mas é verdade que você está se sentindo inseguro, e não sabe se esta é uma estratégia para lhe despedirem devido a um baixo desempenho no trabalho. P.H. ele mesmo: Eu sei... Mas está me ocorrendo agora uma outra forma de falar com ele. Eu terapeuta: Quer tentar? Então voltemos à dramatização. Pode falar no seu papel que eu fico no papel do Paulo. P.H. ele mesmo: Paulo, eu quero lhe pedir para me dizer no que eu posso melhorar. Há sempre algo que a gente pode melhorar, não é mesmo? Eu terapeuta: Inverte. Repito a sua fala. P.H. como seu diretor: Está ótimo. Qualquer coisa eu lhe digo, o.k.? Eu terapeuta: Inverte. Repito a sua fala como diretor. P.H. ele mesmo: Tudo bem. Obrigado. Eu terapeuta: E então, melhor assim? P.H. ele mesmo: Sim, me senti bem melhor agindo assim. Eu terapeuta: Que bom. Vamos encerrar a parte da dramatização e passar aos comentários.


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P.H. comentou que depois da dramatização estava se sentindo bem mais preparado para conversar com o seu diretor, e que faria isso assim que tivesse uma oportunidade. Ele me contou que dramatizar a situação possibilitou a ele se dar conta da sua fragilidade, e reagir a este sentimento. Eu primeiramente concordei com ele sobre essa sua compreensão sobre si mesmo. Depois, ressaltei o que apareceu objetivamente na ação, isto é, que ele tem o apoio do diretor, que o mesmo confia nele. Especulei então acerca da hipótese do diretor estar mentindo para ele, como parte de uma estratégia para demiti-lo. De fato, o diretor já havia dito a P.H. que o motivo da sua troca de função era devido a sua experiência no setor, e da confiança que a empresa depositava nele. O que P.H. disse como seu diretor na ação psicodramática foi baseado na realidade. Então perguntei-lhe: qual seria o motivo do diretor mentir para ele? Respondeu que não havia lógica, pois se quisesse realmente demiti-lo, teria feito isso imediatamente, e não o trocado de função. Levantei então uma questão: não seria justamente o sentimento de fragilidade que apareceu na dramatização que o fazia duvidar do diretor? P.H. respondeu que podia ser isso sim, que não havia pensado nisso antes. Encerramos a sessão por qui. Na seguinte, contou que teve a conversa com Paulo, e que tudo acontecera de modo praticamente igual ao dramatizado. Que estava aliviado, porém, um pouco triste, sem compreender o motivo da tristeza. O trabalho do dia foi dedicado a este tema.

7.4. Análise psicossociodinâmica Vejamos agora de que maneira a psicossociodinâmica psicodramática nos auxilia na compreensão da pessoa e do quadro psicopatológico apresentado pelo paciente em questão. Ele sofre com oscilações do seu humor, algo que chegou a um alto grau de euforia no primeiro episódio, e a um grau extremo no segundo, seguido de uma fase de depressão. O trabalho com a ação psicodramática nos ajuda a compreender alguns aspectos de sua estrutura psicossociodinâmica, e como tal estrutura está associada a sua oscilação do humor. O primeiro aspecto a ser destacado é o sentimento de persecutoriedade em relação a pessoa do diretor. O paciente espera ansiosamente dele um feedback, traduzindo para o português, uma retroalimentação, que o faça se sentir mais seguro. A ação psicodramática o ajudou a perceber a sua fragilidade na relação com o outro. O que possibilitou esta autopercepção foi eu ter tomado, como egoauxiliar, o papel de seu duplo na ação psicodramática. Para ele, dizer ao outro que se sente inseguro é ameaçador. A saída é parecer forte para o outro. No momento da ação psicodramática, encontrou acesso à espontaneidade que se encontrava inibida devido à contradição: esperar pela confirmação do outro sem querer expor a sua insegurança evitando assim ser desconfirmado. Pedir ao diretor para lhe dizer no que poderia melhorar foi a forma por ele encontrada (espontaneamente) para, ao mesmo tempo, pedir pela retroalimentação e não demonstrar fragilidade, mas sim força, positividade. Este ato o fez se sentir bem, aliviado, mais confiante. Podemos dizer que houve aqui uma catarse de integração. Procuremos então compreender a contradição apresentada em termos psicossociodinâmicos. A falta de confiança na relação interpessoal é característica da psicopatologia relacionada a estrutura psicossociodinâmica do primeiro universo. Sugere que o paciente de alguma forma foi desconfirmado de modo significativo neste período, vindo daí o seu sentimento de fragilidade em expor a sua insegurança


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para o outro e da sua necessidade de retroalimentação que o faz se sentir ansioso. O próprio termo retroalimentação remete ao contexto do primeiro universo, no qual o bebê é alimentado pela sua mãe. Contudo, para completarmos a análise, precisamos identificar que há também um comprometimento relacionado à estrutura psicossociodinâmica do segundo universo. Ele precisa se adaptar à situação sentida como ameaçadora em seu ambiente de trabalho, e para isso, precisar parecer forte para o diretor, que ocupa a posição de autoridade, de juiz da sua ação. Entra em pauta a questão da imagem de si, isto é, a imagem idealizada que o sujeito estabelece para si na relação com o outro. Neste caso, trata-se de uma pessoa forte, sempre preocupada em desempenhar de modo excelente o seu papel profissional. Esta imagem o ajuda a se sentir mais confiante, afastando a ameaça de desconfirmação. Esta preocupação com a sua imagem para o outro (e, claro, para si), faz com que haja uma oscilação do seu humor, de acordo com a impressão que tem da situação interpessoal. Se tem a impressão de que o outro está lhe confirmando, tranquilizase, sente- se autoconfiante. Caso contrário, pode tanto ficar depressivo como eufórico, dependendo da situação. Voltaremos a este ponto adiante, tendo em vista o que vamos discutir a seguir. O que teria desencadeado o episódio de mania que motivou a sua internação? Além do fato de o paciente ter interrompido a medicação que evitaria a sua recaída, o que costuma acontecer quando os pacientes com transtorno bipolar do humor voltam a se sentir bem, tratemos de analisar o que teria ocorrido em termos psicossociodinâmicos. P.H. manifestou, desde a primeira entrevista, o seu desejo de ascensão na empresa, de ser promovido a um nível maior dentro da hierarquia. A hipótese é que a falta de ter a sua expectativa realizada o leva a fantasiar situações que justifiquem esta falta. E não só isso, que conduzam à realização da expectativa. De acordo com a imagem idealizada que construiu para si, assume o papel heroico de denunciador daqueles que estão conspirando contra os interesses da empresa, para ser assim reconhecido como um leal membro da comunidade empresarial, e merecer ser promovido. Torna-se autoconfiante, desenvolto nas relações com os seus superiores, agindo estrategicamente para conseguir as provas necessárias para desmascarar o mau elemento dentro da corporação. Foi nesta intenção que voltou a me procurar pela segunda vez, contando com a minha ajuda na sua “missão”. Podemos assim dizer que o seu desejo de self, de autoafirmação de seu ser como pessoa, sob o viés da estrutura psicossociodinâmica do segundo universo da sua matriz de identidade, fez com que construísse a imagem do seu eu dentro da comunidade em que trabalhava como um eu heroico, idealizado como paladino da justiça, a fim de ser reconhecido como portador de um grau superior de valores éticos e coragem para lutar pela empresa, e participar merecidamente da elite dos seus funcionários. Percebendo que eu não o apoiei em sua “missão”, orientando-o a não se envolver com esse problema no momento, pois se encontrava muito exaltado e precisava, antes de mais nada, recuperar a sua serenidade, até para que pudesse, se fosse realmente o caso, conseguir reunir as provas necessária contra o diretor infrator. Neste sentido, lhe orientei a voltar a tomar a medicação e a descansar. Porém, contando de antemão que conseguiria a promoção, após o sucesso da sua “missão”, comprou a motocicleta dos seus sonhos, saindo estrada afora com um outsider de um filme hollywoodiano, sem avisar a esposa e seus pais. Na viagem pelo interior do estado, conheceu um grupo de motociclistas nomeado “Os abutres”. Esta informação, fornecida por P.H. durante a internação, quando já havia recuperado o juízo, esclarecia o significado do que ele me perguntara logo que cheguei ao seu encontro em sua casa. Sentindo-se sem o apoio da família, e sem o meu apoio, encontrou o sentido de pertencimento junto aos “abutres”. A sua intenção inicial, era de continuar viajando com eles em outras oportunidades. Como eu não era um dos abutres, não poderia confiar em mim. Só confiava nos abutres, com que passou a congregar. Esta passagem mostra a sua necessidade de pertencimento a um coletivo, lugar que ficara imaginariamente ameaçado na empresa. Compreendemos assim que o seu estado de


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euforia estava ligado à necessidade de autoafirmação de sua imagem idealizada de si, relativamente à estrutura psicossociodinâmica do segundo universo. Voltando ao ponto deixado em aberto, a oscilação bipolar do seu humor, levando-o a estar ora depressivo, ora eufórico, pode ser compreendida pela psicossociodinâmica de suas relações interpessoais. Tende ao estado depressivo quando se vê sem poder de ação, sem saber o que fazer diante da ameça de perda da sua posição social; ou ao estado de euforia, quando busca afirmar a imagem idealizada de si, de um eu heroico, autoconfiante, respeitado entre pessoas que lhe servem como espelhos, isto é, como modelos de identificação.

7.5. Relato sobre o direcionamento do trabalho psicoterapêutico Como havia dito, a ação psicodramática relatada acima passou a servir como uma referência simbólica para o direcionamento do trabalho psicoterapêutico que veio a se seguir. Retornando à sessão subsequente, quando P.H. se dizia aliviado, porém, um pouco triste, sem compreender o motivo da tristeza, trabalhamos com o tema: porque continuava triste se a situação já havia se resolvido? Ele mesmo levantara a questão. Queria entender por que as vezes ficava depressivo sem motivo aparente. Perguntei a ele sobre associações: — você acha que isso tem a ver com que? O que vem à sua mente? Alguma lembrança? Respondeu: — a família. Não gostaria de ver meus filhos e minha esposa desamparados, não podendo frequentar uma boa escola, não podendo passear no fim de semana, estas coisas. Forneci-lhe então a seguinte interpretação: — o seu lugar na empresa é algo de enorme importância, como a viga mestra de uma construção que, quando abalada, ameaça toda a construção cair. Ele concordou, justificando que a família dependia dele, daí todo o seu esforço em manter-se empregado. Porém, caso perdesse o emprego, isso não seria o “fim do mundo”, pois poderia tentar uma recolocação no mercado. Argumentou: — continuo sem entender a tristeza. Eu concordo que tem a ver com isso, mas não tem lógica. P.H. é bastante racional, e apresenta dificuldade para compreender a sua afetividade. Havia algo que permanecia inconsciente, e propus trabalharmos novamente com a ação psicodramática no intuito de tentar esclarecer algo mais sobre esta questão. Pedi a ele que fechasse os olhos. A ação psicodramática se passaria em sua imaginação. Eu terapeuta: Deixe vir a mente alguma lembrança em que você aparece triste. Diga quando já estiver com ela. P.H. ele mesmo: Pronto. Eu terapeuta: Agora, descreva com detalhes o que aparece na imagem. P.H. ele mesmo: Estou em meu quarto, deitado na cama, as luzes apagadas, a porta fechada. Estou me sentindo muito triste, sem vontade de nada, sem pensar em nada. Meu filho bate na porta me chamando. Eu digo que quero ficar sozinho. Eu estou todo encolhido.


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Eu terapeuta: Aí, neste lugar em que você está, vem a sua mente alguma lembrança, alguma imagem? P.H. ele mesmo: Não, é só um vazio. Eu terapeuta: Está bem, vamos encerrar por aqui a dramatização.

P.H. aparece na imagem completamente tomado, capturado pelo sentimento de tristeza. Já havia falado sobre estes momentos experienciados durante o último período depressivo. Depois de chegar do trabalho, e durante grande parte de seu fim de semana, ficava por horas em seu quarto sem se comunicar com ninguém. A dramatização da situação mostrou a intensidade do seu estado, algo que apesar de já ter sido descrito por ele em sessões anteriores, ganhou uma outra compreensibilidade por revelar com maior fidelidade a sua qualidade afetiva. Da perspectiva psicossociodinâmica, este sintoma corresponde a algum grau de comprometimento na organização do self psicossomático, que ocorre no primeiro universo da matriz de identidade, momento no qual os processos formativos da vida somática se encontram em íntima conexão com a experiência emocional e afetiva da criança nas suas relações interpessoais através dos papéis psicossomáticos. Como vimos, estes processos formativos são anteriores a emergência das imagens, ligadas aos papéis psicodramáticos e sociais. Em suma, trata-se de algo que se passa ao nível do corpo e da emoção, antes de qualquer forma de simbolização ou racionalização. Isso nos ajuda a compreender a sua dificuldade “para reduzir” a tristeza a qualquer outra coisa. De qualquer maneira, para ajudá-lo a simbolizar a sua experiência, digo a ele que esta tristeza deve provavelmente ter a sua origem na sua infância precoce, quando ele ainda era um bebê. Expliquei-lhe que a estudos científicos que mostram que quando um bebê demora para ser alimentado, por exemplo, quando a mãe por algum motivo não consegue chegar a tempo de alimentá-lo, ele passa por diferentes estágios de um processo. Primeiramente fica inquieto, depois começa a chorar, depois passa a chorar mais forte, aumenta a sua irritação, e, em um último estágio, parece desistir de chorar, ficando muito quieto e perdendo a vontade de amamentar, pois, mesmo que a mãe lhe ofereça o leite, ele não quer mais, rejeitando a oferta. P.H. escuta atento a descrição do fenômeno, e ao final, diz simplesmente: — faz sentido! Desde então, P.H. passou a ficar atento às suas oscilações de humor. Vem desenvolvendo a capacidade de se dar conta, no momento mesmo da oscilação, que está alterado, e a cuidar de si mesmo para voltar ao estado normal. Em uma de suas sessões, contou o que aconteceu em uma situação vivida na semana anterior no ambiente de trabalho. Dois colegas que trabalham na equipe sob a sua coordenação, questionaram o seu pedido — comando, ordem —, argumentando que seria melhor fazer de outro jeito. P.H. notou a sua irritação com o questionamento deles, e percebeu que naquele estado acabaria se impondo de uma maneira inadequada, a exemplo do que era o seu costume anteriormente. Então, antes que “metesse os pés pelas mãos”, disse a eles que precisava sair um momento. Foi para fora, um instante, para fumar um cigarro e refletir. Na sua reflexão, deu- se conta que a sua ordem estava correta, pois, segundo a sua experiência de tantos anos, sabia que o melhor a ser feito era mesmo o que propusera a eles. Pensou então que deveria manter a sua posição, reafirmar o seu pedido, mas, de uma forma adequada, com firmeza e tranquilidade, sem se exaltar. Pensou também que era legítimo da parte deles questionar a sua ordem. Lembrou-se da época em que estava começando na empresa, e do mesmo modo tentava questionar algumas das ordens que recebia, sendo muitas vezes repreendido ou ignorado pelo seu superior. Entendeu que eles mereciam o seu respeito, e que deveria explicar-lhes as razões que justificavam o seu modo de resolver o


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problema da empresa e não o deles. Além disso, pensou que esta seria uma oportunidade pedagógica para o aprendizado deles, e que esta também era a sua função como coordenador da equipe. Voltou, então, à sua mesa, conversou com eles nos moldes do que havia refletido. Conta feliz que o resultado foi ótimo. Em meu comentário, disse a ele que no psicodrama o que ele fez se chama inversão de papéis. Que ocorrera um verdadeiro encontro entre ele e aqueles jovens. Que eles experienciaram ali um momento de aprendizado mútuo, que no psicodrama chamamos de cocriação. Que ele superou naquela situação uma imagem de si que se tornara uma conserva cultural. Nisso, ele se lembrou que chegava até a se orgulhar quando dava um “esporro” nos “subordinados”, que contava com satisfação para a esposa que “sabia mais” que os outros, e que não conseguia entender por que não era promovido. P.H. começou assim a apresentar claros sinais de melhora do seu quadro clínico, evoluindo com episódios de oscilação do humor cada vez menos frequentes, e cada vez mais brandos. Atento às suas oscilações, tem conseguido aprofundar na compreensão de seu self, tornando-se uma pessoa mais sensível, afetiva e equilibrada.

7.6. Discussão sobre as implicações socioculturais da abordagem apresentada Procuramos demonstrar através de um exemplo real, concreto, empírico, a possibilidade de transformação do indivíduo através do método do psicodrama, no sentido da recuperação da sua espontaneidade e criatividade —, danificada, sobretudo em casos de indivíduos acometidos por transtornos mentais. Espero que tenha ficado claro de que modo pode acontecer na prática a interação entre as abordagens psiquiátrica e psicodramática. Da perspectiva psiquiátrica, procuramos mostrar que o diagnóstico psicopatológico pode ser útil não só para o acerto do tratamento medicamentoso, mas, para o tratamento psicoterápico, na medida em que possibilita ao paciente aprender a lidar ativamente com os seus sintomas, tornando-se agente do seu cuidado de si, e de seu processo de cura-transformação. Costumo dizer aos meus pacientes que o adoecimento mental não deve ser encarado em seu aspecto negativo, como sintomas inconvenientes que precisam simplesmente ser eliminados ou aliviados. Em seu aspecto positivo, o adoecimento mental pode ser compreendido como uma oportunidade para o início de um movimento de transformação, de crescimento emocional, de se tornar uma pessoa melhor do que era antes. Neste sentido, é fundamental que os psiquiatras possam revisar o paradigma atualmente dominante na psiquiatria, que reduz o adoecimento mental à mera manifestação de uma doença orgânica, biológica, cujos sintomas não tem outro significado além desse. Tal paradigma encontra- se atrelado ao estado de fragmentação e dissociação do conhecimento nas ciências sobre o homem, condicionado pela concepção da filosofia moderna. Acredito que o conjunto da teorização exposta neste livro contribua de alguma forma para a revisão do atual paradigma da psiquiatria, introduzindo o pluralismo metodológico proposto por Jaspers, e a psicopatologia fenomenológica como interface para uma interação transdisciplinar entre os diversos campos de estudo e profissionais da área de saúde mental. Com isso, será possível reverter ―


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espero, em um futuro próximo — o crescente e assustador número de pessoas acometidas por transtornos mentais na sociedade contemporânea, fenômeno que se observa ao nível global. Em um artigo publicado em 2013 em uma revista brasileira voltada ao público leigo, Gilson Iannini e Antonio Teixeira falam de uma “psiquiatrização da vida cotidiana”, exatamente no sentido crítico por nós aqui apontado. Cada vez mais pessoas vem sendo diagnosticadas e fazendo uso prolongado de medicações psiquiátricas sem qualquer referência às relações do seu adoecimento com a sua vida pessoal e o mundo social. Do ponto de vista social, isto significa o agravamento do problema do individualismo. Basta compreender que pelo fato de uma pessoa em estado de depressão tender a se isolar, uma sociedade repleta de pessoas depressivas corresponde a uma sociedade composta por indivíduos isolados. Não vamos nos estender aqui na análise deste problema. Fica registrado o alerta, e a possível solução para o mesmo. Este movimento de psiquiatrização da vida cotidiana é decorrente não só da vigência deste paradigma da psiquiatria, mas fundamentalmente do atual padrão sociocultural de produção da subjetividade do qual este paradigma é apenas um dos ramos. Outros paradigmas em vigor, igualmente redutores da realidade do ser humano, como os da educação, do trabalho e da ciência, precisam ser igualmente revisados e transformados. Poderemos, desse modo, convergir os nossos esforços, cada qual em seu âmbito de ação profissional, na cocriação de um novo padrão sociocultural de produção da subjetividade rumo à revolução criadora.


FILOSOFIA DO PSICODRAMA ROBERTO MANDETTA 2018


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